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Departamento de Direito O DEVER DE DILIGÊNCIA DOS ADMINISTRADORES DE SOCIEDADE ANÔNIMA Aluno: Gabriel Carvalho Orientadora: Profª Norma Jonssen Parente Colaboradores: Nathalia P. Bogéa da Costa Renata M. R. Pacheco Fernandes, Victor da Silveira Vieira e Luiz Felipe da Silva França 1) Apresentação 1.1) Introdução Trata-se de um grupo de estudos com objetivo de analisar o dever de diligência dos administradores à luz da Lei das Sociedades Anônimas (“LSA”). Neste sentido, buscamos, inicialmente, nos aprofundar sobre os contornos de tal dever delineados pelas doutrinas americana e brasileira, e posteriormente, confrontamos os entendimentos doutrinários com casos emblemáticos, tanto do ordenamento pátrio, quanto do americano. Assim, a partir da análise de casos da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), bem como da jurisprudência americana, conseguimos concluir quando este dever deve ou não ser aplicado. 1.1) Objetivos Com este estudo, buscamos limitar a abrangência do conceito estudado, a partir da análise de deveres derivados, casos concretos e da doutrina. Assim, delimitamos os entendimentos doutrinários acerca do dever de diligência; confrontamos estes entendimentos com casos emblemáticos da jurisprudência americana e da CVM; e propusemos uma nova perspectiva da aplicação prática do mencionado instituto, com o objetivo de garantir maior segurança jurídica. 1.2) Metodologia O referido estudo foi realizado em reuniões semanais, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sendo subdividido em quatro principais etapas, quais sejam: (i) pesquisa jurisprudencial de todos os casos que versam sobre o tema, julgados pela CVM; (ii) pesquisa jurisprudencial de alguns leading cases julgados no ordenamento americano; (iii) análise e compilação das principais doutrinas, tanto americanas quanto brasileiras; (iv) consolidação dos entendimentos pesquisados com as decisões mais relevantes, e elaboração de uma nova perspectiva para a aplicação prática do mencionado dever. De acordo com o que pretendíamos, iniciamos nossos estudos com a pesquisa de todos os casos julgados pela CVM desde o ano de 1978. Assim, a cada 10 anos, a pesquisa ficava sob responsabilidade de um dos alunos do grupo, que separava os casos que tratavam do artigo 153 e correlatos, da Lei nº 6.404/76 (“LSA.”). Assim, a cada reunião, os alunos traziam e apresentavam um breve resumo dos casos, destacando os pontos mais relevantes, tais como discrepância de julgamentos, penalidade aplicada, violação direta ou indireta do artigo 153 da LSA, dentre outros, que permitiam debates e explicações, resultando em um estudo prático completo. Em seguida, cada integrante do grupo selecionou um caso americano que tratasse do tema estudado e cuja análise permitisse maior aprofundamento do assunto. Assim, apresentamos os casos e, mais uma vez, discutimos o tema, buscando entender os pontos de divergência entre a análise americana e brasileira sobre o assunto.

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O DEVER DE DILIGÊNCIA DOS ADMINISTRADORES DE SOCIEDADE ANÔNIMA

Aluno: Gabriel CarvalhoOrientadora: Profª Norma Jonssen ParenteColaboradores: Nathalia P. Bogéa da Costa

Renata M. R. Pacheco Fernandes, Victor da Silveira Vieira e Luiz Felipe da Silva França

1) Apresentação

1.1) Introdução

Trata-se de um grupo de estudos com objetivo de analisar o dever de diligência dos administradores à luz da Lei das Sociedades Anônimas (“LSA”). Neste sentido, buscamos, inicialmente, nos aprofundar sobre os contornos de tal dever delineados pelas doutrinas americana e brasileira, e posteriormente, confrontamos os entendimentos doutrinários com casos emblemáticos, tanto do ordenamento pátrio, quanto do americano. Assim, a partir da análise de casos da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), bem como da jurisprudência americana, conseguimos concluir quando este dever deve ou não ser aplicado.

1.1) Objetivos

Com este estudo, buscamos limitar a abrangência do conceito estudado, a partir da análise de deveres derivados, casos concretos e da doutrina. Assim, delimitamos os entendimentos doutrinários acerca do dever de diligência; confrontamos estes entendimentos com casos emblemáticos da jurisprudência americana e da CVM; e propusemos uma nova perspectiva da aplicação prática do mencionado instituto, com o objetivo de garantir maior segurança jurídica.

1.2) MetodologiaO referido estudo foi realizado em reuniões semanais, na Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro, sendo subdividido em quatro principais etapas, quais sejam: (i) pesquisa jurisprudencial de todos os casos que versam sobre o tema, julgados pela CVM; (ii) pesquisa jurisprudencial de alguns leading cases julgados no ordenamento americano; (iii) análise e compilação das principais doutrinas, tanto americanas quanto brasileiras; (iv) consolidação dos entendimentos pesquisados com as decisões mais relevantes, e elaboração de uma nova perspectiva para a aplicação prática do mencionado dever.

De acordo com o que pretendíamos, iniciamos nossos estudos com a pesquisa de todos os casos julgados pela CVM desde o ano de 1978. Assim, a cada 10 anos, a pesquisa ficava sob responsabilidade de um dos alunos do grupo, que separava os casos que tratavam do artigo 153 e correlatos, da Lei nº 6.404/76 (“LSA.”). Assim, a cada reunião, os alunos traziam e apresentavam um breve resumo dos casos, destacando os pontos mais relevantes, tais como discrepância de julgamentos, penalidade aplicada, violação direta ou indireta do artigo 153 da LSA, dentre outros, que permitiam debates e explicações, resultando em um estudo prático completo.

Em seguida, cada integrante do grupo selecionou um caso americano que tratasse do tema estudado e cuja análise permitisse maior aprofundamento do assunto. Assim, apresentamos os casos e, mais uma vez, discutimos o tema, buscando entender os pontos de divergência entre a análise americana e brasileira sobre o assunto.

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Ressalta-se que a escolha do ordenamento americano, para complementar nosso trabalho, está diretamente ligada à grande influência que àquele ordenamento tem no direito brasileiro, principalmente no que se refere ao direito das companhias.

Após tal etapa, buscamos compilar, ler e selecionar as principais teses e entendimentos que a doutrina brasileira abarca e o entendimento americano acerca da business judgment rule, assim, foram analisadas as obras brasileiras que versam sobre o tema, ainda que indiretamente, com a finalidade de extrair os pontos em comum, e debater os pontos divergentes. Através da leitura de livros e artigos que tratavam do assunto, conseguimos unificar e concatenar todo o conhecimento que havia sido adquirido nas etapas anteriores, através da exposição de forma a apresentar o posicionamento de cada autor, quando divergentes, e o entendimento comum, quando pacificado.

Por fim, após todo o trabalho conjunto realizado pelo grupo do PIBIC, conseguimos concluir e relacionar os entendimentos pesquisados, as decisões mais relevantes, afim de elaborarmos uma nova perspectiva para a aplicação prática do mencionado dever.

2) Considerações acerca do dever de diligência

2.1) Origem do Dever de Diligência

O conceito de dever de diligência, hoje utilizado no Brasil, advém, originariamente, dos princípios do direito romano e, posteriormente, foi positivado pela legislação brasileira pelo artigo 142 do Código Comercial de 1850 e artigo 116, §7º do Decreto-Lei nº 2.627 de 1940[1]

seguindo padrões e orientações já contidos em ordenamentos estrangeiros, os quais buscavam estabelecer padrões de comportamento a serem seguidos pelos administradores quando do exercício de suas funções.

Atualmente, o dever de diligência dos administradores das sociedades anônimas se encontra expressamente previsto no artigo 153 da LSA2, mantendo quase que na íntegra a redação do diploma anterior de 1940, suprimindo apenas as referências que tal artigo fazia ao interesse da empresa e ao bem público, princípio este que se encontra agora no artigo 154 da LSA. Porém, como ressalta Modesto Carvalhosa, acrescentou-se ao diploma em vigência o termo “cuidado”, ao indicar a influência do Standard of care for directors, encontrado em inúmeras leis societárias norte-americanas.

Nesse sentido, é possível observar que a própria Exposição de Motivos nº 196 da LSA, no que se refere à seção IV – sessão destinada aos deveres e responsabilidades dos administradores – do Capítulo XII da Lei, afirma que:

as normas desses artigos são, em sua maior parte, meros desdobramentos e exemplificações do padrão de comportamento dos administradores definido pela lei em vigor - o do "homem ativo e probo na administração dos seus próprios negócios" (§7º do art. 116 do Decreto-lei nº 2.627) e, em substância, são as que vigoram, há muito tempo, nas legislações de outros povos (...)[3].

2.2) Conceito

O dever de diligência, previsto no artigo 153 da LSA, pode ser tido como o alicerce dos demais deveres fiduciários atinentes aos administradores das sociedades anônimas.

1 “Art. 116, §7º. Os Diretores deverão empregar, no exercício de suas funções, tanto no interesse da empresa como no do bem público, a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.”2 “Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.”3 Exposição de Motivos da Lei nº 6.404/76. www.cvm.gov.br – acesso 20/05/2012.

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De acordo com o referido dispositivo, “o administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”.

Assim, nota-se que o legislador optou por um conceito amplo e genérico, ao invés de exaurir ou exemplificar aquelas condutas que violariam o dever de diligência. Como ensina Luiz Antonio de Sampaio Campos,

a dificuldade [de elaborar-se um rol taxativo] estaria no fato de que qualquer modelo que se desenhasse nesse terreno fatalmente apresentar-se-ia muito rígido para determinadas situações e demasiadamente simples para outras, pois precisaria ser aplicado a todos os tipos de companhia (...)[4].

Como tratado no item anterior, percebe-se que o legislador, ao utilizar a expressão “homem ativo e probo”, consagrou o modelo do bonus pater familias, oriundo do Direito Romano. Tal modelo, contudo, não escapa de críticas advindas da doutrina pátria.

A primeira delas consiste no entendimento de que não seria razoável a adoção da figura do bom pai de família no que diz respeito às condutas dos administradores de companhias.

Sendo, geralmente, uma pessoa de caráter conservador, cujo objetivo não é, primordialmente, a expansão de um negócio, mas a preservação da entidade familiar, a figura do bom pai de família não poderia ser parâmetro para a caracterização do modelo deadministrador, que, por outro lado, almeja receber lucros, estabelecer metas e o bom rendimento dos negócios da companhia[5].

A segunda crítica, por sua vez, reside no fato de “o legislador [ter] desconsiderado as exigências de competência, formação teórica e experiência profissional exigidas atualmente de todo administrador de empresa[6]”. Isto é, o padrão do homem probo não seria o ideal para garantir a gestão mais adequada de uma companhia, eis que o mesmo não foge da normalidade.

Corroborando esse entendimento, Renato Ventura Ribeiro enuncia que “a gestão do bonus pater familias é mais conservadora e inversora do patrimônio, visa mais a prudência do que a informação e impede tratar o patrimônio com uma visão empresarial”[7].

Por outro lado, a gestão de negócios exige caráter profissional e especialização por parte do administrador; a atividade por ele exercida seria “um plus acrescido à figura do bonus pater familias, diante da especificidade do mundo negocial”[8].

Dito isso, desenvolver-se-á o dever de diligência a partir dos subdeveres que o compõe, em conjunto com uma análise jurisprudencial de casos emblemáticos selecionados.

2.3) Dever de se informar

Basicamente, o dever de se informar consiste na obrigação dos dirigentes em buscar informações quando da tomada de uma decisão negocial. Eles, na gerência da sociedade,

4 CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 1098.5 Sobre isso, ver: PARENTE, Flávia. O dever de diligência dos administradores de sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. págs. 43 e 44; e CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 1101.6 ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Responsabilidade Civil dos Administradores de S/A e as Ações Correlatas. São Paulo: Saraiva, 2009. pag. 123.7 RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de diligência dos administradores de sociedades. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2006. pág. 214.8 Ob. Cit. pag. 215.

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devem “apreciar criticamente essas informações, analisando os possíveis impactos do que lhes foi relatado sobre os negócios sociais”[9].

Trata-se, assim, do dever que tem o administrador de estudar sobre as operações da empresa de um modo geral, colhendo as devidas informações para que seja capaz de tomar uma decisão diligente[10].

Neste sentido, Renato Ventura Ribeiro reforça que “o dever de diligencia exige que o administrador deva estar munido das informações necessárias (...), em especial, aquelas relevantes e razoavelmente disponíveis”[11].

Cabe ressaltar, ainda, observação de Luiz Antonio Sampaio Campos quanto às informações verdadeiramente necessárias aos administradores, as quais devem ser examinadas “casuisticamente, à luz das circunstâncias específicas, não se devendo, inclusive, afastar o caráter subjetivo, no sentido de que quem deve, em princípio, [julgá-las] é o próprio administrador (...)”[12].

2.3.1) Aplicação do conceito no caso concreto: PAS CVM nº 04/99 - Caso Bombril

Inicialmente, convém destacar o organograma do Grupo Cragnotti, antes da realização das operações que ocasionaram a instalação de Inquérito Administrativo, e consequente Processo Administrativo Sancionador, pela CVM.

Antes da realização das operações: Depois da aquisição em 24.07.1997:

Em 24.07.1997, a Bombril S.A. adquiriu da Cragnotti & Partners Capital Investment Brasil S.A., por US$ 380 milhões, 100% do capital da Sagrit S.p.A., depois denominada Cirio Holding S.p.A. (“Cirio Holding”), que controlava a empresa italiana Cirio S.p.A. Sendo que

9 PARENTE, Flávia. O dever de diligência dos administradores de sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pág. 116.10 CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 1106.11 RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de diligência dos administradores de sociedades. São Paulo: QuartierLatin do Brasil, 2006. pág. 226 e 22712 CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 1107.

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essas empresas eram todas controladas pela Cragnotti & Partners Capital Investment S.A. com sede no Principado de Luxemburgo.

Destaca-se que a compra se deu, em sua maior parte, com recursos captados em aumento de capital por subscrição pública aprovada pela CVM no valor de R$ 338 (trezentos e trinta e oito) milhões e do próprio caixa.

Em 31.12.1998, a Bombril-Cirio S.A. (“Bombril-Cirio” ou “Bombril”), nova denominação da Bombril S.A., alegando aumento do custo de captação de recursos no exterior, verificado após duas crises financeiras internacionais, revendeu para o acionista controlador, a Bombril-Cirio International S.A. (“Bombril-Cirio Internacional”), nova denominação da Cragnotti & Partners Capital Investment S.A., a Cirio Holding pelo mesmo valor de US$ 380 (trezentos e oitenta) milhões a prazo.

Depois da venda em 31.12.1998

A operação foi aprovada pelo Conselho de Administração, em reunião realizada em 14.12.1998, o qual sugeriu à diretoria a contratação de um banco ou empresa de negócios para emissão de outro laudo sobre a alienação pretendida, além do elaborado pela Option Serviços Financeiros. Participaram da reunião: Sergio Cragnotti na qualidade de Presidente do Conselho, e outros administradores, entre eles, Fernando dos Santos Ferreira, o qual se absteve de votar.

Em reunião realizada em 05.01.1999, o Conselho de Administração aprovou o aumento de capital da Bombril Overseas Inc. (subsidiária integral da Bombril S.A.) e consequente subscrição pela Bombril-Cirio, no valor de US$ 342 (trezentos e quarenta e dois) milhões a ser integralizada pela Bombril-Cirio International com os créditos decorrentes da venda da Cirio Holding. Participaram da reunião: Sergio Cragnotti, na qualidade de Presidente do Conselho e outros administradores.

A venda pela Bombril da Cirio Holding traduziu-se em uma surpresa para os acionistas minoritários e o mercado em geral, tendo em vista ter sido divulgada uma estratégia de crescimento que contava inclusive com a consolidação de recentes aquisições.

Desse modo, as condições financeiras em que foi realizada a venda da Cirio Holding denotam favorecimento ao comprador, visto que o mesmo impôs o preço e a forma de pagamento, utilizando-se de sua condição de controlador.

Ademais, a alienação da Cirio Holding ocorreu sem uma nova avaliação baseando-se unicamente no valor de custo, não tendo sido incluída a valorização, especialmente dos bens intangíveis, como sua marca, pouco conhecida no Brasil, e que foi amplamente divulgada através de contrato de patrocínio.

Além disso, o acionista controlador continuou gerindo a Bombril em benefício próprio ou desviando-a de sua finalidade, eis que o endividamento voltou, em curtíssimo prazo, aos

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níveis anteriores à venda da Cirio Holding. Ao invés de ter sua dívida liquidada com os recursos oriundos da venda da Cirio Holding, a Bombril aumentou seus créditos com o acionista controlador sob a forma de mútuos com prazos indeterminados e sem qualquer garantia real.

Termo de Compromisso e Nova Proposta

Destaca-se que neste ínterim, foi proposta à CVM uma oferta pública para o fechamento de capital da Bombril-Cirio S.A. formulada por Cragnotti & Partners Capital Investment Brasil S.A., a qual almejava que a aceitação correspondesse a um Termo de Compromisso, uma vez que poderia resultar na suspensão do julgamento do Processo Administrativo Sancionador já instaurado pela CVM.

Tendo em vista que a proposta foi assinada com a quase totalidade dos acusados e poderia minorar a situação dos acionistas minoritários através da realização de oferta pública para cancelamento do registro de companhia aberta pondo fim ao impasse, o Colegiado aprovou a referida proposta, implicando na suspensão do julgamento do processo administrativo sancionador.

Todavia, os acusados não cumpriram com a mencionada proposta, e, além disso, tendo em vista que o descumprimento da primeira implicou na retomada do julgamento do processo, formularam nova proposta de oferta pública para o fechamento de capital, a qual foi negada pelo Colegiado.

Da Condenação dos Administradores

A priori, cabe ressaltar que a fundamentação da condenação dos administradores, a ser exposta a seguir, tem como base o enunciado no voto da Diretora Relatora Norma Parente.

Diante de tudo o que aconteceu, o que se verificou, na prática, como consequência da frustrada operação de transformação da Bombril em empresa multinacional, foi a utilização pelo acionista controlador, a um custo zero, durante um ano e meio, de US$ 380 (trezentos e oitenta) milhões e que foram sendo devolvidos de acordo com a sua conveniência, e ainda, transformados em empréstimos de forma direta ou indireta, pois a Bombril sempre adiantava os recursos ou os retornava ao grupo controlador.

Tornou-se patente, no decorrer do exame do referido processo, que o dinheiro que entrava para pagar a Cirio Holding imediatamente retornava como empréstimo para o controlador, sendo que a venda, nos moldes em que foi feita, em nada beneficiou a Bombril.

Assim, o uso dos recursos sem qualquer remuneração, a venda da Cirio Holding a prazo, a manutenção de saldos devedores crescentes de empresas vinculadas ao acionista controlador junto à Bombril sob a forma de mútuo e o rombo de R$ 170 milhões deixado como resultado da transformação da Bombril em controladora do grupo Cragnotti demonstram, ocorrência de abuso de poder e desrespeito sistemático aos fins e interesses da companhia.

Ao servir de financiadora do grupo controlador, a Bombril foi não só orientada para fim estranho ao seu objeto social, mas acabou favorecendo as demais empresas pertencentes ao controlador em detrimento dos acionistas minoritários. Diante disso, o controlador infringiu o disposto nas alíneas "a" e "c" do parágrafo 1º do artigo 117 da LSA e o os administradores infringiram ao artigo 153 da mesma lei.

No entender da Diretora Norma Parente, houve violação do dever de diligência, pois os administradores foram negligentes ao avaliarem as condições e as consequências dos negócios realizados, ou seja, não buscaram se informar adequadamente para fundamentar a aprovação das operações da Bombril com o controlador.

No mesmo sentido caminhou o voto do Presidente Marcelo Trindade, pois entendeu que:

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a apenação dos administradores cabe, a meu juízo, apenas porque não avaliaram com a necessária profundidade e antecedência uma relevantíssima alteração nos negócios da companhia, que importava, inclusive, em mudança radical dos compromissos assumidos com os investidores nacionais que subscreveram o aumento de capital de 1997.

Desse modo, ainda que não haja menção expressa a um dispositivo legal, entendemos que a fundamentação para a responsabilidade dos administradores, realizada no voto do Presidente Marcelo Trindade, resumiu-se à violação do dever de diligência.

Divergência sobre a penalidade do administrador Fernando

Com relação à apenação do membro do Conselho de Administração, Fernando Santos Ferreira, houve divergência por parte dos Diretores Marcelo Fernandez Trindade e Luiz Antonio de Sampaio Campos, em razão do voto proferido pela Relatora Norma Parente.

Voto Norma Jonssen Parente:

A abstenção de voto não elide a responsabilidade de conselheiro. O conselheiro que se abstém de votar em matéria tão relevante, na verdade, não está exercendo a sua função adequadamente, pois a abstenção, no caso, equivale à omissão.

Não consta da ata, inclusive, qualquer justificativa para a omissão do Sr. Fernando ter deixado de votar. Realmente a omissão no caso equivale a uma renúncia à condição de conselheiro.

Voto Marcelo Fernandez Trindade:

Quanto aos administradores, contudo, divirjo do voto da Diretora-Relatora, exclusivamente quanto à apenação de Fernando dos Santos Ferreira, que se absteve de votar na deliberação do Conselho de Administração relativa à venda da Cirio, a quem entendo deva ser aplicada a pena de advertência.

Voto Luiz Antonio de Sampaio Campos:

Com relação ao Sr. Fernando Santos Ferreira, entendo que deve ser absolvido. [...] A abstenção, que foi a única entre os conselheiros presentes, a meu ver não pode ser equiparada à omissão, pois não se deu de forma sistemática e seguida, mas sim sobre uma deliberação cuja complexidade era patente a qualquer um, inclusive para pessoas especializadas. A comissão de inquérito não fez prova de que a matéria teria sido apresentada ao conselheiro, juntamente com as respectivas propostas e justificativas, com antecedência necessária a permitir concluir que o conselheiro não teria sido diligente.

Tendo em vista que o Julgamento foi realizado apenas por quatro diretores, e que, o Diretor Wladimir Castelo Branco Castro acompanhou a Relatora; a penalidade aplicada ao o Sr. Fernando Santos Ferreira foi de multa no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), conforme voto da Relatora.

Porém, ressalta-se que foi interposto recurso perante o Conselho de Recurso do Sistema Financeiro Nacional, o qual proferiu a decisão não unanime no Acórdão 5455/04, Sessão

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242ª, em 20.10.2004, no sentido de manter a decisão “a quo” da CVM, no tocante à apenação do administrador Sr. Fernando Santos Ferreira.

Assim sendo, tendo como base o presente caso, verifica-se que houve a consagração da tese de que a abstenção não justificada por parte do administrador, no tocante à questão relevante da companhia, equivale a sua omissão, e dessa forma, enseja sua responsabilidade em razão da violação do dever de diligência.

2.4) Dever de se qualificar

O dever de se qualificar, primeiramente, pode ser dividido em dois momentos: um a priori da investidura no cargo e outro a posteriori, no decorrer do exercício de administração da companhia.

Pode-se dizer que o primeiro consiste em um requisito, uma vez que não é razoável que um indivíduo venha a se tornar administrador sem que possua uma mínima qualificação para a prática do cargo preterido. Cabe a ele, então, ser suficientemente qualificado para a função ou recusá-la, caso não se sinta preparado para tanto.

Nos dizeres de Nelson Eizirik:

o administrador deve ter ou adquirir os conhecimentos mínimos sobre as atividades da companhia e a competência necessária ao desempenho de suas funções, com capacidade técnica par tomar decisões de maneira refletida e responsável. Assim, se o administrador não possui conhecimentos mínimos que lhe permitam dirigir os negócios sociais, não deve aceitar o cargo[13].

O segundo momento, ao seu turno, traz consigo a necessidade de manutenção da qualificação supracitada, uma vez que de nada adianta um administrador que não se mantém atualizado dentro dos campos de conhecimento exigidos pelo exercício da atividade administrativa. Em outras palavras, deve o administrador, após a aceitação do cargo, aprimorar-se de acordo com as necessidades técnicas para o conhecimento do cargo[14].

Vale, ainda, menção ao entendimento de Otávio Yazbek, para quem “não há como, nas grandes companhias contemporâneas, presumir uma especialização ao mesmo tempo abrangente e aprofundada”[15] dos administradores. Segue o autor: “aquele conselheiro especializado em, por exemplo, distribuição comercial no varejo, que pode cumprir importante papel em determinadas empresas, pode muito bem ter dificuldades para compreender operações financeiras mais complexas”[16].

Visando ponderar essa questão, Yazbek propõe a imposição de uma responsabilidade razoável ao administrador, isto é, este deveria ser responsabilizado de acordo com “o seu grau de especialização e a natureza dos problemas ocorridos”[17].

Enfim, é de suma relevância que seja feita a devida distinção entre o dever aqui tratado e aquele de informar-se. Enquanto este traz consigo a necessidade de haver um razoável entendimento acerca do objeto foco da decisão negocial, aquele versa sobre a devida preparação técnica para o desempenho do cargo de administrador.

2.4.1) Aplicação do conceito no caso concreto: Francis v. United Jersey Bank

13 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. vol. II. pág. 35314 RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de diligência dos administradores de sociedades. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2006. pág. 223.15 YAZBEK, Otávio, Representações do dever de diligência na doutrina jurídica brasileira: Um exercício e alguns desafios in KUYVEN, Luiz Fernando Martins. Temas Essenciais de Direito Empresarial: 1ª Edição, 2012 pg. 958.16 Ob. Cit.17 Ob. Cit.

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Trata-se de ação ajuizada pelos administradores da massa falida da corretora Pritchard and Baird Intermediaries Corporation (“P&B”), contra os administradores da mesma que se apropriaram de valores pertencentes à companhia, de forma fraudulenta, por meio da simulação de empréstimos a acionistas, o que ocasionou uma situação deficitária e a consequente falência da P&B. No entanto, a principal questão, gira em torno da análise da conduta da administradora e controladora, Lillian Pritchard, que era mãe dos demais administradores fraudulentos e que, por não acompanhar o andamento dos negócios da companhia, foi investigada.

Primeiramente, observou-se que para o cumprimento do dever de diligência dos administradores é necessário que estes possuam um entendimento primário acerca dos negócios da companhia, assim como das suas atividades. Desse modo, o administrador não poderia se esquivar de sua responsabilidade alegando ignorância acerca da situação financeira, patrimonial e gerencial da companhia, como no caso de Lillian.

Com efeito, entendeu-se pela prevalência da norma geral, segundo a qual o administrador deve possuir, pelo menos, um entendimento rudimentar a respeito dos negócios da companhia, o que inclui: (i) o dever de estar presente nas reuniões dos órgãos da administração; (ii) o dever de manter familiaridade com o estado financeiro da companhia, através da revisão regular das Demonstrações Financeiras; e (iii) o dever de investigar profundamente as informações apontadas pelas Demonstrações Financeiras.

Assim, alguém que exerce o cargo de administrador de forma simulada, ou seja, exclusivamente em decorrência de conexões pessoais, sem buscar saber a real situação da companhia - “dummy director[18]”- poderá ser responsabilizado em razão dessas condutas.

Observa-se, que mesmo sendo administradora da P&B, ela esteve alheia aos assuntos da companhia, sendo esta a razão de não ter notado os frequentes desfalques realizados pelos demais administradores.

Nesse sentido, frise-se que caso Lillian tivesse cumprido seu dever fiduciário, teria constatado mais rapidamente que seus filhos estavam se apropriando indevidamente dos recursos da P&B, e assim, haveria mais chances de agir em tempo hábil para evitar sua falência.

Portanto, Lillian teria violado o dever de cuidado, tendo prevalecido o entendimento de que essa violação fora a causa imediata da falência da P&B, e não poderia ela se exonerar de seus deveres, com base na alegação de que teria se abstido dos seus negócios.

Verifica-se que de acordo com o §8.31, (a), (2), (iv) do Revised Model Business Corporation Act[19], o administrador não deve ser responsabilizado, pela companhia ou pelos acionistas, por qualquer decisão de agir ou deixar de agir, ou qualquer falha na sua atuação.

Dessa forma, o administrador não tem a obrigação de conhecer todos os detalhes das operações ordinárias de uma companhia, mas deve ter uma base de entendimento das finanças e das atividades relevantes desta.

18 Conceito criado pela doutrina americana, o qual define que o administrador que não possui interesse em

participar da gestão da companhia, ocupando o cargo apenas por status ou devido a conexões pessoais.

19 §8.31 Standards of Liability for directors: (a)A director shall not be liable to the corporation or its

shareholders for any decision to take or not to take action, or any failure to any action, as a director, unless the

party asserting liability in a proceeding establishes that: 2. the challenged conduct consisted or was the result

of: (iv) a sustained failure of the director to devote attention to ongoing oversight of the business and affairs of

the corporation, or a failure to devote timely attention, by making (or causing to be made) appropriate inquiry,

when particular facts and circumstances of significant concern materialize that would alert a reasonably

attentive director to the need therefore.

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Porém, haverá responsabilidade pessoal, até mesmo perante terceiros, sempre que o administrador deixar de tomar os cuidados ordinários de estar familiarizado com os interesses da companhia, o que inclui não atender ao que seria normalmente esperado de alguém em sua posição. Note-se, que esta negligência pode ser considerada a causa imediata de danos incorridos pela companhia.

O dummy director é responsável da mesma forma que os demais administradores, não podendo alegar a própria abstenção ou ausência de conhecimento ordinário para elidir os seus deveres, responsabilizando-se igualmente pelos danos causados em decorrência da violação destes.

Assim sendo, podemos fazer um paralelo ao Dever de Qualificar-se tendo em vista que no caso em análise, a administradora deixou de buscar qualquer forma de aprimorar seus conhecimentos e familiarizar-se com os negócios da companhia. Esta, ao agir de forma negligente, acabou gerando graves danos para a empresa e a consequente falência da mesma.

2.5) Dever de vigilância ou monitoramento

O dever de vigilância consiste na obrigação que tem o administrador em acompanhar os negócios de sua companhia. Trata-se de “uma vigilância geral, no sentido de monitorar o andamento dos negócios e a execução das deliberações e decisões tomadas”[20], que não deve ser exercida sobre hábitos específicos e singulares do dia a dia da companhia[21].

No mesmo sentido caminha Nelson Eizirik:

não se exige dos administradores a supervisão de cada uma das atividades desenvolvidas pela companhia, mas o acompanhamento geral dos negócios sociais e de suas políticas ou procedimentos internos[22].

Além disso, deve-se ter em mente que a caracterização da violação ao referido dever deve ser realizada por meio de análise casuística. Isso porque, tendo em vista o amplo leque de atividades empresariais existentes, afasta-se da lei a competência para taxar todos os elementos que o dever de vigilância possa vir a abarcar.

2.5.1) Aplicação do conceito no caso concreto: Caremark International Inc.

Nos anos 90, a Caremark International, Inc. (“Caremark”) foi objeto de extensas investigações realizadas pelo Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça (“Department of Justice”) dos Estados Unidos que visavam verificar se seus funcionários teriam violado leis federais e estaduais, assim como normas aplicáveis aos prestadores de serviços de assistência à saúde.

Em 1996, acionistas da Caremark ajuizaram ação em face dos membros do Conselho de Administração da companhia à época dos referidos fatos, por meio da qual visavam recuperar os prejuízos incorridos em razão das irregularidades verificadas pelas autoridades governamentais americanas, sob o argumento de que estes prejuízos ocorreram em decorrência da sua violação aos deveres fiduciários (fiduciary duty of care), uma vez que não teriam monitorado devidamente os negócios da Caremark.

Os diretores foram acusados de terem violado o dever de monitoramento (“duty of attention or care”) no tocante aos negócios da Caremark, porque teriam permitido que a situação irregular da Caremark tomasse uma grande dimensão, expondo-a às responsabilizações e prejuízos aplicados pelas autoridades.

20 CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 1.10721 Ob. Cit.22 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. vol. II. pág.. 356.

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Foi feita a análise dos atos de gestão sob os seguintes aspectos: o primeiro diz respeito à possibilidade de uma companhia sofrer perdas consideráveis em razão de uma decisão da administração, e o outro seria a ocorrência de um prejuízo que poderia ser impedido ou minimizado, mas não o foi em virtude de omissão da administração.

Com relação ao primeiro aspecto, aplicar-se-ia o business judgment rule e, portanto, muito provavelmente, a decisão tomada poderia vir a ser considerada de boa-fé ou, no mínimo, razoável, até porque, o fato da decisão vir a ser apreciada judicialmente após a ocorrência dos fatos que levaram às perdas da companhia tende a ser prejudicada, posto que éanalisada a posteriori e, portanto, tendenciosa, uma vez que os prejuízos já ocorreram, o que poderia levar a crer que a decisão foi errônea e negligente.

Entende-se que o fato da companhia sofrer perdas não é, necessariamente, consequência das decisões emanadas pelos diretores e, portanto, não deveria ensejar responsabilizações pessoais, uma vez que estas podem ter sido tomadas de boa-fé e visando o melhor interesse da companhia, porém por outros fatores, muitas vezes externos, o resultado não é o esperado.

Seguindo essa linha, trata-se da desnecessidade de revisão das decisões negociais dos administradores das companhias, pelo simples fato de que estas tenham acarretado prejuízos para a companhia, uma vez que os juízes nem sempre são tão bem preparados na seara do direito empresarial.

Em relação ao segundo aspecto, - falta de monitoramento adequado - os negócios e a tomada de providências necessárias que resultam em perdas, poderiam vir a ensejar a responsabilização dos diretores, devendo ser analisados caso a caso.

De acordo com a decisão do caso em tela, temos que:

Thus, this case presents no occasion to apply a principle to the effect that knowingly causing the corporation to violate a criminal statute constitutes a breach of a director's fiduciary duty. (…) But, of course, the duty to act in good faith to be informed cannot be thought to require directors to possessdetailed information about all aspects of the operation of the enterprise.Such a requirement would simple be inconsistent with the scale and scope of efficient organization size in this technological age.

Diante do caso exposto conclui-se, com base na decisão da Suprema Corte de Delaware, que se os administradores agirem com boa-fé ao perseguirem os interesses sociais da companhia, suas decisões não deveriam ser passíveis de questionamento. Além disso, se os acionistas achavam os diretores incompetentes, de certa maneira isso era culpa daqueles, uma vez que foram os responsáveis pela sua eleição.

Por fim, ressalta-se que há duas situações em que são possíveis responsabilizar os administradores, de acordo os padrões estabelecidos por este caso – conhecido, atualmente, como Caremark factors, quais sejam: (a) os administradores não implementaram qualquersistema de monitoramento ou controle ou (b) tendo implementado tal sistema, conscientemente não supervisionaram/monitoraram as suas operações, assim, se esquivaram de se manterem informados sobre os riscos ou problemas que exigem sua atenção.

Dessa forma, o presente caso trata da violação ao dever de vigiar/monitorar. Toda a discussão gerada em torno desta questão, nos mostra a dificuldade de delimitar qual o padrão de vigilância a ser adotado pelo administrador e, quais seriam as atividades a serem monitoradas, considerando ainda, as particularidades de cada caso concreto.

2.6) Dever de investigar

O dever em análise, decorrente dos deveres de se informar e vigiar, traduz-se na obrigação do administrador em investigar quando houver informações incompletas, superficiais ou imprecisas no que tange aos interesses da companhia.

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Convém ressaltar que “não devem os administradores ficar passíveis, mas antes devem criticamente examinar as informações que recebem, indagando, entre outras questões a respeito da completude, extensão, riscos e correição (...)”[23].

Em contrapartida, o dever de investigar que cabe ao dirigente de uma companhia deve ser pautado pela razoabilidade e pela relação de confiança inerente aos membros de uma companhia, não sendo cabíveis investigações sem indícios. Desse modo, deve ser ressalvado ao administrador o direito de confiar nos trabalhos e informações a ele levadas por empregados, especialistas e até mesmo outros administradores[24].

Ademais, cabe ao dirigente pesar a relevância da questão para fins de possíveis transtornos decorrentes da investigação, tais como despesas e tempo despendido. Com efeito, o dever em questão pode se enquadrar especificamente naqueles casos em que houver a ocorrência dos sinais de alerta, intitulados pela doutrina norte-americana como red flags.

As red flags caracterizam-se por circunstâncias nas quais o administrador entende estar diante de eventos que coloquem os negócios da companhia em situação de grave e manifesto risco, “situações que o deixem em estado de alerta”[25].

Assim, ao tempo em que o administrador suspeitar ou identificar que a companhia está diante de situações que possam causar problemas relevantes no desenvolvimento dos negócios da companhia, deverá o mesmo agir e promover investigação minuciosa em relação a essas eventuais e possíveis dificuldades.

Então, as red flags funcionam como verdadeiros sinais de alerta para o administrador. Ele pode, com isso, confiar nas informações que são disponibilizadas por auditores e profissionais competentes referentes à situação dos negócios da companhia, mas essa confiança não é inquebrável. Isto é, se o administrador suspeitar que os dados que lhes são fornecidos aparentem ser incompatíveis com o real estado da companhia, caracterizando a ocorrência dos sinais de alerta, deverá empenhar diligente investigação a fim de resolver essa incompatibilidade.

Na jurisprudência da CVM, é constante a presença de diversos casos em que o dever de investigar foi, de alguma maneira, desrespeitado. Dentre estes, evidencia-se o famoso caso da Sadia S.A., em que foi manifesta a violação ao dever em questão.

No mencionado caso, o Diretor Financeiro da Sadia S.A. foi condenado pelo Colegiado da autarquia pela falta de diligência na administração dos negócios da companhia. Apesar da ocorrência de red flags, indicando presentes dificuldades dos negócios da companhia que ocasionariam prejuízos vultosos a mesma, ele não promoveu investigação meticulosa e, dessa forma, desrespeitou o direito de investigar atinente ao administrador diligente.

2.6.1) Aplicação do conceito no caso concreto: PAS CVM nº 2010/9078 - Caso Sadia

No caso em tela, diretor financeiro, membros do conselho de administração e auditoria da Sadia S.A. foram acusados, pela CVM, por terem sido responsáveis por prejuízos financeiros, em grande escala, sofridos pela companhia devido à liquidação antecipada de operações com derivativos - instrumentos financeiros de elevado risco operacional.

De acordo com as investigações da Comissão de Inquérito da CVM o sistema de controle de risco da Sadia S.A. não estava preparado para o registro adequado das operações com derivativos e, consequentemente, não controlava efetivamente as alçadas e os riscos das operações em questão. As práticas adotadas pela área financeira não estavam em consonância

23 CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 110824 Ob. Cit.25 EIZIRIK, Nelson. Mercado de Capitais: Regime Jurídico. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. pág. 433

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com a política financeira da Sadia, cujo cumprimento era de responsabilidade direta do diretor financeiro

Os administradores da companhia, segundo acusação, não aplicaram os preceitos estabelecidos pela política financeira quando da conclusão das operações com derivativos e,da mesma forma, não tomaram medidas de paralisação de riscos ao observar os prejuízos provenientes de tais operações. Para tanto, foram acusados pela não aplicação da diligência devida no desenvolver do empreendimento da companhia, violando frontalmente o dever previsto no artigo 153 da LSA.

No julgamento do caso, o Colegiado da CVM constatou que as próprias demonstrações financeiras da Sadia S.A. evidenciavam a infração ao limite de risco estabelecido na política financeira, ficando evidente a falta de um comportamento diligente pelos administradores da companhia.

Para tanto, entenderam os diretores do Colegiado da autarquia federal que devido ao grande risco envolvido em sua natureza, as operações com derivativos merecem atenção em especial pelos sistemas de monitoração de companhias. A ineficácia do controle de riscos pelos membros da administração caracteriza violação direta aos deveres de diligência devidos pelos administradores de companhia. Neste sentido, dispõe o Diretor-Relator, o Sr. Alexsandro Broedel Lopes, no proferimento de seu voto:

O padrão para o dever de diligência de administradores de companhias abertas não é o do pater familias e sim o do administrador profissional competente, que visa à consecução do objeto social, com a obtenção de lucros para a companhia. Nesse ponto, o administrador pode tomar riscos, evidentemente. São decisões que afetam o dia a dia de qualquer companhia. Mas, por outro lado, deve atentar-se às regras que foram estabelecidas para a gestão dos negócios e, especialmente, para a tomada de riscos: no presente caso, é aqui que se verifica a necessidade de se observar o cumprimento da Política Financeira estabelecida pela própria companhia[26].

Segundo o mencionado Diretor-Relator, a apuração da infração ao dever de imposto no art. 153 da LSA, no caso em discussão, está diretamente ligada ao fato de que o dever de diligência engloba o chamado dever de monitorar ou vigiar. Na atuação dos administradores da Sadia S.A. foi, portanto, observada, de maneira mais específica, afronta ao dever de investigar, dever subsidiário incluído na esfera do dever de diligência, já que não investigaram ou obtiveram as informações necessárias para o controle de risco devido a tempo da realização das operações com derivativos.

A doutrina brasileira já pacificou entendimento que os administradores de companhia devem tomar as devidas investigações quando houver informações incompletas ou imprecisas no que se refere aos interesses da companhia. Da mesma maneira, quando forem percebidas as chamadas “red flags”, isto é, circunstâncias nas as quais o administrador entende estar diante de eventos que coloquem os negócios da companhia em situação de grave e manifesto risco, situações que o deixem em estado de alerta, deverá o diligente atuar e promover investigação minuciosa em relação a essas possíveis dificuldades, assim como tomar medidas para fins de paralisação de eventuais prejuízos em que a companhia possa sofrer.

Vislumbrando, a situação de fato, o diretor financeiro da Sadia S.A., como responsável pela aplicação da política financeira da sociedade, não fiscalizou o bom funcionamento do sistema de monitoração de riscos da companhia e não tomou medidas protetivas de paralisação de prejuízos ao constatá-lo. Tal postura lesiva evidencia a falta de diligência e cuidado do diretor financeiro no decurso dos negócios da companhia.

26 Voto do Diretor-Relator Alexsandro Broedel Lopes proferido no âmbito do julgamento do Processo Administrativo Sancionador CVM n°18/08 em 14/12/2010.

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Na avaliação do referido caso, portanto, o Colegiado da CVM optou pela condenação dos acusados pela infração ao dever previsto no art. 153 da LSA, no que tange ao seu dever derivado de investigar.

2.7) Dever de intervir

Como previamente discutido, não cabe ao administrador adotar postura passiva quanto às suas responsabilidades perante a companhia. Assim sendo, de acordo com o direito de intervir, compete ao ocupante do cargo agir sempre de forma pró ativa e visando ao melhor interesse da companhia, de modo a evitar possíveis erros ou prejuízos.

De acordo com Renato Ribeiro Ventura[27], “o dever de intervir (...) pressupõe que o administrador deve intervir nas operações, na forma e dentro dos limites de sua competência, nos casos em que tal intervenção se mostrar necessária”.

Pode-se depreender disso, portanto, que a competência de intervenção do administrador deve se dar interna corporis, ou seja, as condutas adotadas deverão ser dar no âmbito interno da companhia e não de maneira externa perante terceiros.

Porém, vale mencionar, em sentido contrário, o entendimento do Colegiado da CVM no julgamento do Processo Administrativo Sancionador CVM Nº RJ2007/4476[28]. Nesse caso, o referido Colegiado entendeu que, em casos excepcionais, seria possível uma intervenção do administrador perante terceiros, desde que se dê após esgotadas todas as medidas cabíveis dentro da companhia.

Ressalte-se, por fim, o juízo de Luiz Antonio de Sampaio Campos, para quem o dever de intervir é uma derivação do dever de investigar. Segundo o autor, não seria possível uma intervenção do administrador sem investigação prévia que a justifique, pois deve o administrador intervir apenas:

quando constatar algum indício de irregularidade, o que pode se dar não só mediante atuação na operação específica, mas também, sem precipitação, por meio da convocação de Reunião da Diretoria, do Conselho de Administração, Assembleia Geral ou Conselho Fiscal, conforme a discricionariedade do administrador, ou da cientificação desses órgãos a respeito do ocorrido[29].

2.7.1) Aplicação do conceito no caso concreto: PAS CVM nº RJ2007/4476 - Caso Felícia Leigh Bellows

A companhia GIPAR S.A. encaminhou denúncia à CVM contra membro de seu Conselho de Administração, a Sra. Felícia Leigh Bellows, uma vez que esta teria exorbitado, de maneira prejudicial aos interesses da companhia, seus poderes enquanto conselheira.

Em Reunião de Conselho de Administração (“RCA”), foi aprovada a emissão de "Short Term Notes Programme" e a celebração de operações financeiras, a conselheira se opôs à tais aprovações, uma vez que (i) as informações referentes à emissão de "Short Term Notes Programme" só foram disponibilizadas aos membros do Conselho de Administração na noite anterior à realização da RCA; e (ii) a aprovação de operações financeiras dependiam de aprovação com quórum qualificado, o qual não teria sido observado.

No dia seguinte à reunião, a conselheira enviou às instituições financeiras encarregadas das operações financeiras correspondência comunicando que a operação ainda não havia sido devidamente autorizada pelo Conselho de Administração da companhia e que o Presidente da

27 RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de diligência dos administradores de sociedades. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2006. pág. 22928 Nesse sentido, o excesso de diligência não deveria ser passível de represália.29 CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEREIRA, José Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 1.110.

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reunião, em desrespeito ao Acordo de Acionistas e inobservando o quórum qualificado que tal deliberação necessitava, não reconheceu o veto manifestado por alguns membros, aprovando as matérias com voto de apenas quatro conselheiros.

Sra. Felícia argumentou, em suma, que na RCA foi apresentado aos conselheiros um parecer jurídico questionando a deliberação sobre o quórum qualificado para aprovação de operações financeiras e que este visava embasar a nulidade de tal deliberação, sendo que tal parecer não foi previamente apresentado para análise, nem tal discussão constava da ordem do dia da RCA – ressalta-se que foi aprovada a nulidade da deliberação que aprovava a existência de quórum qualificado para aprovação de determinadas operações.

Tais artifícios permitiram a aprovação de operações que representaram um acréscimo significativo no endividamento da companhia. Portanto, visando preservar os interesses da companhia, a conselheira teria adotado as medidas já mencionadas.

No parecer da Procuradoria Federal Especializada – PFE esta entendeu que a conduta da conselheira violava a legislação societária, uma vez que não pode membro do Conselho de Administração, em atuação isolada junto a terceiros, realizar denúncias sobre o cotidiano interno da sociedade, de maneira que, a proteção dos interesses da companhia não deve ser empreendida isoladamente junto a terceiros e sim deve se dar no âmbito interno da companhia.

Voto Diretor-Relator Eli Loria

O relator afirmou que a representação de sociedade anônima é ato privativo da diretoria, não devendo, em nenhuma hipótese, ser exercida por qualquer membro do conselho de administração. Nesse sentido, a representação feita de maneira isolada por membro do Conselho de Administração, além de poder vir a atrapalhar a gestão da companhia, não é condizente com a Lei de Sociedades Anônimas.

Acrescentou, ainda, que apesar do dever que os administradores possuem de monitorar a gestão da companhia de maneira a evitar ilegalidades, essa deve ser feita “interna corporis” e não de maneira externa expondo a terceiros.

O relator entendeu correta a acusação de infração ao art. 154, caput, da LSA, tendo em vista que a acusada extrapolou as atribuições que lhe foram conferidas pelo Estatuto Social e legislação societária quando do envio das cartas às instituições financeiras.

Porém, no que diz respeito à infração ao dever de diligência, previsto no art. 153 da LSA, ele discordou da acusação. Tendo em vista que o padrão de diligência da lei societária é amplo, se faz necessário que a violação a esse dever seja analisado caso a caso.

Nesse sentido, segundo o relator:

a conduta diligente pode ser compreendida a contrario sensu. Isto é, diligente é o não negligente, ou seja, aquele que não trata com descuido os assuntos da companhia e que zela para que dentro dela não se pratiquem atos de ilegalidade ou abuso, não se omitindo ou silenciando.

Para o relator, o presente caso diz respeito ao excesso de diligência e não a falta desta. A atitude da conselheira, apesar de excessiva, foi nos melhores interesses da companhia, uma vez que teria agido sob a convicção de que suas contestações não estavam recebendo a devida importância e, portanto, não restavam outras alternativas a não ser alertar as instituições financeiras.

O diretor-relator votou pela pena de advertência a Sra. Felícia Leigh Bellows, por infração ao art. 154, caput, da LSA, e pela absolvição das demais imputações.

Voto Diretor Marcos Barbosa Pinto

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O Diretor entendeu que era necessária a absolvição da acusada, argumentando que as condutas da conselheira foram pautadas pelo interesse social e que não havia elementos que provassem o contrário. As atitudes tomadas pela conselheira visavam impedir a contratação de operações que, além de ilegais, eram lesivas à companhia e, de maneira alguma, a tentativa de tal impedimento beneficiava a acionista que a indicou para o cargo[30].

Ressaltou o diretor que a business judgement rule vale, até com mais força, para os administradores independentes ou eleitos por acionistas minoritários do que para os demais.Afirmou também em seu voto que:

uma das principais funções de administradores independentes ou eleitos pelos acionistas minoritários é fiscalizar a gestão da companhia. Se começarmos a penalizá-los porque discordamos de sua opinião acerca do interesse social, ou do modo como eles entenderam melhor persegui-lo, acabaremos por desestimular uma prática extremamente saudável para o mercado.

Por fim, o relator entendeu que não só não poderia o Colegiado condenar a acusada, como, na verdade, não deveria censurar tal tipo de comportamento, pois isso significaria desestimular “uma conduta benéfica ao mercado de capitais brasileiro”.

Conclusão

O Colegiado, acompanhando o voto do diretor Marcos Barbosa Pinto, decidiu pela absolvição da acusada.

No presente caso foi possível observar que determinadas condutas dos membros doConselho de Administração, ainda que exercidas de maneira que possam caracterizar uma provável extrapolação de seus deveres, se tomadas visando o interesse social da companhia são legitimas e, portanto, não deveriam ser passíveis de censura.

Não deve prosperar o entendimento que o conselheiro, ao perceber ilegalidades dentro da companhia e, após esgotadas as alternativas previstas em lei para cessá-las, não possa buscar outras medidas que não aquelas previstas na lei societária. Contudo, tais medidas devem sempre ser pautadas pela razoabilidade, boa-fé e no melhor interesse da companhia.

2.8) Outros Deveres

Além dos deveres expostos acima, há aqueles que não são mencionados pela maior parte da principal doutrina brasileira, mas que ajudam a caracterizar os diversos aspectos do dever de diligência do administrador de sociedade anônima.

Inicialmente, destaca-se o dever de bem administrar, tratado por Flávia Parente. De acordo com a autora, o administrador, ao gerir e representar a companhia, deve fazê-lo de maneira a praticar “todos os atos necessários à plena execução da vontade social, visando a realizar o objeto social da companhia”[31].

30A conselheira deixou claro em seu voto dissidente as razões pela qual não concordava com a deliberação, qual seja, o endividamento da companhia já era bastante elevado e a contratação de tais operações agravariam aindamais a situação financeira da companhia. Além disso, afirmou o diretor que “É certo também que, segundo o art. 158, §1º, o administrador se exime de responsabilidade consignando sua divergência em ata. Mas a lei não obriga o administrador a proceder dessa forma, nem veda outras ações além dessa. O administrador pode – e, em alguns casos, deve – fazer mais, sobretudo quando percebe uma ilegalidade.”31 PARENTE, Flávia. O dever de diligência dos administradores de sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pág. 108.

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Assim, o administrador deve, dentro da discricionariedade que lhe é própria[32] e nos limites da lei e do estatuto, “desempenhar o cargo que lhes foi outorgado, praticando os atos que forem adequados à consecução do interesse social”[33].

Por sua vez, Renato Ventura Ribeiro sugere o dever de não praticar erros graves[34], muito próximo daquele de bem administrar, tratado acima. De acordo com o autor, embora reconhecida a “possibilidade do administrador atuar com discricionariedade, decidindo sobre a conveniência e oportunidade de decisões”[35] e considerando que não há a obrigação legal do administrador de não cometer erro algum ou não tomar decisões infelizes, não deve ele cometer erros graves.

Por erros graves de gestão, deve-se entender decisões ou omissões inoportunas ou com risco desproporcional e contrárias à lei, estatuto ou ao interesse social, como a conivência ou omissão com atos ilícitos de outros administradores (Lei 6.404/76, art. 158, §§ 1º e 4º), inclusive os anteriores. O erro também é relevante quando há circunstâncias que presumem violação de obrigação legal por parte do administrador. Mesmo não havendo dolo, caracteriza falta de diligência[36].

Exemplo de erro grave, no entender de Renato, se dá com a “prática de operações especulativas e arriscadas, com risco elevado ou desproporcional ao benefício esperado, bem como aquelas com falta de garantias ou que impliquem endividamento excessivo para a sociedade”[37].

Por fim, vale mencionar a contribuição de Luiz Antonio Sampaio Campos: o dever de assiduidade. Equivalente ao dever de participar, tratado por Renato Ventura[38], o referido dever consiste no compromisso do administrador de “comparecer às reuniões de Diretoria e de Conselho de Administração, conforme o caso”[39]. Desse modo, o administrador que, reiterada e injustificadamente, não se mostrar presente às citadas reuniões violará o dever de diligência.

3) A Business Judgment Rule

3.1) A business judgment rule no ordenamento americano

A business judgment rule (ou regra da decisão empresarial), cuja origem se deu nas Cortes Superiores dos Estados Americanos em meados do século XIX[40], consiste em um

32 Vale destacar trecho da obra da autora: “Isso significa que os administradores, tendo em vista a promoção do interesse social, dentro dos parâmetros fixados no objeto social da companhia, podem praticar os mais diversos atos e negócios jurídicos”. Ob. Cit. pág. 109.33 Ob. Cit. pág. 110.34 RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de Diligência dos Administradores de Sociedades. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2006. pág. 22935 Ob. Cit. pág. 230.36 Ob. Cit. pág. 230.37 Ob. Cit. pág. 231.38 Ob. Cit. pág. 225.39 CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 1110.40 “o desenvolvimento da business judgment rule, como principio da jurisprudência Americana, data de 1829, no caso Percy v. Millaudon, decidido pela Suprema Corte de Louisiana, estabelecendo-se que o simples prejuízo não faz o administrador responsável; deve-se provar que o administrador praticou um ato inadmissível ao padrão do homem comum - que não o praticaria em semelhantes condições“. in SILVA, Alexandre Couto. Responsabilidade dos Administradores de S.A. –Business Judgment Rule. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. pág. 141.

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conjunto de parâmetros que, uma vez observados pelo administrador, o isentam de responsabilidade.

Conforme Alexandre Couto Silva:

no Direito norte-americano, a seção § 4.01(c) dos Princípios de Governança Corporativa, preparados pelo American Law Institute, estabelece os fundamentos básicos da regra do business judgment e determina que estará amparado pela regra o conselheiro-administrador ou diretor que atuar de boa-fé na tomada de decisão, observando seu dever de diligencia e não for parte interessada no assunto da decisão ou julgamento do negócio; estiver devidamente informado a respeito do assunto a ser decidido e acreditar que as circunstâncias fornecidas para análise são apropriadas e razoáveis; e racionalmente acreditar que sua decisão esteja de acordo com os melhores interesses para a companhia[41].

Com efeito, esse conjunto de regras busca proteger a razoável margem de discricionariedade intrínseca à função dos administradores, tendo em vista que “devem ser encorajados a correr os riscos inerentes à gestão empresarial e não podem ficar permanentemente sujeitos a ter suas decisões revistas”[42]. Caso contrário, haveria uma maior rejeição ao exercício da função de administrador[43], vez que todas as suas decisões, ainda que tomadas de boa-fé e no interesse da companhia, seriam passiveis de julgamento[44].

Neste sentido, as decisões negociais tomadas pelos administradores não poderão ser objeto de revisão judicial, caso as mesmas tenham atendido aos requisitos da business judgment rule. Nesse sentido, vale trazer trecho do voto de Alexsandro Broedel Lopes, ex-Diretor da CVM, no julgamento do Processo Administrativo Sancionador 10/06, julgado em 16.08.2011:

No presente caso, mostra-se evidente que a acusada foi criteriosa, cuidadosa, leal e diligente para com a companhia, sendo certo que a aplicação da regra de decisão negocial (business judgement rule) afasta, de plano, qualquer questionamento quanto aos atos em análise no presente processo.

Como demonstra Alexandre Couto Silva, pode-se extrair do entendimento jurisprudencial de Delaware a existência de cinco elementos que compõem a business judgment rule: (i) decisão ou julgamento do negócio; (ii) desinteresse e independência; (iii) dever de diligência; (iv) boa-fé; e (v) inexistência de abuso de discricionariedade[45].

O primeiro deles, decisão ou julgamento do negócio, consiste no fato de que só haverá a proteção da referida regra se houver decisão por parte do administrador. “É preciso que se verifique a ocorrência de uma decisão, isto é, as condutas omissivas não estão protegidas pela

41 SILVA, Alexandre Couto. Responsabilidade dos Administradores de S.A. – Business Judgment Rule. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. pág. 143.42 EIZIRIK, Nelson. Mercado de capitais: regime jurídico. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. pág. 416.43 RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de diligência dos administradores de sociedades. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2006. pág. 233.44 “A regra objetiva (…) evitar que os tribunais e os próprios sócios substituam os administradores em seu mister. Vale dizer, o juízo de oportunidade e conveniência de uma decisão empresarial não pode ser exercido por juízes ou por quaisquer outras pessoas – trata-se de prerrogativa exclusiva dos administradores, que, em razão de sua experiência e do acesso que têm a informações, estão mais habilitados do que os juízes e os próprios acionistas a tomar quaisquer decisões referentes à companhia”. in PARENTE, Flávia. O dever de diligência dos administradores de sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pág. 7245 SILVA, Alexandre Couto. Responsabilidade dos Administradores de S.A. – Business Judgment Rule. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. pág. 195.

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business judgment rule”[46]. Contudo, tem-se que a decisão por abster-se também constitui uma decisão e deverá ser resguardada de julgamento, sendo ela diferente da pura e simples abstenção.

Outro elemento, o desinteresse e independência, é a vedação ao administrador de ter interesse pessoal em operações em que seja parte a companhia. Isto ocorre nos casos em que ele, em detrimento dos interesses sociais, será o único beneficiado pela decisão tomada[47].

O dever de diligência, enquanto elemento da business judgment rule e segundo o mencionado autor, consiste na atuação informada e fundamentada do administrador ao tempo da tomada de decisão.

A boa-fé, por sua vez, “indica que os administradores deverão agir de maneira honesta e justa, ficando caracterizada a ausência de boa-fé, por exemplo, nas situações em que eles atuam em seu benefício pessoal ou de outrem, que não seja a companhia”[48].

Finalmente, o último dos elementos da business judgment rule trazidos por Alexandre Couto Silva, a decisão sem abuso de discricionariedade, visa à não proteção de decisões irrazoáveis e irracionais. Desse modo, o administrador não será beneficiado pela regra se agir de modo arbitrário, sem qualquer restrição ou limite.

Nesse sentido, vale mencionar também as condições de aplicabilidade da mencionada regra levantadas por Nelson Eizirik:

A regra da decisão empresarial, que isenta de responsabilidade o administrador, é aplicável uma vez atendidos cumulativamente os seguintes requisitos: (i) deve ter ocorrido uma decisão, não estando protegidas pela regra as condutas omissivas, exceto se resultantes de uma decisão de não tomar qualquer medida; (ii) os administradores não podem ter qualquer interesse financeiro ou pessoal na matéria, ou seja, não se aplica a regra se estiverem em situação de conflito de interesses; (iii) os administradores devem estar bem informados antes de tomarem a decisão, isto é, atuando de forma diligente; (iv) os administradores devem estar perseguindo o interesse social; (v) a atuação dos administradores deve ter ocorrido no âmbito de seus poderes legais e estatutários; e (vi) os administradores devem estar atuando de boa-fé[49].

Note-se, ainda, que a business judgment rule já ganhou espaço na jurisprudência brasileira, sendo referência aos julgadores no que tange a conduta dos administradores. Nesse sentido, vale destacar ilustre trecho do voto de Pedro Marcilio no julgamento do PAS CVM Nº 21/04, em que reuniu o entendimento da CVM a respeito dos diversos aspectos que compõem a regra em tela:

Neste processo, a principal imputação é a de violação do dever de diligência –art. 153 da Lei 6.404/76. Os termos desse dispositivo enunciam conceitos jurídicos indeterminados, sem especificar critérios para sua aplicação aos casos concretos. Usualmente, as posições doutrinárias sobre esses dispositivos procuram analisar esses conceitos sem, ainda, estabelecer critérios para sua aplicação a casos concretos. Em sua atividade sancionatória, a CVM vem, ao longo do tempo, estabelecendo esses critérios. Entre eles, pode-se citar os seguintes:

46 PARENTE, Flávia. O dever de diligência dos administradores de sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pág. 74.47 Business Corporation Act, Art. 1.02. Definitions, §12 and §15.48 PARENTE, Flávia. O dever de diligência dos administradores de sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pág. 65.49 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. vol. II. pág. 417.

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(i) se ao administrador for imputado apenas descumprimento do dever de diligência, a CVM não pode entrar no mérito da decisão negocial (...)[50]; (ii) não há violação ao dever de diligência, quando o administrador toma (ou deixa de tomar) uma decisão, se sua decisão é informada, refletida e desinteressada (...)[51];(iii) quando a decisão não for desinteressada, aplicam-se as regras do dever de lealdade (arts. 154 e 155), a partir das quais é possível analisar o mérito da decisão negocial (em outras palavras, o ônus da prova da legitimidade e justeza do ato passa a ser de quem agiu sem observância do dever de lealdade) (...)[52]; (iv) o administrador não pode alegar falta de competência ou conhecimento técnico (...)[53];(v) o administrador não pode alienar-se do processo decisório[54]; e(vi) decisões tomadas sem boa-fé, ou com o intuito de fraudar a companhia ou os investidores não estão protegidas pela regra da decisão negocial - item "i" acima (...)[55].Como se pode ver, a revisão da diligência de um administrador, quando não há falta de dever de lealdade, é, essencialmente, uma revisão sobre o processo de tomada de decisão. As razões para assim ser são, dentre outras, as seguintes (...):(i) ausência de capacitação técnica dos agentes da administração pública (e do Poder Judiciário) para se substituírem aos administradores na tomada de decisões negociais;(ii) reconhecimento de que (a) as decisões dos administradores são tomadas com uma quantidade limitada e imperfeita de informações, inclusive com relação ao desenvolvimento futuro dos fatos e às informações não conhecidas ao tempo da tomada da decisão negocial, e (b) o tempo dos administradores é limitado e deve ser por ele alocado para a tomada de diferentes decisões, com isso, a revisão posterior dos atos tomados sob essas condições é sempre feita a partir de uma quantidade não similar de tempo;(iii) a revisão posterior, com base em mais informações e mais tempo, diminui o incentivo para que os administradores tomem decisões que envolvam riscos, em razão da possibilidade de responsabilização pessoal; e(iv) as companhias abertas perderão competitividade para atrair administradores capacitados, em razão da possibilidade de responsabilização pessoal, a ser decidida com base em um conjunto de informações e sob situação diversa da que estarão submetidos quando tomarem suas decisões.Todas essas razões levariam a uma menor eficiência das companhias abertas e, consequentemente, do mercado de valores mobiliários, o que faria com que fosse frustrada a finalidade legal de estímulo do mercado de valores mobiliários atribuída à atuação da CVM (art. 4˚, I e II da Lei 6.385/76).

Diante disso, conclui-se que a business judgment rule estabelece standards de conduta a serem observados pelos administradores como uma forma de objetivar a aplicação do dever

50 Inquérito Administrativo 09/037, julgado em 25.01.06; Processo Administrativo Sancionador n◦ 2005/8542, julgado em 29.08.068 que, embora trate de administração de fundos de investimento, analisa situação similar; Processo Administrativo Sancionador n◦ 2005/14439, julgado em 10.05.06; Processo Administrativo Sancionador n◦ 2005/009710, julgado em 15.03.07; Processo Administrativo Sancionador n◦ 2004/539211, julgado em 29.08.06; Processo Administrativo Sancionador n◦ 2004/3098, julgado em 25.01.0512; e Inquérito Administrativo n◦ 03/0213, julgado em 12.02.04.51 Processos Administrativos Sancionadores n◦ 2005/144315 e 2005/009716.52 Processo Administrativo Sancionador n◦ 2005/144317.53 Processo Administrativo Sancionador n◦ 2005/144319.54 Processo Administrativo Sancionador n◦ 2005/854220.55 Processo Administrativo Sancionador n◦ 2005/144321 e Inquérito Administrativo n◦ 03/0222.

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diligência aos casos concretos. Tendo em vista que o enunciado normativo do dever de diligência (art. 153, LSA) é amplamente subjetivo e abrangente, a business judgment rulepresta-se a fazer uma delimitação mais clara e precisa do citado dispositivo, uma vez que estabelece parâmetros de conduta que, se observados, convalidarão a postura diligente do administrador.

3.1.1) Aplicação do conceito no caso concreto: Pereira v. Cogan

No caso em tela, Pereira, administrador da massa falida da Trace International Holdings, Inc. e Trace Foam Sub Inc. (em conjunto, “Trace”) entrou com ação contra o acionista controlador da Trace, Sr. Cogan, e sete de seus diretores. O administrador alegava que Sr. Cogan havia deixado dívidas pela emissão de notas promissórias no valor de, aproximadamente, US$ 13,4 milhões de dólares em virtude de negociações particulares e que, por isso, teria violado seus deveres fiduciários, uma vez que recebeu remunerações que excederam o valor de US$ 23 milhões de dólares.

Para Pereira, todos os acusados teriam violado o dever fiduciário de diligência(“due care”), já que não atuaram em busca de satisfazer o melhor interesse da Trace. Ademais, Pereira alegou que os diretores acusados, aprovaram ilegalmente o pagamento de dividendos da Trace quando o caixa desta companhia estava deficitário.

Com relação aos dividendos que não foram declarados, os diretores tinham conhecimento ou deveriam ter tido conhecimento dos dividendos, e mesmo assim não tomaram qualquer providência para assegurar que o Conselho de Administração se reunisse e aprovasse os mesmos.

Ademais, não há evidência de que qualquer cálculo tenha sido realizado a fim de determinar se havia um excedente de dividendos, sendo esta falha considerada uma violação dos deveres de lealdade e diligência.

Já no que tange aos empréstimos para o Sr. Cogan, em nenhum momento qualquer dos réus tentou criar um procedimento a ser seguido para sua aprovação. Procurou-se tão somente verificar se o Sr. Cogan prestaria garantia ou se ele era capaz de arcar com os empréstimos feitos. Não analisaram se o montante dos empréstimos para se certificarem de que eram vantajosos (fair) ou não para a companhia, e nem indagaram sobre a decisão de colocar em prática tais medidas.

De acordo com o órgão julgador

a determinação do dever de diligência é muito particularizada e as generalizações ajudam nesta tarefa[56].Um tribunal não vai encontrar um Conselho que tenha tenha violado este dever, a menos que seus os diretores, individualmente, e o Conselho, coletivamente, não tenham se informado plena e deliberadamente antes de votar[57] (tradução livre).

Considerou-se que, neste caso, houve a violação ao dever de diligência uma vez que os diretores tinham injustificado desconhecimento de informações muito relevantes sobre as transações em tela, e que, a devida atenção a estas informações teria impedido o resultado prejudicial à Trace e seus acionistas.

56 Citron v Steego Corp, Civ A. No. 10.171, 94.738 1988 WL, na * 10 (Del.Ch. 09 de setembro de 1988).57“A determination of director due care "is highly particularized and generalizations are of little help in that task." Citron v. Steego Corp., Civ. A. No. 10171, 1988 WL 94738, at *10 (Del.Ch. Sept. 9, 1988). A trial court will not find a board to have breached its duty of care unless the directors individually and the board collectively have failed to inform themselves fully and in a deliberate manner before voting. Cede, 634 A.2d at 368; Smith v. Van Gorkom, 488 A.2d 858, 873 (Del.1985); Aronson, 473 A.2d at 812.”in Pereira v. Cogan, No. 00 Civ. 619, 2003- 294 BR 449 at * 530(S.D.N.Y. May 8, 2003)

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Assim, restou evidente que a falta de acompanhamento ("failure to monitor") constitui uma forma de violação do dever de diligência. Vale mencionar, no âmbito do referido julgamento concluiu-se que “um diretor viola com seu dever fiduciário de diligência, se abdica de seus deveres gerenciais”[58].

A Suprema Corte de Delaware considerou que a business judgment rule não se aplica aos casos em que os diretores tenham abdicado de suas funções ou que, ao tomarem uma decisão desconscientizada, tenham falhado. Entretanto, permanece a regra de que, sob os princípios da business judgment rule, uma consciente decisão de abster-se, pode, contudo, ser um exercício válido da regra, que garante a proteção do Estado.

A business judgment rule visa assegurar que os tribunais não alterem retroativamente as decisões dos administradores, uma vez que deve-se considerar a presunção de que estes agiram de boa-fé e no melhor interesse da companhia.

Nesse sentido, alguém que alega em juízo que a decisão dos administradores foi errônea tem o ônus de refutar a presunção garantida pela business judgment rule. Logo, se o autor da ação não consegue comprovar que tal regra deva ser afastada, esta se aplicará com vista à proteção das decisões tomadas.

Quando afastada a referida presunção, o ônus passa a recair sobre os administradores, que devem comprovar que as decisões tomadas foram justas para a companhia (the entire fairness of the transaction[59]).

Note-se, a business judgment rule não se aplica na hipótese em que for comprovado que os administradores violaram qualquer um dos três elementos que compõem o dever fiduciário (boa-fé, lealdade ou deverde diligência – due of care). No caso de decisões alegadamente tomadas com base no interesse particular do respectivo administrador, caberá a este comprovar se a decisão foi tomada nos interesses da companhia, pois caso contrário, restará caracterizada uma violação ao dever de lealdade.

Uma vez comprovada a violação ao dever fiduciário, não poderá ser aplicado o princípio da business judment rule, segundo o qual presume-se que as decisões dos administradores são tomadas de boa-fé e no melhor interesse da companhia.

Neste sentido, em outras palavras este dever signigica que o administrador tem de agir de maneira pró ativa, para acompanhar e/ou monitorar os negócios da companhia, os quais tem a obrigação de conhecer, devendo se informar antes da tomada de qualquer decisão, considerado seu papel gerencial.

Por fim, o administrador deve usar de todos os meios à que tenha acesso para tentar prevenir ou impedir que alguma decisão seja tomada em detrimento aos interesses sociais.

3.2) A business judgment rule no ordenamento brasileiro

Configura entendimento majoritário da doutrina aquele em que a business judgment rule foi recepcionada pelo direito brasileiro no parágrafo 6º do artigo 159 da LSA. Assim dispõe o mencionado dispositivo:

Art. 159 – Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembleia geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio.(...)

58 Canal Capital Corp. v. French, Civ. A. No. 11,764, 1992 WL 159008, at *4 (Del.Ch. July 2, 1992)59 The "entire fairness" doctrine, a transaction must be justified under both elements of "a two-pronged inquiry into the fair process and the fair price of the transaction." Solomon, 747 A.2d at 1112, in Pereira v. Cogan, No. 00 Civ. 619, 2003- 294 BR 449 at * 527(S.D.N.Y. May 8, 2003)

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§6º - O juiz poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador, se convencido de que este agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia.

Desse modo, a responsabilidade do administrador poderá ser afastada pelo juiz quando observados os pressupostos de boa-fé e atuação no interesse da companhia.

Com efeito, no entender de Modesto Carvalhosa, o requisito da boa-fé exclui o dolo e a atuação no interesse da companhia exclui a negligência e a imprudência. Ademais, também seriam excluídos os casos com violação à lei, “pois, nestes, a conduta assumida pelo administrador, ao fraudar o direito da companhia, dos acionistas e dos investidores, torna-o plenamente responsável”[60].

Conclui-se, com isso, que o enunciado parágrafo 6º do artigo 159 da LSA aplica-se apenas aos atos de gestão da companhia. No entender de Nelson Eizirik, “no § 6º adotou-se, também entre nós, o princípio da business judgment rule (‘regra da decisão empresarial’), consagrada no direito societário norte-americano”[61]. Assim também entende José Waldecy Lucena, ao afirmar que o direito brasileiro “também veio adotar, embora sem menção de todos os requisitos que a compõe, a business judgment rule, qual se vê do artigo 159, § 6º, da atual lei acionária”[62].

Ao comentar o dispositivo em questão, Modesto Carvalhosa afirma que o mesmo é baseado no “princípio do livre convencimento do juiz, na apreciação das provas, fatos e circunstâncias constantes dos autos”[63]. Nesse sentido, cabe, ainda, ressaltar o enunciado por Miranda Valverde, para quem,

na apuração da responsabilidade civil dos diretores, dada a variedade e multiplicidade dos atos de gestão, têm os juízes poder discricionário, pois que, em cada caso, deverão ser apreciadas as circunstâncias que precederam, coexistiram, ou sucederam a atuação do diretor64.

Diante do acima exposto, faz-se necessário destacar, apesar de não mencionada pela principal doutrina brasileira, a relevância do caput do art. 158 da LSA para a aplicação da business judgment rule no direito nacional. Assim versa a mencionada norma:

Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:

I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;

II - com violação da lei ou do estatuto.

Explique-se: a lei, por meio do artigo 158, não dá ao juiz um poder discricionário como o faz no parágrafo 6º do artigo 159 da LSA, mas ela própria, de antemão, exclui a responsabilidade pessoal do administrador.

60 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. São Paulo: Saraiva, 2009. 4ª ed. vol. III. pág. 405.61 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. vol. II. pág 416.62 LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Anônimas: comentários à lei. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 1ª Ed. vol. II. pág. 626 e 627.63 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. São Paulo: Saraiva, 2009. 4ª ed. vol. III. pág. 405.64 VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedade por ações (comentários ao decreto-lei nº 2.627, de 26 de setembro de 1940). vol II. Rio de Janeiro: Renovar, 1959. pág 332.

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Isto é, ao dispor que ele não será pessoalmente responsável pelas obrigações contraídas em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão, a lei afasta, antes mesmo de qualquer cognição do juiz, a responsabilidade dos administradores. E, como já visto no 3.1 acima, é exatamente isso que faz a business judgment rule[65].

Além disso, note-se que, dentre as finalidades do referido dispositivo, está aquela de proteger o administrador que praticar ato regular de gestão[66], o que é, precisamente, o principal escopo da business judgment rule[67].

Portanto, não há como negar que, ao lado do parágrafo 6º do artigo 159 da LSA, o caputdo artigo 158 tem papel de suma relevância para a recepção da regra da decisão empresarial no direito brasileiro. Graças a ele, os administradores não serão julgados quando da realização de atos regulares de gestão sem ofensa à lei ou ao estatuto.

Tendo isso em vista, pode-se perceber que a atuação do administrador de sociedade anônima passa por dois filtros: um realizado pela própria lei e outro, posterior, realizado pelo juiz.

O primeiro consiste na descrição feita pela lei de situações nas quais haverá a exclusão de qualquer responsabilidade. Assim, se praticar ato regular de gestão, o administrador não verá sua conduta ser sequer julgada, já que o ordenamento legal afasta, desde logo, essa possibilidade.

O segundo, por sua vez, se dá pelo convencimento do juiz. Nesse caso, tem-se situação em que há a prática de ato irregular de gestão e é ajuizada ação civil contra o dirigente. Se o magistrado, contudo, se convencer de que o réu agiu de boa-fé e no interesse da companhia, poderá livrá-lo de qualquer responsabilidade por seus atos.

Porém, deve-se ter em mente que a análise feita pelo magistrado só acontecerá se a lei já não tiver excluído, de antemão, a culpa do dirigente de sociedade anônima. Isto é, tendo a conduta se enquadrado nos moldes do artigo 158 da LSA, não deverá haver qualquer formação de convencimento por parte do juiz para livrar o administrador de responsabilidade, pois isso já estará feito por determinação legal.

Por outro lado, após constatar-se que a conduta do administrador não consiste em ato regular de gestão ou em obrigação contratada em nome da companhia, o juiz, havendo oajuizamento de ação civil, poderá decidir pela exclusão da sua culpa.

Portanto, a recepção da business judgment rule no direito brasileiro não se dá somente pelo parágrafo 6º do artigo 159 da LSA; o artigo 158 da mesma lei corrobora de maneira acentuada para que os objetivos da mencionada regra sejam alcançados no país. Logo, não se pode negar que a business judgment rule encontra guarida na conjunção dos dois dispositivos: o artigo 158, caput, e o parágrafo 6º do artigo 159 da LSA.

4) Aplicação prática do Dever de Diligência

A partir da construção doutrinária a respeito do dever de diligência tratada neste trabalho, em que os autores trazem os diversos aspectos do referido dever, faz-se possível

65 “(...) as decisões negociais tomadas pelos administradores não poderão ser objeto de revisão judicial, caso as mesmas tenham atendido aos requisitos da business judgment rule”.66 No entender de Nelson Eizirik, configura-se como ato regular de gestão “aquele praticado nos limites das atribuições dos administradores e sem violação da lei ou do estatuto social”. in EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. vol. II.67 Como tratado neste trabalho, no item 3, a business judgment rule busca proteger a razoável margem de discricionariedade intrínseca à função dos administradores, tendo em vista que “devem ser encorajados a correr os riscos inerentes à gestão empresarial e não podem ficar permanentemente sujeitos a ter suas decisões revistas”. Caso contrário, haveria uma maior rejeição ao exercício da função de administrador, vez que todas as suas decisões, ainda que tomadas de boa-fé e no interesse da companhia, seriam passiveis de julgamento.

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delimitar com maior precisão as condutas dos administradores que se encontram no raio de alcance do artigo 153 da LSA.

Com efeito, os deveres de se informar, se qualificar, vigiar, fiscalizar, investigar e intervir, bem como os demais deveres tratados nos itens 2.3 e seguintes do presente trabalho, são violados por condutas essencialmente negligentes, imprudentes ou imperitas. Pode-se afirmar, com isso, que o dever de diligência encontra-se ligado a condutas culposas stricto sensu.

E é nesse sentido que caminha Flávia Parente. Ao determinar que o dever de diligência possa ser entendido sob um aspecto subjetivo, que seria a pretensão do administrador para realizar certa obrigação com cuidado, atenção e zelo[68_69], a autora inclina a incidência do artigo 153 a condutas estritamente culposas.

Explique-se: o administrador que não agir com cuidado, atenção e zelo será sempre considerado negligente ou imprudente. Não há como imputar a esse administrador um comportamento doloso; o desrespeito ao aspecto subjetivo do dever de diligência trazido por Flávia Parente só poderá assinalar condutas culposas.

Esse mesmo entendimento pode ser extraído das próprias palavras da LSA. Ao determinar, no artigo supracitado, que “o administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”, resta evidente que seu objetivo é evitar a atuação de administradores negligentes, imprudentes ou imperitos.

Isso também pode ser constatado em julgados da CVM. No Caso Sadia[70], por exemplo, constata-se a atuação negligente dos administradores dessa companhia, uma vez que não cumpriram com o dever de vigiar[71]. Ainda que tenham causado fortes prejuízos à Sadia, não se pode dizer que tenham agido com dolo.

Ademais, também vale lembrar a origem da palavra “diligência”: vem do latim diligere, que importa em amar, zelar, ser cuidadoso. Ser diligente significa, portanto, esforçar-se ou zelar para a realização de determinada atividade.

Por todo o acima exposto, só se pode chegar a uma conclusão: o dever de diligência não se refere a condutas dolosas, mas tão somente a condutas culposas stricto sensu.

Ressalte-se, no entanto, que não se pretende, aqui, precisar quais condutas caracterizarão infração ao artigo 153 da LSA. Tal pretensão não seria virtuosa, tendo em vista que

(...) a adoção de um sistema mais objetivo, seja exaustivo ou exemplificativo, se apresenta totalmente inviável, e, muito provavelmente, além da capacidade humana. A dificuldade estaria no fato de que qualquer modelo que se desenhasse nesse terreno fatalmente apresentar-se-ia muito rígido para determinadas situações e demasiadamente simples para outras, pois precisaria ser aplicado a todos os tipos de companhia, pequena, média, grande, simples, complexa, aberta, fechada, e a todas as mais diversas modalidades de negócios e empresas[72].

68 PARENTE, Flávia. O dever de diligência dos administradores de sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pág. 38.69 A título de complementação, o aspecto objetivo pensado pela autora é aquele “segundo o qual a diligência deve ter um referencial pragmático, uma conduta determinada ligada a uma atividade concreta ou a um standardcomportamental”. in PARENTE, Flávia. O dever de diligência dos administradores de sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pág. 38.70 Sobre o caso Sadia, ver item 2.6.1.71 Sobre o dever de vigilância, ver item 2.5.72 CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 1098

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Objetiva-se, por outro lado, dirimir a insegurança jurídica que o caráter abstrato do dever de diligência pode acarretar. Tendo pleno conhecimento do alcance da lei, o administrador estará em uma maior zona de conforto e será capaz de agir com a ousadia que dele se espera.

O artigo 153 da LSA, portanto, em sendo uma norma de caráter amplo, que não enuncia condutas específicas, realiza papel de extrema relevância ao preencher as lacunas deixadas pela lei no que se refere às condutas culposas dos administradores.

Faz-se necessário ressalvar, contudo, que o fato do referido artigo abarcar somente condutas culposas não significa que não haja uma norma geral para aquelas dolosas. Pelo contrário: esse papel é atribuído ao artigo 155 da LSA.

O referido artigo, que positiva o dever de lealdade dos administradores, estabelece o seguinte:

Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado: I - usar, em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo; II - omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia; III - adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que esta tencione adquirir. § 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários. § 2º O administrador deve zelar para que a violação do disposto no § 1º não possa ocorrer através de subordinados ou terceiros de sua confiança. § 3º A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobiliários, contratada com infração do disposto nos §§ 1° e 2°, tem direito de haver do infrator indenização por perdas e danos, a menos que ao contratar já conhecesse a informação. § 4o É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários.

Inicialmente, vale trazer o entendimento de Nelson Eizirik a respeito do dever de lealdade. Ao comentar o artigo 155 da LSA, o mencionado autor assinala que essa lei, “inspirada nos sistemas jurídicos inglês e norte-americano, introduziu em nosso regime societário o padrão de lealdade (standard of loyalty) que requer do administrador uma conduta de boa-fé e sempre no melhor interesse da companhia[73].

Igualmente relevante é o seguinte trecho escrito por Flávia Parente:

No artigo 155, a Lei das Sociedades Anônimas estabelece o dever de lealdade (...), segundo o qual o administrador , na condução dos negócios sociais, deverá exercer seus poderes de boa-fé, tendo em vista os interesses da sociedade e não os seus próprios interesses ou os interesses de outras pessoas, isto é, o administrador não pode se utilizar da posição que ocupa na

73 EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. vol. II. pág. 366.

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companhia para obter qualquer tipo de benefício para si ou para terceiros[74]

(grifo nosso).

Depreende-se, com isso, que o mencionado dispositivo visa a preservar a atuação honesta do administrador de sociedade anônima. Assim, se agir de má-fé e for desleal à companhia, ele violará o dever de lealdade.

Em seguida, deve-se notar que, assim como ocorre com o artigo 153 da LSA, “o legislador (...) serviu-se das cláusulas gerais, de sorte que o conteúdo do dever de lealdade, a par das hipóteses previstas no artigo 155 da LSA, não impõe um comportamento específico”[75].

Luiz Antonio Sampaio Campos, ilustrando o entendimento prevalecente na doutrina brasileira, afirma que “a extensão do dever de lealdade, portanto, vai muito além das hipóteses previstas nos incisos do artigo 155 da LSA”[76].

Vale citar também o entendimento de Modesto Carvalhosa:

A nossa lei de 1976, ao adotar o standard of loyalty, reproduziu várias hipóteses de violação colhidas da common law. Por se tratar de padrão normativo, os casos que enumera são enunciativos. Consequentemente, outras formas ou hipóteses efetivas de infringência do princípio da lealdade podem ser capituladas e declaradas pelo juiz e pela Comissão de Valores Mobiliários[77]

(grifo nosso).

Compreende-se, assim, que o artigo 155 da LSA é plenamente capaz de envolver aquelas condutas dolosas cometidas pelo administrador contra a companhia que não estejam expressamente previstas em outro dispositivo da lei. Não deve ser esse o papel do dever de diligência do artigo 153 da LSA.

Portanto, ao passo que o artigo 153 da LSA é a norma geral para as condutas culposas do administrador, o artigo 155 da LSA o é para aquelas dolosas. Assim, ambas as normas, no âmbito de seus alcances, oferecem solução à dificuldade do legislador de prever todas as condutas ilícitas de um dirigente de companhia.

4.1) Aplicação do conceito no caso concreto: McPadden v. Sidhu

No ano de 2008, os diretores da sociedade I2 Co. venderam uma de suas sociedades subsidiárias, a TSC Co., a um grupo de investidores, já que a mesma não mais se encaixava nos modelos coorporativos da I2 Co. Tal operação foi capitaneada por um dos administradores da I2 Co., o Sr. Duberville. Na época, o preço de venda de mercado da referida sociedade era de US$ 3.000.000,00 (três milhões de dólares).

Na conclusão da operação, o Sr. Duberville reduziu significativamente as projeções de preço de venda no mercado financeiro de modo que não solicitou propostas de investidores externos para determinar o real preço de venda da TSC Co. Assim, o Sr. Duberville acabou vendendo a sociedade por um preço menor do que, de fato, valia no mercado financeiro.

Tendo em vista a situação de flagrante prejuízo financeiro com a venda da TSC Co. por preço inferior ao de mercado, os acionistas da I2 Co., liderados pelo Sr. McPadden

74 PARENTE, Flávia. O dever de diligência dos administradores de sociedades anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. pág. 150.75 CAMPOS, Luiz Antonio Sampaio in LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das companhias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 1 v. pág. 113076 Ob. Cit.77 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. São Paulo: Saraiva, 2009. 4 ed. vol. III. pág. 301.

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interpuseram perante o Tribunal de Delaware ação judicial contra os diretores da companhia pelos prejuízos causados com a venda da TSC Co..

Os acionistas da I2 Co., alegaram que os diretores da mesma infringiram os reconhecidos “fiduciary duties” na operação de venda da TSC Co. e, assim, violaram os deveres impostos, na legislação norte-americana, aos administradores de companhia.

Segundo eles, os diretores não tiverem um comportamento diligente devido e esperado pelos administradores de companhia na operação em tela, pois não realizaram uma investigação eficaz do real valor de mercado da sociedade TSC Co.. Haja vista a grande relevância que a decisão do preço de venda da TSC Co. apresentava para o futuro da I2 Co., seus diretores deveriam ter utilizado mais instrumentos de mercado no intuito de determinar o real preço de venda da companhia.

Ademais, os acionistas ainda acusaram os diretores da sociedade por agir de má-fé na operação de venda, já que teriam se beneficiado individualmente dos lucros auferidos com a mesma.

Pleitearam, portanto, os acionistas da I2 Co., que os diretores fossem condenados pela violação aos deveres fiduciários impostos aos administradores de companhia quando tomarem decisões de notória importância para o desenvolvimento da sociedade.

A Suprema Corte de Delaware, no julgamento do caso em observação, não acatou com o argumento dos acionistas da I2 Co. pela violação aos deveres de boa-fé, por parte dos diretores da sociedade, a tempo da realização da operação de venda da TSC Co..

Segundo entendimento do Tribunal, a legislação norte-americana possui provisão exculpante do comportamento dos diretores da I2 Co., limitando sua responsabilidade pelos prejuízos à companhia, assim como disposto a seguir “is limited to breaches of the duty of care (which is usually defined as gross negligence). It cannot be used to limit liability to directors that breach the duty of good faith”.

Pela disposição legal citada, os administradores de companhia só poderiam ser condenados pela violação aos deveres da lealdade mediante comportamento doloso. Mesmo um comportamento manifestadamente negligente, como aquele dos administradores do caso em questão, não pode ser considerado como configurador de violação ao dever de boa-fé.

Entretanto, tendo em vista o comportamento negligente do Sr. Duberville, não agindo com a diligência esperada ao administrador de companhia, o mesmo violou o reconhecido dever do “duty of care”. Para a Corte norte-americana, apesar da comprovada ausência de dolo do Sr. Duberville, este deveria ser punido pela não utilização do cuidado devido na operação de venda da TSC Co..

É consolidado no ordenamento jurídico norte-americano que o “duty of care” seja indicativo de um comportamento “standard” devido aos diretores de companhia. Não importa o resultado da conduta do diretor, mas sim se o mesmo foi razoável durante o processo decisório de assuntos relevantes à companhia.

O Sr. Duberville foi considerado, então, culpado e responsável pela violação ao dever do “duty of care”, mas absolvido pelas acusações à violação aos deveres de boa-fé. A condenação do diretor de companhia por violação ao “duty of care” fica restrita aos casos de comportamento culposo (negligente, imprudente e imperito) do acusado.

5) Conclusão

Diante de toda a análise feita até o presente capítulo, é possível concluir o seguinte:

(i) é da natureza do próprio dever de diligência o caráter abrangente e insuficiente para especificar a sua aplicação ou a sua própria violação. Neste sentido, buscam a doutrina e a jurisprudência tentar objetivar a aplicação, subdividindo-o em deveres derivados, os quais funcionam como critérios para definir se a conduta do administrador é tida ou não

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como diligente. Apesar disso, ainda que tentem realizar a referida divisão, é tênue a alinha demarcatória quanto à incidência de cada um destes deveres, até porque cada caso possui suas particularidades, que devem ser devidamente consideradas pelo julgador, no momento de sua análise;

(ii) no mesmo sentido do acima descrito, temos a business judgment rule. Esta, por sua vez, também busca delimitar os contornos da aplicação do dever de diligência. Em suma, esta regra visa à exclusão de responsabilidade do administrador, que atuou de boa fé e em prol do interesse da companhia. No entanto, é importante ressaltar a diferença existente entre a regra na forma como é aplicada em nosso país, daquela utilizada no ordenamento americano. Esta norma foi concebida mediante a compilação jurisprudencial de julgamentos americanos, através de um enunciado de standards de condutas as quais, se observadas pelo administrador, excluem sua responsabilidade. Já no ordenamento brasileiro, esta norma foi incorporada mediante interpretação conjunta do parágrafo 6º do artigo 159 com o caput do artigo 158, ambos, da LSA; e

(iii) diante da análise dos casos aqui tratados e de todos os demais pesquisados, verificamos que é comum a confusão realizada entre a aplicação do dever de diligência e o dever de lealdade, os quais, ao nosso ver e da doutrina majoritária, constituem os principais deveres a serem observados pelos administradores. Neste sentido, concluímos que o dever de diligência se refere às condutas culposas, ou seja, àquelas atuações negligentes, imperitas ou imprudentes, por parte dos administradores. Já no tocante ao dever de lealdade, este se relaciona às condutas dolosas, ou sejas, àquelas impregnadas de má-fé por parte do administrador, o qual age com a intenção contrária ao interesse da companhia, em beneficio próprio e/ou de terceiro.

Isto posto, acreditamos que a análise realizada no presente trabalho não exaure todas as considerações que podem ser mensuradas sobre o dever de diligência. Contudo, a referida análise consiste em minuciosa exposição do posicionamento da doutrina pátria e no estudo de casos relevantes tanto do ordenamento brasileiro, quanto do ordenamento americano, visando à objetivação da aplicação do dever de diligencia e a consequente redução da insegurança jurídica referente ao tema, permitindo ao administrador de sociedades anônimas maior confiança para atuar tomar todas as decisões negociais cabíveis e possíveis relativas ao interesse da companhia.

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