o mapeamento participativo nos quilombos de ubatuba · que o mapeamento participativo também dá...

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O MAPEAMENTO PARTICIPATIVO NOS QUILOMBOS DE UBATUBA Yasminni Parra Tomaz 1 1 RESUMO O Brasil possui 517 milhões de ha de áreas de florestas naturais que abrigam milhares de comunidades tradicionais que fazem o manejo de forma sustentável. As florestas tropicais devem ser protegidas, mas os pesquisadores divergem na forma como essa conservação deve ser feita, muitos acreditam que a floresta deve ser preservada para contemplação e apreço da natureza, excluindo-se os povos que ali vivem e constroem suas estórias e territorialidades, seguindo a ideia criada nos Estados Unidos em que os parques devem ser criados pra proteger a biodiversidade animal, para estudo cientifico e como espaço turístico, sem presença humana. E outros grupos de pesquisadores acreditam que os povos tradicionais são os responsáveis pela preservação da floresta como ela é hoje, através do seu modo de vida baseado na subsistência, respeitando os ciclos da natureza. A população tradicional pode ser definida como uma população que tem uma forma própria de organização, baseada na ideia da utilização comunal de alguns espaços, vivendo dos meios que a floresta propicia, através da subsistência, da pesca e da coleta. De acordo com Diegues e Nogara, as culturas e sociedades tradicionais se caracterizam: pela dependência e conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, noção de “território”, importância das atividades de subsistência, reduzida acumulação de capital, a importância das relações de parentesco ou compadrio, a importância das simbologias associadas à caça, à pesca e atividades extrativistas e a auto identificação de se pertencer a uma cultura distinta das outras. (DIEGUES e NOGARA, 2005, p.89-90). Esta pesquisa apoiou-se na metodologia da geografia conhecida como cartografia participativa. Trata-se de uma análise espacial contra hegemônica que pode auxiliar nos conflitos territoriais. Os mapas são uma forma de instrumento de poder que acabam normatizando a ideia territorial proposta pelo estado enquanto a cartografia social busca reconhecer e dar visibilidade às diferentes territorialidades. Os mapas participativos são muito utilizados em comunidades tradicionais e também em centros urbanos quando refere-se as 1 Mestranda do programa de pós-graduação em Geografia Física da Universidade de São Paulo. Email de contato: [email protected]

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O MAPEAMENTO PARTICIPATIVO NOS QUILOMBOS DE

UBATUBA

Yasminni Parra Tomaz1

1 RESUMO

O Brasil possui 517 milhões de ha de áreas de florestas naturais que abrigam milhares

de comunidades tradicionais que fazem o manejo de forma sustentável.

As florestas tropicais devem ser protegidas, mas os pesquisadores divergem na forma

como essa conservação deve ser feita, muitos acreditam que a floresta deve ser preservada

para contemplação e apreço da natureza, excluindo-se os povos que ali vivem e constroem

suas estórias e territorialidades, seguindo a ideia criada nos Estados Unidos em que os

parques devem ser criados pra proteger a biodiversidade animal, para estudo cientifico e como

espaço turístico, sem presença humana. E outros grupos de pesquisadores acreditam que os

povos tradicionais são os responsáveis pela preservação da floresta como ela é hoje, através

do seu modo de vida baseado na subsistência, respeitando os ciclos da natureza.

A população tradicional pode ser definida como uma população que tem uma forma

própria de organização, baseada na ideia da utilização comunal de alguns espaços, vivendo

dos meios que a floresta propicia, através da subsistência, da pesca e da coleta. De acordo

com Diegues e Nogara, as culturas e sociedades tradicionais se caracterizam: pela

dependência e conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, noção de “território”,

importância das atividades de subsistência, reduzida acumulação de capital, a importância das

relações de parentesco ou compadrio, a importância das simbologias associadas à caça, à

pesca e atividades extrativistas e a auto identificação de se pertencer a uma cultura distinta das

outras. (DIEGUES e NOGARA, 2005, p.89-90).

Esta pesquisa apoiou-se na metodologia da geografia conhecida como cartografia

participativa. Trata-se de uma análise espacial contra hegemônica que pode auxiliar nos

conflitos territoriais. Os mapas são uma forma de instrumento de poder que acabam

normatizando a ideia territorial proposta pelo estado enquanto a cartografia social busca

reconhecer e dar visibilidade às diferentes territorialidades. Os mapas participativos são muito

utilizados em comunidades tradicionais e também em centros urbanos quando refere-se as

1 Mestranda do programa de pós-graduação em Geografia Física da Universidade de São Paulo. Email de contato: [email protected]

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populações minoritárias e normalmente a margem da sociedade. Esses mapas tem o objetivo

de empodera-los através do reconhecimento de seu território, buscando dar-lhes uma

representação que lhes é própria e não a do estado.

Nesta pesquisa pretendeu-se produzir um conjunto de mapas que auxiliasse no

entendimento dos diferentes conflitos de zoneamento territorial de duas comunidades

quilombolas localizadas em Ubatuba, a comunidade Caçandoca e a comunidade Sertão da

Fazenda. A comunidade Caçandoca vive no extremo sul de Ubatuba, próximo ao bairro da

Maranduba. A comunidade Sertão Da Fazenda vive dentro da área que hoje faz parte do

Parque Estadual da Serra do Mar, núcleo Picinguaba, no extremo norte de Ubatuba. As duas

comunidades apresentam situações diferenciadas em relação ao zoneamento e isso implica

em pressões diferentes. No caso da Caçandoca as questões imobiliárias se sobrepõem as

florestais. No caso da comunidade Sertão da fazenda, as restrições impostas pelo parque,

dificultam seu modo de vida. No estudo envolvendo as comunidades foi considerado pertinente

o uso da cartografia social para que fosse possível compreender o território do ponto de vista

das comunidades.

Palavras Chaves: Comunidade tradicional; Mapeamento Participativo; PESM; Quilombo

Caçandoca; Quilombo Fazenda.

2 Introdução

As florestas mundiais cobrem aproximadamente 30% do território

mundial, com 4,0 bilhões de hectares. O Brasil detém a segunda maior área

florestal do mundo, atrás apenas da Rússia. Cientistas de diversas áreas fazem

pesquisas sobre as florestas, sobre os mais diversos aspectos como

governança, etnoconhecimento, conservação, ecologia, modos de vidas

florestais e sociodiversidade. Quando se pensa sobre a conservação das

florestas, dois grandes paradigmas se contrapõem, o primeiro,

preservacionista, apoia-se na ideia de que as florestas devem ser espaços de

contemplação, espaços para o lazer, com a ausência de moradores e somente

assim elas poderiam ser conservadas. Esse modelo foi criado nos Estados

Unidos e tem como premissa “proteger áreas naturais de grande beleza cênica

para usufruto dos visitantes (de fora da área)” (DIEGUES, 2008, p. 101),

através da criação de unidades de conservação sem a presença de moradores

como no caso do parque nacional de Yellowstone, criado em 1872. O segundo

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paradigma diz que as florestas só são conservadas por causa dos povos e

comunidades tradicionais que vivem dentro delas, que com seu modo de vida,

baseado na subsistência, ajuda a preservá-las.

No Brasil existem muitos povos indígenas e comunidades tradicionais,

como caiçaras, quilombolas, populações ribeirinhas e extrativistas vivendo nas

florestas. As comunidades tradicionais podem ser definidas como uma

população com uma forma própria de organização, baseada na utilização

comunal de alguns espaços, vivendo dos meios que a floresta propicia, através

da subsistência, da pesca e da coleta. As culturas e sociedades tradicionais se

caracterizam, de acordo com Diegues e Nogara: pela dependência e

conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, noção de “território”,

importância das atividades de subsistência, reduzida acumulação de capital, a

importância das relações de parentesco ou compadrio, a importância das

simbologias associadas à caça, à pesca e atividades extrativistas e a auto

identificação de se pertencer a uma cultura distinta das outras. (2005, p.89-90).

Neste trabalho foram estudadas duas comunidades Quilombolas, que

estão em contextos territoriais distintos, no município de Ubatuba, litoral norte

do estado de São Paulo. A comunidade quilombola Caçandoca vive no extremo

sul de Ubatuba, próximo ao bairro da Maranduba e a divisa com o município de

Caraguatatuba. A comunidade quilombola Sertão da Fazenda, que localiza-se

dentro do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM,) no Núcleo Picinguaba,

nas imediações da Rodovia Rio-Santos (BR 101), próxima da divisa entre os

estados de São Paulo e Rio de Janeiro.

O objetivo deste trabalho foi comparar o modo de vida das comunidades

tradicionais da Caçandoca e Fazenda relacionando seus saberes e práticas

tradicionais com a preservação da Mata Atlântica no seu território, percebendo

as peculiaridades e diversidades em relação a base em que se apoiam as

comunidades, através do mapeamento participativo.

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3 Discussão

Os negros foram trazidos ao Brasil no período colonial para serem

escravizados nas monoculturas que se espalharam pelo país. O tratamento

dado aos escravos era desumano, eram forçados a horas de trabalho em que

não eram remunerados, recebiam sempre poucas refeições, com baixa

qualidade nutricional e quantidade aquém do mínimo necessário, viviam em

péssimas condições de moradia e sofriam muitos maus tratos e castigos.

Essas condições acabavam levando-os a fugirem de seus donos, para locais

onde outros ex-escravos se encontravam, construindo uma história de

resistência. Esses locais eram feitos em áreas mais isoladas, dentro da mata,

onde os capatazes não conseguiriam encontrá-los facilmente. Eles são

considerados os primeiros quilombos da história. No estado de São Paulo,

esses quilombos estabeleciam-se nas áreas mais isoladas, nos sertões, dentro

das Matas Atlânticas. Essas áreas mantiveram-se preservadas ao longo dos

séculos e começaram a virar unidades de Conservação a partir do Século XX.

Grande parte dessas unidades de conservação estão preservadas atualmente

pelo modo de vida das populações tradicionais que ali residem. Em São Paulo,

de acordo com o instituto Florestal, 73% das unidades restritivas de grande

porte, com mais de 10.000 hectares, possuem populações tradicionais.

(ARRUDA, 1999, p. 80). Essas populações tradicionais são responsáveis pela

conservação da floresta, através do seu modo de vida baseado na

subsistência, retirando da natureza apenas o necessário, manejando seus

recursos de forma sustentável com o profundo conhecimento sobre seu

funcionamento, associando o manejo da terra aos ciclos da natureza. A partir

desta nova perspectiva em que as populações tradicionais mantém a

preservação destas áreas, através do seu modo de vida, percebe-se a

necessidade de criação de mais unidades de conservação de uso sustentável.

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4 Metodologia

A pesquisa se desenvolveu a partir de procedimentos metodológicos

usuais de pesquisa cientifica em Geografia, em diálogo com a antropologia. O

trabalho de campo foi central como método. Antes dele foi realizada a pesquisa

bibliográfica e documental com o intuito de estabelecer um panorama da

situação das comunidades e verificar os estudos feitos anteriormente sobre

elas. Em campo foram desenvolvidas metodologias de mapeamento

participativo e etnográficas. A etnografia através da pesquisa qualitativa busca

descrever e entender o funcionamento de diversas culturas, principalmente

pela observação participante e a história oral. Neste trabalho foram utilizadas

as fontes orais, elas possibilitam que o pesquisado seja o sujeito ativo e

construtor da sua história através de seu testemunho, dando visibilidade a voz

de grupos e pessoas que muitas vezes não se fariam ouvidos da mesma forma

que o mapeamento participativo também dá esse destaque. Com este método

etnográfico, além da fala, você observa os pormenores: A linguagem usada, as

pausas, as entonações, os olhares, os movimentos do corpo, pois estes

revelam mais do que a fala em si. Para que o pesquisador consiga perceber

todas essas nuances, ele deve se informar antecipadamente sobre o contexto

histórico e cultural do lugar para que a entrevista seja produtiva.

O mapeamento participativo implica no conhecimento da realidade

mapeada. Para que se possa trabalhar com essa metodologia é importante

estabelecer relações de confiança com o pesquisado, para que o processo flua

naturalmente e as informações conseguidas sejam verdadeiras. A cartografia

social foi apropriada no século XX pelos povos indígenas na década de 1960, a

partir de uma perspectiva crítica dos mapas. (FERNANDES, 2013). A

cartografia social ‘‘reconhece e busca apreender a diferentes territorialidades

que expressam a forma como os grupos humanos produzem o espaço e dão

significado às relações espaciais que criam em seu dia-a-dia.’’ (SOUZA, 2016,

p.15). A cartografia social concebe no mapa a representação territorial de um

determinado setor da sociedade, expressando suas relações espaciais, seus

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conflitos e significados, estimulando desta forma “o protagonismo dos atores

locais a partir da elaboração coletiva de mapas que permitam a estes articular

seus saberes em favor de interesses comunitários e agir sobre seu território.”

(SOUZA, 2016, p.15-16). Ela tem uma função social, na medida em que auxilia

na gestão do território, identificando os usos tradicionais, seus conflitos,

fragilidades, potencialidades, buscando sempre o empoderamento dessas

comunidades, dando-lhes uma representação espacial que lhes é própria, com

seus signos e significados. Como todo mapa em si é social, pois sua

construção se dá pelos indivíduos da sociedade, a qual todos pertencem,

adota-se o termo mapeamento participativo, pois envolve a participação das

pessoas na sua construção, buscando representar o seu lugar. Na realização

do mapeamento participativo, algumas orientações devem ser seguidas como

saber o propósito dos mapas e para quem ele esta sendo feito, apoiar-se no

conhecimento geográfico do lugar mapeado, priorizando o uso da toponímia

local, certificar-se de que os produtos sejam totalmente compreendidos e

apropriados pelos indivíduos e por fim, reexaminar e corrigir os mapas.

(RAMBALDI et. Al., 2006 apud ARAÚJO et. Al., 2017, p.130).

O mapeamento participativo utiliza algumas técnicas para sua

realização. As principais são o mapa falado, feito inicialmente pois propicia a

integração do grupo e mostra para o pesquisador a primeira noção sobre a

área. São utilizadas ferramentas que estejam disponíveis na natureza como

rochas, gravetos e itens como post it, barbantes, que podem ser

providenciados pelo pesquisador. No chão ou em uma mesa o território é

representado através destes objetos; Os croquis são o mapeamento da

memória cartográfica do território dos mapeados feito em folhas, normalmente

são realizados de acordo com o mapa falado ou também como primeira

experiência, possuem custo baixo e são interativos; As oficinas de fotografias

aéreas registram na imagem os lugares do cotidiano como caminhos,

moradias, roças, rios, equipamentos públicos, dentre outros. É possível obter

dados sobre a ocupação do solo e ter uma imagem geral da situação do

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território; As oficinas de GPS são utilizadas para que os pontos mencionados

anteriormente sejam devidamente demarcados, se for importante essa

demarcação para o uso no mapa final georreferenciado.

5 Resultados

As comunidades estudadas vivem em contextos territoriais distintos. O

Quilombo Sertão da Fazenda encontra-se atualmente dentro da área

considerada como unidade de Proteção integral, o Parque estadual da Serra do

Mar. Por estar dentro de uma unidade de conservação, seu modo de vida é

muito restringido. Não é permitida a coleta, a pesca, a construção de novos

cômodos e casas sem autorização da fundação Florestal que gerencia o

parque. A comunidade quilombola Caçandoca vive na Serra da Caçandoca, em

área que hoje encontra-se dentro da Área Natural Tombada da Serra do Mar e

Paranapiacaba. O Quilombo Caçandoca sofre muito mais pressões

decorrentes da especulação imobiliária por ser uma área que tem praia, ao

lado do condomínio de alto padrão da Praia do Pulso, mas também as

decorrentes da lei florestal, que são bem restritivas.

5.1 Comunidade Quilombola Sertão Da Fazenda

A comunidade constituiu-se no século XIX, quando a área sediava a

Fazenda Picinguaba. Em 1884, com o falecimento da dona, ela deixou em

testamento que seus escravos fossem libertos e ocupassem áreas da fazenda.

Com sua morte a fazenda é vendida, hipotecada e comprada novamente em

1943. O novo dono nomeia o Sr. Leopoldo Braga o administrador e o autoriza a

trazer 12 famílias para trabalharem através de usufruto, não podendo arrendar

ou vender. Essas são as primeiras famílias a se estabelecerem no quilombo.

As demais são caiçaras ou descendentes de escravos provenientes de outros

bairros e cidades vizinhas. O histórico de habitação do quilombo divide-se em

alguns núcleos como Sertão do Cubatã. Areia, Praia da Fazenda, Ponta Baixa

e Sertão da Fazenda.

A comunidade desde sua constituição sofre pressões, antes de virar

parque, é possível notar a questão dos posseiros que foram invadindo os

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diversos núcleos de habitação, o sr. Leopoldo conseguiu conter somente no

Sertão da Fazenda. Com a construção do trecho entre Paraty e Ubatuba da Br

101 em 1975, cortando a comunidade em duas partes, se intensificam essas

invasões e grilagens, além dos problemas gerados pelo corte da estrada, como

o alagamento no inicio da estrada que não ocorria antes e o corte no mangue.

Em 1977 é criado o PESM e ocorre uma tentativa de fragmentação da

comunidade, expulsando moradores sobretudo da área mais valorizada, a

praia. Com a expulsão, aumentaram-se os grileiros e a área da Fazenda é

incorporada ao parque em 1979. Em 1984, foi implantado o Núcleo Picinguaba

e foi feito um acordo em que os moradores pudessem permanecer nas terras e

manter suas roças já existentes. De acordo com a visão ideológica dos

gestores do parque, a comunidade sofreu maiores ou menores pressões ao

longo dos anos. Mas em um contexto geral foram proibidos de fazer novas

roças, pescar, plantar em áreas que não fossem ao redor de suas casas,

aumentar suas casas, praticar a coivara e o pousio. Com todas essas

pressões, muitos abandonaram suas terras e foram para a cidade, sem muitas

vezes receber a indenização prometida.

Antigamente os moradores tradicionais viviam da roça, do manejo da

Juçara, da pesca artesanal nos rios e no mar e do artesanato. O dinheiro era

pouco utilizado e as trocas eram comuns. Atualmente, as áreas de roça

diminuíram, não é mais possível fazer o pousio, técnica que aumentava a

produção juntamente com a coivara, também proibidas. Hoje a comunidade

volta-se as práticas turísticas, com o recebimento de turistas, muitos moradores

capacitaram-se para serem guias do parque, as mulheres trabalham

cozinhando no alojamento para grupos. A comunidade pleiteia o

estacionamento do núcleo de visitantes de Picinguaba. Mas atividades

turísticas são sazonais e as roças fixas e hortas dificultam a subsistência

desses moradores. O quilombo foi reconhecido pelo ITESP em 2005 e em

2014, 48 famílias viviam lá, sobrevivendo da agricultura familiar, do manejo

sustentável do palmito juçara, da produção da farinha de mandioca e do

turismo.

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O mapeamento participativo foi realizado nos quilombos Caçandoca e

Fazenda em datas diferentes e possibilitou o aprendizado de suas técnicas, a

compreensão dos territórios através dos seus pontos de vistas e a

instrumentalização das comunidades. Faz se necessário reconhecer as

limitações do trabalho na medida em que o ideal no mapeamento participativo

é que a própria comunidade coordene as atividades, apoderando se dos mapas

plenamente e que se tenha uma relação de confiança estabelecida entre o

pesquisador e o pesquisado, com objetivos definidos.

No quilombo Sertão da Fazenda foram feitas as seguintes técnicas:

Mapa falado (figura 01), fotografia aérea (figura 02) e oficina de GPS

Figura 01 – Mapa Falado

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Figura 02 – Oficina de fotografia aérea

Foi possível notar alguns vetores de pressão como o constrangimento

do parque aos moradores tradicionais e seu modo de vida, as multas impostas

aos moradores ao abrirem novas roças, a falta de acordo sobre a área do

quilombo, práticas ilegais como caça e extração de palmito; e os alagamentos

decorrentes do passivo ambiental da construção da BR 101.

5.2 Comunidade Quilombola Caçandoca

A história da comunidade remonta a 1858, quando um português

comprou a fazenda onde hoje é a comunidade. A fazenda produzia café e cana

de açúcar e era mantida pelos escravos. Os muitos filhos de escravas com os

filhos do dono da fazenda acabaram tornando-se posseiros na região junto com

os netos legítimos. Ao longo dos anos a produção de café e açúcar foi

substituída pela plantação de bananas e mandioca, com a produção e

comercialização de sua farinha. (SCHIMITT, 2000)

Na década de 1960 grileiros e empresas do ramo imobiliário invadiram

as terras da comunidade, incendiando casas e expulsando os moradores.

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Quando estes resistiam, eram proibidos de usar a praia para trabalhar e

construir ranchos para os barcos. Em 1988 foi fundada uma associação que

buscava reaver o seu território através de apoio do governo. Em 1997 a

população ocupou pela primeira vez parte da área reivindicada, ao longo dos

anos isso ocorreu em outras ocasiões até que no ano 2000 a fundação

Palmares reconheceu a comunidade como remanescente de quilombo.

Atualmente a comunidade encontra-se na posse de 410 dos 890 hectares

reconhecidos.

O modo de vida da comunidade foi muito baseado nas roças, com a

produção de vários gêneros alimentícios, na pesca, na caça e na criação de

pequenos animais. Atualmente, como muitos moradores foram para os bairros

vizinhos quando foram expulsos, acabaram por trabalhar como caseiros,

pescadores ou na prefeitura. Hoje as atividades são voltadas principalmente ao

turismo (muitos moradores tem barracas na praia, cuidam dos carros, venda de

artesanatos, trabalho de guia) e a pesca e muitos trabalham nas casas do

condomínio do Pulso. O mapeamento participativo pode identificar sobretudo

as questões conflituosas (figura 03), de delimitação de território (figura 04) e

áreas perdidas.

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Figura 03 – Questões do quilombo Caçandoca

Figura 04 – Limites do território Caçandoca

Foi possível notar alguns vetores de pressão na comunidade como

acesso a educação, transporte público, educação, energia elétrica, o

zoneamento ecológico econômico restritivo, o fato de estar em uma área

tombada pelo Condephaat, suas muitas nascentes, protegidas pelas leis

florestais e que restringem um raio mínimo de preservação, a pressão

imobiliária por ser uma área de grande potencial turístico.

6 Conclusões

Foi possível constatar no campo, em conversas com os moradores, as

inúmeras pressões aos quais são submetidos, com a diminuição das áreas

destinadas as roças, a proibição das técnicas de cultivos antigas como a

coivara, a rotação de culturas e o pousio, as dificuldades de se conseguir

autorização para plantar no tempo certo da cultura dos produtos, ou mesmo

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fazer reformas ou construir novas moradias. Faz-se importante analisar todas

essas questões e acompanhar o que a comunidade deseja.

O mapeamento participativo é um instrumento importante de luta

compartilhada entre a academia e a comunidade, na medida em que da

visibilidade aos conflitos e ajuda a geri-los, articulando a comunidade e deve

ser sempre explorado quando se trata de comunidades tradicionais.

7 Referências bibliográficas

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aplicações. Bol. geogr., Maringá, v. 35, n. 2, p. 128-140, 2017.

DIEGUES, Antônio Carlos Sant’ana. O mito moderno da natureza intocada.

Brasil: Annablume, 2008.

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Parque. Brasil: Hucitec/Nupaub, 2005.

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79-92, 1999.

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Cartografia: Discussão sobre experiências de aplicação dessa metodologia a

partir da Cartografia Social. 2013. 80 f. Trabalho de conclusão de curso

(bacharelado e licenciatura - Geografia) - Universidade de São Paulo,

Departamento de geografia, 2013. No prelo.

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Quilombo Da Caçandoca, Município De Ubatuba/São Paulo. 2000.

SOUZA, Társio Magalhães Tognon Vieira de. Cartografia e aprendizagem

social: A experiência de mapeamento participativo das comunidades

quilombolas Ribeirão Grande e Terra Seca, Barra do Turvo/SP. 2016. 171 f.

Dissertação - Ciência Ambiental, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.