o mercado verde indiginista _assurini
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O trabalho propõe o modelo de sustentabilidade utilizando o exemplo dos indios Assuri do Xingu.TRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
Programa de Ps-Graduao em Cincia Ambiental - PROCAM
Fabio Augusto Nogueira Ribeiro
Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena:
Os Asurin no Mdio Xingu
So Paulo
2009
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FABIO AUGUSTO NOGUEIRA RIBEIRO
Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena:
Os Asurin no Mdio Xingu
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Cincia Ambiental da Universidade de So Paulo
para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Ambiental.
rea de concentrao: Cincia Ambiental
Orientadora: Profa. Dra. Carla Morsello
Co-Orientadora: Profa. Dra. Regina Plo Mller
So Paulo
2009
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FICHA CATALOGRFICA
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FOLHA DE APROVAO
Fabio Augusto Nogueira Ribeiro
Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena: os Asurin no Mdio Xingu
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Cincia Ambiental da Universidade de So Paulo
para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Ambiental.
rea de concentrao: Cincia Ambiental
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Instituio_____________________________ Assinatura:___________________________
Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Instituio_____________________________ Assinatura:___________________________
Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Instituio_____________________________ Assinatura:___________________________
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Aos meus avs Zs,
Ao Awakar (in memorian),
grande Mboakara
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AGRADECIMENTOS
Agradeo Profa. Carla Morsello, da Escola de Artes, Cincias e Humanidades da
USP, pela orientao ao longo dos ltimos cinco anos, por me dar a oportunidade de
participar do projeto 'Parcerias Florestais' e pela amizade.
Profa. Regina Mller, do Instituto de Artes da Unicamp, minha co-orientadora, por
introduzir-me na 'Asurinologia' e pelo incessante incentivo.
Profa. Fabola Silva, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, pela companhia
em campo e pelas sugestes tericas e etnogrficas.
Profa. Dominique Gallois, do Departamento de Antropologia da USP, pelo estmulo
pesquisa em etnodesenvolvimento.
Ao Prof. Willian Fisher, do College of Willian and Mary (EUA), pelo incentivo e por
ter me convidado a apresentar a presente pesquisa no III Encontro da Society for the
Anthropology in the Lowland Southamerica (SALSA), ocorrido no Reino Unido e na Frana
em junho de 2008.
Profa. Sueli Furlan, do Departamento de Geografia da USP, pelos comentrios e
sugestes oferecidas ao longo da pesquisa por meio do Comit de Orientao do Procam.
Ao Prof. Jos Eli da Veiga, do Departamento de Economia da USP, pelos comentrios
feitos pesquisa durante o primeiro Comit de Orientao.
Renata Faria, pela amizade e pela companhia na primeira viagem de campo.
Agradeo tambm s outras pesquisadoras do projeto 'Parcerias Florestais': Leny, Lcia e
Mayt.
Tambm aos outros jovens asurinlogos que, em algumas ocasies, fizeram-me
companhia em campo: Alice e Bruno Marcos.
Aos colegas da turma de 2006 do Procam.
Ao Igor e ao Lus, pesquisadores do Ncleo de Histria Indgena e do Indigenismo
(NHII) da USP.
Agradeo muito ao Luciano e Priscila, da secretaria do Procam, que sempre
ajudaram-me quando preciso.
Agradeo CAPES pela bolsa de mestrado concedida e Rainforest Allinace pelo
financiamento de parte das viagens de campo.
Ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI), na pessoa de Gilberto Azanha, pelo apoio
ao indigenista no Mdio Xingu e na Terra Indgena Koatinemo.
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Aos amigos Rodrigo Isaas e Andrei Cechin. Tambm aos amigos que, por razes
desconhecidas, no foram citados aqui.
minha famlia, por absolutamente tudo: minha me Marisa, meu pai Dario, minhas
irms Kiki e Bia, cunhados Pingo e Al e sobrinhos Raulzito, Miguelito e Davizito.
Agradeo demais minha segunda famlia, muito querida tambm. Ao glorioso Dr.
Henrique Medina, pelas acupunturas e pelas risadas, minha sogra Denise (sem
comentrios!), e s cunhadas Katxer, Mbatuya e Xaari Wani.
A todos os meus demais parentes, consangneos e afins.
Agradeo muito aos Asurin. Se no fossem eles, a presente dissertao simplesmente
no existiria. Nunca, nunca mesmo, esquecerei o tempo (que espero seja s o primeiro!) em
que vivi entre os ndios do Koatinemo que, dentre vrias coisas, apresentaram-me a
impressionante e indescritvel floresta amaznica e o ritual Marak: Takir, Mbatuia, Mburi,
Ararimyna, Ararijywa, Myr, Paraju, Parakakyja, Kwa i, Tukura, Ipikiri, Takamu,
Tewutinemi,Tjiwandem, Apeuna, Awakar (in memorian), Kwati, Muruka , Apeb,
Takunha, Apirakamy, Mboava, Morera, Marakaw, Manduka, Tuw, Wawagi, Kum,
Mauyra, Mar e todos os outros Awaet.
Final e principalmente, Kandy-Kwei, estrela-feminina, Jerameriket.
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Desenho feito por Myr Asurin em folha de papel
Motivo: tembekwareropit (enfeite labial)
Aldeia Koatinemo, junho de 2005
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RESUMO
RIBEIRO, F. A. N. Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena: os
Asurin no Mdio Xingu. 2009. 179 f. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em
Cincia Ambiental, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.
Ao longo das ltimas dcadas, os processos de liberalizao da economia brasileira e avano do
ambientalismo geraram novas representaes e polticas relativas floresta e aos povos indgenas
amaznicos. Dentro desse movimento, a comercializao de produtos florestais no madeireiros
atravs, em alguns casos, de parcerias entre a Fundao Nacional do ndio e empresas passou a ser
apresentada como uma ferramenta para o desenvolvimento indgena e para a conservao
ambiental. Sob a perspectiva do etnodesenvolvimento, entretanto, a questo central que
fundamenta a dissertao se os regimes de produo, circulao e consumo engendrados por
esse 'indigenismo pblico-privado' so compatveis com as economias polticas nativas. Para
responder a esta questo, o estudo est baseado no caso dos Asurin do Xingu, grupo Tupi
includo na parceria para a comercializao de leo de castanha-do-par entre a cooperativa
Amazoncoop e a empresa britnica The Body Shop. A pesquisa de campo foi estruturada em dois
nveis. No primeiro, por meio de entrevistas e conversas informais, foram levantadas informaes
sobre a histria e a economia poltica da parceria. Os resultados obtidos evidenciaram que a
parceria foi incapaz de romper com a assimetria de poder que caracteriza a relao entre os
indgenas e a economia de mercado. No segundo nvel, por meio de tcnicas qualitativas
(entrevistas, conversas informais, diagnstico rural participativo) e quantitativas (surveys e
observaes de alocao de tempo), foram levantadas informaes relativas participao dos
Asurin na parceria, bem como os impactos da atividade sobre a economia domstica. Nesse caso,
a incompatibilidade entre o regime indgena e aquele fomentado pela parceria foi evidenciada pela
escassez de alimentos no perodo da coleta; pela distribuio desigual dos recursos monetrios
entre os grupos familiares; pela acentuao do conflito entre dinheiro e reciprocidade e pelo
incremento da dependncia por bens industrializados. A diversidade, entretanto, das estratgias
econmicas familiares, a incorporao do dinheiro pelas concepes indgenas de riqueza e a
continuidade das atividades de subsistncia so expresses de que a maior participao na
economia de mercado tem como corolrio no a 'aculturao', mas uma transformao na forma
como a sociedade indgena se reproduz.
Palavras-chave: sociedades indgenas, Amaznia, Asurin do Xingu, produtos florestais no
madeireiros, etnodesenvolvimento.
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ABSTRACT
RIBEIRO, F. A. N. Ethnodevelopment and green markets in the indigenous Amazon: the
Asurin of the Middle Xingu. 2009. 179 f. Master's Degree Dissertation Programa de Ps-
Graduao em Cincia Ambiental, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.
In the last two decades, the synchronous processes of liberalisation of the Brazilian economy and
the advancement of environmentalism generated new representations and policies regarding
Amazonian rainforests and indigenous peoples. Within this movement, the commercialisation of
non timber forest products, through, in a few cases, the implementation of partnerships between
the National Indian Foundation of Brazil and companies, began to be presented as a tool for the
development of indigenous societies, as well as for environmental conservation. Adopting an
ethnodevelopment perspective, however, the central question posed by this dissertation is whether
the regimes of production, circulation and consumption devised by this form of 'public-private
indigenism are compatible with their political economies. To advance this question, this study is
based on the case of the Asurin do Xingu, a Tupi group included in the partnership for the
commercialisation of Brazil-nut oil between the Amazoncoop cooperative and the UK-based
company, The Body Shop. Field research was structured into two levels. At the first level,
information about the history and the political economy of the partnership were gathered by
means of informal interviews. Results at this level indicate the partnership has been unable of
breaking down the historical asymmetry of power which characterises the relationship between
indigenous societies and the market economy. At the second level, by means of qualitative and
quantitative techniques of data gathering, we collected information regarding Asurins
participation in the partnership, as well as the impacts of the trade activity to their domestic
economy. In this case, the incompatibility between the indigenous economic regime and that
promoted by the partnership implementation was evidenced by food shortages during the
harvesting period; by the unequal distribution of monetary incomes among households; by
uprising conflicts as regards monetary incomes and reciprocal exchanges of goods, and by their
increasing dependence on industrialised goods. Notwithstanding that, the diversity of household
economic strategies, the incorporation of money into indigenous conceptualisations of wealth and
the continuity of traditional subsistence practices are evidences supporting the argument that an
increase in market participation is not a corollary of indigenous peoples 'acculturation', but a
transformation in their form of social reproduction.
Key words: indigenous societies, Amazonia, Asurin do Xingu, non timber forest products,
ethnodevelopment.
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1. Criana asurin pintada com jenipapo 47
Figura 2. Localizao da Terra Indgena Koatinemo 48
Figura 3. Desmatamento e estradas endgenas nas TIs no Mdio Xingu 56
Figura 4. A tavyve 59
Figura 5. As casas asurin 59
Figura 6a. Croqui da aldeia Koatinemo 60
Figura 6b. Desenho da aldeia feito por Kwa I Asurin 61
Figura 7. Variao demogrfica Asurin (1971-2005) 62
Figura 8a. Pirmide demogrfica Asurin - 1976 65
Figura 8b. Pirmide demogrfica Asurin - 1993 65
Figura 8c. Pirmide demogrfica Asurin - 2005 66
Figura 9. Calendrio Sazonal 2005 Asurin do Xingu 72
Figura 10. Pesca na piracema 78
Figura 11. A oleira 82
Figura 12. Os investimentos na aldeia: banheiros e caixas d'gua 95
Figura 13. Galpo da Amazoncoop em Altamira 97
Figura 14. A castanheira (Bertholletia excelsa) 118
Figura 15. Acampamento no igarap Piranhaquara 120
Figura 16. Alocao do tempo pelos Asurin no perodo da coleta 124
Figura 17. O produto da coleta comercial 127
Figura 18. Renda bruta e lquida e cestas de mercadorias por estratgias de coleta 131
Figura 19. Origem da renda monetria dos grupos familiares asurin (jan-out 2005) 134
Figura 20. Variao demogrfica na aldeia no perodo da coleta (2005) 136
Figura 21. Alocao do tempo pelos Asurin em 2005 138
Figura 22. Origem dos alimentos consumidos pelos Asurin em 2005 (%) 139
Figura 23. Roa pronta para o plantio 142
Figura 24a. Renda monetria da castanha e rea de roados dos grupos familiares 143
Figura 24b. Renda monetria total e rea de roados dos grupos familiares 144
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Cronograma da coleta de dados em campo 32
Tabela 2. Informantes no primeiro nvel analtico da pesquisa 36
Tabela 3. Sumrio de dados de alocao de tempo 44
Tabela 4. Resultados da coleta de castanhas por classe de idade 126
Tabela 5. Sntese dos resultados da coleta de castanhas pelos Asurin (jan-mar de 2005) 129
Tabela 6. Fontes de renda monetria asurin (jan-out de 2005; R$) 133
Tabela 7. Sntese dos resultados obtidos na atividade agrcola em 2005 141
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LISTA DE SIGLAS
AER Administrao Executiva Regional da Funai
ALEM Associao Lingstica Evanglica Missionria
CHE Complexo Hidreltrico
Cimi Conselho Indigenista Missionrio
Funai Fundao Nacional do ndio
Funasa Fundao Nacional de Sade
INCRA Instituto Nacional da Colonizao e Reforma Agrria
ONG Organizao No Governamental
PFNM Produto Florestal No Madeireiro
TBS The Body Shop
TBSF The Body Shop Foundation
TI Terra Indgena
USP Universidade de So Paulo
UVA Universidade Vale do Acara
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SUMRIO
Introduo 1
CAPTULO 1. Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena 7
CAPTULO 2. Metodologia 21
2.1. Fundamentos epistemolgicos 23
2.2. Delineamento e justificativa 31
2.3. Tcnicas de levantamento de dados 34
CAPTULO 3. Os Asurin do Koatinemo 46
3.1. O territrio 49
3.2. O ambiente regional 53
3.3. Organizao social e poltica 58
3.4. A economia indgena 71
3.5. A relao dos Asurin com a economia de mercado 80
CAPTULO 4. A parceria Amazoncoop -The Body Shop 86
4.1. Histria e estrutura 87
4.2. A economia poltica da parceria 98
4.3. A parceria sob a perspectiva do etnodesenvolvimento 109
CAPTULO 5. Os Asurin e o mercado verde no Mdio Xingu 115
5.1. A comercializao de castanhas 116
5.2. O mercado e a economia domstica 135
5.3. Discusso 150
CAPTULO 6. Concluses 160
Referncias 164
ANEXO I Censo Asurin (maro de 2005) 173
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Introduo
Ao longo das ltimas duas dcadas, os processos sincrnicos de globalizao,
descentralizao poltica do Estado, liberalizao da economia brasileira e avano do
ambientalismo geraram novas representaes, discursos e polticas relativas floresta e s
sociedades indgenas amaznicas. Dentro desse movimento histrico, a comercializao de
produtos florestais no madeireiros (PFNMs), atravs, em alguns casos, de parcerias entre a
Fundao Nacional do ndio (Funai) e empresas, passou a ser apresentada como uma
ferramenta para o desenvolvimento local e para a conservao ambiental (CLAY, 2002) ou,
em outras palavras, para o 'desenvolvimento sustentvel', entendido por Ribeiro (1991) como
a nova ideologia/utopia do desenvolvimento.
Sob a perspectiva do 'etnodesenvolvimento', entretanto, cuja nfase recai sobre os
aspectos sociolgicos das atividades econmicas em contextos intertnicos (AZANHA, 2002;
STAVENHAGEN, 1985), ainda no esto claras as transformaes geradas por esse
'indigenismo pblico-privado' sobre o processo mais amplo de mudana social indgena.
Nesse caso, no h consenso sobre se a comercializao de PFNMs envolvendo comunidades
tradicionais representa, como sustenta Roddick (1992), um novo paradigma ('mercado
solidrio', fair trade) no mundo dos negcios ou, pelo contrrio, como sugere Turner (1995),
um novo mecanismo de apropriao capitalista dos recursos materiais e imateriais de
territrios indgenas. Tambm no certo se para os indgenas essas alternativas econmicas
so consideradas 'sustentveis'.
Da mesma forma, no plano da economia poltica nativa ainda no se sabe bem quais
so os resultados da maior participao no mercado de PFNMs sobre as esferas da produo,
da distribuio e do consumo. Sabe-se, porm, que os modelos antropolgicos da 'aculturao'
ou dos 'graus de integrao' (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978; RIBEIRO, 1971) - ou seja, a
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idia de que possvel classificar como 'aculturados' ou em 'vias de integrao' sociedade
envolvente os povos indgenas que participam na economia de mercado - no se aplicam
realidade. Pelo contrrio, alguns desenvolvimentos da etnologia indgena amaznica
contempornea (ver FISHER, 2000; GORDON, 2006) mostram que, a despeito da maior
participao no mercado, as economias polticas amerndias continuam a ser reguladas por
regimes bastante particulares.
Nesse sentido, duas questes relevantes colocadas pela antropologia so abordadas ao
longo da dissertao. A primeira refere-se s razes pelas quais os indgenas cada vez mais
decidem participar da economia de mercado. Ou seja, qual a lgica do 'consumismo
inflacionrio' indgena (GORDON, 2006; HUGH-JONES, 1992)? A segunda se a
participao na economia de mercado produz ou no descontinuidades nos processos
institucionais indgenas de proviso de bens. Nesse caso, a noo de etnodesenvolvimento
fundamenta-se em uma concepo substantiva da economia, entendida como um processo em
que a produo, a distribuio e o consumo de recursos requer arranjos institucionais que
assegurem a continuidade desse processo de proviso (POLANYI, 1974). Partindo do
pressuposto da existncia dessas estruturas organizadas, o objeto de estudo da antropologia
econmica , portanto, a variao cultural nos circuitos de produo, distribuio e consumo.
Embora estudos recentes (KUSTERS et al., 2006; MORSELLO, 2002; ROS-TONEN;
WIERSUM, 2005) apresentem evidncias de que o mercado de PFNMs gera efeitos ambguos
em termos de desenvolvimento e conservao, no foram realizadas pesquisas sobre o tema a
partir de uma abordagem que consiga conciliar uma investigao etnogrfica com os
indicadores do etnodesenvolvimento. Dentre esses indicadores, trs em particular constituem
o foco do presente estudo: (i) recursos gerados com relativa igualdade nos termos de troca, ou
seja, com o empoderamento das sociedades indgenas dentro da relao comercial; (ii)
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canalizao dos benefcios atravs dos circuitos indgenas de circulao de bens e (iii)
atividade comercial ajustada s atividades de subsistncia dos grupos familiares.
Tendo isso em vista, a presente pesquisa tem por objetivo geral investigar quais so as
transformaes geradas pela participao na comercializao de produtos florestais no
madeireiros atravs de parcerias entre a Funai e empresas sobre o processo mais amplo de
mudana na economia poltica indgena.
Os objetivos especficos so investigar:
(i) se a parceria abordada constituiu uma ferramenta efetiva para o
etnodesenvolvimento indgena e, no caso especfico da sociedade indgena estudada,
(ii) como a atividade de coleta comercial de castanhas foi incorporada pelas estratgias
econmicas dos grupos familiares e
(iii) qual o resultado da maior participao na atividade comercial sobre as esferas
indgenas da produo, da distribuio e do consumo.
A dissertao procura explorar o problema proposto por meio:
(i) da anlise da parceria para a comercializao de leo de castanha-do-par
(Bertholletia excelsa) estabelecida entre a Administrao Executiva Regional (AER) da Funai
em Altamira, Estado do Par, atravs da cooperativa Amazoncoop, e a empresa britnica de
cosmticos The Body Shop (TBS) e
(ii) da investigao etnogrfica entre os Asurin do Xingu, grupo tupi situado na
poro oriental da Amaznia brasileira e envolvido na parceria em questo.
Trs so as premissas1 que fundamentam a investigao. A primeira a de que as
sociedades indgenas no so entidades estticas, situadas fora da Histria. Ou seja, a
mudana uma caracterstica intrnseca a tais sociedades (LVI-STRAUSS, 1989), assim
1 Conforme a definio do dicionrio Aurlio (FERREIRA, 1986), o termo 'premissa' entendido aqui
como os princpios ou teorias que servem de base a um raciocnio ou a um argumento, e no como sinnimo de
uma realidade no contestvel.
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como a qualquer outra. A segunda a de que as trajetrias das sociedades indgenas
contemporneas so condicionadas tanto por fatores internos, associados lgica estrutural
dessas sociedades, como externos, vinculados lgica da economia capitalista e da atuao do
Estado (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Finalmente, a terceira premissa a de que a noo
de etnodesenvolvimento, mais que aquela de desenvolvimento sustentvel, constitui um bom
indicador do sentido da mudana social indgena no contexto das relaes intertnicas e,
portanto, um melhor referencial para a interpretao da relao entre sociedades indgenas e o
mercado de PFNMs na Amaznia (ver captulo 1).
Ao propor uma investigao sobre as parcerias para a comercializao de PFNMs
envolvendo sociedades indgenas na Amaznia a partir de uma investigao etnogrfica e sob
a perspectiva do etnodesenvolvimento, a dissertao inovadora por duas razes. Por um
lado, no mbito dos estudos sobre o comrcio de PFNMs envolvendo povos indgenas, apenas
alguns recorreram investigao etnogrfica (p. ex. FARIA, 2007 e MORSELLO, 2002) e
nenhuma adotou a perspectiva do etnodesenvolvimento. Por outro lado, dentre as pesquisas
antropolgicas focadas na relao entre povos indgenas e a economia de mercado (p. ex.
FISHER, 2000; GODOY, 2001; GORDON, 2006), nenhuma abordou em particular o
mercado de PFNMs e/ou adotou a perspectiva do etnodesenvolvimento.
Buscando preencher esta lacuna, a dissertao est estruturada em seis captulos,
sendo que os trs primeiros procuram apresentar respectivamente a teoria, o mtodo e a
sociedade indgena estudada, o quarto e o quinto captulo apresentam e discutem os dados
levantados por meio da pesquisa de campo e o sexto apresenta as concluses do estudo.
No primeiro captulo apresentado o referencial terico relativo ao tema abordado. O
objetivo , por um lado, descrever a maneira pela qual os processos sincrnicos de
globalizao, liberalizao da economia brasileira e avano do ambientalismo geraram
transformaes nas representaes, nos discursos e nas polticas relativas Amaznia e aos
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povos indgenas. Por outro lado, atravs da caracterizao da noo de etnodesenvolvimento,
o captulo apresenta o modo pelo qual as Cincias Sociais, particularmente a Antropologia,
tm interpretado as respostas e adaptaes das sociedades indgenas contemporneas s
condies impostas pela lgica dessa nova economia fundamentada no discurso do
desenvolvimento sustentvel.
No captulo dois apresentada a metodologia, bem como seu embasamento
epistemolgico e, dessa forma, o delineamento do estudo, os fatores que justificaram a
escolha tanto da parceria como da sociedade indgena estudada, as tcnicas de levantamento
de dados utilizadas na pesquisa e, por fim, as dificuldades encontradas.
Por meio da apresentao de dados primrios e secundrios, no terceiro captulo so
caracterizados o territrio, o ambiente regional, a organizao social e poltica e a economia
dos Asurin do Xingu a partir de uma perspectiva caracterstica dos estudos etnogrficos. A
nfase, nesse caso, recai sobre a histria recente do grupo (ou 'histria do contato'), sobre o
ambiente geogrfico e econmico onde est inserida a Terra Indgena (TI) Koatinemo e sobre
a atual dinmica das formas indgenas de organizao social, poltica e econmica.
No captulo quatro so apresentados os resultados da pesquisa de campo sobre a
parceria para a comercializao de leo de castanha-do-par entre a Funai, por meio da
cooperativa Amazoncoop, e a empresa The Body Shop. A partir do estudo da histria e da
economia poltica da parceria, o objetivo investigar se a iniciativa constituiu uma ferramenta
efetiva para o etnodesenvolvimento indgena. A anlise, nesse caso, recai sobre a maneira
pela qual a atividade estava organizada, se os processos decisrios contavam com a
participao indgena, se os recursos monetrios foram obtidos com relativa igualdade nos
termos de troca e quais as regras estabelecidas entre as partes envolvidas.
O estudo etnogrfico sobre a participao dos Asurin na comercializao de PFNMs
apresentado no captulo cinco. Por meio de um conjunto de tcnicas de levantamento de
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dados qualitativos e quantitativos, o objetivo investigar como a atividade de coleta
comercial de castanhas foi incorporada pelas estratgias econmicas dos grupos familiares.
Alm disso, a partir de evidncias que expressam a relao entre a produo de valores de
uso e a de valores de troca, entre as instituies do dinheiro e da reciprocidade bem como
entre os meios (tcnicos) e os fins (demandas por mercadorias) da economia poltica nativa,
investigar qual o resultado da maior participao na atividade comercial sobre as esferas
indgenas da produo, da distribuio e do consumo.
O sexto captulo destinado a apresentar as concluses da dissertao.
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CAPTULO 1. Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena
A humanidade est constantemente s voltas com dois processos
contraditrios, dos quais um tende a instaurar a unificao, ao passo
que o outro visa a manter ou restabelecer a diversificao
Claude Lvi-Strauss (1993)
A globalizao da economia capitalista e o discurso ambientalista esto associados ao
fracasso das ideologias consolidadas no ps-guerra, as quais, embora polarizadas pela
dicotomia entre keynesianismo e marxismo, fundamentavam-se no papel de sujeito
econmico do Estado e no iderio progressista da modernizao. Tal fracasso est relacionado
a processos que, alm de desvendarem o carter mtico do projeto desenvolvimentista
(FURTADO, 1974), geraram grande desiluso com a modernidade: o aprofundamento das
desigualdades socioeconmicas entre pessoas e pases (SEN, 2000), a crise ambiental em
seus mltiplos aspectos (LEFF, 2006) e a exacerbao de etnicidades no interior de Estados
nacionais (CARNEIRO DA CUNHA, 1986; MAYBURY-LEWIS, 1983).
Com a queda do socialismo real, o triunfo da ideologia neoliberal trouxe consigo
novos discursos nos quais se observa uma dupla mudana de foco. Por um lado, em
detrimento da polarizao leste-oeste vigente na Guerra Fria e da oposio entre centro e
periferia, maior nfase passou a ser dada relao entre o global e o local (HANN, 2000),
entendidos por seus proponentes como as duas nicas escalas na geografia do mundo
contemporneo (ver a crtica de MORAES, 2005a). Associado s crises econmicas de
endividamento externo e, no caso da Amrica Latina, s lutas pela redemocratizao
observadas ao longo da dcada de 1980, esse movimento gerou uma srie de ajustes
estruturais que incentivaram tanto a (des)regulamentao das economias subdesenvolvidas
pelos mercados globais, como uma diminuio do papel interventor dos Estados: polticas
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macroeconmicas de estabilizao (pela via da recesso), expanso do fluxo de comrcio
internacional, descentralizao poltica e privatizaes. Por outro lado, a ultrapassada
oposio representada pela explorao do homem pelo homem, cristalizada at ento nas
contradies de classes, foi suplantada pela relao mais neutra entre ser humano e ambiente
(RIBEIRO, 1991), o que contribuiu para a consolidao do ambientalismo como uma nova
fora poltica no contexto da globalizao.
Pelo fato da idia de 'desenvolvimento' ser o mito fundador do Ocidente (FURTADO,
1974; GALLOIS, 2001) e, portanto, ocupar lugar central dentro da viso de mundo da
sociedade contempornea, a decadncia do Estado de bem-estar social e do comunismo -
configurando o fim daquilo que Wallerstein (2002) designou por pseudo-batalha da
modernidade - no foi suficiente para suprimir o uso do termo. Pelo contrrio, tanto no plano
conceitual como no domnio poltico foram criadas novas qualificaes para a velha noo de
desenvolvimento, que de to ampla e elstica havia se tornado desprovida de significado2
(RIBEIRO, 1991).
Dentre as novas qualificaes, a de 'desenvolvimento sustentvel' teve grande impacto
na geopoltica capitalista mundial. Como mostra Leff (2006, p. 223), a emergncia da idia de
desenvolvimento sustentvel est relacionada percepo de que "a crise ambiental foi o
grande desmancha-prazeres na comemorao do triunfo do desenvolvimentismo, expressando
uma das falhas mais profundas do modelo civilizatrio da modernidade". Consolidada pelo
relatrio Nosso futuro comum publicado em 1987 (Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, 1991), essa idia em pouco tempo transformou-se na nova ideologia/utopia
do desenvolvimento. Ou seja, tornou-se o "ncleo duro ao redor do qual movimentam-se as
tentativas de colocar o ambientalismo cada vez mais fortemente dentro do campo maior de
2 Obras influentes como Desenvolvimento como liberdade (SEN, 2000), Etnodesenvolvimento: uma
dimenso ignorada do pensamento desenvolvimentista (STAVENHAGEN, 1985), assim como o Relatrio sobre
o desenvolvimento humano (PNUD, 1998) da ONU, mostram a heterogeneidade dos novos tratamentos dados
problemtica do desenvolvimento.
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23
lutas econmicas, ideolgicas e polticas relativas ao desenvolvimento" (RIBEIRO, 1991,
p.75).
A falta de definio semntica e conceitual (LL, 1991) do termo permitiu, no
entanto, sua apropriao por segmentos e atores de vrias orientaes poltico-ideolgicas
como, por exemplo, ONGs, intelectuais, imprensa, partidos polticos, rgos governamentais,
agncias multilaterais e empresas. A utilizao do discurso do desenvolvimento sustentvel,
por exemplo, pelo mundo empresarial e pelo mercado financeiro torna evidente o amplo
espectro ideolgico abarcado pelo termo. Por ser pouco elaborada do ponto de vista da
economia poltica (RIBEIRO, 1991), e por representar uma viso de mundo relativamente
cega alteridade cultural (GALLOIS, 2001; GARDNER; LEWIS, 1996), muitos autores tm
criticado essa noo por seu carter ambguo e generalista.
Seguindo essa tendncia mundial, os processos sincrnicos de globalizao e difuso
da problemtica ambiental desencadearam vrias transformaes no debate sobre o modelo de
desenvolvimento da Amaznia. Encarada at o governo militar como um fundo territorial
geopoliticamente estratgico, a Amaznia era um espao demograficamente vazio a ser
colonizado e integrado ao Estado-Nao (SILVA, 1967). Essa concepo do Brasil como um
espao a ser incorporado e no como uma sociedade a ser desenvolvida terminou por
fundamentar e justificar uma variedade de polticas territoriais que, norteadas por lemas como
integrar para no entregar e dar homens a terras sem homens e terras a homens sem terra,
fundamentavam-se na construo de estradas e na consolidao de frentes pioneiras
agropecurias (MELLO, 2006; MORAN, 1990).
A partir da segunda metade da dcada de 1980, entretanto, os danos ambientais e as
mazelas sociais desencadeados pela estratgia desordenada de integrao da Amaznia ao
territrio e economia nacional passaram a ser usados como bandeiras pelos movimentos
socioambientalistas. A ampliao e internacionalizao da discusso ambiental e a maior
-
24
participao de segmentos da sociedade civil nos mecanismos de gesto (MELLO, 2006)
geraram novas representaes e discursos sobre a floresta e as sociedades amaznicas.
Embora marcadas por divergncias poltico-ideolgicas e caracterizadas por uma fora ainda
restrita, parte dessas novas representaes passou a apontar, quando comparadas ao padro
anterior de desenvolvimento vigente na regio, para caminhos alternativos de se pensar e
fazer poltica e economia na Amaznia.
Com o avano das foras democrticas, que identificavam o planejamento federal com
o autoritarismo dos militares, o Estado foi remodelado, passando a atuar como mediador e
sujeito das posies produtivistas e ambientalistas (CASTRO; MARIN, 1993). Como mostra
Moraes (2005a, p. 101), com a Constituio de 1988 o poder local foi eleito como a instncia
democrtica por excelncia. A profuso e a politizao da temtica ambiental, no entanto,
associada emergncia do Estado social liberal, gerou uma situao peculiar em que a
descentralizao poltica3 do Estado e o processo de privatizao da mquina pblica foram
acompanhados pelo aumento da presso para integrar aspectos ambientais ao planejamento
federal (MELLO, 2006; MORAES, 2005a). Com o abandono, entretanto, da idia de
ordenamento territorial por meio da ao exclusiva do Estado, novos instrumentos de gesto
ambiental da Amaznia foram colocados em prtica (MELLO, 2006). Atravs de parcerias
que visam solues compartilhadas, o espao de ao e regulao do Estado foi reduzido. A
expresso concreta dessa situao foi a exploso da atuao de organizaes no
governamentais (ONGs), agncias multilaterais de fomento e empresas supostamente
socioambientalmente responsveis, caracterizando aquilo que Turner (1995) denominou de
ecopolticas neoliberais.
3 De acordo com Dallari (1986, p. 68) h uma diferena bsica entre descentralizao administrativa e
poltica, sendo a primeira [...] usada para referir a delegao a rgos ou agentes inferiores e subordinados, mantendo a relao hierrquica. A descentralizao poltica tem sido caracterizada como aquela em que se d a
multiplicao de comandos, em que existe uma pluralidade de centros de poder, sem relao hierrquica [...].
-
25
Pressionadas simultaneamente pela sociedade civil e pelas novas formas de
concorrncia capitalista, as empresas por uma questo de sobrevivncia foram foradas a
buscar novos nichos de mercado e a implementar polticas de responsabilidade social e
ambiental (MORSELLO; ADGER, 2007). Nesse contexto, interessante notar que diversas
empresas passaram a utilizar a marca ou o produto Amaznia como uma eficiente
estratgia de marketing, considerando que atualmente a Amaznia exerce grande apelo sobre
a sociedade de consumo global (MELLO, 2006; MORSELLO; ADGER, 2007).
Em contraposio pretensa tendncia da globalizao em homogeneizar espaos e
culturas, observou-se na Amaznia nesse mesmo perodo o fortalecimento da localizao,
entendida como um movimento mundial que, ao questionar o carter de cima pra baixo dos
projetos de desenvolvimento e das polticas pblicas, busca o empoderamento da sociedade
civil e dos grupos locais e prope uma maior valorizao das diferenas culturais (HANN,
2000). Nesse caso, os movimentos sociais e as ONGs so peas-chave dentro da atual
configurao poltica e econmica amaznica.
Essa nova conjuntura poltica, ideolgica e gerencial observada na Amaznia tambm
desencadeou diversas transformaes nas relaes entre sociedades indgenas, Estado,
sociedade civil e mercado. At a dcada de 1980, a retrica indigenista oficial geralmente
localizava as sociedades indgenas no incio de uma escala civilizatria unilinear e no
entendia os territrios indgenas como um fim em si mesmo, mas sim como um instrumento
ou um espao a ser ocupado e incorporado economia nacional. Assim, se, por um lado,
desde o perodo colonial, os territrios indgenas situados em reas de fronteiras constituam
uma eficaz ferramenta geopoltica para a consolidao dos limites do Estado4, os do interior,
por outro, eram considerados como um obstculo ao progresso do pas. Nesse ltimo caso, as
4 Ou, no caso do perodo colonial, para a consolidao da ocupao portuguesa na Amaznia (ver
Farage, 1991). De fato, a grande discusso a respeito da demarcao da TI Raposa-Serra do Sol, no Estado de
Roraima, torna clara a atualidade deste tema no Brasil.
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26
sociedades indgenas ocorriam no ambiente dos projetos a serem implantados pelo governo
federal e no vice-versa (VIVEIROS DE CASTRO; ANDRADE, 1988a). Pelo fato de
constiturem o maior problema ambiental dos empreendimentos e das atividades
econmicas, as sociedades indgenas estavam fadadas ou assimilao, ou extino.
Justificada pela prpria reflexo antropolgica da poca5 e pelo modelo indigenista
protecionista dos irmos Villas-Bas, a pacificao e o processo de assimilao
espontnea das sociedades indgenas pela sociedade brasileira constituam a meta declarada
da poltica indigenista oficial. Com a redemocratizao e o avano do movimento
socioambientalista, no entanto, o indigenismo oficial deparou-se com um impasse
inescapvel, muito bem sintetizado por Alcida Ramos (1998, p. 2):
[...] como se faz e em que consiste essa defesa e proteo dos ndios pelo
Estado, j que o prprio Estado que incentiva a rapacidade civil contra as
populaes indgenas ao abrir ou deixar abrir estradas no meio de territrios
ndios, ao promover ou deixar acontecer a colonizao branca em reas
indgenas?
Como mostra Souza (2000), os eventos desencadeados pela conjuntura poltico-
econmica da segunda metade da dcada de 1980 e pela Constituio Federal de 1988
representaram um duro golpe para o indigenismo estatal: fim da hegemonia dos militares no
poder, surgimento e consolidao de organizaes indgenas e indigenistas e retrao
oramentria da Funai. Tendo os processos de globalizao, descentralizao do Estado e
avano do discurso ambientalista atingido tambm a cena indigenista, observou-se a partir dos
anos 1990 a emergncia do chamado indigenismo pblico-privado transnacional (SOUZA,
2000). Ou seja, paralelamente s mudanas constitucionais - e em parte por conseqncia
destas -, intensificou-se no campo etnopoltico a atuao de diversos novos atores: ONGs,
5 Ver a crtica feita por AZANHA e NOVAES, 1982.
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27
organizaes indgenas, empresas nacionais e estrangeiras, agncias multilaterais de fomento,
universidades e rgos governamentais no ligados diretamente questo indgena.
Pelo fato de representarem aproximadamente um quinto do territrio da Amaznia
brasileira (LENTINI et al., 2003), os territrios indgenas reconhecidos oficialmente passaram
a ser entendidos como peas fundamentais para a conservao ambiental da regio (PERES,
1994). As sociedades indgenas, por sua vez, entraram no foco dos interesses
conservacionistas, devido s funes ambientais que exercem (GALLOIS, 2001). Ainda que
constitua um avano em relao s imagens anteriores construdas pela conscincia nacional
sobre o ndio genrico (ver CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978), essa nova representao, ao
identificar a temtica indgena aos problemas ambientais, terminou por diluir as
especificidades das sociedades indgenas, includas agora no designativo genrico
populaes tradicionais ou povos da floresta.
Dentro desse movimento pela sustentabilidade, a comercializao de PFNMs passou a
ser apresentada como estratgia duplamente eficaz para o desenvolvimento das sociedades
indgenas e, ao mesmo tempo, de conservao ambiental (CLAY, 2002). Baseando-se neste
instrumento, um nmero crescente de projetos de comercializao em reas indgenas foi
estabelecido por meio de parcerias6 (MORSELLO, 2002), vrias das quais entre a Funai e
empresas. Nesse caso, as motivaes para o estabelecimento desses acordos so vrias. Para a
Funai, o estabelecimento de parcerias com empresas uma das formas assumidas pelo
indigenismo pblico-privado, o qual busca solues para a escassez crnica de capacitao e
de recursos financeiros do rgo indigenista (SOUZA, 2000).
Para as empresas, a possibilidade de comercializao de PFNMs oriundos de
territrios indgenas permite acessar recursos naturais controlados por sociedades florestais
6 Seguindo a definio proposta por Mayers e Vermeulen (2002), o termo parceria (partnership)
entendido ao longo da dissertao como o conjunto de relaes e acordos estabelecidos com o objetivo de
beneficiar duas ou mais partes envolvidas em uma determinada atividade econmica.
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28
(MAYERS; VERMEULEN, 2002), atender s demandas da sociedade civil por prticas
corporativas socioambientalmente corretas e associar o nome das empresas causa amaznica
(MORSELLO, 2002) e indigenista. Ou seja, no contexto dessa nova economia simblica
fundamentada na tica ambientalista, para a tica empresarial os territrios indgenas
passaram a representar fontes expressivas de recursos materiais (commodities ambientais) e
imateriais (uso da imagem) (TURNER, 1995). Nesse caso, o fato de os recursos
comercializados serem de origem indgena e amaznica torna-os mais do que simples
mercadorias (cujo valor determinado pelas leis do mercado). Torna-os mercadorias dotadas
de uma qualidade especial, torna-os 'bens ideolgicos' (MLLER, 1997).
A idia de um desenvolvimento sustentvel das sociedades indgenas no , contudo,
consenso. A partir de uma perspectiva antropolgica, as crticas recaem basicamente sobre o
carter genrico da definio consagrada pelo relatrio 'Nosso Futuro Comum'7. Gardner e
Lewis (1996), por exemplo, ao analisarem a idia de satisfao das necessidades bsicas,
argumentam que a definio proposta pelo relatrio peca principalmente por ignorar o fato de
que tais necessidades so culturalmente determinadas. Em contraposio, a noo de
'etnodesenvolvimento', proposta inicialmente pela Declarao de San Jos8 (1981) representa
uma alternativa a um desenvolvimento sustentvel pensado genericamente em nvel mundial.
Criada a partir da 'periferia' (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1993), a definio proposta pela
Declarao (1981, p. 16) refere-se
[...] ampliao e consolidao das esferas de cultura prpria, atravs do
fortalecimento da capacidade autnoma de deciso de uma sociedade
culturalmente diferenciada para orientar seu prprio desenvolvimento e o
7 Segundo o qual desenvolvimento sustentvel aquele que atende as necessidades das geraes atuais
sem comprometer a capacidade de satisfao das necessidades das geraes futuras (ver Comisso Mundial
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1991). 8 Representando um marco na discusso sobre etnodesenvolvimento, a Declarao de San Jos foi
assinada por diversos dirigentes indgenas e no indgenas por ocasio da Reunin de Expertos sobre Etnodesarrollo y Etnocdio em Amrica Latina, ocorrida em San Jos, Costa Rica, em 1981 e auspiciada pela Unesco.
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29
exerccio da autodeterminao, qualquer que seja o nvel que as considera: o
que implica uma organizao eqitativa e prpria do poder. Isto significa que
o grupo tnico unidade poltico-administrativa com autoridade sobre seu
territrio e capacidade de deciso no mbito de seu projeto de
desenvolvimento, dentro de um processo de crescente autonomia e
autogesto [...].
J na teorizao feita por Stavenhagen (1985), a estratgia do etnodesenvovimento
sustenta-se em seis elementos: (i) viso interna ou endgena; (ii) voltada s necessidades
bsicas, pensadas nesse caso de dentro para fora; (iii) orientada para a auto-sustentao em
nvel local; (iv) valorizao das tradies culturais, que no so consideradas como obstculo
ao desenvolvimento; (v) respeito s diferentes concepes (perspectivas micas) de meio
ambiente e (vi) orientada para o povo e para a participao, ao invs da tecnocracia.
Apropriada principalmente por ONGs indigenistas, a nova qualificao foi associada a "[...]
toda e qualquer iniciativa que evidencie que um grupo autctone ou local est disposto e
capaz de se liberar de mecanismos de dependncia" (GALLOIS, 2001, p. 170).
Na medida em que aponta para a autonomia, para a autodeterminao e para a
autogesto de grupos humanos culturalmente diferenciados, essa noo implica uma
transformao nas relaes de poder entre tais grupos e os Estados nacionais que os contm.
Ou seja, a incorporao do etnodesenvolvimento enquanto poltica pblica aponta para o
abandono da idia da incompatibilidade entre as necessidades do desenvolvimento de um
Estado-Nao ideal e a sobrevivncia cultural ou a autonomia parcial de grupos tnicos
minoritrios9. Mais que isso, a considerao da pluralidade tnica dos Estados requer a
reviso do prprio modelo de Estado (STAVENHAGEN, 1985). Segundo Maybury-Lewis
(1983, p. 116) [...] dever-se-a proceder a essa reviso dando-se maior ateno histria dos
9 Como bem observa Maybury-Lewis (1983, p. 115-6), [...] o grito de 'uma s nao indivisvel' [...]
uma arma ideolgica contra os que desejam alterar o status quo e partilhar total e igualmente dos privilgios da
cidadania. especialmente irnico, se nos lembrarmos da idia revolucionria francesa do Estado, baseada na
igualdade e na fraternidade. Hoje em dia, em muitas partes do mundo, as pessoas recorrem sua etnicidade
como um tipo de movimento por direitos civis, de modo a conseguir a igualdade de tratamento que lhes tinha
sido negada em nome da modernizao.
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30
Estados do que as suas caractersticas formais [...], principalmente pelo fato de que [...] os
Estados multi-tnicos so mais a regra do que a exceo [...].
Da mesma forma e com base nessa perspectiva, a relao entre sociedades indgenas e
a economia de mercado pode ser vista por outro prisma. Nesse sentido, o modelo da
rainforest harvest10
, cristalizado nas iniciativas de comercializao de produtos sustentveis
envolvendo empresas e sociedades indgenas, deixa de ser interpretado apenas como
ferramenta para o desenvolvimento dessas sociedades. Autores crticos desse modelo
argumentam que, alm de muitas vezes no representarem uma alternativa concreta para as
atividades ambientalmente predatrias (TURNER, 1995), essas prticas econmicas podem
perpetuar a unilateralidade da relao entre as sociedades indgenas e o mercado: este que
impe s sociedades indgenas o qu, por quanto e como transacionar (AZANHA, 2002,
2005; CORRY, 1993). Alm disso, ao cercear em nome da conservao ambiental o leque de
alternativas econmicas propostas pelos indgenas, as polticas de sustentabilidade indgena
representam uma nova forma de intolerncia (GALLOIS, 2001). Em outras palavras, ao
proporem alternativas de fora pra dentro e ao considerarem essas sociedades como objeto
das polticas de sustentabilidade, tais polticas terminam por negar a autonomia e a capacidade
de autodeterminao dos povos indgenas.
Em contraste, a noo de etnodesenvolvimento enfatiza a questo de como colocar o
ponto de vista indgena sobre o sustentvel em projetos ou polticas pblicas. Nesse caso,
Azanha (2005, p. 18) argumenta que "as regras de cautela frente ao mercado permanecem as
mesmas para o etnodesenvolvimento de qualquer sociedade indgena: olhar a distribuio do
10
De acordo com Turner (1995, p. 113), [...] a idia bsica da abordagem da rainforest harvest ['colheita da floresta'] que demonstrar que os ecossistemas de florestas tropicais podem ser economicamente
produtivos, atravs do envolvimento de comunidades indgenas e outros habitantes da floresta em modos
sustentveis de produo de produtos florestais comercializveis, o nico modo realista de salv-las da
destruio economicamente motivada por fazendeiros, madeireiros e garimpeiros. Fazer o ecossistema gerar
lucro, proponentes dessa abordagem argumentam, no longo prazo um caminho mais efetivo e confivel do que
abordagens convencionais baseadas em ajuda e proteo poltica do governo [...] (traduo livre do ingls).
-
31
tempo, se o mercado o afeta e como; atentar para a repartio dos benefcios, se o foco
permanece para o sustento do grupo familiar". Ou seja, o importante saber se a produo da
sociedade indgena, "apesar de ecologicamente correta, no se sobrepe ao sociologicamente
correto" (grifo do autor)11
.
Mas, a incorporao do ponto de vista indgena sobre o sustentvel esbarra,
paradoxalmente, em alguns esteretipos, legados da antropologia (GALLOIS, 2001). As
interpretaes simplistas das trs fontes de resistncia ao desenvolvimento propostas por
Lvi-Strauss12
(1993), por exemplo, terminaram por transmitir uma imagem das sociedades
indgenas como entidades estticas, vivendo em harmonia com a natureza, contra o
desenvolvimento e, portanto, fora da Histria. Da mesma forma, o argumento de Sahlins
(1978) sobre as duas formas de afluncia13
, embora tenha sido construdo para caracterizar
sociedades caadoras-coletoras, terminou por produzir uma imagem das sociedades indgenas
marcada pela frugalidade, pela tecnologia rudimentar e por necessidades materiais finitas e
poucas. Nas palavras de Gallois (2001, p. 178- 179), [...] a bricolagem que o senso comum
faz dessas interpretaes distintas resultou na viso de povos frgeis, em via de
desaparecimento, sem estrutura para resistir ao impacto do desenvolvimento [...]. desse
conjunto de representaes que decorrem as opinies que ainda hoje classificam as crescentes
demandas e iniciativas econmicas indgenas como tpicas de ndios aculturados ou em vias
11
A crtica de Gallois (2005, p. 30) aponta no mesmo sentido: [...] formular uma poltica pblica de sustentabilidade indgena nos levaria necessariamente a srias contradies [...] No campo indigenista, as polticas pblicas esto atualmente voltadas ao atendimento de demandas emergentes, praticando-se um
assistencialismo que j demonstrou e continua sendo o principal causador da ruptura na sustentabilidade dos
modos de vida indgenas. 12
De acordo com Lvi-Strauss, as trs fontes da resistncia das sociedades indgenas ao desenvolvimento
econmico seriam a vontade de unidade, o respeito pela natureza e a recusa da histria. 13
Segundo Sahlins (1978, P. 8): [...] h duas formas possveis de afluncia. As necessidades podem ser facilmente satisfeitas, seja produzindo muito, seja desejando pouco. A concepo vulgar, de Galbraith, constri
hipteses apropriadas particularmente s economias de mercado: as necessidades dos homens so grandes, para
no dizer infinitas, enquanto seus meios so limitados. Mas, h tambm uma concepo Zen de riqueza, partindo
de premissas um pouco diferente das nossas: que as necessidades humanas so finitas e poucas, e os meios
tcnicos invariveis mas, no conjunto, adequados[...].
-
32
de 'assimilao' pela sociedade nacional, ainda que para as sociedades indgenas essas prticas
possam ser consideradas como sustentveis.
Essa reatualizao de modelos j superados (modelos da assimilao ou dos 'graus de
integrao') insuficiente para a anlise de alguns problemas concretos recentemente
observados pela etnologia indgena amaznica. Em particular, isso verdadeiro no que se
refere questo da mudana social e dinmica das novas formas econmicas indgenas,
como mostram algumas etnografias recentes (ver FISHER, 2000; GORDON, 2006). Ou seja,
a partir do momento em que o incremento da populao e a emergncia de demandas
indgenas relativas autodeterminao e autonomia tornaram evidente que o destino
inexorvel dos povos indgenas nem sempre a extino ou a assimilao pela sociedade
nacional, a evidncia emprica desmontou as hipteses formuladas pela escola 'contatualista'
representada por Darcy Ribeiro (1971) e Roberto Cardoso de Oliveira (1978).
Dado o carter irredutvel (CARNEIRO DA CUNHA, 1986) das 'culturas' indgenas
- ou, segundo Sahlins (1997), que a cultura no um 'objeto' em via de extino - , a etnologia
ofereceu novas abordagens para a questo do contato intertnico. Com base na obra de Lvi-
Strauss (VIVEIROS DE CASTRO, 1999), essa vertente clssica teve grande influncia ao
evidenciar que, a despeito da intensificao das relaes intertnicas e da maior insero das
sociedades indgenas na economia monetria, as formas indgenas continuam a ser
condicionadas por uma razo simblica e por regimes de troca bastante particulares, distintos
da racionalidade econmica capitalista. Mais do que indicadores evolucionistas de
aculturao ou de integrao, fenmenos como o consumismo indgena (GORDON, 2006)
passaram a ser interpretados como processos de apropriao e incorporao de discursos,
instituies e bens externos determinados por essas sociedades a partir de parmetros culturais
prprios. Nas palavras de Viveiros de Castro (2002, p. 339):
-
33
A resposta da antropologia a este processo foi uma bem-vinda dissoluo da
diviso tradicional do trabalho entre especialistas em sociedades 'puras' e
aqueles em sociedades 'aculturadas'. Comea-se a escapar da antinomia entre
uma concepo de sociedades indgenas como atualizaes mecnicas de
princpios estruturais atemporais, o que nos obrigava a reconhecer que a
transformao era algo teoricamente inexplicvel, e uma concepo da
mudana social como resultado inexorvel de determinaes externas s
sociedades indgenas, o que simplesmente substitua a transcendncia
estrutural intrnseca por uma transcendncia histrica extrnseca, resultando
em uma imagem ainda mais mecnica, se possvel, das sociedades nativas.
Da mesma forma, mas em alguns casos fora do paradigma estruturalista, observou-se
um esforo analtico no sentido de compreender as razes objetivas e subjetivas que levam
sujeitos indgenas a participarem da economia de mercado (FISHER, 2000; GODOY, 2001;
MORSELLO, 2002). Tendo como base etnogrfica o noroeste amaznico, Hugh-Jones
(1992), por exemplo, argumenta que a demanda indgena por bens industrializados no nem
o simples produto de uma natureza humana com necessidades ilimitadas, nem o mero
resultado de presses exercidas pela economia capitalista, mas sim a combinao de fatores
internos e externos. Ou seja, a demanda indgena no determinada apenas pela maior
disponibilidade dos bens industrializados, mas tambm pela lgica interna das sociedades
indgenas: o acesso aos bens industrializados viabiliza inovaes simblicas (status) e
tecnolgicas (maior eficincia nas prticas de subsistncia).
Transposto para o campo poltico, esse movimento no campo das idias traduziu-se
em uma maior nfase sobre a necessidade de incorporar as demandas indgenas na formulao
de polticas de interveno. Pressupondo a pesquisa etnogrfica, a prtica do
etnodesenvolvimento refere-se assim ao fomento de atividades econmicas compatveis com
as formas indgenas de produo, circulao e consumo. Ou seja, alternativas que no
transformem o mercado e o dinheiro nos nicos parmetros das relaes sociais internas e
que, por conseqncia, permitam um controle pelas sociedades indgenas sobre a produo
voltada para o mercado, sobre a distribuio dos benefcios e sobre as demandas por produtos
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34
industrializados (AZANHA, 2002). Nesse mesmo sentido, a idia de empoderamento
(GARDNER; LEWIS, 1996) indica uma maior participao indgena nos processos decisrios
e uma modificao nas relaes de poder estabelecidas atravs do mercado, de modo a
quebrar o carter unilateral dessas relaes.
Do ponto de vista terico, portanto, pelo fato de estar fundamentada numa
concepo mais abrangente do desenvolvimento, a qual comporta no apenas variveis
econmicas e ambientais, mas sobretudo a alteridade cultural, que a noo de
etnodesenvolvimento utilizada como um referencial de anlise. Nesse sentido, enquanto a
soluo proposta pelo modelo da rainforest harvest atravs do mercado de PFNMs passa pela
'capitalizao' das sociedades indgenas, a noo de etnodesenvolvimento aponta para uma
'indigenizao' do mercado14
.
14
Esta distino entre capitalizar os indgenas e indigenizar o capitalismo no implica, no entanto, traar
uma linha divisria entre uma economia indgena simblica e uma economia capitalista utilitarista. Pois a cultura
(razo simblica) no est oposta utilidade (razo prtica). Pelo contrrio, nas palavras de Sahlins (2003, p. 8),
[...] a cultura que constitui a utilidade [...]. Ou seja, no s a deciso indgena de participao na economia de mercado tambm utilitarista, como o capitalismo tambm simblico.
-
35
CAPTULO 2. Metodologia
O concreto concreto por ser a sntese de mltiplas
determinaes, logo, unidade do diverso
Karl Marx
Este captulo tem como objetivo apresentar a metodologia da pesquisa e est dividido
em trs partes. Na primeira parte apresentado o fundamento epistemolgico da investigao.
Na segunda parte so caracterizadas a forma como o estudo foi delineado e a justificativa da
escolha tanto da parceria, quanto da sociedade indgena estudada. Por fim, na terceira parte,
so descritas as tcnicas de levantamento de dados adotadas e as dificuldades metodolgicas
encontradas ao longo da investigao.
A pesquisa foi realizada no mbito do projeto 'Parcerias entre comunidades e empresas
para a comercializao de produtos florestais no madeireiros na Amaznia Brasileira:
motivaes, problemas e conseqncias'15
, cujo objetivo era responder s seguintes questes:
(i) quais as motivaes de comunidades e empresas para o estabelecimento dessas parcerias;
(ii) quais as oportunidades e os problemas encontrados; (iii) quais as conseqncias para as
comunidades em termos socioeconmicos e da transformao no uso de recursos naturais e
(iv) quais os arranjos que garantem o sucesso das parcerias. Para atingir tal objetivo foram
analisadas trs parcerias para a comercializao de PFNMs estabelecidas entre empresas e
comunidades na Amaznia Legal brasileira16
. Abordando a terceira dessas parcerias e
15
Coordenado pela Profa. Dra. Carla Morsello, vinculado ao Programa de Ps-Graduao em Cincia
Ambiental da Universidade de So Paulo (Procam-USP) e financiado pelo Kleinhans Award, adminisrado pela
ONG Rainforest Alliance atravs de financiamento concedido coordenadora no perodo 2003-2005. Mais
informaes podem ser encontradas na pgina da internet www.parceriasflorestais.org. 16
(i) A parceria para comercializao dos leos de andiroba e murumuru estabelecida entre a empresa
brasileira de cosmticos Natura e comunidades da Reserva Extrativista (RESEX) do Mdio Juru, estado do
Amazonas; (ii) a parceria para a comercializao do leo de babau, estabelecida entre vrias empresas e a
Associao em reas de Assentamento do estado do Maranho (ASSEMA), composta por quebradeiras de cco e
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36
lanando mo do procedimento metodolgico do projeto de pesquisa do qual ela fruto, a
presente dissertao foi construda, no entanto, a partir de um recorte terico particular,
distinto do referencial da Conservao Biolgica e do Desenvolvimento Local adotado no
projeto de pesquisa.
Se levarmos em considerao a idia de Moraes (2005b), segundo a qual os mtodos
de interpretao da realidade constituem as vias de comunicao entre cincia e filosofia,
sendo o procedimento pelo qual [...] o cientista explicita as categorias e os conceitos
utilizados, define os procedimentos analticos e circunscreve o objeto de investigao [...] (p.
67), torna-se necessrio, no delineamento da pesquisa, o esclarecimento das opes
epistemolgicas adotadas. Ao focalizar a relao entre a mudana nas sociedades indgenas
contemporneas e a comercializao de PFNMs na Amaznia tendo como referncia analtica
a noo de etnodesenvolvimento, a pesquisa foi construda sobre um arcabouo
interdisciplinar situado na fronteira entre a Economia Poltica, a Geografia Poltica e a
Antropologia. A opo pela interdisciplinaridade, entretanto, no opera no sentido da
constituio de um paradigma holstico e totalizante17
que consiga fazer uma espcie de
sntese dos conhecimentos acumulados nestes campos disciplinares.
Pelo contrrio, a pesquisa interdisciplinar no domnio particular das Cincias Humanas
tem um duplo pressuposto epistemolgico: por um lado, a idia da insuficincia e da
parcialidade das narrativas disciplinares (CLIFFORD; MARCUS, 1986) e, por outro, a
constatao, feita por Boudeville (citado por Santos, 1997, p. 102), de que [...] toda cincia
se desenvolve nas fronteiras de outras disciplinas [...]. Ou seja, o recurso
(iii) a parceria para a comercializao do leo de castanha-do-par estabelecida no Mdio Xingu, Estado do Par,
entre Funai, atravs da cooperativa Amazoncoop, e a empresa TBS. 17
Referindo-se temtica ambiental, Moraes (2005b, p. 34) argumenta que as propostas de construo de
um paradigma universalizantes representam [...] srios perigos no que tange a um retorno naturalizante no campo das cincias humanas. Nesse sentido, certas vises organicistas da sociedade, que transformam a riqueza
da vida humana na varivel 'ao antrpica', devem ser avaliadas com cautela para que no ressuscitemos
perspectivas histricas identificadas com o pensamento poltico autoritrio[...].
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interdisciplinaridade tem como objetivo compreender os diversos aspectos de, ou as diferentes
formas de interpretar, um mesmo objeto. Sendo assim, resta esclarecer a maneira pela qual as
diferentes disciplinas que compem o arcabouo interdisciplinar se complementam e
interpenetram na interpretao do fenmeno abordado.
2.1. Fundamentos epistemolgicos
Na medida em que o problema de pesquisa refere-se produo, circulao, troca e
ao consumo de mercadorias, a investigao est situada no campo de interesse da Economia
Poltica. Essas categorias abstratas no constituem, entretanto, esferas isoladas do sistema
econmico, cada uma regida por leis prprias. Pelo contrrio, em sua introduo Crtica da
Economia Poltica (1988) Marx mostra como cada uma dessas dimenses , ao mesmo
tempo, causa e conseqncia de todas as outras. Embora parea uma tautologia, essa
considerao fornece uma chave fundamental para a investigao da relao entre sociedades
indgenas e a economia de mercado, j que a produo de mercadorias pelas sociedades
indgenas tem como contrapartida o consumo de bens industrializados. E, dessa forma, entra-
se aqui em um ciclo vicioso que Fisher (2000), referindo-se aos Xikrin, caracterizou como
uma 'dependncia no sentido clssico': o consumo desses bens cujas tcnicas de produo os
indgenas no dominam torna-se a pr-condio tanto para a produo de mercadorias como
para a reproduo das relaes sociais indgenas.
Ao condicionarem a distribuio dos recursos, ou seja, a parte do todo que cabe a cada
um, a troca e a circulao que fazem da economia uma poltica, como bem observou
-
38
Raffestin (1993)18
. Concretamente, a produo de mercadorias e o consumo de bens
industrializados pelas sociedades indgenas e, inversamente, a produo de bens
industrializados e o consumo de mercadorias indgenas pela sociedade no indgena s podem
ser efetivados atravs da troca e da circulao. no ato da troca que se d a relao
intertnica comercial, e nele tambm que se situa a dimenso poltica dessa relao. Em
outras palavras, na troca que devemos procurar o carter simtrico ou assimtrico das
relaes entre sociedades indgenas e no indgenas estabelecidas atravs do mercado.
Uma das questes fundamentais da Economia Poltica refere-se, portanto, maneira
pela qual uma sociedade se organiza para produzir, distribuir e consumir recursos. Desse
ponto de vista, a economia no constitui uma esfera isolada da vida social e,
conseqentemente, o estudo da economia pressupe o estudo da histria e da sociedade. O
fenmeno investigado, entretanto, est situado alm da simples produo, circulao, troca e
consumo de mercadorias dentro de uma sociedade determinada. Mais que isso, a
comercializao de PFNMs atravs de parcerias configura-se como a sobreposio entre
economias polticas distintas. Nesse contexto, a possibilidade de o modelo da rainforest
harvest no levar em conta as especificidades indgenas nos conduz inevitavelmente
discusso sobre a relao entre Antropologia e Economia Poltica.
Por um lado, a hiptese do modelo da rainforest harvest, de que fazer com que a
floresta gere lucro e de que a integrao ao mercado de produtos florestais um modo realista
de desenvolver as sociedades indgenas, parece estar associada anlise formalista-
instrumentalista no campo da Antropologia Econmica. Segundo Kaplan (1974), o
pressuposto fundamental o de que os modelos abstratos e mecnicos desenvolvidos pela
Cincia Econmica mainstream (neoclssica) no contexto da economia capitalista podem ser
18
Nas palavras do autor (p. 31), [...] coloca-se o problema fundamental da repartio das coisas entre os seres humanos. Ou todo mundo recebe a mesma quantidade de bens e de servios e ento se trata de uma 'eco-
nomia' no sentido etimolgico, ou ento se estabelece um conjunto de critrios que determinam aqui a
abundncia, e ali a rarefao. Ento, no se trata mais de uma economia, mas de uma poltica [...].
-
39
aplicados ao estudo das economias tribais. O significado de 'econmico', nesse caso, [...]
deriva do carter lgico da relao entre meios e fins. Implica um conjunto de regras relativas
eleio entre usos alternativos de meios escassos [...] (POLANYI, 1974, p. 155). Ou seja,
parte-se do princpio de que o indgena , tambm, um Homo economicus.
Por outro lado, em contraponto quilo que Sahlins (1997, p. 43) denominou banho
cido do instrumentalismo, a noo de etnodesenvolvimento fundamenta-se em uma
concepo substantiva19
da economia. O 'econmico', nesse caso, pode ser entendido como
um processo em que a produo, a distribuio e o consumo de recursos requer arranjos
institucionais que assegurem a continuidade desse processo de proviso (POLANYI, 1974).
Partindo do pressuposto da existncia dessas estruturas organizadas, o objeto de estudo da
Antropologia Econmica a variao cultural nos circuitos de produo, distribuio e
consumo20
. Em oposio s abordagens utilitaristas fundamentadas no individualismo
metodolgico21
, sob a perspectiva dessa Antropologia Econmica o fundamental o
entendimento das particularidades das relaes sociais e polticas que esto na base dos
diferentes regimes de produo, troca, consumo e valorao de bens e mercadorias
(APPADURAI, 1996). A concepo formalista-instrumentalista da economia configura-se
assim como um caso particular da concepo substantivista.
Mas, a variao cultural dos regimes econmicos no pode ser compreendida atravs
de especulaes puramente tericas. Embora a teoria possa fornecer um modelo no qual
19
Para uma apresentao mais detalhada da controvrsia entre formalistas e substantivistas ver Godelier
(1974) e Carvalho (1978). 20
Nesse sentido, Mauss (2003) e Sahlins (1974) demonstraram que h pelo menos trs princpios
integradores da organizao econmica, distintos do mercado: a reciprocidade ou troca induzidas por obrigaes
sociais culturalmente determinadas, a canalizao de bens para centros determinados atravs de critrios
polticos ou militares e ocasies rituais. 21
De acordo com a definio fornecida pelo The Cambridge Dictionary of Philosophie (1995), o
individualismo metodolgico (ou reducionismo explanatrio) o mtodo segundo o qual todas as leis do 'todo'
(ou de situaes mais complexas) podem ser deduzidas a partir das leis do 'mais simples' (ou de situaes mais
simples). Nesse sentido, o individualismo metodolgico o oposto do holismo metodolgico. Aplicado ao
campo da teoria econmica utilitarista, o individualismo metodolgico o mtodo segundo o qual as leis gerais
do sistema econmico podem ser deduzidas a partir da ao individual, egosta e maximizadora de utilidades dos
agentes econmicos.
-
40
basear as informaes, a pesquisa e a prtica do etnodesenvolvimento pressupem a
abordagem etnogrfica, o que impede que sejam estabelecidos a priori os meios para se
atingir a autodeterminao. Pois o fato da noo de etnodesenvolvimento levar em
considerao as particularidades das economias polticas indgenas e incorporar o ponto de
vista nativo sobre o 'sustentvel' determina de forma ainda mais enftica a necessidade de se
investigar, por meio da pesquisa de campo, quais so essas particularidades e os pontos de
vista nativos. Isso decorre do fato de que as sociedades indgenas no so um todo
homogneo. Da mesma forma, produzir uma etnografia sobre a relao entre uma sociedade
indgena e a economia de mercado por meio da comercializao de PFNMs sem localizar o
fenmeno em seu devido contexto espao-temporal teria como resultado uma etnografia
abstrata e esttica. Ou seja, a Antropologia Econmica no pode ser pensada sem a
Geografia22
e a Histria.
Se levarmos em considerao as propostas oferecidas por Milton Santos23
(1997) e por
Moraes e Costa (1993)24
, a Geografia Poltica, ao investigar a maneira pela qual no apenas a
produo, mas tambm o poder e a ideologia - entendida aqui como viso de mundo
(MORAES, 2005a) -, produzem o espao, fornece uma perspectiva rica de anlise do
fenmeno estudado. Vista por este prisma, a relao entre sociedades indgenas e a economia
de mercado produz uma transformao no apenas na 'cultura' ou na economia poltica, mas
tambm na forma como os indgenas produzem o prprio territrio. Ou seja, a sobreposio
22
No trata-se, porm, como quis Kant (citado por Milton Santos, 1997, p. 105), de considerar as duas
disciplinas como complementares, relegando primeira o estudo dos acontecimentos que se sucedem no tempo e
segunda o dos que se sucedem no espao. Na proposta de Milton Santos (1997, p. 105), [...] a geografia, na realidade, deve ocupar-se em pesquisar como o tempo se torna espao e de como o tempo passado e o tempo
presente tm, cada qual, um papel especfico no funcionamento do espao atual [...]. 23
Segundo o qual (p. 161) [...] o ato de produzir igualmente o ato de produzir espao [...]. 24
Para esses autores, a Geografia (crtica) pode ser compreendida como uma Cincia Social que estuda os
processos de valorizao do espao que, quando particularizados no espao-tempo, equivalem formao
territorial. E, se considerarmos que na perspectiva da Geografia Poltica a noo de territrio est vinculada ao
exerccio do poder , o processo de valorizao do espao encerra um componente poltico e, portanto, ideolgico.
-
41
entre regimes distintos de produo tambm a sobreposio entre distintas vises de mundo,
formas de organizao poltica e formas de apropriao e valorizao do espao.
A caracterizao, entretanto, das territorialidades dos atores envolvidos na
comercializao de PFNMs no pode prescindir do conhecimento antropolgico, se
considerarmos que [...] um aspecto fundamental da territorialidade humana que ela assume
uma multiplicidade de expresses, o que produz um leque muito amplo de territrios, cada um
com suas especificidades socioculturais [...] (LITTLE, 2002, p. 4). A prpria utilizao da
categoria genrica 'terra indgena', nesse caso, problemtica (ver VIVEIROS DE CASTRO;
SEEGER, 1979).
Dentro dessa leitura geogrfico-antropolgica do problema, a noo de
etnodesenvolvimento aponta para a autonomia e autodeterminao territorial dos povos
indgenas. Essa afirmao, no entanto, no significa que apenas a integridade fsica das Terras
Indgenas deva ser considerada. Mais que isso, etnodesenvolvimento implica o respeito s
formas pelas quais os indgenas se relacionam com o prprio espao e, portanto, suas vises
de mundo e formas de organizao poltica e econmica. Em outras palavras, implica que as
sociedades indgenas sejam consideradas como os sujeitos da produo do prprio territrio, e
no apenas 'ndios' vivendo em TIs 'do' Brasil, ou meros produtores de 'mercadorias indgenas
amaznicas'.
Na medida em que a relao entre a mudana nas sociedades indgenas e a expanso
do mercado verde em territrios tribais na Amaznia no um fenmeno esttico mas sim um
processo dinmico, resta-nos estudar sua particularidade histrica. Caso contrrio, cair-se-a
na limitao do mtodo funcionalista que, segundo Lvi-Strauss (1989, p. 15), consiste na
tentativa de [...] fazer a histria de um presente sem passado [...]. A considerao pela
particularidade histrica do fenmeno, no implica, entretanto, desconsiderar sua estrutura,
isto , sua lgica de funcionamento. Pois histria e estrutura no so mutuamente excludentes,
-
42
mas antes constituem duas faces da mesma moeda que o fenmeno social25
. Em outras
palavras, o fato do fenmeno ser conjuntural no exclui seu carter estrutural.
A discusso sobre histria e estrutura nos conduz questo da especificidade das
Cincias Humanas e, conseqentemente, relao entre teoria e pesquisa. A considerao por
aquilo que Lvi-Strauss (1989, p. 21) interpretou, em aluso obra de Franz Boas, como a
[...] originalidade, particularidade e espontaneidade da vida social de cada agrupamento
humano [...] no significa que o uso de modelos tericos sobre a estrutura das instituies
sociais deva ser descartado. Estudar a particularidade histrica no o mesmo que buscar na
histria todas as explicaes para o fenmeno presente, o que resultaria em um historicismo
sem fundamento. Ou seja, no se trata de [...] negar as instituies em benefcio exclusivo
das sociedades [...] (LVI-STRAUSS, 1989, p. 25). Inversamente, a considerao pela
forma com que as instituies sociais esto estruturalmente articuladas, ou a busca por
regularidades dos fenmenos sociais no implica desconsiderar suas particularidades
histricas. Os fenmenos e as instituies sociais e o curso dos acontecimentos no so
redutveis de serem explicados por meio de teorias gerais da sociedade e da histria, o que
resultaria em uma histria conjectural. Pois nem a histria linear e universal e nem as
sociedades funcionam de acordo com as leis de uma fsica social26
.
25
Nesse sentido, Milton Santos e Lvi-Strauss parecem estar de acordo quanto complementaridade
entre estrutura e histria. Milton Santos (1997, p. 152), por um lado, em sua busca por uma definio do objeto
da Geografia, afirma que, [...] atravs do espao, a histria se torna, ela prpria, estrutura, estruturada em formas. E tais formas, como formas-contedo, influenciam o curso da histria pois elas participam da dialtica
global da sociedade [...]. Lvi-Strauss (1989), por sua vez, mostra que a Etnologia no pode prescindir da Histria para alcanar seus objetivos. Nas palavras do autor (p. 26): [...] quando nos limitamos ao instante presente da vida de uma sociedade, somos, antes de tudo, vtimas de uma iluso: pois tudo histria; o que foi
dito ontem histria, o que foi dito h um minuto histria. Mas, sobretudo, condenamo-nos a no conhecer
este presente, pois somente o desenvolvimento histrico permite avaliar, em suas relaes respectivas, os
elementos do presente [...]. Inversamente, em uma passagem posterior o autor afirma que [...] todo bom livro de histria est impregnado de etnologia [...] (p. 40). 26
Nesse sentido, ao criticar os etngrafos que buscavam alcanar vastas generalizaes a partir de casos
particulares, Lvi-Strauss (1989, p. 28) afirma que: O que interessa ao etnlogo no a universalidade da funo, que est longe de ser certa, e que no poderia ser afirmada sem um estudo atento de todos os costumes
desta ordem e de seu desenvolvimento histrico, e sim que os costumes sejam to variveis. Ora, verdade que
uma disciplina cujo objetivo primeiro, seno o nico, analisar e interpretar as diferenas, poupa-se de todos os
-
43
O mtodo etnogrfico, pela sua prpria natureza emprica (PEIRANO, 1995), adequa-
se bem a esta proposta de articulao entre estrutura e histria ou, em outros termos, entre
teoria e pesquisa. Como argumenta Mauss (1974), a prtica etnogrfica de observar e
classificar fenmenos culturais particulares no pode ser realizada sem um guia terico: [...]
a teoria desempenha seu verdadeiro papel ao incitar a investigao [...] O jovem etngrafo que
vai trabalhar em campo deve estar inteirado sobre sua matria, para poder tirar da superfcie,
com seu trabalho, o que todavia se ignora [...] (p. 12).
As propostas de Lvi-Strauss (1989) e Evans-Pritchard (1978) sobre a relao entre a
Etnografia e a Etnologia francesa ou a Antropologia Social britnica apontam no mesmo
sentido. Para ambos os autores, a Etnografia constitui o primeiro passo da pesquisa sobre
'sociedades primitivas'. As atividades de observao, classificao e anlise dos fenmenos
sociais no podem ser efetivadas, contudo, sem um conhecimento prvio das categorias
conceituais e do corpo geral de conhecimentos da disciplina, sendo esse conhecimento o que
permite distingir entre as observaes feitas por um pesquisador e aquelas feitas por um
leigo. E somente a partir da anlise de sociedades concretas feitas pela Etnografia que o
antroplogo pode, atravs do mtodo comparativo, fazer abstraes e construir modelos ou
snteses tericas sobre o fenmeno investigado27
.
Embora o recurso etnografia possa estabelecer uma 'tenso tima' (PEIRANO, 1995)
entre o universal/terico/estrutural e o particular/etnogrfico/histrico, ele traz consigo outro
problema, referente 'autoridade etnogrfica' (CLIFFORD, 1998). Contrapondo-se ao
problemas s levando em conta as semelhanas. Mas, ao mesmo tempo, perde qualquer meio de distinguir o
geral ao qual pretende, do banal com o qual se contenta. (grifo do autor). 27
De modo mais explcito, a relao entre teoria e pesquisa em antropologia foi assinalada por Peirano
(1995, p. 44) nos seguintes termos: O processo de descoberta antropolgica resulta de um dilogo comparativo, no entre pesquisador e nativo como indivduos, mas entre a teoria acumulada da disciplina e a observao
etnogrfica que traz novos desafios para ser entendida e interpretada. justamente pelo fato de abordar o particular sem prescindir da teoria e de fazer generalizaes sem cair em um positivismo doutrinrio que a
Antropologia pode ser considerada como uma Cincia Humana. Segundo Peirano (p. 45), [...] na medida em que se renova por intermdio da pesquisa de campo a antropologia repele e resiste aos modelos rgidos. Seu
perfil, portanto, dificilmente se adequa a um modelo 'positivista' [...] Tal fato no a impede, contudo, de se
constituir em um conhecimento disciplinar socialmente reconhecido e teoricamente em transformao [...].
-
44
pretenso carter realista e cientfico das modernas etnografias construdas com base no
mtodo da observao participante - e das quais Os Argonautas de Malinowski (1984)
constitui o modelo cannico - a antropologia ps-moderna passou a defender a idia de que a
melhor maneira, talvez a nica, de descrever fatos culturais consiste em interpret-los
(GEERTZ, 1998). Tendo como foco a relao entre a pesquisa de campo e o texto
etnogrfico, essa corrente passou a questionar a possibilidade de se produzir uma descrio
etnogrfica objetiva, isto , dissociada da viso de mundo do etngrafo. Anteriormente
crtica ps-moderna, Evans-Pritchard (1978, p. 35) havia colocado esta mesma questo nos
seguintes termos:
S se pode interpretar o que se v unicamente em termos de experincia
pessoal e em funo do que se [...] Ao ocupar-se de um povo primitivo, o
antroplogo no est apenas a descrever a vida social dessa comunidade o
mais corretamente possvel, mas antes a expressar-se a si mesmo. Neste
aspecto, o seu relatrio deve expressar um juzo moral, especialmente
quando aborda assuntos bastante suscetveis e sobre os quais tem uma
opinio definida; e, assim, os resultados de um estudo dependero, pelo
menos nesta exata medida, do que o indivduo traz consigo e envolve na
investigao.
Conseqentemente, novas estratgias etnogrficas foram propostas para contornar o
problema da representao de sociedades concretas e para levar em considerao a
particularidade do 'ponto de vista nativo'. Embora a presente investigao no tenha como
objetivo produzir uma etnografia ps-moderna, ela contudo no perde de vista a crtica
referente tanto impossibilidade de explicar fenmenos sociais, quanto ao fato de que o
mtodo da observao participante, mais do que viabilizar descries objetivas da realidade,
permite apenas interpret-la28
. A investigao estruturada dessa forma se adequa, assim,
28
De acordo com Sperber (1992), tanto as descries como as interpretaes so formas de
representao. A descrio, por um lado, a forma de representao que est objetivamente adequada coisa
que se quer representar. Na interpretao, por outro, a busca pela adequao emprica menos forosa. Nas
palavras do autor (p. 28-29), as [...] interpretaes parecem estabelecer um compromisso entre a objetividade e
-
45
proposta de Evans-Pritchard, para quem a investigao antropolgica [...] procura padres e
no leis, demonstra a coerncia, mas no as relaes necessrias entre as atividades sociais, e
que tende a interpretar mais que a explicar [...] (1978, p. 103).
Feitas estas consideraes, a presente dissertao tem como objetivo oferecer uma
interpretao sobre a relao entre a mudana na sociedade Asurin e a expanso do mercado
verde no Mdio Xingu viabilizada pela parceria para a comercializao de castanha-do-par
estabelecida entre a Funai, atravs da cooperativa Amazoncoop, e a empresa TBS. Neste caso,
o recurso a um arcabouo interdisciplinar, mais do que fornecer respostas a priori para o
problema abordado, tem como objetivo balizar e nortear a investigao.
Pelo fato, entretanto, de as pesquisas antropolgicas fundamentadas no referencial da
Economia Poltica terem sido criticadas principalmente por estarem muito centradas no
impacto do capitalismo mundial sobre culturas particulares29
, a investigao foi estruturada de
forma a tentar evitar essa viso parcial e unidirecional do fenmeno estudado. Ou seja, a
deciso metodolgica de investigar o fenmeno a partir de duas perspectivas tem como
pressuposto a idia de que, em contraposio s foras homogeneizadoras do capitalismo
mundial, h tendncias locais operando na direo contrria, isto , no sentido da
diversificao (LVI-STRAUSS, 1993; SAHLINS, 1997). A noo de etnodesenvolvimento
foi empregada com o mesmo objetivo. Pois ao estabelecer a autodeterminao indgena como
fim e ao considerar a possibilidade de o mercado constituir um meio para se alcanar esta
finalidade, esta noo constitui um bom indicador do sentido da mudana nas sociedades
consideraes mais subjetivas: a vontade de ser compreendido, o desejo de fazer ver as coisas por um certo
prisma, um compromisso entre a adequao s coisas representadas e a eficcia na formao de idias. 29
Nas palavras de Ortner (1994, p. 387) [...] especificamente, acho a viso de mundo centrada no capitalismo questionvel, especialmente para a Antropologia. No ncleo do modelo est o pressuposto de que
virtualmente tudo o que estudamos j foi tocado ('penetrado') pelo sistema capitalista mundial e que, portanto,
muito do que vemos em nosso trabalho de campo e descrevemos em nossas monografias deva ser entendido
como tendo sido formatado em resposta quele sistema [...] Os problemas derivados dessa viso de mundo
tambm afetam a viso dos economistas polticos sobre a Histria. A Histria , freqentemente, tratada como
algo que chega, como um navio, de fora da sociedade em questo. Nesse sentido, no estudamos a histria
daquela sociedade, mas o impacto da (nossa) histria sobre aquela sociedade (traduo livre do ingls).
-
46
indgenas no contexto das relaes intertnicas e uma boa ferramenta para a avaliao do
mercado de PFNMs como estratgia indigenista.
2.2. Delineamento e justificativa
O delineamento do estudo foi estruturado em dois nveis de anlise: (i) investigao
sobre a parceria para a comercializao de leo de castanha-do-par estabelecida entre a AER
da Funai em Altamira, Estado do Par, atravs da cooperativa Amazoncoop, e a empresa
britnica de cosmticos TBS e (ii) investigao etnogrfica entre os Asurin do Xingu, grupo
tupi situado na TI Koatinemo e envolvido na parceria Amazoncoop-TBS. A pesquisa de
campo foi distribuda em seis perodos (tabela 1).
Tabela 1. Cronograma da coleta de dados em campo
rea de estudo Campo Incio Fim
Altamira 1 01/02/2004 23/02/2004
Altamira/TI Koatinemo 2 03/01/2005 20/03/2005
TI Koatinemo 3 24/05/2005 16/07/2005
Altamira/TI Koatinemo 4 29/08/2005 23/10/2005
Altamira/TI Koatinemo 5 08/04/2006 21/04/2006
TI Koatinemo 6 14/11/2006 21/11/2006
A pesquisa no primeiro nvel (ver captulo 4) teve dois focos principais. Por um lado, a
investigao sobre a histria e a estrutura da parceria Amazoncoop-TBS teve como objetivo
especfico levantar informaes sobre: (i) o histrico da atuao da TBS no Mdio Xingu; (ii)
o histrico da criao da Amazoncoop; (iii) as atividades desenvolvidas pela cooperativa e