o carater humano e a causalidade.pdf

20
O CARÁTER HUMANO E O PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE COMO ELEMENTOS DA NÃO-LIBERDADE: uma exposição com os fundamentos da filosofia schopenhaueriana SILVA, Everton Luís da. 1 RESUMO: Os filósofos durante toda a história muito têm debatido acerca da liberdade humana, sobretudo questionando a sua possibilidade ou ainda, onde e como ela pode ser encontrada. Arthur Schopenhauer não diferente, com fulcro no inatismo do caráter e no princípio de causalidade, o voluntarista alemão estabelece as bases de sua filosofia sobre a liberdade. Pessimista, o filósofo de Frankfurt nos apresenta conclusões de igual natureza, dizendo que o ser humano não é livre nas suas escolhas, já que há uma “necessidade dos atos de Vontade” que o vedam a liberdade. Enfim, o maior adversário de Hegel diz que somente a Vontade – como ‘coisa-em-si’ – é detentora da tão almejada liberdade, e que esta não se dá no âmbito moral, mas somente no físico. PALAVRAS-CHAVE: Motivação; caráter; liberdade; vontade; causalidade. 1. Introdução O pessimismo na filosofia de Schopenhauer agora se estende até ao polêmico tema da liberdade moral. Apesar de presente em várias de suas obras, o tema é, sobretudo, abordado em sua obra Über die Freiheit des Willens, isto é, “Sobre a Liberdade da Vontade” oferecida como resposta à questão formulada pela Academia Real da Noruega, obra esta que como bem observa Fabio Libório Rocha 2 foi a exemplo da edição francesa traduzida equivocadamente para o português com o título de “O Livre Arbítrio”, vez que o termo “Vontade” na filosofia Schopenhaueriana possui uma significação toda peculiar, não podendo ser tomado no seu uso corrente. 1 Graduando no Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Vale do Iguaçu (Uniguaçu). Premiado com o título de “Aluno Nota 10” promovido pela mesma Unidade de Ensino por ter obtido o maior aproveitamento acadêmico (média final: 10,0) de toda a Instituição no 2º Semestre do ano de 2007. 2 ROCHA, Fábio Libório. Schopenhauer e o assassinato do desejo – a servilidade do sujeito balizada sob dois aspectos: a liberdade e a racionalidade. União da Vitória: Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras, Coleção Vale do Iguaçu, nº 75. Kaygangue, 2003. p. 15.

Upload: eugenio-guimaraes-de-souza

Post on 24-Sep-2015

4 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • O CARTER HUMANO E O PRINCPIO DE CAUSALIDADE COMO ELEMENTOS DA NO-LIBERDADE: uma exposio com os fundamentos

    da filosofia schopenhaueriana

    SILVA, Everton Lus da.1

    RESUMO: Os filsofos durante toda a histria muito tm debatido acerca da liberdade humana, sobretudo questionando a sua possibilidade ou ainda, onde e como ela pode ser encontrada. Arthur Schopenhauer no diferente, com fulcro no inatismo do carter e no princpio de causalidade, o voluntarista alemo estabelece as bases de sua filosofia sobre a liberdade. Pessimista, o filsofo de Frankfurt nos apresenta concluses de igual natureza, dizendo que o ser humano no livre nas suas escolhas, j que h uma necessidade dos atos de Vontade que o vedam a liberdade. Enfim, o maior adversrio de Hegel diz que somente a Vontade como coisa-em-si detentora da to almejada liberdade, e que esta no se d no mbito moral, mas somente no fsico.

    PALAVRAS-CHAVE: Motivao; carter; liberdade; vontade; causalidade.

    1. Introduo

    O pessimismo na filosofia de Schopenhauer agora se estende at ao polmico tema da liberdade moral. Apesar de presente em vrias de suas obras, o tema , sobretudo, abordado em sua obra ber die Freiheit des Willens, isto , Sobre a Liberdade da Vontade oferecida como resposta questo formulada pela Academia Real da Noruega, obra esta que como bem observa Fabio Librio Rocha2 foi a exemplo da edio francesa traduzida equivocadamente para o portugus com o ttulo de O Livre Arbtrio, vez que o termo Vontade na filosofia Schopenhaueriana possui uma significao toda peculiar, no podendo ser tomado no seu uso corrente.

    1 Graduando no Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Vale do Iguau (Uniguau).

    Premiado com o ttulo de Aluno Nota 10 promovido pela mesma Unidade de Ensino por ter obtido o maior aproveitamento acadmico (mdia final: 10,0) de toda a Instituio no 2 Semestre do ano de 2007. 2 ROCHA, Fbio Librio. Schopenhauer e o assassinato do desejo a servilidade do sujeito

    balizada sob dois aspectos: a liberdade e a racionalidade. Unio da Vitria: Faculdade Estadual de Filosofia, Cincias e Letras, Coleo Vale do Iguau, n 75. Kaygangue, 2003. p. 15.

  • 2

    Para Schopenhauer a liberdade pode ser de trs naturezas, quais sejam a fsica, a intelectual e a moral. A primeira concerne inexistncia de qualquer obstculo material para a execuo da Vontade. este o sentido mais corrente para se designar a presena ou no da liberdade. J o estudo da liberdade intelectual no esmiuado pelo autor, dizendo somente que tal modalidade est por sua natureza mais ligada liberdade fsica do que liberdade moral. Enfim, tm-se a liberdade moral, sobre a qual, segundo o conceito emprico que dela temos, somos autorizados a dizer que somos livres, pois possvel afirmar Eu posso fazer o que eu quero. E nesta seara que a genialidade do filsofo se exterioriza quando ele afirma que dizer Eu quero j pressupe a existncia de uma liberdade moral e, versando o problema exatamente sobre este querer humano, Schopenhauer indaga: E podes tambm querer o que queres?. Sendo a busca pela resposta a tal indagao o objetivo principal da obra schopenhaueriana e, portanto, objeto do presente trabalho.

    2. Do Princpio de Causalidade Lato sensu

    Schopenhauer acredita que todas as coisas no mundo fenomnico, vale dizer, emprico, esto submetidas a uma causa, ou seja, ao princpio de razo suficiente. Assim, existem e, por conseguinte ocorrem de modo necessrio. A fim de estabelecer esta relao de modo mais convincente o filsofo diz que todas as modificaes possveis dos seres esto subjugadas ao que ele chamou de princpio de causalidade, o qual se apresenta () sob trs aspectos: 1) a Causalidade, no sentido mais restrito da palavra; 2) a Excitao (Reiz); 3) finalmente a Motivao. 3 A Causalidade stricto sensu concerne s () mutaes mecnicas, fsicas e qumicas ()4 ocorridas nos objetos da experincia e, identifica-se com a 3 Lei de Newton Ao e Reao e com a 2 Lei do mesmo fsico no que pertine proporcionalidade do efeito em relao causa. neste sentido 3 SCHOPENHAUER. Arthur. O Livre Arbtrio. Traduo de Lohengrin de Oliveira. So Paulo:

    Ediouro, 1985, p. 67. 4 Idem.

  • 3

    que ao sabermos a intensidade da causa podemos com exatido calcular a intensidade do efeito, sendo este submetido necessariamente quela, no havendo margem de liberdade para que o efeito ocorra de outra seno da forma j previamente determinada pela causa. Tal noo se extrai claramente da passagem da obra schopenhaueriana O Livre Arbtrio em que se assevera:

    () quando a maneira de uma vez por todas conhecida no seu efeito, podemos imediatamente saber, medir e calcular, nas bases do grau de identidade e do efeito, o grau de intensidade da causa e reciprocamente. Mas, () no se deve confundir o efeito propriamente dito com o efeito aparente (sensvel), o qual vemos produzir-se. 5

    J a Excitao a segunda Lei de Causalidade apontada e, segundo Schopenhauerr, aquela que possui duas caractersticas marcantes, quais sejam: () 1.) no h exata proporcionalidade entre a ao e a reao correspondente; 2.) no se pode estabelecer nenhuma equao entre a intensidade da causa e a intensidade do efeito.6 Sabe-se, por exemplo, que em determinadas circunstncias o aumento na intensidade da causa pode gerar tanto a majorao quanto a minorao na intensidade do efeito, ou ainda, promover tanto um efeito benfico quanto malfico. o que ocorre, por exemplo, com o crescimento das plantas, que com o calor pode ter considervel progresso, mas que, todavia, elevada a temperatura em poucos graus poder acarretar no o amadurecimento precoce da planta, mas sim, a sua morte.

    Assim, a Excitao a Lei de Causalidade que se relaciona com as modificaes ocorridas nos organismos. atinente s transformaes de natureza orgnica e vegetativa, ou ainda, s funes dos corpos animados, sendo que sobre eles agem a luz, o calor, o ar, a nutrio etc.

    Enfim, a ltima Lei Causal a Motivao, e constitui a causa motora do reino animal agindo por intermdio da inteligncia. Tal se d porque os animais, sobretudo o mais evoludo deles, o homem, possuem necessidades 5 Ibidem, p. 68.

    6 Ibidem, p. 69.

  • 4

    mais complexas que outros organismos e, a mera Excitao no suficiente para satisfaz-las, sendo conseqncia natural a substituio da simples receptividade das excitaes pela receptividade dos motivos, que nada mais do que () uma faculdade de representao, uma inteligncia, que oferece inumerveis graus de perfeio, apresentando-se materialmente sob a forma de um sistema nervoso e de um crebro privilegiado pelo conhecimento.7

    De acordo com a concepo schopenhaueriana so os Motivos em conjunto com o carter os responsveis pelas aes humanas positivas ou negativas. Porm, aqui preciso esclarecer que as modificaes ocorridas em relao ao ser humano podem ser decorrentes da Excitao e da Motivao. Todavia, ainda que analisada superficialmente, a diferena da incidncia entre ambas facilmente identificvel, eis que no primeiro caso as mutaes no ocorrem seno no que tange s funes orgnicas, ou seja, um fenmeno meramente biolgico, enquanto no segundo caso, dada a complexidade para a concretizao fenomnica da receptividade dos motivos o ambiente intermedirio para tanto no mais a atmosfera em que excitantes como o ar, a luz ou o calor se manifestam , mas sim, a inteligncia.

    A distino, segundo Schopenhauer, fica mais ntida quando se coteja ambas as hipteses de causalidade e se chega concluso de que:

    Nos corpos que se movem exclusivamente sob a influncia de excitao, os vegetais, denominamos essa condio permanente de atividade a fora vital; nos corpos que no se movem seno sob a influncia dos motivos, no sentido mais restrito da palavra, chamam-no fora natural, ou o complexo de suas qualidades.8

    Adiante, o filsofo faz meno enumerando distines entre as influncias dos Motivos em relao ao homem e aos demais seres do reino animal, todas elas atinentes caracterstica inerente ao ser humano de poder valer-se alm da percepo, tambm da razo. Sendo que estas percepo e

    7 Ibidem, p. 70

    8 Ibidem, p. 72.

  • 5

    razo na medida em que exercem influncia sobre o indivduo acabam por se tornarem Motivos, de natureza abstrata e sensvel respectivamente. Desta feita, com o intuito de restar clara a exposio, importa destacar que os Motivos podem ser inmeros e de naturezas distintas, sendo objetos do querer humano, isto , exercendo influncia sobre a Vontade por intermdio da percepo ou do intelecto. Sendo assim, possvel que vrios Motivos (objetos) se apresentem ao sujeito a fim de que o mesmo possa optar por um deles. Todavia, facultado ao mesmo indivduo:

    () desejar duas coisas opostas, mas no se pode querer seno uma: e por qual das duas a vontade se decidiu precisamente o que a conscincia adverte somente a posteriori, por meio do ato realizado. Todavia, relativamente necessidade racional em virtude da qual, de dois desejos opostos, um e no outro que passa do estado de volio e de ato, a conscincia no pode facultar esclarecimentos preciosos, porque essa mesma colhe resultados (do conflito de motivos) somente a posteriori, no lhe sendo possvel de qualquer forma ser informada a priori.9

    Schopenhauer ainda acerca dos Motivos elenca-os em trs grandes categorias, a saber: o egosmo, a maldade e a compaixo. So motivaes morais que agiro sobre o homem com maior ou menor intensidade conforme suas inclinaes. Neste diapaso, sobre um carter egosta atuaro os Motivos egostas em detrimento dos relativos maldade e compaixo, os quais nunca se sobressairo em face daquele. Com tal alicerce no s verossmil como apodtica a defesa de que um homem de carter movido por Motivos egostas:

    No sacrificar tampouco o seu interesse para se vingar de um inimigo como para ajudar um amigo. Algum outro fortemente sensvel a motivos maldosos no recear, para prejudicar a outrem, grandes prejuzos prprios.10

    9 Loc. Cit., p. 50.

    10 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. Trad. de Maria Lcia Cacciola. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 186.

  • 6

    Quem movido pela maldade sente um prazer em causar o sofrimento alheio demasiadamente superior ao de evitar o prprio. Portanto, esta categoria de pessoas, diga-se, estes seres inclinados e consecutivamente motivados pelo mal: Vo em xtases apaixonados para a luta, na qual esperam tanto receber quanto distribuir grandes ferimentos; matam com premeditao quem lhes causou um mal e logo depois a si mesmos, para fugir do castigo.11 Diametralmente opostos a estas motivaes esto aqueles aos quais costumamos reconhecer a bondade do corao. So aqueles indivduos movidos por uma () compaixo profundamente sentida e universal por tudo o que tem vida ()12 Porm, preocupa-se, sobretudo, com os seres humanos, na medida em que quanto maior o potencial de inteligncia, maior o sofrimento. Ficando, indubitavelmente, os animais que no os humanos em posio de vantagem, j que sua dor somente fsica e no acrescida da espiritual como ocorre com o homem. So indivduos de amizade desejvel, autores de aes louvveis, pois, a compaixo para Schopenhauer o fundamento de toda a moral e, portanto, pessoas que nela pautadas praticam atos de benevolncia so verdadeiros cones da moralidade. Contudo, da mesma maneira como pode ocorrer com aqueles que so coagidos a agirem de acordo com os Motivos intrinsecamente maus, os amveis do ponto de vista moral podem exacerbar seu carter benevolente at ao extremo de querer praticar a bondade esquecendo-se de si mesmo e, conferindo maior importncia ao sofrimento alheio do que ao prprio. No excepcionalmente, sacrificam-se em prol de outro ou, o fazem com maior fervor se seu sacrifcio estiver sendo realizado em benefcio de uma coletividade. Destaca-se ainda, a seguinte passagem em que Schopenhauer advoga a respeito dos estmulos decorrentes dos Motivos dizendo que:

    De acordo com esta inacreditavelmente grande diferena inata e originria, cada qual s ser estimulado predominantemente pelos motivos para os quais ele tem uma sensibilidade preponderante, do mesmo modo que um corpo s reage aos cidos,

    11

    Idem. 12

    Idem.

  • 7

    os outros s aos lcalis; e, da mesma forma que esta, tambm aquele no muda.13

    Por tal condio, de nada adianta apresentar Motivos caritativos ao egosta ou ao malvado a fim de que se compadeam acerca de lamentveis situaes de sofrimento alheio. Todavia, obrando-se de maneira a inculcar ao egosta, por exemplo, que sua boa ao alm de diminuir o sofrimento de outrem, o levar a auferir uma vantagem pessoal, possvel que a to esperada ao benevolente ocorra. Porm, no se est moralizando nada nem ningum, o que se faz no modificar o carter, a Vontade, mas unicamente direcion-los por outro caminho que no o at ento diretamente nocivo aos demais.

    3. Do carter e seus atributos

    Expostos at aqui os princpios, ou melhor, as Leis de Causalidade, alm da explicao de que os Motivos so objetos da Motivao e, que esta a espcie do gnero supracitado que se apresentam ao homem e, que, este nos ditames da escolha de sua Vontade age conforme tal apresentao, faz-se mister ressaltar qual a razo que determina como os mesmos Motivos atuam distintamente em indivduos diferentes. Aqui, mais uma vez Schopenhauer traz baila novos elementos com o escopo de afirmar sua tese da no-liberdade humana, e o faz agora abordando o aspecto mais profundo do ser humano, qual seja o carter, eis que este o que h de mais ntimo, o seu Eu propriamente dito. E ao carter que Schopenhauer atribui quatro caractersticas intrnsecas e essenciais para desvelar os mistrios da liberdade. Para o filsofo, o carter humano : 1.) Individual: segundo esta perspectiva, o carter difere de indivduo a indivduo, ou seja, no existem duas pessoas com idntico carter. Tal ocorre assim como se analisarmos o aspecto intelectual de todos os seres humanos,

    13

    Loc. cit., p. 187.

  • 8

    anlise esta que indubitavelmente levar-nos- a crer que as disparidades so de enorme monta. por tal razo que os mais variados Motivos agem diversamente em uns e outros, j que o carter de cada um reage de maneira dessemelhante a determinadas circunstncias. Portanto, este atributo pertine diferenciao que cada indivduo tem em relao aos demais e, via de conseqncia, sob qual argumento age desta e no de outra forma. De modo anlogo, o que acontece na natureza em geral, quando () a luz do Sol embranquece a pelcula e enegrece o cloreto de prata e que o calor amolece a cera e endurece a argila.14 Assim como no possvel saber quais e como sero as reaes supramencionadas sem que se conhea acerca de qual substncia est se falando, da mesma forma se procede no que tange ao ser humano, vez que no h como prever qual ao resultar da influncia dos Motivos se no houver o perfeito conhecimento do carter por eles solicitado. 2.) Emprico: o carter humano no pode aprioristicamente ser conhecido, mas to somente atravs da experincia tal conhecimento possibilitado, seja nos outros ou em ns mesmos. Deste modo, que confiamos ou no nesta ou naquela pessoa segundo suas obras, pois no h que se diagnosticar de antemo o carter nosso ou alheio sem que se saiba das aes realizadas pelo seu possuidor. Por se encontrar no mago de cada ser humano, nos vedado precipitadamente julgar qualquer um que seja por meras especulaes afobadas ou, atravs das caractersticas fsicas como defendia o nscio Lombroso15. Portanto, no h que se falar em afirmao da confiabilidade ou no de algum seno por meio da experincia, eis que: 14

    Ibidem, p. 92. 15

    Ver FILHO, Francisco Bissoli. Estigmas da Criminalizao: dos antecedentes reincidncia criminal. So Paulo: Obra Jurdica, 1998. p. 123. Nesta obra o autor explica que Lombroso ficou conhecido como um expoente da Biologia Criminal (ou Antropologia Criminal) e, afirmava ser possvel saber se o sujeito era ou no criminoso nato pelas suas caractersticas fsicas. Elencando um rol de traos que determinariam o carter criminoso do indivduo como, por exemplo: ausncia de barba, a abundncia da cabeleira, a palidez, pequena capacidade craniana, mandbula pesada e desenvolvida, nariz torto ou achatado e pequeno etc.

  • 9

    Somente depois de submetidos a uma prova, podemos estar certos dos outros e de ns mesmos. () Quem j praticou determinado ato, tornar a pratic-lo assim que se apresentem circunstncias idnticas, tanto no bem como no mal. Como por exemplo, quem fosse constrangido a pedir um auxlio considervel, extraordinrio digamos dirigir-se-ia de preferncia a uma pessoa que j tivesse dado provas de sua grandeza de alma, enquanto quem quer contratar um assassino deitar suas vistas sobre uma que j manchou as suas mos no sangue.16

    No raramente, Schopenhauer assevera que por vezes nos deparamos conosco mesmos, felicitando-nos ou decepcionando-nos com nossas aes, que na verdade no so seno a expresso de nossa prpria essncia. O que ocorre em tal circunstncia uma conscientizao esclarecedora, ou seja, uma etapa para o conhecimento exato de nosso carter, atravs do qual se pode atribuir ao homem o que comumente se denomina de carter adquirido. E realmente homem de carter o que conhece com exatido as suas prprias qualidades, boas ou ms, sabendo dessarte o que pode esperar ou pretender de si mesmo.17 3.) Invarivel: Schopenhauer acredita que o carter o mesmo durante toda a vida do indivduo, ou seja, o esse essncia humano e, portanto, imutvel. O homem em si desde o incio at o fim de sua vida permanece idntico. O carter para o filsofo algo dado, apriorstico e, independente de qualquer circunstncia modificadora. Ainda que passem vinte ou trinta anos distanciados de um velho conhecido, quando do seu reencontro visvel que o mesmo nada mudou na sua essncia, que seus gostos e inclinaes de outrora permanecem intactos. H to somente a aquisio da experincia em razo do tempo e as mudanas fsicas que so inevitveis. Aparentes mudanas no so nada mais do aparentes mudanas, vez que qualquer modificao que se apresente

    16

    SCHOPENHAUER. Arthur. O Livre Arbtrio. Traduo de Lohengrin de Oliveira. So Paulo: Ediouro, 1985, p. 93.

    17 Ibidem, p. 94.

  • 10

    acontece to somente na () diretriz geral e na matria desta, provindo da diferena de idade e das necessidades diversas que sobrevm.18 Cumpre assinalar, que quando exatamente conhecido o carter, pode-se afirmar com clareza de que aes ser capaz o seu detentor na medida em que se lhe apresentando determinados Motivos, sua Vontade vale dizer o carter, j que que essncia optar por realizar esta ou aquela obra sem consultar a conscincia, pois age livremente sem que o sujeito possa deveras interferir em tal escolha. Ento, sendo imutvel o carter, no h outra concluso que no seja a de admitir a sabedoria do provrbio: Quem bebeu, beber ou ento: Ladro de um dia, ladro de sempre.19 Em razo desta concluso, nos assuntos de Estado, por exemplo, embora tenha algum auxiliado na execuo de determinada ao, se para tanto o aludido algum utilizou-se da traio, do golpe ou de atos desonestos, ser inteligente e prudente promover () o afastamento desse homem, porque as circunstncias poderiam transformar-se, enquanto o seu carter imutvel.20 Portanto, como bem afirma Schopenhauer:

    Um homem, ainda quando tenha conhecimento claro de seus erros e imperfeies morais, quando ele os deteste, quando tome a firme resoluo de corrigir-se, no se corrige jamais completamente; logo, no obstante as suas mais srias resolues, apesar de sinceras promessas, tudo se esvair, assim que se apresente ocasio, no mesmo sendeiro anterior, sendo ele prprio o primeiro a admirar-se de sua recada.21

    Por isso, nunca um homem mau se transformar em bom, aplicando-se a, tambm a equao inversa. Como j afirmara o grande poeta Goethe em sua obra Fausto, citado por Schopenhauer:

    18

    Idem. 19

    Ibidem, p. 95. 20

    Idem. 21

    Ibidem, p. 96.

  • 11

    No fim sereis sempre o que sois Por mais que os ps sobre as altas solas coloqueis E useis perucas de milhes de anis Haveis de ser sempre o que sois22

    Como bem observa Schopenhauer, a prpria doutrina Crist admite tal modo de ver, j que na narrao do Sermo da Montanha, aps a colocao de que no h boa rvore que d mau fruto, o versculo seguinte (Lucas, 6:45) traz a idia de que: O homem bom do bom tesouro do seu corao tira o bem, e o homem mau do mau tesouro do seu corao tira o mal ()23. Ainda acerca da imutabilidade do carter e da conseqente repetio cclica de atos, reitera-se que no se pode transformar o carter como se o mesmo fosse uma obra em construo, visto que o mesmo dado a priori, e quaisquer influncias externas no passam disto. Por esta razo, quando se v que certo indivduo em idnticas situaes agiu diferentemente sabe-se que o fundamento para tal mudana no seno a melhor compreenso dos Motivos que se lhe apresentam Vontade. Isto se confirma com a exposio que h pouco fizemos no que concerne intermediao da inteligncia para que motivo e carter se coadunem e determinem a ao que se proceder, uma vez que unicamente a evoluo e a correo paulatina do intelecto podem fazer com que o indivduo possa compreender com mais preciso os Motivos que a ele se exibem e, portanto, agir de outro modo, j que a Vontade s tem a competncia para escolher e determinar esta ou aquela ao de acordo com os Motivos que a ela chegam atravs da inteligncia. Assim:

    A cultura da inteligncia, enriquecida de muitos e variados conhecimentos, deriva a sua importncia do fato de motivos de ordem superior, aos quais destitudo de cultura o homem no seria acessvel, poderem, de tal forma, abrir at a sua vontade. No estivesse o homem apto a compreender tais motivos, esses, para sua inteligncia, seriam como inexistentes.24

    22

    SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. Trad. de Maria Lcia Cacciola. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 190.

    23 Ibidem, p. 183/184.

    24 SCHOPENHAUER. Arthur. O Livre Arbtrio. Traduo de Lohengrin de Oliveira. So Paulo: Ediouro, 1985, p. 97.

  • 12

    com fulcro em tal condio que Schopenhauer demonstra que os escolsticos afirmavam: () Causa finalis (o escopo, o motivo) movet non secundum suum esse reale, sed secundum esse cognitum. (O motivo move a Vontade no por aquilo que ele em si, mas enquanto conhecido).25 Por tal razo no se promove eventuais correes no mbito moral a no ser a correo atinente ao conhecimento, pois havero novos Motivos que se expe diante do indivduo, ou melhor, da sua Vontade. Neste sentido, procurar transformar o carter com discursos filosofastros ou doutrinas religiosas moralistas, s quais mais tarde Nietzsche atribuiria a denominao de discursos de rebanho e refutaria como um dos principais objetivos de sua filosofia da transvalorao, () por certo mais impossvel do que poder transformar chumbo em ouro.26 Para tanto, diz Schopenhauer:

    () seria preciso que, por assim dizer, se virasse pelo avesso o corao no corpo e que se metamorfoseasse seu mago mais profundo. Ao contrrio, tudo o que se pode fazer aclarar a cabea, instruir-se a inteligncia, trazendo o ser humano para uma compreenso mais correta daquilo que se apresenta objetivamente e das verdadeiras relaes da vida.27

    Na mesma diretriz da imutabilidade do carter, Schopenhauer ainda em outra obra aduz que:

    A invariabilidade do carter e a necessidade das aes dela procedente se apresentam com clareza incomum naquele que numa oportunidade qualquer, no se comportou como devia, ao no corresponder com deciso, firmeza ou coragem ou qualquer outra propriedade requerida pelo momento. Agora, depois, ele reconhece e lamenta

    25

    Idem. 26

    A respeito da metfora da transformao do chumbo em ouro ver: SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. Traduo Maria Lcia Cacciola. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 188. e SCHOPENHAUER. Arthur. O Livre Arbtrio. Traduo de Lohengrin de Oliveira. So Paulo: Ediouro, 1985, p. 97.

    27 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. Traduo de Maria Lcia Cacciola. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 188.

  • 13

    sinceramente sua conduta incorreta, e provavelmente pensa: Se estivesse novamente nesta situao, agiria de modo diferente! A situao novamente se lhe apresenta, o mesmo fato ocorre, e ele repete precisamente o que j fez, para seu prprio espanto.28

    Logo, conclumos que ao contrrio do que mais tarde diria Sartre com a indagao: o que faremos com o que fizeram de ns?, Schopenhauer no se convence com hiptese de que o ser-em-si possa ser modificado, eis que intangvel. Alm disso, de modo a adiantar eventuais argumentos de que Sartre no estaria defendendo a construo do carter pela famlia, amigos, escola ou sociedade, mas que estaria sustentando que somente o agir humano seria passvel de desvirtuamento, esclarecemos que se o operari conseqncia necessria do esse, impossvel o no reconhecimento do dissdio filosfico ainda que temporalmente separados entre estes pensadores.

    4.) Inato: O carter individual inato, isto , no h que se iludir com uma eventual construo da essncia humana, ela dada, no fruto de uma obra de arte ou exato planejamento formulado por um engenheiro do carter. No tambm mera conseqncia das circunstncias e, definitivamente, no passvel de edificao pela situao ou condio social. desde a infncia que percebemos quo bom ou mau o carter de uma pessoa, () razo pela qual duas crianas, submetidas mesma educao e influncia de idntico ambiente, no tardam todavia a revelar, por sintomas evidentssimos, dois caracteres essencialmente distintos ().29 Ainda, Schopenhauer sustenta que, tendo em vista serem as proposies anteriormente tomadas verdadeiras ocorrncias necesrias, vcio e virtude, por conseguinte so caractersticas inatas e no adquiridas no decorrer da vida. Apesar de no ser adepto em demasia por assim se dizer da filosofia de Scrates, Schopenhauer notando a observao aristotlica afirma que o conhecido pai da tica tambm confiava neste inatismo do carter,

    28

    SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paralipomena. Coleo Os Pensadores. Traduo de Wolfang Leo Maar. So Paulo: Abril, 1974, p. 116.

    29 SCHOPENHAUER. Arthur. O Livre Arbtrio. Traduo de Lohengrin de Oliveira. So Paulo: Ediouro, 1985, p. 98.

  • 14

    haja vista a sua afirmao de que () no depende de ns sermos bons ou maus ()30. Segundo Schopenhauer:

    O prprio Aristteles expressa-se no mesmo sentido: Pasi gr dokei hekasra ton ethon hyparkhein physei pos; kai gr dkaioi kai sophronikoi kai andreioi kai talla ekhomem eithus ek genetes. (Singuli enim mores in omnibus hominibusquadammodo videntur inesse natura: namque ad justitiam, temperantiam, fortidudinem ceterasque virtutes apti atque habiles sumus, cum primum nascimur) [Todo o mundo admite, com efeito, que cada tipo de carter pertence a seu possuidor, de qualquer modo, por natureza: pois somos justos, temperantes ou fortes e assim por diante desde o momento de nosso nascimento.]31

    Conforme expe em sua tica32, Schopenhauer cr que a compaixo o autntico Fundamento da Moral e, aps concluir tal argumento, pergunta-se: Pode a tica, j que descobre a motivao moral faz-la [a caridade] atuar? Pode ela transformar um homem de corao duro num compassivo e, da, num justo e caridoso?33. E a seguir ele convicto de seu acerto filosfico responde: Por certo que no: a diferena dos caracteres inata e indelvel. A maldade to inata ao maldoso como o dente venenoso ou a glndula venenosa da serpente. Tambm como ela, no pode mudar.34

    4. Da necessidade dos atos de Vontade e a conseqente iluso da liberdade de indiferena (liberum arbitrium indifferentiae)

    30

    Idem. 31

    SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. Trad. de Maria Lcia Cacciola. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 182.

    32 desta forma que Schopenhauer se refere sua obra Sobre o Fundamento da Moral, a qual foi apresentada como resposta Sociedade Real Dinamarquesa de Cincias de Copenhague. Obra que aps ser publicada acabou sendo unificada com a obra Sobre a Liberdade da Vontade (ver nota n. 2) apresentada Academia Real da Noruega, formando Os dois problemas Fundamentais da tica.

    33 SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. Trad. de Maria Lcia Cacciola. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 181.

    34 Idem.

  • 15

    Schopenhauer alm de afirmar que nossos atos no podem ser outros seno aqueles escolhidos pela Vontade, como j exposto, assevera que a iluso de que temos como optar por este ou aquele objeto (motivo) indiferentemente causada quando do processo cognitivo que aparentemente impulsionamos e coordenamos conscientemente da maneira que nos convm. Assim, no bastasse a condio de escravos que nos encontramos em relao Vontade, por ela somos tambm enganados, uma vez que a mesma utiliza-se de nossa mais importante ferramenta o crebro da forma que lhe apraz. Desta maneira, para Schopenhauer, no podemos escolher indiferentemente por este ou por aquele motivo, ou seja, nos vedada a Liberdade de Indiferena, qual o filsofo correntemente se refere em latim, com a expresso liberum arbitrium indifferentiae. Esta idia de Liberdade de Indiferena, ainda que Schopenhauer assevere t-la criado, a mesma como bem visto por Fbio Librio Rocha: () no foi uma criao schopenhaueriana; este termo j apareceu no passado da histria da filosofia (por exemplo Hegel, Plato, Kant)35. Por Schopenhauer, este termo liberum arbitrium indifferentiae explicado da seguinte forma:

    Uma vontade livre () seria a vontade que no fosse determinada por razo alguma, digamos nada, dado que qualquer coisa que determina outra ou uma razo ou uma causa; seria uma vontade cujas manifestaes individuais (volies), surgiriam por acaso e sem qualquer provocao (). Diante de uma noo desse gnero () o princpio de razo suficiente () deve ser aqui repudiado, se quisermos acender idia de liberdade absoluta.

    35

    ROCHA, Fbio Librio. Schopenhauer e o assassinato do desejo a servilidade do sujeito balizada sob dois aspectos: a liberdade e a racionalidade. Unio da Vitria: Faculdade Estadual de Filosofia, Cincias e Letras, Coleo Vale do Iguau, n 75. Kaygangue, 2003. p. 59.

  • 16

    Para ele, () no carece de um termo tcnico (terminus technicus ad hoc) para designar essa noo to obscura e de concepo difcil: designamo-la como liberdade de indiferena: (liberum arbitrium indifferentiae).36 Cumpre salientar, que Schopenhauer v somente a Vontade como livre, isto , como essncia e, portanto, alheia a qualquer forma de determinao, como por exemplo, o tempo, o espao e a causalidade. Assim, o nosso corpo visto como mero instrumento para a realizao das pulses emanadas pela Vontade, e esta, atravs dos rgos da percepo, bem como atravs do processo cognitivo para se formar o conhecimento efetivo dos Motivos, opta autonomamente por este ou por aquele Motivo. Conforme aduz Schopenhauer, a Vontade tomada como coisa-em-si no outra coisa seno o querer-viver, expresso que pode ser vista at como um pleonasmo, j que o querer, segundo o filsofo, expresso da Vontade de Vida. Merece, portanto, lugar de importncia em sua filosofia o tema da sexualidade, j que esta a exteriorizao mais voraz da Vontade de viver de cada um. Pessimista, Schopenhauer em sua Metafsica do Amor acredita que todas as declaraes e supostas expresses atinentes ao amor que at ento se mostraram, no foram mais do que o amor sexual de que tanto se ocuparam seus escritos. Sob esta perspectiva, Arthur Schopenhauer afirma que: Toda paixo, com efeito, por mais etrea que possa parecer, na verdade enraza-se to-somente no instinto natural dos sexos; e nada mais que um impulso sexual perfeitamente determinado e individualizado.37 Analisando ainda sob o prisma da iluso criada pela Vontade, Schopenhauer certifica-nos de que tal iluso ocorre mais visivelmente quando o impulso sexual individualizado, fazendo-nos crer que estamos diante de uma suposto amor, pois:

    () o impulso sexual, embora na verdade seja uma necessidade subjetiva, ilude a conscincia; sabe com muita habilidade

    36

    Idem. 37

    SCHOPENHAUER, Arthur. Da Morte/Metafsica do Amor/Sofrimento do Mundo. Trad. Pietro Nasseti. So Paulo: Martin Claret, 2007, p. 81.

  • 17

    cobrir-se com a mscara de uma admirao objetiva, porque a natureza precisa desse estratagema para atingir seus fins. Por muito desinteressada e sublime que possa parecer a admirao pela pessoa amada, o fim ltimo to-somente a criao de um novo indivduo, determinado na sua natureza: isso confirmado pelo fato de no bastar o sentimento recproco, mas sim exigir a posse, isto , o gozo fsico.38

    So vrias as passagens da obra schopenhaueriana que filosoficamente comprovam o processo ilusrio do qual somos acometidos por nossa Vontade para fazer-nos crer que somos livres e optamos por este ou aquele motivo manifestado. Isso porque se a Vontade livre e dela em conjunto com os Motivos dependem todas as nossas aes, verossmil sustentar que nossa conscincia s tem conhecimento da deciso tomada a posteriori. Como essncia que , a Vontade vista como coisa-em-si e, portanto, no sujeita s Leis de Causalidade ou ao Princpio de Razo Suficiente ela livre. J o homem seu fenmeno e, por conseguinte, a ela submetido. Vejamos outra exposio que Schopenhauer faz acerca disto:

    Ao mesmo tempo, como precisamente a mesma vontade livre que se mostra na pessoa e em toda a conduta humana, a que se refere com uma noo sua definio, assim, cada ao isolada deve ser tambm atribuda vontade livre, e assim, sempre como livre, a vontade se apresenta conscincia, de primeira vista: eis pois, e j o dissemos no livro segundo, por que razo qualquer homem, a priori (quer dizer aqui, por um sentimento primitivo) se cr livre em qualquer dos seus atos, no sentido em que, em qualquer caso, acredita poder cumprir qualquer ao: somente a posteriori, por meio da experincia e meditando sobre ela, ele se apercebe de que seus atos resultam com inteira necessidade do seu carter combinado com motivos. Eis a como sucede que os homens vulgares, at os mais incultos que no ouvem seno o prprio sentimento, sustentam calorosamente a perfeita liberdade de todas as aes isoladas, enquanto os grandes

    38

    Ibidem, p. 83.

  • 18

    pensadores, e at as doutrinas religiosas mais profundas, a negaram.39

    Ainda, acreditando veementemente na primariedade da Vontade e, em decorrncia sendo esta essncia humana, bem como na necessidade dos atos de vontade, Schopenhauer diz:

    A conscincia moral acompanha a ao com o comentrio: Tu tambm poderias agir de outro modo, embora seu verdadeiro sentido seja: Tu tambm poderias ser um outro. Como de um lado h a invariabilidade do carter, e do outro a rgida necessidade com que se verificam todas as circunstncias em que se situa sucessivamente, o curso da vida de cada um totalmente determinado (), sendo que um incomparavelmente mais feliz, nobre e digno, em todas as determinaes, subjetivas como objetivas, do que outro ().40

    Enfim, para Schopenhauer, o ser humano est condenado servido em relao sua Vontade desde o seu nascimento at a sua inevitvel morte e, () tudo o que acontece unido firmemente pela cadeia causal, ocorrendo sob estrita necessidade, e assim o futuro j se encontra estabelecido, determinado segura e precisamente, sendo to altervel quanto o passado.41 Havendo somente trs hipteses de negao do querer-viver, vale dizer de libertao do indivduo, as quais so efmeras e possveis somente ao gnio. Schopenhauer diz que tal s ocorre nos seguintes casos: a) pela contemplao do belo atravs da arte; b) Pela ascese e; c) Pela compaixo: sendo ela o fundamento da moral para o filsofo.42

    39

    SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representao. Traduo de Heraldo Barbuy. So Paulo: Edies e Publicaes do Brasil, 1941, p. 42/43. 40

    SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paralipomena. Coleo Os Pensadores. Traduo de Wolfang Leo Maar. So Paulo: Abril, 1974, p. 117/118.

    41 Loc. cit.

    42 Para saber acerca destas trs hipteses de libertao do indivduo ver: ROCHA, Fbio Librio. Schopenhauer e o assassinato do desejo a servilidade do sujeito balizada sob dois aspectos: a liberdade e a racionalidade. Unio da Vitria: Faculdade Estadual de Filosofia, Cincias e Letras, Coleo Vale do Iguau, n 75. Kaygangue, 2003, p. 93/98.

  • 19

    5. Consideraes finais

    Com toda esta apresentao de idias, cumpre-nos ressaltar novamente o dissdio filosfico entre Schopenhauer e Sartre, j que este falando da nusea do viver, afirmava que tal ocorria porque estamos condenados liberdade, e tal condenao consistiria na irrevogvel atribuio de termos que escolher durante toda a vida. Convico esta, visivelmente avessa s idias schopenhauerianas. Ademais, Schopenhauer nos traz uma noo pessimista como no poderia deixar de ser acerca da ressocializao do indivduo criminoso. Tal se d, porque o filsofo acredita que () no aos seus atos individuais, mas a seu ser e essncia se prendem culpa e mrito.43 Alm disso, Schopenhauer assevera que o sistema penitencirio americano no se funda na esperana de modificao do carter e, na ressocializao, mas sim, busca aclarar a cabea do detento a fim de que este se convena que atravs do trabalho honesto o seu bem individual ser mais seguro do que por intermdio do crime.44 Desta forma, crente de que Operari sequitur esse, isto , o agir segue o ser, Schopenhauer aduz que a punio no ocorre meramente pela ao desempenhada pelo indivduo, mesmo porque, se assim o fosse, deveramos punir a prpria ao, o que constituiria um absurdo. Todavia, pune-se o autor da ao j que esta a autntica e necessria exteriorizao de seu mago mais profundo e, deix-lo convivendo em sociedade demasiado temerrio, j que no lhe apresentando novos Motivos ele voltar a delinqir, pois iguais circunstncias permanecem para tanto.

    De todo modo, Schopenhauer defende que no h recuperao alguma para o indivduo que de fato movido por Motivos egostas ou maus. Sendo a ressocializao uma impossibilidade defendida oniricamente, e o afastamento do meio social uma medida de proteo esta, e no tentativa de recuperao. 43

    SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paralipomena. Coleo Os Pensadores. Traduo de Wolfang Leo Maar. So Paulo: Abril, 1974, p. 117/118.

    44 Acerca dos comentrios de Schopenhauer ao sistema penitencirio americano ver: SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. Trad. de Maria Lcia Cacciola. So Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 188 e SCHOPENHAUER. Arthur. O Livre Arbtrio. Traduo de Lohengrin de Oliveira. So Paulo: Ediouro, 1985, p. 96.

  • 20

    6. Referncias Bibliogrficas

    FILHO, Francisco Bissoli. Estigmas da Criminalizao: dos antecedentes reincidncia criminal. So Paulo: Obra Jurdica, 1998.

    ROCHA, Fbio Librio. Schopenhauer e o assassinato do desejo a servilidade do sujeito balizada sob dois aspectos: a liberdade e a racionalidade. Unio da Vitria: Faculdade Estadual de Filosofia, Cincias e Letras, Coleo Vale do Iguau, n 75. Kaygangue, 2003.

    SCHOPENHAUER, Arthur. Da Morte/Metafsica do Amor/Sofrimento do Mundo. Trad. Pietro Nasseti. So Paulo: Martin Claret, 2007.

    SCHOPENHAUER. Arthur. O Livre Arbtrio. Traduo de Lohengrin de Oliveira. So Paulo: Ediouro, 1985.

    SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Representao. Traduo de Heraldo Barbuy. So Paulo: Edies e Publicaes do Brasil, 1941.

    SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e Paralipomena. Coleo Os Pensadores. Traduo de Wolfang Leo Maar. So Paulo: Abril, 1974.

    SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. Traduo Maria Lcia Cacciola. So Paulo: Martins Fontes, 1995.