da vida que resiste - e-book / crprs - 2014

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Daniel Dall'Igna Ecker

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  • Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul

    Da vida que resiste:Vivncias de psiclogas(os) entre a

    ditadura e a democracia

    1 EdioPorto Alegre, 2014

  • Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul

    Organizao:Carolina dos ReisCaroline Martini Kraid PereiraDaniel DallIgna EckerSamantha TorresTaiasmin da Motta Ohnmacht

    Reviso: Tiago Rodrigues

    Diagramao: Vanessa Viegas / Grupo Monvie

    Imagem da capa: Samantha TorresArte: Yasmine Fernandes MaggiFinalizao: Veraz Comunicao

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul

    C755d Da vida que resiste: [recurso eletrnico] vivncias de psiclogas(os) entre a ditadura e a democracia / Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CRPRS, 2014.

    e-pub Inclui bibliografia ISBN: 978-85-67564-01-2.

    1. Psicologia Direitos humanos. 2. Psiclogos Rio Grande do Sul - Entrevistas. 3. Ditadura e Democracia. I. Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. II. Comisso de Direitos Humanos do CRP-07. III. Ttulo

    CDU: 342.57

    Elaborado pelo Bibliotecrio Tiago da Silva Rodrigues CRB10/2047

    Porto Alegre, 15 de maio de 2014.

  • Gesto Mobilizao(2013 2016)

    Conselheiros efetivos

    Alexandra M. Campelo XimendesCaroline Martini Kraid PereiraCristiane Bens PegoraroGerson Silveira PereiraLgia Hecker FerreiraLuciane EngelMarcelo Bastos da Silva MartinsRafaela SandriRamiro Brger SchnardieRenata Fischer da Silveira KroeffSimone BampiTatiane BaggioZuleika Khler Gonzales

    Conselheiros suplentes

    Alessan Coelho RamosAlessandra Xavier MironAna Paula Denis Ferraz

    Anderson L. da Silva CominAnglica Bomm

    Bruna da Silva OsrioEduardo Frederichs Hoffmann

    Elisngela M. A. SantosIsane Larrosa Cardoso DAvila

    Mariana AllgayerMichele dos Santos R. Lewis

    Taiasmin da Motta OhnmachtTiago M. do Amaral Giordani

  • Sumrio

    Apresentao...............................................................................06

    Histria silenciadas....................................................................10

    Entrevistas na ntegra: Entre a ditadura e a democracia........36

    1. Aline Reis Calvo Hernandez: Eu penso que chegar at o tema foi toda uma trajetria ............................36

    2. Fernanda Bassani: muito importante trazer isso tona ..............................................49

    3. Helena Beatriz Kochenborger Scarparo:O golpe apesar de no ter sido explicitamente violento em minha vida, mudou radicalmente as coisas que poderiam acontecer ...................................67

    4. Iara Chagas Castiel:O quanto ns no queremos deixar que isso acontea novamente .............87

    5. Liliane Foeming:A sensao de que o que ns fazamos era muito perigoso .......................107

    6. Maria Luiza Castilhos Flores Cruz:Assim, nos demos conta que toda a famlia tinha sido reprimida .............130

    7. Pedrinho Arcides Guareschi:Examinarmos o que passou, e prevenir as pessoas quando esto em situaes relativamente parecidas ..............................................................152

    8. Rosamari Frao Morim:Para uns tudo, para outros nada? ..................................................175

    9. Ruth Ordovs:E a eu acho que deu para refazer a minha vida e deu para andar nesse caminho ...................................................................................186

    10. Thas Ferreira Cornely:Sentamos que podamos fazer alguma coisa, apesar do pavor ...............218

    Esquecer e silenciar jamais....................................................241

  • 6ApresentAo

    Este livro resultado do Projeto Psicologia e Direito a Memria e a Verdade realizado pela Comisso de Direitos Humanos (CDH) do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS). O projeto parte de reflexes do Sistema Conselhos de Psicologia sobre o papel da profisso nas violncias protagonizadas pelo Estado durante a Ditadura Civil-Militar1, seja por meio dos instrumentos psicolgicos utilizados por torturadores durante o perodo, seja na resistncia de muitos psiclogos, inseridos na luta pela reconstruo do Estado democrtico (CFP, 2013).

    Durante o ano de 2013, a Comisso Nacional de Direitos Humanos (CNDH) do Conselho Federal de Psicologia (CFP) deu incio a um processo, desenvolvido pelos Conselhos Regionais, de abertura de espaos de fala para os testemunhos de psiclogas e psiclogos que tiveram suas vidas atravessas pelo regime ditatorial. O objetivo do projeto foi fazer ressoar essas vozes que narram histrias silenciadas de um passado que se faz presente no somente na vida desses profissionais, mas na forma como construmos e exercemos cotidianamente isso que nomeamos como democracia.

    1. Optamos pelo uso da expresso Civil-Militar para enfatizar o fato de que o perodo ditatorial teve participao, no apenas dos representantes militares, mas tambm de muitos setores empresariais civis, grandes comerciantes, oligarquias, representantes das mdias, alm da prpria populao que seguiu silente frente as violncias testemunhadas.

  • 7Apresentao

    O presente livro uma das ferramentas que encontramos para dar visibilidade as histrias relatadas. Algumas das falas foram atravessadas por lgrimas, outras por momentos de esquecimento ou por trechos confusos. So memrias e sensaes indizveis, arriscando-se em palavras. Memrias e sensaes desses tempos em que o absurdo se faz presente. Os relatos apresentam as vivncias daqueles que resistiram e que se contrapuseram as regras e valores que violavam direitos humanos. So relatos de fora, coragem e determinao. Vidas que sobreviveram a um passado que construiu o nosso presente.

    Assim, abrimos o livro Da vida que resiste: vivncias de psiclogas(os) entre a ditadura e a democracia com o texto intitulado Histrias Silenciadas no qual os autores colocam em discusso o modo como as violaes de direitos, realizadas durante a ditadura civil-militar, seguem presentes atravs da exposio de determinados grupos populacionais estados de exceo em pleno regime democrtico brasileiro.

    A seguir apresentamos na ntegra as entrevistas realizadas durante o projeto, iniciando pelo relato de Aline Hernandez, que aponta o pouco destaque que a temtica da Ditadura Civil-Militar possui nos estudos da Psicologia. Analisa tambm o modo como a ausncia desse debate afeta a formao de profissionais socialmente implicados, pois os mantm distanciados dos processos polticos e do contexto histrico no qual atuam. J Fernanda Bassani, atravs de relatos de sua vida que envolvem situaes estrategicamente pensadas e teatralmente desenvolvidas, nos faz pensar sobre a capacidade do ser humano de forjar situaes para garantir interesses individuais. Nesse sentido, Helena Scarparo nos convoca a refletir sobre o impacto nas relaes de confiana de algum que esteve submetido a um contexto em que tudo pode ser uma farsa

  • 8Apresentao

    ou uma armadilha. O medo descrito em suas palavras como uma sensao de constante presena, revelado como algo que acompanha aqueles que vivem em contextos de represso, violncia e incertezas.

    J Iara Castiel nos coloca em contato com processos da justia que, no lugar da garantia de direitos, operam como ferramentas de opresso extremamente sofisticadas. Alm disso, Iara nos remete a forma como lidamos com questes contemporneas como o uso e venda de drogas e a explorao do trabalhador, para pensarmos as atuais configuraes do sistema econmico e como ele beneficia apenas algumas parcelas da populao.

    A seguir, Liliane Froemming traz lembranas de seu perodo de estudante e relata movimentos de resistncia que agiam atravs da criao de espaos de denncia e de fala, que se produziam a partir da arte. Liliane avalia as manifestaes como espaos potentes para a produo de mudanas que apontem para novas formas de organizao social. O relato de Maria Cruz tambm se remete a atualidade, avaliando-a como um momento no qual muitas coisas esto sendo faladas e colocadas a pblico, atravs das histrias silenciadas da Ditadura. Assim nos convida a pensar sobre a desautorizao da fala, que emudece determinados sujeitos e cria realidades fundadas nos discursos de alguns.

    Pedrinho Guareschi, a partir de uma reflexo densa e embasada por seus estudos, contribui para pensarmos a poca da ditadura e as vivncias dos entrevistados como contextos atravessados por diversos interesses, nacionais e internacionais. Na prxima entrevista, Rosamari Morim traz a descrio de uma sensao muito presente quando estamos falando da Ditadura: a indignao. Esse sentimento parte da vivncia de momentos de impotncia

  • 9Apresentao

    frente a relaes de poder radicalmente.

    Na penltima entrevista, Ruth Ordovs nos remete a um tema central quando estamos falando em situaes de explorao, violncia, represso e desigualdade: o preconceito em relao a determinados grupos. Ela descreve todo o imaginrio social da poca construdo em torno da ideia do comunismo, que funcionava como uma estratgia de legitimao para o extermnio daqueles grupos considerados ameaadores a uma determinada ordem social. Por fim, a dcima entrevista, de Thas Cornely, nos traz o relato de quem viveu no corpo a marca da violncia. As palavras da entrevistada nos remetem a um corpo que sofreu consequncias por no querer se submeter aquilo que no lhe fazia sentido.

    Esperamos que esse material possa ser um subsidio para que outras memrias circulem nos discursos sociais, contribuindo para o conhecimento de um passado que se faz presente

    Comisso de Direitos Humanos Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul

  • 10

    HistriAs silenCiADAs

    Carolina dos Reis2 Daniel DallIgna Ecker3

    Rafael Wolski de Oliveira4

    Samantha Torres5

    Este livro apresenta entrevistas realizadas com psiclogas e psiclogos do Rio Grande do Sul que vivenciaram a ditadura militar e tm algo a dizer sobre o terrorismo de Estado ou sobre as aes de resistncia ocorridas no perodo da ditadura civil-militar do Brasil (1964-1985). O objetivo desta obra contribuir com o resgate histrico, realizado h mais de duas dcadas pelo movimento social organizado, militantes e familiares de mortos e desaparecidos.

    2. Psicloga, Colaboradora na Comisso de Direitos Humanos (CDH) e Assessora Tcnica no Centro de Referncia Tcnica em Psicologia e Polticas Pblicas (CREPOP) do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP/RS). Doutoranda no Programa de Ps-graduao em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI) do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).

    3. Psiclogo, Colaborador na Comisso de Direitos Humanos (CDH) do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP/RS). Mestrando no Programa de Ps-graduao em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI) do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

    4. Psiclogo, atuou como Conselheiro do Conselho Regional de Psicologia (CRP/RS) Presidente da Comisso de Direitos Humanos (CDH) na gesto 2010-2013. Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI) do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

    5. Psicloga, Colaboradora na Comisso de Direitos Humanos (CDH) do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP/RS). Mestranda no Programa de Ps-graduao em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI) do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

  • 11

    Histrias silenciadas

    Estas entrevistas referem-se etapa regional de uma ao de mbito nacional realizada pelo Sistema Conselhos de Psicologia que reuniu depoimentos de psiclogas e psiclogos de diversos estados do pas, publicados no livro A verdade revolucionria: testemunhos e memrias de psiclogas e psiclogos sobre a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013). Nesta edio regional, alm das quatro entrevistas que compuseram a edio nacional, esto includos outros seis depoimentos coletados aps o perodo do mapeamento nacional.

    A opo por dar continuidade s entrevistas, deu-se pelo reconhecimento da importncia desta ao no momento em que se confere visibilidade a outras verses da histria ditatorial no Brasil que permaneceram silenciados frente aos fatos oficialmente narrados. Entendemos que o reconhecimento por parte da sociedade brasileira das violncias sofridas por aqueles vitimados por aes violadoras de direitos uma forma de reparao possvel e necessria aos sofrimentos vividos.

    Esta ao foi gestada pelo Sistema Conselhos de Psicologia, por meio da Comisso Nacional de Direitos Humanos, a partir de reflexes a respeito do papel da Psicologia frente aos debates sobre os efeitos do perodo da ditadura civil-militar brasileira que ganharam fora na agenda poltica do pas nos ltimos anos. A realizao das entrevistas emergiu como uma possibilidade de contribuio do Sistema Conselhos a esse debate nacional, atravs do resgate de histrias no contadas sobre esse obscuro perodo da histria nacional (CFP, 2013).

    No Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, a Comisso Regional de Direitos Humanos realizou uma chamada pblica com ampla divulgao, atravs de nosso

  • 12

    Histrias silenciadas

    stio da internet, redes sociais, newsletter, jornal impresso, cartazes e do contato direto com profissionais de notrio envolvimento em prticas de resistncia ditadura, para o cadastramento de psiclogas e psiclogos que tiveram alguma experincia; seja como sobrevivente ou familiar, ou seja no atendimento de pessoas atingidas pela ditadura. Ou ainda, profissionais que possuam documentos sobre esse perodo histrico. Esse cadastramento foi realizado entre os meses de maro e setembro de 2013, aps esse perodo foram agendadas entrevistas com os profissionais que haviam se cadastrado para compartilhar suas vivncias.

    As histrias narradas aqui evidenciam que as estratgias, que subsidiaram as violaes de direitos, realizadas durante a ditadura civil-militar seguem presentes e se atualizam nas mais diversas formas; desde as violncias institucionais, as violncias urbanas, at a exposio de determinados grupos populacionais ao estado de exceo experienciado por muitos brasileiros em pleno regime democrtico, todas as vezes que seus direitos so violados pelo mesmo Estado que deveria garanti-los.

    A partir das reflexes provocadas pelas entrevistas realizadas, trazemos neste primeiro captulo algumas discusses sobre os efeitos da ditadura civil-militar brasileira e sua interface com a produo de saberes e prticas da Psicologia nesse perodo. Inicialmente, sero contextualizados elementos sobre a Ditadura Civil-Militar no Brasil, em termos histricos e polticos, para, ento, discorrer sobre a construo da Psicologia enquanto cincia e profisso implicada com as questes sociais. Por fim, traremos alguns elementos presentes nas entrevistas realizadas com as(os) psiclogas(os) que vivenciaram experincias vinculadas ao perodo de ditadura, e abordaremos como essas questes nos fazem pensar sobre o contemporneo e as prticas em Psicologia.

  • 13

    Histrias silenciadas

    A Ditadura Civil-Militar no Brasil

    A Ditadura Civil Militar no Brasil teve uma permanncia de mais de 20 anos (1964-1985) e produziu diversos efeitos nas relaes sociais e no contexto poltico, econmico do pas. Na dcada de 50, o Brasil vivia uma situao de economia dependente, esta caracterizava-se pela aliana entre capital nacional, capital do estado e capital multinacional. Nesse engendramento, os interesses econmicos eram antagnicos e, por isso, faziam com que a economia se desenvolvesse de forma contraditria: mantm-se sem soluo, considerveis problemas sociais como desigualdades regionais, graves disparidades na distribuio de renda, altos ndices de desemprego e nveis de vida aberrantemente baixos para a maioria da populao (ALVES, 2005, p. 23).

    Em meados dos anos 60, no perodo Goulart, o governo propunha aes pautadas pelo apoio dos trabalhadores, possibilitando assim, um clima poltico que permitia o desenvolvimento de formas de organizao mais integradas com a populao. nesse perodo que passa a ocorrer um aumento considervel da organizao da classe trabalhadora e de setores antes marginalizados que colocam em questo as organizaes institudas e passam a exigir uma gama maior de direitos. Inspirados por movimentos em outros pases como, por exemplo, Cuba, as manifestaes colocam em dvida o modo de organizao e de desenvolvimento econmico orientado pela lgica do capital monopolizado. A busca por participao nos processos de deciso e as exigncias colocadas pela classe trabalhadora e pelos movimentos sociais colocam em evidncia as contradies fundamentais de uma economia dependente, que teria por base interesses irreconciliveis (ALVES, 2005).

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    Histrias silenciadas

    Segundo Habermas (1980), os interesses irreconciliveis eram visualizados atravs de contradies fundamentais que se colocavam dentro da formao social. Nela, sujeitos e grupos se confrontavam repetidamente por terem intenes e interesses incompatveis. Era atravs da expresso desses interesses irreconciliveis que as instituies que propunham democracia apresentavam-se dia aps dia mais incapazes de darem conta das visveis contradies postas pelos diferentes ideais. As populaes organizadas cada vez mais se mostravam presentes na denncia das desigualdades tornando-as continuamente visveis, mas:

    Antes que todo esse clima de efervescncia atingisse limites revolucionrios, os conservadores desencadearam ampla agitao golpista, a qual era estimulada claramente pelo governo norte-americano, assustado pelas bandeiras nacionalistas. O pacto populista entre o governo de Joo Goulart e os setores populares comeava a se tomar perigoso para a expanso do capital estrangeiro. A situao crtica da economia brasileira, com inflao galopante, crises de recesso e o fantasma da comunicao propiciavam a propaganda, junto s classes mdias, da necessidade de um governo forte (COIMBRA, 2000a, p. 5).

    As classes brasileiras economicamente privilegiadas, assustadas por verem ameaados os seus excepcionais benefcios, reagem crise desempenhando um papel decisivo na criao e implantao de uma forma autoritria de capitalismo de Estado: a Ditadura. nesse contexto que se desenvolve um instrumento A Ideologia da Segurana Nacional utilizado pelas classes dominantes, em apoio do capital estrangeiro, para justificar e legitimar a perpetuao de meios no democrticos de um modelo altamente explorador de desenvolvimento dependente (ALVES, 2005).

  • 15

    Histrias silenciadas

    nessa poca que, com o intuito de preparar o terreno para o golpe e para aceitao da ideologia da segurana nacional, se desenvolve uma intensificao das campanhas que divulgavam a figura do comunista como traidor da ptria. As campanhas, de forma geral, apresentavam a esquerda comunista como uma ameaa propriedade, s famlias e nao brasileira. Como proposta de soluo e extermnio do construdo inimigo, propunha-se a vigia e o banimento dos mesmos. Diversos movimentos como, por exemplo, o da Marcha da Famlia com Deus, pela Liberdade passam a ser produzidos a partir desses discursos dominantes, disseminados por partes da burguesia brasileira. A Marcha da Famlia passa a ser organizada e realizada em diversas capitais do pas semanas antes e depois do golpe que aconteceu em 31 de maro de 1964. Multides de famlias de classe mdia e mdia alta caminham pelas ruas juntamente com a cpula da Igreja Catlica, denunciando a comunizao da sociedade brasileira e exigindo um governo forte (COIMBRA, 1995).

    nesse cenrio de conflitos de interesses que vai ser desenvolvida a Ditadura Civil-Militar no pas. A tomada do poder pelo Estado foi precedida de uma bem orquestrada poltica de desestabilizao que envolveu corporaes multinacionais, o capital brasileiro associado-dependente, o governo dos Estados Unidos (explicitamente posicionado como capitalista e contra outras formas de produo), uma grande parcela da populao que se identificava com os ideais polticos dos militares brasileiros e, em especial, um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra (ESG).

    A Ditadura Civil-Militar brasileira, assim como outras ditaduras na Amrica Latina, foi importante via de implantao do modo social de funcionar baseado no capitalismo e seus operadores, que gerenciam as vidas atravs de lgicas econmicas. Seixas (2012), jornalista

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    Histrias silenciadas

    torturado na ditadura, expe: A ditadura no foi simplesmente um governo que enlouqueceu e comeou a torturar e a matar. O que aconteceu em 1964 foi um assalto ao poder (p.23). importante destacar essa questo para que se possa produzir um movimento de estranhamento em relao s configuraes atuais, reconhecendo-as como no-naturais e marcadas por uma herana ditatorial. O sistema e o modo de produo, que pautam a atualidade, foram desenvolvidos por longos perodos de imposies e eliminao de determinadas formas de pensar e de organizar as vidas.

    O Estado de Segurana Nacional agia fundamentado na ideia de uma guerra revolucionria no declarada, compreendida como algo promovido secretamente pelo comunismo internacional, que teria como objetivo o infiltramento no pas-alvo, atravs da populao. Nessa lgica, toda a populao tornava-se suspeita e constituda de inimigos internos potenciais que deveriam ser cuidadosamente controlados, perseguidos e eliminados. A questo central nessa interpretao que, a partir da criao dessa problemtica social, o inimigo poderia estar em todas as instituies, fossem essas locais, em aglomeraes; fossem em grupos ou em famlias. Tal contexto tornava praticamente impossvel estabelecer limites para as aes repressivas do Estado e dos poderes militares. O Estado de Segurana Nacional e o Aparato Repressivo passaram a determinar, a partir de seus prprios critrios, quem eram esses inimigos internos do pas e que atividades de oposio eram ameaadoras segurana nacional. Desse modo, a tomada para si da responsabilidade pelo controle das atividades subversivas ou revolucionrias d para as foras militares poderes praticamente ilimitados sobre a populao (ALVES, 2005).

  • 17

    Histrias silenciadas

    Em nome da Segurana Nacional e do Desenvolvimento Econmico passa-se a reprimir de forma massiva as foras populares, os movimentos sociais e as pessoas que de alguma forma se opunham ideologia do regime ditatorial. Pautavam-se pela perspectiva de que: (...) no se podem tolerar os antagonismos internos. Toda e qualquer oposio que possa abalar a segurana do Estado considerada crime e, como tal, punida (COIMBRA, 1995, p. 19).

    Fica evidente que, a partir dessas represses, a Doutrina de Segurana Nacional acaba por ampliar irrestritamente as vidas colocadas em risco, visto que j no era mais possvel, determinar com exatido quem deveria ser considerado inimigo do Estado e quais comportamentos seriam interpretados como permissveis ou tolerveis. Assim, j no havia mais garantias para o imprio da lei, o direito de defesa ou a liberdade de expresso e associao a grupos ou movimentos. Quem designava, em ltima instncia, quem era ou no inimigo do Estado, era o aparelho repressivo composto pelos representantes da segurana nacional: todos os cidados eram suspeitos e considerados culpados at que provassem sua inocncia. Esse imperativo da periculosidade generalizada acaba por se tornar a raiz e causa dos graves abusos de poder que ocorreram em tempos de ditadura (ALVES, 2005).

    Aps o Golpe de Estado no Brasil de 1964, passa a ser executada uma vasta campanha de busca e deteno dos supostamente perigosos nas diversas instituies do pas. Chamadas de operaes arrasto e pente-fino, essas campanhas faziam a deteno de qualquer pessoa que, por algum motivo, no tivesse o documento de identificao ou que no pudesse provar sua inocncia. Uma das estratgias legitimadas foram as intimidaes atravs das detenes temporrias que eram normalmente acompanhadas por

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    Histrias silenciadas

    violncia fsica e psicolgica por alguns longos perodos e, em seguida, liberava-se o sujeito antes que pedidos de habeas corpus pudessem ser apresentados. Dessa forma, os militares evitavam a superviso do sistema legal e agiam sem limitaes jurdicas sobre suas prticas.

    De acordo com Alves (2005), outra ao desenvolvida era os Inquritos Policial-Militares (IPMs) que objetivavam investigar as atividades de funcionrios civis e militares para identificar aqueles que estariam implicados em atividades consideradas subversivas. Como primeira estratgia, os IPMs foram mecanismos letais para a eliminao do inimigo interno. Sua proposta se pautava pela limpeza e eliminao das pessoas que estavam envolvidas com o governo anterior ou vinculadas a partidos polticos ou movimentos sociais considerados comunistas. Nessa poca, houve forte perseguio aos intelectuais, estudantes, professores, lderes sindicais e estudantis e organizadores leigos dos movimentos catlicos nas universidades e no campo.

    A partir dessa higienizao aleatria do humano, nas instituies e na sociedade em geral, se produz uma imobilizao generalizada na populao devido ao medo imposto pelas polticas de represso. Essas polticas orientavam-se pela manuteno de determinados modos econmicos de operao, vigiando e punindo prticas que ameaavam a perpetuao desses processos econmicos no cotidiano social. A Doutrina de Segurana Nacional servia para fortalecer o desenvolvimento econmico, mais do que possibilitar acesso aos bens materiais e de consumo a populao.

    O desenvolvimento econmico no objetivava a distribuio igualitria do capital brasileiro e a poltica de desenvolvimento no se preocupava prioritariamente

  • 19

    Histrias silenciadas

    com a qualidade de vida da populao. Segundo a Escola Superior de Guerra (ESG), os programas de educao deveriam se preocupar com o treinamento de tcnicos que ajudassem no processo de crescimento econmico e de desenvolvimento industrial do pas. No havia como prerrogativa a implantao de programas voltados para a produo de habitaes de baixo custo, servios de sade acessveis a todos e instituies de educao pblicas. O modelo econmico destinava-se a colocar o Brasil como um pas potente mundialmente em comparao a outros pases, capaz de se inserir nos processos de competio produtiva e de distribuio e investimento de capital como outras regies que compunham o ocidente. Para cumprimento de tal objetivo, a ESG afirmava ser necessrio o sacrifcio de continuas geraes (ALVES, 2005).

    Assim, a partir da delimitao de objetivos direcionados a legitimao de determinados processos econmicos, se produz toda uma srie de sacrifcios; sacrifcios no de carter simblico, mas que resultaram em incontveis torturas e mortes de muitos brasileiros. De acordo com Bicalho (2013), j foram levantadas mais de 280 formas diferentes de tortura utilizadas pelos rgos repressivos da poca. Como exemplo, tem-se o Projeto Brasil Nunca Mais, coordenado pela Arquidiocese de So Paulo, que registrou em 12 volumes o resultado de uma pesquisa sobre a represso no perodo de 1964 a 1979 na qual apresenta os seguintes dados: 10 mil exilados polticos, 4.682 cassados por vrios meios, milhares de cidados que passaram pelos crceres polticos, centenas de mortos, desaparecidos, 245 estudantes expulsos da Universidade por fora do decreto 477 (ARQUIDIOCESE DE SO PAULO, 1985a, p.49).

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    Histrias silenciadas

    A Ditadura Civil-Militar e suas repercusses na atualidade

    Atualmente, quando se pergunta s pessoas se elas viveram ou foram submetidas a alguma ao ditatorial, muitas respondem que, por terem nascido aps a Ditadura Civil-Militar, acreditam no terem vivenciado ou sido influenciadas pelas aes de um Estado que foi rigidamente opressor. As vivncias narradas ao longo deste livro mostram a importncia de se colocar em evidncia discusses que visibilizem os efeitos da trajetria poltica e econmica de nosso pas para a atual estruturao da sociedade brasileira.

    Se pensarmos em instituies tais como a educao, a mdia e a segurana pblica, veremos que as mudanas estruturais ocorridas durante a Ditadura Civil-Militar, ainda deixam resqucios na atualidade. No campo da educao, acompanhamos a organizao de metodologias de ensino autoritrias e a priorizao de contedos que objetivavam o desenvolvimento econmico do pas. As reformas na educao como a Reforma Universitria de 1968 e a Lei de Diretrizes de Bases para o Ensino de 1 e 2 Graus de 1971, visavam, antes de qualquer elemento, uma educao tecnicista que seguisse a lgica dos interesses econmicos (FERREIRA; BITTAR, 2008).

    J a mdia, antes constituda por vrios grupos de comunicao, foi reduzida a apenas nove famlias que passaram a monopolizar, filtrar e definir as pautas daquilo que se produz em termos de discursos miditicos no pas, centralizando cerca de 90% (noventa por cento) dos meios de comunicao (GUARESCHI, 2007). Isto porque, diversos grupos foram perseguidos e fechados por posicionarem-se discursivamente contrrios, divergentes s diretrizes pautadas pelos governos militares. Em compensao,

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    Histrias silenciadas

    aqueles que se colocaram a favor do golpe receberam diversos investimentos do Governo, formando em tempos de ditadura, aquilo que hoje est colocado como a grande mdia de massa (HERNANDEZ; SCARPARO, 2008). O terceiro exemplo de instituio que mantm efeitos significativos da lgica ditatorial so as instituies de segurana pblica, ainda que sejam instituies muito antigas, a partir da ditadura militar que estes rgos passaram a aperfeioar suas estratgias, ampliando a demanda por segurana e inserindo-se nos mais diversos espaos sociais.

    Esses so apenas alguns exemplos em um pas que vivenciou 21 (vinte e um) anos de imposio de um discurso ditatorial, durante os quais se desenvolveu uma gerao atravessada por experincias de silenciamentos, perdas, dores e mortes. importante destacar as repercusses que as aes ditatoriais tm na atualidade, o modo como elas influenciam o cotidiano das populaes, as formas de circulao nos espaos da cidade e a maneira como atravessam a nossa constituio subjetiva.

    Ao falarmos em subjetividade, nos referimos um campo socialmente construdo, que se expressa no plano individual atravs de crenas, valores e comportamentos individuais (Furtado, 2001). Nessa perspectiva, a subjetividade no algo natural e nem imutvel, ela se constitui por meio de processos sociais nos quais os sujeitos so agentes, ou seja, a subjetividade est associada complexa relao entre as pessoas e seu meio em uma dada poca histrica e espao social (CFP, 2009).

    Desse modo, destaca-se a importncia de colocarmos em evidncia os efeitos desses vinte um anos de Ditadura Civil-Militar nos processos de subjetivao da populao brasileira. Pensar, discutir e procurar entender as

  • 22

    Histrias silenciadas

    complexidades dos processos ditatoriais no estudar o passado, mas sim, buscar entender o presente para que, a partir de sua anlise, se possa transform-lo. Para Bicalho (2013, p. 13), o estudo da histria precisa ser um dispositivo que funcione como analisador de nossas prticas sempre produtoras de modos de ser, estar, saber e viver no mundo (p.13). Para isso, preciso que se desnaturalize a histria oficial abrindo espao para a voz daqueles que foram silenciados:

    Para aqueles que viveram aqueles terrveis anos, para aqueles que foram atingidos diretamente pela violncia institucionalizada, faz parte de um processo de reparao trazer essa outra histria, apontar os crimes ento cometidos, seus responsveis, seus parceiros, assessores e aliados. Enfim, lutar contra a impunidade de todos essas pessoas, articulando tal luta com a violao dos direitos humanos, hoje to naturalizada e banalizada em nosso cotidiano, sem dvida, tem sido o incio de uma reparao. No s uma forma de resistncia, mas fundamentalmente a procura de uma reparao que o Estado brasileiro, ainda hoje, se nega a admitir (COIMBRA, 2001, p. 18).

    Denunciar e agir em situaes de violao de direitos humanos criar uma nova memria para o Brasil, uma memria pautada pela fala da diversidade, pela existncia e circulao da diferena, amparada por prticas de cuidado a todas as parcelas da populao. Contar outras histrias poder construir outras verdades, produzir novas realidades, inventar novos sujeitos e experincias orientados por uma cultura poltica pautada pela garantia dos direitos.

    Nesse intuito, que se prope a realizao deste livro. Ao colocarmos em evidncia os relatos de psiclogas(os) que vivenciaram questes vinculadas ao perodo da ditadura,

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    tem-se como inteno dar visibilidade s experincias extraoficiais, que no esto na mdia, que no esto nos discursos acadmicos e que no ocupam destaque na agenda poltica ou em lugares legitimados de fala. Experincias invisibilizadas pela vida cotidiana que vai silenciando alguns acontecimentos em nome de outras necessidades que passam a ser impostas pelo modo de organizao da sociedade atual. Assim, se produz esse material, na possibilidade de que ele sirva como ferramenta de ruptura no cotidiano e abertura de um espao de escuta, de reflexo, e de emergncia de novos pensamentos e aes.

    No basta falar, preciso ter quem oua. Quando escutamos, nos tornamos testemunhas. Portadores, portanto, de uma memria. Tal ao se constitui como reparadora, pois transforma sofrimentos individuais em vivncias coletivas. Escutemos para que nossas memrias possam emergir do ntimo silncio e, ao se mostrar sociedade, tornarem-se memrias compartilhadas (CFP, 2013).

    A produo da cincia e da prtica profissional em Psicologia

    Ao narrarmos as experincias vivenciadas por psiclogas e psiclogos durante a Ditadura Civil-Militar, buscamos, tambm, colocar em discusso o papel da Psicologia e os efeitos da lgica ditatorial na construo desse campo de saberes e prticas. Ao longo do sculo XX a Psicologia se desenvolveu, como campo de conhecimento, fortemente influenciada por um projeto de cincia da modernidade, pautado por discursos que naturalizam verdades tomadas como a descoberta de essncias universais, em um movimento de objetivao do mundo, no qual se acredita ser possvel a apreenso da realidade de forma imparcial.

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    Nessa perspectiva, muito das produes de saberes no campo psi posicionam-se a partir de uma pretensa razo sobre o mundo e atravs de uma suposta neutralidade, que negligencia as experincias espontneas e imprevisveis do cotidiano da vida. Para tanto, esse modo de fazer Psicologia foi se distanciando da poltica em nome de uma postura que minimizasse as impregnaes da subjetividade na produo de conhecimento (COIMBRA; NASCIMENTO, 2001).

    Essa Psicologia, entendida de maneira assptica e descomprometida com as relaes, ainda permanece presente em muito cursos de graduao da rea, baseados, majoritariamente, por disciplinas com foco exclusivamente tecnicista que objetivam o aprendizado e a utilizao de instrumentos e tcnicas que apresentem respostas corretas e precisas aos problemas sociais. Nesses processos, muitas reas de saber apresentadas nos currculos continuam negligenciando a reflexo sobre o que tem embasado tais prticas e quais os efeitos dessas em termos de constituio da vida cotidiana (REIS; GUARESCHI, 2010).

    No prprio processo de formao, o conhecimento apresentado enquanto produo cientfica torna-se orientador na constituio dos sujeitos estudantes, quando referenciados como mais verdadeiros em detrimento de outros. No processo de ensino no fica evidenciado que a produo de conhecimento realizada a partir de pessoas imersas em valores, ideologias, posicionamentos e intenes perante o que produzem e ensinam (ECKER; TORRES & SCARPARO, 2012).

    a partir desse contexto que muitos estudantes apreendem a fazer Psicologia, acreditando que as aes e a construo do conhecimento da rea acontecem de forma neutra e particionada, sem perceber que os modos de construo de

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    conhecimento possuem efeitos polticos, pois reconhecem determinados modos de vida como mais legtimos e marca outros como desviantes e patolgicos, a partir da forma como discorrem sobre os sujeitos e seus cotidianos. Usa-se aqui o termo poltico a partir de sua origem grega politik, uma derivao de polis (cidade), que designa a tudo aquilo que se refere ao convvio social. Ou seja, utiliza-se o termo ao poltica no sentido de enfatizar os resultados no meio social que todas as aes, sempre pautadas por saberes, acarretam. Nesse sentido, evidencia-se a impossibilidade de separao entre Psicologia e poltica,

    () pois a Psicologia trabalha com sujeitos habitantes de um lugar em determinado momento histrico da sociedade. Diante disso, qualquer interveno realizada com os sujeitos produz efeitos no coletivo, sempre havendo uma implicao poltica, pois essa prtica sempre uma ao sobre a vida desses sujeitos. Estar atento a isso o que vai diferenciar os profissionais que se colocam em uma postura tico poltica, ou seja, que se comprometem com o cuidado relativo vida dos sujeitos que afetam (REIS; GUARESCHI, 2010).

    Destaca-se a importncia da implicao poltica enquanto orientador da prtica profissional devido ao prprio processo histrico referente categoria:

    Algo deve ser aqui colocado sobre alguns profissionais psi que apoiaram/respaldaram a patologizao de muitos que lutaram contra a ditadura militar, em nosso pas, classificando-os como carentes, desestruturados e, portanto, doentes. Isto foi feito, por exemplo, em uma pesquisa realizada por psiclogos que trabalhavam no Centro de Estudos de Pessoal do Exrcito, no Rio de Janeiro, em 1970, a qual utilizou uma srie de testes psicolgicos

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    em presos polticos. Alguns outros profissionais psi forneceram laudos psiquitricos a militantes presos, no perodo de 1964 a 1978, tambm patologizando-os. Tanto na pesquisa acima mencionada, denominada de perfil psicolgico do terrorista brasileiro, como nos laudos fornecidos, temos belssimos exemplos de como foram rotulados, marginalizados e excludos aqueles que resistiam a um regime de fora (COIMBRA, 2001, p. 16).

    Entende-se que as violncias de Estado no acontecem de forma isolada, pois apenas so possveis de serem sustentadas devido a uma rede de sujeitos que, atravs dos seus saberes e prticas, respaldam tais violncias. Esses respaldos podem ser realizados de diversas formas como, por exemplo, atravs da elaborao de laudos, consultas e assinaturas em documentos que legitimem aes ou determinados modos de entender os sujeitos. Se no existissem profissionais que, com suas prticas, respaldassem as violncias, talvez estas no tivessem durado 21 (vinte e um) anos e obtido o efeito repressor que tiveram. Isso , em grande parte, resultado das prticas de diversos profissionais que permitiram que o terrorismo de Estado continuasse funcionando (COIMBRA, 2001).

    No campo da Psicologia, a partir dos anos 80, com o processo de abertura poltica, alguns profissionais da categoria, no intuito de explicar o comportamento daqueles profissionais que contriburam diretamente com as torturas contra os presos polticos, usaram um vis da psicologia individualista rotulando tais condutas como, por exemplo, de sdicas ou desequilibradas. Porm, isso significava participar de uma segunda estratgia poltica, pois individualizava de forma culpabilizadora as aes de violncia e isentava o Estado, e o regime que o criou, de suas responsabilidades nesses processos de violao (COIMBRA, 2001). Dessa forma, retomamos a importncia da afirmao de uma Psicologia implicada com a garantia de direitos.

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    Os direitos humanos e a tica em psicologia

    Advindo de um contexto de barbries, o sculo XX legou humanidade diversas memrias de autodestruio como o episdio do Holocausto e o avassalador acontecimento de Hiroshima e Nagasaki. A influncia dessas memrias e a busca por construir um caminho possvel de comunicao pacfica entre diferentes pases, fazem emergir em 1945 a Organizao das Naes Unidas (ONU), legitimada atravs da Carta de So Francisco. O documento, propunha o reconhecimento da dependncia mtua entre os povos, assim como apontava a necessidade de aes conjuntas entre eles para que outras realidades pudessem ser construdas alm dos conflitos e disputas. Em 1948, em Nova York, proclamada pela Assembleia Geral da ONU a Declarao Universal dos Direitos Humanos.

    Entende-se que a noo de direitos se apresenta como um processo de criao de condies para as relaes humanas, levando em considerao os contextos multidimensionais. Afirma-se aqui que essa noo no algo desvinculado de uma prtica poltica, que prope determinado modo de gesto. A ideia de direitos humanos se afirma em uma proposta de gesto da populao e construo de espaos pautados pela no explorao, domnio, vitimizao, excluso e todas as formas de desigualdades relacionais que envolvem questes jurdicas, tico-morais, polticas e culturais de um contexto social especfico (CARBONARI, 2007).

    No Brasil, a possibilidade de efetivao da garantia de direitos humanos orientada pela necessidade de reviso de um processo histrico constitudo por episdios de excluso de grande parte da populao que tem como base, segundo Carbonari (2007), quatro pontos centrais: a pobreza e a desigualdade, o racismo e o sexismo. A pobreza,

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    marcada no processo histrico por uma perspectiva desenvolvimentista que orientou os setores econmicos que privilegiaram:

    donatrios de capitanias hereditrias, senhores de engenho, donos de minas, fazendeiros, donos da indstria e de bancos, (...) pautada por seus prprios interesses (...) Escravos, trabalhadores do campo, imigrantes pobres e trabalhadores urbanos tm sido os que historicamente ficaram alijados do acesso aos bens e riqueza do Pas. (p. 22).

    No que se refere ao racismo, temos como herana a prtica de quase 400 (quatrocentos) anos de escravido em relao aos quais, como forma de reparao, buscam-se construir polticas e discursos apoiados pela lgica da democracia racial. Foram mais de 40 (quarenta) milhes de africanos removidos a fora de suas terras, culturalmente domesticados e submetidos ao trabalho forado visando a manuteno da economia brasileira. Por fim, em relao ao sexismo, nos deparamos com um histrico segregacionista que por muito tempo limitou o acesso das mulheres aos ambientes de trabalho, educao e na participao em processos sociais, atravs, por exemplo do direito ao voto. Junto a isso, percebe-se a manuteno de prticas excludentes em relao a diversas formas de vivncia da sexualidade, o que exige um posicionamento constante daqueles que no esto inseridos em lgicas patriarcalistas, como forma de evidenciar aes violentas. Essas lgicas influenciam at hoje o modo como os pobres, os negros, as mulheres, e aqueles sujeitos que experienciam sexualidades no heteronormativas, se relacionam consigo e na sua interao com os outros. Assim como, na forma como se desenvolvem as polticas pblicas especficas para determinados grupos populacionais e como se organizam os espaos sociais.

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    importante destacar que no Brasil a garantia constitucional dos direitos humanos s foi possvel longos anos aps a Declarao Universal dos Direitos Humanos.

    (...) o Brasil vivia a ditadura militar e, quase coincidentemente, o seu maior endurecimento. A realidade brasileira do perodo de afirmao dos direitos humanos em nvel mundial foi marcada pela sua inviabilizao como contedo e como experincia poltica e social, dados o cerceamento da participao social e a priso, exlio e morte de centenas de ativistas que se opunham ditadura militar (que, de maneira mitigada, preferiu chamar-se a si mesma de revoluo, contraditoriamente) (CARBONARI, 2007, p. 22).

    J a partir de 1970, percebe-se no Brasil uma disseminao de discursos vinculados a entidades pautadas pela lgica dos direitos humanos, principalmente, advindos dos movimentos sociais, que condenavam e resistiam aos regimes militares. Ainda nesse momento, essa noo era ausente no cotidiano de vida das pessoas, nas legislaes e prticas dos governos. em 1982 que se conquista, atravs dos movimentos e organizaes sociais, a fundao do primeiro Movimento Nacional de Direitos Humanos (CARBONARI, 2007).

    Coimbra (2000b) aponta os anos 80 como um momento em que comea a se constituir uma nova ordem mundial, pautada por uma racionalidade neoliberal com suas lgicas de globalizao, Estado mnimo, livre mercado, livre comrcio, privatizaes, marketing, rotao rpida, capitalismo financeiro, isolamento tecnocrtico, cultura-mercado, dentre outros (p. 144). Junto a esses movimentos produzem-se, atravs da mdia de massa e de representantes do governo, discursos orientados por argumentos de catastrofizao social e de desestabilizao

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    da economia A autora aponta que esses foram elementos essenciais para a construo do medo e da insegurana para as classes mdias e da gerao de maior desemprego, pobreza e misria para os trabalhadores em geral.

    em 1995, nesse contexto de medidas neoliberais e tambm de chacinas, assassinatos de crianas, adolescentes, homossexuais, linchamentos e balas perdidas, que o governo federal anuncia sua inteno de fazer o Plano Nacional de Direitos Humanos. Esse plano, segundo Coimbra (2000b), no saiu do papel e resultou, em seguida, na criao da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. A Secretaria seria responsvel por implantar o Plano, mas na poca no dispunha de recursos financeiros prprios ou suficientes para isso. O Plano transformou-se em Programa, mas manteve-se como um documento meramente declaratrio e com caractersticas de uma carta de boas intenes.

    interessante visualizarmos que poucos anos antes da criao da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em 1987, era lanado no campo da Psicologia o Cdigo de tica do Profissional. Nele, a ideia de direitos humanos aparece no VII Princpio Fundamental da profisso fazendo referncia ao documento da ONU de 1948:

    VII. O psiclogo, no exerccio da sua profisso, completar a definio de suas responsabilidades, direitos e deveres, de acordo com os princpios estabelecidos na Declarao Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Assemblia Geral das Naes Unidas (CFP, 1987, p.5).

    Passados dez anos depois dessa resoluo, a questo dos direitos humanos no campo da Psicologia se potencializa atravs da criao pelo Conselho Federal de Psicologia

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    (CFP), em 1997 e, nos Conselhos Regionais (CRPs) em 1998, das Comisses de Direitos Humanos (CDHs). Como representante da categoria profissional em mbito federal, o CFP cria essas comisses que, dentre seus diversos objetivos, se destacavam: 1. O incentivo a reflexo e debate sobre os DH vinculados a formao, prtica e pesquisa em Psicologia; 2. Desenvolver estudos dos processos de excluso advindos do modo de produo socioeconmica atual; 3. Funcionar como ferramenta de interveno em situaes concretas de violaes de DH; 4. Serem uma via de participao da categoria na luta por garantia aos DH; 5. Serem utilizadas como estratgias de apoio e solidariedade aos movimentos sociais de afirmao dos DH; 6. Produzir aes, junto ao Estado, ou diante da omisso do mesmo, frente a situaes que produzam algum tipo de sofrimento (CFP, 2013).

    Aps a constituio das comisses, diversas campanhas, seminrios e inspees foram lanados no contexto brasileiro. Dentre as diversas temticas tem-se, por exemplo, Direitos Humanos e sofrimento mental, Direitos Humanos, epistemologia e tica e Direitos Humanos e o lao social (CFP, 2013).

    necessrio destacar que, em 2005, a ltima verso do cdigo de tica lanada, com algumas reformulaes no que se refere ao contexto em que a noo de direitos humanos aparece. Inicialmente, o documento apresenta uma breve introduo sobre a noo de cdigo:

    Cdigos de tica expressam sempre uma concepo de ser humano e de sociedade que determina a direo das relaes entre os sujeitos. Traduzem-se em princpios e normas que devem se pautar pelo respeito ao ser humano e seus direitos fundamentais. Por constituir a expresso de

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    valores universais, tais como os constantes na Declarao Universal dos Direitos Humanos; scio-culturais, que refletem a realidade do pas; e de valores que estruturam uma profisso, um cdigo de tica no pode ser visto como um conjunto fixo de normas e imutvel no tempo. As sociedades mudam, as profisses transformam-se e isso exige, tambm, uma reflexo contnua sobre o prprio cdigo de tica que nos orienta (CFP, 2005, p.5).

    Nessa nova verso do cdigo de tica, a noo de DH deixa de compor o VII Princpio e passa a ser o primeiro como exemplifica-se: PRINCPIOS FUNDAMENTAIS. I. O psiclogo basear o seu trabalho no respeito e na promoo da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declarao Universal dos Direitos Humanos (CFP, 2005,p.7). Dessa forma, a partir de 2005 a proposta da ao profissional passa a ter como balizador principal da prtica psi a ideia dos direitos humanos. Junto a isso se legitima, atravs do documento, que: Art. 2 Ao psiclogo vedado: e) Ser conivente com erros, faltas ticas, violao de direitos, crimes ou contravenes penais praticados por psiclogos na prestao de servios profissionais; (p.5).

    Nesse sentido, atravs dessas resolues e dos acontecimentos que atravessaram suas formulaes, torna-se de extrema importncia colocar em pauta discusses sobre os direitos humanos e o modo como a categoria profissional vem lidando com essa noo. Essas discusses possibilitam exatamente o que prope o cdigo de tica da profisso institudo em 2005, que sugere uma constante reflexo sobre a prtica profissional e a noo de direitos humanos devido s transformaes sociais e o modo como elas vo produzindo novas reflexes e exigindo da categoria outros posicionamentos que no os tradicionais.

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    A Ditadura Civil-Militar marca no perodo histrico brasileiro impactos que devem ser constantemente levantados como questo para que no sejam revividos e/ou reatualizados. A realizao das entrevistas com psiclogas e psiclogos que vivenciaram questes vinculadas ditadura contribui para um processo de reflexo sobre as violncias do passado e o que estas denunciam sobre o nosso modo de viver no presente e sobre a participao da sociedade na construo de futuros possveis.

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  • Aline reis CAlVo HernAnDez

    Eu pensoque chegarat o tema

    foi toda umatrajetria

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    Aline Reis Calvo Hernandez

    Aline Reis Calvo Hernandez graduadaem Psicologia pela PUCRS (1998), Mestreem Educao pela PUCRS (2000) Doutora em Psicologia Social e Metodologia pela Universidad Autnoma de Madrid UAM, Espanha (2005), Ps-Doutora (2008) pela PUCRS. professora adjunta da Universidade Estadual do RGS (UERGS) em regime de Dedicao Exclusiva. Pesquisa emtemas daPsicologia Social, Psicologia Poltica e Educao. lder dos grupos de pesquisa Psicologia Poltica, Educao e Histrias do Presente (CNPq) e Educao, Subjetivao e Diversidade (CNPq). membro da Associao Brasileira de Psicologia Poltica (ABPP) e da Associao Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) e ativista dos Direitos Humanos.

    Eu penso que chegar at o tema foi toda uma trajetria, que comeou quando eu j estava fazendo a graduao em Psicologia. Foi atravs da identificao forte com a rea da Psicologia Social, e mais do que isso, com os estudos mais marginais, mais das dissidncias e das minorias, alm de um interesse tambm na histria. Ainda esse elemento da histria como algo potente, e muito influenciada pelas leituras de Martin Bar, de Silvia Lane. Muito influenciada tambm por Helena Scarparo, Pedrinho Guareschi, professores meus e referncias para mim e que chamavam esse tema em aula. E falavam da histria como um elemento potente da Psicologia Social, de atualizao do fato histrico, de memria ativa como no silenciamento. Isso me chamava ateno, a histria de Bar, a histria de Freire, a militncia de Slvia Lane, a priso do Pedrinho.

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    Essas coisas me chamavam a ateno. Ento, foi um pouco uma escolha tambm, que me levou depois quando eu tomei a deciso de ir para a carreira docente a seguir estudando a margem e as minorias. E foi assim quando eu fiz o meu mestrado. Estudei aspectos da educao em espaos no formais, com pessoas das comunidades. Como que se d esse protagonismo? Como que se d um ativismo de base?

    Depois no doutorado na Espanha estudei o conflito do Iraque na Europa. Pesquisei a Plataforma Europia de Movimentos Sociais que lutavam contra a Guerra no Iraque que foi iniciada em 2001 pelo governo dos EUA Bush filho com apoio do Governo Espanhol Jos Maria Aznar. Estudei os discursos polticos dos Movimentos Sociais em confronto com as elites e os repertrios de ao coletiva e o perodo eleitoral espanhol em 2005. Ento mais uma vez estudando a margem e o movimento social organizado tambm. E o encontro com a ditadura mais concretamente se deu na volta da Espanha.

    Quando eu voltei para o Brasil depois de cinco anos morando em Madri e me deparei um pouco com aquilo que o Morin vai falar: ser um pouco estrangeira na prpria terra. Eu fiquei bem sem cho. Fiquei um tempo, um pouco na errncia, tentando me encontrar. Voltei, pedi uma ajuda (para pensar) para a Helena e para o Pedrinho. Falei para eles como eu estava me sentindo, enfim, um pouco sem identidade. E a retornei para esses grupos de leitura; e conversando com a Helena sobre o que eu estava fazendo e o que ela estava fazendo e o Pedrinho.

    ns tentamos juntar Comunicao com Histria da psicologia e aprofundar a questo do pr-golpe da ditadura, que algo que no to estudado; para ver

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    realmente como que se deu isso, esse processo poltico. se ele realmente tinha sido articulado de antemo, e por quem.

    E foi bem importante na poca. No foi fcil pesquisar esse tema, pois um tema que provoca sentimentos fortes de indignao, injustia e tristeza. Mas foi muito importante. Eu acho que foi uma pesquisa que no fim se desdobrou, deu margem a outras pesquisas. A pesquisa sobre o pr-golpe da ditadura civil militar estudou as manchetes e imagens de trs peridicos com alta circulao no Estado do RGS, a saber: Correio do Povo, Folha da Tarde e Dirio de Notcias. Foram examinadas todas as edies dirias de janeiro/abril de 1964 armazenadas no Museu de Comunicao do Estado.

    Figura 1 Imagem extrada do jornal Dirio de noticias e utilizada na pesquisa sobre pr-golpe. Texto da publicidade: Homens que comandam e

    que dependem da preciso confiam em Tissot MilitarFonte: Dirio de Noticias 19/01/1964.

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    so elementos histricos importantes de conhecer, por exemplo, de no chamar o golpe apenas de golpe militar, mas de golpe civil-militar. porque no podemos esquecer que parcelas importantes da sociedade se envolveram e apoiaram isso. exemplos como a igreja catlica, como alguns empresrios do setor privado, como a classe alta, a elite brasileira, o governo dos estados Unidos.

    Ento dimensionar tambm esses outros atores que apoiam isso. E a pesquisa deixa claro como estava armado todo um bastidor representacional, um bastidor simblico, um arsenal simblico discursivo que levava a pensar que um golpe militar e que uma fora bruta poderiam organizar uma baguna criada por essas prprias pessoas. Segundo eles, uma baguna instaurada no pas por grupos comunistas e anarquistas. Ns encontrvamos muito essas palavras nas manchetes das mdias. Ento ns estudamos um perodo bem longo dos jornais. Basicamente todo esse perodo de pr-golpe de janeiro, at que o golpe acontece, em 1 de abril.

    ns estudamos esse perodo de 64 e vimos essas armadilhas da comunicao e da mdia a favor sempre. Muito alinhadas com as elites de poder representacional. e o mais brutal disso que havia uma impossibilidade de pensamento. o mais brutal disso que tu vs que tem toda uma armao.

    Por exemplo, a gente encontra num dos jornais uma manchete dizendo que nos Estados Unidos sai uma notcia publicada: vai eclodir um golpe no Brasil. Ento de forma alguma esse golpe acontece de surpresa, ele est muito bem articulado, ele est muito bem tramado. Tanto que

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    essa notcia aparece antes l e publicada aqui pela Folha da Tarde, no Rio Grande do Sul, como uma manchete j publicada num jornal norte-americano. Ento ns vemos inclusive, o apoio desse governo americano para que esse golpe acontecesse. E a consequncia de tudo isso o que se instaura no pas a partir da e que tm consequncias nefastas na nossa gerao.

    H at hoje um apagamento de memria, em fazer questo de que esse silncio se mantenha. E o mais incrvel tambm, quando eu digo assim: essa pesquisa acabou se desdobrando em outras, surge na poca a necessidade de tambm falar com pessoas da Psicologia, envolvidas com isso. E o mais incrvel que essas pessoas nos falam de um perodo de anestesia poltica. E dizemos que isso dessa poca. Ns dizemos que isso desses jovens de 2013, do sculo 21. E esses psiclogos de 64, de 68, dos Anos de Chumbo nos falam de uma anestesia, de uma psicologia da conduta, da regulao da conduta, da qual eles faziam parte. Uma psicologia da anestesia. E quem pensava era fortemente reprimido. Tinha isso tambm. Ento era uma psicologia da elite, da manuteno da ordem, ainda mais dentro de algumas instituies que j so pensadas a partir disso. Foi um perodo complicado de pensamento, de fazer uma psicologia da mudana e da transformao. E isso foi na Amrica Latina como um todo.

    Isso influenciou a Psicologia, isso est na nossa histria e ela uma convulso no presente. Ela se presentifica na Psicologia atual. um tema que tem que ser muito pesquisado ainda, tem muitos elementos. Isso sem falar nas dimenses de ativismo, que so importantes de serem feitas na atualidade para esse no apagamento e no esquecimento, que vem tambm de cima para baixo, quando no se tem uma poltica pblica que garanta acesso a essa informao.

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    ento tem toda essa outra dimenso tambm: de luta e pelo no silenciamento, pela verdade. H muita luta para se fazer na psicologia. porm difcil falar de uma psicologia. eu acho que h muitas psicologias. eu acho que ns escolhemos a psicologia que queremos fazer. por outro lado, eu acho que h uma psicologia alinhada a um projeto mais neoliberal, isso tem a ver com o tipo de universidade atual tambm, que uma universidade de mercado.

    E ainda com uma herana muito funcionalista, da regulao, da adaptao. Mas eu acho que ns escolhemos a Psicologia que queremos fazer. Eu acho que ns temos um tempo: o tempo de nossa formao, que um tempo de reflexo, de anlise e de crtica. Isso tem muito a ver com a nossa histria, com as nossas escolhas tambm. Eu acho que difcil sintetizar. Falar de uma Psicologia contempornea. Eu acho que ela uma hibridizao de muitas coisas essa Psicologia contempornea. Ela no tem uma identidade, como ela j teve nos anos 60, nos anos 70, nos 80. Foi uma Psicologia da transformao, em busca de sentidos, em busca de outras coisas, crtica com si mesma. Creio que h uma Psicologia muito legal surgindo a, uma Psicologia novamente interessada pelas questes histricas e polticas. Esse um momento de efervescncia poltica diferente no Brasil e no mundo. De formas novas de protesto, de formas novas de ativismo. Eu acho que h uma Psicologia olhando para isso. Mas

    (...) eu penso que ainda falta psicologia brasileira um compromisso maior com a dimenso de transformao ou de ruptura, de buscar na histria, de vasculhar, de dar mais voz para quem ainda no falou. De olhar um pouco para a margem da margem em relao ao centro de estudar mais o poder, o conflito, a mudana para entender do que se trata.

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    Eu penso que ditadura marcou muito a nossa Amrica Latina, existem diversos elementos da ditadura muito presentes no nosso hoje. E acho que muita coisa, infelizmente, no mudou. Alguns modos de subjetivao se mantm muito ativos em relao s estratgias que a ditadura ensinou a usar e que muitas instituies do Estado aprenderam a usar e continuam usando. A criminalizao dos movimentos sociais, o jeito que a lei se impe para as pessoas, ainda com a fora bruta, ainda com a pancadaria, ainda com o tiroteio. Eu acho que todos ns fomos subjetivados nisso, e uma gerao inteira vai pagar por isso.

    ns aprendemos algumas formas de obedincia, de disciplina, de silenciamento. Mas ns temos que lutar e ver at que ponto o opressor no est na gente, porque a nossa histria, ela est a. o Brasil muito ditador. e h essa marca que tambm da ditadura: no gostar de poltica, no poder se envolver com poltica.

    O social movimento. A expresso de que algo no est legal, de que ele o dedo na ferida. Ento quanto mais ele incomodar, mais fora bruta vai operar sobre ele para silenci-lo.

    e a criminalizao dos movimentos pura articulao do estado para o silenciamento e para tortura para que no se fale, para no se pense. para que tenhamos medo de pensar, de nos expressarmos, de criarmos.

    No adianta dizer que a censura no existe e roubar material de imprensa dos movimentos, bater nas pessoas, leva-las presas. S no temos mais desaparecidos porque

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    temos tambm uma contra mdia toda articulada em rede. Seria mais complicado. Mas tem gente que apanha bastante ainda. Tem colono sem terra ainda assassinado impunemente. Claro que tudo mais sutil, mais cuidadoso, porque as pessoas tambm esto mais ligadas e a forma de fazer denncia tambm est mais articulada. A forma de ativismo mais rpida. O ativismo em rede depende dessa tecnologia rpida, barata. Isso fez toda a diferena para os movimentos.

    Agora no Brasil ns vimos isso. No s a capacidade de convocar mobilizao, mas de articular o protesto com uma cara. Desde o compartilhamento de luta, tudo: o que vai se usar e como que vai ser feito. Foi incrvel quando daqueles protestos de Londres o pessoal no podia dizer a rota da mobilizao pela coero policial que foi tudo feito em rede. Isso genial. Essa capacidade de articulao. Mas ainda existe muita ditadura no Brasil. E na prpria poca da ditadura ns no podemos pensar que o golpe foi decidido em cinco dias. Ele foi muito bem tramado para a derrubada do governo. o golpe de Estado a partir dos militares junto com setores da sociedade civil.

    no perodo da ditadura havia dois fatores bem graves: um era o controle da mdia brasileira, a criao da rede Globo a partir do prprio regime. Um controle da informao muito forte. Uma coero muito forte dentro das escolas e das universidades, com o que se falava, com os contedos que podiam nos falar. Uma regulao total da informao.

    A ponto de intelectuais brasileiros terem que esconder livros ou sair um pouco para fazer essas leituras no exterior, quando podiam sair. Ou dar um jeito de ler isso de forma

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    clandestina. Uma regulao da informao por completo faz parte dessa estratgia. Imagina: os movimentos da poca no tinham o que ns temos hoje! Essa facilidade de comunicao, de articulao.

    Figura 2 - O filme Pra Frente Brasil, de Roberto Faria, foi vetado pela Diviso de Censura, da Polcia Federal em 1982

    Fonte: Jornal do Brasil, 1982.

    Imagina: os movimentos da poca no tinham o que ns temos hoje! Essa facilidade de comunicao, de articulao. Era muito complicado se reunir, mimeografar um panfleto, era tudo muito complicado. Se reunir era risco de vida. O pessoal criava smbolos, estratgias. O cinema brasileiro feito em cima do tema da ditadura mostra um pouco isso. Era muito perigoso se comunicar e se informar. Hoje em dia a comunicao livre. O movimento se articula de hoje para amanh quiser boicotar o sete de setembro. radicalmente diferente. S que eu acho que os grupos da poca, o movimento social da poca talvez usasse esse

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    arsenal todo de outra forma. Hoje temos um desafio para enfrentar que a abertura dos arquivos da ditadura. Por um lado ns pensamos que a Comisso da Verdade salvaria um pouco, faria esse trabalho.

    Mas eu acho que h movimentos importantes, por exemplo, aqui no rio Grande do sul. ns temos o Movimento de Justia pelos Direitos Humanos, h uma luta muito forte sendo feita com essas famlias, um trabalho muito srio: de entrevistas, de coleta de informao constante, que nunca parou desde o golpe at agora.

    E pessoas muito ativistas tambm supervisionando de alguma forma, como sociedade civil, o trabalho da Comisso da Verdade e fazendo parte dessa presso junto ao governo Dilma. Mas no para nada uma pauta dos movimentos sociais brasileiros, a luta pela verdade em relao ditadura. Acho que no uma pauta dos movimentos sociais, da convergncia de movimentos. uma pauta muito especfica das Comisses de Direitos Humanos, do Movimento de Justia, da Comisso da Verdade e Oxal a Dilma tome decises mais contundentes em relao a isso.

    eu acho que o trabalho da Comisso muito srio e j est mostrando evidncias importantes. Mas necessrio abrir informao para o domnio pblico. e isso vai depender da presso dos movimentos.

    Mas desses movimentos que so bem pontuais na sociedade atual. Fora um ativismo importante, que se d desde a universidade, atravs de pesquisas e de registro dessa informao e de atualizao de dados tambm em

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    relao a isso. Os observatrios no Brasil, que existem em relao ditadura, tambm alimentando esses dados. So pessoas comprometidas com essa histria. Eu acho que os movimentos sociais importantes se do a partir disso: pessoas que sabem que essa histria ainda tem que ser vasculhada e que tem muita coisa ainda para investigar, at porque ela est atualizada no nosso presente.

    Figura 3 Imagem Ilustrativa (Que a Comisso da Verdade ao menos APONTE os torturadores)

    Fonte: Latuff (2012).

    E outra: as famlias diretamente envolvidas. So esses dois setores sociais que acabam fazendo o movimento.

    no podemos esperar dos rgos governamentais essas decises to srias como, por exemplo, a abertura de arquivos. isso envolve uma elite militar que

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    est a. envolve relaes internacionais. Mas eu espero isso. eu no sei se eu sou otimista ou utpica, mas eu espero isso do governo Dilma. porque a Dilma carrega eu acho dentro dela essa dvida da histria brasileira.

    Quero agradecer pela oportunidade. Dizer que esse um tema muito caro ao Brasil, s pessoas que viveram isso. As pessoas que ainda lutam para conseguir verdade, justia. As pessoas que ainda lutam para saber onde esto seus familiares. Eu acho que esse um tema do Brasil atual. A Dilma est no poder. Eu acho que tem uma luta importante sendo feita. E o momento estratgico, poltico, agora para algumas decises importantes sobre a ditadura no Brasil.

    E nisso o Brasil est em muito atrasado em relao Amrica Latina. Ento algo que tem que ser feito. Ento parabns para vocs, parabns ao Conselho pela iniciativa.

    Entrevista ocorrida no dia: 06/09/2013Local: Residncia da entrevistada - Porto Alegre/RSEntrevistadora: Samantha Torres

    reFernCiAs

    HERNANDEZ, Aline; SCARPARO, Helena.silncios e saberes guardados nas imagens do pr-golpe de 1964.Rev. psicol. polt.[online]. 2008, vol.8, n.15. Disponvel em: Acesso em 8 de janeiro de 2014.

    JORNAL DO BRASIL. Reportagem de Lucyanne Mano. 1982 pra Frente Brasil tropea na censura. Disponvel em: Acesso em 8 de janeiro de 2014.

    LATUFF. latuff cartoons. 2012. Disponvel em: Acesso em 08 de janeiro de 2014.

  • FernAnDA BAssAni

    muito importante trazer issso

    tona

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    Fernanda Bassani

    Email: [email protected]

    Fernanda Bassani, psicloga, formada em 2002 na PUCRS. Desde 2005 atua como Tcnica Superior Penitenciria no sistema penitencirio do RS, onde atualmente exerce o cargo de Coordenadora da Juventude. Neste setor coordena um Programa intitulado Multiplicadores de Cidadania para a Paz, que une cultura hip hop com educao cidad para a formao de jovens protagonistas sociais. Tambm participa do Forum de Enfrentamento ao Extermnio da Juventude do RS, militando com entidades da sociedade civil e governos. Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS e integra o grupo de pesquisa E-politcs, coordenado pela Professora Neuza Guareschi.

    O meu nome Fernanda Bassani e sou psicloga desde 2000. Esta histria do meu pai, Antnio Fernando Figueiredo, marca a minha vida de uma maneira, at pouco tempo atrs, inconsciente. At ento, eu nunca procurei relacionar a vivncia dele em relao ditadura (e o seu assassinato) com o trabalho que desenvolvo no sistema prisional.

    Apenas contava a minha histria como se ela parasse no meu nascimento. Do meu nascimento em diante eu no relacionava com a histria do meu pai. Mas da, nos ltimos tempos, resolvi procurar entender um pouco mais tudo isso.

    Eu vou comear a contar desde o incio. A minha me era estudante de Letras, da UFRGS e o meu pai fazia Publicidade e Propaganda, tambm na UFRGS. Os dois eram do DCE. A minha me era uma moa que veio do

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    Fernanda Bassani

    interior. Apesar de ser bastante dinmica, ela ainda no tinha toda a manha de uma pessoa da capital. E o meu pai era o tipo popular, digamos assim. Ele era do DCE, era quem organizava as festas, o rei da boemia, tipo gente boa. Os dois eram apenas bons amigos e militantes. Eles iam nas passeatas e nas manifestaes juntos. Estavam naquele momento efervescente da dcada de 70, vinculados UFRGS. E a minha me ia na carona dele, por serem amigos e por admir-lo.

    Figura 1 Charge IlustrativaFonte: Latuff, 2013.

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    Segundo a minha me, um dia, eles tinham que fazer um trabalho da faculdade, de uma cadeira em que eram colegas e foram fazer na casa da me dele, onde hoje a Pizzaria Fragata, na Assis Brasil. Aquele casaro lindo! Eu me criei naquela casa at os cinco anos de idade, depois minha av morreu e no tive mais contato com a minha famlia por parte de pai. A me foi l estudar com ele e, de repente, ele disse: Snia, eu quero te mostrar o orquidrio da minha me. A minha me: o qu? Tu imagina, guria do interior: Orqudeas? Ai que lindo, vamos l ver o orquidrio. A foram ver o tal do orquidrio. Os dois eram s amigos. E, no meio das orqudeas, aconteceu. Eles tiveram uma nica relao sexual. Sete dias depois,

    cerca de cinco e meia da manh de um domingo, ela teve um sobressalto na cama. passaram-se umas duas horas e ligaram para ela dizendo que o Antnio Fernando (o segundo nome dele era Fernando, no por acaso sou Fernanda) tinha sido assassinado por policiais militares. Foi assim, uma bomba atmica na vida de todo mundo.

    Mas principalmente na vida da minha av, pois ele era o filho caula dela. Ela era doente por ele. E como ele era muito simptico pelo que me contam, eu no convivi , muito boa gente, muito alegre, ele enchia a casa. A minha av era muito prxima dele. Ele tinha 27 anos quando foi assassinado. A outra pessoa que mais sentiu foi a minha me, entrou em crise. Por qu? Primeiro porque ela no sabia que estava grvida. Segundo, quando foi na missa de um ms de falecimento, ela j sabia que estava grvida, mas no sabia como dizer. E terceiro, ela ia ser me solteira na dcada de 70. Ela carregou esse estigma, perante a famlia do meu pai e dela tambm. Era ainda mais difcil para ela que era do interior e de origem italiana.

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    Figura 2 - Os anos de chumbo no BrasilFonte: Morais, 2009.

    A situao da morte do meu pai foi toda encoberta. Foi uma morte construda, constituda de maneira que fosse entendida como um crime comum. Uma situao de jovens que estavam bebendo de noite e na sada da festa a polcia mandou parar, eles no pararam e a polcia atirou. Uma troca de tiros. Depois ficou comprovado que no existiu a troca de tiros. O que existiu foram os tiros do policial. Mas no foi enquadrado na categoria de crime poltico, foi considerado um crime comum. E a percebe-se a influncia da ditadura. Os policiais militares foram todos absolvidos. como se ele no tivesse morrido, como se ningum o tivesse matado. E se criou um cenrio de que eram apenas policiais no exerccio da lei. A situao foi a seguinte: era um sbado de madrugada. A avenida Independncia era point na poca. Tinha vrios barzinhos. O meu pai era muito bomio, daqueles que reunia todo mundo. Onde ele dissesse que teria festa, ia todo mundo para l. Quem me

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    contou foi um famoso fotgrafo aqui do Rio Grande do Sul e que era o melhor amigo do meu pai. Ele me disse que, naquele dia, tinha sado para comemorar a contratao para trabalhar numa empresa do Rio de Janeiro. Todos foram para essa festa na Independncia e na sada da festa... Ele no estava dirigindo, ele estava ao lado do motorista, em uma Braslia amarela. Eles saram, pararam em uma padaria na Mostardeiro e depois seguiram. Ento, logo frente, policiais mandaram o carro parar.

    Por que motivo, eu no fao ideia. O que eu soube que o motorista no parou; seguiu na Independncia, desceu a Mostardeiro e ento se estabeleceu uma perseguio policial. Eles os perseguiram at a Flix da Cunha com a Cristvo Colombo, dando tiro. Como a polcia vai mandar um cidado parar o carro, o carro no para e a vo sair perseguindo, dando tiro? Ou seja, o mnimo que eu posso pensar que naquela poca a polcia possua poder absoluto. No se tinha qualquer garantia individual. E eles eram de classe mdia alta. Eu sei que hoje em dia h muitos casos de violncia policial, de abuso, mas eles no entravam dentro do esteretipo do pobre, preto, indivduo suspeito.

    A anlise que eu fao que em 77 o criminoso em potencial, o criminoso mais perigoso, mais vigiado e mais perseguido era o criminoso de ideias.

    Aquele que, de alguma maneira, deveria representar um perigo ao status quo do poder poltico. E ento, esse tipo de pessoa era seguido, observado, investigado. Para que, na menor oportunidade, se pudesse derrub-lo. Eu entendo assim o que aconteceu com o meu pai. Ele era uma pessoa com um potencial de mobilizao muito grande; foi presidente do DCE da Publicidade, uma liderana grande.

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    Figura 3 Mulheres na frente de protesto nas ruasFonte: Sena, 2013.

    Ele no era ligado queles grupos revolucionrios do tipo que a Dilma era ligada, grupos de violncia armada. No, ele era um cara mais tranquilo. Ele fazia a revoluo dele atravs da cultura, da festa. Claro que participava de todas as manifestaes polticas, mas num carter mais de cultura. Apoio e cultura. Mas, de qualquer forma, ele era um subversivo.

    e como subversivo ele atrapalhava.

    Ele no preenchia os critrios do nosso inimigo pblico nmero um da contemporaneidade, porque ele era de classe mdia alta. Alta mesmo. Ele tinha fazendas. A famlia dele tinha fazenda em Viamo, casa na praia, eles tinham uma estrutura. E por conta dessa situao econmica favorvel que a morte dele repercutiu; foi capa de Zero Hora trs

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    vezes, capa do Correio do Povo e matria na revista Veja, enfim. Teve um apelo miditico muito grande com relao morte dele. Vou ler aqui uma notcia. Essa aqui do julgamento.

    O caso dele foi julgado cinco anos depois. Ele morreu em 77, foi julgado em 82, da aparece como um crime comum: PMs que mataram o publicitrio, absolvidos por falta de provas. Detalhe: quem defendeu os PMs foi um dos maiores advogados do Rio Grande do Sul, que nunca cobrou nada para defender policial militar, na poca. At, se vocs tiverem oportunidade de investigar um pouco a participao desse advogado na ditadura aqui no Rio Grande do Sul, seria interessante, porque todos os crimes ligados Polcia Militar na poca sobretudo os mais complicados foram defendidos por esse cara.

    Ento eu acho que ele tem uma contribuio bem pesada. A famlia do meu pai, como tinha condies financeiras, contratou outro grande advogado do estado. Foi um jri de peso. E um jri que se estendeu. Mas em 82, quando foi julgado, chegaram concluso de que eles no foram culpados. Est aqui: o crime foi em 77. Antnio Figueiredo vinha na carona de uma Braslia que no obedeceu ordem de parar dada por uma patrulha da polcia. O Conselho Especial de Justia julga a denncia improcedente e absolve os rus por falta de provas. Esse foi o veredicto dado pelo presidente da sesso. E o julgado aconteceu na justia militar. No foi julgado na justia comum. Quatro oficiais e um juiz auditor decidiram sobre o processo em que os policiais militares eram acusados de assassinar o publicitrio Antnio Fernando Figueiredo, de 28 anos, em outubro de 77. Trs amigos publicitrios estavam numa Braslia, cujo motorista bateu na traseira de um automvel e fugiu quase atropelando um PM. As testemunhas que foram levadas de defesa disseram que no teve batida.

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    Tanto que o carro no tinha escoriaes. Tambm disseram que eles no atropelaram, nem quase atropelaram PM nenhum. O que houve foi um sinal para eles pararem e eles no pararam. Isso parece que verdade.

    Foram perseguidos por uma viatura da polcia e a fuga terminou com a morte de Antnio Figueiredo com um tiro, que lhe transfixou os pulmes. Cinco anos aps o crime, os pMs esto absolvidos por falta de provas.

    Como assim, falta de provas? A bala era deles, a arma era deles. O homem est morto. Ento algo que no tem explicao. Inclusive, a minha me diz que a minha av morreu por causa desse desgosto. Alis, o julgamento foi em 82, cinco anos depois da morte do meu pai. Logo depois do julgamento, minha av morreu. De ataque cardaco. No aguentou.

    Figura 4 Charge IlustrativaFonte: Duarte, 2012.

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    um sentimento total de injustia, nem a condio financeira conseguiu influenciar a situao. E eles tinham excelentes condies financeiras e investiram pesado nesse processo. Porque era a coisa mais importante do mundo para eles. Vou ler um pedao da reportagem sobre o julgamento: Logo no incio do julgamento, no tempo destinado acusao, o promotor faz algumas conjecturas jurdicas. Mas pede a absolvio dos policiais militares, certamente convencido que as provas no eram suficientes para impor aos rus uma pena pela morte do publicitrio Antnio Figueiredo. Sorte da defesa. Pois no incio do ms, esse julgamento foi adiado, quando o advogado da defesa estava afnico e o promotor em frias. Ento todas as artimanhas possveis e inimaginveis para favorecer os policiais foram colocadas em prtica. Surge ento a primeira cena em comum com os julgamentos desse tipo:

    o assistente da acusao, o nosso advogado, contrariou a tese do promotor e durante uma hora e meia analisou profundamente as provas e depoimentos. pedindo a condenao dos pMs.

    Olha s: eles colocaram revlver, pacotinho de maconha e outra substncia desconhecida. P branco. Que foram enxertados dentro do carro onde morreu o publicitrio. Na hora do flagrante elaborado s 16hs, quando o fato aconteceu s 06hs da manh. Fizeram o flagrante s quatro da tarde. O policial disse que encontrou a maconha e o p branco. Depois, na justia, ele disse que no viu nada. Depois: Baseando-se principalmente no depoimento que ele prestou no planto policial no Hospital de Pronto Socorro, vinte e cinco minutos depois da morte do publicitrio, quando o homem disse: dei os tiros para intimidar (...) O advogado criticou os vrios depoimentos

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    diferentes prestados pelo policial. E tambm o fato de uma das testemunhas, que disse ser motorista de txi, para mais tarde admitir ser Policial Militar, na Companhia de Polcia Rodoviria. A testemunha disse que era motorista de txi. A testemunha da situao. E logo depois assumiu que era da PM.

    A testemunha da acusao, a pessoa que alegou ter sido atropelada, todos eram PMs. Acentuou o advogado assistente da acusao que estava tentando fazer justia a quem no podia se defender, Fernando Figueiredo, que ontem mesmo completaria 33 anos, caso estivesse vivo. Sendo tragicamente assassinado por algum prevalecendo-se de sua funo. Ento isso.

    eu vejo como uma poca em que as pessoas no tinham garantias de direitos. porque se tu participa de um crime onde a bala sai do revolver do pM e mata uma pessoa, como que se consegue criar toda uma situao onde esse pM absolvido?

    Eu acho que hoje em dia as estratgias so um pouco mais sofisticadas, tambm acho que tem muita morte de jovens da favela por conta de violncia policial, mas se fica comprovado que a bala era do revlver do cara, o cara vai ser julgado e condenado. Agora, se ele vai preso ou se ele vai ganhar uma medida mais amena, a outra histria. Mas eu acho que houve algumas evolues quanto legislao. At porque nessa poca da ditadura, 1977, a legislao funcionava por base de decretos. Era o AI-5, o AI-4, o AI- no sei das quantas. E esses decretos davam total proteo para a polcia. Proteo nenhuma para o cidado.

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    sobretudo, se esse cidado preenc