o figurino de martim gonÇalves para “victor ou as crianÇas no poder”
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O FIGURINO DE MARTIM GONÇALVES PARA VICTOR OU AS CRIANÇAS NO PODER
ALUNO: CAIO FIGUEIREDO EDMUNDO (Graduando em Design de Moda, UVA)
ORIENTADOR (A): JUSSILENE SANTANA (Doutorado em Artes Cênicas, UFBA)
RESUMO
O seguinte artigo visa descrever e explicar o processo de criação e pesquisa dos figurinos
teatrais e sua influência em cena, dando foco nos trajes de cena da peça teatral Victor ou as
Crianças no Poder de Roger Vitrac e executados pelo diretor cênico Eros Martins Gonçalves
Pereira, mais conhecido apenas por Martim Gonçalves, em sua longa passagem pelo estado do
Rio de Janeiro entre os anos 60 e 70.
Palavras-chave: teatro, figurino, Martim Gonçalves, figurinista, processo de criação.
ABSTRACT
The following article aims to describe and to explain the process of creation and research of
theatrical costumes and their influence on stage, giving focus on the costumes of the theatrical
play “Victor, or the Children Take Over” by Roger Vitrac and executed by the theatrical
director Eros Martins Gonçalves Pereira in his long passage from the state of Rio de Janeiro
between the years 60 and 70.
Keywords: theatre, costume, Martim Gonçalves, costume designer, creation process,
1. INTRODUÇÃO
A faculdade de Design de Moda é um curso de graduação, na modalidade
bacharelado, que funciona na Escola do Design da Universidade Veiga de Almeida – UVA. O
curso tem em seu histórico, profissionais sólidos no mercado e mais de 10 anos de existência,
sendo o primeiro da área reconhecido pelo MEC no Rio de Janeiro.
O referido curso tem em sua ementa de 2011 a finalidade de formar designers
aptos a atuar em diversas áreas da moda e do design, como produção de moda, modelistas,
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estilistas, pesquisadores, gestores de marcas, programadores visuais, entre outras funções.
Embora não tenha habilitação, em alguns casos, alunos formados em design de moda acabam
por atuar no campo da indumentária.
O artigo pretende explicar como é feito o estudo da criação de trajes de cena e
seus processos criativos e também abordar a vida e o trabalho de figurino do diretor teatral
pernambucano Eros Martins Gonçalves Pereira, de sua infância em Recife, da fundação da
Escola de Teatro da Bahia, até seu retorno para o Rio de Janeiro onde executou diversas peças
teatrais, dando foco em Victor, ou as Crianças no Poder, de 1963. Além disso, a pesquisa usa
como base bibliográfica autores da área, como Rosane Muniz e Fausto Viana, Mary Louise
Nery, Samuel Abrantes, entre outros.
O esperado desse artigo acadêmico é expor tanto a importância do figurino e do
figurinista, como também a obra desenvolvida por Gonçalves no teatro e sua influência nos
processos de criação de trajes de cena, já no Rio de Janeiro, tendo em vista que não há
pesquisas acadêmicas do supracitado teatrólogo nesse âmbito.
2. A IMPORTÂNCIA DO FIGURINO E DO FIGURINISTA
Com o passar da história do teatro, vem-se notando a forte importância que o
figurino tem recebido. Nos dias atuais, em pleno século XXI, o figurino é essencial para o
bom funcionamento e entendimento do contexto histórico-social que a peça teatral propõe,
pois muitas vezes ele transporta o público para tempos passados. Além de sua importância
para situar o momento em que se passa o acontecimento, também é um forte suporte para o
próprio ator. “É a máscara que esconde o indivíduo-ator. Protegido por ela, pode-se despir a
alma até o último, o mais íntimo detalhe” (STANISLAVSKI, 1983, p 53).
Quando bem executado, o figurino expõe parte da personagem apenas em sua
estética, ficando subentendida a personalidade das mesmas com o uso e mistura das cores,
assim como o corte e montagem da modelagem das peças. Para isso, deve ser feita uma
profunda pesquisa de materiais e testes de cartela de cor, fatores esses que ajudam a revelar
em qual momento da vida, classe social, entre outros, a personagem se encontra. Sendo assim,
é sempre útil a união entre figurinistas e atores principalmente pela troca de experiências e
informações que essa parceria pode render. “Ao vestir-se é que o intérprete se paramenta para
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entrar definitivamente na personagem e concretizar o mistério do fazer teatral” (MUNIZ,
2004, p 44).
Essa importância do figurino se dá pelo fato do mesmo acabar se tornando
metáfora da personalidade das personagens, ou seja, muitas vezes é identificável qual a
função e jeito da personagem apenas por seus trajes, sendo que as roupas refletem suas ações
e condições, mesmo aquelas que atuam como pano de fundo e que estabelecem um mundo
povoado pelas personagens principais (LA MOTTE, 2010).
Não só no teatro, como na televisão e no cinema, a construção do figurino está
intrinsicamente ligada com a história, tendo peso no desenvolvimento do espetáculo em todas
as suas formas, como define LEITE e GUERRA (2002 p 76):
O figurino representa um forte componente na construção do espetáculo, seja no cinema, no teatro ou na televisão. Além de vestir os artistas, respalda a história narrada como elemento comunicador, induz a roupa a ultrapassar o sentido apenas plástico e funcional, obtendo dela um estatuto de objeto animado. Percorre a cena no corpo do ator, ganha a necessária mobilidade, marca a época dos eventos, o status, a profissão, a idade do personagem, sua personalidade e sua visão de mundo, ostentando características humanas essenciais e visando à comunicação com o público.
Complementando a citação das autoras supracitadas, deve-se dar o crédito
também ao criador e ao processo de criação dos trajes de cena: o figurinista. Ele é a peça
fundamental no processo de criação e confecção dos trajes de cena, e de acordo com VIANA
(2010), “é fundamental do ponto de vista da execução final porque vai fazer a ‘tradução’ dos
desejos do ator. O ator pode saber manifestar um desejo, mas não sabe, muitas vezes, realizar
aquilo que propõe”.
Cabe ao figurinista ter domínio do momento histórico que vai trabalhar, sendo
necessário no início de toda produção cênica, um extenso trabalho de pesquisa para que não
ocorram gafes de conotação histórica ou até mesmo por questões sazonais mal estudadas. Por
conta desses erros, a crítica de teatro, Bárbara Heliodora aborda justamente a falta de pesquisa
e de referências em trabalhos de pesquisa no Brasil quando se trata de estudo de trajes de cena
em seu depoimento para MUNIZ (2004, p 33).
Ou é frio ou não é. Tem que saber que a coisa é completa. Se o clima da peça é de inverno,
tem que o ser da cabeça aos pés [...] No Brasil, monta-se uma peça do século XV e coloca-
se uma cadeira de medalhão. Se a peça é no século XVI, XVII ou XVIII, lá está a mesma
cadeira de medalhão no palco. Ninguém sabe a diferença por aqui.
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De acordo com o professor Marcílio Vieira (2011, terceiro parágrafo), o ensino
artístico no Brasil ainda é carente, tanto de incentivo quanto de profissionais qualificados para
ministrar aulas de artes, além de não fazer parte da grade de aulas de muitas escolas – Esse
fato explicaria o desinteresse e, muitas vezes, a falta de conhecimento artístico-temporal. Ao
contrário do que acontece na Europa, onde o ensino de artes e arquitetura é feito em todo o
estágio escolar e não apenas realizado em universidades.
Uma das grandes fontes de estudo para os figurinistas são os movimentos
artísticos em todas as suas manifestações, da poesia até a pintura, essa última tendo grande
peso, pois nelas além do vestuário são traduzidos os costumes, hábitos e diferenças entre
classes sociais. A esse respeito, MOURA (2006, p 41) afirma que:
A moda, o vestuário, os ambientes e os objetos sempre foram registrados nas obras de arte de diversas civilizações, nos diferentes tempos históricos. Portanto, são encontrados, podem estar presentes e ser estudados, resgatados e citados a partir do universo das artes.
Sendo assim, pode-se chegar à conclusão da grande utilidade que é usar obras de
artes na pesquisa de composição teatral e no processo de criação, o que vem sendo
incentivado nas universidades de figurino e tem sua importância definida por ABRANTES
(2012 p 73):
Dialogar com o processo criativo é reconhecer as suas ramificações, os desdobramentos e associações dos diversos momentos, do sentimento de memória, dos elementos gráficos e estados emotivos, que experimento no exercício de minha função de figurinista, independente dos resultados plásticos e visuais que atinjo.
A figura do profissional que lida apenas com o figurino – o figurinista – é
relativamente jovem, só começou a aparecer por volta de 1940. Antes desta data a maioria das
peças eram encenadas com trajes dos acervos pessoais de cada ator. O figurino só adquiriu
relevância com a consolidação, nos anos 1950 e 60, da figura do encenador. (MUNIZ, 2004, p
36). Ainda assim com toda a evolução atual e com a importância que levam os trajes de cena,
a indumentária na maioria das vezes é apenas pensada depois de definido o cenário,
iluminação, e outros elementos.
Após todo o período de criação, pesquisa e trocas de informação com direção e
atores, o figurinista pode enfim passar as ideias finais para o papel em forma de croquis e
desenhos técnicos que serão os principais guias para a confecção dos figurinos. IGLECIO e
ITALIANO (2012, p 10) defendem que esse processo de criação é bem distinto de uma
criação de moda: “A criação de trajes de cena se diferencia da criação de vestuário de moda,
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uma vez que existe uma completa liberdade de criação, independente de estilo, tendências ou
aspectos sociais impostos pelo produto de moda.”.
Embora para certos figurinistas um profissional de moda não esteja totalmente
apto a fazer um trabalho de figurino, nota-se um crescimento do trabalho desses profissionais
na área. Fause Haten com “O Mágico de Oz”, Samuel Abrantes – que é formado em moda –
com a “Escola de Bufões” e até mesmo o francês Christian Lacroix com seus exuberantes
trajes de ballet para a Ópera de Paris, são grandes exemplos que designers de moda estão cada
vez mais aptos para fazerem essa integração entre moda e figurino.
O figurino e o figurinista que no passado eram substituídos por roupas e
profissionais não especializados, hoje são de vital importância para o funcionamento do
teatro. Além de se provar necessário, o figurinista é um exímio pesquisador e é o profissional
que deve estar sempre em comunicação com os atores e diretores, para que tenha um bom
funcionamento no meio cênico.
O interesse por pesquisas científicas e estudos na área da indumentária teatral vem
aumentando, da mesma forma que o próprio figurinista também está sendo mais valorizado.
No Brasil esse profissional está saindo do estágio de engatinhar para começar a dar passos
mais seguros, impulsionados pelos gênios e percursores da indumentária brasileira, Pode-se
citar então: Gianni Ratto, italiano que veio ao Brasil em meados dos anos 50 e ficou; Kalma
Murtinho que junto de Maria Clara Machado e Eros Martins Gonçalves Pereira formaram o
teatro “O Tablado” em 1951. Martim Gonçalves, pernambucano que dentre vários ofícios foi
artista plástico, diretor teatral, cenógrafo e figurinista, tendo sido o responsável pela formação
do curso de Artes Cênicas na Faculdade Federal da Bahia (UFBA) e o teatro do mesmo.
Foto 1: Maria Clara Machado na porta d’O Tablado em 1951
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3. MARTIM, A ESCOLA DE TEATRO DA UFBA E O RETORNO AO RIO
Nascido como Eros Martins Gonçalves Pereira no dia 14 de setembro de 1919, em
Recife, Pernambuco, ficou conhecido posteriormente simplesmente como Martim Gonçalves.
Em sua infância, cresceu em um ambiente onde as artes em todas as suas formas eram
totalmente incentivadas, seu pai possuía interesse em teatro, enquanto sua mãe estudou
pintura. Foi ela quem incentivou Martim a desenhar, posteriormente contratando Odilon
Tucuman – renomado paisagista pernambucano da época – para ser o tutor particular de
Gonçalves. (SANTANA, 2011, p 51).
Anos depois, em 1941, Martim já formado em medicina resolve partir para o Rio
de Janeiro sem pretensão de voltar. De tantas visitas ao poeta Aníbal Machado, pai de Maria
Clara Machado – que viria a se tornar sua grande amiga, e juntos viriam a fundar o grupo
teatral O Tablado em 1951 – cogita deixar de ser médico. Frequentar a casa da família
Machado fora importante para Gonçalves, pois nas frequentes reuniões que Aníbal dava em
sua casa, pode conhecer nomes influentes da cena cultural carioca, como Cândido Portinari,
Lasar Segall e Alberto da Veiga Guinard. (SANTANA, 2011, p 71).
Figura 2: Martim Gonçalves formado em medicina
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Em março 1944 ganhou o primeiro lugar no Concurso Garcia Lorca, evento
criado pela Companhia Dulcina de Morais, com sete cenários desenhados e trajes de cena
desenvolvidos para a peça Bodas de Sangue, texto de Federico Garcia Lorca. Também nesse
mesmo ano, Gonçalves ganha uma bolsa de estudos do Conselho Britânico na Inglaterra para
cursar Cenografia na Slade School of Fine Arts em Londres e o Ruskin College de Oxford,
voltando dois anos depois com seu curso completo e cheio de méritos.
Em seu retorno para o Brasil, Martim se engajou em diversos trabalhos cênicos,
atuando em companhias teatrais em diversos estados, sendo colunista teatral de O Jornal no
Rio de Janeiro e professor do curso de Decoração Teatral na União Nacional dos Estudantes
(UNE). Já com vários trabalhos realizados, Martim ganha a oportunidade de estudar no
Institut des Hautes Études Ceinématographiques (Ihdec) em Paris, do Governo Francês em
1949, retornando em 1950 e fundando no ano seguinte com Maria Clara Machado o grupo de
teatro O Tablado.
Figura 3: Cenários e figurinos de Bodas de Sangue, de Garcia Lorca
Martim colecionou diversas vitórias em sua sólida carreira como diretor teatral,
porém seu maior desafio começaria no final de 1955, como retrata SANTANA (2011 p 120).
No final de 1955, Martim Gonçalves era um homem profundamente bem formado. Culto, poliglota, viajado, premiado. Passados nove anos do regresso da Inglaterra, tinha conseguido construir um sólido currículo feito em três áreas: Artes Plásticas, cinema e teatro. (...) Não obstante, sua força poética e talento criativo como que aguardavam o verdadeiro momento de expansão. E este viria ao aceitar o convite para a maior oportunidade de sua carreira: organizar e dirigir uma escola de teatro, a primeira no Brasil a existir dentro de uma estrutura universitária, a Universidade da Bahia.
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A criação de uma escola de teatro em uma universidade federal foi algo decisivo
para que fossem divididas opiniões sobre Martim. Antes mesmo de aceitar a proposta,
Gonçalves passou por um processo de reflexão e por conta disso, desenvolveu um curso
intensivo sobre a história do teatro, para que assim pudesse estar em contato com o ambiente
que viria se tornar a escola de teatro. Após o tempo de expectativa, em 1956 finalmente é
criada a Escola de Teatro da Bahia, onde além de criador, Martim Gonçalves foi o gestor até
1961. Nesse ano, enquanto estava nos Estados Unidos, Gonçalves teve uma exposição
negativa na imprensa baiana, que o acusavam de ser um gestor displicente sem ao menos
ouvirem a sua versão da história e por esse fato ele é afastado definitivamente da escola de
teatro que ele mesmo fundara. Em seu retorno para o Rio de Janeiro, recebe o prêmio de
Diretor Revelação pela Sociedade de Críticos de Teatro do Rio de Janeiro por todo o seu
trabalho realizado na Bahia.
Em sua trajetória entre os anos de 1960 e 1970, executa pelo menos 16 peças
teatrais, estando entre elas: Bonitinha, mas Ordinária de Nelson Rodrigues, A História do
Zoológico do americano Edward Albee, A Noite dos Assassinos, do cubano José Triana,
Victor, ou as Crianças no Poder e várias outras.
4. A ANÁLISE DOS TRAJES DE VICTOR OU AS CRIANÇAS NO PODER
Victor ou as crianças no poder é uma peça surrealista escrita pelo francês Roger
Vitrac (1899-1952) que conta a história de um menino sensível e puro chamado Victor, que
no seu aniversário de 9 anos recusa a fazer parte do mundo dos adultos, pois vê em sua casa c
um mundo perversamente duro, incestuoso e cheio de mentiras. Sua família de burgueses logo
fica afrontada com a recusa do garoto em amadurecer, porém Victor é inflexível e não quer
perder tudo que sente de melhor.
A peça foi dirigida pela primeira vez no Brasil por Martim Gonçalves em 1963, e
encenada pelo Grupo Teatro Novo no Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro. Vale dizer
que a cenografia e os trajes de cena também foram executados por Martim.
O Teatro Maison de France foi inaugurado nos anos de 1950, no centro do Rio de
Janeiro e serviu de palco para peças teatrais grandes, mas ficou conhecido por sediar o Prêmio
Molière de Teatro durante 27 anos.
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Figura 4: Martim Gonçalves (centro) e atores
Como visto em seu histórico, Martim Gonçalves não tinha como principal função
a de figurinista, antes de tudo ele era diretor teatral e cenógrafo. Independente deste fato e
também por conta de seus vários anos de pintura e desenho, ele tinha conhecimento sobre
anatomia corporal.
Como a peça se passa na passagem da Revolução Industrial para a ascensão da
burguesia, Gonçalves usou de elementos presentes no vestuário do Século XIX para compor a
criação dos trajes de cena, são eles: O uso do preto e de cores escuras para compor o figurino
masculino, vestidos femininos com bons tecidos e cortes bem aprumados como resultado da
solidificação da indústria têxtil e o uso do branco no vestuário infantil.
O uso de pesquisas históricas para a composição do figurino é notado na análise
de imagens pelo zelo que o diretor teve na concepção dos trajes e pela fidelidade com que ele
procurou manter no conceito da peça. Ao examinar a fotografia com o elenco de atores, é
facilmente distinguível a classe social das personagens, é perceptível a diferença da qualidade
do tecido das roupas da família burguesa que vestem roupas com cortes bem feitos com o
típico ar de “elegância comprada”, que não é natural e a de outros personagens, como o
policial usando a austera farda escura de tecido grosso, passando assim uma sensação de
pessoa severa e a empregada que traja o típico vestido preto de cortes retos e o avental branco
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sobreposto ao mesmo, sendo uma mensagem visual que comunica o lugar em que ela
“pertence” socialmente.
Figura 5: Atores de Victor ou as Crianças no Poder
Por consequência do estudo de época, houve um trabalho primoroso em questões
de caracterização de personagem. Levando em consideração que não haviam os subsídios que
existem hoje há 40 anos atrás, Martim Gonçalves e seu perfeccionismo conseguem situar bem
a composição completa das personagens, fatores que ficam bem claros na análise do figurino
feminino da Figura 5: o penteado bem pensado e feito, a luva cobrindo todos os dedos da mão
em um tecido mais escuro que o vestido, os detalhes delicados costurados no decote do
vestido, joias exuberantes e ostentativas além do detalhe mais chamativo que é o uso do
chapéu de aba larga com uma única pluma larga e branca, fazendo contraste com o resto do
vestido escuro. Esse tipo de vestuário é o típico traje de passeio das mulheres da Era
Industrial, nesse caso pelo generoso decote uma mulher ousada, que usa um colar grande
cravejado de pedras para não deixar o colo inteiramente desnudo.
O vestuário infantil da personagem masculina já é o oposto do da mulher,
começando pelo fato de ser um figurino infantil. Os itens que ficam mais claros quanto às
formas e detalhes da roupa da criança do século situado são os pequenos babados e franzidos
tanto nas mangas, quanto na gola da camisa. Mary Louise Nery (2003) explica o uso dessas
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aplicações nos costumes infantis pelo fato de que embora a indumentária adulta e a infantil
não fossem mais idênticas desde a Era Medieval, ainda possuem muitas semelhanças.
Outro fator que desmascara o figurino infantil é o uso do branco. As crianças
tinham liberdade para usar o branco sem a necessidade de outro costume escuro cobrindo,
pois é uma cor que remete a pureza e a inocência infantil e Martim usou com maestria esse
fato.
Figura 6: Atores de Victor ou as Crianças no Poder posando para foto
Como a Figura 6 mostra, o figurino infantil da peça é distinto em diversos pontos
do figurino adulto, é sempre necessário um estudo específico em cima da indumentária
infantil, questões como comprimento de vestido, o uso de bermudas e comprimento de
mangas difere totalmente nessa questão do figurino tradicional. No caso da personagem
feminina, é notada uma sobreposição de saias que foram costuradas junto à parte superior do
vestido, como resultado é obtido um volume extra na saia godê. Os bordados com razões
infantis na barra da saia e no babado costurado junto à gola passam um ar de graciosidade e
leveza na composição final, assim como a jovialidade da personagem é revelada também pelo
uso dos cabelos curtos e dos laços.
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Já no figurino da personagem masculina, como dito anteriormente, aparecem
referências à infância nas mangas e na gola, porém agora com um novo elemento: o laço de
veludo amarrado ao colarinho. Um elemento destacável também é o uso da bermuda pouco
abaixo do joelho. De acordo com Harvey (2003 p 30), para os homens adultos, não era
socialmente aceito fugir dos padrões da época, e definitivamente o uso de bermudas fugiam
desses padrões.
A falta da cor preta na indumentária infantil pode significar que a criança ainda
não está psicologicamente preparada para “suportar” o peso dessa cor, que vem a funcionar no
século XIX quase como um rito de passagem entre a juventude e a vida adulta.
5. CONCLUSÕES FINAIS
Ao longo da história do teatro, os trajes de cena deixaram de ser apenas roupas e
passaram a ter grande valor e representação no espetáculo. O processo de criação de um
profissional que trabalhasse exclusivamente com o figurino começou a ser mais respeitado e
valorizado, o “personagem” figurinista deixou de ser dispensável para se tornar fundamental
na montagem de uma dramaturgia.
No Brasil, essa visão foi se estabelecendo pelo trabalho de profissionais como
Gianni Ratto e Kalma Murtinho, que ao longo de suas carreiras ganharam o respeito merecido
no meio das artes cênicas e foram os percursores desse tipo de profissional.
Eros Martins Gonçalves Pereira, que adotou o nome profissional de Martim
Gonçalves, foi de uma geração que no teatro todos tinham funções acumuladas. O diretor era
cenógrafo e figurinista ao mesmo tempo, exercia 3 ou mais ofícios para a montagem de uma
peça. Foi um homem admirável, que soube explorar as maiores potências que tinha a oferecer,
impulsionou a situação cênica na Bahia e no Rio de Janeiro, e mesmo não tendo o figurino
como função primordial, também pode ser enquadrado nas funções desse profissional, afinal
além de executar de forma bem sucedida o trabalho com indumentária teatral, ele soube como
fazer uma pesquisa de figurino, o que viria a ser o processo de criação contemporâneo.
Justamente por ser um estudioso por natureza, tinha o conhecimento de como explorar bem os
roteiros que dirigia e acima de tudo, foi um nome que deve ser usado como referência no
teatro por todos os seus profissionais.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Maria Clara Machado na porta d’O Tablado (acervo de fotos d’O Tablado).............5
Figura 2: Martim Gonçalves (AMG/AHG)................................................................................6
Figura 3: Cenários e trajes de cena de Bodas de Sangue (AMG/AHG).....................................7
Figura 4: Martim Gonçalves e a equipe de atores de Victor ou as Crianças no Poder (acervo
de Jussilene Santana)..................................................................................................................9
Figura 5: Atores encenando Victor ou as Crianças no Poder (acervo de Jussilene Santana).10
Figura 6: Atores de Victor ou as Crianças no Poder posando para foto (acervo de Jussilene
Santana).....................................................................................................................................11
REFERÊNCIAS
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Pesquisadores: Traje de Cena. São Paulo: Estação de Letras e Cores, 2012.
HARVEY, John. Homens de Preto. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
IGLECIO, Paula. ITALIANO, Isabel. O figurinista e o processo de criação de figurino.
Anais do 8º Colóquio de Moda. Rio de Janeiro, 2012.
LA MOTTE, Richard. Costume Design: The Business and Art of creating costumes for
film and television. Michigan: McNughton & Gunn, Estados Unidos, 2010.
LEITE, Adriana. GUERRA, Lisette. Figurino, uma experiência na televisão. São Paulo:
Paz e Terra, 2002.
14
MOURA, Monica. In: PIRES, Dorotéia (Org.). Design de Moda: Olhares diversos. São
Paulo: Estação das Letras e Cores, 2008.
MUNIZ, Rosane. Vestindo os Nus: O Figurino em Cena. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2004.
NERY, Marie Louise. A evolução da indumentária: Subsídios para criação de figurinos.
Rio de Janeiro: Editora Senac Nacional, 2003.
SANTANA, Jussilene. Martim Gonçalves: Uma escola de teatro contra a província. Tese
de Doutorado, Bahia, 2011.
STANISLAVSKI, Konstantin. A Construção do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1983.
VIANA, Fausto. Figurino Teatral e as Renovações do século XX. São Paulo: Estação das
Letras e Cores, 2010.
VIEIRA, Marcílio. Desafios do Ensino de Arte. Disponível em:
<http://www.mundojovem.com.br/artigos/desafios-do-ensino-de-arte>. Acesso em: 07 out.
2013.
_____ Teatro Maison de France. Disponível em:
<http://teatromaisondefrance.com.br/index.php/o-teatro>. Acesso em: 18 out. 2013.