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1 Zésouza O Diabo No Trem Baiano (2012)

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Zésouza

O

Diabo

No

Trem

Baiano

(2012)

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Jurado de morte o coroné

Nézinho viaja de São Paulo a

Juazeiro da Bahia no Trem

Baiano.

Povoados,vilas e cidades

passam pela janela do trem

enquanto a histórias e lendas

desses povoados,vilas e

cidades passam pelo

corredor desse trem...

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Coroné Nézinho di Carnaíba do Sertão, seguido

de seu fiel escudeiro Zédizefa, saltou do bonde e

entrou no Mercado Publico sacudindo a bengala e

sentindo o cheiro gostoso da fartura. Chapéu

branco e aquela alegria, que São Paulo oferecia,

de poder andar de camisa de manga comprida. E foi

a Banca do Sergipano que ali tinha as coisas do

gosto do povo do norte: fubá de milho, feijão de

corda, manteiga de garrafa, castanha de caju

torrada, goma pra fazer tapioca, licor de

jenipapo, rapadura, pinga e muito mais. E o

Sergipano sabia noticias de todo o canto daquele

norte, que na verdade é o nordeste,que chegavam no

sul, que na verdade é o sudeste.

Depois de contar que os moleques amarraram um

bode no sino da estação de Carnaíba do Sertão, e

que o bicho berrou e pulou a noite toda batendo o

sino e assombrando meio mundo. Depois de contar

que na vila da Massaroca muita gente viu o Saci-

Pererê montado num jegue. Depois de contar que um

retirante chegou no Juazeiro com tanta fome que

comeu dez canecas de mungunzá. Depois de contar

perguntou:

- O coroné tá contente?... O distrito tem é

mais nove votantes...

Coroné Nézinho regalou o olho

interrogativamente. Olhou pro Zédizefa, olhou pro

Sergipano, sacudiu a bengala. O Sergipano contou:

- A pois que Severino Cabeça de Égua, voltou

pra Carnaíba... Ele mais a família e mais os três

genros, e é tudo gente que sabe escreve o nome...

É gente que vota...

Coroné Nézinho nem contou até dois e puxou

Zédizefa pelo braço e rumou pra casa.

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Coroné andando de lá pra cá, de cá pra lá,

batendo com a ponta da bengala no assoalho da

sala. Zédizefa debruçado na mesa entre jornais,

envelopes, tinteiro, pena, mata borrão, lápis,

borracha e cadernos, finalmente encontrou o que

procurava:

- Tá aqui... A última carta que Zé do Bode

mandou...Carnaíba do Sertão no dia vinte...

- Pule isto.

- Estou pegando na pena...

- Oxente! Pule os começos.

- O trem da Leste matou um bode de

Quinzinho...

- Pule isso... Getulio Vargas preocupado com

monopólio do petróleo e o besta preocupado com um

bode... Siga.

- Democraticamente nas nossas democracias

perdemos um eleitor a pois que o Toínho roubou a

mulher do Lalau e ele mais ela tomaram a garupa do

trem da Leste no rumo dos mundos de São

Paulo...Vou terminando mais essa pedindo as

devidas desculpas pela letra...

- E não falou da chegada de Severino Cabeça de

Égua mais a família na Carnaíba?

- Falou não.

- É... Pega o caderno e veja quantos eleitores

nós temos no distrito.

Zédizefa abriu o caderno e mostrou:

- Veja o último número com os olhos do senhor.

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Coroné leu o numero, bateu a bengala e

perguntou:

- Nessa conta, você já tirou o Toínho?

- Sim... Sempre que chega uma carta com

informação, lá da Carnaíba...Já boto os números em

dia.

Coroné andou, desandou, foi ali, voltou

praqui, pensou e decidiu:

-É...Zé do Bode não sabe manejar com as

democracias... Os adversários tão é rindo de nossa

cara... Lesbão, que é o cabo eleitoral deles na

Carnaíba, tá é lavando a égua...A pois eu mais tu

tamos voltando pra Carnaíba do Sertão...

Zédizefa levantou tremendo e perguntando:

-O coroné tá doido?

Coroné olhou o Zédizefa de cima a baixo e

disse:

- Tá se borrando seu cabra frouxo!

O coroné não tava em São Paulo nem a passeio e

nem em serviço e sim por recomendação médica.

Relaxamento de sistema nervoso. Que tudo começou

quando o coroné discutiu política com um cabra de

nome Epifanio. E a discutição foi violenta. No

outro dia o Epifanio vinha pelo caminho da

Carnaíba pro Juazeiro com um bode de cabresto.

Coroné viu e logo teve o pensamento: Epifanio

vende o bode, compra um revolver e vem matá eu.

Coroné matou o Epifanio. Claro! Legítima defesa.

No sertão o cabra macho não tem o direito de se

defender, ele tem é o dever. Depois dos qüiproquós

com o delegado e com o prefeito, foi então que o

médico do partido e da família aconselhou: vá pro

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sul, tire um tempo lá em São Paulo e de tempo ao

tempo pra o acontecido se perder no esquecimento.

Aconteceu que um parente de Epifanio andou

falando na feira do Juazeiro e o que ele falou se

espalhou, pela Rua da Apolo, Rua da Vinte Oito,

Rua do Cais, no Mercado, na Estação da Leste, no

Alagadiço, no Quidé, no Alto do Cruzeiro,na

Maringá, no Piranga, No Angari e se espalhou pelos

distritos da Massaroca, do Juremal e na Carnaíba

do Sertão. O que ele falou foi:

- O dia que coroné Nézinho voltar ele vai vê o

diabo no Trem Baiano... O diabo no Trem Baiano.

A casa se respirava Nordeste, alias, respirava

Bahia, na verdade respirava a Juazeiro. Nas

paredes os retratos da Ponte Presidente Dutra, da

bonita Estação da Leste, da Catedral de Nossa

Senhora das Grotas. A carranca, esculpida em

madeira, num canto da peça. Calendários de casas

de comercio de Juazeiro e até um de Carnaíba do

Sertão.Da cozinha a mistura de cheiros de coentro,

nós moscada, gengibre, azeite de dendê, leite de

coco, de peixe, de carne de sol.

Coroné Nézinho sentado a cabeceira da mesa.

Junto ao fogão Vandinha e Leninha pilotando as

panelas. Belinha ajeitando os pratos e talheres na

mesa. Num canto sentados os três maridos tomando

uma cachacinha composta com carqueja e umburana.

Afastado,recostado na parede, o Zédizefa.

Vandinha a irmã mais moça e a mais forte mexia

o vatapá e enquanto dava muque falou:

-Se Nézinho tá querendo ir, que vá até

Pirapora de trem e vá prá Juazeiro de vapô.

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Coroné bateu a bengala no chão e falou:

- Eu vou, mas é no trem da Leste. Imagina; se

embarca no Benjamin Guimarães que vai parando em

tudo que é porto?

Zédizefa entrou na conversa:

- O mais bom é se pegar o Vapozinho...O

Vapozinho Saldanha Marinho corta água...

Dona Belinha olhou por trás das lentes grossas

de seus óculos e deu a ordem:

- Zédizefa... Limite se.

Leninha fez sinal para Zédizefa botar lenha no

fogo e disse:

- Com o Nézinho e com jegue não se

discute...Só digo uma...Já deixa escrito como vai

dividir sua roça, porque seus três filhos vão

brigar...

Coroné sacudiu a mão no ar falando:

- Cuide a moqueca pra não queimar.

Dona Belinha, baixinha gordinha, míope mas

enxergava longe. A única que não morava em São

Paulo, morava no Rio de Janeiro a Capital Federal

onde era funcionária do Senado Federal, veio

acompanhada do marido no trem noturno de luxo

chamado Santa Cruz especialmente para aquela

reunião. Pois dona Belinha disse:

- Zédizefa chegue perto e bote

atenção...Nézinho tá com sessenta anos, tá viúvo,

tá com os filhos criados,tá vacinado contra a

febre amarela...Qué voltar pro sertão, gosta da

caatinga, pois a vontade é sua...

- Vou e vou no Trem Baiano...

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- Pois me avise com certeza o dia que você vai

embarcar no Brás...Avise-me mesmo, que eu tenho

que passar uns telegramas... Uns telegramas...

-Avisarei.

Dona Belinha apontou o Zédizefa e disse:

- Você, quando chegarem na Carnaíba do Sertão,

tome providencias pra organizar uma dança de São

Gonçalo...É promessa:vinte quatro rodas...E fique

atento; se não acontecer nada com o Nézinho nessa

viagem tem mais uma promessa, tá entendendo?

- Sim senhora.

- Pois Zédizefa a promessa é a seguinte: você

vai ser Penitente do Juazeiro...

Zédizefa pulou pra trás apontando para o

próprio peito:

- Eu?...Penitente?...A meia noite?

- A meia noite de Sexta-Feira Santa no

Cemitério...

- Batendo de chicote nas minhas costas...

Uma hora da madrugada de uma quarta-feira o

coroné entrou na plataforma da Estação do Norte,

ou Estação Roosevelt ou Estação do Brás sacudindo

sua bengala, seguido pelo Zédizefa que carregava

uma mala em cada mão e equilibrava uma trouxa na

cabeça.

Pouca gente na plataforma, a maioria gente que

estava de passagem; passageiros que chegaram a São

Paulo nos trens da Santos - Jundiaí ou nos trens

da Sorocabana.

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Os funcionários da Central do Brasil;

conferentes, carregadores, manobreiros, guarda-

chaves,reparadores e camareiros já se moviam para

organizar o trem de prefixo “RP4”.

Caminharam para a ponta sul da plataforma,

coroné avaliou e deu a ordem:

- Mais ou menos aqui vai encostá o último

carro... Deixe a bagagem ai.

Largou as duas malas lado a lado e em cima a

trouxa. Os dois saíram olhando os movimentos.

Montado numa mala um sujeito de botas, calças

muito largas, camisa amarrotada, lenço colorado no

pescoço, tomando chimarrão. Zédizefa olhou e falou

baixinho pro coroné:

- Uma cabaça com um canudo... Parece que é chá

de cisco...

Coroné chegou perto e o gaucho ofereceu um

mate:

- Buenos dias seu! Aceita um amargo?

- Não sinhô não... Amargo já basta às

amarguras da vida... Tá vindo do Sul e tá indo pro

Norte?

- Mas báh!...Venho do Rio Grande

tche!...Estação Touro Passo, é na fronteira com a

Argentina... Vou pra Curvelo nas Minas Gerais

buscar uns touros zebus...

Coroné bateu na aba do chapéu e disse:

- Pois tenha uma boa viagem.

Afastaram-se e Zédizefa perguntou:

- O sinhô entendeu o que ele falô?

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- Oxente!...Ele é contrabandista de touros pra

Argentina.

Na ponta norte da plataforma um grupo grande

de pessoas; homens, mulheres e crianças. Muita

bagagem,roupas folgadas e cheirando a fumaça.

Coroné parou olhando e um conferente explicou:

- Índios... São bugres do Mato Grosso...O

Serviço Nacional do Índio deu cavalos, comida e um

guia...Tirou eles da selva e mandou andarem

caminhando pelo Brasil mais ou menos durante três

anos pra se civilizarem...

- Então?

- Aprenderam a fumar, beber, jogar e roubar...

- Tão civilizados...

Zédizefa olhou a mulata alegre e disse:

- Oxente!...Vendedora de acarajé...

- Cale sua boca...É uma mãe de santo.

Mãe Taninha de Santo Amaro ou Mãe Taninha de

Maro Maro, sorriu, fez sinal pra o coroné. Os dois

se aproximaram e ela:

- Bom dia meu senhor...Muito axé...Estou

precisando de sua ajuda...Pois que antes de

começar esta viagem...Não vê que eu vou pra Santo

Amaro...Antes de subir no trem eu recebi uma

obrigação de jogar os búzios pra um viajante... E

olhe que o meu guia apontou o senhor.

Respeitosamente o coroné tirou o chapéu e

avisou:

- Primeiramente que faça uma boa viagem, e

olhe que daqui a Santo Amaro tem um pedaço de

chão...E deverasmente devo avisar que não sou de

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crença de Candomblé...Desconfio de padre, mas sou

crente nos santos...Que sendo do Juazeiro tenho fé

em Nossa Senhora das Grotas, a pois que morando na

Carnaíba do Sertão sou devoto de Santa Terezinha e

nos aperreio eu recorro mesmo é pro santo São

Gonçalo que é um santo de fé e força no sertão da

Bahia.

- Se avexe não, coroné...Nada vai tirar suas

obrigações de fé...É só um brilho de luz no

caminho da viagem de vocês dois...

- E meu ordenança, cabra que serviu no Tiro de

Guerra do Juazeiro, pode assistir?

-Deve...

Coroné e mãe Taninha de Maro Maro sentaram num

dos bancos da plataforma afastados um do outro pra

ela poder jogar os búzios em cima do banco.

Zédizefa ficou de pé,com os braços cruzados, ora

olhando a bagagem ora olhando os búzios.

Remexendo os búzios ela foi dizendo:

- Um de vocês vai chegar no fim da viagem

dentro de um caixão...Dentro de um caixão...O

perigo sai daqui no mesmo carro...Na cidade do B,

mas que B briga com A e A briga com B tem

recomendação pra o coronel ser gente de

atenção...O caminho que é largo vai fechar mas o

caminho estreito vai tá aberto...Não confie no

homem do pau seco, nem no homem do pau lavrado e

também não no homem do pau ferro...O perigo é o

homem do rabo alegre...O passarinho no pau, aceite

disfarce e dê pro cachorro...Conte ao homem dos

sete “P”...No fim do caminho bote em meu nome uma

oferenda debaixo de um pé de umbu...No caminho

junte as coisas da oferenda; licor da fruta que dá

no pau que tem na cidade da igreja do Ó, leve um

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doce amarelo da Princesa do Norte e o charuto da

cidade das guerras de espadas de fogo...Num caixão

um de vocês vai chegar...

Mãe Taninha recolheu os búzios e agradeceu

dizendo:

- O importante é ter fé...Se um dia chegar em

Santo Amaro me visite pra gente comer uma

maniçoba...

Coroné botou o chapéu na cabeça:

- A pois fico muito agradecido e digo, se um

dia passar na Carnaíba do Sertão, chegue pra comer

um bode assado...

Uma locomotiva de manobras encostou o trem na

plataforma. Zédizefa correu para marcar lugar.

Ocupou o ultimo banco do lado direito do ultimo

carro. Coroné entregou a bagagem pela janela.

Logo a plataforma ficou cheia de gente e

muitos apressados embarcando para conseguir lugar.

Entrou na plataforma o grupo de moças,

alegres, com uma fita azul no pescoço; o símbolo

do grupo religioso “Filhas de Maria” iam em

romaria para Aparecida do Norte

Um carregador na frente pedindo licença entre

os passageiros espalhados na plataforma, seguido

por outro carregador empurrando um carro com uma

caixa grande de papelão onde estava escrito:

Estação Catuti (EFCB). Chegou ao vagão de bagagens

onde um conferente e o bagageiro do trem,

seguraram a caixa com muito cuidado e colocaram

num canto do vagão onde não tinha perigo de dano.

Nas bilheterias da estação as filas e os

bilheteiros consultando tabelas, calculando e

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tirando passagens para dezenas de destinos. Numa

das bilheterias um viajante pediu:

- Uma ida e volta de primeira classe até

Tabuas.

O bilheteiro, novo, nervoso consultando

tabelas até que um colega ajudou:

- Tabuas; trocou de nome há muito tempo... É

Joaquim Felício.

Dois homens carregando barras de gelo, no

ombro, para o vagão restaurante.

No compartimento do correio no vagão de

bagagens o estafeta ajeitava as malas de

correspondências e empilhava os pacotes de jornais

de maneira a facilitar a entrega nas estações.

Jornais para distribuidores e jornais para

assinantes em cidades, vilas e povoados ao longo

da ferrovia.

Com respeito os viajantes que estavam na

plataforma foram dando passagem ao homem

deficiente. Sem as duas pernas, amputadas bem em

cima na coxa, caminhando com os braços. Rosto de

home decidido, as mãos protegidas por grossas

luvas de couro, nas costas uma mochila. Sem

auxilio segurou o balaustre da plataforma do carro

e embarcou. Carro de segunda classe. Com agilidade

subiu para o banco. O Ervateiro de Lajedo Alto.

Foi vaqueiro e dos bons, numa vaquejada de muito

serviço o cavalo tropeçou numa pedra e caiu em

cima de uma laje e quebrou a perna direita, o

cavalo levantou e ele ficou pendurado com a perna

esquerda no estribo, assustado o cavalo disparou e

ele rebentou a outra perna.Com mulher e cinco

filhos, vaqueiro sem as pernas a luz que Deus lhe

deu foi: de dois em dois meses viajava de Lajedo

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Alto a São Paulo carregando ervas, casca de

arvores e sementes para chá. Junto dele um

carregador que colocou um saco debaixo do banco e

outro na frente.

Entrou no mesmo vagão e sentou ao lado do

Ervateiro de Lajedo Alto a Pimenteira de Jequi,

outra sertaneja que lutava pela vida; viúva com

oito filhos cultivava pimentas em Jequi, e fazia

conservas e também torrava pimentas, que trazia

para vender em São Paulo.

No ultimo carro embarcou o sujeito magrinho,

sapatos brancos, calças e paletó branco, gravata

vermelha, bigode fininho, ocupou o banco a frente

do banco onde estavam o coroné e Zédizefa. Botou a

mala em cima do banco pra marcar o lugar, olhou

pra Zédizefa e disse:

-Bom dia...O conterrâneo faz um favor...Repare

minha mala...Vou comprar cigarros...Pois que viajo

pra Paulistana no Piauí...Faço um servicinho que

aqui no sul não tá tendo...Lá no norte, ano que

vem é ano de eleição...

O sujeito saiu e o coroné disse pra Zédizefa:

- Você entendeu?...Preste a atenção nesse

cabra... O bicho é pistoleiro...Pistoleiro de

Paulistana no Piauí.

Entraram no carro duas mulheres, uma muito

bonita e a outra rindo e dizendo graças, Zédizefa

correu pra ajudar o carregador a botar as malas

dentro do carro. Viraram o encosto de um banco e

ocuparam, sentaram num banco e botaram a bagagem

no banco defronte elas, marcando dois lugares.

Zédizefa voltou e contou pro coroné:

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- A formosa vai pra Campo Formoso e a jocosa

vai pra Jacobina.

Coroné sacudiu a cabeça:

- Jocosa de Jacobina e Formosa de Campo

Formoso...Quengas de alto quilate...Você,

Zédizefa, nem fique assanhado que você não tem

categoria de dinheiro e nem sexual pra dá conta...

Entrou no carro um padre, muito vermelho,

óculos de lentes grossas. Zédizefa bateu no braço

do coroné. Padre em trem e no último vagão era

superstição nas ferrovias do Brasil;azar. Coroné

sacudiu a mão:

- Se preocupe não...Já ele desce...É Padre de

Aparecida.

O Padre de Aparecida sentou, abriu a grande

pasta de couro, tirou um livro encadernado com

papel preto e começou a ler com muita atenção. A

Bíblia? Não, Seara Vermelha de Jorge Amado.

Entraram no ultimo carro um grupo de oito

homens a maioria loiros de olhos claros,

descendentes de alemães;uma Equipe de Bolão de

Santa Rosa no Rio Grande do Sul.

Embarcou o Telegrafista de Iramaia.

O Pistoleiro de Paulistana no Piauí voltou

para o carro, tentou tirar prosa com as

duas;Jocosa de Jacobina e Formosa de Campo

Formoso, mas elas não deram trela e ele foi pro

seu banco.

Um manobreiro engatou a locomotiva no trem.

Um guarda-freio correu a examinar mangueiras

de freios, engates e as correntes de segurança.

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Ainda tinha filas nas bilheterias.

No ultimo carro embarcou o Engenheiro de

Mafra.

Embarcaram o tio e três sobrinhos, meninos na

faixa dos doze a quinze anos, iam passar as férias

na fazenda do avô no norte das Minas Gerais, lá

nos mundos de Montes Claros, bem longe do barulho

de São Paulo e da prisão no apartamento, na

liberdade correndo nos burros, no meio de gado,

cabras, galinhas, lá na estação de Uratinga.

Na locomotiva o foguista; o Zé do Brás, mulato

alto e forte, jogador de futebol, carnavalesco,

viciado no jogo bicho, membro da diretoria da

associação do bairro e pai de doze filhos, abriu a

fornalha e alimentou o fogo com várias pasadas de

carvão.

O maquinista, seu João Limpa Trilhos, limpando

as mãos com uma estopa, olhou os manômetros, olhou

a imagem de Nossa Senhora Aparecida colocada no

suporte do regulador de pressão.

Na bilheteria um viajante querendo passagem

para estação Quatis e o bilheteiro perdido nas

tabelas, o agente ajudou:

- É na Rede Mineira de Viação...Vende até

Barra Mansa e lá ele troca de trem...

Coroné Nézinho examinou o interior do carro,

já estava quase lotado, tinha mais de quarenta

pessoas.

O canto de um galo ecoou na plataforma, um

carregador apressado levando duas gaiolas para o

vagão de bagagens e a seu lado o Criador de

Galinhas de Cotegipe.

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O chefe de trem fez sua ultima observação no

carro de bagagens e foi para o escritório da

estação.

Os camareiros ajudavam os passageiros a se

acomodarem.

O Cego de São Cristovão em Sergipe, entrou no

primeiro carro de segunda classe apoiado num

grosso cajado. Sentou num banco do meio do carro.

Os óculos grandes e muito escuros.

Uma batida de sino ecoou na plataforma

anunciando que dentro de cinco minutos o trem

partiria.

A Velinha de Buenópolis acompanhada do neto

embarcou no último carro, seguida do carregador

com as duas malas, ela carregando debaixo do braço

um travesseiro e uma manta. Logo de noite na

subida da Serra da Mantiqueira faz frio.

Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança

embarcou no primeiro carro de segunda classe e

sentou no primeiro banco do vagão. Botou pra baixo

do banco a mala cheia de dinheiro.Olhou para o

Cego de São Cristovão em Sergipe e coçou a testa.

O Cego de São Cristovão coçou o nariz.

O agente se posicionou perto do sino, o

maquinista debruçado na janela da locomotiva

olhando a plataforma da estação. O relógio bateu

às duas horas da madrugada de quarta-feira, o

chefe de trem parado junto o último carro fez

sinal para o agente. O agente deu duas badaladas

no sino, o chefe de trem trinou o apito e o

maquinista acionou o apito da locomotiva.

Regulador aberto, e chiaram os cilindros da

locomotiva 353 uma Baldwin, conhecida pelo pessoal

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da Central do Brasil pelo apelido de Velha

Senhora. O trem partiu da Estação do Norte.

Um vagão pra pequenas cargas, carro bagagem-

correio, cinco carros de segunda classe, um carro

restaurante e sete carros de primeira classe.

O chefe de trem começou a examinar as

passagens pelo ultimo carro:

- Por favor, todas as passagens...As

passagens.

Primeira parada em Vila Matilde onde aumentou

a carga. Um clandestino se pendurou no ultimo

carro.

Parada rápida em Itaquera.Embarcou um sargento

da Policia Militar e sentou no ultimo banco, do

lado esquerdo, do ultimo carro. O Pistoleiro de

Paulistana no Piauí não gostou de ver a farda. Um

camareiro foi recolher o passe livre, o sargento

avisou:

- Desembarco em Suzano.

Parou em Guaianazes onde mais gente subiu e

saltou o Clandestino de Vila Matilde.

Estação Ferraz de Vasconcelos, no último carro

de primeira classe embarcou o sujeito alto, roupa

escura e óculos de sombra, mala branca onde estava

escrito com letras grandes:Pau Seco. Zédizefa leu

e bateu no braço do coroné:

- O Homem de Pau Seco.

- Oxe!... É Pau Seco, um povoado que tem

estação lá perto de Jacobina...E você agora tá se

preocupando com barbado?

- Foi Mãe Taninha de Santo Amaro que...

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- Esqueça o que ela falou...

As dez pras três da madrugada e o trem parou

em Poá, muita gente na plataforma. No último carro

embarcaram o Gigolô de Poá e o Soteropolitano

Afetado, pra alegria das duas: Jocosa de Jacobina

e Formosa de Campo Formoso, afinal, era pra eles

que elas estavam marcando os dois lugares.

O trem continuou a viagem e alguém perguntou:

- Que horas é o café?

- Quando começar a clarear o dia...

- O dia clareia já lá em São José dos

Campos...

- Nada!...O dia clareia a gente vai tá em

Aparecida.

Parada de um minuto na estação de Calmon

Viana.

O camareiro entrou no vagão avisando:

- Vai chegar em Suzano... Suzano cidade das

flores...

Suzano o sargento da Policia Militar

desembarcou e ocupou o banco o Farinheiro de

Quicé.Coroné Nézinho simpatizou com o novo

viajante.

Em Jundiapeba a plataforma cheia de balaios

com verduras, carga pra São José dos Campos. O

Verdureiro de Jundiapeba ajudou a carregar e

correu a embarcar num dos carros de segunda

classe.

Mogi das Cruzes, muita gente pra embarcar, a

maioria na segunda classe e gente que ia para o

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norte. O agente da estação disse para o chefe de

trem:

- Aqui em Mogi, quem não é japonês é

nortista...

No ultimo carro embarcou um casal japonês e

Zédizefa perguntou ao coroné:

- É verdade que mulher japonesa tem a coisa

atravessada?

- Você vá ali e pergunte pro marido dela...

Engenheiro Cesar de Souza com a plataforma

cheia de sacos de repolhos pra carregar, carga pra

São José dos Campos.

Estação Sabaúna entre os viajantes que

embarcaram, embarcou a dupla de violeiros “Os

Violeiros de Sabaúna” que se acomodou no primeiro

carro de segunda classe.

Parou na estação Luiz Carlos onde embarcou no

ultimo carro o Casal de Artistas de Luiz Carlos.

Ela de sapatos com os saltos muito altos, rosto

pintado, grandes brincos, colar de perolas,

fumando com uma piteira de mais de dois palmos.

Ele vestindo um terno cor de rosa com uma flor

vermelha na lapela. O Soteropolitano Afetado

exclamou:

- Cruuuzeees! Que mau gosto...Caaafoooniiicee.

A Artista de Luiz Carlos, sacudiu a piteira

dizendo:

- Nem ligue meu bem...Nós somos artistas.

Soteropolitano Afetado riu e falou:

- Figurantes.

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Zédizefa pegou a caneta tinteiro e uma folha

de papel e foi pedir autografo. A Artista de Luiz

Carlos contou:

- Filmamos as cenas externas ai em Luiz Carlos

e vamos para o Rio de Janeiro, filmar nos estúdios

da Atlântida Cinematográfica...

Zédizefa voltou a seu lugar contente. Coroné

perguntou:

- Oxe!...O que eles escreveu ai nesse papel?

Zédizefa sorriu:

- Autografo...O senhor não entende disso...

Em Guararema embarcou no ultimo carro o

Alambiqueiro de Guararema e sentou ao lado do

Farinheiro de Quicé. Sentou e já iniciou conversa:

- Vou pra Brumado na Bahia...Sabe? Eu tenho um

alambique de cachaça...Na região de Brumado

fabricam uns alambiques de cobre muito bons...Eu

vou comprar...

O camareiro percorreu o trem avisando:

- Jacareí... Próxima parada é Jacareí ...

Jacareí, água de jacaré, a Athenas Paulista,

no último carro embarcou o grupo, alegre e

barulhento de jovens de uma equipe de basquete.

Zédizefa perguntou:

- Coroné... O que é jogo de basquete?

- Ora...Jogo de basquete...É um jogo que você

não vai entender...

Duas horas de viagem o trem se aproximava de

São José dos Campos a cidade tecnológica. O

camareiro avisando:

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- São José dos Campos, saída pela porta da

frente...

Passageiros desembarcando, passageiros

embarcando, o chefe de trem parado na porta do

vagão de bagagens olhou o movimento e comentou com

o agente:

-Agora fica com a lotação completa... Em

Pindamonhangaba e Aparecida desce bastante

gente...

Desembarcou a equipe de basquete, mas embarcou

uma equipe de ciclistas. As bicicletas no vagão de

bagagens. Iam para um encontro de ciclistas em

Pindamonhangaba.

O trem saiu de São José dos Campos, e sete

quilômetros, depois, parada muito rápida em

Engenheiro Martins Guimarães.

Chegando em Caçapava, Zédizefa abriu a janela

e debruçou olhando o movimento na plataforma. O

viajante, sujeito magrinho, barba grande,

acompanhado de outro sujeito, chegou perto da

ultima plataforma do trem e antes de embarcar

avisou ao companheiro:

- Assim que eu chegar em Pau Lavrado eu te

mando um telegrama...

Zédizefa escutou. O Homem de Pau Lavrado

embarcou e sentou ao lado do Homem de Pau Seco.

O trem saiu de Caçapava e os garçons começaram

a se movimentar. Hora do café. Na frente um

carregando dentro de uma grande bandeja as xícaras

e pires. O segundo carregando os açucareiros,

pratos com pão fatiado e potes com manteiga e o

terceiro carregando os bules com café e leite:

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- Café... Quem vai tomar café?

Afobado o Zédizefa puxou a mesinha que estava

dobrada junto à parede do carro, levantou o tampo

e moveu a alavanca de fixar. Coroné olhou de canto

de olho:

- Eita! Que o bicho tá com fome.

Os raios de sol iluminando o Vale do Paraíba,

lá longe os prédios de Taubaté. A Velha Senhora

bufando os cilindros e vencendo distancias. Dentro

do trem o cheiro gostoso de café com leite pão e

manteiga.

Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto

Esperança, tirou da mala uma guampa, um pacote de

erva mate, a bomba de metal e começou a preparar o

terêrê.Olhou para o Cego de São Cristovão coçou o

nariz, o Cego coçou a testa.

- Chegada a Taubaté...Taubaté, saída pela

porta da frente...

Do ultimo carro desembarcou o casal de japonês

que tinha embarcado em Mogi. Embarcou, afobado,

buscando um lugar junto à janela o Caixeiro

Viajante. Duas malas grandes. Ocupou o banco onde

viajaram os japoneses.Esperou o trem continuar a

viagem e começou a trabalhar, botou uma mala sobre

o banco, abriu e tirou um pacote, deixou a mala

sobre o banco, marcando o lugar e saiu andando

dentro do trem e distribuindo Almanaque do

Biotônico e o livrinho com a estória do Zeca Tatu.

O revisteiro percorrendo o trem:

- Jornais... Revistas...

Coroné Nézinho pediu:

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- Dois jornais; a Folha e o Estado... Uma

revista “O Cruzeiro”, pra mim vê o “Amigo da

Onça”...E deixe escolher um bilhete de loteria...

Zédizefa perguntou:

- Coroné...Pra que dois jornal ?

- Oxe!...Eu sou um homem político, em cima de

minha mesa tem que ter muitos jornais...

O Caixeiro Viajante de Taubaté pediu ao

revisteiro:

- Tem o Guia Levy?

O camareiro avisando a chegada em

Pindamonhangaba:

- Pindamonhangaba...Passageiros que vão para

Campos do Jordão desembarque... É

Pindamonhangaba...

O Telegrafista de Iramaia contava ao

Engenheiro de Mafra:

- Venho do Rio Grande do Sul...Estação Vinte

Pinheiros, é na linha de São Borja...Faz quatro

anos que eu moro em Iramaia... Meu primeiro filho

era muito doente com uma alergia a frio e

umidade...O médico disse pra mim e minha mulher

que o bom era a gente ir pra um lugar quente e

seco...Eu era telegrafista da Viação Férrea do Rio

Grande do Sul...O médico se interessou e conseguiu

pra mim vir pra Leste...O guri melhorou...Já tenho

uma filha que nasceu em Iramaia...

O trem parou na estação Moreira Cesar, os

minutos passando, passageiros curiosos. Alguém

disse:

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- É cruzamento... Tá esperando o Santa Cruz

que vem do Rio de Janeiro.

Na segunda classe o coronel Ponciano

Pantaneiro de Porto Esperança incentivou os

Violeiros de Sabauna:

- E seu moço toca uma moda pra alegrar a

viagem.

Os Violeiros de Sabauna se entusiasmaram,

pegaram as violas:

- Gente...Nós vamos tocar uma moda de

viola...Chama; Festa do Divino em Sabauna...Até a

gente aproveita e convida...A festa do divino em

Sabauna é muito boa, divertida...

O Santa Cruz passou em Moreira Cezar apitando

e batendo o sino.

O trem chegou em Roseira, poucos passageiros

na plataforma, parada rápida.

- A próxima parada é Aparecida...Aparecida...

Oito horas e trinta minutos o trem entrou no

recinto de Aparecida batendo o sino.

O Padre de Aparecida fechou o livro, levantou

e tirou a mala do porta bagagens. Coroné Nézinho

viu e ficou contente.

Zédizefa se apressou a descer do trem, queria

comprar uma medalhinha de Nossa Senhora Aparecida.

Desembarcaram as Filhas de Maria. Um grupo de

romeiros, vindo de Bauru; várias crianças vestidas

de anjo. O grupo de irmãs de caridade que vinham

de cidades do norte do Paraná.

Zédizefa se distraiu olhando o movimento e já

teve que embarcar com o trem em movimento. Entrou

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no carro e viu sentado no lugar onde vinha o Padre

de Aparecida outro padre. Coroné, que era

supersticioso, falou de mau humor:

- Outro...Esse vai com a gente até o fim... É

o Padre de Petrolina...

Cinco quilômetros depois de Aparecida a cidade

das garças brancas:

- Guaratinguetá a capital do fundo do vale.

Embarcou na segunda classe um grupo grande de

homens, a maioria era velhos; integrantes de um

clube do jogo de truco. Iam para um torneio de

truco em Cruzeiro.

Coroné levantou e começou a andar pelo

corredor do carro pra espichar um pouco as pernas.

Sorrindo pra um, cumprimentando outro, bateu prosa

com a Velinha de Buenópolis.Ela contou:

- Vim nesse trem semana passada...Todos os

anos eu venho...Pra levar esse meu neto pra passar

as férias com a gente...

Bateu prosa com líder do grupo de jogadores de

bolão de Santa Rosa. O líder do grupo contou:

- Santa Rosa é ponta de ramal no norte do Rio

Grande do Sul...Bolão é um divertimento bom...A

gente vai pra Juiz de Fora...Meu filho é sargento

e tá servindo no Quarto Regimento de Cavalaria de

Juiz de Fora...Ele organizou um clube de bolão e

mandou nos convidar...

Estação Engenheiro Neiva, na plataforma muitos

tarros de leite que funcionários se apressaram a

carregar no trem. Ao lado do trem o grito:

- Pamonha...Pamonha que tá quentinha...

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Eta que Zédizefa abriu janela, afobado, pra

comprar pamonha.

- Próxima estação é Lorena...Lorena baldeação

para o ramal de Piquete...Lorena...

Lorena das palmeiras imperiais.

- Agora ele tá perto da Barra do Piraí...

- Nunca...Ele ainda roda mais de duas horas

dentro do estado de São Paulo...E depois tem que

passar Volta Redonda...

Caderneta de anotações na mão um garçom entrou

no último carro perguntando:

- Almoço... Quem vai almoçar no carro

restaurante...Almoço...

Coroné Nézinho levantou a mão. Pediu:

- Dois...Um pra mim e outro pra esse cabra que

já tá doido de fome...

O garçom sorriu, anotou e entregou duas

fichas:

- Ficha amarela...Quando chamar a ficha

amarela o senhor, por favor, se dirija ao

restaurante.

Conversavam os dois companheiros de banco;o

Homem de Pau Lavrado e o Homem de Pau Seco:

- Pau Lavrado é um lugar bom...Fica pertinho

de Catu...Pertinho de Alagoinhas...Que naquela

região chove...Eu tenho dois filhos que mora em

Caçapava, daí eu venho visitar eles...

- Eu to morando em Ferraz de Vasconcelos, que

eu to trabalhando...Pau Seco é no sertão de

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Jacobina e a chuva ta faltando... Que quando volta

a chuva eu volto pra lá...

- Pois então o conterrâneo não tá indo de vez?

- To não...Eu to indo nesse trem com o

compromisso de uma missão... To indo nesse trem

com o compromisso de uma missão...

Cachoeira paulista, a bonita estação a margem

do Paraíba do Sul. Embarcou mais um grupo de

jogadores do truco, gente que ia para o torneio de

Cruzeiro.

- Cruzeiro...Saída do ramal de Três

Corações...Próxima estação é Cruzeiro...

A faixa branca, esticada no alto, com letras

pretas a saudação aos participantes do torneio de

truco.

Os Violeiros de Sabauna, se prepararam para

desembarcar e se despediram dos companheiros de

viagem:

- Gente; obrigado pelo incentivo...Não

esquece...Vão na Festa do Divino de Sabauna...

Lavrinhas e os meninos na volta do trem

gritando:

- Carambola...Carambola baratinha...

Vila Queimada, parada rápida, o Caixeiro

Viajante de Taubaté jogando pela janela almanaques

e livrinhos com a estória do Zeca Tatu, pra

alegria dos meninos.

- A chegar em Queluz...Queluz...

- Agora ele vai sair do estado de São Paulo...

- Mas ainda tá longe da Barra do Pirai...

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Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança

ia atento a conversa dos dois caboclos que

viajavam no banco do lado. O Sergipano de Malhada

dos Bois contando pro Sergipano de São José da

Mata:

- Tá com seis pra sete anos que vim eu mais

quatro irmãos...A gente saiu da Malhada dos Bois,

até com fome... Daí que nós chegou no Paraná, nos

grudou no serviço...A gente abriu o mato e fez

roça...O lugá é bom...Estação de trem no ramal do

Paranapanema...Agora eu vou em Malhada pra buscar

meu irmão mais moço e vou trazer dois

jegues...Jegue inteiro, que no Paraná eu vou fazer

mulas...Vou trazer um bode e umas cabras, que eu

gosto de criar...

A bonita estação de Engenheiro Passos, parada

bem rápida e saiu batendo o sino.

- Próxima estação é Itatiaia...

O garçom entrou no carro avisando:

- Almoço...Por favor os portadores de ficha

amarela...

Coroné Nézinho bateu no braço de Zédizefa:

- Bora lá matá a fome que tá matando você...

Carro restaurante muito limpo as mesas com

toalhas de linho muito brancas. Coroné e Zédizefa

sentaram numa mesa de canto. O garçom:

- Nossa opção; numero um é Filé a Oswaldo

Aranha...

- Esse mesmo...Pois mande dois e diga pro

cozinheiro botá bastante batata frita...E traga

uma jarra de vinho.

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Na mesa ao lado o Telegrafista de Iramaia

contava para o Engenheiro de Mafra:

- Vinte Pinheiros têm o brete, embarcadouro de

gado...Minha mãe faz comida pra vender aos

tropeiros...Báh!Chegaram um grupo e a mãe só tinha

feijão e farinha...Fez feijão, fritou ovos e botou

na panela do feijão pra dá gosto...Os tropeiros

gostaram...E assim ela inventou o feijão de Vinte

Pinheiros...

Estação de Resende e o embarque de vários

cadetes da Academia Militar de Agulhas Negras.

No ultimo carro o Gigolô de Poá, levantou,

tirou o espelhinho do bolso do casaco, se olhou,

tirou o pente do bolso detrás da calça, ajeitou o

cabelo. Foi tirar prosa com a Artista de Luiz

Carlos, ela deu o fora dizendo:

- Não sou quem você pensa... Não sou artista

da Boca do Lixo...Sou da Atlântida

Cinematográfica...

Estação Floriano com muitos tarros de leite na

plataforma, Vendedores de pastel cercando o trem.

Na plataforma de um dos vagões de primeira classe

um sujeito reclamava:

- Mais leite pra carregar...E o Expresso

Leiteiro?...Vou reclamar...

Pombal; mais tarros com leite. Vendedores de

bolo de coalhada.

O trem se aproximava de Barra Mansa, alguém

comentou:

-Tá perto de Volta Redonda...

- É verdade... A primeira é a Barra Mansa.

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O Camareiro entrou no carro avisando:

- Próxima é Saudade...Saudade baldeação para o

ramal de Bananal...Saudade...

De Saudade a Barra Mansa, um quilômetro e meio

que o trem percorreu devagar, com cuidado que o

recinto de Barra Mansa , um recinto cheio de

vagões.

Barra Mansa, dezenas de operários vestindo

macacões embarcaram para uma viagem curta até

Volta Redonda.

Embarcaram um grupo de produtores de leite,

muitos falando alto e reclamando de alguma coisa.

Andavam em Barra Mansa reclamando do preço do

leite e dos horários do trem Expresso Leiteiro.

O Pistoleiro de Paulistana no Piauí fez sinal

chamando o Soteropolitano Afetado que rápido

levantou e deslizou na ponta dos pés, provocando

no Artista de Luiz Carlos o comentário:

- Saaaliiiiiiiieeeeeeeeenteeeeeeeeeee!

O Soteropolitano Afetado sacudiu os ombros e

quase sentou no colo do Pistoleiro de Paulistana

no Piauí, dizendo:

- Faaaaleeeeeeeee meu bom.

- Eu vou dormir um pouco, quando esse trem

passar na Barra do Pirai, você me chame, entendeu?

- Reeeeeeeeepiiiiiiiiiitaaaaaaaaa.

O Pistoleiro de Paulistana no Piauí falou

grosso:

- Vou dormir...Depois que passar Barra do

Pirai me chame...

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- O meu bom! Seu pedido é uma

ordeeeeem...Durma em paz...Velareeeei o teu

sono...

De Barra Mansa a Volta Redonda dez

quilômetros. Chegando com muito cuidado no

complicado e movimentado recinto cheio de vagões

de minério, vagões cheios de carvão, vagões com

bobinas de aço. Locomotivas de manobras.

Volta Redonda, num dos carros de segunda

classe um negro alto, falou em voz alta:

-Companhia Siderúrgica Nacional.Independência

do Brasil...Viva o Getulio...Getulio Vargas o

Estadista Brasileiro...

Saiu de Volta Redonda, batendo o sino e

apitando.

Estação Pinheiral, a plataforma cheia de

tarros de leite. Na estação o cartaz de cinema

anunciando o filme com Oscarito e Grande Otelo.

Alguns vendedores de bolo de coalhada e pastéis de

mingau.

- Agora sim a gente tá perto da Barra do

Pirai...

- E depois é atravessar o Paraíba do Sul e

começar a subir a Serra da Mantiqueira...

- Mas só depois de Três Rios...Da Barra do

Pirai até Três Rios é mais de duas horas de

viagem...

O trem parou na estação do povoado de Vargem

Alegre.

Mãe Taninha de Santo Amaro que viajava no

primeiro carro de primeira classe, sentiu o sopro

no rosto, o cheiro. O sujeito branquelo, cabelo

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cor de fogo que embarcou ficou parado no corredor.

Ela se apercebeu. Exu...O Exu subiu nesse

trem...Ele tá armando alguma coisa... Ela tirou da

bolsa um vidro com água de cheiro...

Camareiros apressados varrendo os carros e

despejando desinfetante no “WCS”. Preparando o

trem para entregar a outra equipe.

- Estação Barra do Pirai...Barra do

Pirai...Quem vai para o Rio de Janeiro pela linha

do centro desembarque...Barra do Pirai a saída

pela porta da frente...

- Moço, moço ajude-me...Eu vou pra Santana da

Barra...

- Santana da Barra, a senhora desce aqui e

embarca no que vem de Belo Horizonte...

- É Barra do Piraí, baldeação para a linha do

centro...

- Ei!...Eu vou para Pati do Alferes...

- Pati do Alferes é na Linha Auxiliar, o

senhor desce em Paraíba do Sul...

O apito poético e o tinir do sino da Velha

Senhora ecoando pela Barra do Pirai.Debruçado na

janela o maquinista seu João Limpa Trilhos

cuidando a linha e a plataforma cheia de gente. O

foguista, Zé do Brás, de pé entre a cabine e o

tender olhando a plataforma. Tinham vencido

trezentos e noventa e um quilômetros.

Dentro dos carros, passageiros se preparando

para desembarcar, conferindo bagagens de mão,

sacudindo o corpo para pegar animo.

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Senhores viajantes bem vindos a Barra do

Pirai...Passageiros em transito e passageiros que

aqui embarcam, o serviço de alto falantes...

No ultimo carro os Artistas de Luiz Carlos se

prepararam para desembarcar, ele falou:

- Vamos para a capital... Adeus trem de

caipiras...

O Soteropolitano Afetado reagiu:

- Auuudáááciaaaa do Zeca...

Zédizefa desceu pra espichar as pernas andando

pela plataforma da estação.

Embarcou no último carro o mulato magro alto

com a camisa do Fluminense e ocupou o banco onde

viajaram os artistas; o Fluminense do Flamengo.

Funcionários apressados ajeitando o trem. A

Velha Senhora foi desengatada e seguiu faceira

para o depósito. A nova locomotiva foi engatada;

uma Texas.

Zédizefa voltou pra seu lugar dizendo:

- Agora a maquina é uma Techa...

Na segunda classe embarcou um grupo alegre e

barulhento de Mangueirenses, iam pescar. Coronel

Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança comentou:

- Vão pescar ou fazer samba? Levam pandeiro,

cuíca e cavaquinho...

O mulato com a camisa verde e rosa respondeu:

- E nas mochilas vai é muita pinga meu

senhor...

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Alto, forte, pele queimada do sol, casaco de

couro o coronel Quim Quim Querendão do Quem Quem,

caminhou firme batendo a bota na plataforma da

estação. Reuniu os três capangas;Diabo Ruim, Diabo

Mau e Diabo Péssimo, todos eles cabeludos e com um

bornal de couro a meia espalda, e deu as ordens:

- Uai! Eu vou no primeiro carro de primeira

classe, o Ruim vai comigo, o Mau vai no ultimo

carro e o Péssimo vai no primeiro carro de segunda

classe...Durmam de olho aberto, não dê prosa pra

estranho e tome cuidado com sorriso de mulher...

Na locomotiva o maquinista seu Zé Esquerdinha,

manco da perna esquerda, foi ponta esquerda do

Central e num clássico contra o Royal; Royal e

Central o clássico de Barra do Pirai, acabou numa

entrada forte ficando com a perna deslocada. Seu

Zé Esquerda conferindo os manômetros e válvulas de

escape.

O foguista Chico Gaiteiro, acomodando a lenha

no tender de maneira a facilitar seu serviço

durante a viagem. Chico Gaiteiro que nas horas

vagas tocava gaita e era diretor de um bloco de

carnaval.

Diabo Mau entrou no ultimo carro e o

Soteropolitano Afetado olhou a boroca a meia

espalda e ia comentar, mas a Jocosa de Jacobina

foi rápida e tapou a boca dele dizendo:

- Ele te come vivo...

- Deus te ouça...

Magro alto garboso em seu uniforme o chefe de

trem , jovem ainda, seu Alfredo, no vagão de

bagagens conferindo o mapa de passagens. Seu

Alfredo nas horas de folga era um trabalhador da

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Doutrina Espírita. É de notar que a Doutrina

Espírita no Brasil teve entre seus simpatizantes

muitos ferroviários; era uma classe que muito

viajava e muitas vezes eram removidas de um lugar

pra outro levando suas idéias e crenças.

Na plataforma uma senhora gorda e nervosa

perguntando:

- Esse é o que vai pra Santos do

monte?...Santos do monte...

O camareiro apressou em auxiliar:

- Sim senhora... Santos Dumont...

Trem pronto para seguir viagem; vamos embora

que Belo Horizonte é longe e antes temos que subir

a Serra da Mantiqueira.

O serviço de alto falantes de Barra do Pirai,

o maior entroncamento ferroviário do Brasil,

informa...

No relógio da plataforma quatorze horas. A

batida do sino, o apito do chefe de trem, o apito

da locomotiva; e o trem saiu de Barra do Pirai

batendo o sino.

Na ultima plataforma do trem o Coletor

Zoológico que fazia o trajeto de Barra do Pirai a

Três Rios e vice versa recolhendo apostas do jogo

do bicho.

O Soteropolitano Afetado deslizou na ponta dos

pés e com a ponta dos dedos bateu delicadamente no

ombro do Pistoleiro de Paulistana no Piauí:

- Ei...Ó...Ei...Acorde...

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O Pistoleiro de Paulistana no Piauí acordou,

espichou os braços, olhou de cantos de olhos para

o Soteropolitano Afetado e disse:

- Tá...Vá, senão eu lhe dou um duro...

- E eu quero...

O Pistoleiro de Paulistana no Piauí entrou no

WC, trancou a porta, lavou o rosto, passou o pente

no cabelo. Tirou do bolso interno do casaco o

revolver e conferiu as balas:

- Bem...Vou estudar esse trem de ponta a

ponta.

O garçom oferecendo:

- Cerveja...Guaraná...Sanduiches...

A palavra cerveja animou o grupo de jogadores

de bolão que viajavam de Santa Rosa no Rio Grande

do Sul para Juiz de Fora.

Os quatro meninos que agachados entre os

bancos jogavam o “Pega vareta” em cima de uma mala

deitada. O neto da Velinha de Buenópolis já estava

amigo dos três meninos que iam passar férias na

fazenda do avô. Pois os meninos vibraram com a

chegada do lanche.

Zédizefa, não perdeu tempo, comprou quatro

sanduiches e duas guaranás, o coroné sacudiu a

cabeça:

- Eita bucho!

Estação Aristides Lobo, vila a beira rio

produtora de tijolos e telhas. Na segunda classe o

grupo de Pescadores Mangueirenses se preparou para

o desembarque.

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O Corretor Zoológico correu para pegar as

apostas.

Coronel Quim Quim Querendão de Quem Quem tomou

o gole de cerveja e olhou para o companheiro de

banco dizendo:

- To vindo do Rio de Janeiro, capital

federal... Fui comprar umas ferramentas, sabe?

O outro sacudiu a cabeça dizendo:

- É...Sei... Pá, enxada, arado...

- Não senhor!... Metralhadora de mão...

Parada em Bacia de Pedras, desembarcou a

professora que logo ficou rodeada de um grupo

barulhento de alunos.

O revisteiro percorrendo o trem e oferecendo:

- Jornais do Rio de Janeiro... Jornais da

capital federal...

Estação Demetrio Ribeiro, passageiros curiosos

abrindo as janelas. Cruzamento com o trem de

passageiros procedente de Belo Horizonte. O apito

das duas locomotivas ecoou nas serras próximas a

estação.

- A chegar em Barão de Vassouras...Baldeação

para o ramal de Jacutinga...

O Pistoleiro de Paulistana no Piauí entrou no

carro o coronel Quim Quim Querendão do Quem Quem,

engasgou com a cerveja e o Diabo Ruim regalou os

olhos.

Saindo com calma de Barão de Vassouras, logo a

ponte sobre o Ribeirão das Pedras e quatro

quilômetros adiante chegou à bonita estação de

Barão de Juparanã. Vendedores de pastel:

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- Pastel com carne moída...Pastel doce...Tem

com goiabada e tem com mingau.

O Padre de Petrolina debruçou na janela e

comprou uma dúzia. Coroné Nézinho resmungou:

- Gula é pecado.

O Pistoleiro de Paulistana no Piauí entrou no

primeiro vagão de segunda classe. O Cego de São

Cristovão bateu com o cajado no assoalho do carro

e coçou a testa. Coronel Ponciano Pantaneiro de

Porto Esperança coçou o nariz e prestou à atenção

a reação do Sergipano de São José da Mata que

fechou o olho esquerdo e ficou alerta.

O trem continuou viagem, passou a Ponte do

Desengano, passou pela Pedreira do Paraíso, passou

a Ponte do Paraíso e parada rápida na estação do

povoado de Teixeira Leite.

Mãe Taninha de Santo Amaro ia aconselhando ao

Criador de Galinhas de Cotegipe:

- O senhor tem que ter na sua criação uma

galinha preta.

- Senhora eu crio galinhas de raça e a raça

que eu crio e leghorn branca...

- Mas o senhor pode criar uma preta...Toda a

fazenda, todo sitio, roça... É bom ter uma galinha

preta.

Estação Sebastião de Lacerda, o Caixeiro

Viajante de Taubaté jogou almanaques e livrinhos

do Zeca Tatu, pra meninada que estava na estação.

Tarde bonita, o clima agradável o trem

correndo numa região muito bonita. O Telegrafista

de Iramaia e Engenheiro de Mafra se juntaram ao

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grupo da Equipe de Bolão de Santa Rosa pra tomarem

cerveja, conversarem e dar risadas.

- Quatro horas ele tá passando em Paraíba do

Sul, em seguida é Três Rios e ai já entra nas

Minas Gerais...

- Uai!...Eu vou atravessar Minas...

- Vai pra Montes Claros?

- Mais pra frente...Monte Azul...

Estação Andrade Pinto e no ultimo carro

embarcou sujeito descabelado, pés descalços;

maluco. O camareiro foi ao seu encontro:

- Moço...Desça que o senhor não tem passagem.

O Maluco de Andrade Pinto regalou os olhos:

- Cuidado seu ferroviário...Meu padrinho é o

Getulio... Getulio Vargas, presidente do Brasil,

ele manda na Central do Brasil...E eu vou é pra

Juiz de Fora...

- Você não tem passagem...

Um dos integrantes da Equipe de Bolão de Santa

Rosa, entrou na conversa dizendo:

- A gente paga a passagem dele...

O camareiro concordou:

- Tudo bem...Mas de pés descalços e com essa

roupa suja ele só pode ir na segunda classe...

O Maluco de Andrade Pinto reclamou:

- Porque segunda classe?

O camareiro falou firme:

- Se quiser, é na segunda classe.

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O Maluco olhou os passageiros do carro e

concordou:

- Eu vou... Esse carro ta cheirando a defunto.

O Maluco de Andrade Pinto acomodado na segunda

classe e o trem continuou viagem.

Parada rápida em Vieira Cortês, o Caixeiro

Viajante de Taubaté jogou, pela janela, mais

almanaques e livrinhos. Soprou aliviado, fechou as

malas dizendo:

- Por hoje deu...Durmo em Três Rios e amanhã

no trem diurno eu sigo pra Belo Horizonte.

Camareiros avisando:

- Próxima estação é Paraíba do Sul...Paraíba

do Sul...Passageiros que seguem para o Rio De

Janeiro pela Linha Auxiliar é o ponto de

baldeação...Paraíba do Sul...

Os dois trens batendo o sino, chegando um por

cada lado da estação. Passageiros se preparando

para o desembarque.

- Saída pela porta da frente...

O relógio da plataforma mostrando dezesseis

horas. Movimento grande de viajantes.Carregadores

apressados, camareiros alerta e auxiliando.

De Paraíba do Sul a Barão de Angra, cinco

quilômetros em linha mista.

Em Barão de Angra embarcou a família de um

ferroviário em férias; o casal e quatorze filhos

com destino a Barbacena.

- A chegar em Três Rios... Três Rios...

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Carga especial no vagão de bagagens; quatro

gaiolas com falcões mais um fardo com barraca e

utensílios. Assistindo o carregamento o Falcoeiro

de Três Rios que falou pro bagageiro:

- O destino é Joaquim Felício.

O Pistoleiro de Paulistana no Piauí voltou

para o seu lugar no ultimo carro.

Na plataforma o sujeito completamente bêbado,

as calças todas urinadas, ele mal podendo ficar de

pé, o camareiro atacou:

- O senhor não está em condições de

embarcar...

Formou a confusão, o agente da estação de

Fernandes Pinheiro que estava embarcando no trem

falou com o chefe de trem:

- Ele vai ali pra Fernandes Pinheiro... Eu

conheço ele... Meu vizinho e amigo...

O chefe de trem mandou acomodar o Bêbado de

Fernandes Pinheiro no vagão de bagagens, viagem

rápida, de Três Rios a Fernandes Pinheiro apenas

sete quilômetros.

Estação Fernandes Pinheiro; descarregaram o

Bêbado.

O trem passou a ponte sobre o Rio Paraibuna e

entrou no estado de Minas Gerais, logo parou na

estação de Serraria.

Duas professoras bonitas embarcaram no último

carro.

Os comentários entre passageiros:

- Agora já estamos em Minas...

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- Mas ele ainda volta pro estado do

Rio...Afonso Arinos é no outro lado do rio.

Parada em Souza Aguiar e o coroné Nézinho

aproveitou e atravessou os carros até o carro

restaurante, onde sentou pedindo ao garçom:

- Já que tá começando a noite...Tem uma

canjinha de galo gordo?

- O senhor desculpe...Tem sopa de galinha com

macarrão...

O trem em sua viagem passou dois tuneis e

parou em Paraibuna. Embarcou um negro alto, forte,

uma enorme cicatriz no rosto, conhecido naquele

canto do mundo por sua valentia e seus

atrevimentos. O Cicatriz de Paraibuna entrou no

carro e viu o coronel Quim Quim Querendão do Quem

Quem e falou em voz alta e até com jeito atrevido:

- Uai sô!... E o demônio já anda de trem.

Diabo Ruim enfiou a mão na boroca para pegar o

revolver, mas o coronel fez um sinal pra ele

quietá.

Em Paraibuna um bonde atravessava o rio pra

levar passageiros para o povoado da outra margem.

Saiu de Paraibuna atravessou o rio e quatro

quilômetros andados; parou na bonita Afonso

Arinos.

Embarcou um grupo barulhento estudantes de

Juiz de Fora que tinham vindo fazer um passeio.

E agora o trem corria pra entrar na noite e

alguém comentou:

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- Agora ele volta pra Minas e já começa a

subir...Sobragi já tá mais cem metros acima do

nível do mar que Afonso Arinos.

O camareiro avisando:

- Chegar estação Sobragi...Sobragi...

O Cicatriz de Paraibuna levantou e andou pelo

corredor do carro. Diabo Ruim alerta e o coronel

Quim Quim Querendão do Quem Quem também.

Estação Sobragi, correria na plataforma para

embarcar um homem ferido. Deitado sobre um colchão

o homem foi colocado no vagão de bagagens;

funcionário da ferrovia. Conserveiro, trabalhava

na conservação e manutenção da linha.

O Telegrafista de Iramaia comentou com o

Engenheiro de Mafra:

- Aqui na Central do Brasil chamam eles de

Conserveiros, na Leste chamam eles de Garimpeiros,

na Viação Férrea do Rio Grande do Sul, chamam eles

de Tucos...

O Engenheiro de Mafra sorriu e completou:

- Pois na Rede de Viação do Paraná e Santa

Catarina,eles são chamados de Turmeiros...

O trem saiu de Sobragi e o coronel Quim Quim

Querendão de Quem Quem levantou do banco caminhou

até o extremo do carro e fez sinal para o Diabo

Ruim. Diabo Ruim se aproximou:

- Diga...

- Uai!...Você já tá sabendo quem é o atrevido

da cara cortada?

- Sim... É o cabra que a gente tirou da Feira

de Pai Pedro...

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O Criador de Galinhas de Cotegipe esticou os

braços contente e disse pra Mãe Taninha de Santo

Amaro:

- A primeira estação é Cotegipe... Graças a

Deus estou em casa... A senhora ta convidada pra

comer um frango com quiabo...

Mãe Taninha de Santo Amaro sorriu e convidou:

- O senhor também...Vá a Santo Amaro pra gente

comer uma maniçoba...

Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança

levantou e andou de ponta a ponta do corredor do

carro. Foi, veio, foi e parou perto do Sergipano

de São José da Mata e perguntou:

- Vem de longe?

- Sim.

- Vai pra longe?

- Sim.

O camareiro avisando:

- Chegar em Matias Barbosa.

Em Matias Barbosa embarcou um grupo de

seguidores da Doutrina Espírita, iam para um

encontro de Centos Espíritas em Pedro Leopoldo.

O trem parou na estação Cedofeita onde

embarcou um grupo de rapazes barulhentos e

alegres; jogadores de um esporte pouco conhecido

chamado croquete. Sendo um deles de origem

irlandesa ensinou os amigos e seguido vinham de

Juiz de Fora pra Cedofeita onde um deles tinha um

sitio para jogar.

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Na estação Retiro embarcou um cabo da Policia

Militar e o Cicatriz de Paraibuna ao ver a farda

resolveu ir ao WC.

- Próxima estação é Juiz de Fora...Juiz de

Fora... Saída pela porta da frente...

- Moço eu vou pegar trem da Leopoldina...

- Ta bem...O senhor desce aqui...A estação da

Leopoldina é do outro lado da linha...

No ultimo carro os jogadores de bolão,

levantaram, esfregando mãos e esticando braços:

- Tche!...Até que a gente tá chegando...Saímos

de Santa Rosa na sexta feira...Hoje já é quarta...

Plataforma iluminada e cheia de gente,

carregadores e camareiros atentos. Batida de sino

saudando a chegada do trem.

Um médico e dois enfermeiros carregando uma

maca caminhando apressados até o vagão de bagagens

para descer o Conserveiro de Sobragi.

Gente saudando gente, gente alegre pela

chegada. Um jornaleiro gritando:

- A Tribuna...

O Maluco de Andrade Pinto, desembarcou e subiu

num banco da plataforma onde começou um discurso

imitando Getulio Vargas:

- Trabalhadores do Brasil!...

Um guarda fez ele descer do banco.

Um carregador anunciando:

- Palace Hotel...Palace Hotel.

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Andando pela plataforma com imponência o

senhor Juiz de Direito de Santos Dumont.

Desembarcou o Cabo da Policia Militar de

Retiro e o Cicatriz de Paraibuna saiu do WC. Mãe

Taninha de Santo Amaro notou.

Carregadas no carro de bagagens dez gaiolas

grandes com pombos correios.

Num canto da plataforma o Cego do Pito Aceso,

tocando uma sanfoninha. Pito Aceso bairro de Juiz

de Fora.

Terno preto, gravata branca, fumando cachimbo

embarcou na segunda classe o Juiz de Brigas de

Galos de Belo Vale.

Sentou ao lado de Mãe Taninha de Santo Amaro a

Dona de Uma Republica em Ouro Preto.

A delegação do Tupi Futebol Clube o Galo

Carijó embarcou na primeira classe. Também

embarcaram os locutores da PRB-3 Radio Juiz de

Fora. Ia para Sete Lagoas jogar contra o

Democrata.

O serviço de alto falante da estação da

Central do Brasil em Juiz de Fora informa a

partida do trem procedente de São Paulo...

O sujeito magro suspirou e disse ao

companheiro de banco:

- Agora estou perto de casa...

- O senhor vai pra onde?

- Santos Dumont...Eu embarquei em Barra do

Pirai...

- I eu...Eu venho de São Paulo e vou pra

Senhor do Bonfim...É no norte da Bahia.

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Trem saindo com cuidado do recinto de Juiz de

Fora e os camareiros anunciando:

- Benfica... A próxima estação é Benfica...

Benfica saída para o Ramal de Lima Duarte...

Um passageiro apavorado e um camareiro

orientando:

- Não tem baldeação imediata...Trem pra Lima

Duarte só amanhã... Em Benfica tem hotel...Tem

pensão.

O trem parado em Benfica; alguém comentou

dentro do trem:

- No dia que aqui parou o primeiro trem, o

namorado da moça embarcou e ela pediu: bem fica e

ficou Benfica.

De Benfica a Dias Tavares cinco quilômetros.

Dias Tavares a plataforma cheia de tarros de

leite.

Dias Tavares a grande curva pra esquerda e dez

quilômetros a estação de Chapéu D’Uvas. Mais

tarros com leite.

Em Chapéu D’Uvas o peão de leitaria, com a

roupa muito suja e fedorenta, entregou a passagem

o camareiro e disse:

- Vou na plataforma do carro, que eu desço na

primeira...

O trem saiu de Chapéu D’Uvas fez a grande

curva para a direita.

- A próxima é Ewbank da Câmara...

De Ewbank da Câmara a Santos Dumont quatorze

quilômetros.

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- A próxima é Santos Dumont... Santos Dumont

entrada para o Ramal de Mercês...

Santos Dumont a Princesa da Mantiqueira a

oitocentos e trinta e oito metros acima do nível

do mar.

Plataforma cheia de gente, correrias, gente

gesticulando, gente falando em voz alta.

No primeiro carro de primeira classe, a Dona

de Republica de Estudantes em Ouro Preto falou

para a Mãe Taninha de Santo Amaro:

- Eu estou achando que este trem esta

carregado de fluidos negativos...

- Ih está...Esse que tem a cicatriz no

rosto...Ele é bandido...

Coronel Quim Quim Querendão do Quem Quem

reuniu os três capangas na plataforma da bonita e

simpática estação de Santos Dumont:

- Uai!...Esse bicho safado do focinho cortado

é aquele que nós tirou da Feira de Pai Pedro...

Ele tá com o diabo no corpo...

Dentro do trem alguém perguntou:

- Tá parado por quê?

- Tá esperando o trem que vem do Ramal de

Mercês...

Ilustríssimo senhor Juiz de Brigas de Galos de

Belo Vale passeando com garbo e soltando baforadas

do cachimbo na plataforma.

O apito da locomotiva, batendo o sino o trem

do ramal encostou no outro lado da estação e

passageiros apressados saltaram para a plataforma

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e a maioria embarcando no trem para Belo

Horizonte.

A Mulher da Estação Boa Sorte se queixando

para o camareiro a sua má sorte:

- Perdi minha mala...

Num carro de primeira classe o viajante suando

frio, no colo um mapa de Minas Gerais e na mão o

Guia Levy, consultando horários de trens.

Alguém comentou:

- Vamos embora...Que agora a Mantiqueira fica

alta...Agora até Barbacena ele vai subindo...

- Três horas nós tá em Belzonte...

- Uai!...É de cinco pras seis...Ainda tem que

dividir em dois... Em Murtinho um vai pela linha

larga e outro pela linha estreita.

Estação Mantiqueira, plataforma cheia de

tarros com leite.

- E esse mundo de leite?

- Vai pro Rio de Janeiro...

Em Mantiqueira embarcou o Violeiro de

Mantiqueira e se acomodou no primeiro carro de

segunda classe.

Da estação Mantiqueira até a Parada Cabungu,

quatro quilômetros. Parada rápida em Cabungu.

- Aqui nasceu o Santos Dumont...Aqui é bonito

passar de dia...A linha férrea faz uma curva em

“S” e aqui é uma volta parecida com uma ferradura.

Na segunda classe o Violeiro de Mantiqueira

distraia os passageiros:

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- Meu povo...Boa noite...Antes de tocar minha

viola eu conto uma estória... O sujeito chegou na

estação de Mantiqueira o trem já estava na estação

e ele falou pro agente:- Duas pa Lavrinhas... Duas

pa Lavrinhas...- O agente respondeu agora não

posso. To atendendo o trem...Depois que o trem

saiu o agente atendeu o sujeito:- Diga...- O

sujeito desanimado:- Eu queria duas passagens pa

Lavrinhas...

Parada rápida em Rocha dias.

Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança

fumando um palheiro e dando gargalhadas das

estórias do Violeiro de Mantiqueira.

- O fiscal da saúde chegou na estação de

Mantiqueira e destapou o tarro, nadando no leite

dois lambaris, o fiscal olhou pro leiteiro e

perguntou brabo:- E isso?- O leiteiro encolheu os

ombros falando: - Uai! A vaca bebeu no rio...

De Rocha Dias a João Aires sete quilômetros e

a linha sempre subindo. Parada rápida em João

Aires.

E o Violeiro de Mantiqueira continuava

contando suas estórias:

- Gente...Minha mãe fazia pastel de mingau

preu vendê nos trens...Dai o passageiro ficou

devendo um cruzeiro...E o trem saindo, não fico no

prejuízo...Subi no trem e cobrei dele desde de

Mantiqueira até Barbacena...Ele pagou um e eu

paguei dez de passagens...

Em João Aires embarcou um grupo de alunos da

Escola Agrícola, tinham ido ali fazer

experiências.

E na segunda classe o Violeiro de Mantiqueira:

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- Gente...Daqui a pouco é Barbacena...Sabe que

Barbacena tem casa de doido...Os doutores chama

manicômio...Ai os loucos combinaram de

fugir...Depois de muita reunião tava feito o

plano...A gente pula o portão da frente...Na noite

da fuga o líder foi ver a situação...Voltou

triste, desanimado... O plano falhou, esqueceram o

portão aberto.

- Próxima estação é Antonio Carlos... Antonio

Carlos... Saída para o Ramal da Rede Mineira...

Antonio Carlos movimento na plataforma, gente

desembarcando, gente embarcando, gente triste pela

despedida e o trem continuou viagem.

- Próxima estação é Barbacena... Barbacena

saída pela porta da frente...

O Pistoleiro de Paulistana no Piauí, levantou,

sacudiu a roupa e entrou no WC. Do bolso da calça

tirou o lenço azul, dobrou e botou no bolso de

cima do casaco, enfiou uma pena de arara no lado

do chapéu e ficou esperando o trem parar.

Locomotiva batendo o sino o trem encostou na

plataforma cheia de gente. Gente descendo, gente

subindo, carregadores apressados.

O relógio da plataforma marcando vinte e duas

horas e trinta minutos.

O Pistoleiro de Paulistana no Piauí

desembarcou e o homem de terno escuro chegou perto

dele perguntando:

- Se ficar em Barbacena; você é A ou é B?

- Não sou A e não sou B... Sou C de conforme o

contrato.

- Uai!Muito bem... Já identificou o coronel?

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- Já.

- Então vamos combinar o plano...

Barbacena Cidade das Rosas a mil cento e

trinta cinco metros de altitude.

No ultimo carro embarcou um enfermeiro

acompanhando um homem velho o Cangaceiro Doido de

Juacema. Com muita calma o enfermeiro sentou o

louco no canto . O Padre de Petrolina perguntou:

- Você vai acompanhar ele?

- Vou levar ele pra terra dele... É no sertão

baiano, passando Senhor do Bonfim... Estação

Juacema...

- E ele melhorou?

- Não senhor...

- Mas os médicos dizem que o clima de

Barbacena...

- Os médicos... Por isso que o povo

diz...Barbacena cidade dos loucos...

Na plataforma de Barbacena, numa ponta um

grupo de homens engravatados em altas conversas,

gente importante na cidade, entre eles um Deputado

Federal. No outro extremo da plataforma outro

grupo e também um Deputado Federal. Gente que

estava esperando o Trem Vera Cruz pra embarcar

para o Rio de Janeiro. Um grupo “Biista” o outro

“Andradista”.

- Vai partir o trem para Belo Horizonte...

Despedidas, gente embarcando, batida de sino.

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Estação Alfredo Vasconcelos, descarregadas as

dez gaiolas com pombos correios e as instruções

para a hora de abrir e soltar os pombos.

De Alfredo Vasconcelos a estação Ressaquinha

treze quilômetros.Ressaquinha embarcou um cabo,

dois soldados conduzindo um desertor do Décimo de

Infantaria de Belo Horizonte.

Parada rápida em Hermilo Alves. De Hermilo

Alves a Carandaí nove quilômetros.

Em Carandaí o trem esperando para fazer o

cruzamento com trem Vera Cruz. Alguém comentou:

- Já estamos perto de Lafaiete...Em Lafaiete

esse trem se divide em dois...Um vai pela bitola

larga e outro vai pela bitola estreita...

- Isso não é em Lafaiete...É em Murtinho.

Apitando, batendo o sino o Vera Cruz passou

por Carandaí.

O trem para Belo Horizonte continuou a viagem

e logo chegou a Pedra do Sino.

Em Pedra do Sino uma mulher com vestido muito

sujo, cabelo desalinhado, pés descalços subiu no

ultimo carro, um camareiro apressou e fazer ela

descer. Ela deu um grito, olhou o coroné Nézinho e

apontando para ele disse:

- Desce desse trem... Eles vão matá você...

O camareiro segurou o braço dela e a fez

desembarcar.

Estação Cristiano Otoni, embarcou no ultimo

carro um padre para contentamento do Padre de

Petrolina e para descontentamento do coroné

Nézinho.

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Em Buarque de Macedo embarcou, no primeiro

carro de primeira classe, um sargento e dois

soldados da Policia Militar,presenças que deixaram

o Cicatriz de Paraibuna preocupado.

O trem rodando na região rica em minérios e já

perto de Conselheiro Lafaiete.

- Essa hora o trem da bitola estreita tá

saindo de Lafaiete...Nos espera em Murtinho...De

Murtinho sai duas linhas a do Paraopeba que é a de

bitola larga e do Rio das Velhas que é estreita...

Zero horas e quarenta cinco minutos chegaram

em Conselheiro Lafaiete. Conselheiro Lafaiete das

minas de ferro. Conselheiro Lafaiete da Coudelaria

do Exercito.

Entrando com muito cuidado no recinto cheio de

vagões, locomotivas de manobra.Recinto de bitola

mista.

De Conselheiro Lafaiete a Gagé nove

quilômetros.

Gagé outro recinto movimentado com vagões de

minérios. Entrada para o recinto da Companhia de

Altos Fornos de Gagé.

Passageiros preocupados com a próxima.

- A próxima é Joaquim Murtinho...Ponto de

troca de trem...Passageiros que vão para Miguel

Burnier, Ouro Preto, Mariana, Itabirito e Sabará

desembarcar e trocar de trem...

- Por favor...Eu vou para Gongo Soco...

- Gongo Soco é no Ramal de Nova Era, troca de

trem...

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O outro trem encostado na plataforma.

Carregadores oferecendo seus serviços. Passageiros

sonolentos, conferindo as bagagens.

Camareiros auxiliando e orientando. Gente

ainda com duvidas.

O trem da bitola larga continuou a viagem.

De Joaquim Murtinho a Congonhas do Campo nove

quilômetros. Os camareiros avisando:

- Chegar em Congonhas...Congonhas do Campo...

Pra alegria do coroné Nézinho o padre que

embarcou em Cristiano Otoni se despediu do Padre

de Petrolina e desembarcou.

Congonhas da Igreja do Bom Jesus de Matosinhos

e sua escadaria com as estatuas de doze profetas,

feitas pelo Aleijadinho.

Parada rápida na estação Casa de Pedra.

- Próxima estação é Engenheiro Caetano

Lopes...Engenheiro Caetano Lopes...

Caetano Lopes o agente nervoso na plataforma e

nem o trem tinha parado perguntou ao chefe de

trem:

- Quantos passageiros para o Trem do Sertão?

Pulando para a plataforma da estação o chefe

de trem sacudiu a mão:

-Uai!...Só vendo no mapa de passagens...Só pra

Bocaiúva tem quarenta e nove...

-Não...Não precisa o numero exato...Proporção.

-Uai!...O normal deste trem...Oitenta por

cento é carga pra o norte...Tem um passageiro aí,

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que vem de Jaguarão no Rio Grande do Sul e vai pra

Natal no Rio Grande do Norte...

- Coitado...Vai chegar em Natal no Natal...

Dentro do trem os passageiros começaram a se

remexer. Interrogações, comentários...Parou por

quê? O que esta acontecendo?

A notícia começou na segunda classe. Um

acidente ai na frente. Morreu gente...

No escritório da estação o agente avisou ao

chefe de trem:

- Acidente em Ibiretê...O da bitola estreita

tá esperando em Burnier... Vem um trem socorro de

Lafaiete e trás dois carros de passageiros pra

levar os da bitola larga das estações até Ibiretê.

Sem perder tempo desengataram a locomotiva da

frente do trem e engataram na cauda.

- Passageiros que vão para Ibiretê, Belo Vale,

Brumadinho...Desembarcam aqui e aguardem o que vem

de Lafaiete...

Nervoso o Juiz de Briga de Galos de Belo Vale

sacudia o cachimbo no ar dizendo:

- Vou comunicar a Diretoria da Central do

Brasil...

Prontos para dar ré pra trás, vamos direto a

Mutinho.

Zédizefa bateu no braço do coroné:

- Eita! Coroné...Que mulher porreta...Mãe

Taninha de Santo Amaro falou... O caminho que é

largo vai fechar mas o caminho estreito vai tá

aberto... O caminho que é largo vai fechar mas o

caminho estreito vai tá aberto...

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- Oxente! Você endoidou?...Ela falou um

palavreado de candomblé...Até vou mijar.

O coroné entrou no WC, trancou a porta passou

a mão na testa, olhou para cima:

- O São Gonçalo...São Gonçalo meu santo

porreta eu to viajando nas confianças do

senhor...Vou chegar lá vou fazer dança de doze

rodas...Dança de doze rodas com fartura de bode

assado, farofa de carne do sol...

Enquanto isso em Miguel Burnier o agente e o

chefe de trem preparavam o trem da bitola estreita

para esperar a nova carga.A carga do trem da

bitola larga. Trem da estreita que em Burnier já

descarregou os passageiros com destino ao Ramal de

Ponte Nova e carregou os passageiros procedentes

do ramal.

- O controle de movimento vai aproveitar esse

trem pra fazer o Trem do Sertão...

- O trem tem três de segunda classe e quatro

carros de primeira classe...Sete carros...

- Vamos engatar mais dois de segunda classe e

mais três de primeira classe.

O trem da bitola larga chegou em Murtinho e

manobreiros apressados desengataram a locomotiva

da cauda e engataram na frente do trem. Vai embora

direto a Burnier, não para em Lobo Leite e não

para em Crockatt de Sá.

Trem da bitola larga chegando em Burnier, onde

o esperava o da bitola estreita.

Camareiros atenciosos e com paciência

orientando os passageiros:

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- Em Burnier troca para o trem da bitola

estreita...Todos os passageiros.

Zédizefa saltou antes do trem parar e correu

pra marcar banco. Deu sorte porque os três últimos

carros estavam vazios. Marcou o ultimo banco da

direita do ultimo carro.

Na verdade a carga humana praticamente ocupou

os mesmos lugares que vinha ocupando no outro

trem.

Bagageiros e carregadores transferindo as

cargas e bagagens.

O Falcoeiro de Três Rios cuidando a

transferência das gaiolas com os falcões.

O bagageiro orientando os dois carregadores a

manejarem com muito cuidado com a caixa grande de

papelão onde estava escrito: Estação Catuti

(EFCB).

Mãos na cintura coronel Quim Quim Querendão do

Quem Quem, cercado dos três capangas olhava com

atenção ao Ervateiro de Lajedo Alto que se

deslocava com auxilio dos braços.Comentou:

- Uai sô!...Vocês já tinha assuntado esse

homem?

Diabo Péssimo sacudiu a cabeça, afirmativo:

- Sim sinhô...Tava vindo no meu carro...

- Pois assunte bem com ele...Quero informações

desse cabra...

O Cicatriz de Paraibuna de dentro do trem

espiava o coronel e os capangas:

- Esse coronel de merda anda com os macaco

dele...Eu sei o que eu vou fazer...

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No ultimo carro o Padre de Petrolina disse em

voz alta:

- Eu tenho um segredo...Lá na Bahia vai ter um

problema...

O sujeito gordo, mãos nos bolsos, andando

nervoso pela plataforma resmungando. Esse atraso

pode a gente perder o Expresso Noturno da Leste.

Baldeação feita, cargas e passageiros

transferidos para o trem da bitola métrica; um

metro a distancia entre cada linha de trilhos.

Trem pronto pra avançar.

Parada rápida na estação de Engenheiro Correa.

- Próxima estação é Itabirito...Itabirito.

Mal o trem parou em Itabirito o Padre de

Petrolina desceu e foi buscar uma dúzia de pasteis

de angu. Coroné Nézinho comentou:

- Eita!...Gula é pecado.

Comentário que não inibiu o Zédizefa de

comprar seis pastéis de angu.

O Alambiqueiro de Guararema desceu para

comprar pastel e voltou com a novidade, contou pro

coroné Nézinho:

- Nós não vai precisar trocar de trem em Belo

Horizonte...Esse aqui vai até Monte Azul...

Coroné espichou o pescoço e falou baixo:

- Escute...Qual é o segredo do Padre de

Petrolina?

- Ainda não sei, não...

De Itabirito a Esperança quatro quilômetros.

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Esperança, fim da bitola mista. Num canto

escuro da plataforma, louro, cabelo amarelo e

comprido,olhos azuis; Satanás Louro de Esperança.

De dentro do trem o Cicatriz de Paraibuna o

avistou e foi a seu encontro:

- Ei malandro...Que você tá nesse mundo?

- Esperança é o chão em onde é meu quartel...

- Bora cair no mundo...

- Meu mano eu fuji foi ontem da Penitenciária

de Neves...

- Então...Cai fora daqui...Eu pago a

passagem...Compra lá...Até Janauba.

Os dois embarcaram e o velho camareiro sacudiu

a cabeça. Esses dois dentro desse trem.

Estação Aguiar Moreira embarcou um cego e seu

cão guia na segunda classe. Depois que ele sentou

um camareiro levou o cão para o vagão de bagagens.

No vagão de bagagens carregaram cinco balaios

com folhas de ora pro nobis, uma folha usada na

culinária de Sabará.

De Aguiar Moreira a Rio Acima quinze

quilômetros.

Em Rio Acima embarcou na segunda classe um

grupo que chamou a atenção dos passageiros. Um

grupo de reizado.

Os primeiros raios do sol iluminando a

Mantiqueira e o trem chegou à estação de Honório

Bicalho. Os vendedores gritando:

- Jabuticaba... Jabuticaba que tá docinha...

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E Zédizefa não perdeu tempo, baixou a janela

enquanto o coroné Nézinho resmungava:

- Eita!...Que é um bucho...

Da estação Honório Bicalho a Raposos dez

quilômetros.

Raposos; embarcou no ultimo carro de primeira

classe mais um grupo de reisado. Coroné Nézinho

até se admirou:

- Oxente!...Já tá no tempo de cantar reis?

Um dos integrantes do grupo contou:

- A gente vai a Sabará, pra um encontro de

reisado na igreja de Nossa Senhora do Ó.

Coroné contou que no Juazeiro se fazia o Boi

de Reis e explicou ser um tipo de boi bumbá.

O trem continuou sua marcha e Zédizefa bateu

no ombro do coroné:

- Eita coroné... Jabuticaba é fruta que dá no

pau...A cidade que vamos chegar tem a igreja do

Ó...

- Zédizefa, você tá ficando doido?

- Coroné...Mãe Taninha de Santo Amaro falou...

No caminho junte as coisas da oferenda; licor da

fruta que dá no pau que tem na cidade da igreja do

Ó...

- Zédizefa, você se bandeou pro lado do

candomblé de verdade... Vou mandar você pra

Salvadô...Pai de Santo Zédizefa...

Os camareiros avisando:

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- Próxima estação é Sabará...Sabará baldeação

para o Ramal de Nova Era...Saída pela porta da

frente...

Coroné olhou pra Zédizefa, Zédizefa olhou pro

coroné.

Batendo o sino da locomotiva o trem encostou

na plataforma da estação de Nossa Senhora da

Conceição de Sabará.

Zédizefa olhou pro coroné, coroné olhou pra

Zédizefa.

Passageiros apressados que descem, passageiros

apressados que embarcam.

Coroné olhou pra Zédizefa, Zédizefa olhou pro

coroné.

O Padre de Petrolina marcou o seu lugar e

desembarcou caminhando ligeiro. Logo retornou com

uma garrafa de licor de jabuticaba

Zédizefa olhou pro coroné, coroné olhou pra

Zédizefa.

Sabará fundada pelo bandeirante Borba Gato.

Coroné olhou pra Zédizefa, Zédizefa olhou pro

coroné.

Os grupos de reisado reunidos na plataforma,

dando risadas, distribuindo alegrias.

Zédizefa olhou pro coroné, coroné olhou pra

Zédizefa.

Batida no sino da plataforma anunciando que

dentro de dois minutos o trem partiria.

Ligeiro o coroné tirou o dinheiro do bolso e

falou rápido:

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- Tome, vá lá e compre seu licô de

candomblé...

- Mas se o coroné não quer...

- Vá e não discuta...

De Sabará a General Carneiro oito quilômetros.

Nesse trecho o que era boato dentro do trem se

confirmou.

- Passageiros que vão para Belo Horizonte

trocam de trem...Passageiros que seguem para o

sertão permanecem no trem...

A bonita estação de General Carneiro; prédio

triangular, sem janelas, várias portas, linhas e

plataforma pelos três lados.

Já encostado o trem que veio de Belo

Horizonte.

Camareiros ainda orientando os passageiros que

estavam com duvidas:

- Passageiros que seguem para o norte ficam

nesse trem...Passageiros para Belo Horizonte

desembarcam e tomam outro trem...

Alegria para os vendedores de pastel de angu,

o trem iria permanecer mais tempo na estação.

Padre de Petrolina comprou uma dúzia de

pasteis dizendo:

- Vou ver qual o melhor...Itabirito diz que é

o deles...General Carneiro...

Zédizefa também resolveu tirar a prova.

No trem que chegou de Belo Horizonte o

camareiro avisando:

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- Troca de trem...Passageiros por favor passem

para o outro trem...

Turco Bidala, que em Belo Horizonte embarcou

cedo e como sempre teve o trabalho de espalhar uma

dúzia de malas debaixo dos bancos de um dos carros

de segunda classe, começou a trocar as malas de

trem, reclamando:

- Um drogas o Central di Brasil...Muito malas

pra carrega...

Um camareiro cuidando ele fazer a

transferência o que o deixava mais irritado:

- Eles vai querer que eu mande mala no carro

de bagagens e eu pago frete e lá vai meu lucro...

Malas com roupas e bugigangas para primeiro

vender na Feira de Pai Pedro e depois percorrer o

nortão das Minas Gerais, de povoado em povoado no

lombo de burro.

Corpo e alma curtida da luta dura nas

caatingas do sertão do médio São Francisco, o

Vaqueiro de Massaroca, chapéu e percatas de couro

cru correu a pegar lugar no primeiro carro de

segunda classe.

Manobreiros e os guarda freios organizando o

Trem do Sertão, aproveitando o tabuleiro que

chegou de Joaquim Murtinho e já carregado. Entre

os carros de segunda classe e primeira classe

engataram o carro restaurante e botaram mais um

vagão, vagão misto; metade para transporte de

cargas e uma metade destinada a transporte de

animais, este engatado na locomotiva.

O trem ainda parado em Carneiro, o pessoal do

restaurante começou a servir café. Café com leite,

pão e queijo.

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No último carro o Cangaceiro Doido de Juacema,

regalou os olhos, levantou estabanado e puxou o

enfermeiro pelo braço até a plataforma do vagão e

nervoso perguntou:

- Moço...Tem algum coroné ai nesse carro?

- Tem não...Pode ficar tranqüilo...

- Esse trem já tá perto de Senhor do Bonfim?

- A gente tá indo...

Trem pronto para partir, com nova locomotiva,

equipagem de Corinto. Maquinista seu Zé dos

Curiós, foguista o seu Zé do Guarani. Zé dos

Curiós criador de curió e presidente do Clube de

Criadores de Curió de Corinto. Na sua janela da

locomotiva uma flâmula triangular do clube. Na

outra janela uma flâmula triangular do Guarani

Futebol Clube de Corinto do qual o foguista foi

ponta direita e torcedor fanático.

Chefe de trem o seu Chico Poeta, poeta e

escritor de crônicas, cooperador com os jornais de

Corinto, Curvelo e Pirapora.

Debruçado na janela da locomotiva o maquinista

puxou a corda do apito.

- Quem é o apressadinho?

- Zé Curió... A mulher botou ele pra dormir

com as gaiolas de curiós no quartinho dos fundos.

O agente passou a mão na testa, pegou o

telefone para solicitar:

- Controle... Movimento...General Carneiro...

Quero licença para o R5 avançar até Capitão

Eduardo...

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Partiu de General Carneiro o R5 até Monte

Azul. O Trem do Sertão com setecentos e oitenta

passageiros.

O Engenheiro de Mafra contando ao Telegrafista

de Iramaia:

- Sai de Mafra, lá em Santa Catarina, no Trem

Bananeiro. O Bananeiro é o trem de passageiros de

São Francisco do Sul a Porto União da

Vitória...Pegou o apelido porque quase sempre leva

três quatro vagões com banana da região de São

Francisco e que vão para o Rio Grande do

Sul...Como a banana é fruta ela tem prioridade pra

viajar engatada em trem de passageiros...

Garçons apressados servindo café. Revisteiro

vendendo os jornais de Belo Horizonte. O chefe de

trem conferindo as passagens:

- Por favor! Passagens...Passagens...

Rumo ao sertão veredas que Minas não é uma; é

gerais.

No primeiro carro de segunda classe, lado a

lado o Gaucho de Touro Passo, tomando o chimarrão,

e o coronel Ponciano Pantaneiro de Porto

Esperança, e sentado no banco da frente e voltado

pra eles o Vaqueiro de Massaroca mascando um naco

de tabaco. Os três contando de suas atividades com

o gado em seus mundos e cada um com a sua

linguagem. Geada, frio, grito de quero quero,

minuano,terneiro...Chuva,tuiuiú,maromba,piranha,be

-zerro...Sol,calor, arribançã,seriema,mandacaru...

Estação Capitão Eduardo e desembarcou a bonita

professora que logo foi cercada dos alegres

alunos.

Estação Santa Luzia, os vendedores gritando:

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- Olha a manga...Manga...É manga barata...

Padre de Petrolina e Zédizefa disputando quem

comprava primeiro e o coroné resmungando.

O trem correndo entre palmeiras de ouricuri e

macaúba.

Estação Riachão da Mata onde embarcou um grupo

de jogadores de truco, para participar de um

torneio em Matosinhos.

- Próxima estação é Vespasiano...Vespasiano...

Vespasiano,embarcou no ultimo carro o homem

alto, magro, careca, mala de couro e encontrou

vago o banco na frente do banco onde viajavam o

Homem de Pau Seco e o Homem do Pau Lavrado.Antes

de ocupar o banco, perguntou:

- Bom dia senhores...Essa cadeira tá sem dono?

O homem de Pau Seco respondeu:

- Tá sim...O povo que vinha ai já pulou...O

senhor vai pra onde?

O novo passageiro respondeu:

- Pois to indo pro sertão de Pernambuco...Nos

mundos de Petrolina... Estação Pau Ferro...

O Homem de Pau Lavrado sorriu dizendo:

- Eita!...Eu vou pro Pau Lavrado, ele vai pro

Pau Seco e o senhor pro Pau Ferro...

O Homem de Pau Ferro deu uma risada e virou o

encosto do banco dizendo:

- Antão... Viajamos conversando...

Zédizefa que estava prestando a atenção, bateu

no ombro do coroné Nézinho dizendo:

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- E...O diabo tá fazendo a coisa...

- Oxente!...Zédizefa, que doideira é essa?

- Oxi...Mãe Taninha de Santo Amaro falou...

...Não confie no homem do pau seco, nem no homem

do pau lavrado e também não no homem do pau

ferro...

Coroné Nézinho passou a mão na testa, levantou

e foi pro WC. Trancou a porta e olhou pra cima:

- São Gonçalo meu santo forte...To viajando na

sua confiança...Faço vinte e quatro rodas de dança

com fartura até com buchada de bode, sarrapatel...

Estação Nova Granja onde o funcionário do

correio entregou ao agente da estação um grande

maço de cartas; corrente de Santo Antônio.

Em Nova Granja embarcou outro grupo de

truqueiros indo para o torneio de Matosinhos.

Estação Doutor Lund,das imensas paineiras,

embarcou mais jogadores de truco, sendo que este

grupo tinha bandeira e uma bonita rainha.

No corredor do carro o menino alegre,

brincando distraído com um ioiô.

- Próxima estação é Pedro Leopoldo...Pedro

Leopoldo...

Pedro Leopoldo o desembarque de vários grupos

de seguidores da Doutrina Espírita, procedentes de

vários lugares.

Zédizefa bateu no braço do coroné falando:

- Aqui nesse lugar tem um homem que fala com

os mortos...

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- Zédizefa cale sua boca...Isso não se fala

dentro de trem...

Entre Pedro Leopoldo e Matosinhos a distancia

de dez quilômetros.

Matosinhos da grande festa anual do Bom Jesus.

Em Matosinhos desembarcaram os grupos de

truqueiros.

No momento que o trem saia da estação de

Matosinhos o tenente da Policia Militar, que

estava na plataforma, viu na janela de um dos

carros o Satanás Louro de Esperança. Esperou o

trem sair e foi ao escritório da estação passar

uma mensagem para Sete Lagoas.

Parada Peri Peri, na beira do trem uma mãe

nervosa recomendando a filha de quinze anos que ia

viajar sozinha para o chefe de trem. Parado na

plataforma do carro, recostado na parede, olhar de

carcará, carcará que pega, mata e come; o Gigolô

de Poá.

A mocinha entrou no carro assustada e sentou

no primeiro banco desocupado que encontrou.

O Gigolô de Poá entrou no carro distraído,

caminhando despreocupado. Parou perto da Mocinha

de Peri Peri. Ela assustada, ele começou conversa.

Coronel Quim Quim o Querendão do Quem Quem com

os olhos fechados enxergando tudo dentro do carro,

bateu a sola da botina no assoalho do carro. Diabo

Ruim deu duas batidas.

O Gigolô de Poá, pediu pra Mocinha de Peri

Peri marcar o lugar pra ele, pediu licença e saiu

avisando que já voltaria.

O trem correndo entre matas de ipê amarelo.

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Com uma garrafa de cerveja e dois copos o

Gigolô de Poá retornou. A Mocinha de Peri Peri

quase em pânico se encolheu, olhos com lágrimas. O

Gigolô de Poá com seu sorriso cínico começou a

ajeitar a mesinha do carro, num fio de voz a

Mocinha de Peri Peri disse:

- Moço eu não quero...

Ele continuou ajeitando a mesa e uma voz

trovejou nos seus ouvidos:

-Uai! A moça numqué, eu quero...

Dizendo isso o Diabo Ruim tirou a garrafa da

mão dele e tomou um gole no gargalo. Gigolô de

Poá, aprumou o corpo e com calma levou a mão ao

bolso interno do casaco para segurar a navalha.

Uma mão forte pousou no ombro dele;coronel Quim

Quim o Querendão do Quem Quem que avisou:

- Moço!...Tão chamando você lá no fim do

trem...

Parada rápida na estação de Arco Verde.

Estação Prudente de Morais onde descarregaram

muitas caixas especiais para carregar cobras

vivas. Em Prudente de Morais um caçador voluntário

mandava cobras para o Instituto Butantã.

- Próxima estação é Sete Lagoas...Sete

Lagoas...

Sete Lagoas, cidade ferroviária, das oficinas,

da fabrica de vagões. Plataforma com bandeiras e

flâmulas do Democrata cuja diretoria e torcedores

estavam esperando o “Galo Carijó” de Juiz de Fora;

Tupi Futebol Clube.

Dentro do trem alguém comentou:

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- Já tamos em Sete Lagoas...No fim do dia ele

chega em Montes Claros...

- Mas não!...No fim do dia ele tá em

Buenópolis...Montes Claros é lá no meio da

noite...

- Uai!...Onde é o almoço?

- Almoço em Cordisburgo... E a janta é em

Buenópolis...

Um inspetor da Policia Civil do Estado de

Minas Gerais, acompanhado de um camareiro,

atravessou todo o trem observando os viajantes,

discretamente.

No ultimo carro o Cangaceiro Doido de Juacema

deu um grito:

- Eu mato!

Os passageiros ficaram assustados.

Apitando, batendo o sino o trem saiu de Sete

Lagoas da festa de Santa helena.

Depois que o trem saiu o inspetor da Policia

Civil e um capitão da Policia Militar do Estado de

Minas Gerais foram ao escritório do agente da

estação solicitar transmissão de mensagem para o

comando da Policia Militar em Curvelo

Estação Wenceslau Brás, o funcionário do

correio entregou um jornal para o menino que o

colocou numa bolsa de pano que levava a meia

espalda, ligeiro montou numa mula e tocou a

galope.

Estação Silva Xavier, na pequena plataforma,

muitas caixas com frutas e legumes que o bagageiro

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apressou em carregar.Produtos para a feira de

Cordisburgo.

Embarcou um grupo de colonos descendentes de

alemães, vestidos de preto, religiosos da Igreja

Protestante, iam para um encontro de jovens em

Araçaí; encontro para estudo da Bíblia, jogar

“Knip” um jogo de tabuleiro e comer salsichão com

repolho.

O Telegrafista de Iramaia até ficou admirado:

- Pensava que só tinham colônias de alemães no

Sul...

O Pastor Evangélico de Araçaí sentou ao lado

do Padre de Petrolina.

A batida do sino ecoou no povoado de Silva

Xavier e o trem começou a sair da estação.

O Padre de Petrolina disse ao Pastor de

Araçaí:

- Vocês têm uma coisa boa...Vocês estudam a

Bíblia...

- É...Pra manter os fiéis unidos; a gente

canta, faz um almoço e faz jogos...Isto tudo

ajuda...

Estação Carvalho de Almeida, a seiscentos e

oitenta e três metros de altitude. Caixas e sacos

com frutas pra feira de Cordisburgo.

Embarcou mais um grupo de jovens evangélicos

para se unir ao grupo que vinha de Silva Xavier.

Depois que os dois grupos se saudaram cantando, o

líder do grupo de Carvalho de Almeida reclamou

para o pastor:

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- O senhor tá nos devendo uma mesa de jogar

knip...

- Fica em paz...Já tá pronta...Na volta vocês

traz...

A Velinha de Buenópolis conversava com o

Enfermeiro de Barbacena:

- Vocês vão pra onde?

- Pro norte da Bahia...Ele é de

Juacema...Juacema é uma estação que tem entre

Senhor do Bonfim e Juazeiro...

- E ele já tá curado?

O Enfermeiro de Barbacena sacudiu a cabeça:

- Mais ou menos...Quando ele era menino o

bando de Lampião atacou Juacema...Fez misérias,

atacou até a estação...E ele ficou meio

destrambelhado e foi criando a mania, que é

cangaceiro...

O trem parou em Araçaí, o grupo de evangélicos

apressou a desembarcar. No momento que o Pastor

Evangélico de Araçaí ia sair do carro entrou o

Padre Velho de Araçaí, alem de não se saudarem,

ambos viraram o rosto. Padre Velho de Araçaí

sentou ao lado do Padre de Petrolina, resmungando:

- Seguidor de Lutero... Anda nas estações

juntando fiel...Em Silva Xavier tem uma colônia de

alemães...Fé?...Eles vão encher o bucho de repolho

e carne de porco e fazer joguinhos...Agora em

janeiro nós vamos fazer uma grande festa em

Araçaí...Festa de São Cristovão...

De Araçaí a Cordisburgo quinze quilômetros.

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Coroné Nézinho espichando as pernas caminhando

no corredor do carro. Os quatro meninos brincando

com uma piorra. Coroné parou pra bater uma prosa

com o tio dos meninos:

- A pois, já tá perto da sua estação?

- Uai! Tá nadíca de nada...Nós vai pra

Uratinga...Depois de Montes Claros...Vai chegar de

madrugada...

Os camareiros avisando:

- Cordisburgo é ponto de almoço...Meia hora

pra almoço...Não percam a hora...É Cordisburgo...

Dois policiais militares em cada ponta da

plataforma. No centro da plataforma um tenente e

um sargento da Policia Militar de Minas Gerais.

O Pistoleiro de Paulistana no Piauí, olhou

pela janela, viu o movimento dos policiais. Tirou

o revolver do bolso e colocou dentro da mala:

- Tá tendo muita policia na beira deste

trem...A polícia de Minas é tão perigosa como a do

Pernambuco...Só vou precisar desse revolver na

Bahia...

Na estação a banca vendendo café e bolo.

Vendedores com seus tabuleiros na volta do trem,

vendendo pastel, arroz de leite, bolo...

Passageiros com fome e com pressa rumando para

os restaurantes, bares e pensões.

Coroné Nézinho e Zédizefa sentaram contentes

para almoçar arroz, frango com quiabo e feijão de

Cordisburgo, esse feijão era um segredo do

restaurante, que cozinhava apenas o feijão, e

separado assava carne de porco temperada, conforme

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o numero de fregueses ele refogava o feijão com a

carne assada.

Coronel Quim Quim o Querendão do Quem Quem,

reuniu os seus diabos e logo interrogou o Diabo

Péssimo:

- Você assuntou do sujeito sem as

pernas?...Aquele que caminha com as mãos...

- Uai!...Coronel mandou...Ele é dos mundos da

Bahia, dum povoamento chamado Lajedo Alto...

Coronel botou o dedo no peito do Diabo

Péssimo:

- Uai sô!...Ta lembrado não?...Lajedo Alto foi

onde você tomou uma sova de laço...

A Pimenteira de Jequi foi ao WC buscar uma

caneca com água para beber e ela e o Ervateiro de

Lajedo Alto, repartindo, os dois comendo com a

ponta dos dedos uma farofa magra...

Satanás Louro de Esperança mordendo um pastel

disse:

- Cicatriz tá tendo muito macaco da policia na

volta desse trem...

Boca cheia o Cicatriz de Paraibuna:

- Seja homem... Parece menino cagado...Eles

tão buscando um pistoleiro do Piauí...Ele fez um

acerto de serviço lá em Barbacena...

- Virge Maria! Como é que você tá sabendo?

- Eu tenho amigos ai dentro desse trem...

Enquanto os passageiros almoçavam os

ferroviários organizavam o trem para continuar a

viagem.A locomotiva foi desengatada e encostou na

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carvoeira para abastecer de carvão e lenha. Um

camareiro subiu pela escada, no estremo do carro

de bagagens, e foi abastecer de água os

reservatórios dos carros.

De Cordisburgo até Maquiné vinte e um

quilômetros.Saiu de Cordisburgo apitando e batendo

o sino.

Chegando de vagar no recinto de Maquiné, na

segunda linha uma locomotiva e um vagão.

Um menino debruçado na janela gritou:

- Eiiitaaaaaaa qui é soldado!

Cicatriz de Paraibuna e o Satanás de Esperança

levantaram e atravessaram o trem correndo. Saíram

na porta da frente do primeiro carro de segunda

classe e rápidos como um gato subiram pela escada

do carro de bagagens e deitaram em cima desse

carro. O Cego de São Cristovão em Sergipe cuidou o

movimento deles.

O trem parou em Maquiné e muitos policiais

militares o cercaram. Um sargento e um cabo

entraram no primeiro carro e começaram a vistoriar

o trem.

Passageiros curiosos, muitas opiniões, algum

medo.

O Cego de São Cristovão no Sergipe foi para o

WC, trancou a porta. Tirou um toco de lápis do

bolso, e pegou um papel do WC, papel chamado de

papel de trem ou papel de se limpar. Os trens

levaram o papel higiênico para o interior do

Brasil. O Cego começou a escrever.

Trem revisado pelos policiais, ordens

gritadas:

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- Em forma!...Pelotão sentido!...

O comandante avisou ao agente da estação que o

trem podia continuar a viagem.

O trem saindo devagar, o Cego de São Cristovão

no Sergipe abriu a janela do WC e entregou o

bilhete ao agente.

Cicatriz e Satanás desceram de cima do carro

de bagagens e ficaram na primeira plataforma do

trem, preocupados. Satanás de Esperança insistiu:

- Esses macacos tão atrás de nós...

Na locomotiva o foguista, seu Zé do Guarani,

debruçou na janela, olhou para trás e comentou:

- O trem da policia vem bem atrás do nosso.

Na plataforma da estação de Mascarenhas a Moça

Vendedora de Fofão, segurou seu tabuleiro com

alegria, pronta pra vender aos passageiros.

O trem encostando, devagar, na plataforma de

Mascarenhas, enquanto o trem com os policiais

entrou pela segunda linha.

Cicatriz e Satanás pularam para a plataforma.

Trem e estação cercados de policiais. Os dois

cercaram a Vendedora de Fofão. Cicatriz a segurou

pelo braço e ficou ameaçando com o revolver.

Gritos, janelas se abrindo, o agente da

estação tremendo na porta do escritório.

O Cego de São Cristovão desceu do trem e

sentou num dos bancos da plataforma.

A Vendedora de Fofão de Mascarenhas chorando.

Cicatriz de Paraibuna gritando:

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- A policia que fique longe... A gente faz

negocio com o agente da estação.

E está formada a encrenca. Estação cercada

pela policia. A vendedora de Fofão de Mascarenhas

soluçando. O Cego de São Cristovão no Sergipe,

sentado e segurando o grosso bastão de madeira.

- Pelotão calar baionetas!...

Dentro do trem uma mulher desmaiou.

Satanás de Esperança gritou ao comandante da

operação:

- Suba no seu trem e volte pra Curvelo...A

moça morre...

O Soteropolitano Afetado desembarcou e

deslizou na ponta dos pés, dando gritinhos, até a

plataforma da estação. Cicatriz gritou:

- Onde você vai? Seu boiola...

- Meu quiiiiiiiriiiiiido, vou ajudar o

ceguinho.

- Ligeiro seu porra...

O Soteropolitano tentando ajudar o Cego que

nervoso não sabia o rumo. A Vendedora de Fofão de

Mascarenhas soluçando. Os dois bandidos cuidando o

movimento dos policiais. O Cego deu com o cotovelo

na barriga do Soteropolitano. Foi rápido; o Cego

levantou o bastão e deu na cabeça do Satanás, ao

tempo que o Soteropolitano num movimento de

capoeirista deu um pontapé no revolver que voou da

mão do Cicatriz e no mesmo instante deu uma

rasteira o fazendo rolar para baixo da

plataforma...

Vamos embora que a viagem é longa.

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Estação Gustavo da Silveira, muitas caixas com

mangas pra feira de Curvelo. Cercando o trem um

vendedor gritando:

- É manga...Olha a manga...

- Próxima estação é Curvelo...Curvelo, saída

pela porta da frente... É Curvelo...

Curvelo a da Basílica de São Geraldo e da

Matriz de Santo Antônio. Curvelo da Exposição

Agropecuária.

No carro de bagagens, descarregaram os malotes

do correio, fardos de jornais, pacotes de

revistas, caixas feitas de lata com filmes para o

cinema. Um filme muito esperado com o Mazzaropi.

Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança

no Mato Grosso, aproveitou que o trem estava

parado e foi até o ultimo carro cumprimentar o

Soteropolitano Afetado:

- Moço!...O senhor foi valente...Homem macho

de verdade...

- Ui!...O senhor não entendeu...Foi uma

recaiiiiiiiida...

De Curvelo até Capitão Evaristo quinze

quilômetros. Em Capitão Evaristo embarcou na

primeira classe uma mulher gorda, e um menino

entregou a ela,pela janela, uma pequena caixa que

ela botou debaixo do banco, na caixa um pinto cujo

pio ecoou no carro.

O trem reiniciou a viagem e com o embalo do

carro o pinto cada vez piava mais. A Mulher Gorda

de Capitão Evaristo puxou a caixa debaixo do banco

e colocou entre os pés e tapou com o vestido.

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O trem chegando em Osório de Almeida o pinto

piando, o camareiro se aproximou da Mulher Gorda

de Capitão Evaristo e perguntou:

- O quê a senhora tem no meio das pernas?

Alguns passageiros riram e a mulher ficou

braba:

- Uai! Que isso seu moço? Eu escrevo um

bilhete pra Central do Brasil...

Trem parado na estação Osório de Almeida o

camareiro foi comunicar ao chefe de trem, que uma

passageira transportava animal dentro do trem.

Como o trem estava parado na estação o chefe de

trem comunicou ao agente. Os dois foram falar com

a Mulher Gorda de Capitão Evaristo.O agente:

- A senhora tem um pinto no meio das pernas?

A risada foi geral e a mulher ficou braba.

Quem acalmou tudo foi Mãe Taninha de Santo Amaro

que convenceu a dona do pinto deixar o pinto

viajar no carro de bagagens.

Estação de Cerradão o cruzamento dos dois

trens de passageiros, nas janelas dos dois os

curiosos.Em Cerradão embarcou na segunda classe um

sujeito meio esquisito com uma enorme mala, sentou

e segurou a mala no colo, abraçado e escondido

atrás da mala. Alguém comentou:

- Olha o mocorongo.

O trem correndo num retão sem fim e os

camareiros avisando:

- A chegar em Corinto...Corinto baldeação para

o Ramal de Pirapora...Corinto baldeação para o

Ramal de Diamantina... É Corinto e a saída pela

porta da frente.

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Apitando e batendo o sino, saudando e pedindo

licença para entrar no recinto do entroncamento do

Centro das Gerais.

Camareiros orientando, carregadores oferecendo

seus serviços, passageiros apressados.

Já encostados na plataforma os dois trens dos

ramais.

Entre os passageiros que desembarcaram os

cento e sete índios; homens mulheres e crianças.

Iam pra Pirapora e de lá em lombo de burros

atravessarem o Goiás no rumo do Mato Grosso.

O homem suando com duas pesadas malas

perguntando:

- O trem pro Lassance ?

- Lassance é no Ramal de Pirapora...O trem

é...

Nova locomotiva, outra equipagem. Maquinista

tinha o apelido que era o nome da estação onde

nasceu e se criou;Cerradão.O foguista também tinha

o apelido que era o nome de seu povoado

natal:Corumatai. Dois fanáticos por pescaria,

quando não estavam de serviço andavam na beira de

algum rio ou córrego.

Um capitão,um tenente, um sargento e dez

soldados da Policia Militar de Minas Gerais

andando na plataforma. O Pistoleiro de Paulistana

no Piauí, espiou pela janela do trem:

- Mais policia na beira desse trem!

O Garimpeiro de Roça do Brejo embarcou na

segunda classe levando numa bolsa de couro um

porongo cheio de pedras semipreciosas e na costura

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da cueca quatro diamantes. Ia para Montes Claros

onde o preço era melhor.

Coronel Quim Quim o Querendão do Quem Quem

reuniu na plataforma os seus três diabos e deu

ordem ao Diabo Péssimo:

- Logo na tardinha esse trem vai parar em

Buenópolis pra janta...Tem uma birosca num beco

ali atrás da estação...Leve o Ervateiro de Lajedo

Alto pra esse beco...

No carro de segunda classe o Ervateiro de

Lajedo Alto e a Pimenteira de Jequi, repartindo

uma manga e ele contente que estava levando

bastante comida pros filhos.

Na plataforma da estação de Corinto uma pilha

de engradados de cerveja e refrigerantes de

guaraná, o bagageiro coçando a cabeça e o agente

avisou:

- Tem que carregar, vai pra Curumatai...Em

Curumatai vai ter corrida de mulas...

O novo chefe de trem o seu Cabo Caxias,

apelido que ganhou no quartel por ser muito

disciplinado e disciplinador e aliás como chefe de

trem continuava sendo. Cabo Caxias que em Corinto

liderava um grupo de criadores de pombo correio,

costume que ele adquiriu quando serviu no Décimo

Segundo Regimento de Infantaria em Juiz de Fora e

lá ele era encarregado do pombal. Como ferroviário

ele tinha a facilidade de enviar gaiolas com os

pombos pras várias estações, tanto na linha

principal, como as dos ramais. Sabendo as

distancias e combinando com os agentes a hora de

abrir as gaiolas, ficava fácil fazer avaliações de

desempenho dos pombos e também disputas.

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No escritório da estação a noticia:

descarrilou um em Tocandira, de três a quatro

horas a linha tá desimpedida.

Noticia que entrou no primeiro carro de

segunda classe com a versão: Tombou três ou quatro

vagões. Chegou no ultimo carro com a versão:

acidente violento; morreram três ou quatro.

Três foguistas alimentando as fornalhas com

carvão e lenha, três maquinistas conferindo

manômetros, três trens de passageiros prontos para

sair do recinto de Corinto no centro das gerais.

- Controle de movimento...Estação Corinto

solicitando licença para o trem R5 avançar até a

estação Aporá... Aporá é Corinto.

O R5 saiu de Corinto batendo o sino.

- Uai! Agora já estamos nos rumos de Montes

Claros...

- Virgem santa!...Ainda tem muito sertão e

veredas... Daqui até lá tem pra mais de duzentos e

cinqüenta quilômetros.

- Eu já gosto mais é desse canto...

- Uai! Eu também...Eu gosto mais de Minas onde

não tem minas...

O chefe de trem conferindo as passagens:

- Passagens...Faz favor, todas as passagens...

Chegou junto ao Mocorongo de Cerradão que

continuava abraçado e escondido atrás da grande

mala. O chefe de trem perguntou:

- De onde o senhor vem?

- De lá.

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- Para onde o senhor vai?

- Pra lá.

Estação Aporá com a vila da Turma de

Conserveiros da Via Permanente da Estrada de Ferro

Central do Brasil.

Na plataforma um grupo grande de garotos

cercou o revisteiro do trem para comprar gibis.

Parada Vaca Selada embarcou o muladeiro todo

paramentado com um colete todo enfeitado com

argolas, correntes e medalhas, o chapéu

também.Sentou ao lado de um desconhecido e já

contando:

- Vai é ter festança no Curumatai, eu vou é

pra namorar...Sempre eu namoro cinco seis...

Alguém falou em voz alta:

- Eh! Esse é cumedô de mula...

De Vaca Selada até Augusto de Lima quinze

quilômetros. Plataforma da estação Augusto de Lima

cheia de gente alegre, rapazes brincalhões e moças

enfeitadas, velhos atentos e velhas bisbilhoteira,

gente que ia para a corrida de mulas em Curumataí.

Na beira do trem o vendedor de mangas.

Na plataforma da estação o bagageiro abriu o

compartimento para carregar animais do carro de

encomendas e auxiliado pelo guarda-chaves colocou

a rampa de embarque. Carregou três mulas.

O Muladeiro de Vaca Selada tentou puxar prosa

com uma das moças mas o pai da moça puxou a moça.

O sol começando a descer para os lados do São

Francisco o trem correndo no sentido sul norte.

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A Pimenteira de Jequi olhou para o Ervateiro

de Lajedo Alto e falou:

- To sentindo uma coisa ruim...To achando que

é mau pressentimento...Pode acontecê coisa ruim...

O Ervateiro deu uma rida:

- É coisa de fim de dia...Quando vem a noite,

vêm os medos...

Lá no primeiro carro de primeira classe o

coronel Quim Quim o Querendão do Quem Quem, fez

sinal ao Diabo Ruim:

- Uai!...Tem atenção, que nu que esse trem

parar, vai lá no primeiro carro e clareia a idéia

do Diabo Péssimo...Pra ele leva o tal Ervateiro do

Lajedo Alto no beco...

Bastante gente a estação do Curumataí. Uma

faixa de pano branco e escrito com letras pretas

as boas vindas aos participantes da corrida de

mulas.

Foi no momento que o trem parou que o

Muladeiro de Vaca Selada se fez de bobo e encostou

na moça, moça que mais que ligeiro deu com o

cotovelo na barriga dele, não gritou mas encheu os

olhos de lagrimas.

Desembarcou a comitiva de Augusto Lima.

Descarregaram as mulas.

De uma casa na beira dos trilhos o cheiro de

leitão assado misturado com cheiros de frituras.

O chefe de trem, seu Cabo Caxias combinou com

o agente de Curumutai:

-Sábado vou mandar uma gaiola com

pombos...Você larga eles domingo...

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De Curumatai a Buenópolis quinze quilômetros.

A Velinha de Buenópolis suspirou aliviada,

levantou do banco, dobrou a manta e conferiu a

bagagem. O neto dela combinando com os três

companheiros de viagem que seguiam para passar as

férias na casa do avô em Uratinga, anotaram os

telefones e acertaram se visitarem depois que

retornassem a São Paulo.Amizade para o resto da

vida, iniciada dentro de um trem da Central.

O Diabo Péssimo pediu licença a Pimenteira de

Jequi para falar com o Ervateiro de Lajedo Alto,

ela levantou nervosa e foi ao WC onde entrou,

trancou a porta e começou a rezar nervosa.

Os camareiros avisando:

- próxima estação é Buenópolis...Buenópolis

ponto de refeição...Meia hora para a janta...

O apito rouco ecoou pela simpática Buenópolis.

Na plataforma um neto correndo para o abraço

com o avo.

A pimenteira de Jequi, engoliu em seco e

tremeu ao ver o seu amigo Ervateiro de Lajedo Alto

ser levado pelos dois diabos cabeludos.

Coroné Nézinho resolveu ficar no trem e comer

apenas uma fatia de requeijão moreno e tomar um

guaraná.

Também ficaram no trem o Homem de Pau Seco, o

Homem de Pau Lavrado e o Homem de Pau Ferro.

Comendo queijo e bebendo cerveja.

Zédizefa acompanhou o Padre de Petrolina e o

Telegrafista de Iramaia, já que este sabia o

restaurante que servia um bom feijão. O feijão de

Buenópolis, claro que cozido simples e só refogado

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com torresmos fritos com o tempero, conforme

chegavam os fregueses.

O Pistoleiro de Paulistana no Piaui entrou na

birosca e viu o coronel Quim Quim o Querendão de

Quem Quem, parado num recanto escuro, esperando os

seus diabos.

No trem a Pimenteira de Jequi destapou a lata

da farofa, olhou mas resolveu não comer estava

nervosa.

Na plataforma da estação o Turco Bidala

tentava fazer negócio com o Garimpeiro de Roça do

Brejo:

- Quando Bidala vem de voltando do sertão, nós

se vê nu estação da Corinto...Bidala qué pedra

semipreciosa...

Na birosca do beco escuro, em cima da mesa a

garrafa com conserva de pimenta, a farinheira e as

travessas com feijão, arroz branco e vaca atolada.

O Ervateiro de Lajedo Alto comendo com gosto

enquanto o coronel Quim Quim falava:

- A pois eu tenho minha sede numa boa

roça...Eu tenho uma roça na estação do Quem Quem,

e ali tem plantação de jerimum, de macaxeira, de

milho, de quiabo, de tudo um pouco...Vaca de

leite, umas cabras...E ali tem as minhas mulas e

burros de minhas andaduras...Tá entendendo?

-Sim senhô...

- Uai! Eu vivo no mundo... Ando tangendo gado,

aqui, lá no Goiás, lá nos mundos da Bahia, trago

gado pra curral de carregar no trem, levo gado

pras paiadas...E até faço uns serviços de

política, assim; coisas de democracias...Tá

entendendo?

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-Sim senhô...

- Quando to no mundo...Tem três...Um, dois,

três mocorongos...Mocorongos pra cuidar minha

roça...Uai! E cuidam?...Cuidam de saber quando tem

quermesse, quando é dia de feira... Tá entendendo?

-Sim senhô...

- Uai! Eu quero é um homem de fibra e coragem

e de minha confiança pra cuidar minha roça...

- Desculpe seu Quim...Eu desse jeito não poço

montar num burro, não posso tanger uma rêz...

- Uai!...Eu quero um homem que olhe com os

olhos, pense com a cabeça e fale com a boca.

A barra vermelha do sol mergulhando lá no Rio

das Velhas. O agente de Buenópolis pegou o

telefone seletivo; que intercomunicava as estações

do trecho Corinto a Montes Claros:

- Alô...Controle...Movimento é Buenópolis

solicitando licença para o R5 avançar a Joaquim

Felício...

A batida do sino, o apito do chefe de trem, o

rouco apito da locomotiva; o R5 partiu de

Buenópolis.

No último carro, o Homem de Pau Lavrado

apontou para o Homem de Pau Seco e contou ao Homem

de Pau Ferro:

- Nosso companheiro tá aperreado...Ele tá

nesse trem com a missão de saber se dentro desse

trem da Central do Brasil tem um coronel viajando.

O Homem de Pau Ferro tomou o gole de cerveja,

sacudiu a cabeça afirmativa:

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-Oxente seu minino...O que já não falou seu

homem?...Eu descubro...Coronel eu conheço é pelo

cheiro...Já vou varar esse trem de ponta a ponta e

já descubro...

Os camareiros avisando:

- A próxima estação é Joaquim Felício...

O sujeito gordo olhou ao companheiro de banco

e disse:

- Morei em Joaquim Felício...Até fui goleiro

do Dinamite Futebol Clube...Tomei muito banho no

Riacho embaiasaia...Tenho saudades...

Joaquim Felicio ao pé da Serra do Cabral.

Desembarcou o Falcoeiro de Três Rios.Na plataforma

trinta engradados com garrafas de cachaça e o

agente avisou:

-Carrega...Vai pra Montes Claros...

O Bagageiro reclamou:

-Uai!Isso é carga pro trem misto...

De Joaquim Felicio a Catôni dezesseis

quilômetros.

Catôni embarcou passando trabalho uma senhora

segurando um filinho pela mão e outro no colo.

Entrou no carro de primeira classe, parado no

extremo do corredor o Gigolô de Poá com seu olhar

de carcará. Carcará pega, mata e come.Com os olhos

fechados o coronel Quim Quim o Querendão do Quem

Quem tava vendo.

No escritório da estação o agente solicitava a

licença para o trem avançar:

- Movimento...Catôni...Quero licença para o R5

avançar a Bueno do Prado...

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O trem correndo por entre canaviais e no

primeiro carro da primeira classe a criança de

colo chorando a Senhora de Catôni tentando acalmar

e parado no corredor o Gigolô de Poá e seu olhar

fulminante. Ela embalou a criança, nada,

continuava chorando. Ela tirou o seio pra fora da

blusa e tentou dar de mamar, a criança recusou,

ela disse:

- Toma nenê, senão a mamãe vai dá pro

gatinho...

O Gigolô não perdeu tempo e:

- Miauuuuuuuu...Miauuuuuuuuu...

- Au au...

Gritou no ouvido dele o Diabo Ruim ao tempo

que o segurou pelos fundilhos e arrastou para fora

do carro. Voltou para o ultimo carro com dente

inchado e o olho roxo.

Bueno do Prado o trem foi invadido por um

grupo de cortadores de cana, cansados depois de um

dia de serviço, mas alegres e barulhentos.

De Bueno do Prado a Engenheiro Dolabela doze

quilômetros. O trem correndo e o camareiro viu o

vulto agachado em cima do engate entre dois

carros. Calças arriadas o Vaqueiro de Massaroca

ergueu-se desapontado:

- Eta seu moço!...Tava aliviando as tripas...

- Tem o WC senhor.

- Não sei fazê sentado...Só agachado.

Engenheiro Dolabela na plataforma quatro

cachorros presos com coleiras e correntes.

- Carrega sim... Vão pra Engenheiro Navarro.

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Os cachorros carregados e embarcaram na

segunda classe os dois caçadores de tatu.Um deles

contou a um dos cortadores de cana:

- Tamos indo caçar tatu lá no Navarro...

- Tatu?...Cuidado com as cascavel...

De Engenheiro Dolabela até a estação Granjas

Reunidas apenas cinco quilômetros. A turma dos

cortadores de cana desceu, um deles falou a um dos

Caçadores de Dolabela:

- Avisa lá em Navarro que sábado tem baile

aqui nas Reunidas...

O trem rodou vinte quilômetros dentro da noite

morna no norte das Minas Gerais e chegou em

Engenheiro Navarro.

O Homem de Pau Ferro recorreu o trem e voltou

a o último carro contente e mostrando três dedos

disse ao Homem de Pau Seco:

- Seu minino...Um, dois, três...Três

coronés...Um no carro da frente, o outro no carro

do meio e mais um no ultimo carro...

O Homem de Pau Seco aproveitou que o garçom

estava no carro e já pediu mais cerveja. Tirou do

bolso uma folha de papel, um lápis e começou a

escrever um telegrama.

O trem entrou debaixo de uma forte chuva e os

camareiros avisando:

- Próxima estação é Bocaiuva...Bocaiuva...

O homem gordo comentou:

- Começou o tempo das chuvas...

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- Uai, semana passada choveu demais da conta

lá em Janaúba...Chuvão que Jesus Cristo mandou...

- Sabe que eu gosto muito desse canto das

Minas Gerais...

- Uai, eu gosto mais de Minas onde não tem

minas...

Bocaiuva da maior festa religiosa de Minas

Gerais; Festa do Senhor do Bonfim.

Desembarcou mais passageiros, que embarcou.

O Engenheiro de Mafra em Santa Catarina

apertou a mão do Telegrafista de Iramaia, pegou

sua mala e desembarcou.

Zédizefa desceu e foi tomar um copo de caldo

de cana.

O Homem do Pau Seco entrou na sala dos

telegrafistas com o rascunho na mão pedindo:

- Por favor! Esse telegrama para a estação de

Juremal no município de Juazeiro da

Bahia...Compadre José mais chamado de Zé do Boi

Bumbá, aviso que Nézinho e Zédizefa tão indo no

trem...

No escritório da estação o agente solicitando:

- Movimento...É Bocaiuva pedindo licença para

o R5 avançar até Camilo Prates...

O trem saiu de Bocaiuva no momento que a chuva

estava parando.

Alguém comentou:

- Se Deus quiser a meia noite a gente já tá em

Montes Claros...Montes Claros a Princesa do Norte.

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Zédizefa bateu no braço do coroné Nézinho:

- Eita...Ele falou na Princesa do Norte...O

senhô escutou?

- Oxe!...Se eu escuto as falas de todo o povo

que tá nesse trem eu fico com câimbra na orelha...

- A pois ele falou Princesa do Norte...

- E que doidera é essa?

- Mãe Taninha de Santo Amaro falou... Leve um

doce amarelo da Princesa do Norte...

- Eita...Você e seu candomblé...

- Tá...Eu não vou comprar...

- Compre...

Estação Camilo Prates.Mal o trem parou o

Cangaceiro Doido de Juacema levantou num upa e

correu para sair do trem. O Enfermeiro de

Barbacena ficou apavorado. O Pistoleiro de

Paulistana no Piauí e o jovem Fluminense do

Flamengo correram e seguraram-no. Precisaram da

ajuda de um camareiro e do guarda-chaves de Camilo

Prates pra levar ele de volta pra dentro do trem.

Estação Engenheiro Pires de Albuquerque, na

plataforma seis gaiolas grandes cheias de galinhas

para carregar a Montes Claros.

Na segunda classe embarcaram os seis

vendedores de galinhas, que no outro dia bem cedo

os amarrados de galinhas nos ombros e eles

gritando e vendendo galinha de porta em porta.

Estação Glaucilândia um grupo grande de

pessoas para embarcar. Um sujeito um pouco

envergonhado vestindo um terno muito amarrotado e

muito maior que ele, terno emprestado na ultima

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hora. A moça sorridente, entre alegre e triste,

entre contente e preocupada. Um velho carrancudo e

uma velha encolhida, meia dúzia de irmãos da moça

e mais de uma dúzia de primos e primas. Embarcou

todo mundo no último carro e um primo mais

fofoqueiro contou:

- Fez mal pra minha prima... Tio obrigou a

casar... Casou hoje aqui em Glaucilândia na frente

do delegado e do juiz de paz...Minha prima é de

família tradicional...

Estação Antônio Olinto onde desembarcou os

recém casados e o resto da turma.

A plataforma de Antônio Olinto iluminada por

um lampião. De um ponto escuro um gaiato gritou:

- Cuidado Zé, ela vai te botá chifre...

O pai da moça puxou o revolver e deu um tiro

pro alto.

- Próxima estação é Montes Claros...Montes

Claros saída pela porta da frente.

Um trem encostando na movimentada plataforma

pra deixar mais de quarenta por cento da sua carga

humana.

Zédizefa não perdeu tempo e nem minuto

desembarcou e foi comprar um tablete de doce de

pequi;o doce amarelo da Princesa do Norte.

Montes Claros a troca de locomotiva e da

equipagem para levar o R5 nos últimos duzentos e

quarenta quilômetros da viagem.

Embarcou a Cafetina de Janaúba acompanhada de

cinco moças.

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No trem correu a noticia que a linha já estava

desimpedida em Tocandira.

Embarcou um grupo de homens da confraria do

arroz com pequi, o líder contou ao coronel Quim

Quim o Querendão do Quem Quem:

- Nós tem o costume de reuni num sitio ai no

Canaci, ali nós canta música, ali nós faz

cavalgada e ali nós faz arroz com frango e pequi,

ali nós esquece um pouco da cidade...

No escritório da estação de Montes Claros o

telegrafista de plantão solicitou:

- Movimento... Montes Claros solicita licença

para o R5 até Canaci...Canaci, é Montes Claros...

O trem apitou e começou a sair da Princesa do

Norte.

Coronel Quim Quim convidou a Cafetina de

Janauba para irem tomar uma cerveja no carro

restaurante. Depois de acomodados ele falou:

- Uai, até que foi sorte de eu encontrar

você...Você tá levando umas bichinhas novas pro

seu rebanho?

- É coronel...Agora já vem o inverno das

chuvas...Já começa aparecer às comitivas de

vaqueiros...

- Que eu to querendo... Num vê que no arraial

o padre quer uma quermesse...Dinheiro pra pintar a

igreja, comprar mais bancos e cosas e losas... Cas

beatas e a rezadeiras ele arruma uns

troquinho...Eu ajudo, é que eu faço barraca pra

contentá os machos...Vô fazer um leilão; um barril

de pinga, um leitão assado, uma mula encilhada e

uma rapariga...E é bem nesse ponto que to contando

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com teu conhecimento...Uma cabocla bonita,

cheirosa e enfeitada...

Na plataforma de Canaci na fraca luz de um

lampião os colegas da confraria do arroz com

pequi, dois tocando viola e cantando esperando o

resto dos companheiros.

Mal o trem parou e os membros da confraria que

vinham no trem desceram transbordando alegria.

De Canaci a Uratinga quinze quilômetros.

Uratinga o grande lampião da plataforma acesso

e mais cinco lampiões de alça que do grupo de

pessoas que esperava o trem. O homem velho,

inquieto que ia de ponta a ponta da plataforma,

esse era o avô. A avó sentada no banco, quietinha,

mas em pensamento rezando e pedindo para que Jesus

protegesse aquele trem. O resto do grupo eram tios

e primos. A o longe o apito da locomotiva. A

batida cadenciada dos pistões. A luz do potente

farol da locomotiva que galopava fagueira naqueles

terrenos onde se misturava cerrado e caatinga nos

mundos do norte das Minas Gerais. Agitaram os

lampiões, tremeram os corações. O trem chegando a

Uratinga, olhos curiosos varrem as janelas e lá do

último carro um grito:

- Vôôôôô!...

De Uratinga a Engenheiro Zander vinte e cinco

quilômetros.

Estação de Engenheiro Zander, o cheiro forte

de esterco misturado com a urina de gado. Na

segunda linha vagões carregados com gado e um

vagão com mulas.

Na segunda classe embarcaram quatorze

boiadeiros, dois deles com os berrantes a meia

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espalda. Coronel Quim Quim, deslizou por dentro do

trem, afinal estava no mundo dele, pois estava

atento a tudo, foi ao encontro do capataz dos

boiadeiros:

-Uai, esse gado no trem?

- Gado magro...Não vai pros frigoríficos do

sul do estado...Vai prum pasto que já tá verdinho

lá em Espinosa...

De Engenheiro Zander a Orion vinte

quilômetros.

Estação Orion, embarcou com sua maleta de

couro a Parteira de Orion e antes do trem

continuar o coronel Quim Quim já estava ao lado

dela:

-Uai, e vai pra onde?

- Pois conto pro senhô que vou pro Quem Quem,

que a filha seu Tonho tá de bucho pronto pra dá a

cria...

-Uai!...E a parteira do Quem Quem?

- Pois conto pro senhô que ela hoje passou

aqui no trem indo pra Montes Claros, causo diqui à

filha dela foi picada de cobra...

De Orion a Caçarema vinte e um quilômetros.

Em Caçarema embarcou um sujeito contando um

causo triste; Um morador do lugar armou uma

armadilha pra pegar uma onça e botou como isca o

próprio filho e a onça matou a criança.

- Próxima estação é Quem Quem...A chegar em

Quem Quem.

Coronel Quim Quim foi ao carro de segunda

classe apertar a mão do Ervateiro de Lajedo Alto:

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- Uai, palavra dada seu moço?

- Sim senhô! Palavra dada e confirmada...

Estação Quem Quem. Corronel Quim Quim desceu:

- Coisa mais boa é botá o pé no chão da gente.

O agente da estação perguntou:

- E ai? Viu o mar lá no Rio de Janeiro?

- Uai! Uma água besta que nem os bichos

bebe...

Estação Engenheiro Rochet. Um galo cantou.

Embarcou um grupo de homens; trabalhadores nas

lavouras de algodão.

A direita do trem a barra do dia e os

camareiros avisando:

- A chegar em Janauba...Janauba...

Janaúba dos gorotubanos.

A moça vendendo café pingado e Zédizefa não

perdeu tempo e tomou um.

O sujeito de terno preto, chapéu desabado em

cima dos olhos, entrou no ultimo carro e convidou

o Pistoleiro de Paulistana no Piauí:

- Aguardo você no carro restaurante...

O Pistoleiro esperou ele se afastar tirou a

mala do porta bagagens e disfarçado pegou o

revolver que escondeu dentro do casaco. Chegou no

restaurante perguntando:

- Como você sabia que eu tava nesse trem?

- Telegrama...Tenho um serviço pra você...

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- Não quero conversa com os Clãs

Gorotubanos...

- Calma moço!...É serviço em Monte Azul...Em

Monte Azul a política ta pegando fogo...Tem um

Boca Branca abrindo muito a boca e os Boca Preta

querem fechar a boca do Boca Branca...

- Posso não...Tenho um serviço pra fazer nessa

viagem...

De Janaúba a Tocandira vinte e cinco

quilômetros. No restaurante os garçons

providenciando o café que quando o trem parasse em

Tocandira era o momento de vender o café já que os

biscoitos de araruta eram vendidos nas janelas do

trem.

Tocandira e dezenas de vendedores; meninos,

meninas, mulheres gritando e vendendo os biscoitos

de araruta.

Turco Bidala desceu pra acertar negócio de

compra de biscoitos:

- Bidala qué qui manda dez caixa biscoito pro

Belo Horizonte...

De Tocandira a Pai Pedro dezenove quilômetros.

O Enfermeiro de Barbacena disse para o

Telegrafista de Iramaia:

- Com a graça de Deus a gente consegue pegar o

expresso pra Salvador...

- Báh! Com tempo de folga...Dá pra tomar um

banho e ainda dá umas voltas em Monte Azul.

- Se não pega o Expresso, ai só os

paradores...

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- Sim...Hoje é sexta...O Parador sai

domingo...

O Padre de Petrolina escutou a conversa e

disse:

- Eu tenho um segredo, mas só conto lá na

Bahia...

Coroné Nézinho sacudiu a mão:

- Oxe! Isso é padre pecador...

E o trem parou na estação de Pai Pedro. Muito

movimento na vila que era o dia da famosa Feira de

Pai Pedro.

Nervoso e agitado o Turco Bidala descendo as

malas, pedindo ajuda aos guris e já fazendo

propaganda:

- Fala no fera que Turco Bidala tá no Pai

Pedro...Tudo barato.

Na plataforma o bagageiro e o agente as voltas

com carga e descarga. Descarregam engradados de

cerveja, engradados de refrigerante. Carregam

sacos de feijão andu, caixas com queijo, balaios

com pequi.

De Pai Pedro ao Catuti vinte e dois

quilômetros.

Na estação do Catuti a comissão de espera. A

carroça com dois burros. O fazendeiro a mulher

dele, os filhos as filhas, empregados, alguns

vizinhos. Até a turma de conserveiros da linha,

encostou o trole na segunda linha e ficou na

espera.

O bagageiro e o guarda-chaves seguraram com

muito cuidado a caixa onde estava escrito: Estação

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Catuti (EFCB). Na frente o fazendeiro afastando os

curiosos. Alguém comentou:

- Uai, com um radio desse dá pra escutar a

Rádio Nacional do Rio.

O trem deixou o radio em Catuti e os

camareiros começaram a avisar:

- Próxima é Monte Azul...Monte Azul confiram

suas bagagens...Monte Azul, passageiros que vão

prosseguir pela Lesta confirmem os horários na

estação...

- Ei moço...É hoje que sai o expresso pra

Salvador?

- Sim...Hoje é sexta-feira...

A locomotiva apitando e batendo o sino ,

pedindo permissão para chegar e saudando a cidade

de Monte Azul. Dentro do trem os passageiros se

movimentando. Uma etapa estava vencida.

No quadro de horários da estação; trens da

Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro para

Salvador: NS 2- sexta-feira- 11:55; RS 6- domingo-

13:40.

- Cuidado...Esse R6 é parador, sai daqui e

dorme em Caculé, muita gente dorme dentro do trem,

depois ele viaja até Iaçu e lá ele dorme e de novo

o povo dorme no trem...Fica sujo, fedorento...

Três dias e duas noites daqui a Salvador...

Coroné Nézinho batendo bengala, logo atrás o

Zédizefa com uma trouxa na cabeça e segurando duas

malas pesadas, encontraram uma pensão junto ao

Mercado:

- Bom dia meu senhor...Tamos querendo um banho

e depois um almoço...Só tamos de passagem...

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- Bom senhor...Temos o banho e comida boa...Tá

viajando pro Norte?

- Vamos pros mundos da Bahia.

Banho tomado, tirada as poeiras do caminho,

coroné combinou com o dono da pensão:

- Olhe! Vamos largar nossa bagagem aqui...Que

a gente vai dá uma espiada no Mercado...Depois a

gente já vem pra almoçar.

O dono da pensão concordou esperou os dois se

afastarem e comentou com o Vaqueiro de Massaroca,

que estava sentado num canto tomando uma

pinguinha:

- Meus olhos não engana eu...Esse homem é

coronel...

O Vaqueiro de Massaroca contou:

- Coronel de posses e de mando político...Ele

é do mesmo meu município...A gente é do chão do

Juazeiro da Bahia...

O dono da pensão apressou a chamar um moleque

e enquanto escrevia um bilhete ordenou:

- Pega a mula e bem ligeiro que tu vai levar

esse bilhete pro coronel Zebedeu lá nas

Mamonas...E dê laço nessa mula que daqui lá é

vinte e cinco quilômetros...Você tem de chegá lá

antes do trem...

Coroné Nézinho e Zédizefa sentados pro

almoço.Na mesa arroz, farofa, leitão assado, couve

refogada e feijão. O feijão de Monte Azul, cujo

segredo era ser temperado com pequi.Sobre mesa

doce de quiabo. O dono da pensão chamou um moleque

e mostrou:

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- Olhe bem pra aquele coronel ali...Você vai

no trem e mostre esse coronel ao coronel Zebedeu

que vai subir no trem em Dourados.

O dono da pensão foi à mesa do coroné e

perguntou:

- Tão bem servidos?

- Muito bom o feijão de Monte Azul...Diga-

me...E a política aqui em Monte Azul?

O dono da pensão olhou para todos os lados e

falou:

- Aqui é Boca Preta contra Boca Branca...E a

boca tá braba...E o bom é ficar de boca fechada...

- A pois, lá na Bahia tem o município de Campo

Formoso que também é isso de Boca Preta contra

Boca Branca...

Trem da Leste encostado em Monte Azul

carregado e pronto para iniciar a viagem.

Coroné e Zédizefa conseguiram o banco do

ultimo carro ao lado direito do trem, a mesma

posição que viajaram no outro trem. Nesse ultimo

carro embarcaram o Padre de Petrolina, o

Pistoleiro de Paulistana no Piauí, o Telegrafista

de Iramaia, o Enfermeiro de Barbacena com o

Cangaceiro Doido de Juacema, o Homem de Pau Seco,

o Homem de Pau Lavrado, o Homem de Pau Ferro, o

Fluminense do Flamengo, o Gigolô de Poá, o

Soteropolitano Afetado, a Formosa de Campo

Formoso, a Jocosa de Jacobina, o Farinheiro de

Quicé o Alambiqueiro de Guararema e a Mãe Taninha

de Santo Amaro que falou:

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- Não gosto de viajar no ultimo carro, mas

recebi uma mensagem do meu Orixá, que aqui eu vou

receber uma incumbência...

No primeiro carro de segunda classe embarcou o

Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto Esperança no

Mato Grosso, o Cego de São Cristovão no Sergipe, o

Sergipano de São José da Mata, o Sergipano de

Malhada dos Bois, o Ervateiro de Lajedo Alto, a

Pimenteira de Jequi e o Vaqueiro de Massaroca.

No escritório da estação o agente solicitando:

- Controle de movimento...Monte Azul quer

licença para que o NS 2 avance até Dourados...

Às onze horas e cinqüenta e cinco minutos o

NS2 saiu apitando e batendo o sino de Monte Azul

para atravessar os restantes quarenta quilômetros

dentro de Minas Gerais e entrar na Bahia. Um carro

de bagagens, três carros de segunda classe e

quatro de primeira classe, não levava carro

restaurante mas um dos carros de primeira era o

bar; um compartimento que ocupava um terço do

carro onde vendiam cerveja, refrigerante, café,

sanduiche,bife com batata frita. As estradas de

ferro espalharam pelo Brasil o papel de se limpar,

o sanduiche, o bife com batata frita e o

eucalipto.

Entre os trezentos e cinqüenta passageiros do

trem ia o moleque de recados do dono da pensão em

Monte Azul. Ia no ultimo carro cuidando o coroné.

Coroné Nézinho perguntou ao Zédizefa:

- Naquela fala de candomblé de Mãe Taninha,

tinha algum falatório de Monte Azul?

- Tinha não... Não fique com medo coroné...

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- Oxente! E essa palavra, medo, não tem no meu

vocabulário geométrico...

- Desculpe...

- Olhe Zédizefa...Esse moleque que tá indo

aí...É pau mandado daquele dono da pensão...Fique

de olho...

O trem parou em Dourados, na plataforma muitos

balaios cheios de inhame para serem carregados até

Espinosa.

Com uma tapa olho,coronel Zébedeu subiu no

primeiro carro e abrindo portas com um safanão e

fechando com uma batida, Botinas rangedeiras

batendo no assoalho, atravessou o trem. No ultimo

carro o moleque de recados apontou o coroné

Nézinho e pulou do trem.

Mãe Taninha de Santo Amaro fechou os olhos e

fez uma prece. O Pistoleiro de Paulistana no

Piauí, segurou o revolver dentro do casaco.

Coronel Zébedeu parou diante do coroné Nézinho

perguntando:

- To falando com o senhor coronel Nézinho?

Coroné Nézinho levantou com calma e:

- Pois pergunto por que a pergunta?

- Uai! Respondo com a resposta...Não vê que eu

sou Zébedeu que de minha parte sou preocupado com

o meu povo de minha vila que tem o nome de

Mamonas...E estou precisando de uma ajuda do

senhor, que eu sei é um homem de muito prestigio

no Estado da Bahia...

-Oxe! Nem tanto...Mas no que eu puder...

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- A complicação é que a coisa é a

seguinte...Essa estação tá no povoado de Dourados,

mas logo ali tá a progressiva, de progressos, vila

de Mamonas, que na verdade é que faz todo o

movimento da estação...E nós tá querendo que o

nome da estação passe a ser Mamonas...

- Oxe! Isto ainda tá em chão de Minas

Gerais...

- Uai! Os diretores da diretoria da Leste é na

Bahia...

Às treze horas e trinta e quatro minutos o

trem chegou em Espinosa. Coronel Zébedeu já amigo

do coroné, se despediu e disse:

- Volto de pés até Mamonas...Vinte

quilômetros...O povo merece o sacrifício...

Coroné Nézinho completou:

- Ano que vem tem eleição...

O trem saiu de Espinosa batendo o sino e se

despedindo das Minas Gerais.

O trem mal parou na estação de Iobi já na

Bahia e o coroné Nézinho não perdeu tempo e foi

perguntar ao Padre de Petrolina:

- Oxente! Seu padre já tá na Bahia...Qual o

seu segredo?

Padre de Petrolina riu e respondeu falando

alto para os outros passageiros do carro escutar:

- O segredo é... Quando esse trem chegar em

Iaçú vai ter uma noticia ruim...

Quatorze horas o NS2 saiu de Iobi, e quatorze

e cinqüenta chegou em Urandi.

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Em Urundi muito movimento na estação, gritos

de viva, foguetes, bandeiras, discursos e

aplausos.

O movimento despertou curiosidade dos

passageiros do trem. O Cego de São Cristovão no

Sergipe até desceu pra assistir melhor

Embarcou no trem sua excelência

excelentíssima o nobre deputado JJ. Da plataforma

do carro fez a saudação:

- Repetitivamente eu repito que só um povo

nesse grande estado da Bahia vive no meu coração,

somente só o povo de Urundi...

Bateu o sino da estação anunciando a partida

do trem e o Cego de São Cristovão, afobado,

embarcou no ultimo carro e avisou ao camareiro:

- Vou nesse carro até a próxima estação, e

quando o trem parar eu volto pro meu carro...

O trem saiu de Urundi vencendo um trecho cheio

de curvas na Serra da Onça ou Saco da Onça.

Deputado JJ, saiu por dentro do trem saudando

os passageiros e quando entrou no último carro

abriu os braços e politicamente saudou:

- Como este mundo é pequeno...Com a maior

satisfação do mundo eu encontro nesse trem o

grande líder do sertão do São Francisco, coroné

Nézinho...

Coroné levantou e o grande abraço. Zédizefa

deu seu lugar para o nobre edil.

Dezesseis horas o trem se arrastando nas

curvas do Saco da Onça parou na estação de

Engenheiro Omar. A batida do sino da estação ecoou

na serra.

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Parada perto da estação uma grande tropa de

mulas, com a mula rainha batendo o sino. Todas as

mulas com as bruacas carregadas, o tropeiro

terminando de organizar a tropa para seguir viagem

levando as mercadorias que apanhou na estação.

Os camareiros avisando:

- Próxima estação é Licínio de

Almeida...Licínio meia hora pra janta...

O trem chegando em Licínio de Almeida apitando

e batendo o sino. Plataforma cheia de

correligionários esperando o deputado JJ que da

plataforma do carro saudou o povo:

- - Repetitivamente eu repito que só um povo

nesse grande estado da Bahia vive no meu coração,

somente só o povo de Licínio de Almeida...

Foguetes, gritos de vivas. O deputado e seus

correligionários se afastaram da estação. Sua

excelência andava visitando as bases.

Moleques e mulheres vendendo milho assado,bolo

de fubá e os donos das barracas oferecendo as

comidas.

Na barraca, coberta com palhas de palmeiras,

as mesas rústicas, no canto o fogão a carvão,

coroné e Zédizefa sentaram pra comer uma farofa de

bode e o feijão de Licínio de Almeida: feijão de

corda temperado com coentro verde, cebola e

tomate.

Licínio de Almeida, troca de locomotiva e

equipagem. Maquinista o seu Laudelino que nas

horas vagas se dedicava ao serviço de alto

falantes da vila. Foguista o seu Ambrósio que

também era benzedor. Chefe de trem seu Juca

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Festeiro, um entusiasmado organizador das festas

de São João em Licinio.

Vamos embora que de Licínio até Salvador são

setecentos e setenta quilômetros.

Cinco horas da tarde e o trem se despediu de

Licínio de Almeida apitando e batendo o sino.

Parada rápida em Palmeiras onde na segunda

classe subiram as duas Quengas Pobres de Palmeiras

que iam fazer a vida em Caculé.

O trem entrava na noite baiana.

- Próxima estação é Caculé...Caculé...

Dez minutos para as sete horas da noite o trem

encostou em Caculé. A estação numa margem do Rio

do Antonio e a vila na outra margem.Perto da

estação os pontinhos luminosos dos fogareiros a

carvão onde mulheres cozinhavam o milho verde. Os

vendedores de milho cercaram o trem.

Zédizefa debruçou na janela e comprou foi meia

dúzia de espigas de milho. E coroné:

-Oxe! Que bucho tem esse bicho...

Na segunda classe embarcou um grupo grande de

pessoas, tanto os homens como as mulheres,

vestidos de branco, pés descalços. Cinco tambores.

Integrantes de um grupo de umbanda.

Sete e quarenta da noite o trem encostou

apitando em Rio do Antônio. Desembarcou o Grupo de

Umbandistas de Caculé.

Embarcou, vestida de preto, mangas compridas,

na cabeça o lenço preto; A Beata de Rio do Antônio

reclamando:

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- Agora todas as sextas-feiras esse povo vem

daí do Caculé e junta com um povo daqui e vão pra

beira do rio fazer batuque... Depois botam

feitiços nas encruzilhadas...

Oito horas e trinta minutos da noite o trem

encostou na plataforma de Malhada de Pedras. Na

plataforma gente alegre, a maioria jovens. Gaita,

violão e pandeiro. Embarcaram na segunda classe

iam para um forró em Catiboaba.

A Beata de Rio do Antônio já resmungou:

- É tudo pecadores... Povo que só pensa em

festa...Nem tem pensamento no senhor Jesus...

Nove e meia da noite, muitos lampiões na

estação de Catiboaba. O povo da vila esperando os

visitantes que iam participar do forró.

Dentro do trem alguém comentou:

- A vila de Catiboaba cresceu por causa da

Mineradora...Ai tem uma mina de magnetita...

O trem correndo na noite quente do sertão do

Sul da Bahia. Coroné Nézinho bateu no ombro do

Zédizefa:

- Diga...Naquele converse de Mãe Taninha de

Santo Amaro, não falava nada de Iaçu?

- Não sinhô... Causa de quê?

- Oxe! Esse Padre de Petrolina falou que lá no

Iaçu vai dá uma noticia ruim...

Os camareiros avisando:

- Primeira estação; é Brumado...Em Brumado a

saída pela porta da frente...

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O Alambiqueiro de Guararema levantou do banco

contente, coroné Nézinho falou:

- Graças a Deus que o moço tá chegando...Tá

vindo pra levar um alambique?

- Verdade...Eu tenho uns primos que mora por

aqui...

Plataforma cheia de gente.

Para carregar no vagão de bagagens dois

caixões de defunto.

Uma mulher vestida de preto chorando e rogando

pragas embarcou na segunda classe.

O seu delegado acompanhado de um cabo e dois

soldados da Policia Militar da Bahia embarcaram.

Dentro do trem correu a noticia: uma briga no

povoado de Umburanas...Coisa de jogo de

dados...Morreu dois e tem outros cortados na

peixeira...

Doutor Médico de Brumado, anel de pedra

grande, óculos de aros de ouro embarcou na

primeira classe.

Onze da noite o trem chegou na estação

Umburanas. Logo o seu delegado e os policiais

foram cercados por gente que carregava lampiões.

Enquanto isso um clandestino subiu na parte de

trás da locomotiva.O Cego de São Cristovão no

Sergipe estava debruçado na janela e viu.

O bagageiro descarregou os dois caixões.

O Agente de Umburanas contou para o chefe de

trem:

- Jogo de dados...Jogo do bozó...Esse sujeito

dos dados ele anda de estação em estação armando

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jogo...Os dados viciados...Matou dois, um é daqui

de Umburanas o outro é de Lapinha...

O trem saiu de Umburanas.

O garçom entrou no último carro e junto dele o

cheiro de fritura. Um prato com bife, ovo frito,

batatas fritas e arroz para o Padre de Petrolina.

Meia noite o trem apitou chegando na estação

Ouriveis.

No ultimo carro embarcou o Monge Doido de

Ouriveis; vestido com uma batina branca muito

suja, barbas compridas, cabelos muito

grande,pendurada no pescoço uma cruz, regalou os

olhos e gritou:

- Cuidado! O demo tá nesse trem...Virão muitos

falsos pastores pra pegar o dinheiro do povo...Tem

que acabar com os coronéis...

Coroné Nézinho ficou alerta e bateu no braço

de Zédizefa.

O Cangaceiro Doido de Juacema acordou com os

gritos do Monge e levantou do banco de um pulo e

espumando de brabo quis agredir o monge:

- Cale sua boca seu filho da puta...Monge

falso...O verdadeiro é Padre Cícero...Tu vai

morrer diabo...

O Enfermeiro de Barbacena tentando conter o

Doido, um camareiro apressou tirar o Monge de

dentro do trem. O Pistoleiro de Paulistana ajudou

o Enfermeiro a segurar o Cangaceiro. O Doido se

debatia, espumava pelos cantos da boca.

O Padre de Petrolina protegendo o prato com o

bife.

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Zédizefa ajudou o Pistoleiro segurar o

Cangaceiro enquanto o Enfermeiro foi ao WC botar

um pouco de água num copo e preparar uma dose de

calmante.

O chefe de trem pediu ajuda ao Doutor Médico

de Brumado.

O Cangaceiro deu tapa no copo com o calmante e

fez força para se soltar.

O médico olhava para o doente e olhava para o

enfermeiro que olhava para médico e olhava para o

doente.

Os passageiros do ultimo carro agitados, o

Cangaceiro falando besteiras, o Padre de Petrolina

comendo batatas fritas. Mãe Taninha de Santo

Amaro, saiu de seu lugar, chegou junto ao

Cangaceiro ,estendeu a mão direita espalmada acima

da cabeça dele, fechou os olhos fez uma prece.

Cangaceiro respirou fundo, sentou calmo e fechou

os olhos.

O trem saiu de Ouriveis e o Monge Doido

debaixo do lampião da plataforma gritando:

- Vão pecadores...Vão pros quintos do

inferno...

Zero hora e trinta minutos o trem apitou na

estação de Tanhaçu.

Na plataforma de Tanhaçu o coronel Zé Severino

do Tanhaçu acompanhado de dois guarda costas. Dois

brutamontes, altos, fortes, gibão de couro, chapéu

de cangaceiro; um com o chapéu de aba virada

enfeitado com duas estrelas douradas, esse o

Tenente, o outro com o chapéu de aba virada

enfeitada com três estelas douradas, esse o

Capitão.

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Antes de embarcar o coronel Zé Severino de

Tanhaçu passou as ordens:

- Capitão, vosmece vai na primeira

classe...Tenente vosmece vai na segunda classe...

Eu vou no primeiro carro do trem...

Coroné Zé Severino de Tanhaçu encontrou lugar

ao lado do Coronel Ponciano pantaneiro de Porto

Esperança e pediu a devida licença:

- Boa noite...O senhor permite que me assente

nessa ponta da cadeira?

- Boa noite senhor...Pode sentar... E qual o

nome de vossa estação?

- Aqui é Tanhaçu...Estou indo até o

Iaçu...Causa de política...Não sabe que um

deputado que é barranqueiro; das barrancas do São

Francisco, anda aqui na região...É deputado JJ...

E aqui nós já tem o nosso deputado que é

diamantino; da Chapada Diamantina...Nosso deputa

do Toninho...Nós vamos reunir no Iaçu pra ter uma

decisão decidida...

- Ainda lhe conto, às vezes tem que usar o

“artigo 38”...

- Não sabe que aqui na Bahia já tamos usando o

“artigo 45”... Pistola de guerra, é tiro dado e

jacu deitado...

- Ainda pergunto, tá muito caro um deputado

aqui na Bahia?

- Não sabe que não tá não... Caro aqui na

Bahia é oficial da Policia Militar...Aqui na nossa

região andou um finado capitão que tava abusando

de moça solteira, que tava abusando de mulher

casada, que até tava acobertando ladrão de

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bode...Pra fazer o serviço a gente conseguiu um

cabra lá das Alagoas e cobrou um mundo de

dinheiro...

- Ainda lá no Mato Grosso o que tá caro é

advogado...Lá em Porto Esperança desceu do Trem do

Pantanal dois advogados com conversas de

integração de posse, terras da união, avaliação de

terras e outras conversas... Seu doutor pegue o

Trem do Pantanal e volte pra Campo Grande que é de

onde o senhor veio...Não, que nós estamos montados

na lei...Apearam eles da montaria e pra não deixar

prova do caso, deram um talhos em cada um e

jogaram no igarapé pras piranhas...

O Cego de São Cristovão coçou o queixo e o

coronel Ponciano Pantaneiro coçou a testa e falou

para o coronel Zé Severino de Tanhaçu:

- Ainda nesse trem o dito deputado JJ andou um

pedacinho de chão...E encontrou nesse trem, lá no

último carro, um coronel lá das barrancas do São

Francisco...

Coronel Zé Severino regalou os olhos:

- Coronel correligionário de JJ, barranqueiro,

e nesse trem... Não sabe, quero sua licença, vou

dá uma orientação pros meus meninos; Capitão e

Tenente.

Uma hora e quarenta e três minutos e o trem

encostou na plataforma da estação Francisco Souza.

Em Francisco Souza embarcou a mulata gorda

acompanhada do jovem desfigurado. Coronel Zé

Severino foi tirar uma prosa com ela, afinal

Francisco Souza era um povoado de suas influencias

políticas:

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- Não sabe que minha comadre Maria vai de

viaje?

- Boas noites seu coronel Severino...Então to

levando esse meu minino pra Iramaia...Então que

ele tá tendo uma dor, ali nele, por debaixo da

costela...Já se fez tudo tipo de chá...Então já se

fez todo tipo de benzedura...Melhorou não...Agora

ai na Iramaia tem um curandeiro, que diz veio do

sertão do Ceará...Então tão dizendo que o

curandeiro até faz milagre...

- Não sabe, e ai em Francisco Souza, como anda

o povoado?

- Então o seu coronel não sabe... A Madalena

botou chifres no marido, coitado do Tibério...Foi

com um guarda-freio da Leste...

- Não sabe que Madalena já tá perto dos

cinqüenta...

- Então, seu coronel o último fogo é o pior...

- Não sabe, que é verdade... E o resto?

- Então, roubaram um bode e cinco cabritas de

seu Inocêncio...

- Será gente daí de Francisco?

- Não sabe... Tão desconfiando de um povo ai

de Contendas...

Duas horas e vinte minutos o trem chegou a

Contendas. Em contendas o pai e a mãe entregaram

aos cuidados do chefe de trem os quarto meninos de

idades entre nove e quatorze anos que iam para

Cachoeira passar as férias na casa da avó. Um

camareiro levou os quatro meninos e acomodou no

ultimo carro.

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Três horas e quinze minutos o trem apitou em

Sincorá.

Chapéu de vaqueiro, gibão de couro, calças

regaçadas até o joelho, calçando alpercatas o

coronel Pantaleão de Sincorá embarcou na segunda

classe e no corredor encontrou o coronel Zé

Severino de Tanhaçu:

- Bom dia compadre Severino...

- Não sabe que também um dia bom pro

senhor...E vamos pro Iaçu?

- É...Recebi o telegrama, que vai ter essa tal

reunião...

- Não sabe...Nesse trem tá ai dentro um

coronel que o cujo é gente do JJ...Já mandei

assunta...Diz que vem de viagem viajada...

- É...Viaje viajada...Eu sou é Pantaleão de

Sincorá, eu tenho dificuldades de acreditá...

Quatro horas e vinte oito minutos o trem

encostou na plataforma de Jequi. Na luz do lampião

da plataforma o grupo de crianças; os oito filhos

da Pimenteira de Jequi.Escuta a alegria:

- Manhiiiiiiiiiiiiinha!

O trem saiu de Jequi e o coronel Pantaleão de

Sincorá sentado ao lado do Cego de São Cristovão

ia contando suas mentiras:

- A bandida da onça entrou na encerra das

cabritas e eu dei de mão no punhal e pulei dentro

da encerra, a onça gateou, agachou, armou o pulo e

pulou.Esperei ela na ponta do punhal, cravei

direto no coração, ela só deu um berro e caiu

morta...

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- Coronel; e onça berra?

- É... Essa berrou.

Pintando a barra de um novo dia. Cinco horas o

trem parou em Lapinha. Quatro sujeitos apressaram

em subir no trem. Um ficou parado na porta do

primeiro carro, dois ficaram do lado de fora do

trem um de cada lado e o outro entrou pela ultima

porta e atravessou o trem buscando alguém, chegou

no primeiro carro e disse ao companheiro:

- Não tá não.

O Cego de São Cristovão chamou um deles e

perguntou:

- O moço tá buscando quem?

- Um safado matou um tio meu, hoje, lá em

Umburanas... Caso de um jogo de bozó...A gente

pensou que ele tava nesse trem...

- Vou dizer pro moço...Sentado atrás da

locomotiva tem um clandestino que subiu lá na tal

Umburanas.

Os quatro sujeitos não perderam tempo,

correram dois de cada lado do trem até a

locomotiva. No amanhecer de Lapinha, um grito, um

tiro, a batida do sino da estação, outro grito, o

apito da locomotiva, mais um tiro.

- Próxima estação é Iramaia...Iramaia para

vinte minutos pro café...Não vão perder o horário,

olha quem perder esse trem, depois só na segunda

feira às cinco da tarde, dorme em Iaçu e vai

chegar terça de noite em Salvador...

O Telegrafista de Iramaia respirou aliviado,

estava chegando em casa pra ver a esposa e os

filhos...Uma semana viajando...Santiago do

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Boqueirão e Vinte Pinheiros, lugares de sua

infância e juventude, ficaram lá muito longe, lá

nos campos do sul.

Cinco e meia o trem chegou na estação de

Iramaia onde já pronto para iniciar viagem rumo

sul o trem RS3.

O RS3 com dez vagões apinhados de gente, trem

superlotado a grande maioria retirantes fugindo da

seca.

A notícia ruim; não está chovendo no sertão.

Coroné Nézinho e Zédizefa apressaram até uma

das barracas que vendiam comida, onde o Padre de

Petrolina já estava atracado num prato de feijão.

O feijão de Iramaia, feijão de corda verde

cozinhado com macaxera e carne de sol.

Coroné e Zédizefa esqueceram os medos da

viagem e se regalaram com um café preto

acompanhado de cuscuz e ovo frito. O coroné viu a

fila grande de pessoas diante de uma casa e

perguntou ao dono da barraca que vendia comida:

- Oxe!...E essa fila de povo?

- É povo que vem consultar com o

curandeiro...Tá vindo gente até de Salvadô...

- O povo tá melhorando?

- Não sei se o povo tá melhorando, mas o

comercio tá melhorando.

Iramaia troca de locomotiva e equipagem.

Maquinista o seu Manoel, homem quieto, calado,

benzedor famoso em Iramaia. Foguista o seu Zé das

Pipas, esse nas horas vagas fazia pipas pra vender

pra meninada. Chefe de trem o seu Capitão, tinha

esse apelido porque quando menino muito cedo ficou

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sem pai e sem mãe e acabou se criando solto nas

praias de Salvador, metido nos chamados grupos de

capitães de areia, a sorte dele foi o velho padre

da Igreja do Bonfim que recolhia os meninos de rua

e mantinha um abrigo onde os orientava e obrigava

a estudar.

Dentro do trem tomando café com sanduiches a

Jocosa de Jacobina perguntou para a Formosa de

Campo Formoso:

- E quando você vai enfrentar o coroné

Nézinho?

- Nas instruções que eu recebi, é em Iaçu...

O Chefe Político de Iramaia do partido do

deputado JJ recebeu os coronéis; Zé Severino de

Tanhaçu e Pantaleão de Sincorá e os três foram

para uma barraca afastada tomar café com cuscuz e

ovo frito e discutir a situação. Coronel Pantaleão

de Sincorá deu a idéia:

- É... A gente pega esse coroné barranqueiro,

que tá no trem, pra dá um exemplo...Que esse

coroné anda aqui é fazendo pirraça...Barranqueiro

anda é de vapor pelo São Francisco...

O Chefe Político de Iramaia interrompeu:

-Gente...Temos que ser ponderados...

Coronel Pantaleão de Sincorá não gostou de ser

interrompido e nem contrariado, sacudiu os braços:

- É...Eu vou tomar uma pinga com umburana de

cheiro...E continuo com a idéia de fazer um

acontecimento com esse tal coroné...

Coronel Severino de Tanhaçu, concordou:

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- Não sabe...Eu também quero pinga...E nós

vamos continuar com nossa idéia e o nosso plano...

O Chefe Político de Iramaia não perdeu foi

tempo e correu a sala do telegrafo da estação,

redigiu um telegrama e pediu ao telegrafista:

- Faça o favor transmita esse telegrama com

dois “U”, urgente urgentíssimo, para o deputado

Toninho...

Seis horas e dez minutos o trem saiu de

Iramaia, apitando e batendo o sino.

Seis horas e trinta minutos estação Juraci.

Embarcou a subdelegada Donana de Queimadinhas, um

soldado da Policia Militar e um casal jovem, a

moça muito envergonhada. Coronel Severino de

Tanhaçu foi assuntar com a subdelegada:

- Donana,muitos bons dias...Não sabe...Anda de

viagem?

- Bom dia seu coronel...Ando de serviço...O

moço aí foi lá em Queimadinhas e roubou a

moça...Estou levando pra casar de papel

assinado...

O trem saindo de Juraci, Zédizefa debruçado na

janela vendo um aguadeiro tocando uma tropa de

jegues carregando as latas com água. Coroné

perguntou:

- Oxe! Zédizefa, naquela fala candomblezeira

de dona senhora de Santo Amaro, tem algum

acontecimento em Iaçu?

- Tem não senhô...O que tá faltando é: O

perigo é o homem do rabo alegre...O passarinho no

pau, aceite disfarce e dê pro cachorro...Conte ao

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homem dos sete “P”...No fim do caminho bote em meu

nome u...

- Chega!...Eu to é cismado com esse tal Iaçu.

Na segunda classe o coronel Pantaleão de

Sincorá contando para o coronel Ponciano

Pantaneiro:

- É... Daí que a danada da onça deu um

pulo...Eu agachei e cacei ela da cola...É...Que na

hora eu tive foi força e rebolei ela e bati com a

cabeça dela no tronco do pé de umbu...É...E lá no

seu lugar, esse onde o senhor mora, tem muita

onça?

Coronel Ponciano Pantaneiro sorveu um gole de

tererê, sorriu e contou:

- Tem alguma, mas eu até não mato...Eu gosto

muito das bichinhas...Quando eu era menino meu pai

deu uma pra mim cuidar...

- I é? Seu bichinho de estimação era uma onça?

- Uma, não, duas...

Sete horas e quinze minutos o trem apitou na

estação de Machado Portela.

Parado na plataforma o mulato alto que chamava

a atenção por estar vestindo um dólmã militar de

cor azul.

Um homem embarcou no trem e procurou a Donana

Subdelegada de Queimadinhas:

- Bons dias Donana...Tá um diz que diz que a

senhora tá casando os ajuntados...

- Sim, pela moral e pelos bons costumes e a

família tem que ter organização organizada...

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- Pois uma prima minha roubou um meu irmão e

minha mãe quer que tenha um casamento de lei...

- Sim...Junte os dois que na segunda-feira eu

venho buscar eles, pra casar na delegacia...

Na plataforma da estação de Machado Portela o

coronel Zé Severino de Tanhaçu conversou com o

mulato de dólmã e deu a ordem:

- Embarca no ultimo carro e fica alerta...

O Mulato de Dólmã Azul de Machado Portela

entrou no último carro. O Pistoleiro de Paulista

no Piauí ficou alerta. O Padre de Petrolina fez o

sinal da cruz.

O trem saiu de Machado Portela e o coroné

Nézinho bateu no braço de Zédizefa:

- Oxe!...Zédizefa, você está com o seu

revolver?

- Tá na mala... O coroné mandou deixar na

mala...

- Pois tire da mala...Bote o revolver em sua

cintura, esconda com a camisa...Espere minha

ordem...Não vai fazer besteira dentro desse

trem...

Os camareiros avisando:

-A primeira estação é Queimadinhas e tem a

baldeação para Itaité... Queimadinhas...Itaité...

Na plataforma da estação, terno de linho

branco, bengala com cabo de ouro, grande anel no

dedo, cabeleira branca bem penteada; Doutor

Laudares de Itaité. Não era doutor, era coronel,

mas não gostava que o chamassem de coronel.

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Subdelegada Donana de Queimadinhas desceu e na

plataforma apertou a mão de Doutor Laudares de

Itaité:

- Continuo na luta pra pôr moral e bons

costumes nesse povo...

No ultimo carro embarcou um sujeito de terno

verde e gravata vermelha.

O Líder Político de Iramaia desceu do trem

para saudar o Doutor Laudares de Itaité, que

perguntou:

- Qual o motivo dessa reunião? Reunião de

ultima hora...

- Os contrários já estão em movimento pra

eleição do ano que vem...

Doutor Laudares de Itaité sacudiu a bengala e

falou:

- E deputado Toninho e o partido que fiquem

bem espertos...Que não tá bom não...Pedi nomeação

de um telegrafista, nada, pedi nomeação de duas

professoras,nada, pedi uma escola pra Itaité,

nada, pedi pra aumentar o posto policial,

nada...Desse jeito...E estou sabendo que deputado

Toninho falou de boca grande dentro do Palácio de

Ondina em Salvadô, que a Bahia tem que acabar com

os coronéis...Desse Jeito...

- Coro...Digo: Doutor Laudares; vamos

embarcar, que o trem já vai sair...

- Vamos...Na primeira classe...

- Não...A gente ta vindo de segunda...Causa

que o coronel Zé Severino de Tanhaçu, comprou

passagem de segunda...

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- Responda...Tem alguém no mundo mais

miserável que Zé Severino?... Passou, mais eu, foi

é dois dias em Salvadô, sabe o que ele comeu em

dois dias? Dois acarajés...E ele tem dinheiro e

não é pouco...

O sol queimando a caatinga e o dia já estava

quente.

Coroné Nézinho que já estava tenso,mais tenso

ficou depois que Zédizefa colocou o revolver na

cintura.

Oito horas e quarenta e cinco minutos chegou

na estação Tamburi.

Os quatro meninos que viajavam de Contendas

para passar as férias em Cachoeira, debruçaram nas

janelas para ver um grupo de meninos de Tamburi

que jogavam pião perto dos trilhos ao lado do

trem.

Equilibrando uma moringa na cabeça e

carregando outra na mão direita uma mulher de pés

descalços caminhava na beira do trem vendendo

água.

Coronel Severino de Tanhaçu reuniu na

plataforma com seus dois capangas, o Capitão e o

Tenente e mais o Mulato de Dólmã Azul de Machado

Portela e deu instrução:

- Vão todos os três no último carro e esperem

o meu sinal...

Estabanado o Zédizefa debruçou na janela pra

ver os meninos jogando o pião e quase deixou o

revolver cair.

Os três; Capitão, Tenente e o Mulato de Dólmã

Azul de Machado Portela entraram no ultimo carro.

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O Padre de Petrolina fez o sinal da cruz. Mãe

Taninha de Santo Amaro fez uma prece.O Cangaceiro

Doido de Juacema cuspiu com raiva. O Pistoleiro de

Paulistana no Piauí acariciou o cabo do revolver.

Coroné Nézinho pensou pedindo proteção a São

Gonçalo do Amarante.

Nove horas e quarenta e cinco minutos o trem

apitando na chegada a estação de João Amaro.

Passageiros curiosos abriram janelas. O Padre

de Petrolina fez o sinal da cruz e correu a fechar

as venezianas das janelas onde viajavam os quatro

meninos de Contendas. Mãe Taninha de Santo Amaro

evocou a proteção dos orixás. O Pistoleiro de

Paulistana no Piauí segurou o revolver e correu

pra dentro do WC, trancou a porta e ficou escorado

na parede espiando pela janela. Zédizefa segurou o

revolver e o coroné segurou o braço dele.

Até bonito de ver; cercando o trem o coronel

Amarante de João Amaro, montado num bonito jegue

que estava arreado a capricho, seguido de seus

quarenta jegueiros. Os jegueiros montados em pelo,

sentados na traseira do jegue, os pés quase

arrastando no chão, todos de alpercata, roupa de

couro e laço de fita azul branca e vermelha, as

cores da Bahia, no chapéu.

Parados nas plataformas do trem; o chefe de

trem. Os camareiros e os guarda-freios.

Boné vermelho o agente da estação de João

Amaro estava na plataforma da estação alerta a

tudo que estava acontecendo.

Coronel Amarante de João Amaro apeou do jegue.

Pernas bem arqueadas, baixinho com apenas um metro

e sessenta. Doutor Laudares de Itaité é que sempre

dizia:- Se Amarante tivesse um centímetro a mais,

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seria o dono da Bahia.- Coronel Amarante de João

Amaro que não sabia mais quantos anos tinha e a

certidão de batismo já tinha amarelado o papel e

apagado as letras, foi homem que correu atrás do

bando de Lampião, correu atrás da Coluna Prestes,

filho de pai e mãe, os dois que pegaram nas armas

pra lutar ao lado de Antonio Conselheiro lá em

Canudos.

Foi o Doutor Laudares de Itaité que chegou na

plataforma do carro com o braço estendido

saudando:

- Muitos bons dias ao coronel Amarante...

Coronel Amarante de João Amaro com um papel

não mão caminhou em direção ao Doutor dizendo:

- Boas seu Doutor Laudares...Chame o resto dos

nossos companheiros...A reunião vai ser na minha

fazenda...O deputado Toninho mandou esse

telegrama...O deputado tá vindo aí num trem

especial...Desce o pessoal, vamos beber água do

Paraguaçu...Vamos pra minha fazenda comer um

sarapatel...O sarapatel de João Amaro; o melhor do

mundo...

O trem descarregou os coronéis com os seus

planos e seus capangas e continuou a viagem.

O chefe de trem entrou no carro de bagagens,

tirou o boné, passou a mão na cabeça, respirou

aliviado, estava um pouco tonto.

Coroné Nézinho deu ordem ao Zédizefa:

- Bote seu revolver na mala...

- Passou o medo coroné?

- Oxe! Respeite...

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- Desculpe coroné...

- Guarde seu revolver na mala...Tenha

cuidado...

No momento que Zédizefa segurou o revolver a

Jocosa de Jacobina deu uma risada. Zédizefa

voltou-se para olhar a Jocosa, e distraído apontou

o revolver para o Pistoleiro de Paulistana.

O camareiro atravessando o trem, caminhando

apressado, abrindo e fechando portas com energia,

despertando a atenção e a curiosidade dos

passageiros. Os comentários:

- O que aconteceu?

- Coisa grave.

- Foi lá no último carro.

O camareiro entrou no carro de bagagens e

segredou no ouvido do chefe de trem que bateu na

testa, botou o boné dizendo:

- No último carro...

Chefe de trem e o camareiro atravessando os

carros, apressados, abrindo e fechando portas com

energia, aumentando a curiosidade e mais

comentários:

- É coisa ruim...

- Só o que ta faltando...Agora o trem atrasa.

O chefe de trem abriu a porta do último carro,

levantou a cabeça, regalou os olhos. A locomotiva

apitou. O camareiro entrou no último carro.

O foguista abriu a tampa da fornalha e o calor

na cabine ficou insuportável, mas tinha que jogar

carvão para alimentar o fogo.

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No ultimo carro os passageiros com olhos bem

abertos e curiosos olhando para o chefe de trem

que falou:

- Senhores passageiros, por favor sua

atenção...A próxima estação é Iaçu...Iaçu a

entrada da Linha do Centro...Passageiros; que vão

para Itaberaba, Rui Barbosa e Barra tem baldeação

imediata...Tem um problema; de Barra pra frente à

Linha do Centro esta interrompida...Passageiros;

que vão para o trecho Barra a Senhor do Bonfim

terão que seguir via Salvador...

A primeira a reclamar foi a Jocosa de

Jacobina, acompanhada da Formosa de Campo Formoso.

O sujeito de terno verde e gravata

vermelha;levantou nervoso e perguntando:

- Eu vou para Miguel Calmon, tenho que fazer a

volta lá por Bonfim?

O Padre de Petrolina sorriu e disse:

- Eu falei que no Iaçu ia ter noticia ruim...

Para entender; naquela região da Bahia as

linhas da Leste formavam um triangulo com os

vértices nas estações Iaçu, Senhor do Bonfim e

Mapele em Salvador. Sendo a base deste triangulo o

trecho de Iaçu até Salvador com a distância de

trezentos quilômetros.

O chefe de trem passou para o outro carro e o

camareiro começou a dar o seu aviso:

- Iaçu o trem para meia hora pra almoço...Meia

hora para o almoço em Iaçu...

O homem de Pau Ferro olhou para o Homem de Pau

Seco e comentou:

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- O senhô vai ter que fazer a volta em

Bonfim...

- É...Eu já ia fazer a volta...Minha missão é

ir no trem do Juazeiro...

Na plataforma da estação, passageiros que

ainda não tinham entendido o problema de linha

interrompida, cercaram o agente da estação que com

calma explicava:

- Quem vai pras estações Itaberaba, Itaiba,

Capivara, Rui Barbosa,Jequitibá, Poços e Barra,

podem ocupar aquele trem, ali, que é o M6, que

onze meia sai daqui...A linha esta interrompida

entre as estações de Barra e Piritiba...

O caboclo magro, alto, ficou nervoso, atirou o

chapéu no chão reclamando:

- Eu vou é pra Piritiba...Eu vou fazê à volta

pra pegá o Trem da Grota lá no Bonfim...A Leste é

a porra da peste!

Iaçu as barracas de comida, barraqueiro

gritando oferecendo, cozinheiras suando na beira

do fogo.O cheiro forte do óleo de dendê. A baiana

do acarajé. A tenda da moqueca. Uma cabrita com o

sino no pescoço e os dois cabritinhos, atrás

comendo restos de comida no meio das barracas. Um

cego pedindo esmolas. A mulher magra com a criança

no colo pedindo uma ajudinha.

Coroné e Zédizefa procuraram a tenda do feijão

do Iaçu; feijão de corda refogado com pedaços de

lingüiça frita. Na frente da tenda, numa tabua que

já tinha servido de lateral de um vagão da Leste,

escrito a carvão com letras mal feitas; Tenda Ção

Juzé. E coronel sentou contente olhando a travessa

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com o feijão, a farofa de carne de bode, a garrafa

com manteiga e a garrafa com pimenta.

Foi na tenda Ção Juzé que o coronel Ponciano

Pantaneiro de Porto Esperança encontrou o

Sergipano de São José da Mata e falou:

- Poço lhe fazer uma pergunta?

- Sim.

- Escutei você falando pro seu conterrâneo que

você está vindo do Paraná...Eu pergunto: no Paraná

você trabalhava com derrubada de mato?

- Sim.

Num canto da tenda Ção Juzé a Jocosa de

Jacobina perguntou para a Formosa de Campo

Formoso:

- Agora tudo mudou...A gente vai junto com

esse coroné Nézinho até Bonfim...Você vai

enfrentar ele aqui? Ou no Bonfim?

A Formosa de Campo Formoso abriu a bolsa,

tirou um punhal com o cabo de ouro e a lamina de

prata, escondeu o punhal debaixo da blusa entre os

seis e disse:

- A ordem é, aqui...

Iaçu troca de locomotiva e troca de equipagem.

Maquinista seu Juca da cocada preta, esse tinha

nove filhos legítimos e mais seis adotados, pra

manter esse mundo de gente ele e a esposa

reforçavam o orçamento fabricando cocadas,

facilitava é que os cocos ele trazia de Salvador

na locomotiva. Foguista o seu Turino, doido por

futebol e dono de um time amador em Iaçu. O chefe

de trem, o seu Ventura homem ligado ao

Espiritismo, médium de um centro espírita em Iaçu.

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Zédizefa distraído mais a frente, o coroné

mais devagar que recém tinha enchido o bucho, num

beco entre duas barracas, a Formosa de Campo

Formoso segurou o braço do coronel, que tremeu

assustado. Ela puxou-o para o beco enquanto com o

dedo na frente da boca murmurou:

- Fique calado.

Coroné Nézinho suou frito e sentiu uma

tontura. Com muita calma a Formosa tirou o punhal

do peito e olhando nos olhos do coroné tirou o

punhal da bainha bem devagarzinho. Ele olhou o

punhal e tremeu com os olhos cheios de lágrimas,

ela perguntou:

- O senhor conhece esse punhal?

- Muito... Foi de meu falecido pai...Papai deu

de presente a um grande amigo...

- Esse amigo, de seu falecido pai, tá

precisando de um favor seu...

- Oxente!...Pois diga...

- Ele é envolvido na política de Campo

Formoso...Ele é dos Boca Branca...Os Boca Preta de

Campo Formoso tão em perseguição de morte contra

ele...Ele tá escondido no lugar que o senhor

sabe...Ele quer munição pra vinte homens.

- Diga pra ele que de hoje a uma semana eu

pessoalmente em pessoa vou descer do Trem da Grota

na estação de Fumaça com munição pra quarenta

homens... E diga pra ele que o telegrafista da

estação de Itinga é gente de minha confiança...

Na estação o agente ainda estava atendendo

passageiros que não estavam conformes com a

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interrupção do trecho Iaçu Bonfim. O sujeito de

terno verde e gravata vermelha, pediu:

- Já que eu vou no trem de Juazeiro, eu quero

reservar um leito de Mapele a Bonfim.

Na locomotiva seu Juca da cocada preta, com

uma estopa limpava os metais do painel e o

foguista, seu Torino acionava a bomba para pôr

mais água na caldeira, seguro nos balaustres entre

o tender e a cabine um guarda-freio, contou:

- Pegaram o guarda-chaves de Vaslândia comendo

uma cabrita atrás da estação...

Seu Torino deu uma risada e contou:

- Aquele sujeito é um artista, ali em Lajedo

Alto ele fez umas assas de pano e queria se jogar

lá do alto do morro...Lá em Itatim ele roubava as

galinhas do agente, fazia galinha ao molho pardo e

ainda levava uma prova pro agente...Quando ele

morou em Manoel Vitorino,no São João ele inventou

de fazer guerra de espadas, a espada estourou na

mão dele, ficou mais de um mês no hospital de Cruz

das Almas...

Apitando e batendo o sino o trem saiu de Iaçu

rumo ao Recôncavo Baiano.

Tranqüilo o coroné Nézinho falou pra Zédizefa:

- To doido pra chegar na Carnaíba e conversar

com o Zé do Bode...

- Era bom se tinha um telefone aqui no trem

pro senhô já ir falando com ele...

Coroné Nézinho virou bem o rosto, olhou bem

pro Zédizefa e falou:

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- Esse Enfermeiro de Barbacena, que vai mais

nós nesse trem, ele vai é deixar um doido no

sertão e trazer outro...Olha a doidice que você

falou: um telefone pra eu falar de dentro de um

trem com um sujeito lá no Juazeiro...

- Coroné, eu não to doido não, o senhô não

duvide dos inventamentos que o homem inventa...

O povoado de Vaslandia, o homem vendendo água

fresquinha.

Embarcou no ultimo carro a mulher toda de

preto segurando um rosário e acompanhada de um

rapaz com jeito de maluco. O Padre de Petrolina

fez o sinal da cruz. Mãe Taninha de Santo Amaro

fez uma prece.

De Vaslandia a Lajedo Alto sete quilômetros. O

apito do trem ecoou no alto do morro que enfeita a

vila de Lajedo Alto. Junto à estação os grupos de

meninos jogando pião. Na plataforma da estação uma

mãe ansiosa, cercada dos filhos, olhando as

plataformas dos carros. Caminhando com as mãos, o

Ervateiro de Lajedo Alto apareceu e um grito soou

na beira do trem:

- Paaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiinhhhhhhhhhhhooooo...

No quadro de avisos da estação: A partir da

próxima semana os trens NS1 e NS2 voltarão a

trafegar com carros-dormitórios.

Doze e quinze saiu o NS2 de Lajedo Alto.

No ultimo carro a Mulher de Preto de

Vaslandia, rezava num sussurro que chamava a

atenção dos outros passageiros:

- Agora dez Ave-Marias,pra Nossa Senhora de

Candeias...

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O Soteropolitano Afetado que andava pelo

corredor do carro espichando as pernas, perguntou:

- Oi...O quê a senhora reza tanto? Medo de

andar de trem?

- Não moço...É esse minino que é um minino

bom, mas de vez enquanto ele tem um encosto

ruim...E quando o demônio encosta nele, daí ele

fica com mania de matar um...E eu rezo pra ele não

ter encosto aqui dentro do trem...

O Padre de Petrolina escutou a conversa e

resolveu ir até o carro restaurante.

Itatim, na plataforma, cinco gaiolas grandes

cheias de pombas. Carrega que vão pra Salvador.

O Criador de Pombas de Itatim embarcou no

último carro e sentou ao lado de Mãe Taninha e

logo puxou prosa e contou suas estórias:

- Eu crio pombas e levo pra vender em

Salvador...Tinha um vizinho meu que armava

arapucas pra pegar minhas pombas...Mas eu fiquei

sabendo, e eu botei uma casa de abelhas dentro da

arapuca do safado, as abelhas mandaram ele é pro

hospital...

Povoado de Serra Grande. Em Serra Grande

embarcou o homem alto vestido de branco, olhar

estranho, entrou no último carro. O Criador de

Pombas de Itatim bateu no ombro de Mãe Taninha e

falou:

- O Alucinado de Serra Grande...É de família

rica...Mais de uma vez já criou problemas nos

trens...

O Soteropolitano Afetado comentou:

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- Já vinha o Obsedado de Vaslandia, agora o

Alucinado de Serra Grande.

O trem parou na estação Taperi e logo começou

a recuar. Os moleques do,lugar se pendurando no

trem para irem até Santa Terezinha. Recuou um

quilômetro e parou na plataforma de Santa

Terezinha.

Santa Terezinha, muitos sacos com amendoim

empilhados na plataforma.

Passeando na plataforma o senhor delegado e

dois soldados da Policia Militar.

A moça vendendo os pacotinhos com amendoim

cozido na casca. O Padre de Petrolina e Zédizefa

não perderam tempo.

No ultimo carro embarcou o homem muito magro,

alto, careca, olhos vidrados; o Cismado de Santa

Terezinha. A Jocosa de Jacobina sorriu e comentou:

- Esse carro até parece um hospício.

A Mulher de Preto de Vaslandia rezando e

rezando enquanto o filho dela, dito Obsedado de

Vaslandia olhava sem parar pra um lado e outro.

O Padre de Petrolina e Zédizefa preocupados em

comer amendoins.

O Criador de Pombas de Itatim contando para

Mãe Taninha:

- A senhora sabe...Aí no Itatim teve um amigo

meu que também criava pombas pra vender...Se ele

tinha uma encomenda de pombas pretas e ele não

tinha pomba preta...A senhora sabe; ele pintava as

pombas de preto...O povo queria pomba branca, ele

ajeitava, pintava pombas de branco...Descobriram

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foi é aí em Cachoeira de São Felix, jogaram ele

com roupa e tudo dentro do Paraguaçu...

Na segunda classe o coronel Ponciano

Pantaneiro sentou ao lado do Sergipano de São José

da Mata:

- Moço tá na hora de nós conversar...Eu sou do

Mato Grosso...Ponciano, pantaneiro de Porto

Esperança...Tenho uma fazendinha em Porto

Esperança, é dez mil hectares, e essa tá povoada

de gado...Que o Rio Paraguai passa em Porto

Esperança, que Porto Esperança é estação de trem

na Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, na Linha

do Pantanal que vai pra Corumbá...Eu Ponciano,

subindo o Rio Paraná tenho uma posse de terra, que

é selva pura, é quarenta mil hectares de chão...Eu

já estou derrubando o mato...Ano passado eu vim no

Sergipe e enchi um carro de trem de homens...Agora

eu estou indo pra trazer é dois carros; mais ou

menos cem homens...Esse cego que vai ai é meu

guia...

- Esse cego, enxerga mais que nós dois

juntos...

- Que todo esse trem...No Sergipe eu fico na

estação de Rita Cacete...Ali na pracinha tem um

barzinho e ali eu fico um mês recrutando

gente...Lá na selva, lá no meio do mato,lá no Mato

Grosso, pra segurar mais de duzentos machos com

respeito e ordem eu preciso de um ajudante, homem

de minha confiança...

-Desculpe...Esse dito cujo tal vai é ter que

ter uns dez ajudantes...

Coronel Ponciano Pantaneiro de Porto

Esperança, sacudiu a mão contente:

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- Então...Estamos nos entendendo... Eu quero

contratar o chefe da guarda e quero que ele

escolha os dez ajudantes...

Treze horas e quarenta e cinco minutos o trem

chegou batendo o sino na estação de Castro Alves.

Embarcou na segunda classe, com uma sacola

feita de pano, cheia de livretos o sujeito que

enquanto ia entregando livretos aos passageiros

dizia:

- Permitam que eu me apresente; eu sou o Poeta

Menor de Castro Alves a terra do Poeta

Maior...Estou viajando a Salvador onde aos

domingos no Mercado Modelo eu comercializo meus

modestos livros, com minhas simples criações...

Enquanto o Poeta Menor de Castro Alves ia

tentando vender seus livretos, o trem saiu de

Castro Alves onde um grupo de moças bonitas chamou

a atenção do Zédizefa; uma abanou e ele quase caiu

pela janela.

Quatorze e quinze o trem parou na estação do

povoado de Genipapo.

A Mulher de Preto de Vaslandia falou:

- Aqui em Genipapo tem a capelinha de São

José, eu tenho que vir aí pagar uma promessa.

Com duas malas grandes e pesadas embarcou na

segunda classe o Vendedor de Garrafadas de

Genipapo. Não perdeu tempo, uma mala botou debaixo

do banco a outra ele abriu e já ofereceu:

- Meu povo, boa tarde, boa viagem, garrafada

pra curar qualquer doença...

São folhas, raízes, cascas de plantas

medicinais em infusão na cachaça.

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Coronel Ponciano Pantaneiro chamou o Vendedor

de Garrafadas e pediu:

- Tem alguma, assim, que, sabe não é...Uma que

levante.

- Essa é a que mais vende...A minha é a melhor

garrafada pra levantar cacete em todo o

Brasil...Tem é capim barba de bode com casca de

catuaba...

Quatorze horas e quarenta minutos o trem parou

em Petim, chamou a atenção dos passageiros um

grupo de meninos que disputavam corridas usando

pernas de pau, ali ao lado dos trilhos.

O Cangaceiro Doido de Juacema acordou, de um

salto parou de pé e começou a falar doidices:

- Galo Doido, Bigode e Zé do Juremal vão pelo

meio...Língua de Fogo e Rei do Baião vocês dêem a

cobertura...É pra matar tudo que é coronel...

O Cismado de Santa Terezinha levantou e cruzou

os braços.

O Alucinado de Serra Grande deu uma gargalhada

que ecoou dentro do carro.

O Obsedado de Vaslandia começou a dar socos no

ar.

O trem parado em Petim, os passageiros

começaram a ficar impacientes:

- Parou por quê?

- Só falta ter acidente na linha...Agora que

já ta pertinho de eu chegar... Eu vou pra Cruz das

Almas.

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O Enfermeiro de Barbacena acalmou o Cangaceiro

Doido e o Padre de Petrolina com muito jeito pediu

para o Cismado sentar.

Zédizefa desembarcou e foi ver as corridas dos

meninos com as pernas de pau.

Os quatro meninos que vinham de Contendas para

Cachoeira, quiseram descer, mas o camareiro não

deixou.

O apito de uma locomotiva e o bater ritmado

dos cilindros anunciaram que um trem se aproximava

vindo do lado de Salvador. Soltando um penacho de

fumaça preta, apitando e batendo o sino, passou em

Petim o pequeno trem especial;locomotiva e um

carro. Na frente da locomotiva a bandeira do

Brasil e a bandeira da Bahia, na plataforma de

trás do carro, abanando com os dois braços

estendidos o deputado Toninho que ia para a

reunião em João Amaro.

Estação Manoel Vitorino; o ultimo carro foi

invadido por três mulheres e trinta e duas

crianças de várias idades; meninas e meninos,

todos alegres, barulhentos. Não tinha lugar pra

todos,uma das mulheres falou:

- A gente vai pra perto...Cruz das Almas.

Uma das mulheres contou para a Mulher de Preto

de Vaslandia:

- Nós vamos pra Cruz das Almas, na casa de

minha irmã, que a gente vai fazer um caruru pra

São Cosme e Damião...

- Eu sempre, faço, lá em Vaslandia, no mês de

setembro...

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- E que a gente não pode fazer em setembro...

Mas promessa de caruru pra Cosme e Damião tem até

o fim de dezembro...

A Mulher de Preto de Vaslandia contou:

- Eu tenho promessa de ir a Salvador pro

caruru de Santa Bárbara...

A Jocosa de Jacobina bateu no braço da Formosa

de Campo Formoso e comentou:

- A vida dessa mulher é rezar e pagar

promessa.

O camareiro avisando em todos os carros:

- Chegando a Cruz das Almas... Cruz das Almas

baldeação para Conceição do Almeida...

Quinze horas e vinte minutos o trem encostou

na plataforma de Cruz das Almas.

Desembarcaram as três mulheres e as crianças

que vinham de Manoel Vitorino.

Na segunda classe embarcou o Fabricante de

Espadas de São João, contou ao camareiro:

- Vou pra perto...Desço em Salvador Pinto...

Ali tem muito bambu bom...Passo o domingo cortando

e ajeitando os pedaços...

O Cismado de Santa Terezinha resmungou em voz

alta:

- Vamos embora com esse trem antes que esse

povo maluco de Cruz das Almas jogue uma espada de

fogo aqui dentro.

Coroné Nézinho olhou firme pro Zédizefa e

perguntou:

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- Esqueceu seus compromissos?

Distraído, Zédizefa, perguntou:

- Ó...E o que foi?

- E Mãe Taninha falou: e o charuto da cidade

das guerras de espadas de fogo...

Zédizefa deu um soco na cabeça, levantou,

desceu do trem e correu até o bar da estação pra

comprar um charuto.

Apitando o trem saiu da Capital do Fumo e

Cidade das Espadas.

Estação Salvador Pinto,ali embarcou um grupo

grande de pessoas, alegres, barulhentas; adultos e

crianças. Uma velha explicou o motivo da viagem:

- A gente vai pra Cachoeira...Vai ser uma

reunião de família e amigos pra gente comer

maniçoba...Domingo tem maniçoba pra família...

Dezesseis e dez o trem chegou em São Felix.

Plataforma cheia de gente. Passageiros

desembarcando, passageiros embarcando.

Na segunda classe embarcou um grupo de jovens,

liderados por mestre Zézinho; grupo de capoeira

que ia a Salvador participar de uma roda de

capoeira no Largo do Mercado.

O cheiro do dendê, na estação o tabuleiro, da

baiana sorridente e bonita, com acarajé, abará,

cocada e quindim. O Padre de Petrolina e o

Zédizefa foram os primeiros a chegar junto ao

tabuleiro.

O Rio Paraguaçu, a ponte metálica, na outra

margem a Cidade Heróica de Cachoeira.

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A manobra do trem que saiu de ré de São Felix,

atravessou a ponte, entrou de ré numa rua da

cidade. Apitou e de frente avançou para encostar

na plataforma de Cachoeira. Plataforma cheia de

gente. Acabara de chegar o trem procedente de

Salvador.

Embarcou o Poeta Pornográfico de Pouco Ponto,

este fazia livrinhos com estórias de putaria e

ilustrava com desenhos que alegravam os fregueses.

Embarcou e não perdeu tempo, começou a escolher os

possíveis compradores e a oferecer. Zédizefa

comprou dois; A Donzela que o Jegue Descabaçou e o

Garanhão de São Felix.

No ultimo carro embarcou a mulata alta,

cintura fina, não caminhava; dançava. O perfume

invadiu o carro. Os homens regalaram os olhos. Mãe

Taninha respirou fundo e disse ao Criador de

Pombas de Itatim:

- Perigo... Muito perigo...Essa daí é uma

Iaba... Iaba é diaba disfarçada de mulher...

- A chegar em Conceição de Feira...Conceição

de Feira tem a baldeação para Feira de

Santana...Baldeação para o Ramal de

Feira,passageiros para Tupinambá, Jacaré, São

Gonçalo dos Campos...

Dezessete e quinze o trem chegou à movimentada

estação de Conceição de Feira.

Na segunda linha um vagão para ser engatado no

trem. Vagão com carga especial; jegues que o trem

de Feira de Santana veio juntando nas estações do

pequeno ramal.O vagão seguiria até Afligidos.

Na plataforma os grupos e alguns já embarcando

no trem. Os grupos de pessoas que acompanhavam os

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jegues. Era gente que ia para uma corrida de

jegues no domingo em Afligidos.

O agente da estação e o chefe de trem

combinaram em engatar o vagão com os jegues na

cauda do trem. Chega em Afligidos não tem que

fazer manobra.

Estação Desterro, embarcou com duas malas

grandes o Santeiro de Desterro,entalhava imagens

de santos, de orixás e até imagens de pessoas em

poses pecaminosas. Vendia suas imagens nas feiras

de Salvador.

Anoitecendo e muito movimento na pequena

estação de Afligidos. O trem foi recebido com uma

salva de foguetes. Era a véspera da corrida de

jegues, véspera de festa grande no povoado.

As luzes da cidade de Santo Amaro e o

camareiro:

- Chegando em Santo Amaro...Santo Amaro...

Na plataforma o grupo de moças vestidas de

branco cantando e esperando a Mãe Taninha. Mãe

Taninha desceu do trem e a Iaba sorriu alegre.

Na segunda classe embarcou o grupo grande de

componentes de um grupo de samba de roda,

cantando, batendo no pandeiro e tamborim.

Dezoito horas e quarenta e cinco minutos o

trem saiu de Santo Amaro.

- A chegar em Buranhem...Buranhem baldeação

para o ramal de Catuiçara...Baldeação para Terra

Nova e Catuiçara...

O ramal de Catuiçara, dos engenhos do

Recôncavo.

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O trem correndo pelo meio de canaviais e

apitando anunciando a chegada em Buranhem.

Já encostado na plataforma o trem procedente

de Salvador com destino a Catuiçara.

Na plataforma, vestido com uma batina feita de

sacos de açúcar, muito encardida, cabelos

compridos e barba muito grande; o Monge Maluco de

Catuiçara querendo viajar a Salvador. O camareiro

não o deixou embarcar por não ter passagem. O

chefe de trem viu os dois discutindo e foi

participar da conversa, o Monge pediu:

- Chefe, leve-me a São Salvadô...

O chefe de trem sorriu, pensou e concordou:

- Eu pago tua passagem...Embarca na segunda

classe e vai quieto.

O Monge Maluco de Catuiçara,era assim chamado

pelo povo. Não era maluco, era desprendido das

coisas materiais, andava pelas feiras nos povoados

da beira do ramal e nos engenhos de açúcar sempre

calmo, pouco falava.

Dezenove e quinze e minutos o trem apitou e

saiu de Buranhem.

Parada muito rápida em Pouco Ponto. O Poeta

Pornográfico de Pouco Ponto desembarcou e na

plataforma a mulher dele esperando e logo ordenou:

- Passe o dinheiro...

Estação Cinco Rios, embarcou o grupo de jovens

alegres do Pastoril de Cinco Rios. A maioria do

grupo ficou no penúltimo carro, no ultimo carro

apenas dois. Uma moça de túnica azul e uma coroa

dourada na cabeça e um jovem de camisa vermelha e

segurando uma lança dourada.

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O trem continuou a viagem.

No ultimo carro a Iaba olhou para os dois

jovens do Pastoril de Cinco Rios e fez sinal para

o Cismado de Santa Terezinha que levantou e disse:

- O senhor Dom Pedro Segundo e a senhora

rainha Princesa Isabel, voltando pra acabar com

essa republica corrupta de coronéis...Morte aos

coronéis...

O Cangaceiro Doido de Juacema levantou,

estendeu os braços e começou a gritar ordens ao

seu bando imaginário:

- Primo de Corisco, Mané Beiçudo, chama o

bando...Embora seus molenga...Ai vem os

macacos...Bota bala no cano...Água nas cabaças que

a caatinga é grande...

A Mulher de Preto de Vaslandia, tremeu e

começou a rezar em voz alta, rezando sem pausa:

- AveMariacheiadegraças...

O Alucinado de Serra Grande subiu pra cima do

banco e entrou na conversa:

- Volta o trem, lá em Serra Grande tem um

curral cheio de jegues e uma panela cheia de

feijão de corda.

O Padre de Petrolina abriu a mala de onde

tirou o livro de missas e começou a ler um salmo

em voz alta.

O Criador de Pombas de Itatim, levantou

ligeiro e saiu do carro.

Zédizefa ficou alerta.

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Coroné Nézinho com as duas mãos no bolso do

casaco; a direita segurava o revolver e a mão

esquerda segurava a imagem de São Gonçalo.

A Iaba batendo palmas e indo de ponta a ponta

do carro, requebrando e andando na ponta dos pés.

O Enfermeiro de Barbacena tentando fazer o

Cangaceiro Doido tomar um calmante, mas ele:

- Não posso beber, to numa reunião

importante...Junte as coisas, apaga o fogo,

desmancha o rastro...Vamos matar coronel...

- Vem de volta pra Serra Grande pegá uma

panela de feijão de corda com carne de bode pra

comê no Largo do Pelourinho com o Rui Barbosa e o

Getulio Vargas...

O trem se aproximando de Candeias, um

camareiro atravessando o comboio, apressado, para

ir contar ao chefe de trem o tumulto no ultimo

carro.

Nervosa a Jocosa de Jacobina começou rir as

gargalhadas.

O Pistoleiro de Paulistana, de pé, segurando

embaixo do casaco, o revolver.

A Iaba dançando, a Mulher de Preto rezando, O

Padre lendo o salmo, coroné Nézinho de olhos bem

abertos.

Cangaceiro Doido continuava:

- Leve uma carta pro bispo do Juazeiro, que eu

tenho, que é de recomendação de padre Cícero Romão

da Republica do Cariri...

O Cismado de Santa Terezinha aplaudiu:

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- Pede muito dinheiro...A igreja do Juazeiro é

muito rica, os terrenos da cidade são todos

dela...

O trem chegando em Candeiais.

A Iaba bateu palmas e gritou:

- Comandante, e o valente Maneca de Vaslandia?

A mãe do rapaz deu um suspiro e desmaiou.

Cangaceiro Doido ordenou:

- Maneca de Vaslandia, pega a lança e mata o

coronel ali...

Apontou o coroné Nézinho.

O Obsedado de Vaslandia deu um pulo tirou a

lança prateada da mão do rapaz do Pastoral de

Cinco Rios.

A Formosa de Campo Formoso correu a socorrer a

Mulher de Preto que estava desmaiada. Zédizefa se

postou na frente do coroné. O Padre de Petrolina

segurou o Obsedado, a Iaba tentando segurar o

padre.

Vinte horas o trem parou em Candeias. Chefe de

Trem e o Agente da estação, correram ao lado do

trem até o ultimo vagão que estava transformado

num hospício. O chefe de trem parou na porta do

carro e disse:

- Vou fazer uma prece e pedir ajuda aos bons

espíritos...

O agente deu volta dizendo:

- Vou chamar a Policia Militar...

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O Padre e a Iaba abraçados, estendidos no chão

do corredor. O Obsedado lança em riste, em cima de

um banco. O Cismado de Santa Terezinha batendo

palmas...

O Monge Maluco de Catuiçara desceu do trem e

correu até o ultimo carro, subiu pela ultima

plataforma.Abriu a porta, entrou, do bolso, tirou

uma grande cruz de madeira, segurou a cruz com as

duas mãos acima da cabeça.

Cangaceiro Doido baixou a cabeça e sentou. O

Padre levantou sacudindo a poeira. O Obsedado

soltou a lança e voltou a seu lugar. Silencio

dentro do carro a Iaba gritou:

- Candeias! Aqui eu fico.

Saiu do carro deixando um cheiro forte de

enxofre.

O Monge Doido chegou na porta do escritório da

estação e perguntou ao agente:

- Tem janta?

O agente sorriu, sacudiu a cabeça:

- Tem, deixa eu liberar o trem.

O trem deixou Candeias e logo os camareiros

começaram a avisar:

- Próxima estação é Mapele... Mapele... Saída

para a linha de Alagoinhas...Mapele...Atenção;

passageiros para Sergipe e Alagoas...Passageiros

para Alagoinhas, Serrinha, Itiuba, Bonfim e

Juazeiro... Baldeação...

Sempre tem os que querem mais explicações:

- Moço...Eu vou pra Salvador...

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- Quem vai pra Salvador fica nesse trem...

- Tá longe de Salvador?

- Vinte quilômetros...

Um passageiro, óculos na ponta do nariz, um

lápis e um guia levy, estudando horários de trens.

A luz do farol da locomotiva refletiu nas

águas da Baia de Aratu. A tabuleta na beira dos

trilhos anunciando a estação Mapele.

Mapele o trem NC1 procedente de Salvador e com

destino a Juazeiro já estava encostado na

plataforma.

Carregadores, camareiros e passageiros

apressados movimentando a plataforma de Mapele.

Zédizefa com as malas e a trouxa na cabeça.

Coroné Nézinho sacudindo sua bengala.

Um camareiro auxiliando e mostrando um carro

de primeira classe avisando:

- Esse carro tem bastantes lugares vagos...

Os últimos cinco carros eram dormitórios.

Então o coroné nesse trem não ocupou o ultimo

carro do trem, mas ocupou o ultimo carro de

primeira classe, também ocuparam esse carro os

passageiros que vinham no ultimo carro do trem de

Monte Azul.

Trem com locomotiva e equipagem da estação de

Serrinha. Maquinista o seu Valdomiro, mais

conhecido por; seu Valdô, nascido e criado na

estação de Picos no município de Itiuba; seu Valdô

presidente da Confraria do Caxixe. O foguista o

jovem Jovelino; jogador de futebol, capoeirista e

namorador. Chefe do trem o seu Venâncio, conhecido

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a boca pequena como “O Comunista”, na verdade ele

muito estudava, muito militou pela causa Comunista

e por tal foi até muito perseguido.

Passageiros acomodados, batida do sino, apito

do chefe de trem, apito da locomotiva; o trem saiu

de Mapele.

Troca de trem tão rápida, uma etapa vencida,

mais uma etapa a vencer. Não deu nem tempo de

pensar. O certo é que já estavam acomodados e

rumando ao sertão.

Inicio de viagem tranqüila no trecho Mapele a

Alagoinhas. Talvez nem tão tranqüila, pois

exatamente nesse trecho ferroviário tinha uma

guerra declarada e não divulgada.

Dois contraventores exploradores do jogo do

bicho e de jogos de bingo tanto em Salvador e

Alagoinhas, como nas cidades e vilas no trecho

ferroviário entre as duas cidades. Cada um deles

com seu “quartel general” em uma estação dos

extremos da linha. Zé do Bingo com sua sede em

Água Comprida e o Carlinhos de Narandiba com sua

“fortaleza” num bonito sitio em Narandiba.

O jogo do bingo explorado em barracas bem

simples; coberta com uma lona, o contorno um

balcão grosseiro feito com uma taboa de trinta

centímetros de largura, onde pintavam a cartela.

Andavam brigando por causa de pontos em

Salvador. Zé do Bingo inovou e construiu uma casa

de jogos em seu sitio; casa de luxo. Pois o

Carlinhos de Narandiba contratou um grupo de

mercenários e mandou atacar a tal casa.

O trem passou o Tunel de Mapele. No ultimo

carro de primeira classe um grupo de quatro

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homens, vestidos de camisas pretas e afixados na

altura do peito, fitas de Senhor do Bonfim, com

alfinetes. Uniforme dos homens de confiança do

Carlinhos de Narandiba. Num dos carros de segunda

classe iam outros quatro vestidos do mesmo jeito.

O trem parou em Água Comprida. Na plataforma

da estação e em pontos próximos; homens vestindo

camisas brancas e amarradas no braço esquerdo de

cada um três fitas de Senhor do Bonfim ; uma azul,

outra vermelha e uma branca.

Água Comprida desembarcaram muitas pessoas,

gente de posse, homens e mulheres;freqüentadores

da casa de jogo do Zé do Bingo. Discretamente os

legionários de Carlinhos Narandiba cuidaram os

movimentos.

Estação Goes Calmon, parada rápida, embarcou o

Nado Bozó, esse fazia jogos de bozó nas feiras de

cidades, vilas e povoados ao longo da linha desde

Salvador ao Juazeiro, e ao longo dessa linha ele

conhecia muita gente.Embarcou mas não estava indo

para alguma feira, embaçou como espião dos

legionários do Carlinhos Narandiba.

Estação Parafuso. Embarcaram o Zé do Parafuso

e seu grupo, doze homens.Zé do Parafuso, negro

alto, magro, rosto e braços cheios de cicatrizes,

a maioria talhos de navalha.Se acomodaram, todos

juntos, num dos carros de segunda classe.

Nando Bozó, viu, notou que ninguém do grupo

condizia nem mala, nem sacola,nem pacotes nas

mãos. Levavam as navalhas nos bolsos. Correu até o

ultimo carro de primeira classe e fez sinal ao

Chefe dos Legionários do Carlinhos Narandiba. O

Chefe levantou e os dois foram conversar no fim do

corredor do carro. Bozó contou:

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- Cuidado...Subiu o Zé do Parafuso e mais

onze...Turma da pesada... Vão de mãos livres; as

navalhas tão nos bolsos...Pode acreditar; tão

trabalhando pro Zé do Bingo...

- A meu bom!...Aqui nesse trem da Leste a

gente vai em oito e lá em Narandiba tem mais vinte

homens... A gente é vinte e oito...Eles é

doze...Não ataca Narandiba não...

- Cuidado...Ataca...Veje; só o Zé do Parafuso,

na última festa de lavagem do Bonfim, ele botou

foi dez marinheiros pra correr...Não foi “PM”, foi

marinheiro...Ataca e ataca mesmo...

- O que mais que ocê viu nesse trem?

- Sei não, se tem interesse... Aqui nesse

carro tá viajando um coroné do sertão...Coroné

Nézinho de Carnaiba...

- Interessa... A gente pode precisar de alguma

estratégia e até coloca o velho na roda...

Camaçari e muita gente alegre, barulhenta, de

dois grupos de samba de roda, embarcou, iam a uma

festa de samba em Mata de São João.

O Chefe dos Legionários desceu e correu a sala

do telegrafo onde rápido redigiu um telegrama para

o seu líder em Narandiba e um telegrama ao

delegado de Mata de São João.

De Camaçari até Dias d’Ávila onze quilômetros.

Em Dias d’Ávila, na plataforma, musica de flauta,

tamborim e pandeiro, torcedores e dois times de

futebol amador que embarcaram para Alagoinhas

onde, no domingo, iria ter um grande torneio.

Parada rápida em Amado Batista onde embarcou o

sujeito de terno preto e chapéu caído acima dos

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olhos. Embarcou no ultimo carro de primeira

classe.

Nando Bozó viu e logo fez sinal ao Lider dos

Legionários. Os dois conversaram na plataforma

entre os dois carros, Nando Bozó avisou:

- Cuidado...Esse daí que subiu agora é o

Pilantra de Amado Bahia...Esse cara é dedo duro, é

mercenário, é chantagista, é seqüestrador... E eu

já vi ele conversando com o Zé do Bingo, os dois

almoçando num restaurante do Mercado Modelo...

- A meu bom!...Ele tá nesse trem pra armar uma

pra cima de eu...

- Certeza...Ele tá querendo te seqüestrar, pra

depois fazer chantagem...

- A meu bom!...Vou fazê meu plano...Ele me

seqüestra...Meus homens seqüestram o coroné

Nézinho...

Jacupema, desembarcou o Riscador de Milagres

de Jacupema, numa mão a mala e na outra o rolo de

telas. Dividia suas semanas entre Salvador onde

negociava os seus quadros e Jacupema onde se

inspirava e desenhava, geralmente trabalhava ou na

plataforma da estação ou na frente da igreja.

Os meninos vendendo cajá e o Padre de

Petrolina junto com o Zédizefa abriram as janelas.

Mata de São João desembarcaram os grupos de

samba de roda vindos de Salvador e Camaçari.

Acompanhado de dois soldados da Policia

Militar o delegado embarcou na segunda classe e

convidou o Zé do Parafuso e seu grupo para

desembarcarem e ficarem encostados na parede da

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estação. Nando Bozó e o Chefe dos Legionários,

parados nas plataformas dos carros espiando.

Os soldados não encontraram armas com o grupo.

O delegado perguntou:

- Onde vocês vão?

Zé do Parafuso respondeu:

- Alagoinhas...Futebol...A gente torce pro

time do Gato Preto...

- Gato Preto Futebol Clube...Embarca e vai sem

criar problemas...

O delegado tirou o telegrama do bolso e

rasgou:

- Telegrama falso...Filhos das putas...

O trem chegando em Pojuca, Nando Bozó parado

numa das plataformas dos carros. O apito do trem

ecoou na cidade. O Pilantra de Amando Bahia chegou

junto ao Bozó o segurou pelo braço, mostrou o

brilho do fio da navalha e convidou:

- Vem...Pula fora desse trem...Espião de

merda...Pula quietinho seu boiola...

De Pojuca até Irapui apenas três quilômetros.

Em Irapui embarcaram os quinze elementos se

dizendo serem de uma equipe de futebol amador e

que seguiam para Alagoinhas.

O Chefe dos Legionários do Carlinhos

Narandiba, notou a falta do Nando Bozó e também do

Pilantra de Amado Bahia.

Estação de Catu. Embarcou a mulata bonita,

sapatos de saltos altos, cintura fina, bunda

grande e redonda. No braço esquerdo, amaradas as

três fitas de Senhor do Bonfim. Rosa Morena do

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Catu. Carregando uma pesada bolsa e um birimbau.

Rebolando provocante entrou no ultimo carro de

primeira classe.

O Chefe dos Legionários viu as três fitas no

braço dela e entendeu. Ela estava ali pra apoiar a

turma do Parafuso. Na bolsa as navalhas.

O trem chegando perto da estação de Pau

Lavrado. O Homem de Pau Lavrado, suspirou, suou

frio, tremeu, e se preparou para desembarcar.

Trem parado em Pau Lavrado o Homem de Pau

Lavrado desceu do trem e do escuro um grito:

- Você voltou seu filho de uma égua...

Um tiro,outro tiro, um grito, o apito do trem

e o chiar dos cilindros.

De Pau Lavrado a bonita vila de Sitio Novo,

oito quilômetros. Rosa Morena do Catu começou a

desfilar no corredor do carro. O Pistoleiro de

Paulistana ficou alerta. Coroné Nézinho bateu no

braço do Zédizefa.

O trem entrando no recinto ferroviário de

Sitio Novo. Rosa Morena ao passar no banco onde

estava o Chefe dos Legionários, deu um pulo, um

grito e armou o fiasco dizendo:

- Descarado...Sem respeito...Passou a mão na

minha bunda...

Pego de surpresa o Chefe dos Legionários até

ficou gago, tentou argumentar:

- E...Eu?...Você é doida...Negra safada...

- Respeite...Eu tenho nome seu safado...

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O trem parou em Sitio Novo, um camareiro e o

chefe de trem correram a ver o que estava

acontecendo na primeira classe.

Zé do Parafuso e seu grupo deram o jeito de

desembarcarem.

Os legionários de Carlinhos de Narandiba que

estavam na segunda classe também desceram.

Enquanto o chefe de trem tentava acalmar a

Rosa Morena de Catu, entrou no carro o Zé do

Parafuso e gritou:

- Oi!...O que tem minha prima Rosa?

Rosa sorriu, o escândalo estava pronto,

gritou:

- Esse descarado pegou minha bunda...

Mão erguida o chefe de trem pedia calma. Zé do

Parafuso concordou:

- Fique tranqüilo seu chefe do trem... Esse

safado e os amigos dele vão descer...

Enquanto isso o chefe dos do grupo de Irapui,

que se dizia time de futebol amador, correu ao

escritório da estação e pediu:

- Um telegrama pra Narandiba...Tão esperando

na estação...

Em Sitio Novo desembarcou o Chefe dos

Legionários e seu grupo. Na plataforma o agente

pedia que os dois grupos tivessem calma. Rosa

rebolando, sorrindo e tocando o berimbau.

Os dois grupos, um com oito elementos e o

outro com doze seguiram para o bonito Largo da

Igreja, ali junto à estação. Nas fracas luzes dos

lampiões brilharam os fios das navalhas.

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O trem continuou sua marcha. Na locomotiva o

maquinista, seu Valdô, convidou o foguista

Jovelino a entrar na Confraria do Caxixe. O

foguista sorriu e respondeu:

- O seu Valdô eu gosto mesmo e de namorar...

Na frente do trem a luz fraca de um lampião. O

maquinista puxou a alavanca do regulador de vapor

e começou a acionar os freios gritando:

- Filhos de uma jumenta.

Um grupo, de homens que viajavam no sentido

contrário ao do trem, em um trole, saltou e muito

rápido tiraram o trole de cima dos trilhos.

O trem diminuiu a marcha de repente.

Passageiros curiosos abriram as janelas. De uma

das plataformas dos carros o Chefe do Grupo de

Irapui viu o trole e o grupo à beira dos trilhos.

Voltou pra dentro do carro avisando:

- Gente... A barra tá limpa...

Estação de Narandiba; e o Grupo de Irapui

desembarcou pronto a atacar a Fortaleza do

Carlinhos.

De Narandiba a Alagoinhas oito quilômetros. Os

camareiros avisando:

- Vamos chegar em Alagoinhas... Em Alagoinhas

descem os passageiros que seguem para

Sergipe...Alagoinhas a saída é pela porta da

frente.

Vinte e duas horas e quarenta e cinco minutos

o NC1 encostou na plataforma de Alagoinhas.

O vendedor de laranjas de umbigo gritando:

- Laranja da boa...Laranja de Alagoinhas.

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As laranjas já descascadas e o Padre de

Petrolina junto o Zédizefa correram a comprar.

Desembarcou as barulhentas equipes e suas

torcidas, do futebol amador. Recebidas pelas

também barulhentas torcidas dos times locais:

Ferroviário, Agulha e Gato Preto.

Na plataforma um passageiro abordava um

camareiro querendo informações de qual o dia e

horário do trem noturno de luxo; o Estrela do

Norte, entre Salvador e Aracaju.

Milagre, o Zédizefa recusou o convite do

coroné Nézinho pra ir jantar no carro restaurante.

O coroné convidou o jovem magro com a camiseta do

Fluminense do Rio; o Fluminense do Flamengo.

Coroné contente no carro restaurante. Gostava

de comer nos trens de Juazeiro; arroz, batata

frita, bife, ovo frito e o diferencial, a salada

de cebola e tomates, produzidos no Vale do São

Francisco:

- Então o moço é do povoado do Flamengo?

- Sim senhor...O senhor conhece o Flamengo?

- Oxe!...Conheço e muito... Nas políticas a

gente anda naqueles cantos ali tudo... E agora o

moço mora no Rio de Janeiro?

- Sim senhor...O sertão não tem trabalho...

- E o moço faz o quê? La no Rio.

O Fluminense do Flamengo sorriu e respondeu:

- Caço gatos...De noite os gatos namorando faz

muito barulho nos telhados dos prédios dos

ricos...Os ricos pagam e eu caço...Eu tenho minhas

armadilhas...

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- Oxente!...E você caça e mata os bichos?

- Sim senhor... Mato e tiro o couro e vendo

pras fabricas de tamborins...A carne eu vendo no

meu carro de churrasquinho...

Na plataforma da estação o Homem de Pau Seco,

andando de um lado a outro procurando alguém ou

alguma coisa.

Um grupo alegre de rapazes e moças embarcou,

seguiam para o baile do Clube das Oficinas em

Aramari.

O trem saiu de Alagoinhas na noite quente do

sertão,o cheiro forte da caatinga.

O Padre de Petrolina lendo o romance “O Crime

do Padre Amaro” de Eça de Queiroz.

Zédizefa recostou a cabeça na parede do carro

e começou uma soneca, que ninguém é de ferro.

A Jocosa de Jacobina, a Formosa de Campo

Formoso, o Soteropolitano Afetado e o Gigolô de

Poá, iam jogando baralho; biriba.

As vinte e três horas e vinte minutos o NC1

apitou entrando no recinto da estação de Aramari.

Aramari das oficinas da Leste. Plataforma cheia de

moças e rapazes. Era noite de baile.

O Homem de Pau Seco foi até o escritório da

estação e perguntou ao agente:

- Que noticias o senhor fala do Rabo Alegre?

O agente, sorriu, sacudiu a mão:

- A ultima noticia; é que ele estava lá em

Santa Luz...

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De Aramari a Ouriçanguinhas vinte quilômetros.

Em Ouriçanguinhas embarcou um grupo grande sendo a

maioria rapazes e moças, que seguiam pra um forró

de pé de serra em Água Fria. Nesse grupo chamava a

atenção uma cabocla que vestia uma blusa cheia de

rendas e enfeitada de muitos botões coloridos.

Estação de Irai onde embarcou um grupo de

rapazes que também iam pro forró de Água Fria. Um

deles muito exibido olhou a Cabocla da Blusa

Enfeitada de Ouriçanguinhas e tomou prosa:

- Eita que é bonita de enche os olhos...

Ela sacudiu os ombros falando:

- Vá se catá seu besta!

E ele mais que ligeiro respondeu:

- Elogiei foi o arreio...

Uma hora e trinta da madrugada o trem chegou

na estação de Água Fria, e ali pertinho da estação

no galpão grande o som da musica; sanfona, violão

e estribo. A luz dos lampiões ofuscada pela poeira

do arrasta pé. E o trem descarregou mais alegria

pro forró; moços e moças e vários engradados com

garrafas de cerveja.

Os vendedores andando a beira do trem vendendo

caju ou pacotes de castanha de caju torrada.

Zédizefa e o Padre de Petrolina compraram frutas e

é lógico, castanhas.

Da vila de Água Fria a o povoado de Catana,

nove quilômetros.

Bem perto da estação de Catana, uma cobertura

de palha, sem paredes, iluminada por lampiões e a

poeira levantando no ritmo do bate coxas. É forró

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de Catana, e uma velha com um balde na mão joga

água no chão pra diminuir a poeira.

O trem parou em Catana era uma hora e quarenta

e cinco minutos.Do ajuntamento do forró saíram

dois vultos em direção ao trem: Uma cabocla

puxando um caboclo pelo braço. Decidida ela

empurrou ele pra embarcar no trem e ela também

subiu.

O trem ia saindo de Catana e no forró alguém

gritou:

- Virge minha Nossa Senhora... Maria de Calu

roubou o noivo da Vivi...

Lamarão, na plataforma iluminada por dois

lampiões um grupo de vaqueiros com suas roupas de

couro. Na segunda linha um vagão carregado com

cavalos e na plataforma os fardos com os arreios.

Vaqueiros de Lamarão que seguiam pra festa de

vaquejada em Salgadalia.

Perto da estação o claro dos fogareiros a

carvão das vendedoras de milho cozido e milho

assado.

O Homem de Pau Seco desceu apressado, comprou

um milho assado e foi ao escritório da estação

perguntar:

-Bom dia...Diga onde anda o Rabo Alegre?

- O Rabo Alegre estava em Santa Luz...

Manobra rápida a locomotiva desengatada do

trem e foi à segunda linha engatar o vagão com os

cavalos.

De Lamarão a Quingi sete quilômetros. E Na

chegada em Quingi o foguista avisou ao maquinista:

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- Tem que bebe água...

- Ei... A água que tem não dá pra chegar em

Serrinha?

- Não dá, não...

Quingi, o foguista abriu a tampa do tender

enquanto o bombeiro manobrava a mangueira de

abastecimento e contava pro maquinista:

- Sabe, seu Valdô, noite passada o agente

escutou barulho na plataforma, levantou e foi

vê...Um garimpeiro comendo uma jeguinha. Encostou

a bichinha na plataforma...

- Falando em garimpeiro...Dois garimpeiros da

turma de Picos vieram a Itiuba levar compras...E

na volta, lá na decida, o trole correu demais e na

curva ele saiu de cima dos trilhos...Um quebrou o

braço e outro enfiou a cabeça na ponta de um

dormente...

- Ué uma vez os garimpeiros, aqui do Quingi,

colocaram o trole de rabuja no Rabo Alegre...O

trem correu e na entrada do recinto do Lamarão o

trole saltou de cima da linha...

Os garimpeiros que eles se referiam eram os

funcionários da conservação e reparos da linha.

De Quingi a Serrinha quinze quilômetros. O

foguista perguntou a o maquinista:

- Já é domingo...Hoje tem reunião da

confraria?

A Confraria do Caxixe. Um engenheiro da Leste,

foi pra França se especializar em locomotivas

passou na França só meio ano, veio com sotaque

Frances. Com mania de Frances ele criou a

confraria do champanhe; onde se reuniam pra beber

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champanhe, fumar cachimbo e jogar gamão. Seu

Valdô, muito gozador, fundou a confraria do

caxixe; onde se reuniam pra beber caxixe,fumar

palheiro e jogar o rapa.E a coisa começou de

brincadeira e acabou pegando, que assim a turma de

amigos se reunia.

Os camareiros avisando:

-Serrinha...Saída pela porta da

frente...Chegando a Serrinha...

Movimentada a plataforma de Serrinha. O Padre

de Petrolina e Zédizefa correram ao Bar da Estação

pra tomar café com bolo de macaxeira.

Em Serrinha a troca de locomotiva e equipagem.

Equipagem sediada em Bonfim. Chefe de trem o seu

Ubirajara Sanfoneiro, que nas horas vagas tinha um

conjunto musical que tocava nos forrós de pé de

serra na região de Bonfim. Foguista o seu Romeu

Sacristão, quando jovem foi sacristão e ainda

ajudava na igreja.Maquinista o seu João das

Feijoadas, ele e a família todos os domingos

faziam a melhor feijoada sertaneja em Bonfim e

vendiam por porções. Feijoada sertaneja que além

das carnes levava maxixes, pedaços de macaxeira e

pedaços de jerimum.

Embarcou no trem um grupo entusiasmado que

seguia para participar da vaquejada de Salgadália.

Na plataforma a pilha de caixas de cerveja, a

pilha de caixas de refrigerante e as latas com

gelo, o conferente avisou ao bagageiro:

-Carrega...Pra Salgadália.Tem vaquejada...Um

dia as vaquejadas da região de Serrinha serão

famosas...

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Uma carga de ultima hora; caixão de defunto.O

conferente, nervoso, perguntou:

- Para onde vai o caixão?

O homem gordo respondeu:

- É pra um finado falecido tio meu, lá em

Acauã...

- Credo em cruz!...Esse caixão só vai chegar

em Acauã amanhã as cinco da tarde...O finado

defunto já vai tá fedendo...

- Se preocupe não...Meu finado falecido tio

ainda não tá bem morrido, que lá de tempos em

tempo ele revira os olhos da cara...

Zédizefa viu carregar o caixão e foi avisar ao

coroné Nézinho:

- Coroné...O caixão tá no trem...Um de nós vai

chegar nele, lá em Carnaiba...

- Oxente!...Zédizefa cale sua boca...

Trem com nova Maria Fumaça, passageiros

acomodados, alguns ainda no Bar da Estação. O

agente bateu o sino anunciando a partida.

Três horas e cinqüenta minutos o trem chegou

em Agenor de Freitas.

Um viajante comentou:

- Esse lugar é diferente...A estação tem o

nome de Agenor Freitas e a vila tem o nome de

Barrocas...

O velho magro de barba branca falou:

- É três horas...As oito a gente tá em

Bonfim...

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- Tá não...Vai tá no Bonfim às dez e

meia...Que esse pedaço de mundo eu conheço

bem...Eu corto lenha pra Leste e já andei nessas

estações todas desde Serrinha até Bonfim...

O trem parado em Agenor Freitas e os

passageiros começando a ficar inquietos e

curiosos. Opiniões:

- Quebrou a Maria Fumaça...

- Capaz de sê acidente na linha...

A luz do farol, logo o barulho de um trem

vindo do norte. Quando se aproximava da entrada do

recinto de Agenor Freitas já se escutava o som de

musica no ultimo carro. Alguém gritou:

- Tá chegando o Rabo Alegre.

O Rabo Alegre, trem misto com quatro vagões

tanques que tinham carregado água pra populações

da beira da linha, dois vagões carregados com

fibra de sisal, dois vagões com caroços de

mamonas, o ultimo carro, um carro de segunda

classe.

No ultimo carro o chefe de trem; seu Maneco

que no primeiro banco acomodava seu escritório e

sua cozinha; uma caixa de madeira com as roupas e

papéis do trem, noutra caixa, uma panela e um

fogareiro a álcool.

Tocando sanfona o Cego Nanias, tocando viola o

guia de cego, Negrinho Juca. Rebolando, andando e

cantando no corredor a Maria da Leste, uma negra

gorda, e desbocada, que era viajante assídua

daquele trem, vivia de negociar produtos de beleza

e perfumes nos bregas de beira trilhos. Produtos

de beleza franceses legítimos; fabricados em Feira

de Santana.

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Maria Canivete, branquéla, cabelo amarelo.

Outra costumeira naquele trem, ia vendendo pra os

meninos de beira trilhos; pião, bolinhas de gude,

rolos de cordão pra soltar pipa, gibis velhos e

canivetes. Com canivete às vezes ela conseguia

namorar com algum menino que já estivesse se

iniciando nas artes do sexo. O que um menino não

faz por um canivete?

Num dos bancos empilhadas gaiolas de

passarinhos. Canarinhos, bicudos, bico de lacre,

curiós. Tanta zoada que até os passarinhos

cantavam.

Chapéu de palha o Zé dos Jabotis, cigarro

apagado no canto da boca, dançando no corredor com

a Maria Canivete. Zé dos Jabotis ia comprando nas

estações do trecho jabotis que depois ele vendia

na Feira de Itiuba. A carne de jaboti era

apreciada em Itiuba.

Num canto amontoado um casal e doze filhos que

iam para o sul fugindo da seca e todos eles

viajando apenas com uma passagem; coisas do Rabo

Alegre.

Noutro canto um grupo jogando dominó.

Zé Vira Lata, esse ia de feira em feira onde

montava seu jogo: empilhava latas vazias de azeite

e com seis bolas de pano (feitas de meias),

distante dez passos o jogador tinha que derrubar

todas as latas.

Outro costumeiro do Rabo Alegre era o Biluca

Bicheiro que viajava recolhendo apostas do jogo do

bicho.

Apitando o Rabo Alegre parou em Agenor de

Freitas. Vestindo uma camisa vermelha o sujeito

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saltou do ultimo carro e correu até a plataforma

onde encontrou o Homem de Pau Seco.

Debruçado na janela o Zédizefa viu o encontro

e resmungou:

- O Homem do Rabo Alegre, que Mãe Taninha

falou...

O Homem do Pau Seco disse ao Homem do Rabo

Alegre:

- Tava preocupado...Pensei que nós não ia se

encontrá...

- É... O Rabo Alegre nunca anda no horário...E

onde tá a nossa vitima?...Coroné Nézinho...

- Tá na primeira classe... Já lhe mostro

ele...

De Agenor Freitas a Salgadália dezessete

quilômetros.

Salgadália, as barras do dia lá no horizonte.

Perto da estação uma barraca enfeitada de

bandeiras e onde uma sanfona alegrava o ambiente.

Uma faixa branca com letras pretas saudava os que

vinham para a vaquejada.

Muita gente barulhenta desceu do trem.

Descarregadas as bebidas e o gelo.

O dia clareando e o trem NC1 chegando em

Itareru.

Itareru, perto da estação os fogareiros de

carvão e o cheiro de passarinhos assados. Zédizefa

e o Padre de Petrolina foram os primeiros a

comprar espeto de passarinho.

A notícia se espalhou dentro do trem de boca

em boca. O trem tinha que esperar que ajeitassem o

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aparelho de chaves (sistema de troca de linhas) na

saída do recinto.

Os garimpeiros fazendo força com pás e

alavancas para trocar um trilho quebrado. Muitos

passageiros desceram do trem e foram olhar os

homens trabalhar. Zédizefa e o Padre de Petrolina

também foram.

Coroné Nézinho desceu pra espichar as pernas,

caminhando devagar se afastou um pouco do trem, um

cachorro chegou perto dele, cheirou o ar e ficou

ali. Notou que alguém se aproximava, voltou-se e

viu o Homem do Rabo Alegre com dois espetos de

passarinhos assados, ofereceu:

- Coroné aceita um...Aceite...

- Oxe!...Bondade do moço...quero não...

- Eita seu coroné...Aceite que é de bom

grado...

Coroné aceitou, segurou o espeto enquanto o

Homem do Rabo Alegre deu volta falando:

- Eita! Esqueci de dá o dinheiro pro menino...

Coroné Nézinho, olhou o passarinho assado,

sentiu o cheiro, água na boca. Aproximou o espeto

da boca, viu o cachorro olhando com olhar de fome.

Pensou, olhou o passarinho, olhou o cachorro.

Jogou o passarinho pro cachorro. O cachorro mordeu

o passarinho e caiu morto. Nervoso o coroné olhou

pros lados e voltou ligeiro para o trem.

O feitor da turma de conservação de linha,

avisou ao guarda-freio:

- Fala, lá, pro maquinista que já pode

alevantar a pressão...Aqui já tá quase pronto.

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Os passageiros que estavam espalhados no

recinto da estação de Itareru, começaram a voltar

para o trem. Padre de Petrolina e Zédizefa, vinham

voltando ao trem quando a Morena Bonita de

Itareru, que embarcou na segunda classe piscou

para o Zédizefa, que ficou contente,

tímido,indeciso. O Padre o encorajou:

- Vai tirar uma prosa com a menina...Vai...

Era uma das funções do Padre, estimular o

“Crescei e Multiplicai-vos”. Zédizefa foi.

Coroné Nézinho viu o Padre de Petrolina

embarcar sem o Zédizefa e foi perguntar:

- Diga, seu Padre, e Zédizefa?

O Padre sorriu e respondeu:

- Está lá na segunda classe conversando com a

moça mais bonita deste trem...

O trem saiu de Itareru apitando. Os garçons

começaram a servir o café da manhã. Na manhã morna

do sertão o gostoso café preto com pão e ovo

frito.

Coroné conversando com o Farinheiro de Quicé

que contente ia contando:

- Pois seu coroné, desde minino eu tinha a

vontade de ter uma casa de farinha...Meu tio tinha

uma casa de farinha em Bonfim...Só vontade de

minino...Casei bem novo, tinha dezoito anos...E

vim pro Sul...Em Suzano fui trabalhar de ajudante

numa metalúrgica...Fui aprendendo e melhorando de

posição...Soldador, torneiro mecânico...Já tinha

vinte três anos lá em Suzano...Tá com dois anos eu

vim em Quicé vender uma terra que meu falecido pai

deixou...Minha mulher e meu filho não deixou

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não...A gente vem pro Quicé e você monta nossa

casa de ferinha...Com a licença do meu patrão e

ajuda dos colegas de serviço, lá na metalúrgica, a

gente fez as maquinas...Ralador de mandioca,

tacho, prensa...Já botei tudo num vagão de

trem...E agora se Deus permitir vou fazer minha

casa...

Coroné sorriu contente e interrompeu:

- Deus vai ajudar...Que bonito...

O trem viajando entre plantações de sisal,

apitando e chegando a Santa Luz.

Plataforma cheia de gente. Muitos que tinham

saído de um forró.Moças com a maquiagem borrada,

Rapazes com a roupa desalinhada. Uma moça com os

sapatos na mão que os pés estavam cheios de

bolhas.

Próximo a estação muitas tropas de jegues.

Jegues; alguns carregados com fardos de fibra de

sisal para ser carregada em vagões.

No trem alguém comentou:

- Esta região tem uns jegues bonitos...

- Ó si tem...Eu cá tenho um amigo que cria

jegue com muito capricho...

Zédizefa continuava no carro de segunda classe

proseando com a Moça Bonita de Itareru.

Embarcou na segunda classe um poeta, o Poeta

de Cordel de Mafrense. E sem perder tempo

aproveitou para oferecer os seus livros:

- Meu povo, to aqui de novo...

Na plataforma da estação o Homem de Pau Ferro

encontrou o Homem do Rabo Alegre e disse:

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- O plano falhou...O coroné deu o passarinho

prum cachorro...

- Falhou...Eu vou matar ele depois de

Bonfim...Que lá naquelas caatingas eu tenho onde

me esconder...Depois que o trem passar em Bonfim

eu acabo com o coroné Nézinho...

Carga especial para carregar no vagão que uma

metade carregava carga em geral e a outra metade

era pra o transporte de animais: quinze bodes. O

agente avisou ao chefe de trem:

- Carrega os bodes...Hoje tem festa do bode em

Queimadas.

O trem saiu de Santa Luz e o Poeta de Cordel

de Mafrense continuou sua propaganda:

- Pessoal não levem a mal...Sou piauiense,

moro na estação Mafrense...A Leste tem três

estações no Piauí; Paulistana, Acauã e

Mafrense...Eu nasci em Acauã, casei em Paulistana

e moro em Mafrense...Um dia vocês vão lá pra gente

comer uma galinha de angola...Bom eu tenho um

livro muito lido que é; O Diabo no Trem Baiano...

Estação Rio do Peixe. Na plataforma para

embarcar o seu Cabidela. Para carregar quatro

gaiolas cheias de galinha, uma panela e um

fogareiro a carvão. Levava galinhas vivas para

vender na feira de Queimadas. O freguês trazia uma

vasilha, ele degolava a galinha juntava o sangue

na vasilha , depenava a galinha, abria e entregava

o sangue e a ave para o freguês fazer sua Galinha

de Cabidela. Galinha de Cabidela ou galinha ao

molho pardo,prato apreciado no norte de Bahia.

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Além das gaiolas com as galinhas, mais doze

bodes que iam para a festa do bode de queimadas. O

bagageiro do trem reclamou:

- O vagão já tá cheio de bodes...Capaz de não

ter lugar...

Um dos donos dos bodes já gritou:

- Oxente! Dê seu jeito...O meu bode vai...

Conseguiram acomodar as cargas e o trem

continuou sua viagem.

Coroné Nézinho doido pra falar com o Zédizefa

e o dito cujo lá na segunda classe de prosa com a

Morena Bonita de Itareru.

Estação de Queimadas, as bandeiras e a faixa

anunciando a festa do bode. Muita gente

desembarcando.

O Poeta de Cordel de Mafrense aproveitou e

ofereceu:

- Esse meu livro conta uma historia

verdadeira, dessa terra brasileira, um tal

acontecimento, que nunca vai cair no esquecimento.

Povo brasileiro, eu falo de Antonio

Conselheiro...Estação de Queimadas, chegavam às

tropas armadas...Canudos nunca se rendeu...

O agente da estação de Queimadas pegou o

telefone seletivo, que comunicava com o controle

de movimento e todas as estações do trecho e

solicitou:

- Movimento...Queimadas solicita licença para

o NS1 avançar até Jacuricí...

Em Jacuricí duas batidas no sino anunciou que

estava com licença o trem. Na parede da frente da

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estação, a parede voltada para a plataforma, o

sino, o lampião e o quadro de avisos onde estava

escrito; Trem NS1, procedente de Salvador, com

quarenta minutos de atraso.

Na plataforma a moça bonita, enfeitada e

segurando contra o peito o envelope que tinha num

dos cantos desenhado um coração, em outro uma

flor, era uma carta que ia enviar pelo trem para o

namorado em Juazeiro.Carta que começava assim: Meu

amor; estou pegando na pena para dizer...

Perto da estação uma mulher e seus cinco

filhos esperavam o trem no qual vinha uma carta do

marido que estava em São Paulo trabalhando. Carta

que pouco dizia, mas junto vinha o dinheiro para

as despesas do dia a dia.

Reunidos um pouco afastados, pai, mãe e

irmãos, todos tristes,para se despedirem do filho

mais velho que partia para Juazeiro onde iria

trabalhar na Navegação do São Francisco.

O menino que desceu do jegue, amarrou a rédea,

no varal, estava ali esperando o jornal.

Uma dezena de carroças. Carroças típicas do

Nordeste; duas rodas, o eixo, e do eixo dois

suportes verticais nos quais se apóia o lastro,

lastro simples sem guardas.

Grupos de moças faceiras e rapazes barulhentos

que estavam ali para verem o trem.

A família, vários membros, que estava contente

esperando o parente que estava vindo de São Paulo

passar as férias em Jacurici.

O menino com o tabuleiro tapado com o

guardanapo limpinho e que vendia amendoim cozido

na casca.

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O grupo de meninos que jogava bolinha de gude.

A cabra com o sino no pescoço que subiu a

plataforma e passou por entre as pessoas.

Fuçando na beira dos trilhos uma porca e os

seus leitões.

A o longe o barulho do trem. O apito da

locomotiva; e um menino gritou:

- É seu João da Feijoada.

Os meninos de beira trilho conheciam as

locomotivas por seus apitos e conheciam os

maquinistas das locomotivas.

Na entrada sul do recinto, junto aos aparelhos

de mudança de vias, o guarda-chaves, segurando a

bandeira verde, dando entrada ao trem no recinto.

Na plataforma da estação o agente com uniforme

amarelo e quepe vermelho.

Oito horas no relógio do escritório. O trem

NC1 chegando em Jacurici.

Jacurici onde foi carregado o meteorito de

Bendengó para ser levado pra Salvador no ano de

mil oitocentos e oitenta e sete.

Parada de dois minutos, alegria, tristeza, vai

carta, fica carta, desce gente, sobe gente.

Coroné Nézinho preocupado, precisando falar

com o Zédizefa e ele lá na segunda classe de prosa

com a Morena Bonita de Itareru.

Locomotiva bufando na rampa e os camareiros

avisando:

- Chegando em Itiuba...Itiuba...

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Manhã de domingo na cidade dos bons carnavais,

muita gente na estação. Para embarcar uma equipe

de futebol amador e sua fiel torcida..

Zédizefa ficou triste ao se despedir da Morena

Bonita de Itareru que desembarcou.

Coroné Nézinho, regalou os olhos.Não era

possível. Estaria sonhando. Respirou fundo,

tremeu, sorriu. A sua frente, entrando, no carro o

nobre adversário,o Lesbão. Lesbão cabo eleitoral

do partido adversário em Carnaiba do Sertão.

Lesbão carregando uma pasta feita de couro de

bode, sorriu:

- Nobre adversário coroné Nézinho, muitos bons

dias...Uma alegria encontrar o nobre adversário...

Coroné levantou, apertou a mão de Lesbão

dizendo:

- Bom dia a você...Qual o motivo do milagre?

- Pois meu nobre adversário coroné

Nézinho...Ando eu cá em compromissos sociais e

tais...Vim aqui na Itiuba comer uma maxixada com

meus parentes...E agora to indo pro Bonfim, que

hoje tá casando uma prima minha...

- Nobre adversário seu Lesbão tome assento

nesse lugar que é de Zédizefa, cujo dito anda de

papos com raparigas lá segunda classe...

Na plataforma da estação as moças vendendo

artesanato feito com a palha de ticum. O

Soteropolitano Afetado, comprou uma bolsa e já

acertou uma encomenda grande de bolsas e sacolas

para pegar na volta.Iria levar para comercializar

em São Paulo.

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Zédizefa voltou para a primeira classe, o seu

lugar estava ocupado, mas o coroné ordenou:

- Fique por perto...Temos que conversar...

Lesbão remexeu-se e perguntou:

- Com certeza o coroné vai precisar de um mês

para se inteirar das políticas da Bahia?

Olha a malicia da pergunta. Ele que vá

pensando assim. Coroné respondeu:

- Oxe!...Depois que Samuel Morse inventou o

telégrafo, a gente sabe é tudo de tudo que é

canto...Ademais que em São Paulo chega os jornais

do Brasil inteiro... E ainda tive a sorte de nessa

viagem encontrar o deputado JJ... Deputado JJ foi

esperar eu lá no sul da Bahia...

Lesbão coçou a cabeça, tinha provocado a onça

com vara curta. Remexeu na sua pasta e falou:

- Até que to trazendo meu caderninho das

anotações das democracias democráticas...

Eita que até num trem da Leste o Lesbão vem

tirar prova da gente. Mostro pra ele que eu também

to com meu caderninho e em dia:

- Zédizefa, tire de dentro de minha mala a

minha modesta pasta onde estão meus anotamentos

republicanos e democráticos.

O trem saindo de Itiuba, apitando e batendo o

sino, e Zédizefa tirou a pasta da mala. Pasta

bonita de couro envernizado, alças metálicas e

fechos de metal amarelo. De canto de olho o coroné

cuidou o Lesbão que disfarçado olhava para a

janela do carro. Coroné começou remexendo seus

papéis:

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- Oxe!... Minha pasta não tá ajeitada...Tudo

misturado...Um retrato que tirei no Palácio dos

Bandeirantes... Telegrama do governador...Retrato

no Palácio do Catete na capital federal...Eu

viajando de São Paulo pro Rio de Janeiro no trem

Santa Cruz junto com deputados do Rio Grande do

Sul...Oxente!...Aqui tá meu caderninho...

Lesbão respirou aliviado e perguntou:

- Onde começa?

Os dois analisando os seus cadernos e coroné

respondeu:

- A gente pode começar pelos não confirmados.

- Tá bem...Aqui: Zé da Grota Seca, pra nosso

partido ele afirmou e confirmou...

- Oxente, no meu caderno o Zé da Grota Seca

também afirmou e confirmou...Não é democrata...O

nobre adversário concorda?

- Sim senhô...Pra ele só o dever de pagar os

impostos...Não vai te pipa da água, escola pros

meninos, ajuda, de nosso partido, nenhuma...

- E do nosso também...

Os dois discutindo a política do distrito e o

trem chegando na estação de Picos. Os meninos

vendendo imbus.Zédizefa e o Padre de Petrolina

correram a comprar.

A mulher magra alta com uma lata na cabeça e

outra na mão, auxiliada por um menino, oferecia:

- Olha o caxixe...Caxixe bom e barato.

Caxixe, bebida de Picos; feita com o caroço do

imbu mais ouricouri, moídos e misturados com

farinha e cozidos com água.

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De Picos a Quicé dezoito quilômetros. Da

janela do carro o Farinheiro de Quicé avistou o

prédio novinho e pintado de branco, que a mulher e

o filho tinham construído e onde ele iria

construir seu sonho e seu futuro.

Quicé o grupo de jogadores de um time de

futebol amador embarcou para ir até Cariacá.

Estação Cariacá, na plataforma alguns sacos

com maxixes para serem carregados.

A o lado dos trilhos um grupo de meninos

jogavam bola com uma bola de meia. Bola de meia;

enchia uma meia, velha, com pedaços de pano.

O NC1 se aproximava de Bonfim e os camareiros

avisando:

- Vai chegar em Bonfim... Bonfim, baldeação

para o Trem da Grota... Passageiros para

Pindobassú, Campo Formoso, Jacobina, Miguel Calmon

e Barra...Vai chegar em Senhor do Bonfim...

A carga humana se agitou. Mais uma etapa

vencida. O trem apitando e batendo o sino encostou

na plataforma de Bonfim.

Plataforma cheia de gente. Carregadores e

camareiros ajudando e informando.

Lesbão se despediu do coroné Nézinho e se

afastou dizendo:

- É coroné...Setenta por cento dos eleitores

do distrito são do meu partido...

Escutar isso dentro de um trem da Leste.

Precisava agilizar as democracias de Carnaiba do

Sertão. Antes tinha que falar com o Zédizefa:

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- Seu Zédizefa, diga o que falou Mãe Taninha

de Maro Maro...

- Ela falou... Um de vocês...

- Eita! Deixe os primeiramentes e vá pros

finalmentes...

- O perigo é o homem do rabo alegre...O

passarinho no pau, aceite disfarce e dê pro

cachorro...Conte ao homem dos sete “P”...No fim do

caminho bote em meu nome uma...

- Pode parar...Quem é o homem dos sete “P”?

- Eiii! Sei não...

- Pois dê seu jeito e descubra...

Coroné falou com tal firmeza que Zédizefa saiu

tonto, desceu do carro e zanzou pela plataforma

entre os viajantes. Parou perto do Poeta de Cordel

de Mafrense, avistou parado perto do trem o

Pistoleiro de Paulistana, bateu no braço do Poeta

e apontou o Pistoleiro dizendo:

- Aquele, ali, é seu conterrâneo...É de

Paulistana...

O Poeta sorriu e falou:

- To sabendo...Vou fazer um poema pra

ele...Perigoso Pistoleiro Parte da Paulicéia Para

Paulistana no Piauí...

Zédizefa repetiu e contou os “Ps”:

- Perigoso Pistoleiro Parte da Paulicéia Para

Paulistana no Piauí...

Correu ao encontro do coroné e afobado falou:

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- Já sei é o Pistoleiro de Paulistana no

Piauí...Conte os “P”... Perigoso Pistoleiro Parte

da Paulicéia Para Paulistana no Piauí...

Coroné ficou contente e perguntou:

- Oxe!...Sete P...Quem contou a você?

Faceiro Zédizefa bateu no peito:

- Coroné...Eu sou um homem inteligente...

Sabendo quem era o dito Sete P o coroné

obedeceu ao estomago e apressou o Zédizefa:

- Bora comer um almoço, que o trem só para

meia hora.

No Restaurante perto da estação o almoço:

carne de sol frita, feijão verde, farofa,

vinagrete e a garrafa com manteiga.

A locomotiva desengatada do trem e o

maquinista seu João da Feijoada puxou o regulador

de vapor e marchou rápido para o depósito. Viagem

feita ele estava apressado para ir pra casa onde

ele sabia já tinha a fila de fregueses com as

panelas na mão para levarem a melhor feijoada de

Senhor do Bonfim.

Em Senhor do Bonfim o trem trocou de

locomotiva e equipagem. Equipe do depósito de

Juazeiro. Maquinista e foguista, dupla antiga e

muito amiga, porém, opostos na paixão pelo

futebol. Maquinista seu Zico do Veneza e o

foguista seu Beto do Olaria. Olaria e Veneza duas

equipes do futebol amador de Juazeiro da Bahia.

Chefe do trem o seu Noé da Cacumbu. Cacumbu escola

de samba do carnaval juazeirense.

Em Bonfim o trem trocou de prefixo e passou a

ser o PC3.

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Também encostado na plataforma o trem de

prefixo MCS5, o Trem da Grota.

Andando de ponta a ponta da plataforma,

cachimbo no canto da boca, bengala cabo de prata;

o senhor Juiz de Jacobina.

Caminhando ligeiro, arrastando as alpercatas,

batina desbotada o velho padre de Saúde.

Carregando os seus instrumentos os componentes

da bandinha dos “calças curtas” de Miguel Calmon

O grupo barulhento de ferroviários,

funcionários da Oficina da Leste na estação

França,jogadores de handebol.

Um dos camareiros do Trem da Grota contou para

um passageiro:

- É um jogo que um engenheiro das oficinas

andou trazendo do estrangeiro...Jogam lá em França

e no Calmon...Vieram, aqui no Bonfim, mostrar o

dito...É um futebol jogado com as mãos...

- Falando em jogo...O que aconteceu com esse

trem no domingo passado?...Lá em Ibiraúna...

- Foi uma briga por causa de negócio de

futebol...O trem parou em Ibiraúna pra janta e um

grupo de jogadores de futebol que ia de Jacobina

para Miguel Calmon, brigou com o dono de uma

barraca de comida...

Dentro do Trem da Grota o homem de Pau Seco,

debruçado na janela conversando com o Homem do

Rabo Alegre, que estava na plataforma da estação e

dizia:

- Pode ir descansado, logo ai eu já dou o

jeito no coroné...

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- Você pode tomar o rumo do Pau Seco...Lá você

pode ficar amoitado um tempo...

- Eu to com o pensamento de pular pro outro

lado do São Francisco...Se precisar eu vou pro Pau

Seco, lá tem muita moça bonita?

- Si tem...E tem forró de levantá pó...Sabe o

que é forró do levanta pó?...Lá no Pau Seco a

gente baixa bem a luz do lampião e fica bem

escurinho que é pra dançar agarradinho...

- Na estação da Massaroca esse trem faz o

cruzamento com o trem que vem do Juazeiro...E lá

que é bom de dá o jeito no coroné, sabe? O povo tá

distraído com o movimento e dá pra gente se

escafedê no meio da caatinga.

Agitou-se a plataforma da estação, aproximando

se o momento de sair o Trem da Grota. A negra

gorda sorridente,pés descalços, bolsa com uma alça

rebentada, perguntando:

- Qual é o da Grota?

Era a Raizera de Paiaia, vendia raízes

medicinais na feira. A caatinga é pobre em folhas

mas é rica em raízes.Era mulher muito simples mas

tinha muito prestigio pois era uma grande

rezadeira de reza de fechar corpo. Muito coronel

do sertão, muito político, até gente da policia

procurava ela lá no povoado do Paiaia pra ela

fazer a tal reza. Uma reza difícil feita na hora

de meio dia no meio de umas grandes moitas de

mandacaru. E todas as semanas ela trazia raízes

para vender em Bonfim, só assim ela viajava de

trem e comia no carro restaurante e repetia:

- Bife, batata frita, ovo frito, farofa e

vinagrete, isso é que é comida de gente.

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O Enfermeiro de Barbacena desesperado de um

lado a outro procurando o Cangaceiro Doido de

Juacema. Finalmente o encontrou sentado num carro

de segunda classe do Trem da Grota falando:

- Vamos pra Jacobina que a Coluna Prestes já

tá em Miguel Calmon...Prestes tá jogando dominó

com o prefeito...

Correria no último minuto; os feiristas das

estações da Linha da Grota que aos fins de semana

vendiam na feira de Bonfim. Gente que era freguês

da Leste e conhecia as maneiras de despachar

mercadorias. Despacha com guia vermelha; ou seja a

mercadoria era pesada lá no destino onde o frete

também seria pago. Ao conferente da origem bastava

apenas descrever na guia os volumes.

Seu Zézinho das Ovelhas de Acuri, com suas

caixas limpinhas de carregar a carne de ovelha.

Era um sonhador,um lutador que teimava em criar

ovelhas na caatinga no povoado de Acuri. Trazia as

carnes e peles pra vender em Bonfim. E como os

trens que vinham de Barra para o Bonfim faziam o

ponto de almoço no Acuri, lá ele vendia

churrasquinho de ovelha.

Seu Bicudo das Taiobas, com suas caixas onde

levava, cará, folha de taioba, maxixe, folha de

bredo e vinagreira. Esse ainda levava o que não

conseguiu vender na feira de Bonfim para vender na

feira de Pindobassu.

Com suas latas de carregar requeijão o Juca do

Requeijão de Caém, como sempre muito falante e

dizendo para o bagageiro do trem:

- Requeijão do Caém o melhor da

região...Requeijão do Caém, melhor não

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tem!...Domingo que vem quem não vem é eu, domingo

tem corrida de jegues no Caém...

Na calçada da estação o limpo tabuleiro da

Baiana do Acarajé; e Zédizefa encostou pedindo um

enquanto o coroné resmungava:

- Eita! O diabo recém almoçou...

O homem cego, que estava parado perto do

tabuleiro da baiana, bateu com a bengala na perna

do coroné, que se voltou ligeiro. O cego

disfarçadamente levantou os óculos e o coroné

exclamou:

- Eita! Agora você virou cego!

- Coroné Nézinho...To é disfarçando...A

polícia de Bonfim, tá é todinha querendo o meu

pescoço...

- Eita!...Você vai na Micareta de Jacobina e

arranja confusão, vai na Jecada de Miguel Calmon e

arranja encrenca, vem no São João de Bonfim e

arranja briga...Já fez a paz com o delegado de

Saúde?

- Nunquinha... Não quero conversa com aquele

chifrudo... Sabe que o prefeito de Saúde tá

botando chifres nele?

- Você toma cuidado...

- Coroné! Eu vi na Micareta de Jacobina, o

prefeito de Saúde brincando com a mulher do

delegado...

- Tome cuidado...

- Todo o povo viu...Depois eles estavam no Bar

da Leste,na estação de Jacobina, bebendo cerveja e

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comendo bode assado...Mas coroné, trocando de

conversa, o senhor não tá querendo o meu serviço?

Coroné pensou,respondeu:

- Não.

- Coroné! O senhor dentro desse trem, tá é

correndo perigo...O senhor querendo eu vou junto

com o senhor até Carnaíba...

Coroné olhou o homem montado num jegue e

levando a cabresto seis jegues transportando

tarros de leite, exclamou:

- Eita, que Bonfim é bom de produzir leite...

Aqui é bom de chuva... Ruim de chuva é o

Juazeiro...Não carece de você ir mais eu...

- O coroné é quem sabe...To aqui, é só subir

nesse trem...

- Eu to viajando com a proteção de São

Gonçalo...

- Olha coroné... Em política e jogo o São

Gonçalo enfia a viola no saco...

- Olha...Eu vou precisar de você...Serviço

limpo, serviço de cristão...Agora na eleição a

gente vai trabalhar pra botar um deputado federal

aqui da região...Eu quero você pra ser meu guia

nesse pedaço de mundo que vai daqui do Bonfim até

Peritiba, nessa beira de trilhos...

- Coroné...Tem um porém...Eu já to de

compromisso com um candidato a deputado

estadual...Moço de família organizada; tem um

filho oficial da Policia Militar, tem um filho que

é Juiz de Direito, tem um primo que é padre e é lá

da Diocese de Salvador, outro primo é coronel do

Exército...Mas é gente do seu partido...

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- Gente de Jacobina?

- Gente de minha terra...Calça Curta...Gente

de Miguel Calmon...

- Eita, você é de Calmon?!

- Sou...Sou calça curta... O senhor pode

contar comigo...

- Pois de hoje a um mês, você venha pra

Carnaíba, que daí a gente já vai começar os

primeiramentes...

- Coroné eu to querendo uma ajuda...

- Pois diga...

- Eu quero uma passagem no Trem da Grota pra

Jacobina...Eu to é sem dinheiro...

- Vamos lá que já compro uma passagem pra

você...

- E coroné... Um dinheirinho pra eu comer na

viagem...O trem para pro almoço na estação de

Fumaça e lá tem um bode frito com vinagrete e

farofa...

- Eita! Você e Zédizefa só pensam em comida...

Um grupo de índias pataxós da estação Missão,

pés descalços, fumando e vendendo artesanato na

plataforma enquanto um camareiro batia palmas de

mãos e avisava:

- Embarca que o trem já vai...

Confusão num dos carros de segunda classe; o

Galista de Itacurubi querendo levar um galo de

rinha dentro do carro e o camareiro dizendo que o

galo viajaria no carro de bagagens.

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A Jocosa de Jacobina se acomodou no banco e

disse para a Formosa de Campo Formoso:

- Menina, já nessa hora os nossos amigos tão

lá em Jacobina no Bar da Leste, o bar da estação,

bebendo e preparando pra fazer uma serenata quando

a gente descer desse trem.

- Que horas esse trem chega lá?

- Quatro e meia...Daqui de Bonfim até Jacobina

são seis horas de viagem.

Dez horas e cinqüenta minutos o Trem da Grota

saiu da plataforma de Bonfim com licença para

avançar até a estação de Missão.

Preparar para partir o trem de Juazeiro. Um

grupo de homens vestidos de vaqueiro, grupo

barulhento, embarcando, seguiam para a Corrida dos

Vaqueiros de Carrapichel.

Onze horas o trem saiu de Senhor do Bonfim,

apitando e batendo o sino.

Coroné Nézinho sentou contente e o Zédizefa

bateu no ombro dele avisando:

- Coroné...O senhor tem que falá com o Sete

P...

- Eita, Zédizefa...Tava até esquecido...Onde

tá o dito Sete P ?

Zédizefa apontou falando:

- Logo ali...

Coroné Nézinho levantou e foi conversar com o

Pistoleiro de Paulistana. Pediu licença, sentou ao

lado do Pistoleiro e contou:

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- Eita!...Moço acredita que eu tenho uma

história...Naquela estação que trem parou pros

garimpeiros ajeitá o trilho...Ali onde vendem

passarinhos no espeto...

- Sei...Itareru...

- Parece que é esse nome...A gente já passou é

mais de cem estações...

- Mais de duzentas coroné... Continua...

- Pois um sujeito deu pra eu um

passarinho...Dei o passarinho pro cachorro...O

cachorro mordeu e morreu...Se mordo eu, morro

eu...

- Eh!...Coroné! Esse sujeito tá no trem?

Coroné apontou e respondeu:

- O cabra de camisa vermelha, ali na ponta do

carro.

Pistoleiro de Paulistana olhou bem para o

Homem do Rabo Alegre e depois falou ao coroné:

- Tá bem...Viaje com cuidado.

Coroné voltou para seu lugar e o Pistoleiro de

Paulistana, tirou lápis e papel do bolso; começou

a redigir um telegrama.

O trem chegando na estação de Carrapichel,

muita gente na volta da estação. Dia de festa em

Carrapichel; corrida de vaqueiros. A pista de

corrida embandeirada. Corrida de cavalos com

vários participantes na corrida.

O Pistoleiro de Paulistana desceu e ligeiro

foi ao escritório da estação solicitar:

- Quero passar um telegrama urgente...

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O trem chegando na estação Catuni. Chamou a

atenção dos passageiros, o grupo de cavaleiros que

estavam perto da estação em fila de duas colunas.

O cavaleiro da frente segurando a imagem de São

Gonçalo. Procissão montada de São Gonçalo.

O Homem do Rabo Alegre levantou e foi para o

WC. Trancou a porta, pegou o revolver e conferiu

as balas. Aproximava-se a hora de liquidar com o

coroné.

Meio dia e quinze, vários urubus voando em

círculos acima da vila de Jaguarari. O trem

chegando e soltando fumaça que subia na vertical.

Na plataforma o senhor subdelegado, revolver

na cintura, acompanhado de dois ajudantes;

vestidos de gibão de couro, cintos, com

cartucheiras, cruzados no peito, na cintura

revolver e punhal, atravessado nas costas o fuzil.

O trem parou em Jaguarari o Pistoleiro de

Paulistana desceu e correu ao encontro do

subdelegado a quem mostrou uma carteira, falsa, de

policial especial de Minas Gerais.

Pistoleiro, subdelegado e os dois ajudantes

subiram no trem e no carro de primeira classe

apontou o Homem do Rabo Alegre dizendo:

- É ele...

Do bolso tirou um papel e entregou ao

subdelegado no mesmo momento que os dois

auxiliares do subdelegado seguravam o Homem do

Rabo Alegre, falou:

- A folha corrida do sujeito...

Desembarcaram o Homem do Rabo Alegre, e junto

o Pistoleiro e o subdelegado. O Pistoleiro falou:

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- Delegado, o senhor é um homem muito

conhecedor, mas eu vou avisar...Esse aí é cabra

que gosta de reagir à prisão... E esse vai

reagir...

Subdelegado, sorriu, apontou os urubus e

falou:

- Os bichinhos também precisam comer...Com

certeza, ele vai reagir...

No calor do Sertão do Médio São Francisco,

muita gente na estação de Juacema. Irmãos, primos,

esposa, filhos, netos, genros, noras, enfim os

parentes que esperavam ansiosos. A esposa mostrava

o papel:

- Aqui o telegrama...Telegrama do hospital de

Barbacena...Barbacena nas Minas Gerais, dizendo

que ele tá curado...Não é mais doido.

Doido de medo ia o Enfermeiro de Barbacena à

medida que o trem se aproximava de Juacema.

Doze horas e quarenta minutos o trem parou na

estação de Juacema. Parentes curiosos viram o

parente chegar à plataforma do carro, erguer o

braço e gritar:

- Fico contente de vê vocês, mas já quero

sabê...Quem foi que mandou eu lá praquele hospício

de doidos?...

Treze horas e vinte minutos o trem encostou na

pequena estação Flamengo. A moça vendendo quebra-

queixo e o Padre de Petrolina comprou antes que o

Zédizefa.

O Fluminense do Flamengo se despediu do coroné

e pulou contente para o chão onde nasceu,

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Treze e cinqüenta e cinco o trem encostou na

estação do povoado de Barrinha.Embarcou o casal

que vendia café no copo e beiju:

- Pode tomar descansado, depois a gente pega o

copo...A gente vai nesse trem até a Massaroca e

volta no outro...Tem beiju com recheio doce e tem

beiju com recheio salgado...

Quatorze horas e trinta minutos os dois trens

chegando em Massaroca. Os meninos vendendo imbus.

O cheiro de bode assado. Perto dos trilhos o

carrinho de churrasquinho de bode, churrasquinho

passado no vinagrete e enrolado na farofa.

Movimento na estação.

Quinze horas e quinze minutos encostou na

estação da vila de Juremal. Zédizefa avistou um

grupo de conhecidos e correu pra descer.

Coroné Nézinho avistou o velho Manoel Benzedor

e chamou pra ele chegar perto da janela:

- Boas tardes seu Nézinho...

- Amem...Seu Manoel pra semana to vindo aqui

no Juremal, pra mode do senhor reforçar minha

benzedura de corpo fechado...

O trem continuou, Zédizefa embarcou contente:

- Coroné, já no domingo que vem, vai é tê a

festa do bumba meu boi...I eu venho...

- Eita!...Você só pensa em festa e comer.

E camareiro avisando:

- A próxima estação é Carnaíba do Sertão...

De pé recostado na janela, Zédizefa tremia de

alegria, chegavam em Carnaíba.

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Às dezesseis horas o trem parou na estação da

vila de Carnaíba.

Depois de cento e dez horas de viagem e rodar

por cima de trilhos três mil e quarenta

quilômetros o Coroné Nézinho tava de volta no seu

chão.

O trem continuou,os camareiros avisando:

- A próxima é Juazeiro...Juazeiro da Bahia.

O Pistoleiro de Paulistana, levantou,

espreguiçou resmungou:

- Terra quente que braseiro, é o Juazeiro, a

gente chega e sente o que qué, o cheiro bom de

mulhé... Chego no Juazeiro como uma moqueca de

surubim...As melhores cozinheiras do mundo não são

melhores que as de Juazeiro...Vou passar a noite

num brega...Amanhã é todo o dia num trem pra

chegar em Paulistana...

Ainda na estação de Carnaíba o Zédizefa

segurando as malas falou pro coroné:

- Eita...Mãe Taninha de Santo Amaro se

enganou...Ela falou que um ia chegar no caixão...

- Zédizefa...Movimente-se...Você vai dá o

jeito de fazer a oferenda...Ei não gostou da

história, vá reclamar lá em Santo Amaro...Maro

Maro.

FIM.

19 de maio de 2012- Capão Seco- Rio Grande- RS.