o mercado verde indiginista _assurini

202
1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental - PROCAM Fabio Augusto Nogueira Ribeiro Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amazônia indígena: Os Asuriní no Médio Xingu São Paulo 2009

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O trabalho propõe o modelo de sustentabilidade utilizando o exemplo dos indios Assuri do Xingu.

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  • 1

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    Programa de Ps-Graduao em Cincia Ambiental - PROCAM

    Fabio Augusto Nogueira Ribeiro

    Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena:

    Os Asurin no Mdio Xingu

    So Paulo

    2009

  • 2

    FABIO AUGUSTO NOGUEIRA RIBEIRO

    Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena:

    Os Asurin no Mdio Xingu

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Cincia Ambiental da Universidade de So Paulo

    para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Ambiental.

    rea de concentrao: Cincia Ambiental

    Orientadora: Profa. Dra. Carla Morsello

    Co-Orientadora: Profa. Dra. Regina Plo Mller

    So Paulo

    2009

  • 3

    FICHA CATALOGRFICA

  • 4

    FOLHA DE APROVAO

    Fabio Augusto Nogueira Ribeiro

    Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena: os Asurin no Mdio Xingu

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Cincia Ambiental da Universidade de So Paulo

    para obteno do ttulo de Mestre em Cincia Ambiental.

    rea de concentrao: Cincia Ambiental

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ___________________________________________________________________

    Instituio_____________________________ Assinatura:___________________________

    Prof. Dr. ___________________________________________________________________

    Instituio_____________________________ Assinatura:___________________________

    Prof. Dr. ___________________________________________________________________

    Instituio_____________________________ Assinatura:___________________________

  • 5

    Aos meus avs Zs,

    Ao Awakar (in memorian),

    grande Mboakara

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo Profa. Carla Morsello, da Escola de Artes, Cincias e Humanidades da

    USP, pela orientao ao longo dos ltimos cinco anos, por me dar a oportunidade de

    participar do projeto 'Parcerias Florestais' e pela amizade.

    Profa. Regina Mller, do Instituto de Artes da Unicamp, minha co-orientadora, por

    introduzir-me na 'Asurinologia' e pelo incessante incentivo.

    Profa. Fabola Silva, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, pela companhia

    em campo e pelas sugestes tericas e etnogrficas.

    Profa. Dominique Gallois, do Departamento de Antropologia da USP, pelo estmulo

    pesquisa em etnodesenvolvimento.

    Ao Prof. Willian Fisher, do College of Willian and Mary (EUA), pelo incentivo e por

    ter me convidado a apresentar a presente pesquisa no III Encontro da Society for the

    Anthropology in the Lowland Southamerica (SALSA), ocorrido no Reino Unido e na Frana

    em junho de 2008.

    Profa. Sueli Furlan, do Departamento de Geografia da USP, pelos comentrios e

    sugestes oferecidas ao longo da pesquisa por meio do Comit de Orientao do Procam.

    Ao Prof. Jos Eli da Veiga, do Departamento de Economia da USP, pelos comentrios

    feitos pesquisa durante o primeiro Comit de Orientao.

    Renata Faria, pela amizade e pela companhia na primeira viagem de campo.

    Agradeo tambm s outras pesquisadoras do projeto 'Parcerias Florestais': Leny, Lcia e

    Mayt.

    Tambm aos outros jovens asurinlogos que, em algumas ocasies, fizeram-me

    companhia em campo: Alice e Bruno Marcos.

    Aos colegas da turma de 2006 do Procam.

    Ao Igor e ao Lus, pesquisadores do Ncleo de Histria Indgena e do Indigenismo

    (NHII) da USP.

    Agradeo muito ao Luciano e Priscila, da secretaria do Procam, que sempre

    ajudaram-me quando preciso.

    Agradeo CAPES pela bolsa de mestrado concedida e Rainforest Allinace pelo

    financiamento de parte das viagens de campo.

    Ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI), na pessoa de Gilberto Azanha, pelo apoio

    ao indigenista no Mdio Xingu e na Terra Indgena Koatinemo.

  • 7

    Aos amigos Rodrigo Isaas e Andrei Cechin. Tambm aos amigos que, por razes

    desconhecidas, no foram citados aqui.

    minha famlia, por absolutamente tudo: minha me Marisa, meu pai Dario, minhas

    irms Kiki e Bia, cunhados Pingo e Al e sobrinhos Raulzito, Miguelito e Davizito.

    Agradeo demais minha segunda famlia, muito querida tambm. Ao glorioso Dr.

    Henrique Medina, pelas acupunturas e pelas risadas, minha sogra Denise (sem

    comentrios!), e s cunhadas Katxer, Mbatuya e Xaari Wani.

    A todos os meus demais parentes, consangneos e afins.

    Agradeo muito aos Asurin. Se no fossem eles, a presente dissertao simplesmente

    no existiria. Nunca, nunca mesmo, esquecerei o tempo (que espero seja s o primeiro!) em

    que vivi entre os ndios do Koatinemo que, dentre vrias coisas, apresentaram-me a

    impressionante e indescritvel floresta amaznica e o ritual Marak: Takir, Mbatuia, Mburi,

    Ararimyna, Ararijywa, Myr, Paraju, Parakakyja, Kwa i, Tukura, Ipikiri, Takamu,

    Tewutinemi,Tjiwandem, Apeuna, Awakar (in memorian), Kwati, Muruka , Apeb,

    Takunha, Apirakamy, Mboava, Morera, Marakaw, Manduka, Tuw, Wawagi, Kum,

    Mauyra, Mar e todos os outros Awaet.

    Final e principalmente, Kandy-Kwei, estrela-feminina, Jerameriket.

  • 8

    Desenho feito por Myr Asurin em folha de papel

    Motivo: tembekwareropit (enfeite labial)

    Aldeia Koatinemo, junho de 2005

  • 9

    RESUMO

    RIBEIRO, F. A. N. Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena: os

    Asurin no Mdio Xingu. 2009. 179 f. Dissertao (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em

    Cincia Ambiental, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.

    Ao longo das ltimas dcadas, os processos de liberalizao da economia brasileira e avano do

    ambientalismo geraram novas representaes e polticas relativas floresta e aos povos indgenas

    amaznicos. Dentro desse movimento, a comercializao de produtos florestais no madeireiros

    atravs, em alguns casos, de parcerias entre a Fundao Nacional do ndio e empresas passou a ser

    apresentada como uma ferramenta para o desenvolvimento indgena e para a conservao

    ambiental. Sob a perspectiva do etnodesenvolvimento, entretanto, a questo central que

    fundamenta a dissertao se os regimes de produo, circulao e consumo engendrados por

    esse 'indigenismo pblico-privado' so compatveis com as economias polticas nativas. Para

    responder a esta questo, o estudo est baseado no caso dos Asurin do Xingu, grupo Tupi

    includo na parceria para a comercializao de leo de castanha-do-par entre a cooperativa

    Amazoncoop e a empresa britnica The Body Shop. A pesquisa de campo foi estruturada em dois

    nveis. No primeiro, por meio de entrevistas e conversas informais, foram levantadas informaes

    sobre a histria e a economia poltica da parceria. Os resultados obtidos evidenciaram que a

    parceria foi incapaz de romper com a assimetria de poder que caracteriza a relao entre os

    indgenas e a economia de mercado. No segundo nvel, por meio de tcnicas qualitativas

    (entrevistas, conversas informais, diagnstico rural participativo) e quantitativas (surveys e

    observaes de alocao de tempo), foram levantadas informaes relativas participao dos

    Asurin na parceria, bem como os impactos da atividade sobre a economia domstica. Nesse caso,

    a incompatibilidade entre o regime indgena e aquele fomentado pela parceria foi evidenciada pela

    escassez de alimentos no perodo da coleta; pela distribuio desigual dos recursos monetrios

    entre os grupos familiares; pela acentuao do conflito entre dinheiro e reciprocidade e pelo

    incremento da dependncia por bens industrializados. A diversidade, entretanto, das estratgias

    econmicas familiares, a incorporao do dinheiro pelas concepes indgenas de riqueza e a

    continuidade das atividades de subsistncia so expresses de que a maior participao na

    economia de mercado tem como corolrio no a 'aculturao', mas uma transformao na forma

    como a sociedade indgena se reproduz.

    Palavras-chave: sociedades indgenas, Amaznia, Asurin do Xingu, produtos florestais no

    madeireiros, etnodesenvolvimento.

  • 10

    ABSTRACT

    RIBEIRO, F. A. N. Ethnodevelopment and green markets in the indigenous Amazon: the

    Asurin of the Middle Xingu. 2009. 179 f. Master's Degree Dissertation Programa de Ps-

    Graduao em Cincia Ambiental, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2009.

    In the last two decades, the synchronous processes of liberalisation of the Brazilian economy and

    the advancement of environmentalism generated new representations and policies regarding

    Amazonian rainforests and indigenous peoples. Within this movement, the commercialisation of

    non timber forest products, through, in a few cases, the implementation of partnerships between

    the National Indian Foundation of Brazil and companies, began to be presented as a tool for the

    development of indigenous societies, as well as for environmental conservation. Adopting an

    ethnodevelopment perspective, however, the central question posed by this dissertation is whether

    the regimes of production, circulation and consumption devised by this form of 'public-private

    indigenism are compatible with their political economies. To advance this question, this study is

    based on the case of the Asurin do Xingu, a Tupi group included in the partnership for the

    commercialisation of Brazil-nut oil between the Amazoncoop cooperative and the UK-based

    company, The Body Shop. Field research was structured into two levels. At the first level,

    information about the history and the political economy of the partnership were gathered by

    means of informal interviews. Results at this level indicate the partnership has been unable of

    breaking down the historical asymmetry of power which characterises the relationship between

    indigenous societies and the market economy. At the second level, by means of qualitative and

    quantitative techniques of data gathering, we collected information regarding Asurins

    participation in the partnership, as well as the impacts of the trade activity to their domestic

    economy. In this case, the incompatibility between the indigenous economic regime and that

    promoted by the partnership implementation was evidenced by food shortages during the

    harvesting period; by the unequal distribution of monetary incomes among households; by

    uprising conflicts as regards monetary incomes and reciprocal exchanges of goods, and by their

    increasing dependence on industrialised goods. Notwithstanding that, the diversity of household

    economic strategies, the incorporation of money into indigenous conceptualisations of wealth and

    the continuity of traditional subsistence practices are evidences supporting the argument that an

    increase in market participation is not a corollary of indigenous peoples 'acculturation', but a

    transformation in their form of social reproduction.

    Key words: indigenous societies, Amazonia, Asurin do Xingu, non timber forest products,

    ethnodevelopment.

  • 11

    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1. Criana asurin pintada com jenipapo 47

    Figura 2. Localizao da Terra Indgena Koatinemo 48

    Figura 3. Desmatamento e estradas endgenas nas TIs no Mdio Xingu 56

    Figura 4. A tavyve 59

    Figura 5. As casas asurin 59

    Figura 6a. Croqui da aldeia Koatinemo 60

    Figura 6b. Desenho da aldeia feito por Kwa I Asurin 61

    Figura 7. Variao demogrfica Asurin (1971-2005) 62

    Figura 8a. Pirmide demogrfica Asurin - 1976 65

    Figura 8b. Pirmide demogrfica Asurin - 1993 65

    Figura 8c. Pirmide demogrfica Asurin - 2005 66

    Figura 9. Calendrio Sazonal 2005 Asurin do Xingu 72

    Figura 10. Pesca na piracema 78

    Figura 11. A oleira 82

    Figura 12. Os investimentos na aldeia: banheiros e caixas d'gua 95

    Figura 13. Galpo da Amazoncoop em Altamira 97

    Figura 14. A castanheira (Bertholletia excelsa) 118

    Figura 15. Acampamento no igarap Piranhaquara 120

    Figura 16. Alocao do tempo pelos Asurin no perodo da coleta 124

    Figura 17. O produto da coleta comercial 127

    Figura 18. Renda bruta e lquida e cestas de mercadorias por estratgias de coleta 131

    Figura 19. Origem da renda monetria dos grupos familiares asurin (jan-out 2005) 134

    Figura 20. Variao demogrfica na aldeia no perodo da coleta (2005) 136

    Figura 21. Alocao do tempo pelos Asurin em 2005 138

    Figura 22. Origem dos alimentos consumidos pelos Asurin em 2005 (%) 139

    Figura 23. Roa pronta para o plantio 142

    Figura 24a. Renda monetria da castanha e rea de roados dos grupos familiares 143

    Figura 24b. Renda monetria total e rea de roados dos grupos familiares 144

  • 12

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1. Cronograma da coleta de dados em campo 32

    Tabela 2. Informantes no primeiro nvel analtico da pesquisa 36

    Tabela 3. Sumrio de dados de alocao de tempo 44

    Tabela 4. Resultados da coleta de castanhas por classe de idade 126

    Tabela 5. Sntese dos resultados da coleta de castanhas pelos Asurin (jan-mar de 2005) 129

    Tabela 6. Fontes de renda monetria asurin (jan-out de 2005; R$) 133

    Tabela 7. Sntese dos resultados obtidos na atividade agrcola em 2005 141

  • 13

    LISTA DE SIGLAS

    AER Administrao Executiva Regional da Funai

    ALEM Associao Lingstica Evanglica Missionria

    CHE Complexo Hidreltrico

    Cimi Conselho Indigenista Missionrio

    Funai Fundao Nacional do ndio

    Funasa Fundao Nacional de Sade

    INCRA Instituto Nacional da Colonizao e Reforma Agrria

    ONG Organizao No Governamental

    PFNM Produto Florestal No Madeireiro

    TBS The Body Shop

    TBSF The Body Shop Foundation

    TI Terra Indgena

    USP Universidade de So Paulo

    UVA Universidade Vale do Acara

  • 14

    SUMRIO

    Introduo 1

    CAPTULO 1. Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena 7

    CAPTULO 2. Metodologia 21

    2.1. Fundamentos epistemolgicos 23

    2.2. Delineamento e justificativa 31

    2.3. Tcnicas de levantamento de dados 34

    CAPTULO 3. Os Asurin do Koatinemo 46

    3.1. O territrio 49

    3.2. O ambiente regional 53

    3.3. Organizao social e poltica 58

    3.4. A economia indgena 71

    3.5. A relao dos Asurin com a economia de mercado 80

    CAPTULO 4. A parceria Amazoncoop -The Body Shop 86

    4.1. Histria e estrutura 87

    4.2. A economia poltica da parceria 98

    4.3. A parceria sob a perspectiva do etnodesenvolvimento 109

    CAPTULO 5. Os Asurin e o mercado verde no Mdio Xingu 115

    5.1. A comercializao de castanhas 116

    5.2. O mercado e a economia domstica 135

    5.3. Discusso 150

    CAPTULO 6. Concluses 160

    Referncias 164

    ANEXO I Censo Asurin (maro de 2005) 173

  • 15

    Introduo

    Ao longo das ltimas duas dcadas, os processos sincrnicos de globalizao,

    descentralizao poltica do Estado, liberalizao da economia brasileira e avano do

    ambientalismo geraram novas representaes, discursos e polticas relativas floresta e s

    sociedades indgenas amaznicas. Dentro desse movimento histrico, a comercializao de

    produtos florestais no madeireiros (PFNMs), atravs, em alguns casos, de parcerias entre a

    Fundao Nacional do ndio (Funai) e empresas, passou a ser apresentada como uma

    ferramenta para o desenvolvimento local e para a conservao ambiental (CLAY, 2002) ou,

    em outras palavras, para o 'desenvolvimento sustentvel', entendido por Ribeiro (1991) como

    a nova ideologia/utopia do desenvolvimento.

    Sob a perspectiva do 'etnodesenvolvimento', entretanto, cuja nfase recai sobre os

    aspectos sociolgicos das atividades econmicas em contextos intertnicos (AZANHA, 2002;

    STAVENHAGEN, 1985), ainda no esto claras as transformaes geradas por esse

    'indigenismo pblico-privado' sobre o processo mais amplo de mudana social indgena.

    Nesse caso, no h consenso sobre se a comercializao de PFNMs envolvendo comunidades

    tradicionais representa, como sustenta Roddick (1992), um novo paradigma ('mercado

    solidrio', fair trade) no mundo dos negcios ou, pelo contrrio, como sugere Turner (1995),

    um novo mecanismo de apropriao capitalista dos recursos materiais e imateriais de

    territrios indgenas. Tambm no certo se para os indgenas essas alternativas econmicas

    so consideradas 'sustentveis'.

    Da mesma forma, no plano da economia poltica nativa ainda no se sabe bem quais

    so os resultados da maior participao no mercado de PFNMs sobre as esferas da produo,

    da distribuio e do consumo. Sabe-se, porm, que os modelos antropolgicos da 'aculturao'

    ou dos 'graus de integrao' (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978; RIBEIRO, 1971) - ou seja, a

  • 16

    idia de que possvel classificar como 'aculturados' ou em 'vias de integrao' sociedade

    envolvente os povos indgenas que participam na economia de mercado - no se aplicam

    realidade. Pelo contrrio, alguns desenvolvimentos da etnologia indgena amaznica

    contempornea (ver FISHER, 2000; GORDON, 2006) mostram que, a despeito da maior

    participao no mercado, as economias polticas amerndias continuam a ser reguladas por

    regimes bastante particulares.

    Nesse sentido, duas questes relevantes colocadas pela antropologia so abordadas ao

    longo da dissertao. A primeira refere-se s razes pelas quais os indgenas cada vez mais

    decidem participar da economia de mercado. Ou seja, qual a lgica do 'consumismo

    inflacionrio' indgena (GORDON, 2006; HUGH-JONES, 1992)? A segunda se a

    participao na economia de mercado produz ou no descontinuidades nos processos

    institucionais indgenas de proviso de bens. Nesse caso, a noo de etnodesenvolvimento

    fundamenta-se em uma concepo substantiva da economia, entendida como um processo em

    que a produo, a distribuio e o consumo de recursos requer arranjos institucionais que

    assegurem a continuidade desse processo de proviso (POLANYI, 1974). Partindo do

    pressuposto da existncia dessas estruturas organizadas, o objeto de estudo da antropologia

    econmica , portanto, a variao cultural nos circuitos de produo, distribuio e consumo.

    Embora estudos recentes (KUSTERS et al., 2006; MORSELLO, 2002; ROS-TONEN;

    WIERSUM, 2005) apresentem evidncias de que o mercado de PFNMs gera efeitos ambguos

    em termos de desenvolvimento e conservao, no foram realizadas pesquisas sobre o tema a

    partir de uma abordagem que consiga conciliar uma investigao etnogrfica com os

    indicadores do etnodesenvolvimento. Dentre esses indicadores, trs em particular constituem

    o foco do presente estudo: (i) recursos gerados com relativa igualdade nos termos de troca, ou

    seja, com o empoderamento das sociedades indgenas dentro da relao comercial; (ii)

  • 17

    canalizao dos benefcios atravs dos circuitos indgenas de circulao de bens e (iii)

    atividade comercial ajustada s atividades de subsistncia dos grupos familiares.

    Tendo isso em vista, a presente pesquisa tem por objetivo geral investigar quais so as

    transformaes geradas pela participao na comercializao de produtos florestais no

    madeireiros atravs de parcerias entre a Funai e empresas sobre o processo mais amplo de

    mudana na economia poltica indgena.

    Os objetivos especficos so investigar:

    (i) se a parceria abordada constituiu uma ferramenta efetiva para o

    etnodesenvolvimento indgena e, no caso especfico da sociedade indgena estudada,

    (ii) como a atividade de coleta comercial de castanhas foi incorporada pelas estratgias

    econmicas dos grupos familiares e

    (iii) qual o resultado da maior participao na atividade comercial sobre as esferas

    indgenas da produo, da distribuio e do consumo.

    A dissertao procura explorar o problema proposto por meio:

    (i) da anlise da parceria para a comercializao de leo de castanha-do-par

    (Bertholletia excelsa) estabelecida entre a Administrao Executiva Regional (AER) da Funai

    em Altamira, Estado do Par, atravs da cooperativa Amazoncoop, e a empresa britnica de

    cosmticos The Body Shop (TBS) e

    (ii) da investigao etnogrfica entre os Asurin do Xingu, grupo tupi situado na

    poro oriental da Amaznia brasileira e envolvido na parceria em questo.

    Trs so as premissas1 que fundamentam a investigao. A primeira a de que as

    sociedades indgenas no so entidades estticas, situadas fora da Histria. Ou seja, a

    mudana uma caracterstica intrnseca a tais sociedades (LVI-STRAUSS, 1989), assim

    1 Conforme a definio do dicionrio Aurlio (FERREIRA, 1986), o termo 'premissa' entendido aqui

    como os princpios ou teorias que servem de base a um raciocnio ou a um argumento, e no como sinnimo de

    uma realidade no contestvel.

  • 18

    como a qualquer outra. A segunda a de que as trajetrias das sociedades indgenas

    contemporneas so condicionadas tanto por fatores internos, associados lgica estrutural

    dessas sociedades, como externos, vinculados lgica da economia capitalista e da atuao do

    Estado (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Finalmente, a terceira premissa a de que a noo

    de etnodesenvolvimento, mais que aquela de desenvolvimento sustentvel, constitui um bom

    indicador do sentido da mudana social indgena no contexto das relaes intertnicas e,

    portanto, um melhor referencial para a interpretao da relao entre sociedades indgenas e o

    mercado de PFNMs na Amaznia (ver captulo 1).

    Ao propor uma investigao sobre as parcerias para a comercializao de PFNMs

    envolvendo sociedades indgenas na Amaznia a partir de uma investigao etnogrfica e sob

    a perspectiva do etnodesenvolvimento, a dissertao inovadora por duas razes. Por um

    lado, no mbito dos estudos sobre o comrcio de PFNMs envolvendo povos indgenas, apenas

    alguns recorreram investigao etnogrfica (p. ex. FARIA, 2007 e MORSELLO, 2002) e

    nenhuma adotou a perspectiva do etnodesenvolvimento. Por outro lado, dentre as pesquisas

    antropolgicas focadas na relao entre povos indgenas e a economia de mercado (p. ex.

    FISHER, 2000; GODOY, 2001; GORDON, 2006), nenhuma abordou em particular o

    mercado de PFNMs e/ou adotou a perspectiva do etnodesenvolvimento.

    Buscando preencher esta lacuna, a dissertao est estruturada em seis captulos,

    sendo que os trs primeiros procuram apresentar respectivamente a teoria, o mtodo e a

    sociedade indgena estudada, o quarto e o quinto captulo apresentam e discutem os dados

    levantados por meio da pesquisa de campo e o sexto apresenta as concluses do estudo.

    No primeiro captulo apresentado o referencial terico relativo ao tema abordado. O

    objetivo , por um lado, descrever a maneira pela qual os processos sincrnicos de

    globalizao, liberalizao da economia brasileira e avano do ambientalismo geraram

    transformaes nas representaes, nos discursos e nas polticas relativas Amaznia e aos

  • 19

    povos indgenas. Por outro lado, atravs da caracterizao da noo de etnodesenvolvimento,

    o captulo apresenta o modo pelo qual as Cincias Sociais, particularmente a Antropologia,

    tm interpretado as respostas e adaptaes das sociedades indgenas contemporneas s

    condies impostas pela lgica dessa nova economia fundamentada no discurso do

    desenvolvimento sustentvel.

    No captulo dois apresentada a metodologia, bem como seu embasamento

    epistemolgico e, dessa forma, o delineamento do estudo, os fatores que justificaram a

    escolha tanto da parceria como da sociedade indgena estudada, as tcnicas de levantamento

    de dados utilizadas na pesquisa e, por fim, as dificuldades encontradas.

    Por meio da apresentao de dados primrios e secundrios, no terceiro captulo so

    caracterizados o territrio, o ambiente regional, a organizao social e poltica e a economia

    dos Asurin do Xingu a partir de uma perspectiva caracterstica dos estudos etnogrficos. A

    nfase, nesse caso, recai sobre a histria recente do grupo (ou 'histria do contato'), sobre o

    ambiente geogrfico e econmico onde est inserida a Terra Indgena (TI) Koatinemo e sobre

    a atual dinmica das formas indgenas de organizao social, poltica e econmica.

    No captulo quatro so apresentados os resultados da pesquisa de campo sobre a

    parceria para a comercializao de leo de castanha-do-par entre a Funai, por meio da

    cooperativa Amazoncoop, e a empresa The Body Shop. A partir do estudo da histria e da

    economia poltica da parceria, o objetivo investigar se a iniciativa constituiu uma ferramenta

    efetiva para o etnodesenvolvimento indgena. A anlise, nesse caso, recai sobre a maneira

    pela qual a atividade estava organizada, se os processos decisrios contavam com a

    participao indgena, se os recursos monetrios foram obtidos com relativa igualdade nos

    termos de troca e quais as regras estabelecidas entre as partes envolvidas.

    O estudo etnogrfico sobre a participao dos Asurin na comercializao de PFNMs

    apresentado no captulo cinco. Por meio de um conjunto de tcnicas de levantamento de

  • 20

    dados qualitativos e quantitativos, o objetivo investigar como a atividade de coleta

    comercial de castanhas foi incorporada pelas estratgias econmicas dos grupos familiares.

    Alm disso, a partir de evidncias que expressam a relao entre a produo de valores de

    uso e a de valores de troca, entre as instituies do dinheiro e da reciprocidade bem como

    entre os meios (tcnicos) e os fins (demandas por mercadorias) da economia poltica nativa,

    investigar qual o resultado da maior participao na atividade comercial sobre as esferas

    indgenas da produo, da distribuio e do consumo.

    O sexto captulo destinado a apresentar as concluses da dissertao.

  • 21

    CAPTULO 1. Etnodesenvolvimento e o mercado verde na Amaznia indgena

    A humanidade est constantemente s voltas com dois processos

    contraditrios, dos quais um tende a instaurar a unificao, ao passo

    que o outro visa a manter ou restabelecer a diversificao

    Claude Lvi-Strauss (1993)

    A globalizao da economia capitalista e o discurso ambientalista esto associados ao

    fracasso das ideologias consolidadas no ps-guerra, as quais, embora polarizadas pela

    dicotomia entre keynesianismo e marxismo, fundamentavam-se no papel de sujeito

    econmico do Estado e no iderio progressista da modernizao. Tal fracasso est relacionado

    a processos que, alm de desvendarem o carter mtico do projeto desenvolvimentista

    (FURTADO, 1974), geraram grande desiluso com a modernidade: o aprofundamento das

    desigualdades socioeconmicas entre pessoas e pases (SEN, 2000), a crise ambiental em

    seus mltiplos aspectos (LEFF, 2006) e a exacerbao de etnicidades no interior de Estados

    nacionais (CARNEIRO DA CUNHA, 1986; MAYBURY-LEWIS, 1983).

    Com a queda do socialismo real, o triunfo da ideologia neoliberal trouxe consigo

    novos discursos nos quais se observa uma dupla mudana de foco. Por um lado, em

    detrimento da polarizao leste-oeste vigente na Guerra Fria e da oposio entre centro e

    periferia, maior nfase passou a ser dada relao entre o global e o local (HANN, 2000),

    entendidos por seus proponentes como as duas nicas escalas na geografia do mundo

    contemporneo (ver a crtica de MORAES, 2005a). Associado s crises econmicas de

    endividamento externo e, no caso da Amrica Latina, s lutas pela redemocratizao

    observadas ao longo da dcada de 1980, esse movimento gerou uma srie de ajustes

    estruturais que incentivaram tanto a (des)regulamentao das economias subdesenvolvidas

    pelos mercados globais, como uma diminuio do papel interventor dos Estados: polticas

  • 22

    macroeconmicas de estabilizao (pela via da recesso), expanso do fluxo de comrcio

    internacional, descentralizao poltica e privatizaes. Por outro lado, a ultrapassada

    oposio representada pela explorao do homem pelo homem, cristalizada at ento nas

    contradies de classes, foi suplantada pela relao mais neutra entre ser humano e ambiente

    (RIBEIRO, 1991), o que contribuiu para a consolidao do ambientalismo como uma nova

    fora poltica no contexto da globalizao.

    Pelo fato da idia de 'desenvolvimento' ser o mito fundador do Ocidente (FURTADO,

    1974; GALLOIS, 2001) e, portanto, ocupar lugar central dentro da viso de mundo da

    sociedade contempornea, a decadncia do Estado de bem-estar social e do comunismo -

    configurando o fim daquilo que Wallerstein (2002) designou por pseudo-batalha da

    modernidade - no foi suficiente para suprimir o uso do termo. Pelo contrrio, tanto no plano

    conceitual como no domnio poltico foram criadas novas qualificaes para a velha noo de

    desenvolvimento, que de to ampla e elstica havia se tornado desprovida de significado2

    (RIBEIRO, 1991).

    Dentre as novas qualificaes, a de 'desenvolvimento sustentvel' teve grande impacto

    na geopoltica capitalista mundial. Como mostra Leff (2006, p. 223), a emergncia da idia de

    desenvolvimento sustentvel est relacionada percepo de que "a crise ambiental foi o

    grande desmancha-prazeres na comemorao do triunfo do desenvolvimentismo, expressando

    uma das falhas mais profundas do modelo civilizatrio da modernidade". Consolidada pelo

    relatrio Nosso futuro comum publicado em 1987 (Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e

    Desenvolvimento, 1991), essa idia em pouco tempo transformou-se na nova ideologia/utopia

    do desenvolvimento. Ou seja, tornou-se o "ncleo duro ao redor do qual movimentam-se as

    tentativas de colocar o ambientalismo cada vez mais fortemente dentro do campo maior de

    2 Obras influentes como Desenvolvimento como liberdade (SEN, 2000), Etnodesenvolvimento: uma

    dimenso ignorada do pensamento desenvolvimentista (STAVENHAGEN, 1985), assim como o Relatrio sobre

    o desenvolvimento humano (PNUD, 1998) da ONU, mostram a heterogeneidade dos novos tratamentos dados

    problemtica do desenvolvimento.

  • 23

    lutas econmicas, ideolgicas e polticas relativas ao desenvolvimento" (RIBEIRO, 1991,

    p.75).

    A falta de definio semntica e conceitual (LL, 1991) do termo permitiu, no

    entanto, sua apropriao por segmentos e atores de vrias orientaes poltico-ideolgicas

    como, por exemplo, ONGs, intelectuais, imprensa, partidos polticos, rgos governamentais,

    agncias multilaterais e empresas. A utilizao do discurso do desenvolvimento sustentvel,

    por exemplo, pelo mundo empresarial e pelo mercado financeiro torna evidente o amplo

    espectro ideolgico abarcado pelo termo. Por ser pouco elaborada do ponto de vista da

    economia poltica (RIBEIRO, 1991), e por representar uma viso de mundo relativamente

    cega alteridade cultural (GALLOIS, 2001; GARDNER; LEWIS, 1996), muitos autores tm

    criticado essa noo por seu carter ambguo e generalista.

    Seguindo essa tendncia mundial, os processos sincrnicos de globalizao e difuso

    da problemtica ambiental desencadearam vrias transformaes no debate sobre o modelo de

    desenvolvimento da Amaznia. Encarada at o governo militar como um fundo territorial

    geopoliticamente estratgico, a Amaznia era um espao demograficamente vazio a ser

    colonizado e integrado ao Estado-Nao (SILVA, 1967). Essa concepo do Brasil como um

    espao a ser incorporado e no como uma sociedade a ser desenvolvida terminou por

    fundamentar e justificar uma variedade de polticas territoriais que, norteadas por lemas como

    integrar para no entregar e dar homens a terras sem homens e terras a homens sem terra,

    fundamentavam-se na construo de estradas e na consolidao de frentes pioneiras

    agropecurias (MELLO, 2006; MORAN, 1990).

    A partir da segunda metade da dcada de 1980, entretanto, os danos ambientais e as

    mazelas sociais desencadeados pela estratgia desordenada de integrao da Amaznia ao

    territrio e economia nacional passaram a ser usados como bandeiras pelos movimentos

    socioambientalistas. A ampliao e internacionalizao da discusso ambiental e a maior

  • 24

    participao de segmentos da sociedade civil nos mecanismos de gesto (MELLO, 2006)

    geraram novas representaes e discursos sobre a floresta e as sociedades amaznicas.

    Embora marcadas por divergncias poltico-ideolgicas e caracterizadas por uma fora ainda

    restrita, parte dessas novas representaes passou a apontar, quando comparadas ao padro

    anterior de desenvolvimento vigente na regio, para caminhos alternativos de se pensar e

    fazer poltica e economia na Amaznia.

    Com o avano das foras democrticas, que identificavam o planejamento federal com

    o autoritarismo dos militares, o Estado foi remodelado, passando a atuar como mediador e

    sujeito das posies produtivistas e ambientalistas (CASTRO; MARIN, 1993). Como mostra

    Moraes (2005a, p. 101), com a Constituio de 1988 o poder local foi eleito como a instncia

    democrtica por excelncia. A profuso e a politizao da temtica ambiental, no entanto,

    associada emergncia do Estado social liberal, gerou uma situao peculiar em que a

    descentralizao poltica3 do Estado e o processo de privatizao da mquina pblica foram

    acompanhados pelo aumento da presso para integrar aspectos ambientais ao planejamento

    federal (MELLO, 2006; MORAES, 2005a). Com o abandono, entretanto, da idia de

    ordenamento territorial por meio da ao exclusiva do Estado, novos instrumentos de gesto

    ambiental da Amaznia foram colocados em prtica (MELLO, 2006). Atravs de parcerias

    que visam solues compartilhadas, o espao de ao e regulao do Estado foi reduzido. A

    expresso concreta dessa situao foi a exploso da atuao de organizaes no

    governamentais (ONGs), agncias multilaterais de fomento e empresas supostamente

    socioambientalmente responsveis, caracterizando aquilo que Turner (1995) denominou de

    ecopolticas neoliberais.

    3 De acordo com Dallari (1986, p. 68) h uma diferena bsica entre descentralizao administrativa e

    poltica, sendo a primeira [...] usada para referir a delegao a rgos ou agentes inferiores e subordinados, mantendo a relao hierrquica. A descentralizao poltica tem sido caracterizada como aquela em que se d a

    multiplicao de comandos, em que existe uma pluralidade de centros de poder, sem relao hierrquica [...].

  • 25

    Pressionadas simultaneamente pela sociedade civil e pelas novas formas de

    concorrncia capitalista, as empresas por uma questo de sobrevivncia foram foradas a

    buscar novos nichos de mercado e a implementar polticas de responsabilidade social e

    ambiental (MORSELLO; ADGER, 2007). Nesse contexto, interessante notar que diversas

    empresas passaram a utilizar a marca ou o produto Amaznia como uma eficiente

    estratgia de marketing, considerando que atualmente a Amaznia exerce grande apelo sobre

    a sociedade de consumo global (MELLO, 2006; MORSELLO; ADGER, 2007).

    Em contraposio pretensa tendncia da globalizao em homogeneizar espaos e

    culturas, observou-se na Amaznia nesse mesmo perodo o fortalecimento da localizao,

    entendida como um movimento mundial que, ao questionar o carter de cima pra baixo dos

    projetos de desenvolvimento e das polticas pblicas, busca o empoderamento da sociedade

    civil e dos grupos locais e prope uma maior valorizao das diferenas culturais (HANN,

    2000). Nesse caso, os movimentos sociais e as ONGs so peas-chave dentro da atual

    configurao poltica e econmica amaznica.

    Essa nova conjuntura poltica, ideolgica e gerencial observada na Amaznia tambm

    desencadeou diversas transformaes nas relaes entre sociedades indgenas, Estado,

    sociedade civil e mercado. At a dcada de 1980, a retrica indigenista oficial geralmente

    localizava as sociedades indgenas no incio de uma escala civilizatria unilinear e no

    entendia os territrios indgenas como um fim em si mesmo, mas sim como um instrumento

    ou um espao a ser ocupado e incorporado economia nacional. Assim, se, por um lado,

    desde o perodo colonial, os territrios indgenas situados em reas de fronteiras constituam

    uma eficaz ferramenta geopoltica para a consolidao dos limites do Estado4, os do interior,

    por outro, eram considerados como um obstculo ao progresso do pas. Nesse ltimo caso, as

    4 Ou, no caso do perodo colonial, para a consolidao da ocupao portuguesa na Amaznia (ver

    Farage, 1991). De fato, a grande discusso a respeito da demarcao da TI Raposa-Serra do Sol, no Estado de

    Roraima, torna clara a atualidade deste tema no Brasil.

  • 26

    sociedades indgenas ocorriam no ambiente dos projetos a serem implantados pelo governo

    federal e no vice-versa (VIVEIROS DE CASTRO; ANDRADE, 1988a). Pelo fato de

    constiturem o maior problema ambiental dos empreendimentos e das atividades

    econmicas, as sociedades indgenas estavam fadadas ou assimilao, ou extino.

    Justificada pela prpria reflexo antropolgica da poca5 e pelo modelo indigenista

    protecionista dos irmos Villas-Bas, a pacificao e o processo de assimilao

    espontnea das sociedades indgenas pela sociedade brasileira constituam a meta declarada

    da poltica indigenista oficial. Com a redemocratizao e o avano do movimento

    socioambientalista, no entanto, o indigenismo oficial deparou-se com um impasse

    inescapvel, muito bem sintetizado por Alcida Ramos (1998, p. 2):

    [...] como se faz e em que consiste essa defesa e proteo dos ndios pelo

    Estado, j que o prprio Estado que incentiva a rapacidade civil contra as

    populaes indgenas ao abrir ou deixar abrir estradas no meio de territrios

    ndios, ao promover ou deixar acontecer a colonizao branca em reas

    indgenas?

    Como mostra Souza (2000), os eventos desencadeados pela conjuntura poltico-

    econmica da segunda metade da dcada de 1980 e pela Constituio Federal de 1988

    representaram um duro golpe para o indigenismo estatal: fim da hegemonia dos militares no

    poder, surgimento e consolidao de organizaes indgenas e indigenistas e retrao

    oramentria da Funai. Tendo os processos de globalizao, descentralizao do Estado e

    avano do discurso ambientalista atingido tambm a cena indigenista, observou-se a partir dos

    anos 1990 a emergncia do chamado indigenismo pblico-privado transnacional (SOUZA,

    2000). Ou seja, paralelamente s mudanas constitucionais - e em parte por conseqncia

    destas -, intensificou-se no campo etnopoltico a atuao de diversos novos atores: ONGs,

    5 Ver a crtica feita por AZANHA e NOVAES, 1982.

  • 27

    organizaes indgenas, empresas nacionais e estrangeiras, agncias multilaterais de fomento,

    universidades e rgos governamentais no ligados diretamente questo indgena.

    Pelo fato de representarem aproximadamente um quinto do territrio da Amaznia

    brasileira (LENTINI et al., 2003), os territrios indgenas reconhecidos oficialmente passaram

    a ser entendidos como peas fundamentais para a conservao ambiental da regio (PERES,

    1994). As sociedades indgenas, por sua vez, entraram no foco dos interesses

    conservacionistas, devido s funes ambientais que exercem (GALLOIS, 2001). Ainda que

    constitua um avano em relao s imagens anteriores construdas pela conscincia nacional

    sobre o ndio genrico (ver CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978), essa nova representao, ao

    identificar a temtica indgena aos problemas ambientais, terminou por diluir as

    especificidades das sociedades indgenas, includas agora no designativo genrico

    populaes tradicionais ou povos da floresta.

    Dentro desse movimento pela sustentabilidade, a comercializao de PFNMs passou a

    ser apresentada como estratgia duplamente eficaz para o desenvolvimento das sociedades

    indgenas e, ao mesmo tempo, de conservao ambiental (CLAY, 2002). Baseando-se neste

    instrumento, um nmero crescente de projetos de comercializao em reas indgenas foi

    estabelecido por meio de parcerias6 (MORSELLO, 2002), vrias das quais entre a Funai e

    empresas. Nesse caso, as motivaes para o estabelecimento desses acordos so vrias. Para a

    Funai, o estabelecimento de parcerias com empresas uma das formas assumidas pelo

    indigenismo pblico-privado, o qual busca solues para a escassez crnica de capacitao e

    de recursos financeiros do rgo indigenista (SOUZA, 2000).

    Para as empresas, a possibilidade de comercializao de PFNMs oriundos de

    territrios indgenas permite acessar recursos naturais controlados por sociedades florestais

    6 Seguindo a definio proposta por Mayers e Vermeulen (2002), o termo parceria (partnership)

    entendido ao longo da dissertao como o conjunto de relaes e acordos estabelecidos com o objetivo de

    beneficiar duas ou mais partes envolvidas em uma determinada atividade econmica.

  • 28

    (MAYERS; VERMEULEN, 2002), atender s demandas da sociedade civil por prticas

    corporativas socioambientalmente corretas e associar o nome das empresas causa amaznica

    (MORSELLO, 2002) e indigenista. Ou seja, no contexto dessa nova economia simblica

    fundamentada na tica ambientalista, para a tica empresarial os territrios indgenas

    passaram a representar fontes expressivas de recursos materiais (commodities ambientais) e

    imateriais (uso da imagem) (TURNER, 1995). Nesse caso, o fato de os recursos

    comercializados serem de origem indgena e amaznica torna-os mais do que simples

    mercadorias (cujo valor determinado pelas leis do mercado). Torna-os mercadorias dotadas

    de uma qualidade especial, torna-os 'bens ideolgicos' (MLLER, 1997).

    A idia de um desenvolvimento sustentvel das sociedades indgenas no , contudo,

    consenso. A partir de uma perspectiva antropolgica, as crticas recaem basicamente sobre o

    carter genrico da definio consagrada pelo relatrio 'Nosso Futuro Comum'7. Gardner e

    Lewis (1996), por exemplo, ao analisarem a idia de satisfao das necessidades bsicas,

    argumentam que a definio proposta pelo relatrio peca principalmente por ignorar o fato de

    que tais necessidades so culturalmente determinadas. Em contraposio, a noo de

    'etnodesenvolvimento', proposta inicialmente pela Declarao de San Jos8 (1981) representa

    uma alternativa a um desenvolvimento sustentvel pensado genericamente em nvel mundial.

    Criada a partir da 'periferia' (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1993), a definio proposta pela

    Declarao (1981, p. 16) refere-se

    [...] ampliao e consolidao das esferas de cultura prpria, atravs do

    fortalecimento da capacidade autnoma de deciso de uma sociedade

    culturalmente diferenciada para orientar seu prprio desenvolvimento e o

    7 Segundo o qual desenvolvimento sustentvel aquele que atende as necessidades das geraes atuais

    sem comprometer a capacidade de satisfao das necessidades das geraes futuras (ver Comisso Mundial

    sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1991). 8 Representando um marco na discusso sobre etnodesenvolvimento, a Declarao de San Jos foi

    assinada por diversos dirigentes indgenas e no indgenas por ocasio da Reunin de Expertos sobre Etnodesarrollo y Etnocdio em Amrica Latina, ocorrida em San Jos, Costa Rica, em 1981 e auspiciada pela Unesco.

  • 29

    exerccio da autodeterminao, qualquer que seja o nvel que as considera: o

    que implica uma organizao eqitativa e prpria do poder. Isto significa que

    o grupo tnico unidade poltico-administrativa com autoridade sobre seu

    territrio e capacidade de deciso no mbito de seu projeto de

    desenvolvimento, dentro de um processo de crescente autonomia e

    autogesto [...].

    J na teorizao feita por Stavenhagen (1985), a estratgia do etnodesenvovimento

    sustenta-se em seis elementos: (i) viso interna ou endgena; (ii) voltada s necessidades

    bsicas, pensadas nesse caso de dentro para fora; (iii) orientada para a auto-sustentao em

    nvel local; (iv) valorizao das tradies culturais, que no so consideradas como obstculo

    ao desenvolvimento; (v) respeito s diferentes concepes (perspectivas micas) de meio

    ambiente e (vi) orientada para o povo e para a participao, ao invs da tecnocracia.

    Apropriada principalmente por ONGs indigenistas, a nova qualificao foi associada a "[...]

    toda e qualquer iniciativa que evidencie que um grupo autctone ou local est disposto e

    capaz de se liberar de mecanismos de dependncia" (GALLOIS, 2001, p. 170).

    Na medida em que aponta para a autonomia, para a autodeterminao e para a

    autogesto de grupos humanos culturalmente diferenciados, essa noo implica uma

    transformao nas relaes de poder entre tais grupos e os Estados nacionais que os contm.

    Ou seja, a incorporao do etnodesenvolvimento enquanto poltica pblica aponta para o

    abandono da idia da incompatibilidade entre as necessidades do desenvolvimento de um

    Estado-Nao ideal e a sobrevivncia cultural ou a autonomia parcial de grupos tnicos

    minoritrios9. Mais que isso, a considerao da pluralidade tnica dos Estados requer a

    reviso do prprio modelo de Estado (STAVENHAGEN, 1985). Segundo Maybury-Lewis

    (1983, p. 116) [...] dever-se-a proceder a essa reviso dando-se maior ateno histria dos

    9 Como bem observa Maybury-Lewis (1983, p. 115-6), [...] o grito de 'uma s nao indivisvel' [...]

    uma arma ideolgica contra os que desejam alterar o status quo e partilhar total e igualmente dos privilgios da

    cidadania. especialmente irnico, se nos lembrarmos da idia revolucionria francesa do Estado, baseada na

    igualdade e na fraternidade. Hoje em dia, em muitas partes do mundo, as pessoas recorrem sua etnicidade

    como um tipo de movimento por direitos civis, de modo a conseguir a igualdade de tratamento que lhes tinha

    sido negada em nome da modernizao.

  • 30

    Estados do que as suas caractersticas formais [...], principalmente pelo fato de que [...] os

    Estados multi-tnicos so mais a regra do que a exceo [...].

    Da mesma forma e com base nessa perspectiva, a relao entre sociedades indgenas e

    a economia de mercado pode ser vista por outro prisma. Nesse sentido, o modelo da

    rainforest harvest10

    , cristalizado nas iniciativas de comercializao de produtos sustentveis

    envolvendo empresas e sociedades indgenas, deixa de ser interpretado apenas como

    ferramenta para o desenvolvimento dessas sociedades. Autores crticos desse modelo

    argumentam que, alm de muitas vezes no representarem uma alternativa concreta para as

    atividades ambientalmente predatrias (TURNER, 1995), essas prticas econmicas podem

    perpetuar a unilateralidade da relao entre as sociedades indgenas e o mercado: este que

    impe s sociedades indgenas o qu, por quanto e como transacionar (AZANHA, 2002,

    2005; CORRY, 1993). Alm disso, ao cercear em nome da conservao ambiental o leque de

    alternativas econmicas propostas pelos indgenas, as polticas de sustentabilidade indgena

    representam uma nova forma de intolerncia (GALLOIS, 2001). Em outras palavras, ao

    proporem alternativas de fora pra dentro e ao considerarem essas sociedades como objeto

    das polticas de sustentabilidade, tais polticas terminam por negar a autonomia e a capacidade

    de autodeterminao dos povos indgenas.

    Em contraste, a noo de etnodesenvolvimento enfatiza a questo de como colocar o

    ponto de vista indgena sobre o sustentvel em projetos ou polticas pblicas. Nesse caso,

    Azanha (2005, p. 18) argumenta que "as regras de cautela frente ao mercado permanecem as

    mesmas para o etnodesenvolvimento de qualquer sociedade indgena: olhar a distribuio do

    10

    De acordo com Turner (1995, p. 113), [...] a idia bsica da abordagem da rainforest harvest ['colheita da floresta'] que demonstrar que os ecossistemas de florestas tropicais podem ser economicamente

    produtivos, atravs do envolvimento de comunidades indgenas e outros habitantes da floresta em modos

    sustentveis de produo de produtos florestais comercializveis, o nico modo realista de salv-las da

    destruio economicamente motivada por fazendeiros, madeireiros e garimpeiros. Fazer o ecossistema gerar

    lucro, proponentes dessa abordagem argumentam, no longo prazo um caminho mais efetivo e confivel do que

    abordagens convencionais baseadas em ajuda e proteo poltica do governo [...] (traduo livre do ingls).

  • 31

    tempo, se o mercado o afeta e como; atentar para a repartio dos benefcios, se o foco

    permanece para o sustento do grupo familiar". Ou seja, o importante saber se a produo da

    sociedade indgena, "apesar de ecologicamente correta, no se sobrepe ao sociologicamente

    correto" (grifo do autor)11

    .

    Mas, a incorporao do ponto de vista indgena sobre o sustentvel esbarra,

    paradoxalmente, em alguns esteretipos, legados da antropologia (GALLOIS, 2001). As

    interpretaes simplistas das trs fontes de resistncia ao desenvolvimento propostas por

    Lvi-Strauss12

    (1993), por exemplo, terminaram por transmitir uma imagem das sociedades

    indgenas como entidades estticas, vivendo em harmonia com a natureza, contra o

    desenvolvimento e, portanto, fora da Histria. Da mesma forma, o argumento de Sahlins

    (1978) sobre as duas formas de afluncia13

    , embora tenha sido construdo para caracterizar

    sociedades caadoras-coletoras, terminou por produzir uma imagem das sociedades indgenas

    marcada pela frugalidade, pela tecnologia rudimentar e por necessidades materiais finitas e

    poucas. Nas palavras de Gallois (2001, p. 178- 179), [...] a bricolagem que o senso comum

    faz dessas interpretaes distintas resultou na viso de povos frgeis, em via de

    desaparecimento, sem estrutura para resistir ao impacto do desenvolvimento [...]. desse

    conjunto de representaes que decorrem as opinies que ainda hoje classificam as crescentes

    demandas e iniciativas econmicas indgenas como tpicas de ndios aculturados ou em vias

    11

    A crtica de Gallois (2005, p. 30) aponta no mesmo sentido: [...] formular uma poltica pblica de sustentabilidade indgena nos levaria necessariamente a srias contradies [...] No campo indigenista, as polticas pblicas esto atualmente voltadas ao atendimento de demandas emergentes, praticando-se um

    assistencialismo que j demonstrou e continua sendo o principal causador da ruptura na sustentabilidade dos

    modos de vida indgenas. 12

    De acordo com Lvi-Strauss, as trs fontes da resistncia das sociedades indgenas ao desenvolvimento

    econmico seriam a vontade de unidade, o respeito pela natureza e a recusa da histria. 13

    Segundo Sahlins (1978, P. 8): [...] h duas formas possveis de afluncia. As necessidades podem ser facilmente satisfeitas, seja produzindo muito, seja desejando pouco. A concepo vulgar, de Galbraith, constri

    hipteses apropriadas particularmente s economias de mercado: as necessidades dos homens so grandes, para

    no dizer infinitas, enquanto seus meios so limitados. Mas, h tambm uma concepo Zen de riqueza, partindo

    de premissas um pouco diferente das nossas: que as necessidades humanas so finitas e poucas, e os meios

    tcnicos invariveis mas, no conjunto, adequados[...].

  • 32

    de 'assimilao' pela sociedade nacional, ainda que para as sociedades indgenas essas prticas

    possam ser consideradas como sustentveis.

    Essa reatualizao de modelos j superados (modelos da assimilao ou dos 'graus de

    integrao') insuficiente para a anlise de alguns problemas concretos recentemente

    observados pela etnologia indgena amaznica. Em particular, isso verdadeiro no que se

    refere questo da mudana social e dinmica das novas formas econmicas indgenas,

    como mostram algumas etnografias recentes (ver FISHER, 2000; GORDON, 2006). Ou seja,

    a partir do momento em que o incremento da populao e a emergncia de demandas

    indgenas relativas autodeterminao e autonomia tornaram evidente que o destino

    inexorvel dos povos indgenas nem sempre a extino ou a assimilao pela sociedade

    nacional, a evidncia emprica desmontou as hipteses formuladas pela escola 'contatualista'

    representada por Darcy Ribeiro (1971) e Roberto Cardoso de Oliveira (1978).

    Dado o carter irredutvel (CARNEIRO DA CUNHA, 1986) das 'culturas' indgenas

    - ou, segundo Sahlins (1997), que a cultura no um 'objeto' em via de extino - , a etnologia

    ofereceu novas abordagens para a questo do contato intertnico. Com base na obra de Lvi-

    Strauss (VIVEIROS DE CASTRO, 1999), essa vertente clssica teve grande influncia ao

    evidenciar que, a despeito da intensificao das relaes intertnicas e da maior insero das

    sociedades indgenas na economia monetria, as formas indgenas continuam a ser

    condicionadas por uma razo simblica e por regimes de troca bastante particulares, distintos

    da racionalidade econmica capitalista. Mais do que indicadores evolucionistas de

    aculturao ou de integrao, fenmenos como o consumismo indgena (GORDON, 2006)

    passaram a ser interpretados como processos de apropriao e incorporao de discursos,

    instituies e bens externos determinados por essas sociedades a partir de parmetros culturais

    prprios. Nas palavras de Viveiros de Castro (2002, p. 339):

  • 33

    A resposta da antropologia a este processo foi uma bem-vinda dissoluo da

    diviso tradicional do trabalho entre especialistas em sociedades 'puras' e

    aqueles em sociedades 'aculturadas'. Comea-se a escapar da antinomia entre

    uma concepo de sociedades indgenas como atualizaes mecnicas de

    princpios estruturais atemporais, o que nos obrigava a reconhecer que a

    transformao era algo teoricamente inexplicvel, e uma concepo da

    mudana social como resultado inexorvel de determinaes externas s

    sociedades indgenas, o que simplesmente substitua a transcendncia

    estrutural intrnseca por uma transcendncia histrica extrnseca, resultando

    em uma imagem ainda mais mecnica, se possvel, das sociedades nativas.

    Da mesma forma, mas em alguns casos fora do paradigma estruturalista, observou-se

    um esforo analtico no sentido de compreender as razes objetivas e subjetivas que levam

    sujeitos indgenas a participarem da economia de mercado (FISHER, 2000; GODOY, 2001;

    MORSELLO, 2002). Tendo como base etnogrfica o noroeste amaznico, Hugh-Jones

    (1992), por exemplo, argumenta que a demanda indgena por bens industrializados no nem

    o simples produto de uma natureza humana com necessidades ilimitadas, nem o mero

    resultado de presses exercidas pela economia capitalista, mas sim a combinao de fatores

    internos e externos. Ou seja, a demanda indgena no determinada apenas pela maior

    disponibilidade dos bens industrializados, mas tambm pela lgica interna das sociedades

    indgenas: o acesso aos bens industrializados viabiliza inovaes simblicas (status) e

    tecnolgicas (maior eficincia nas prticas de subsistncia).

    Transposto para o campo poltico, esse movimento no campo das idias traduziu-se

    em uma maior nfase sobre a necessidade de incorporar as demandas indgenas na formulao

    de polticas de interveno. Pressupondo a pesquisa etnogrfica, a prtica do

    etnodesenvolvimento refere-se assim ao fomento de atividades econmicas compatveis com

    as formas indgenas de produo, circulao e consumo. Ou seja, alternativas que no

    transformem o mercado e o dinheiro nos nicos parmetros das relaes sociais internas e

    que, por conseqncia, permitam um controle pelas sociedades indgenas sobre a produo

    voltada para o mercado, sobre a distribuio dos benefcios e sobre as demandas por produtos

  • 34

    industrializados (AZANHA, 2002). Nesse mesmo sentido, a idia de empoderamento

    (GARDNER; LEWIS, 1996) indica uma maior participao indgena nos processos decisrios

    e uma modificao nas relaes de poder estabelecidas atravs do mercado, de modo a

    quebrar o carter unilateral dessas relaes.

    Do ponto de vista terico, portanto, pelo fato de estar fundamentada numa

    concepo mais abrangente do desenvolvimento, a qual comporta no apenas variveis

    econmicas e ambientais, mas sobretudo a alteridade cultural, que a noo de

    etnodesenvolvimento utilizada como um referencial de anlise. Nesse sentido, enquanto a

    soluo proposta pelo modelo da rainforest harvest atravs do mercado de PFNMs passa pela

    'capitalizao' das sociedades indgenas, a noo de etnodesenvolvimento aponta para uma

    'indigenizao' do mercado14

    .

    14

    Esta distino entre capitalizar os indgenas e indigenizar o capitalismo no implica, no entanto, traar

    uma linha divisria entre uma economia indgena simblica e uma economia capitalista utilitarista. Pois a cultura

    (razo simblica) no est oposta utilidade (razo prtica). Pelo contrrio, nas palavras de Sahlins (2003, p. 8),

    [...] a cultura que constitui a utilidade [...]. Ou seja, no s a deciso indgena de participao na economia de mercado tambm utilitarista, como o capitalismo tambm simblico.

  • 35

    CAPTULO 2. Metodologia

    O concreto concreto por ser a sntese de mltiplas

    determinaes, logo, unidade do diverso

    Karl Marx

    Este captulo tem como objetivo apresentar a metodologia da pesquisa e est dividido

    em trs partes. Na primeira parte apresentado o fundamento epistemolgico da investigao.

    Na segunda parte so caracterizadas a forma como o estudo foi delineado e a justificativa da

    escolha tanto da parceria, quanto da sociedade indgena estudada. Por fim, na terceira parte,

    so descritas as tcnicas de levantamento de dados adotadas e as dificuldades metodolgicas

    encontradas ao longo da investigao.

    A pesquisa foi realizada no mbito do projeto 'Parcerias entre comunidades e empresas

    para a comercializao de produtos florestais no madeireiros na Amaznia Brasileira:

    motivaes, problemas e conseqncias'15

    , cujo objetivo era responder s seguintes questes:

    (i) quais as motivaes de comunidades e empresas para o estabelecimento dessas parcerias;

    (ii) quais as oportunidades e os problemas encontrados; (iii) quais as conseqncias para as

    comunidades em termos socioeconmicos e da transformao no uso de recursos naturais e

    (iv) quais os arranjos que garantem o sucesso das parcerias. Para atingir tal objetivo foram

    analisadas trs parcerias para a comercializao de PFNMs estabelecidas entre empresas e

    comunidades na Amaznia Legal brasileira16

    . Abordando a terceira dessas parcerias e

    15

    Coordenado pela Profa. Dra. Carla Morsello, vinculado ao Programa de Ps-Graduao em Cincia

    Ambiental da Universidade de So Paulo (Procam-USP) e financiado pelo Kleinhans Award, adminisrado pela

    ONG Rainforest Alliance atravs de financiamento concedido coordenadora no perodo 2003-2005. Mais

    informaes podem ser encontradas na pgina da internet www.parceriasflorestais.org. 16

    (i) A parceria para comercializao dos leos de andiroba e murumuru estabelecida entre a empresa

    brasileira de cosmticos Natura e comunidades da Reserva Extrativista (RESEX) do Mdio Juru, estado do

    Amazonas; (ii) a parceria para a comercializao do leo de babau, estabelecida entre vrias empresas e a

    Associao em reas de Assentamento do estado do Maranho (ASSEMA), composta por quebradeiras de cco e

  • 36

    lanando mo do procedimento metodolgico do projeto de pesquisa do qual ela fruto, a

    presente dissertao foi construda, no entanto, a partir de um recorte terico particular,

    distinto do referencial da Conservao Biolgica e do Desenvolvimento Local adotado no

    projeto de pesquisa.

    Se levarmos em considerao a idia de Moraes (2005b), segundo a qual os mtodos

    de interpretao da realidade constituem as vias de comunicao entre cincia e filosofia,

    sendo o procedimento pelo qual [...] o cientista explicita as categorias e os conceitos

    utilizados, define os procedimentos analticos e circunscreve o objeto de investigao [...] (p.

    67), torna-se necessrio, no delineamento da pesquisa, o esclarecimento das opes

    epistemolgicas adotadas. Ao focalizar a relao entre a mudana nas sociedades indgenas

    contemporneas e a comercializao de PFNMs na Amaznia tendo como referncia analtica

    a noo de etnodesenvolvimento, a pesquisa foi construda sobre um arcabouo

    interdisciplinar situado na fronteira entre a Economia Poltica, a Geografia Poltica e a

    Antropologia. A opo pela interdisciplinaridade, entretanto, no opera no sentido da

    constituio de um paradigma holstico e totalizante17

    que consiga fazer uma espcie de

    sntese dos conhecimentos acumulados nestes campos disciplinares.

    Pelo contrrio, a pesquisa interdisciplinar no domnio particular das Cincias Humanas

    tem um duplo pressuposto epistemolgico: por um lado, a idia da insuficincia e da

    parcialidade das narrativas disciplinares (CLIFFORD; MARCUS, 1986) e, por outro, a

    constatao, feita por Boudeville (citado por Santos, 1997, p. 102), de que [...] toda cincia

    se desenvolve nas fronteiras de outras disciplinas [...]. Ou seja, o recurso

    (iii) a parceria para a comercializao do leo de castanha-do-par estabelecida no Mdio Xingu, Estado do Par,

    entre Funai, atravs da cooperativa Amazoncoop, e a empresa TBS. 17

    Referindo-se temtica ambiental, Moraes (2005b, p. 34) argumenta que as propostas de construo de

    um paradigma universalizantes representam [...] srios perigos no que tange a um retorno naturalizante no campo das cincias humanas. Nesse sentido, certas vises organicistas da sociedade, que transformam a riqueza

    da vida humana na varivel 'ao antrpica', devem ser avaliadas com cautela para que no ressuscitemos

    perspectivas histricas identificadas com o pensamento poltico autoritrio[...].

  • 37

    interdisciplinaridade tem como objetivo compreender os diversos aspectos de, ou as diferentes

    formas de interpretar, um mesmo objeto. Sendo assim, resta esclarecer a maneira pela qual as

    diferentes disciplinas que compem o arcabouo interdisciplinar se complementam e

    interpenetram na interpretao do fenmeno abordado.

    2.1. Fundamentos epistemolgicos

    Na medida em que o problema de pesquisa refere-se produo, circulao, troca e

    ao consumo de mercadorias, a investigao est situada no campo de interesse da Economia

    Poltica. Essas categorias abstratas no constituem, entretanto, esferas isoladas do sistema

    econmico, cada uma regida por leis prprias. Pelo contrrio, em sua introduo Crtica da

    Economia Poltica (1988) Marx mostra como cada uma dessas dimenses , ao mesmo

    tempo, causa e conseqncia de todas as outras. Embora parea uma tautologia, essa

    considerao fornece uma chave fundamental para a investigao da relao entre sociedades

    indgenas e a economia de mercado, j que a produo de mercadorias pelas sociedades

    indgenas tem como contrapartida o consumo de bens industrializados. E, dessa forma, entra-

    se aqui em um ciclo vicioso que Fisher (2000), referindo-se aos Xikrin, caracterizou como

    uma 'dependncia no sentido clssico': o consumo desses bens cujas tcnicas de produo os

    indgenas no dominam torna-se a pr-condio tanto para a produo de mercadorias como

    para a reproduo das relaes sociais indgenas.

    Ao condicionarem a distribuio dos recursos, ou seja, a parte do todo que cabe a cada

    um, a troca e a circulao que fazem da economia uma poltica, como bem observou

  • 38

    Raffestin (1993)18

    . Concretamente, a produo de mercadorias e o consumo de bens

    industrializados pelas sociedades indgenas e, inversamente, a produo de bens

    industrializados e o consumo de mercadorias indgenas pela sociedade no indgena s podem

    ser efetivados atravs da troca e da circulao. no ato da troca que se d a relao

    intertnica comercial, e nele tambm que se situa a dimenso poltica dessa relao. Em

    outras palavras, na troca que devemos procurar o carter simtrico ou assimtrico das

    relaes entre sociedades indgenas e no indgenas estabelecidas atravs do mercado.

    Uma das questes fundamentais da Economia Poltica refere-se, portanto, maneira

    pela qual uma sociedade se organiza para produzir, distribuir e consumir recursos. Desse

    ponto de vista, a economia no constitui uma esfera isolada da vida social e,

    conseqentemente, o estudo da economia pressupe o estudo da histria e da sociedade. O

    fenmeno investigado, entretanto, est situado alm da simples produo, circulao, troca e

    consumo de mercadorias dentro de uma sociedade determinada. Mais que isso, a

    comercializao de PFNMs atravs de parcerias configura-se como a sobreposio entre

    economias polticas distintas. Nesse contexto, a possibilidade de o modelo da rainforest

    harvest no levar em conta as especificidades indgenas nos conduz inevitavelmente

    discusso sobre a relao entre Antropologia e Economia Poltica.

    Por um lado, a hiptese do modelo da rainforest harvest, de que fazer com que a

    floresta gere lucro e de que a integrao ao mercado de produtos florestais um modo realista

    de desenvolver as sociedades indgenas, parece estar associada anlise formalista-

    instrumentalista no campo da Antropologia Econmica. Segundo Kaplan (1974), o

    pressuposto fundamental o de que os modelos abstratos e mecnicos desenvolvidos pela

    Cincia Econmica mainstream (neoclssica) no contexto da economia capitalista podem ser

    18

    Nas palavras do autor (p. 31), [...] coloca-se o problema fundamental da repartio das coisas entre os seres humanos. Ou todo mundo recebe a mesma quantidade de bens e de servios e ento se trata de uma 'eco-

    nomia' no sentido etimolgico, ou ento se estabelece um conjunto de critrios que determinam aqui a

    abundncia, e ali a rarefao. Ento, no se trata mais de uma economia, mas de uma poltica [...].

  • 39

    aplicados ao estudo das economias tribais. O significado de 'econmico', nesse caso, [...]

    deriva do carter lgico da relao entre meios e fins. Implica um conjunto de regras relativas

    eleio entre usos alternativos de meios escassos [...] (POLANYI, 1974, p. 155). Ou seja,

    parte-se do princpio de que o indgena , tambm, um Homo economicus.

    Por outro lado, em contraponto quilo que Sahlins (1997, p. 43) denominou banho

    cido do instrumentalismo, a noo de etnodesenvolvimento fundamenta-se em uma

    concepo substantiva19

    da economia. O 'econmico', nesse caso, pode ser entendido como

    um processo em que a produo, a distribuio e o consumo de recursos requer arranjos

    institucionais que assegurem a continuidade desse processo de proviso (POLANYI, 1974).

    Partindo do pressuposto da existncia dessas estruturas organizadas, o objeto de estudo da

    Antropologia Econmica a variao cultural nos circuitos de produo, distribuio e

    consumo20

    . Em oposio s abordagens utilitaristas fundamentadas no individualismo

    metodolgico21

    , sob a perspectiva dessa Antropologia Econmica o fundamental o

    entendimento das particularidades das relaes sociais e polticas que esto na base dos

    diferentes regimes de produo, troca, consumo e valorao de bens e mercadorias

    (APPADURAI, 1996). A concepo formalista-instrumentalista da economia configura-se

    assim como um caso particular da concepo substantivista.

    Mas, a variao cultural dos regimes econmicos no pode ser compreendida atravs

    de especulaes puramente tericas. Embora a teoria possa fornecer um modelo no qual

    19

    Para uma apresentao mais detalhada da controvrsia entre formalistas e substantivistas ver Godelier

    (1974) e Carvalho (1978). 20

    Nesse sentido, Mauss (2003) e Sahlins (1974) demonstraram que h pelo menos trs princpios

    integradores da organizao econmica, distintos do mercado: a reciprocidade ou troca induzidas por obrigaes

    sociais culturalmente determinadas, a canalizao de bens para centros determinados atravs de critrios

    polticos ou militares e ocasies rituais. 21

    De acordo com a definio fornecida pelo The Cambridge Dictionary of Philosophie (1995), o

    individualismo metodolgico (ou reducionismo explanatrio) o mtodo segundo o qual todas as leis do 'todo'

    (ou de situaes mais complexas) podem ser deduzidas a partir das leis do 'mais simples' (ou de situaes mais

    simples). Nesse sentido, o individualismo metodolgico o oposto do holismo metodolgico. Aplicado ao

    campo da teoria econmica utilitarista, o individualismo metodolgico o mtodo segundo o qual as leis gerais

    do sistema econmico podem ser deduzidas a partir da ao individual, egosta e maximizadora de utilidades dos

    agentes econmicos.

  • 40

    basear as informaes, a pesquisa e a prtica do etnodesenvolvimento pressupem a

    abordagem etnogrfica, o que impede que sejam estabelecidos a priori os meios para se

    atingir a autodeterminao. Pois o fato da noo de etnodesenvolvimento levar em

    considerao as particularidades das economias polticas indgenas e incorporar o ponto de

    vista nativo sobre o 'sustentvel' determina de forma ainda mais enftica a necessidade de se

    investigar, por meio da pesquisa de campo, quais so essas particularidades e os pontos de

    vista nativos. Isso decorre do fato de que as sociedades indgenas no so um todo

    homogneo. Da mesma forma, produzir uma etnografia sobre a relao entre uma sociedade

    indgena e a economia de mercado por meio da comercializao de PFNMs sem localizar o

    fenmeno em seu devido contexto espao-temporal teria como resultado uma etnografia

    abstrata e esttica. Ou seja, a Antropologia Econmica no pode ser pensada sem a

    Geografia22

    e a Histria.

    Se levarmos em considerao as propostas oferecidas por Milton Santos23

    (1997) e por

    Moraes e Costa (1993)24

    , a Geografia Poltica, ao investigar a maneira pela qual no apenas a

    produo, mas tambm o poder e a ideologia - entendida aqui como viso de mundo

    (MORAES, 2005a) -, produzem o espao, fornece uma perspectiva rica de anlise do

    fenmeno estudado. Vista por este prisma, a relao entre sociedades indgenas e a economia

    de mercado produz uma transformao no apenas na 'cultura' ou na economia poltica, mas

    tambm na forma como os indgenas produzem o prprio territrio. Ou seja, a sobreposio

    22

    No trata-se, porm, como quis Kant (citado por Milton Santos, 1997, p. 105), de considerar as duas

    disciplinas como complementares, relegando primeira o estudo dos acontecimentos que se sucedem no tempo e

    segunda o dos que se sucedem no espao. Na proposta de Milton Santos (1997, p. 105), [...] a geografia, na realidade, deve ocupar-se em pesquisar como o tempo se torna espao e de como o tempo passado e o tempo

    presente tm, cada qual, um papel especfico no funcionamento do espao atual [...]. 23

    Segundo o qual (p. 161) [...] o ato de produzir igualmente o ato de produzir espao [...]. 24

    Para esses autores, a Geografia (crtica) pode ser compreendida como uma Cincia Social que estuda os

    processos de valorizao do espao que, quando particularizados no espao-tempo, equivalem formao

    territorial. E, se considerarmos que na perspectiva da Geografia Poltica a noo de territrio est vinculada ao

    exerccio do poder , o processo de valorizao do espao encerra um componente poltico e, portanto, ideolgico.

  • 41

    entre regimes distintos de produo tambm a sobreposio entre distintas vises de mundo,

    formas de organizao poltica e formas de apropriao e valorizao do espao.

    A caracterizao, entretanto, das territorialidades dos atores envolvidos na

    comercializao de PFNMs no pode prescindir do conhecimento antropolgico, se

    considerarmos que [...] um aspecto fundamental da territorialidade humana que ela assume

    uma multiplicidade de expresses, o que produz um leque muito amplo de territrios, cada um

    com suas especificidades socioculturais [...] (LITTLE, 2002, p. 4). A prpria utilizao da

    categoria genrica 'terra indgena', nesse caso, problemtica (ver VIVEIROS DE CASTRO;

    SEEGER, 1979).

    Dentro dessa leitura geogrfico-antropolgica do problema, a noo de

    etnodesenvolvimento aponta para a autonomia e autodeterminao territorial dos povos

    indgenas. Essa afirmao, no entanto, no significa que apenas a integridade fsica das Terras

    Indgenas deva ser considerada. Mais que isso, etnodesenvolvimento implica o respeito s

    formas pelas quais os indgenas se relacionam com o prprio espao e, portanto, suas vises

    de mundo e formas de organizao poltica e econmica. Em outras palavras, implica que as

    sociedades indgenas sejam consideradas como os sujeitos da produo do prprio territrio, e

    no apenas 'ndios' vivendo em TIs 'do' Brasil, ou meros produtores de 'mercadorias indgenas

    amaznicas'.

    Na medida em que a relao entre a mudana nas sociedades indgenas e a expanso

    do mercado verde em territrios tribais na Amaznia no um fenmeno esttico mas sim um

    processo dinmico, resta-nos estudar sua particularidade histrica. Caso contrrio, cair-se-a

    na limitao do mtodo funcionalista que, segundo Lvi-Strauss (1989, p. 15), consiste na

    tentativa de [...] fazer a histria de um presente sem passado [...]. A considerao pela

    particularidade histrica do fenmeno, no implica, entretanto, desconsiderar sua estrutura,

    isto , sua lgica de funcionamento. Pois histria e estrutura no so mutuamente excludentes,

  • 42

    mas antes constituem duas faces da mesma moeda que o fenmeno social25

    . Em outras

    palavras, o fato do fenmeno ser conjuntural no exclui seu carter estrutural.

    A discusso sobre histria e estrutura nos conduz questo da especificidade das

    Cincias Humanas e, conseqentemente, relao entre teoria e pesquisa. A considerao por

    aquilo que Lvi-Strauss (1989, p. 21) interpretou, em aluso obra de Franz Boas, como a

    [...] originalidade, particularidade e espontaneidade da vida social de cada agrupamento

    humano [...] no significa que o uso de modelos tericos sobre a estrutura das instituies

    sociais deva ser descartado. Estudar a particularidade histrica no o mesmo que buscar na

    histria todas as explicaes para o fenmeno presente, o que resultaria em um historicismo

    sem fundamento. Ou seja, no se trata de [...] negar as instituies em benefcio exclusivo

    das sociedades [...] (LVI-STRAUSS, 1989, p. 25). Inversamente, a considerao pela

    forma com que as instituies sociais esto estruturalmente articuladas, ou a busca por

    regularidades dos fenmenos sociais no implica desconsiderar suas particularidades

    histricas. Os fenmenos e as instituies sociais e o curso dos acontecimentos no so

    redutveis de serem explicados por meio de teorias gerais da sociedade e da histria, o que

    resultaria em uma histria conjectural. Pois nem a histria linear e universal e nem as

    sociedades funcionam de acordo com as leis de uma fsica social26

    .

    25

    Nesse sentido, Milton Santos e Lvi-Strauss parecem estar de acordo quanto complementaridade

    entre estrutura e histria. Milton Santos (1997, p. 152), por um lado, em sua busca por uma definio do objeto

    da Geografia, afirma que, [...] atravs do espao, a histria se torna, ela prpria, estrutura, estruturada em formas. E tais formas, como formas-contedo, influenciam o curso da histria pois elas participam da dialtica

    global da sociedade [...]. Lvi-Strauss (1989), por sua vez, mostra que a Etnologia no pode prescindir da Histria para alcanar seus objetivos. Nas palavras do autor (p. 26): [...] quando nos limitamos ao instante presente da vida de uma sociedade, somos, antes de tudo, vtimas de uma iluso: pois tudo histria; o que foi

    dito ontem histria, o que foi dito h um minuto histria. Mas, sobretudo, condenamo-nos a no conhecer

    este presente, pois somente o desenvolvimento histrico permite avaliar, em suas relaes respectivas, os

    elementos do presente [...]. Inversamente, em uma passagem posterior o autor afirma que [...] todo bom livro de histria est impregnado de etnologia [...] (p. 40). 26

    Nesse sentido, ao criticar os etngrafos que buscavam alcanar vastas generalizaes a partir de casos

    particulares, Lvi-Strauss (1989, p. 28) afirma que: O que interessa ao etnlogo no a universalidade da funo, que est longe de ser certa, e que no poderia ser afirmada sem um estudo atento de todos os costumes

    desta ordem e de seu desenvolvimento histrico, e sim que os costumes sejam to variveis. Ora, verdade que

    uma disciplina cujo objetivo primeiro, seno o nico, analisar e interpretar as diferenas, poupa-se de todos os

  • 43

    O mtodo etnogrfico, pela sua prpria natureza emprica (PEIRANO, 1995), adequa-

    se bem a esta proposta de articulao entre estrutura e histria ou, em outros termos, entre

    teoria e pesquisa. Como argumenta Mauss (1974), a prtica etnogrfica de observar e

    classificar fenmenos culturais particulares no pode ser realizada sem um guia terico: [...]

    a teoria desempenha seu verdadeiro papel ao incitar a investigao [...] O jovem etngrafo que

    vai trabalhar em campo deve estar inteirado sobre sua matria, para poder tirar da superfcie,

    com seu trabalho, o que todavia se ignora [...] (p. 12).

    As propostas de Lvi-Strauss (1989) e Evans-Pritchard (1978) sobre a relao entre a

    Etnografia e a Etnologia francesa ou a Antropologia Social britnica apontam no mesmo

    sentido. Para ambos os autores, a Etnografia constitui o primeiro passo da pesquisa sobre

    'sociedades primitivas'. As atividades de observao, classificao e anlise dos fenmenos

    sociais no podem ser efetivadas, contudo, sem um conhecimento prvio das categorias

    conceituais e do corpo geral de conhecimentos da disciplina, sendo esse conhecimento o que

    permite distingir entre as observaes feitas por um pesquisador e aquelas feitas por um

    leigo. E somente a partir da anlise de sociedades concretas feitas pela Etnografia que o

    antroplogo pode, atravs do mtodo comparativo, fazer abstraes e construir modelos ou

    snteses tericas sobre o fenmeno investigado27

    .

    Embora o recurso etnografia possa estabelecer uma 'tenso tima' (PEIRANO, 1995)

    entre o universal/terico/estrutural e o particular/etnogrfico/histrico, ele traz consigo outro

    problema, referente 'autoridade etnogrfica' (CLIFFORD, 1998). Contrapondo-se ao

    problemas s levando em conta as semelhanas. Mas, ao mesmo tempo, perde qualquer meio de distinguir o

    geral ao qual pretende, do banal com o qual se contenta. (grifo do autor). 27

    De modo mais explcito, a relao entre teoria e pesquisa em antropologia foi assinalada por Peirano

    (1995, p. 44) nos seguintes termos: O processo de descoberta antropolgica resulta de um dilogo comparativo, no entre pesquisador e nativo como indivduos, mas entre a teoria acumulada da disciplina e a observao

    etnogrfica que traz novos desafios para ser entendida e interpretada. justamente pelo fato de abordar o particular sem prescindir da teoria e de fazer generalizaes sem cair em um positivismo doutrinrio que a

    Antropologia pode ser considerada como uma Cincia Humana. Segundo Peirano (p. 45), [...] na medida em que se renova por intermdio da pesquisa de campo a antropologia repele e resiste aos modelos rgidos. Seu

    perfil, portanto, dificilmente se adequa a um modelo 'positivista' [...] Tal fato no a impede, contudo, de se

    constituir em um conhecimento disciplinar socialmente reconhecido e teoricamente em transformao [...].

  • 44

    pretenso carter realista e cientfico das modernas etnografias construdas com base no

    mtodo da observao participante - e das quais Os Argonautas de Malinowski (1984)

    constitui o modelo cannico - a antropologia ps-moderna passou a defender a idia de que a

    melhor maneira, talvez a nica, de descrever fatos culturais consiste em interpret-los

    (GEERTZ, 1998). Tendo como foco a relao entre a pesquisa de campo e o texto

    etnogrfico, essa corrente passou a questionar a possibilidade de se produzir uma descrio

    etnogrfica objetiva, isto , dissociada da viso de mundo do etngrafo. Anteriormente

    crtica ps-moderna, Evans-Pritchard (1978, p. 35) havia colocado esta mesma questo nos

    seguintes termos:

    S se pode interpretar o que se v unicamente em termos de experincia

    pessoal e em funo do que se [...] Ao ocupar-se de um povo primitivo, o

    antroplogo no est apenas a descrever a vida social dessa comunidade o

    mais corretamente possvel, mas antes a expressar-se a si mesmo. Neste

    aspecto, o seu relatrio deve expressar um juzo moral, especialmente

    quando aborda assuntos bastante suscetveis e sobre os quais tem uma

    opinio definida; e, assim, os resultados de um estudo dependero, pelo

    menos nesta exata medida, do que o indivduo traz consigo e envolve na

    investigao.

    Conseqentemente, novas estratgias etnogrficas foram propostas para contornar o

    problema da representao de sociedades concretas e para levar em considerao a

    particularidade do 'ponto de vista nativo'. Embora a presente investigao no tenha como

    objetivo produzir uma etnografia ps-moderna, ela contudo no perde de vista a crtica

    referente tanto impossibilidade de explicar fenmenos sociais, quanto ao fato de que o

    mtodo da observao participante, mais do que viabilizar descries objetivas da realidade,

    permite apenas interpret-la28

    . A investigao estruturada dessa forma se adequa, assim,

    28

    De acordo com Sperber (1992), tanto as descries como as interpretaes so formas de

    representao. A descrio, por um lado, a forma de representao que est objetivamente adequada coisa

    que se quer representar. Na interpretao, por outro, a busca pela adequao emprica menos forosa. Nas

    palavras do autor (p. 28-29), as [...] interpretaes parecem estabelecer um compromisso entre a objetividade e

  • 45

    proposta de Evans-Pritchard, para quem a investigao antropolgica [...] procura padres e

    no leis, demonstra a coerncia, mas no as relaes necessrias entre as atividades sociais, e

    que tende a interpretar mais que a explicar [...] (1978, p. 103).

    Feitas estas consideraes, a presente dissertao tem como objetivo oferecer uma

    interpretao sobre a relao entre a mudana na sociedade Asurin e a expanso do mercado

    verde no Mdio Xingu viabilizada pela parceria para a comercializao de castanha-do-par

    estabelecida entre a Funai, atravs da cooperativa Amazoncoop, e a empresa TBS. Neste caso,

    o recurso a um arcabouo interdisciplinar, mais do que fornecer respostas a priori para o

    problema abordado, tem como objetivo balizar e nortear a investigao.

    Pelo fato, entretanto, de as pesquisas antropolgicas fundamentadas no referencial da

    Economia Poltica terem sido criticadas principalmente por estarem muito centradas no

    impacto do capitalismo mundial sobre culturas particulares29

    , a investigao foi estruturada de

    forma a tentar evitar essa viso parcial e unidirecional do fenmeno estudado. Ou seja, a

    deciso metodolgica de investigar o fenmeno a partir de duas perspectivas tem como

    pressuposto a idia de que, em contraposio s foras homogeneizadoras do capitalismo

    mundial, h tendncias locais operando na direo contrria, isto , no sentido da

    diversificao (LVI-STRAUSS, 1993; SAHLINS, 1997). A noo de etnodesenvolvimento

    foi empregada com o mesmo objetivo. Pois ao estabelecer a autodeterminao indgena como

    fim e ao considerar a possibilidade de o mercado constituir um meio para se alcanar esta

    finalidade, esta noo constitui um bom indicador do sentido da mudana nas sociedades

    consideraes mais subjetivas: a vontade de ser compreendido, o desejo de fazer ver as coisas por um certo

    prisma, um compromisso entre a adequao s coisas representadas e a eficcia na formao de idias. 29

    Nas palavras de Ortner (1994, p. 387) [...] especificamente, acho a viso de mundo centrada no capitalismo questionvel, especialmente para a Antropologia. No ncleo do modelo est o pressuposto de que

    virtualmente tudo o que estudamos j foi tocado ('penetrado') pelo sistema capitalista mundial e que, portanto,

    muito do que vemos em nosso trabalho de campo e descrevemos em nossas monografias deva ser entendido

    como tendo sido formatado em resposta quele sistema [...] Os problemas derivados dessa viso de mundo

    tambm afetam a viso dos economistas polticos sobre a Histria. A Histria , freqentemente, tratada como

    algo que chega, como um navio, de fora da sociedade em questo. Nesse sentido, no estudamos a histria

    daquela sociedade, mas o impacto da (nossa) histria sobre aquela sociedade (traduo livre do ingls).

  • 46

    indgenas no contexto das relaes intertnicas e uma boa ferramenta para a avaliao do

    mercado de PFNMs como estratgia indigenista.

    2.2. Delineamento e justificativa

    O delineamento do estudo foi estruturado em dois nveis de anlise: (i) investigao

    sobre a parceria para a comercializao de leo de castanha-do-par estabelecida entre a AER

    da Funai em Altamira, Estado do Par, atravs da cooperativa Amazoncoop, e a empresa

    britnica de cosmticos TBS e (ii) investigao etnogrfica entre os Asurin do Xingu, grupo

    tupi situado na TI Koatinemo e envolvido na parceria Amazoncoop-TBS. A pesquisa de

    campo foi distribuda em seis perodos (tabela 1).

    Tabela 1. Cronograma da coleta de dados em campo

    rea de estudo Campo Incio Fim

    Altamira 1 01/02/2004 23/02/2004

    Altamira/TI Koatinemo 2 03/01/2005 20/03/2005

    TI Koatinemo 3 24/05/2005 16/07/2005

    Altamira/TI Koatinemo 4 29/08/2005 23/10/2005

    Altamira/TI Koatinemo 5 08/04/2006 21/04/2006

    TI Koatinemo 6 14/11/2006 21/11/2006

    A pesquisa no primeiro nvel (ver captulo 4) teve dois focos principais. Por um lado, a

    investigao sobre a histria e a estrutura da parceria Amazoncoop-TBS teve como objetivo

    especfico levantar informaes sobre: (i) o histrico da atuao da TBS no Mdio Xingu; (ii)

    o histrico da criao da Amazoncoop; (iii) as atividades desenvolvidas pela cooperativa e