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CORSINO TOLENTINO Janelas de África Cabo Verde 1975-2015

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C O R S I N O T O L E N T I N O

Janelas de África

Cabo Verde

1975-2015

Esta obra teve o apoio:

Esta obra reúne textos publicados

entre 1975 e 2015. Os ensaios, as

crónicas e as conferências reflectem

a busca incessante do diálogo, da

concórdia e do altruísmo. O objec-

tivo final é contribuir para uma cres-

cente participação cívica e tecnica-

mente actualizada de governar Cabo

Verde tal como é: nação pequena,

africana, de ilhas dispersas, perifé-

ricas, diferentes umas das outras.

A ética da verdade, a criatividade e

os recursos lícitos são o caminho

proposto.

Janelas de África

Cabo Verde

1975-2015

Cabo Verde: Janelas de África – 1975-2015

atravessa quatro décadas da história recente

de Cabo Verde. A selecção de textos que com-

põem esta colectânea revela o percurso de

Corsino Tolentino como político, observador

e comentarista da realidade que o cerca e

também como académico e ensaísta. Reúne

a sua experiência na área política e diplomá-

tica, as suas vivências, opiniões e observação

minuciosa, estabelecendo diálogos com o lei-

tor sobre temas fundamentais para a com-

preensão de Cabo Verde.

ISB

N 9

78-9

89-9

9340

-4-7

7898

9993

4047

9

É diplomata e académico.

Pertenceu ao movimento de

libertação nacional e foi ministro

da educação de Cabo Verde.

Membro da Fundação Amílcar

Cabral, promoveu a criação

do Instituto da África Ocidental

e da Academia das Ciências

e Humanidades de Cabo Verde.

Trabalhando com organizações

internacionais da sociedade civil,

dedica-se actualmente à pesquisa

sobre a integração regional e as

migrações. Em 2007, a Fundação

Calouste Gulbenkian publicou

o seu livro baseado na tese de

doutoramento sobre

. Em 2008, a ACIDI publicou

o estudo

,

escrito em co-autoria com Carlos

Rocha e Nancy Tolentino. Mantém

a crónica na

revista . E em 2015

recebeu o prémio Liderança

da Universidade de Minnesota,

Estados Unidos da América.

Universidade

e Transformação Social nos

Pequenos Estados em

Desenvolvimento: O Caso de Cabo

Verde

A Importância e o

Impacto das Remessas dos

Imigrantes em Portugal no

Desenvolvimento de Cabo Verde

Águas Correntes

África 21

CORSINO TOLENTINO

JA

NE

LA

S D

E Á

FR

IC

AC

AB

O V

ER

DE

CORSINO

TOLENTINO

1975

2015

Esta edição teve o apoio da Cooperação Portuguesa

CABO VERDE JANELAS DE ÁFRICA

1975-2015

CORSINO TOLENTINO

É expressamente proibido reproduzir, no todo ou em parte, sob qualquer forma

ou meio, NOMEADAMENTE FOTOCÓPIA, esta obra. As transgressões

serão passíveis das penalizações previstas na legislação em vigor.

Editor: Pedro Cardoso Livraria

FICHA TÉCNICA

Título: Cabo Verde – Janelas de África (1975-2015) Autor: Corsino Tolentino Coordenação: Helena Curado Tolentino Organização: Gláucia Nogueira Revisão: Clara Seabra Capa: Pedro Mota © Autor. Direitos de edição reservados à Pedro Cardoso Livraria para edição em Língua Portuguesa

1ª Edição, Janeiro de 2016. Impressão e acabamentos: Cafilesa – Soluções Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-99340-4-7 Depósito Legal: 403303/16 Tiragem: 1000 Exemplares

Índ ice

Agradecimentos 13

Apresentação 15

Siglas 17

Anos 2010

Cabo Verde em luta pela democracia plena 23 Amílcar Cabral e Paulo Freire: transmitir valores em tempo de crise 32 A emigração como factor principal de inserção de Cabo Verde

na sociedade mundial 36 À conversa com Corsino Tolentino – Tertúlia Crioula 43 Questionando Cabo Verde na sua relação com o mundo 49 Educação em Cabo Verde: sucesso histórico e desafio contemporâneo 56 Diálogos atlânticos e inclusão democrática 60 K de «kriol» 62 As Línguas, a Ciência e a Integração Regional em Amílcar Cabral 65 Cabo Verde: alfabetização no Século 21 69 Que fazer com o pior que aconteceu na terra de Amílcar Cabral? 75 Discurso em nome dos antigos ministros da Educação 79 Cinco ideias para renovar a política das migrações 80 A pesquisa colaborativa na génese do Instituto de África Ocidental 82 Geração do Futuro 83

A ditadura portuguesa: porque durou, porque acabou? 95 Relações económicas entre a CPLP e as zonas de inserção

dos respectivos territórios 101 Nós, a crise e o Estado social 107 Um monólogo de Corsino Tolentino 111 Cabo Verde: a regionalização implica a reforma do Parlamento 115 Crónica Águas Correntes, África 21 123

O EJIC e o mundo plano de Friedman 123 Out of Africa 125 Perdão & Confiança 126 Europa 2057 128 Cooperação académica entre África e Europa 130 Crónica de um prémio 131 Instituto africano em Cabo Verde 133 África em movimento 134 A União Africana e a dispendiosa política da pose 136 Entre o martelo e a bigorna 137 Muita cimeira, pouco desenvolvimento... 139 O investimento externo e a questão da terra em Cabo Verde 140 Nós e as nossas identidades 142 Bobo Keita, um herói inteiramente humano 143 Crónica oeste-africana 144 O voto da decência 146 Queridos Estados Unidos de África 148 Obrigado, até breve... 149 Sinais 151 Diplomacia de solidariedade 153 Uma semana de África na região fará sentido? 154 ECO, NEPAD e BES-ÁFRICA 155 África-Europa, relações em mudança? 157 Cabo Verde aposta e cobra 158 Crónica da Boa Vista 160 Quem será o quarto Presidente de Cabo Verde? 161 África, democracia, eleições e governação 163

Carta de Lisboa 164 Um ano da China 166 Cabo Verde acolhe encontro de fundações da CPLP 168 Que regionalização para um Estado arquipélago

e de reduzida dimensão? 169 África no Mundo 171 Diálogos atlânticos e inclusão democrática 172 Será a sociedade civil um gigante adormecido? 174 Guerra às guerras africanas 175 Repensar a CPLP 177 A região vista das ilhas 178 Religião, laicismo e felicidade humana 180 Que fazer quando o pior acontece? 181 2014: Ano Mundial do Cidadão? 182 Uma reflexão experimental sobre as identidades cabo-verdianas 184 Cabo Verde e a União Monetária da África Ocidental 185 Nós, a Crise e o Estado social 186 Angola, Brasil e Cabo Verde formam triângulo estratégico

no Atlântico 188 Uma questão de dignidade da pessoa humana 190 A perseverança indiana 191 O mercado político e a lei de Gresham 193 Filosofia da Educação em Cabo Verde 194 Corsino Fortes (1933-2015): Afinal, quem morreu? 196 A Academia das Ciências e Humanidades de Cabo Verde 197

Anos 2000

Para um Estudo da Situação das Indústrias de Conteúdo Cultural

nos PALOP 201 De pequenino se torce o pepino – Uma auto-radiografia 206 Universidade de Cabo Verde – por um plano de acção 231 Que universidade pública para Cabo Verde? 235 Portugal na União Africana? 246

A educação para o desenvolvimento: o lugar do Ensino Superior

num pequeno Estado insular 248 Política, conhecimento e desenvolvimento 263 Amílcar Cabral 277 2009 – Dia de África e da CEDEAO 284

Anos 1990

Os partidos políticos e a construção da democracia 289 Mantenha para Abílio Duarte 291 Crónica Numa Palavra, A Semana 293

Buracos 293 ECO 92 294 Subsídios 295 Clivagens 296 Cidadania 298 Movimento BdG 299 Carinhosamente 301 Silêncio 302 O Princípio U 304 Contrastes 305 Fun Board 307 Promessas 309 QImania 310 Omnipotências 312 Chumbo! 313 Prevenir 313 Privações 315 Ganhámos? 316 Salarium 318 Burradas 319 Riscos 321 Recusas 322

Privilégios 324 Rurbanos 325 Pobrezas 326 Recursos 328 Manifestação 329 Índios 330 Conspiração 331 Jóias 332 Simentera 334 Governamentalismo 335 Boka 337 DEFICITário 340 Registo 341 Shukrane 343 Maastricht 344 Governabilidade 345 Infância 347 Identidade 348 Exorcismo 349 Sintonia 351 Sociais-democratas 353 Solilóquio 354 Teses 355 Desescalada 357 Respeito 358 Salvamento 359 Razões 361 Regresso 362 Exemplos 364 Últimos 366 Xamã 367 Reflexos 368 Certeza 370 Sobrevivência 371 Strip-tease na AN(P) 373

Pesquisas 374 Pelo confronto de ideias 376 Visto 378 Recordai! 380 Despedimento 381 Nível 383 Desaire 384 Pára-raios 386 Evasão 388 Bazofiamento à parte 389 Dignidade 391 Um ratinho 393 A quadratura do triângulo 394 Dez por cento 395 Super-show 396 Ponto 398

Anos 1980

Uma arma eficiente do militante 401 Princípios de direcção 404 Cassacá – O caminho para o desenvolvimento da luta armada 405 Sobre os objectivos do nosso partido 406 A Constituição, um documento político 409 Cinco anos depois 416 O significado das eleições 425 Análise das eleições nacionais de Dezembro de 1980 429 Do debate à decisão 433 Uma experiência nova 436 S. Vicente: uma experiência positiva 438

Anos 1970

De Santo Antão e seus problemas fala-nos o camarada

Corsino Tolentino 445 O recenseamento e as eleições para a Assembleia

Nacional Constituinte 448 1° de Maio 451 Discurso à 1ª Assembleia Regional de Militantes 458

Textos seleccionados sobre o autor

Apresentações do livro A universidade e transformação social

nos pequenos estados em desenvolvimento: o caso de Cabo Verde 463

Por António Simões Lopes

Por Manuel Carmelo Rosa

Por Paulino Lima Fortes

Percurso pessoal e político: Outubro de 1966 – Março de 1970 499

Por Cândida Gonçalves

Percurso biográfico 511

Agradecimentos

À Helena, Nancy e Leida, que tiveram a ideia e decidiram oferecer estas

Janelas de África ao leitor para festejar em 2015 o renascimento de Cabo

Verde, à Gláucia Nogueira, que pôs enorme saber e carinho na organização do

livro e escreveu a apresentação, à Clara Seabra, pelo contributo essencial, ao

Val, pela excelência da colaboração e à Cândida pelo percurso.

Apresentação

Esta colectânea atravessa quatro décadas da história recente de Cabo

Verde. Ao começar às vésperas da independência e terminar às vésperas de os

originais entrarem na gráfica, em 2015, a selecção de textos revela o percurso

do autor como político, num primeiro momento; como observador e comenta-

rista da realidade que o cerca, noutros trechos; como académico que se

debruça principalmente sobre a temática da educação, das migrações e da

integração regional; e, finalmente, como ensaísta, reunindo a sua experiência

na área política, diplomática, as suas vivências, opiniões e observação minu-

ciosa para estabelecer diálogos com o leitor sobre temas fundamentais para a

compreensão do país em várias dimensões e em diferentes tempos.

Optou-se por apresentar os textos dos mais recentes para os mais antigos,

agrupados por décadas. Da década de 2000 em diante é farta a sua produção,

e estende-se por diferentes áreas. Esse período inclui Águas Correntes, Cró-

nica que a partir de 2007 o autor mantém na revista África 21. Outra coluna

que se encontra reunida neste volume é Numa palavra, publicada no jornal A

Semana na década de 1990, além de textos alusivos a situações pontuais dessa

época. Dos anos mais recuados, tem-se a sua colaboração no Novo Jornal de

Cabo Verde, Nos Luta e Unidade e Luta, além de intervenções em eventos

políticos, nos primeiros anos após a independência.

Somam-se à produção de Corsino Tolentino alguns textos de outros auto-

res, sobre a sua vida e produção intelectual. Na parte final, em tópicos e fotos,

o percurso biográfico.

Porque interessa ler este livro? Por ser uma espécie de espelho multiface-

tado da contemporaneidade, a partir de uma visão de quem nasceu e cresceu

no período colonial, agiu em conjunto com outros personagens do seu tempo

para acabar com a situação que se vivia e conseguiu atingir esse objectivo,

assumindo a partir daí responsabilidades na condução do novo país. Só isso já

lhe garantiria condições de ter uma visão da realidade que é sempre de inte-

resse para as gerações mais novas. Contudo, não ficou por aí, embrenhando-se

na área da investigação, produzindo conhecimento no âmbito académico.

Por isso, se se perguntar a quem interessa ler este livro, podemos sem

dúvida responder: a todos os que se interessam por Cabo Verde, concordem

ou não com as ideias do autor. Seja os que tal como ele viveram o período que

compreende colonialismo, luta, independência, pós-independência e demo-

cracia, seja os que nasceram quando já não havia tantas batalhas em que se

lançar. Mas lutas há sempre, e estas reflexões poderão servir para o presente e

para o futuro.

Boa leitura!

Gláucia Nogueira

Sig las

ACP África, Caraíbas e Pacífico

ACT André Corsino Tolentino

AECOM Academia de Estudos de Culturas Comparadas

ANP Assembleia Nacional Popular

APE Acordos de Parceria Económica

ASA Aeroportos e Segurança Aérea

ASEAN Associação de Nações do Sudeste Asiático

BCV Banco de Cabo Verde

BI Boletim Informativo

BRIC Brasil, Rússia, Índia, China

CEDEAO Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental

CENFA Centro de Formação Administrativa (Guiné-Bissau)

CENFA Centro de Formação e Aperfeiçoamento Administrativo (Cabo Verde)

CER Comunidades Económicas Regionais

CFA Communauté Française d’Afrique

CI Comissão Instaladora

CN Conselho Nacional (do PAICV)

CPLP Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

CSA Comité de Sector Autónomo

CT Corsino Tolentino

DGESC Direcção Geral do Ensino Superior e Ciência (Cabo Verde)

DNA ADN em português: ácido desoxirribonucléico

EARN Europe-Africa Research Network

EMPA Empresa Pública de Abastecimento (Cabo Verde)

EUA Estados Unidos da América

EVN Esperança de vida à nascença

FAIMO Frente de Alta Intensidade de Mão-de-Obra

FARP Forças Armadas Revolucionárias do Povo

FMI Fundo Monetário Internacional

IAO Instituto de África Ocidental

IBNL Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (Cabo Verde)

IDE Investimento Directo Externo

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

IE Índice de Educação

IES Instituição de Ensino Superior

INAC Instituto Nacional da Cultura (Cabo Verde)

INAG Instituto Nacional de Administração e Gestão (Cabo Verde)

INDP Instituto Nacional de Desenvolvimento das Pescas (Cabo Verde)

INIDA/CFA Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento Agrário/

/Centro de Formação Agrária

IR Integração Regional

ISCEE Instituto Superior de Ciências Económicas e Empresariais

(Cabo Verde)

ISE Instituto Superior de Educação (Cabo Verde)

ISECMAR Instituto Superior de Engenharia e Ciências do Mar (Cabo Verde)

LOPE Lei da Organização Política do Estado

MESCI Ministério do Ensino Superior, Ciência e Inovação

MPAAR Ministério das Pescas, Agricultura e Animação Rural

MpD Movimento para a Democracia

NAFTA Zona de Livre Comércio entre o Canadá,

os Estados Unidos da América e o México

NATO Organização do Tratado do Atlântico Norte

NEPAD Nova Parceria para o Desenvolvimento de África

NJC Novo Jornal Cabo Verde

NL Nos Luta

NOSI Núcleo Operacional para a Sociedade de Informação

OCDE Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico

ODM Objectivos de Desenvolvimento do Milénio

OMC Organização Mundial do Comércio

OMCV Organização das Mulheres de Cabo Verde

ONU Organização das Nações Unidas

OUA Organização da Unidade Africana

PAI Partido Africano para a Independência

PAICV Partido Africano de Independência de Cabo Verde

PAIGC Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde

PALOP Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa

PDM País de Desenvolvimento Médio

PIDE Polícia Internacional e de Defesa do Estado

PM Primeiro-ministro

PMA País Menos Avançado

PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PR Presidente da República

PSD Partido Social Democrata

R1 Primeira República

R2 Segunda República

RN Rádio Nova

RTP Radio e Televisão de Portugal (RDP e RTP)

TBE Taxa bruta de escolarização

TIC Tecnologias de Informação e Comunicação

UA União Africana

UCID União Cabo-verdiana Independente e Democrática

UDC União Democrática de Cabo Verde

UEMOA União Económica e Monetária de África Ocidental

UNESCO Agência das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura

UPICV União do Povo das Ilhas de Cabo Verde

USD United States dollar

VP Voz di Povo

ZEI Center for European Integration Studies, Universidade de Bona

ZMAO Zona Monetária de África Ocidental

Anos 2010

A N O S 2 0 1 0 2 3

C a b o V e r d e e m l u t a p e l a d e m o c r a c i a p l e n a

Comemoração do 13 de Jane i ro de 1991 , pe la p r ime i ra vez com pro tagon is tas do MpD e do PAICV.

P ra ia , 12 /Jane i ro /2010 .

I n t r o d u ç ã o

Ao agradecer aos organizadores deste encontro, em particular o Eng.

Agostinho Lopes, secretário-geral do Movimento para a Democracia (MpD), o

convite e a oportunidade que me dá de participar pela primeira vez na come-

moração da transição do regime de partido único para o regime multipartidá-

rio, eu gostaria de, antes de tudo, expressar um sentimento e uma convicção.

O sentimento é de grande satisfação por, quase duas décadas depois das

negociações de Setembro de 1990 entre o Partido Africano da Independência

de Cabo Verde (PAICV) e o então recém-formado Movimento para a Demo-

cracia (MpD) sobre a mudança de regime político, reencontrar nesta sala, no

ambiente que o Estado de Direito Democrático oferece, alguns dos protago-

nistas das transformações políticas, económicas, sociais e culturais que marca-

ram a evolução do país nas últimas duas décadas, em particular, o Dr. Eurico

Monteiro e o Dr. Carlos Veiga.

A convicção é de que, conseguida a transição, a democracia se consolidou

ao ponto de a guerra pela posse exclusiva dos símbolos, mitos e virtudes naci-

onais tenha deixado de fazer sentido, cedendo o lugar à conjugação de esforços

para a definição e realização de máximos denominadores comuns, através dos

quais o maior número possível de cabo-verdianos terá acesso à felicidade indi-

vidual sem comprometer o bem público e o futuro. Felizmente, hoje é evidente

que datas como o 5 de Julho e o 13 de Janeiro fazem parte do património

nacional, pertencendo por isso a todos por igual.

Que me seja permitido, neste ponto, enviar uma saudação amiga a um

grande patriota, cuja presença, nesta sala da Assembleia Nacional, a coerência

e a honestidade na promoção e defesa do que ao longo da vida tem entendido

como genuíno interesse nacional teriam justificado. Refiro-me, como terão

percebido, a um protagonista maior dos processos da independência, da tran-

sição e da consolidação da democracia como condição da transformação em

liberdade e segurança da sociedade cabo-verdiana: o Presidente da União do

Povo das Ilhas de Cabo Verde (UPICV), Dr. José Leitão da Graça!

Feitas estas observações de natureza pessoal e a referência que a memória

e o reconhecimento público impunham, partilhemos algumas ideias sobre a

transição ou mudança do regime político, a consolidação da democracia e as

2 4 C A B O V E R D E – J A N E L A S D E Á F R I C A

perspectivas de evolução económica e social de Cabo Verde. Caminhando

nessa direcção, apresentarei a minha leitura das causas e condições da

mudança de regime concretizada no dia 13 de Janeiro de 1991, os principais

factores de sucesso da transição, o processo de consolidação da democracia

eleitoral e a pertinência da luta pela democracia plena. Proponho dividir o

tempo em dois momentos, metade para a exposição e a outra metade para o

debate.

C a u s a s e c o n d i ç õ e s d a m u d a n ç a d e 1 3 d e J a n e i r o d e 1 9 9 1

Para recordar a dificuldade que sentimos quando procuramos um signifi-

cado aceitável para conceitos de conteúdo tão variado e complexo como demo-

cracia, autoritarismo, transição, consolidação do regime democrático, etc.,

consideremos dois factos: as ondas de democratização segundo Samuel Hun-

tington e a diversidade de regimes mais ou menos democráticos neste fim da

primeira década do século XXI.

O primeiro facto: As ondas de democratização.

O cientista político Samuel Huntington, autor do tão mediático quanto

influente Choque das Civilizações, falecido em 2014, identificou três ondas de

democratização na História moderna:

A primeira onda terá durado um século. Entre 1828 (inauguração da

Democracia Jacksoniana nos EUA) e 1926 (ano do golpe de Estado militar em

Portugal), situou-se na tradição da Revolução Americana (1776) e da Revolu-

ção Francesa (1789) e inspirou três dezenas de democracias na América do

Norte, Europa e América do Sul.

A segunda onda foi mais curta, durando apenas 19 anos, entre 1943 (fim

da supremacia nazi no desenrolar da II Guerra Mundial) e 1962 (data da anu-

lação de resultados eleitorais no Peru por um golpe militar).

A terceira onda de democratização teve início em Portugal, com a Revolu-

ção dos Cravos em 25 de Abril de 1974 e expandiu-se pela América Latina,

Leste da Europa e África até finais dos anos 90, durante um quarto de século.

Creio que podemos tirar duas conclusões desta primeira análise: (I) as

ondas de democratização precisam de tempo mais ou menos longo de acordo

com a intensidade dos factores de mudança e as circunstâncias específicas de

cada caso; e (II) uma onda de democratização não é um dado definitivamente

adquirido, podendo ser vítima de ondas inversas.

O segundo facto é a grande diversidade de democracias neste princípio de

século. Na verdade, a existência de 120 democracias diferentes sobre 170 casos

estudados entre os 193 Estados membros da Organização das Nações Unidas

A N O S 2 0 1 0 2 5

pode ser útil à compreensão de qualquer mudança significativa na esfera polí-

tica, económica, social e cultural. Esta informação é apresentada nos relatórios

da Freedom House, uma organização não-governamental internacional com

sede em Washington DC, da Economist Intelligence Unit e do sistema das

Nações Unidas, com dados referentes a 2008.

Outro elemento relevante é o povo cabo-verdiano ter conseguido, em

cerca de 35 anos, a proeza de transitar da situação colonial para a situação de

uma democracia, imperfeita, é verdade, mas segundo alguns observadores a

34ª do mundo, por conseguinte, mais perto das 30 democracias plenas quase

perfeitas do que da maior parte das 50 democracias imperfeitas, para não

mencionarmos os 36 regimes híbridos (entre o autoritarismo e a democracia)

nem os 51 regimes autoritários. Segundo as fontes acima mencionadas, o

índice democrático de Cabo Verde (7,81 sobre 10) é superior ao índice médio

de todas as regiões geopolíticas, com excepção da América do Norte (8,64) e

da Europa Ocidental (8,60).1

C o m o f o i p o s s í v e l ?

Em 30 de Junho de 1975, Cabo Verde proclamou, praticamente em unís-

sono dos adultos, a sua opção pela independência nacional, o que ocorreu em

5 de Julho, criando por essa via a condição sine qua non da democratização

política e social. Os 85% de participação no acto eleitoral e os 92% de votos

favoráveis aos candidatos a deputados à Assembleia Constituinte expressaram

essa vontade colectiva inequívoca como resultado, no meu entender, da acção

conjugada dos seguintes factores: um desígnio comum construído ao longo de

séculos, o movimento de libertação nacional que soube catalisar e dar sentido

histórico a esse desejo e respectiva energia, a política internacional progressi-

vamente favorável à autodeterminação e independência dos povos, a pertinên-

cia da libertação africana, a terceira onda de democratização iniciada com o 25

de Abril de 1974, em Portugal, e a continuada circulação de valores democráti-

cos através dos movimentos migratórios. Convirá lembrar que o processo de

independência foi negociado e que, por lei, além do PAIGC, 300 eleitores

podiam apresentar listas de candidatos em todos os círculos eleitorais, o que,

como se sabe, aconteceu.

Antes de prosseguir, deixo esta hipótese para eventual discussão: a inde-

pendência nacional liderada pelo Partido Africano da Independência da Guiné

e Cabo Verde (PAIGC) foi a primeira transição cabo-verdiana bem-sucedida

no interior da terceira onda de democratização dos tempos modernos.

(1) Índices médios das restantes regiões com referência a 2008: Europa de Leste (5,68), América

Latina e Caraíbas (6,43), Ásia do Sudoeste (5,58), Médio Oriente e África do Norte (3,54), África ao Sul do Sara (4,28). Média mundial (5,55).

2 6 C A B O V E R D E – J A N E L A S D E Á F R I C A

Vários estudiosos cabo-verdianos e estrangeiros1 analisaram a singulari-

dade do sistema político instalado em Cabo Verde em 1975 e tiraram conclu-

sões diversas. Uns classificaram-no como paternalismo reformador (Aristides

Lima), outros, como ditadura (Humberto Cardoso, Onésimo Silveira, etc.) ou

como totalitarismo (Jorge Carlos Fonseca), com exagero evidente.

Creio que fora do contexto de competição eleitoral no qual frequente-

mente se encontraram e irão certamente encontrar-se, estes autores aceitarão

examinar a hipótese de o regime que vigorou em Cabo Verde entre 1975 e 1991

ter sido um regime híbrido, um misto de democracia imperfeita e autorita-

rismo limitado pelo Estado de Direito que sempre existiu.

Digo que o regime era autoritário porque, apesar de atípico, era mono-

partidário; híbrido porque baseado num certo tipo de consulta popular regular

que não incluía a competição livre entre partidos políticos, mas com a separa-

ção dos poderes legislativo, executivo e judiciário a prevalecer.

Por outro lado, desde a aprovação da Lei da Organização Política do

Estado, de 1975 (LOPE), e da primeira Constituição da República, de 1980, o

Estado de Cabo Verde foi um Estado de Direito e buscou a participação dos

cidadãos. Valerá a pena afirmar que entendo a democracia como um ideal que

não se atinge, mas do qual nos devemos aproximar através de movimentos

aceites como não lineares e por vezes reversíveis.

Se eu estivesse com aqueles que têm uma compreensão dicotómica de

democracia, do tipo preto ou branco, é ou não é, não vos convidava a analisar

as duas hipóteses seguintes: com o passar do tempo e à luz da teoria das ondas

de democratização, o 5 de Julho de 1975 e o 13 de Janeiro de 1991 podem ser

lidos como correspondentes às datas limites de um mesmo período de transi-

ção (1975-1991: de colónia a Estado de Direito Democrático) ou como duas

transições separadas por 15 anos, o equivalente a três mandatos em regimes

democráticos normais, a leitura mais frequente (1975: de colónia a Estado

soberano e 1991: do Estado monopartidário ao Estado multipartidário).

Sejam quais forem os métodos de análise, os marcos e a conclusão, será

sempre verdade que, nos seus primeiros 15 anos de existência como entidade

soberana, Cabo Verde cresceu política, económica e socialmente. A natureza e

a consciência das necessidades também evoluíram rapidamente, e a democra-

cia eleitoral, então percepcionada pelo PAICV como um objectivo não prioritá-

rio, passou a ocupar cada vez mais espaço no debate interno e externo.

Por conseguinte, há que considerar entre as principais causas da mudança

de 1991: o sucesso da primeira transição de colónia para Estado soberano (iní-

cio da grande transição), a intensificação da terceira onda de democratização,

(1) António Correia e Silva, Fafali Koudawo, Gabriel Fernandes, José Vicente Lopes, Paul Saucier,

Richard Lobban, Jr. e Roselma Évora são outros exemplos de autores com trabalho rele-vante publicado sobre a transição democrática em Cabo Verde.

A N O S 2 0 1 0 2 7

em particular, na Europa de Leste e em África (intensificação que contribuiu

para o fim da Guerra Fria), a emergência da oposição organizada em torno do

Movimento para a Democracia (Março de 1990) e a convergência de vontades

do governo e da oposição para corresponder a um pressentido desejo popular

de nova mudança.

Para os iniciados, as reformas económicas e políticas dos anos 1980 não

foram surpreendentes. O que estava realmente em causa não era a necessi-

dade de reformas profundas, mas sim os mecanismos e a extensão da partici-

pação na concepção e realização das mesmas, assim como o ritmo que seria

adequado.

Não tendo sido imposta por pressão de rua (que frequentemente ocorreu

no Leste europeu), não se tendo sequer sugerido uma conferência nacional

(modelo dominante no continente africano), estando os principais parceiros

internacionais satisfeitos com a gestão da ajuda pública ao desenvolvimento e

do investimento externo (gestão inovadora em alguns casos), a segunda tran-

sição em Cabo Verde (limite superior da grande transição) foi negociada entre

governo e oposição. Este facto está documentado.

A revisão constitucional, a aprovação da lei dos partidos políticos, das leis

eleitorais, sobre o acesso à comunicação social e até a aprovação de um Código

de Conduta em Setembro de 1990 são elementos constitutivos de uma transi-

ção negociada. Se esta afirmação tiver mérito e reconhecimento, sustentará

outra ideia: a consolidação da democracia e a eficácia da governação depen-

dem do governo, da oposição e da sociedade em geral, através de um processo

que tem o bem público e os interesses privados como pano de fundo e equili-

bra a cooperação e a competição para garantir a eficácia da acção governativa.

Hoje, alguns investigadores consideram que a perda das primeiras elei-

ções democráticas pelo PAICV (1991) foi, sobretudo, o resultado de falta de

coesão interna e de capacidade de controlar as instituições e o processo de

transição. Não concordo com esta teoria da força e da fraqueza, porque

entendo que a democracia não é essencialmente uma questão de força, mas é

sim uma questão de princípios e valores. E o que, na minha perspectiva, feliz-

mente aconteceu foi o seguinte:

Apesar das aparências e da competição de diferentes grupos pelo poder, o

PAICV e o MpD tinham as mesmas matrizes ideológicas e orientações políti-

cas. Ademais, a erosão que o exercício do poder em circunstâncias adversas do

ponto de vista económico e social provocou no PAICV e a conjuntura interna-

cional favorável convergiram no desejo comum de mudança. Os principais

méritos do MpD foram ter captado o sinal do tempo e ter sido capaz de galgar

a onda com o discurso adaptado às circunstâncias.

2 8 C A B O V E R D E – J A N E L A S D E Á F R I C A

Contudo, dois aspectos do problema me parecem cruciais para a classifi-

cação da mudança como um caso original e bem-sucedido. Esses aspectos são

a construção de uma forte vontade colectiva de mudança de regime seme-

lhante ao consenso para a independência nacional que se verificou em 1975 e o

patriotismo do PAICV, do MpD e de outros movimentos políticos e sociais

menos influentes, patriotismo que viabilizou uma transição negociada, apesar

de algum radicalismo próprio da época.

Compreender este processo é necessário à elaboração de soluções origi-

nais e eficazes para os problemas reais que Cabo Verde enfrenta 19 anos

depois da chamada abertura política. Para essa compreensão, será necessário

convocar a organização e o funcionamento do Estado de Cabo Verde nos pri-

meiros 15 anos, a aceleração da transformação social, a acumulação de capital

humano, a diferenciação das necessidades, os efeitos da emigração, a reorga-

nização da política internacional depois da queda do Muro de Berlim, em

1989, ou seja, as causas e as circunstâncias da transição.

Neste ponto, pergunto:

A Liberdade e a Democracia teriam ou não sido comemoradas pelos cabo-

-verdianos, independentemente de quem tivesse vencido as primeiras eleições

multipartidárias de 1991? É ou não é o simbolismo do dia 13 de Janeiro patri-

mónio nacional?

D a t r a n s i ç ã o à c o n s o l i d a ç ã o d o s i s t e m a d e m o c r á t i c o

A vitória eleitoral do MpD em 1991 acelerou a transição, que teoricamente

poderia ter tido um desfecho diferente. Uma nova Constituição da República

foi adoptada, importantes reformas tiveram lugar, eleições realizadas com

regularidade e em conformidade com a lei deram uma segunda oportunidade

ao MpD em 1995 e, com altos e baixos, o país continuou a crescer.

A 1 de Janeiro de 2001, a vitória do PAICV nas eleições legislativas fechou

o período de transição aberto 10 anos atrás. Esta nova transferência da maio-

ria de votos do MpD para o PAICV fechou o ciclo para dar início à fase de con-

solidação do regime democrático. Hoje a Democracia é reconhecida e defen-

dida internamente como uma conquista colectiva e como um valor universal.

É este importante factor de desenvolvimento que organizações internacionais

tais como a fundação Mo Ibrahim, Economist Intelligence Unit, Freedom

House, e o sistema das Nações Unidas reconhecem e apoiam.

Entre outros critérios, um sistema democrático consolidado toma em con-

sideração os desempenhos demonstrativos do pluralismo e da transparência

dos processos eleitorais, a eficácia do governo, as liberdades civis, a cultura e a

participação política. Curiosamente, os pontos mais fracos do sistema cabo-

A N O S 2 0 1 0 2 9

-verdiano são a cultura política (6,25), a participação política (6,67) e a eficácia

governativa (7,85), numa escala entre 1 e 10.1

Pedindo a atenção de todos os partidos políticos para a sua função de edu-

car para elevar a cultura política e a participação dos cidadãos no funciona-

mento e aperfeiçoamento do regime, fecho este capítulo com uma nota posi-

tiva: apesar de a existência de grandes obstáculos à propagação da terceira

onda da democratização e de a crise financeira mundial estar a pôr em causa

alguns regimes democráticos, Cabo Verde conseguiu a pontuação de 7,81/10 e

a posição 34ª, a quatro pontos do grupo das democracias plenas ou menos

imperfeitas. Na região africana só dois países fazem globalmente melhor do

que nós: Maurícias (26ª posição imediatamente depois de Portugal) e África

do Sul (31ª). É caso para afirmar, sem sobranceria nem hesitação, que o

regime democrático eleitoral que temos está consolidado e dele nos orgulha-

mos.

D a d e m o c r a c i a e l e i t o r a l p a r a a d e m o c r a c i a p l e n a

Provavelmente estamos todos de acordo com o seguinte: (I) temos um

governo e uma governação legitimados pela maioria dos eleitores e pelo con-

sentimento dos governados; (II) o governo resulta de eleições regulares, livres

e justas; (III) os direitos das minorias são protegidos de acordo com a lei; (IV)

os direitos humanos fundamentais são reconhecidos e protegidos.

Pois bem, entendemo-nos facilmente sobre esta versão minimalista da

democracia. Mas o consenso ficará mais difícil se tentarmos definir o conceito

de democracia, distinguir a democracia formal da democracia substantiva e

compreender a relação entre democracia, liberdade e bem-estar. Para muitos,

a democracia formal é uma conquista crucial, mas não é ponto de chegada, é

rampa de nova largada.

A próxima transição vai ser da democracia eleitoral para a democracia

plena, e a marcha será naturalmente longa e cheia de imprevistos. Além da

mecânica e das instituições da democracia liberal, formal e mínima, a demo-

cracia substantiva e plena, quase perfeita, encerrará mais: (I) igualdade

perante a lei; (II) igualdade de oportunidades; (III) realização dos direitos

humanos básicos; (IV) acesso à educação e à informação para a formação da

vontade crítica; (V) cultura da participação política; (VI) sentido de cidadania;

e (VII) solidariedade. Podíamos continuar este exercício de identificação de

conteúdos para a democracia plena mas é tempo de terminar.

(1) Os restantes dois dos cinco critérios que integram a análise de 60 itens são: pluralismo e

transparência do processo eleitoral (9,17) e protecção das liberdades civis (9,12).

3 0 C A B O V E R D E – J A N E L A S D E Á F R I C A

C o n c l u s õ e s

Assim sendo, convido-vos a dar alguma da vossa atenção às seguintes

proposições e propostas:

O percurso de Cabo Verde rumo à Independência, ao Estado de Direito e à

Democracia liberal é reconhecido interna e internacionalmente como um caso

de relativo sucesso colectivo assente na identidade nacional que resulta de

constante negociação entre o fecho na singularidade e a abertura que se con-

tém entre a génese e o destino.

A transição do regime de partido único, um híbrido de democracia parti-

cipativa e autoritarismo paternalista, para o regime de democracia multiparti-

dária, formal e minimalista, resultou de um processo de negociação entre o

partido do governo e o movimento candidato a governo. Os 10 anos de gover-

nação do MpD e a vitória do PAICV nas terceiras eleições multipartidárias de

2001 fecharam o período de transição e consolidaram o regime democrático.

Contudo, os défices do regime instituído, em particular os baixos índices

de eficiência governativa, de cultura política e de participação cívica face à

magnitude dos problemas económicos e sociais por resolver, exigem menos

confronto subjectivista e mais cooperação objectiva e racional na busca inces-

sante das melhores soluções para Cabo Verde.

Trinta e cinco anos depois da primeira grande mudança e 19 anos depois

da segunda, a democracia está de boa saúde. Mas cuidado! É muito impor-

tante os políticos de todos os partidos tomarem a sério os sinais de desconfi-

ança que vêm da sociedade, às vezes sob a forma de desinteresse ou mesmo de

falta de participação na actividade política e cívica. Por mim, não existe demo-

cracia sem cidadania, e esta não funciona sem confiança no sistema político e

nos seus actores. Convém ter duas realidades em consideração: primeiro, o

povo de Cabo Verde optou claramente pelo regime multipartidário e demo-

crático; segundo, atitudes, inquéritos e outros estudos de opinião demonstram

a existência de uma grande distância entre a percepção dos direitos que são

fundamentais e a realidade do funcionamento concreto das instituições políti-

cas. Em suma, o Estado sonhado é bom, mas o Estado real não é tão bom.

Para terminar mesmo, três conjuntos de temas que no meu entender

deveriam mobilizar a capacidade criadora e as energias da nação cabo-verdi-

ana e, por conseguinte, de todos os partidos políticos, empresários e organiza-

ções da sociedade civil, distinguindo sempre e ao nível local, nacional e inter-

nacional, as esferas próprias de cada instituição, os interesses privados e o

bem público. Com pacto de regime ou não, creio que ninguém, sentindo-se

responsável pelo presente e pelo futuro deste país, poderá ignorar o pacote

que passo resumir:

• PRODUTIVIDADE, PRODUÇÃO, EMPREGO E BEM-ESTAR resumem os

maiores desafios da nação cabo-verdiana, neste e nos próximos anos,

A N O S 2 0 1 0 3 1

enquanto bases de crescimento sustentável e pilares da democracia

plena. A criação de uma base produtiva para fazer crescer o emprego, a

produtividade, a exportação e a coesão social é imperativo de maior e

mais justo bem-estar em Cabo Verde. Decidir produzir mais e melhor

para competir e ganhar no mercado nacional e internacional é prova-

velmente a única saída da cultura da pobreza e da dependência que

continua a limitar-nos como povo.

• CIÊNCIA E TECNOLOGIA são ainda uma espécie de passageiros clandesti-

nos nas caravanas dos partidos políticos e, também, da governação de

Cabo Verde. Todavia, a história confirma que o conhecimento e a téc-

nica sempre fizeram parte das nossas estratégias de sobrevivência. Há

pouco tempo, cerca de uma centena de investigadores, principalmente

jovens, sugeriu novas atitudes e novas acções nesses domínios para

melhor exploração das bases existentes e mais eficiência no desenho e

conquista do futuro. A criação de um fórum do conhecimento, de

carácter consultivo e reflectindo o princípio da hélice tripla, formada

pelo sistema educativo em constante transformação, o tecido empresa-

rial em lento crescimento e a administração em sentido lato, foi a pro-

posta mais emblemática e directamente relacionada com este tópico e o

anterior.

• A VIOLÊNCIA E A INSEGURANÇA pervertem as bases morais da sociedade

e enfraquecem-nos no íntimo e na relação com os outros. É claro que a

melhoria da cooperação institucional e a intermediação mais eficaz

entre o Estado e a sociedade são condições necessárias à melhor com-

preensão destes fenómenos e ao combate às suas causas. São condições

necessárias, não suficientes. A cultura de paz, segurança e solidariedade

exige do governo, dos partidos políticos, das religiões, das organizações

da sociedade civil e de cada cidadão novas atitudes e acções inovadoras.

Por mim, o discurso político de confrontação sistemática, às vezes

agressivo e descuidado em relação ao dever da solidariedade e da boa

convivência, alimenta a tensão social e favorece a violência.

Através de continuidades e rupturas entre o fecho na identidade e a aber-

tura ao mundo, a sociedade cabo-verdiana cresce e luta pelo seu bem-estar. E

espera que, certamente, determinados e humildes, os políticos estejam cada

dia mais à altura da epopeia nacional e reconquistem a confiança dos cida-

dãos, sabendo privilegiar o conhecimento, a inclusão e a equidade.

3 2 C A B O V E R D E – J A N E L A S D E Á F R I C A

A m í l c a r C a b r a l e P a u l o F r e i r e : t ransmi t i r va lores em tempo de cr ise

Cátedra Amí lca r Cabra l e Pau lo F re i re .

Un ive rs idade de San t iago , Assomada, 19 /Jane i ro /2010 .

Ao aceitar o convite da Universidade de Santiago, prometi aos professores

Fátima Alves e Nardi Sousa que tentaria projectar no ecrã da proposta de

Releitura do mundo, da pedagogia e da comunicação no novo milénio algumas

ideias sobre o tema Amílcar Cabral e Paulo Freire: transmitir valores em

tempo de crise.

R a z õ e s d a p r o p o s t a

A primeira é, sim, ter havido convite e aceitação, mas aceitei porque a

ideia de criar uma conferência anual, uma cátedra ou um centro de estudos

Amílcar Cabral e Paulo Freire na Universidade de Santiago (US) é uma ousa-

dia, uma vontade de crescer de dentro para fora sem deixar de olhar à volta do

que merece consideração, respeito e carinho. Também porque estudar os

grandes espíritos do nosso tempo é tarefa que honra e confere prestígio a

qualquer estabelecimento universitário, e Amílcar Cabral e Paulo Freire trans-

cenderam os limites dos respectivos campos de investigação e acção para

avançarem até às fronteiras do saber e da ética do seu tempo, tendo um e

outro deixado uma notável herança à bibliografia intercultural.

Um segundo motivo desta comunicação, além da adesão ao projecto

pedagógico, científico e cultural da US, prende-se com a proximidade da efe-

méride de 20 de Janeiro, dia do herói nacional, e fará sentido a nação cabo-

-verdiana parar um pouco para pensar se realmente precisará de heróis e por

que Amílcar Cabral é o fundador da nacionalidade. Digo isto por três motivos:

primeiro, é facto assente que, ao longo da História, os povos necessitaram de

memória, mito e modelo; segundo, porque é visível o desfasamento existente

entre o carácter ímpar do legado que coloca Amílcar Cabral entre os pensado-

res mais brilhantes do século XX e o escasso interesse que a elite cabo-verdiana

mostra ter no assunto; terceiro, porque estamos numa universidade, e a uni-

versidade é, por definição, o lugar de todos os questionamentos intelectual e

eticamente responsáveis. A questão é: reconhecidamente africano e universal,

Amílcar Cabral é ou não é em 2010 o referencial intelectual e moral de toda a

nação cabo-verdiana? Se não for, que fazer?

C O R S I N O T O L E N T I N O

Janelas de África

Cabo Verde

1975-2015

Esta obra teve o apoio:

Esta obra reúne textos publicados

entre 1975 e 2015. Os ensaios, as

crónicas e as conferências reflectem

a busca incessante do diálogo, da

concórdia e do altruísmo. O objec-

tivo final é contribuir para uma cres-

cente participação cívica e tecnica-

mente actualizada de governar Cabo

Verde tal como é: nação pequena,

africana, de ilhas dispersas, perifé-

ricas, diferentes umas das outras.

A ética da verdade, a criatividade e

os recursos lícitos são o caminho

proposto.

Janelas de África

Cabo Verde

1975-2015

Cabo Verde: Janelas de África – 1975-2015

atravessa quatro décadas da história recente

de Cabo Verde. A selecção de textos que com-

põem esta colectânea revela o percurso de

Corsino Tolentino como político, observador

e comentarista da realidade que o cerca e

também como académico e ensaísta. Reúne

a sua experiência na área política e diplomá-

tica, as suas vivências, opiniões e observação

minuciosa, estabelecendo diálogos com o lei-

tor sobre temas fundamentais para a com-

preensão de Cabo Verde.

ISB

N 9

78-9

89-9

9340

-4-7

7898

9993

4047

9

É diplomata e académico.

Pertenceu ao movimento de

libertação nacional e foi ministro

da educação de Cabo Verde.

Membro da Fundação Amílcar

Cabral, promoveu a criação

do Instituto da África Ocidental

e da Academia das Ciências

e Humanidades de Cabo Verde.

Trabalhando com organizações

internacionais da sociedade civil,

dedica-se actualmente à pesquisa

sobre a integração regional e as

migrações. Em 2007, a Fundação

Calouste Gulbenkian publicou

o seu livro baseado na tese de

doutoramento sobre

. Em 2008, a ACIDI publicou

o estudo

,

escrito em co-autoria com Carlos

Rocha e Nancy Tolentino. Mantém

a crónica na

revista . E em 2015

recebeu o prémio Liderança

da Universidade de Minnesota,

Estados Unidos da América.

Universidade

e Transformação Social nos

Pequenos Estados em

Desenvolvimento: O Caso de Cabo

Verde

A Importância e o

Impacto das Remessas dos

Imigrantes em Portugal no

Desenvolvimento de Cabo Verde

Águas Correntes

África 21

CORSINO TOLENTINO

JA

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CORSINO

TOLENTINO

1975

2015