o mundo resiste

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O gabinete é pequeno, deve ter uns 20 metros quadra- dos. Pelo chão, em cima da única mesa, nas duas poltro- nas e nas estantes, milhares de livros amontoados. No canto da sala, um boneco do personagem de O Grito, quadro do pintor norueguês Edward Munch. É final de tarde. Estamos na Universidade de Coimbra, Portugal, na sala do professor Boaventura de Sousa Santos, um dos maiores sociólogos da atualidade. Português de 63 anos, professor catedrático da Facul- dade de Economia da Universidade de Coimbra, Boaven- tura de Sousa Santos é autor de vários livros traduzidos em diversos idiomas, dentre eles A Crítica da Razão In- dolente, vencedor do prêmio Jabuti na área de Ciências Humanas e Educação, em 2001. É doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos, professor visitante da Universidade de Wisconsin-Madi- son, da London School of Economics, da Universidade de São Paulo, da Universidade de Los Andes, entre outras. Nesta entrevista a Caros Amigos, esse pensador polê- mico e provocador relembra sua vivência numa favela ca- rioca, propõe a reinvenção da democracia, analisa o papel dos movimentos sociais e dos partidos políticos, fala so- bre o governo Lula e a reforma da Previdência. E, claro, aborda o tema do seu mais recente livro, Conhecimento Prudente para uma Vida Decente: Um discurso sobre as ciências revisitado (Editora Cortez), que será lançado em Portugal e no Brasil no próximo 14 de outubro. Um grito contra a mediocridade do pensamento único. O senhor tem uma ligação muito forte com o Brasil. Pode nos contar como foram esses primeiros contatos? Eu fui fazer a minha tese de doutorado numa favela do Rio de Janeiro, a favela do Jacarezinho, onde vivi vários meses, realizando observação participante. Isso foi o que mudou a minha vida. Estávamos no final da década de 60 e início dos anos 70. Era uma época muito interessante, de gran- de agitação política, de contestação à guerra no Vietnã. Eu estudava nos Estados Unidos, na Universidade de Yale, foi a primeira vez que houve uma greve nessa universida- de. Era um momento da radicalização da sociologia, da mudança do quantitativo para o qualitativo, havia a idéia de que tínhamos de fazer trabalhos mais próximos dos nossos objetivos, fazer um trabalho qualitativo face a face, não tanto através de entrevista, que cria distância, mas pela observação participante, de desenvolver um trabalho com a comunidade. Havia a idéia de que devíamos ser fa- cilitadores, porta-vozes etc. Portanto, uma nova relação ciência-cidadania. Inicialmente quis fazer o trabalho em Portugal, mas não havia bolsas. Só para a América Latina. Meus dois avós tinham sido imigrantes no Brasil, do lado paterno e do lado materno, e eu desde pequeninho ouvia histórias sobre o Brasil, achei que era o momento de co- nhecer as terras sobre as quais tinha ouvido tantas histó- rias. Meu avô, que era funcionário da Light, ajudou a cons- truir os carrinhos dos elétricos (bondes) no Rio, nos anos 20. E fui para lá. Naquela altura, sociologia no Brasil era feita sobretudo por americanos. Não havia muitos brasi- leiros na área. Obviamente, não havia nenhum português. De maneira que os moradores da favela me perguntavam: "O que afinal queres vender? É secos e molhados? O que tu queres?" "Que é isso! Um português a fazer tese de dou- torado?" Não compreendiam por que eu queria fazer uma tese. A minha primeira história foi assim: eu cheguei numa favela de palafitas na baía de Guanabara e fui rece- bido pelo líder da favela. Conversamos, otimamente, na casa dele e tal, até que eu lhe disse que o meu objetivo era fazer uma investigação. O homem agarra uma carabina que tinha na parede e me diz: "Seu portuga de merda, saí daqui que eu te mato". E eu fiquei espantado, sem saber o que se tinha passado, porque estávamos numa conversa muito agradável, e eu fui indo para fora, a recuar, as mu- lheres a perguntar e ele dizendo: "Esse portuga é cagüete, veio aqui para nos denunciar". Uma dessas mulheres me disse: "Sai devagar, vai pela estrada da favela e vai embora". Eu saí, virei a esquina e corri para pegar um ônibus. Só pa- rei em Copacabana. Tudo por causa de uma palavra... Precisamente, porque no Brasil "investigação" é criminal, não é científica. No Brasil, isso se chama pesquisa e eu ti- nha usado a palavra portuguesa. Ele achou que eu era in- formante da polícia. Quando fui para Jacarezinho, tive mais cuidado. Foi um batizado de fogo. E depois? Depois foi muito curioso. Como eu não cumpria esse es- tereótipo, digamos, do sociólogo gringo que vinha obter informações e fazia suas teses... à medida que fui ganhan- do confiança, começaram a me dizer muita coisa que não diziam aos sociólogos americanos. Nomeadamente, todo o trabalho clandestino que tinha a ver com o Partido Co- munista, tinha a ver com os grupos do Brizola, tinha a ver com muita atividade política da favela e que, naturalmen- te, nunca era mencionada aos sociólogos, antropólogos e, portanto, aí tive acesso a um outro conhecimento, que me parece mais rico de alguma maneira. O senhor fez a conferência inaugural do Fórum Social Mundial Temático, que aconteceu em Cartagena de Índias, na Colômbia, em junho deste ano... A minha palestra foi orientada, em primeiro lugar, para tentar mostrar que há uma demodiversidade. Isto é, fala- mos muito desde os anos 80 e, sobretudo, dos anos 90, em biodiversidade e não falamos nada de demodiversi- dade. Ou seja, das diferentes concepções da democracia. Se a gente analisar dos anos 60 para cá, encontramos uma perda de diversidade nas formas democráticas. Nos anos 60, falávamos em democracia participativa, demo- cracia representativa, democracia popular, democracia desenvolvimentista. Havia, enfim, uma série de formas democráticas. Quando chegamos ao final do século, tudo está reduzido a apenas uma forma de democracia, que é a democracia representativa, que é aquela promo- vida pelo Consenso de Washington. Portanto, parte da globalização neoliberal. Isso põe-nos um problema: por que isso aconteceu? O que isso significa? Como pode- mos dar-lhe remédio? Fundamentalmente, tentei mos- trar na minha palestra o porquê desse estreitamento. Tentei mostrar que essa perda de diversidade foi no sen- tido de nos concentrarmos numa democracia de baixa FOTO: WALTER FIRMO “o mundo resiste” Fernando Evangelista Boaventura de Sousa Santos diz que é preciso reinventar a democracia participativa, que ele vê em crise profunda FOTO: CRISTINA LIMA/VERAZ COMUNICAÇÃO

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Fernando Evangelista • Revista Caros Amigos, edição nº 78, • Entrevista com o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, um dos idealizadores do Fórum Social Mundial

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Page 1: O mundo resiste

O gabinete é pequeno, deve ter uns 20 metros quadra-

dos. Pelo chão, em cima da única mesa, nas duas poltro-

nas e nas estantes, milhares de livros amontoados. No

canto da sala, um boneco do personagem de O Grito,

quadro do pintor norueguês Edward Munch. É final de

tarde. Estamos na Universidade de Coimbra, Portugal,

na sala do professor Boaventura de Sousa Santos, um dos

maiores sociólogos da atualidade.

Português de 63 anos, professor catedrático da Facul-

dade de Economia da Universidade de Coimbra, Boaven-

tura de Sousa Santos é autor de vários livros traduzidos

em diversos idiomas, dentre eles A Crítica da Razão In-

dolente, vencedor do prêmio Jabuti na área de Ciências

Humanas e Educação, em 2001. É doutor em sociologia

do direito pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos,

professor visitante da Universidade de Wisconsin-Madi-

son, da London School of Economics, da Universidade de

São Paulo, da Universidade de Los Andes, entre outras.

Nesta entrevista a Caros Amigos, esse pensador polê-

mico e provocador relembra sua vivência numa favela ca-

rioca, propõe a reinvenção da democracia, analisa o papel

dos movimentos sociais e dos partidos políticos, fala so-

bre o governo Lula e a reforma da Previdência. E, claro,

aborda o tema do seu mais recente livro, Conhecimento

Prudente para uma Vida Decente: Um discurso sobre as

ciências revisitado (Editora Cortez), que será lançado em

Portugal e no Brasil no próximo 14 de outubro.

Um grito contra a mediocridade do pensamento único.

O senhor tem uma ligação muito forte com o Brasil. Podenos contar como foram esses primeiros contatos? Eu fui fazer a minha tese de doutorado numa favela do Rio

de Janeiro, a favela do Jacarezinho, onde vivi vários meses,

realizando observação participante. Isso foi o que mudou

a minha vida. Estávamos no final da década de 60 e início

dos anos 70. Era uma época muito interessante, de gran-

de agitação política, de contestação à guerra no Vietnã.

Eu estudava nos Estados Unidos, na Universidade de Yale,

foi a primeira vez que houve uma greve nessa universida-

de. Era um momento da radicalização da sociologia, da

mudança do quantitativo para o qualitativo, havia a idéia

de que tínhamos de fazer trabalhos mais próximos dos

nossos objetivos, fazer um trabalho qualitativo face a face,

não tanto através de entrevista, que cria distância, mas

pela observação participante, de desenvolver um trabalho

com a comunidade. Havia a idéia de que devíamos ser fa-

cilitadores, porta-vozes etc. Portanto, uma nova relação

ciência-cidadania. Inicialmente quis fazer o trabalho em

Portugal, mas não havia bolsas. Só para a América Latina.

Meus dois avós tinham sido imigrantes no Brasil, do lado

paterno e do lado materno, e eu desde pequeninho ouvia

histórias sobre o Brasil, achei que era o momento de co-

nhecer as terras sobre as quais tinha ouvido tantas histó-

rias. Meu avô, que era funcionário da Light, ajudou a cons-

truir os carrinhos dos elétricos (bondes) no Rio, nos anos

20. E fui para lá. Naquela altura, sociologia no Brasil era

feita sobretudo por americanos. Não havia muitos brasi-

leiros na área. Obviamente, não havia nenhum português.

De maneira que os moradores da favela me perguntavam:

"O que afinal queres vender? É secos e molhados? O que

tu queres?" "Que é isso! Um português a fazer tese de dou-

torado?" Não compreendiam por que eu queria fazer uma

tese. A minha primeira história foi assim: eu cheguei

numa favela de palafitas na baía de Guanabara e fui rece-

bido pelo líder da favela. Conversamos, otimamente, na

casa dele e tal, até que eu lhe disse que o meu objetivo era

fazer uma investigação. O homem agarra uma carabina

que tinha na parede e me diz: "Seu portuga de merda, saí

daqui que eu te mato". E eu fiquei espantado, sem saber o

que se tinha passado, porque estávamos numa conversa

muito agradável, e eu fui indo para fora, a recuar, as mu-

lheres a perguntar e ele dizendo: "Esse portuga é cagüete,

veio aqui para nos denunciar". Uma dessas mulheres me

disse: "Sai devagar, vai pela estrada da favela e vai embora".

Eu saí, virei a esquina e corri para pegar um ônibus. Só pa-

rei em Copacabana.

Tudo por causa de uma palavra...Precisamente, porque no Brasil "investigação" é criminal,

não é científica. No Brasil, isso se chama pesquisa e eu ti-

nha usado a palavra portuguesa. Ele achou que eu era in-

formante da polícia. Quando fui para Jacarezinho, tive

mais cuidado. Foi um batizado de fogo.

E depois? Depois foi muito curioso. Como eu não cumpria esse es-

tereótipo, digamos, do sociólogo gringo que vinha obter

informações e fazia suas teses... à medida que fui ganhan-

do confiança, começaram a me dizer muita coisa que não

diziam aos sociólogos americanos. Nomeadamente, todo

o trabalho clandestino que tinha a ver com o Partido Co-

munista, tinha a ver com os grupos do Brizola, tinha a ver

com muita atividade política da favela e que, naturalmen-

te, nunca era mencionada aos sociólogos, antropólogos e,

portanto, aí tive acesso a um outro conhecimento, que

me parece mais rico de alguma maneira.

O senhor fez a conferência inaugural do Fórum SocialMundial Temático, que aconteceu em Cartagena deÍndias, na Colômbia, em junho deste ano...A minha palestra foi orientada, em primeiro lugar, para

tentar mostrar que há uma demodiversidade. Isto é, fala-

mos muito desde os anos 80 e, sobretudo, dos anos 90,

em biodiversidade e não falamos nada de demodiversi-

dade. Ou seja, das diferentes concepções da democracia.

Se a gente analisar dos anos 60 para cá, encontramos

uma perda de diversidade nas formas democráticas. Nos

anos 60, falávamos em democracia participativa, demo-

cracia representativa, democracia popular, democracia

desenvolvimentista. Havia, enfim, uma série de formas

democráticas. Quando chegamos ao final do século,

tudo está reduzido a apenas uma forma de democracia,

que é a democracia representativa, que é aquela promo-

vida pelo Consenso de Washington. Portanto, parte da

globalização neoliberal. Isso põe-nos um problema: por

que isso aconteceu? O que isso significa? Como pode-

mos dar-lhe remédio? Fundamentalmente, tentei mos-

trar na minha palestra o porquê desse estreitamento.

Tentei mostrar que essa perda de diversidade foi no sen-

tido de nos concentrarmos numa democracia de baixa

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Boaventura de Sousa Santos diz que é preciso reinventara democracia participativa, que ele vê em crise profunda

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Entrevista Boaventura 02.09.03 4:32 PM Page 34

Page 2: O mundo resiste

CAROS AMIGOSS E T E M B R O2 0 0 3 35

intensidade, quer no que diz respeito à participação,

quer no que diz respeito à representação. Uma democra-

cia que na sua forma original, pelo menos na forma

como se constituiu na Europa, era uma democracia que

teve sempre uma tensão, relativamente elevada, com o

capitalismo. Na medida em que ela procurou fazer algu-

ma redistribuição social, através dos direitos sociais, dos

direitos econômicos, dos direitos dos trabalhadores. Isso,

de alguma maneira, foi o resultado das lutas sociais dos

trabalhadores, depois das mulheres, dos imigrantes, das

minorias, que foi sempre uma luta pela inclusão no con-

trato social. Essa luta pela inclusão no contrato social re-

sultou em formas mais avançadas de democracia, em

que, sem alterar o sistema capitalista, pelo menos se per-

mitiu alguma redistribuição social.

Mas isso foi sendo destruído...É. O que assistimos nos últimos vinte anos é que essas

virtualidades redistributivas da democracia representati-

va se perderam com os ataques ao Estado-previdência,

com o Consenso de Washington em meados dos anos 80,

depois de se transformar, digamos assim, numa condicio-

nalidade política, dos empréstimos do Banco Mundial e

do Fundo Monetário, em que a democracia representati-

va é, basicamente, de multipartidarismo, eleições livres e

justas e nada mais. Liberdade de informação etc., e, mui-

tas vezes, mesmo essas condições não ocorrem de fato.

Todas as virtualidades distributivas desse modelo demo-

crático deixaram, efetivamente, de existir. Portanto, esse

é um primeiro sinal de crise, porque essa democracia dei-

xa de ser pensada num contexto, deixam de ser pensadas

as condições que a constroem. Ou seja, é como se qual-

quer país pudesse ser democrático, e acho que sim, mas

para isso é preciso que as pessoas tenham condições. E

essas condições são, ao mesmo tempo, a grande contra-

dição do tempo presente, tal e qual como em relação aos

indivíduos. Falamos muito da autonomia individual e

cada vez mais retiramos as condições de sermos autôno-

mos. Por outro lado, também sugerimos ou mesmo im-

pomos o regime democrático a diferentes países, ao mes-

mo tempo em que lhes retiramos as condições para o se-

rem, efetivamente. Essa foi a primeira grande idéia.

E a segunda? A segunda idéia tem muito a ver com isto: a democracia

representativa, tal e qual como existiu, assentou-se sem-

pre na idéia de que há dois mercados. Há o mercado po-

lítico, das idéias, onde a gente transaciona bens e valores

que não têm preço e, portanto, resultam de uma luta po-

lítica, os compromissos; e o mercado econômico, que é,

exatamente, o capitalista, onde a gente transaciona valo-

res que têm preço, que são as mercadorias. Esses dois

mercados existiram sempre, em paralelo, dentro da de-

mocracia representativa como sendo coisas distintas. O

que acontece nos últimos vinte anos é que, com as pri-

vatizações, e com uma série de outros fatores que ocor-

reram nas sociedades, o mercado econômico começou a

contaminar o mercado político. Foi a corrupção, foi a

promiscuidade entre o público e o privado, foram os

grandes negócios que se fizeram com as privatizações

dos serviços públicos. Tudo isso fez com que se criasse

essa contaminação e, na medida em que isso ocorreu,

houve uma crise ainda maior dos sistemas de represen-

tação. Portanto, chegamos ao princípio deste século,

com esta dupla situação: há, por um lado, uma promo-

ção universal desse modelo de democracia e, por outro,

ela apresenta uma crise muito grande, mesmo nos países

onde ele mais se constituiu. Uma dupla crise. Uma crise

de representação porque os cidadãos cada vez se sentem

menos representados por seus representantes. E, por ou-

tro lado, uma crise de participação com aumento do abs-

tencionismo etc. etc.

Qual seria a saída para essa situação? Não vejo de fato, neste momento, outra solução senão

reinventar de alguma maneira essa democracia represen-

tativa, com a complementaridade que lhe pode ser dada,

através da democracia participativa. O que propus foi, ba-

sicamente, que lutássemos por condições em que pudés-

semos, através da democracia participativa, revitalizar a

democracia representativa. Não é uma posição hostil à de-

mocracia representativa, ela tem o seu valor, mas de com-

plementá-la. Disse ainda que só a democracia participati-

va pode, realmente, salvar a democracia representativa.

Por quê? Por várias razões. A primeira é porque a democracia par-

ticipativa funcionou sempre através dos mecanismos de

participação dos cidadãos, sempre numa lógica não mer-

cantil. É a lógica da cooperação, da solidariedade. Portan-

to, ela pode ajudar de alguma maneira a voltar a separar o

mercado econômico do mercado político. Porque os cida-

dãos a constroem no espaço público quando organizam

orçamentos participativos, quando participam em refe-

rendos, quando organizam conselhos populares ou conse-

lhos de acompanhamento das políticas públicas. Normal-

mente, sua lógica não é uma lógica mercantil. É uma lógi-

ca, digamos, republicana de solidariedade, de direitos etc.

Portanto, eles podem contribuir para separação desses

dois mercados. Em segundo lugar, eles também podem

contribuir de uma forma muito significativa para a revita-

lização da democracia representativa através da revitali-

zação do processo da prestação de contas. A democracia

representativa tem essa idéia. Os representantes estão au-

torizados a representar-nos. Eles não nos substituem.

Mas são autorizados a representar-nos. Então, há um du-

plo princípio na democracia representativa: a autorização,

que se dá com as eleições, e a prestação de contas. Os re-

presentantes têm de prestar contas. O que acontece é que,

na democracia representativa, os mecanismos de presta-

ção de contas definharam totalmente e, praticamente, es-

tamos sujeitos apenas aos mecanismos de autorização.

Isto é, se o representante não nos presta contas ou não faz

aquilo para o qual foi eleito, não temos outra maneira de

o obrigar a prestar contas senão nas próximas eleições,

não o reelegendo. Portanto, no fundo, só funciona o me-

canismo de autorização. Ora, se não funciona o mecanis-

mo de prestação de contas, os mecanismos de democra-

cia participativa podem acionar essa prestação de contas.

Temos visto muito claramente, ao nível dos orçamentos

participativos nos governos municipais, onde os cidadãos

trazem o livrinho com as obras acordadas e decididas na-

quele ano e cobram as obras que estão atrasadas: a creche,

a pavimentação, o centro de saúde etc. Essa prestação de

contas, muito mais viva, pode ser uma forma de revitali-

zar a democracia representativa. Claro que isso levanta

muitos problemas e eu procurei elencá-los. Talvez o mais

espinhoso seja a relação entre partidos e movimentos.

Porque os partidos foram a forma política através da qual

se consolidou a democracia representativa. E muitos de-

les, em muitos países, criaram uma cultura de exclusivida-

de, digamos assim, da representação política dos interes-

ses. Por isso se ressentem sempre, e se vêem como rival e

como ameaça à democracia participativa. Como se os

movimentos e as organizações não-governamentais lhes

pudessem vir a tirar algum protagonismo.

O PT é, ou talvez tenha sido, uma exceção.Exato. O PT, de fato, talvez seja a grande exceção. Eu di-

ria também que o Partido dos Verdes, na Alemanha,

mantém uma tensão interessante entre partido e movi-

mento na medida em que nasceu de um movimento. Tal-

vez o Partido dos Trabalhadores, mais caracteristicamen-

te, represente essa tendência. Mas, se vermos bem, é uma

forma relativamente rara. Tínhamos um outro partido na

Europa, que era o Labour Party, na Inglaterra, que tam-

bém surge de um movimento, o movimento sindical.

Mas, à medida que os anos avançam, ele vai se separan-

do, totalmente, e hoje está completamente desfigurado

em relação a essa origem sindical. Dado isso, é muito im-

portante que se reponha a relação entre partidos e movi-

mentos. Procurei equacionar os diferentes problemas.

Mostrando quais são as diferentes formas organizativas

que têm os movimentos e as associações, por um lado,

que são aquelas que dão forma à democracia participati-

va e, por outro lado, os partidos, as diferenças na organi-

zação, e como se pode fazer colaboração com respeito

mútuo na complementaridade e, ao mesmo tempo, o que

eles podem aprender uns com os outros.

O senhor pode dar um exemplo? Acho que os movimentos podem apreender dos partidos

uma visão um bocado mais global da política. Porque,

como se sabe, uma das muitas diferenças entre partidos

e movimentos é que estes últimos, normalmente, se cen-

tram em um tema concreto. É o feminismo, é problema

indígena, é a reforma agrária. Enquanto que os partidos

têm de tratar deles todos. Porque os partidos têm, em

princípio, a vocação do governo e, portanto, tem de tratar

de todos eles. Bem, por isso, os movimentos, por vezes,

têm uma visão um bocado restrita, estreita, dos proble-

mas nacionais ou até globais. Por isso, uma articulação

com o movimento partidário pode ter seu interesse, se

ela for feita com autonomia. Por outro lado, os partidos

podem ganhar muito com articulação com os movimen-

tos, porque estamos a assistir aos partidos perdendo o

contato com as populações.

Muita coisa que passava pela decisão dos partidos já nãopassa mais. Então, perdem o contato e perdem o poder.O grande ator político hoje são as empresas globais....Exatamente. Temos duas situações que se complemen-

tam para criar esse grande vazio. Esse grande abismo en-

tre os partidos e os cidadãos. Por um lado, muitas deci-

sões não passam mais nem sequer pelos partidos, porque

resultam de compromissos com as agências internacio-

nais ou resultam de imperativos da globalização através

da imposição de leis. E, quando não é assim, essas forças

econômicas têm um poder de lobby imenso sobre os par-

tidos. Por outro lado, cada vez mais assistimos a partidos

que, na oposição, têm um programa e, se ganham, nor-

malmente não o cumprem. E, muitas vezes, não cum-

prem, e estou a falar em geral, absolutamente em geral,

não cumprem precisamente porque, entre outras coisas,

há uma série de imperativos globais que os impedem.

Entrevista Boaventura 02.09.03 4:32 PM Page 35

Page 3: O mundo resiste

Sendo assim, o que se exige de um partido é que pelo me-

nos tenha uma pedagogia popular, que explique aos cida-

dãos, primeiro, por que não está a cumprir o seu progra-

ma, quais são as razões, e que condições é que vê, no fu-

turo, de os poder a vir cumprir. Isto é, não é, pura e sim-

plesmente, deixar de cumprir um programa porque há

um imperativo, é preciso explicar aos cidadãos, com al-

guma transparência, o que está acontecendo.

Mas o mais correto seria levantar esse debate antes edurante as eleições e não depois.É evidente. Mas até admito que, por vezes, não se saibam,

antecipadamente, todos os constrangimentos que exis-

tem na realização dos programas. Agora, o mais grave é

que os programas não se cumpram e haja uma grande

opacidade e uma grande arrogância em relação aos cida-

dãos. Isso mina, naturalmente, a confiança. E separa o

partido dos movimentos.

É o que está acontecendo com o governo Lula? Eu penso que é prematuro, neste momento, fazer uma

avaliação do governo Lula. Sigo de perto o que se está

a passar no Brasil. Sigo com alguma perplexidade,

obviamente.

Por que perplexidade? A perplexidade se assenta, exatamente, nessa idéia de

não estar a ser dada tanta informação quanto seria, no

meu entender, necessária. Por que razão determinadas

políticas estão a ser seguidas? E quais são, digamos as-

sim, os constrangimentos internacionais que forçam as

reformas num certo sentido?

Falando em reforma, o senhor foi membro da Comissãodo Livro Branco para a reforma da Previdência SocialPortuguesa. Pode contar um pouco dessa experiência? A Comissão rachou porque não havia consenso. E eu fui

o coordenador do relatório minoritário que, curiosamen-

te, foi o relatório que o governo socialista acabou por ado-

tar e que, fundamentalmente, defendia um sistema pú-

blico de previdência. Porque conseguimos demonstrar

que não havia um problema financeiro e a teoria do co-

lapso financeiro da Previdência portuguesa era uma

construção que visava privatizar uma parte do sistema.

Naturalmente, o capital financeiro está muito interessa-

do nessa privatização, porque isso vai aumentar, obvia-

mente, seu peso no PIB e, portanto, sua influência. Neste

momento estamos a assistir no Brasil a um processo de

reforma. Sei que há alguma perplexidade e até alguma

perturbação. Há greves que estão em curso. Penso que o

funcionalismo público que foi muito maltratado por Fer-

nando Henrique Cardoso não se sinta, nessa situação,

muito confortável. Com relação ao governo Lula, vejo al-

guns sinais e talvez seja otimismo exagerado da minha

parte, mas vejo o seguinte: por um lado, há sinais claros

de que a própria equipe do governo assume que o que

está fazendo, neste momento, ainda não é o programa do

PT. Que a situação em que encontrou o país o obrigou a

tomar determinadas medidas para, por um lado, criar

credibilidade internacional, estabilidade internacional na

posição do Brasil e criar algum espaço de manobra para

impor seu próprio programa. Não é por acaso que o pre-

sidente Lula já assinou uma carta para o Conselho do De-

senvolvimento Econômico e Social no sentido de transi-

ção para um outro modelo econômico. A idéia é de que é

preciso pensar num outro modelo econômico. Esse mo-

delo estaria mais próximo daquilo que foi o programa do

PT. A questão, em aberto, é saber se é possível fazer essa

inflexão e até onde ela pode ir.

O senhor acredita que seja possível? Eu estou confiante que sim. Na minha viagem à América

Latina foi muito claro para mim o carisma e a força que

tem o Lula, pessoalmente. O capital de confiança que

esse homem tem na América Latina é, realmente, absolu-

tamente, impressionante. Eu tive provas concretas de

que todas as pessoas na América Latina hoje pensam que

o Lula não pode falhar. Porque, se ele falhar, são duas ou

três gerações que falham e, durante vinte ou trinta anos,

não voltaremos a ter uma opção progressista na América

Latina. Portanto, o outro sinal, só para dar a minha idéia

de como estou a ler, é que, visto de fora, tenho vindo a no-

tar uma coisa muito interessante no discurso e na posi-

ção internacional do Lula. Por um lado, as políticas eco-

nômicas foram ortodoxas. Foi uma continuação do que

estava sendo feito por Fernando Henrique Cardoso, exa-

tamente para mostrar que esta equipe, por vir da esquer-

da, não iria criar nenhum colapso financeiro internacio-

nal, não iria criar nenhuma turbulência no sistema que

pudesse inviabilizar qualquer reforma. Mas tenho notado

que o presidente Lula tem vindo a ser cada vez mais duro

nas críticas ao sistema internacional. A cada intervenção

ele sobe de tom, em Avian, em Lisboa e mais recentemen-

te em Londres. Sobe de tom acerca da situação de injus-

tiça global, do protecionismo dos países ricos, da hipocri-

sia do sistema tal e qual como está implementado. Com

o fato de os americanos, isso ele disse em Londres, só

pensarem neles em primeiro lugar, em segundo, em ter-

ceiro e, se houver uma ocasião para uma quarta vez, eles

continuam a pensar nos seus próprios interesses. Isso, a

meu entender, é uma mensagem muito importante, de

algo que há muito tempo tenho vindo também a escrever,

por isso sinto-me muito satisfeito por ver que isso de al-

guma maneira parece estar presente no programa do pre-

sidente Lula. É que o Brasil, apesar de ser muito grande, é

demasiadamente pequeno para poder criar uma trans-

formação no sistema internacional.

Quem ou o que pode criar essa transformação? Eu acho que essa transformação no sistema tem de ser

parte, tem de ser produzida por um consórcio de países.

Países de desenvolvimento intermédio. Não podem ser os

países muito pobres, porque esses não têm nenhum po-

der de negociação. Não podem ser os países ricos, porque

esses não estão interessados em perder privilégios. Tem

de ser os países onde o embate da globalização neoliberal

é mais forte, mas onde há uma certa margem de mano-

bra. São aquilo que chamamos de países semiperiféricos

ou países de desenvolvimento intermédio. Sobretudo

aqueles que têm grandes populações, que têm poder de

negociação. O Brasil tem poder de negociação, o México

tem poder de negociação, a África do Sul tem poder de

negociação, a Índia tem poder de negociação, a Indonésia

e a própria China. São esses grandes países que têm de

começar a pensar alternativas em frentes comuns, seja

na Organização Mundial do Comércio, seja nas Nações

Unidas, seja em quaisquer outros fóruns, e comecem

realmente a apresentar propostas e que façam com que a

negociação desse modelo seja feita em outro patamar.

Porque até agora o modelo dominante tem conseguido

dividir todos esses países. Sempre com a esperança de

que cada um vai receber uma migalha de Washington. Eu

penso que, neste momento, o endurecimento do discur-

so internacional do Lula parece anunciar a idéia de que

ele quer criar um espaço internacional dentro do qual

isso seja possível aplicar nacionalmente, essa tal transi-

ção para um outro modelo econômico. Porque, se não

houver nenhuma alteração no sistema internacional, se

não houver uma vontade política que permita essa expe-

rimentação, ele sabe que ela não terá êxito.

Mas, ao mesmo tempo que existe esse endurecimentono discurso, na prática vai se fazendo todo o jogo domercado. E começam a surgir críticas duras de todos oslados. Inclusive de respeitados intelectuais de esquerda. Eu tenho notado isso e, como sociólogo, me interessa. A

intelectualidade de esquerda brasileira está desafeta,

está muito revoltada, nomeadamente a universitária,

que tem sido extremamente ativa e presente na comuni-

cação social, mostrando seu desgosto, sua preocupação

e sua revolta mesmo. Alguns desses intelectuais, que

vêm desde a fundação do PT, são os que estão mais de-

safetos e estão mais revoltados. Às vezes, a palavra é um

pouco esta. É uma palavra forte. Costumo lembrar do

meu querido amigo Chico de Oliveira, mas muitos ou-

tros, o Emir Sader é outro... Eu acho que essa intelectua-

lidade está, realmente, muito desafeta. Noto outra coisa

ainda e isso vi, nitidamente, na Colômbia agora. Estavam

muitos representantes dos movimentos sociais na Co-

lômbia e aí o capital de confiança do Lula é muito gran-

de. E, mais, fazem exatamente essa distinção: os intelec-

tuais são impacientes e, portanto, já estão revoltados.

Mas, nos movimentos sociais, como a grande maioria

dos cidadãos, o capital de confiança do Lula, apesar de

tudo, é muito grande. Embora seja preocupante o que

está a passar neste momento com o funcionalismo pú-

blico, porque obviamente não é apenas o grande diretor

de serviços que está em causa, é também o funcionário

pequeno. Eu notei na Colômbia essa clivagem. Entre, por

um lado, os intelectuais e, portanto, aquela massa críti-

ca que o PT criou e, por outro lado, os movimentos sociais.

É certo que alguns movimentos sociais estão desafetos.

Para mim, o mais significativo e o mais preocupante é o

fato de o PT, por vezes, em relação a muitos desses mo-

vimentos sociais, dar-se ao luxo de os tratar displicente-

mente. Isso, a meu entender, pode ser um perigo.

Por exemplo? Eu acho que o movimento indígena está sendo muito

maltratado no Brasil. Eles não estão sequer no conselho.

Já morreram mais ativistas, líderes indígenas, nos últimos

meses, do que morreram no último ano de governo do

Fernando Henrique. Acabo de saber isso por uma grande

líder do movimento indígena. Já são, neste momento, tre-

ze ou catorze, ligados à reforma agrária. E nada é feito so-

bre isso. Já ouvi afirmações que me ofenderam. Afirma-

ções como: "O movimento indígena não é um movimento

forte porque já não estamos mais a falar de 300.000 votos".

Ora, esses movimentos são de um povo histórico, originá-

rio, e que tem direitos que não se medem por seu poder e

pelo seu peso eleitoral. Portanto, vejo com alguma preocu-

pação. Agora, o que quero dizer é que, por um lado, é mui-

to importante que essa experiência não falhe. E aqueles

que são solidários com esse movimento estão numa posi-

ção que é aquela em que eu me encontro. Que é esta: por

Entrevista Boaventura 02.09.03 4:32 PM Page 36

Page 4: O mundo resiste

CAROS AMIGOSS E T E M B R O2 0 0 3 37

um lado, é dar o máximo do beneficio da dúvida, tentar

influenciar algumas das políticas, mas, ao mesmo tempo,

não cair no perigo de criticar tarde demais.

O senhor escreveu um artigo dizendo que o Lula substi-tuiu a ideologia pela ética. O que isso significa?Acima de tudo, o que está em causa é um registro do dis-

curso. O discurso do Lula é um discurso ético. Mesmo ao

nível internacional. Ele apela a valores, ele apela à justiça,

ele apela à dignidade humana. Ele realmente faz um dis-

curso ético, talvez por pensar que o discurso, digamos, de

esquerda, o discurso ideológico, talvez não fosse o discur-

so na base do qual ele poderia ser eleito no Brasil. E mui-

to menos o discurso através do qual ele poderia ter credi-

bilidade internacional. Ele passou a ser, realmente, quase

um São Francisco de Assis dos pobres ao nível interna-

cional e São Francisco de Assis foi extremamente eficaz

com o discurso ético.

Só que depois a Igreja usou esse discurso de São Fran-cisco de Assis em seu próprio benefício. Todo o discur-so e a prática de despojamento e simplicidade de SãoFrancisco foi cooptado e manipulado pela Igreja. Ora bem, o problema é exatamente esse. Há, obviamen-

te, um espaço autônomo na política. A política faz-se

com ética, e tem de se fazer com ética, e aquilo que a

gente tem de retirar dessa afirmação que eu fiz é que o

Lula pretenderia que a política que viesse a fazer fosse

sobredeterminada, fosse condicionada por determina-

dos valores éticos. Obviamente, o que não cabe nessa lei-

tura é que se faça um discurso ético de um lado e, depois,

se faça uma política por outro, que por vezes é extrema-

mente pouco ética, digamos assim. Portanto, é evidente

que o PT tem de ter, para ser fiel a esse registro ético, não

quer dizer que não tenha de fazer a política, mas tem de

fazer uma política consentânea a esses valores éticos. E

isso é que pode estar em causa. Penso que isso é funda-

mental. Alguns sinais são perturbadores a ponto de criar-

mos, digamos assim, uma esquizofrenia. Uma pregação

em cima do registro ético e depois um real politik, total-

mente cego a valores, oportunista, calculista e, portanto,

que deixa as pessoas com dois discursos e duas práticas

que não se colam.

Essa é, talvez, a principal crítica que o governo vem re-cebendo, inclusive dentro do próprio PT. Mas é por isso que acabo de dizer que os partidos podem

ganhar com a relação com os movimentos, essa pedago-

gia do próprio incumprimento. Até acredito que o povo,

sobretudo de um partido que nasce dos movimentos,

possa aceitar alguma medida de incumprimento. Mas

tem de haver uma pedagogia ética de transparência so-

bre esse incumprimento. Como eu dizia num texto, mes-

mo que em qualquer momento o governo PT não puder

ser solidário com as classes populares, tem de ser solidá-

rio na sua justificação dessa falta de solidariedade. Quer

dizer, tem de fazer uma pedagogia e dizer: "Bom, a situa-

ção é esta, não se pode fazer mais neste momento, não

há condições para fazer aquilo que eu pensava, avalia-

mos mal por esta e por esta razão, temos este e aquele

constrangimento, mas estamos aqui para tentar ver se

aumenta nosso campo de manobra". Só essa que é men-

sagem de esperança. Eu penso que essa capacidade de

manobra não está totalmente perdida. O meu otimismo

está aí. Eu acompanho, por exemplo, o que se passa no

Conselho do Desenvolvimento Econômico e Social, mui-

to de perto, tenho ótimas relações, aliás de amizade, com

o ministro Tarso Genro, e vejo que ele próprio está real-

mente muito determinado a que se faça uma transição

para o tal modelo econômico.

Que modelo seria esse? No fundo, é um modelo extremamente moderado. É o

modelo social-democrático europeu. A grande impor-

tância do Lula, ao nível internacional, é que, desde os

meados de 80, se criou a idéia de que havia duas grandes

formas de capitalismo. Enfim, haveria três, mas a do Ja-

pão estava um pouco estagnada e ficava de fora. Duas

grandes formas: o capitalismo liberal norte-americano e

o capitalismo social-democrata europeu. O capitalismo

norte-americano, fundamentalmente, se assenta na

idéia de produtividade, em detrimento às questões rela-

tivas à redistribuição social. O caso do modelo social-de-

mocrático na Europa procura combinar altos níveis de

produtividade com altos níveis de proteção social. A

idéia que se criou é que o modelo norte-americano neo-

liberal era o único exportável. O modelo europeu até po-

deria ser um modelo interessante, mas é muito caro, fun-

ciona na Europa e não poderia ser exportado para ne-

nhum outro país. Não pode ir para a América Latina, não

pode ir para a África etc. Portanto, criou-se essa idéia e

todas as organizações internacionais adotaram o mode-

lo do capitalismo liberal. A própria Europa assumiu e in-

teriorizou essa posição. O curioso é que, vinte anos de-

pois, ou quinze anos depois, se está a ver que os gover-

nos progressistas que estão a emergir no mundo, e no-

meadamente o Lula, vêm reivindicar o modelo social-

democrata europeu. O Kirchner, na Argentina, faz o mes-

mo. Apesar de ser diferente, o Lucio Gutiérrez tem algu-

mas semelhanças, embora eu aí não caracterize tão bem.

Mas com o Kirchner, obviamente, a idéia é de um mode-

lo social-democrata. E o Lula é isso mesmo. Ou seja, au-

mentar os níveis de proteção, sem, ao mesmo tempo,

perder a produtividade e, pelo contrário, ganhá-la.

O Projeto Fome Zero seria um exemplo de uma políticasocial-democrata?Não, porque trata-se de uma política apenas compensa-

tória, de emergência. O rendimento mínimo garantido,

ou Renda Mínima, que era uma proposta, aliás do PT,

essa seria mais integrável dentro do modelo social-de-

mocrata. O Fome Zero não é incompatível com ela, mas

não é comparável a ela também. Porque é uma medida

de emergência.

Gostaria de voltar ao tema da Previdência. Do modocomo está sendo encaminhada, não dificulta essa guina-da para o modelo social-democrata? Nós, aqui na Europa, estamos a apoiar o mais que possí-

vel a experiência PT. Precisamente porque, se fracassar,

será um fracasso tremendo. O PT tem uma tradição de

um faccionalismo muito grande. Portanto, também, em

qualquer momento, as coisas podem ficar totalmente

dependentes do presidente Lula e, afinal, tem sido ele

que agrega o partido. Há uma grande confiança da mi-

nha parte, uma certa intuição, quando o presidente vir

que as coisas tem de ser decididas, decidirá no sentido

certo e o sentido certo só pode ser o que se aproxima do

programa e não aquilo que dele se afasta. A mim, o que

me choca, por vezes, é ver colegas brasileiros, mesmo no

governo, não muito atentos à experiência internacional.

Ver o que aconteceu com a indústria e a agricultura do

México depois da abertura, ver o que aconteceu com a

reforma da previdência social mesmo no Chile e na Ar-

gentina. Uma totalmente quebrada e outra em que o Es-

tado tem de sustentar porque os cidadãos e o sistema

privado deixaram de poder agüentar esse sistema. Mas o

Chile está numa situação econômica razoável e, portan-

to, o Estado pode fazer isso. Aliás, não é preciso buscar

essa análise nos sociólogos de esquerda, porque essa in-

formação está na página do Banco Mundial. É o próprio

Banco Mundial que põe muitas reservas à privatização

da previdência. Realmente, por vezes, choca que se vá

para isso sem olhar para a experiência que está aí e que

pode ser lida, precisamente, porque se verificou primei-

ro. Não resolveu os problemas financeiros e, em alguns

casos, os agravou. Em segundo lugar, em certos sistemas,

como o sistema inglês, seguradoras dos fundos de pen-

sões deixaram de aceitar pessoas, e encaminham, outra

vez, para o sistema público. Em terceiro lugar, a seguran-

ça social privada, ou relativamente privatizada, pode fa-

zer com que a previdência social passe a ser mais um fa-

tor de risco para o pensionista. Quando, exatamente, a

previdência foi criada para minimizar os fatores de risco.

Quando cheguei aos Estados Unidos ano passado, nor-

malmente passo o segundo semestre nos Estados Uni-

dos, meus amigos, colegas da universidade, estavam to-

dos 50 por cento mais pobres. Os seus fundos de pensões

estavam investidos na bolsa, a bolsa tinha caído. Ou seja,

a pensão passou a ser um fator de risco. Ora, não pode-

mos tolerar, em países onde as desigualdades sociais são

tão graves, que os sistemas de pensões passem a ser mais

um fator de risco para os cidadãos. Daí, que continuo a

defender o sistema público. Continuo a defender que pri-

vilégios que existem no sistema brasileiro, e há alguns

que são deploráveis, já deveriam ter sido eliminados.

Penso que com um novo contrato social, que também o

Lula vinha a defender, os diferentes corpos de funcioná-

rios, juízes, militares etc. poderiam ser levados a uma

contratualização, eliminando alguns privilégios, desde

que isso fosse para manter o sistema público. Ora, se efe-

tivamente não se faz consulta, não se faz contratualiza-

ção e, ainda por cima, se vai privatizar parcialmente o

sistema, é evidente que não se criam condições para o tal

novo contrato social. Isso vai criar, naturalmente, situa-

ções de acrimônia, situações de revolta, de corpos sociais

que têm muito poder. A gente sabe, para o bem e para o

mal, que esses corpos sociais têm poder: militares, juízes

têm poder. E isso não é bom para o Brasil, isso não é bom

para o governo.

E isso gera uma grande frustração, também porqueprecedida de uma grande expectativa, como o senhor

A INTELECTUALIDADE DE ESQUERDA BRASILEIRA ESTÁ MUITO REVOLTADA,

NOMEADAMENTE A UNIVERSITÁRIA. MAS NOS MOVIMENTOS SOCIAIS,

O CAPITAL DE CONFIANÇA DO LULA, APESAR DE TUDO, É MUITO GRANDE.

Entrevista Boaventura 02.09.03 4:32 PM Page 37

Page 5: O mundo resiste

escreveu num artigo publicado, assim que o presidenteLula assumiu. E é isso que está a suceder. As expectativas foram altas e,

portanto, as frustrações estão a ser muito grandes. O que

eu dizia, exatamente, é que o governo tinha de encontrar

um sistema de controlar essa frustração. E isso, para mim,

é uma questão em aberto, se, efetivamente, o governo está

conseguindo controlar essa frustração social. Como digo,

neste momento continuo a pensar, as classes populares

estão muito confiadas nas virtualidades desse governo. E

esse capital de confiança tem de ser cada vez mais estima-

do, e penso que os intelectuais vão ter de estar atentos

também a isso. O meu voto é que ele caminhe com cuida-

do, mas que caminhe, e mais que isso, caminhe na direção

certa. Não tenho nenhuma razão para crer que isso não

esteja a passar-se. E, portanto, continuo a apostar nas

possibilidades dessa experiência. Como eu digo, é muito

importante para o Brasil, mas é muito importante, tam-

bém, para a América Latina e para o mundo, em geral.

Diante disso, qual seria o papel dos movimentos sociais?O que acho fundamental, e esse é um momento exato, é

que os movimentos sociais, de uma maneira pacífica e or-

deira, devam fazer pressão sobre o governo. Porque ele

está sendo muito pressionado, ao nível internacional,

para manter uma ortodoxia financeira. Está sendo muito

pressionado para que, afinal, nada do programa PT ve-

nha, efetivamente, a se realizar, como condição para que

o governo se perpetue. Sabemos que, dada a natureza do

próprio PT, isso é uma situação que acabará sendo into-

lerável, a prazo, para o próprio PT, porque foi um partido

que emanou dos próprios movimentos sociais. Eu tive a

ocasião de discutir isso mesmo com alguns líderes dos

movimentos sociais e vi que esse capital de confiança,

que eles têm neste governo, não está de modo nenhum a

adormecer. Eles têm de ter a consciência de que devem

começar a pressionar o governo. E vi também, de muitos,

que este primeiro semestre foi, enfim, uma surpresa para

toda gente, foi também a idéia do conhecimento. O PT ti-

nha uma grande experiência ao nível do governo munici-

pal, mas não tinha experiência ao nível do governo nacio-

nal, e por isso também se desculpam alguns erros e algu-

mas formas de má gestão. Algumas delas foram, clara-

mente, resultado de pouco treino a esse nível de gover-

nança. Ora, no segundo semestre, vamos começar a fazer

a pressão, e isso dito por gente que está 100 por cento por

trás do governo porque lutou muito por ele. Eu penso que

o MST, como um dos movimentos sociais mais impor-

tantes da América Latina hoje, não tenhamos dúvida dis-

so, vai, provavelmente, liderar essa pressão. Penso que a

própria CUT vai ter um papel ali. Vão começar uma pres-

são e penso que deva ser uma pressão dosada. Isto é, não

uma pressão que crie demasiada instabilidade, que obri-

gue a uma resposta coerciva ou repressiva da parte do go-

verno, porque isso poderia ser o princípio do desastre.

O senhor defende que a justiça social só será possívelse precedida por uma justiça cognitiva. Pode falar sobreisso? Eu penso que nós, hoje, temos muita consciência de que,

sobretudo depois da biodiversidade, depois da convenção

do Rio, chegamos à conclusão de que, para além do co-

nhecimento científico, que é produzido no centro, no Oci-

dente e nos grandes países onde há grande desenvolvi-

mento científico, há muito outro conhecimento que exis-

te no mundo. O conhecimento indígena, o conhecimento

dos camponeses, que de repente passa a ser um conheci-

mento precioso e objeto de cobiça. Para além do conheci-

mento científico, há muito outro conhecimento que é

imemorial, através do qual populações inteiras, culturas

se mantiveram ao longo destes séculos. Esses conheci-

mentos tiveram vantagens enormes, foram eles que man-

tiveram a biodiversidade, de tal maneira que o conheci-

mento que eles hoje têm é precioso, por exemplo, para de-

senvolver a biotecnologia. A idéia é que esse conhecimen-

to e, portanto, todos os conhecimentos que são produzi-

dos por esses grupos sociais – porque o conhecimento é

sempre o conhecimento de um grupo social – são conhe-

cimentos que circulam no mundo e que devem ser cada

vez mais credibilizados. Portanto, a justiça cognitiva é,

para mim, uma exigência do multiculturalismo. É uma

luta contra o fundamentalismo ocidental. Portanto, se ca-

lhar, a justiça cognitiva é começarmos a ver que há outras

visões do mundo, que todas são incompletas. A visão oci-

dental é incompleta, como é incompleta a visão islâmica,

como é incompleta a visão hindu. Há muitas outras for-

mas culturais e de conhecimentos que existem nestes po-

vos, nos camponeses, nos indígenas etc., que, ao meu en-

tender, devem ser todos credibilizados como incompletos.

Nenhum deles tem a solução para todo o mundo, mas é

exatamente nessa ecologia de saberes que temos de traba-

lhar. A justiça cognitiva é isso, porque, se eu não credibili-

zar esses conhecimentos, também não credibilizo esses

povos. Se eu transformar o conhecimento dos indígenas

que eles têm das plantas, em pura matéria-prima, que vou

lá e exproprio e não dou nenhuma compensação, não faço

nenhum reconhecimento, não protejo aquele conheci-

mento, é evidente que não consigo ter justiça social.

Extremamente importante isso, num momento em que omundo é guiado pela mesma visão, por uma potênciaque controla todas as frentes do poder: o militar, econô-mico, tecnológico, cultural...No fundo, o trabalho contra-hegemônico passa pela cre-

dibilização desses conhecimentos. Nós, este ano, aqui no

CES (Centro de Estudos Sociais), tivemos o prêmio CES de

jovens cientistas sociais da língua oficial portuguesa, ti-

vemos, por exemplo, duas importantes teses sobre o

MST. Sobre a vida no assentamentos, sobre a sabedoria

dos camponeses, entrevistas maravilhosas colhidas no

Nordeste que são absolutamente notáveis de sabedoria,

que não é científica, mas que, tomara eu, que muitos dos

nossos líderes políticos tivessem tanta sabedoria como

têm aqueles líderes camponeses.

O senhor diz que o paradigma da modernidade está emcrise. Por quê? Fundamentalmente, pela situação em que a gente se en-

contra. Nunca tivemos tanto desenvolvimento científico e

tecnológico, nunca acreditamos que esse modelo de co-

nhecimento pudesse produzir tantas potencialidades e

tantas possibilidades de trazer em abundância a felicida-

de, a justiça social e a paz que era a grande promessa do

século 18. E que chegamos à conclusão, ao entrar no sécu-

lo 21, de que esse modelo de desenvolvimento não só criou

desigualdades enormes no mundo, como, por outro lado,

está agora e, cada vez mais, aparentemente, a comple-

mentar a desigualdade com a guerra. Com a violência da

destruição. Bem, se isso não é uma crise, também não sei

o que se chama uma crise. Muitos dizem que isso pode ser

uma crise de crescimento, que se resolve com mais ciên-

cia e tecnologia, com mais tipo de democracia de baixa in-

tensidade aplicada a todos os países ou arrasando países

inteiros, como se fez com o Iraque, para impor depois

uma democracia. É evidente, e sabemos muito bem, como

isso é difícil. Os norte-americanos vão saber que a demo-

cracia não se impõe. A democracia é um valor demasiada-

mente importante para ser objeto de uma imposição. Ela

tem de nascer de uma própria aspiração popular. E a me-

lhor maneira de liquidar essa aspiração é começar por

uma invasão e um ato de destruição. Perante essa situa-

ção, a idéia que tenho é de que temos problemas herdados

da modernidade, que são problemas importantes: é o pro-

blema da paz, o problema da liberdade, da solidariedade,

da igualdade. Mas as soluções modernas que se assentam

basicamente nessa política e nesse modelo de desenvolvi-

mento não encontram respostas. Temos problemas mo-

dernos, mas não temos soluções modernas à vista. Por-

tanto, a minha idéia é que precisamos procurar outras so-

luções. Só que essas soluções alternativas não estão credi-

bilizadas, eles não têm porta-vozes, não têm força políti-

ca. Mas o mundo recusa-se a cruzar os braços perante a

hegemonia. O mundo resiste. Evidentemente que alguns

intelectuais cruzaram os braços, entraram numa de cinis-

mo, entraram numa de fim da história, entraram numa da-

quilo que chamo de pós-moderno celebratório, mas os po-

vos, as classes populares, os movimentos não fizeram isso.

É uma resistência nova? Não tenho dúvida. O Fórum Social Mundial significa isso

mesmo. Não há, propriamente, um sujeito histórico, não é

a resistência do operariado, não é um socialismo de Esta-

do, não é o comunismo. Não é uma ideologia fixa. O que

há é uma ideologia de resistência. É a resistência dos sin-

dicatos, misturados com outros movimentos. Há uma

utopia de que um outro mundo melhor é possível. É uma

resistência nova nos agentes, que é essa grande multipli-

cidade, nas próprias ideologias que os comanda. Nova nas

práticas e nos saberes. É a tal justiça cognitiva. Tem de ha-

ver uma maior compreensão e inteligibilidade mútuas en-

tre diferentes saberes, agentes e práticas. Há cinco anos,

ninguém pensava que o Fórum Social Mundial fosse pos-

sível e o terceiro teve 100.000 pessoas. Eu penso que esse

é o começo de uma resposta. É uma mistura de coisas, em

que as pessoas, neste momento, entendem que devem va-

lorizar o que as une e não o que as divide.

Fernando Evangelista é correspondente da Caros Ami-

gos na Europa.

Colaboração: Marcus Abílio Gomes Pereira, professor

assistente do Departamento de Direito da PUC-MG,

mestre em ciência politica pela UFMG e doutorando em

sociologia na Universidade de Coimbra.

O MUNDO RESISTE, RECUSA-SE A CRUZAR OS BRAÇOS PERANTE A HEGEMONIA. ALGUNS INTELECTUAIS CRUZARAM OS BRAÇOS, ENTRARAM NUMA DE CINISMO, DE FIM DAHISTÓRIA, MAS OS POVOS, AS CLASSES POPULARES, OS MOVIMENTOS NÃO FIZERAM ISSO.

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