o caldo na panela de pressao - mirella alves de brito
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANASPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
MIRELLA ALVES DE BRITO
O CALDO NA PANELA DE PRESSO: UM OLHAR ETNOGRFICO SOBRE O PRESDIOPARA MULHERES EM FLORIANPOLIS
FLORIANPOLIS,2007
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MIRELLA ALVES DE BRITO
O CALDO NA PANELA DE PRESSO: UM OLHAR ETNOGRFICO SOBRE O PRESDIO
PARA MULHERES EM FLORIANPOLIS
Dissertao apresentada como requisito parcial obteno doGrau de Mestre em Antropologia Social, Linha de Pesquisa:Convvio Social, Micropoltica e Afetividade. Programa de Ps-
Graduao em Antropologia. Mestrado em Antropologia Social.Centro de Filosofia e Cincias Humanas. Universidade Federal deSanta Catarina.
ORIENTADORA: PROF DR MIRIAM FURTADO HARTUNG
FLORIANPOLIS,2007
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MIRELLA ALVES DE BRITO
O CALDO NA PANELA DE PRESSO: UM OLHAR ETNOGRFICO SOBRE O PRESDIO
PARA MULHERES EM FLORIANPOLIS
Dissertao aprovada como requisito obteno do Grau de Mestre em Antropologia Social,
do Curso de Mestrado em Antropologia Social do Centro de Filosofia e Cincias Humanas, da
Universidade Federal de Santa Catarina, pela banca formada pelos professores:
Orientadora:
PROF DR MIRIAM FURTADO HARTUNG
PPGAS/UFSC
Membro da Banca:
PROF DR SONIA WEIDNER MALUF
PPGAS/UFSC
Membro da Banca:
PROF DR THEOPHILOS RIFIOTIS
PPGAS/UFSC
Suplente:
PROF
DR
MRNIO TEIXEIRA PINTO
PPGAS/UFSC
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DEDICATRIA
A todas as mulheres que participaram dessa pesquisa.
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AGRADECIMENTOS
Aqui agradeo a todos e todas que me atravessaram deixando comigo a vontade de
continuar, o gosto pelas leituras e pela vida, em especial s mulheres presas que participaram
dessa pesquisa como protagonistas.
Tambm a alguns e algumas que, mesmo ausentes, fazem-se prximos, em cada
momento desse trabalho.
Ao meu pai, Dilson Alves de Brito, pela insero na liberdade e minha me, OlcinaVieira de Brito, pela oportunidade de conhecer outros mundos.
Miriam companheira incansvel, pelo amor, dedicao, respeito, eterno incentivo e
com quem aprendo a desenvolver a percepo musical que, ente outras coisas, oferece
sentidos sonoros a esse trabalho.
Perla, por meu nome, pela escuta e pela credibilidade; ao Tiago por me ensinar a
dividir, a escutar e a viver a diferena e ao Joo pela possibilidade de pertencimento, em volta
da mesa aos domingos.
amiga, professora e me, Mara, que ensinou a persistncia, o silncio e tranqilidade
com sua histria de vida e com seu cuidado.
amiga/irm, Patrcia, que to generosamente me acolhe e contribui com minha
escritura.
s crianas: Bruna, Joo Pedro e Mariah, que colorem cada encontro e renovam
minhas esperanas.
Ao Alexandre pela experincia de construo de um espao que tem contribudo com
minha formao e possibilitado o exerccio da produo acadmica sem melindres.
Aos amigos, Quide e Vylma (in memoriam), pela possibilidade de criar novos parentes.
Aos mestres Paulo Csar Volpato (in memoriam), Ktia Maheirie e Elton Luis
Chiaradia, pela influncia direta em meus ensaios sobre a Cadeia Pblica de Itaja.
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A Almir Pedro Sais, por seu jeito de cuidar, pela possibilidade da segurana e pela
grande participao no exerccio da minha profisso.
Rosani, fotgrafa, com quem pude dividir muitas das imagens desse trabalho.
s diretoras Marisol e Maria, pela disponibilidade pela confiana em mim depositada
durante todo o tempo em que solicitei acesso ao Presdio Feminino de Florianpolis.
Miriam Furtado Hartung, pela orientao desse trabalho, com quem pude contar
mesmo quando parecia impossvel continuar.
Professora Snia Maluf, por seu compromisso com os processos de formao naantropologia, em sala de aula; por sua generosidade na atividade docente; pelas
contribuies quando da defesa do projeto e pela disponibilidade em contribuir com o
momento final desse trabalho.
Ao Professor Flvio Wiic, pelas contribuies na qualificao do projeto que deu origem
a esse trabalho e pela credibilidade oferecida para a realizao da pesquisa e permanncia
no programa.
Ao professor Theophilos Rifiotis por gentilmente aceitar participar das discusses
dessa dissertao j na fase de acabamento.
Aos demais professores do PPGAS, porque pude experimentar com alguns o respeito
e o investimento em uma formao de grande qualidade, em especial aos professores: Silvio
Coelho, Mrnio Teixeira Pinto, Alberto Groisman e Maria Amlia Dickie.
Karla que muitas vezes me auxiliou nas atividades burocrticas relacionadas ao
PPGAS.
s pesquisadoras, alunas e amigas, Juliana Dilda; Cristiane Costa; Juliana Barreto e
Cleusa Della Flora, pela oportunidade de troca e de leituras sobre a priso.
Jane pelas conversas, pelas revises desse trabalho e pela experincia da amizade.
Ao Luiz Antonio por todo carinho e pela oportunidade de ter contribudo em mudanas
significativas de sua vida.
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Finalmente, ao Grupo Vocal Bocca Chiusa, com quem me transporto para as mgicas
sonoridades da msica popular brasileira e onde re-carrego as baterias para enfrentar asmazelas que podem estar estampadas nesse trabalho.
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RESUMO
A pesquisa descreve as prticas sociais no Presdio Feminino de Florianpolis, SC. O presdiocorresponde a uma das unidades prisionais do sistema penitencirio de Santa Catarina, nicoexclusivo para a deteno de mulheres. A pesquisa perseguiu o objetivo de identificarcomose organizam as mulheres presas em Florianpolis, como se relacionam e que prticascoletivas so encenadas nesse contexto. A populao de mulheres presas envolvidas napesquisa foi, inicialmente, de 36 mulheres, que haviam sido julgadas e receberam sentenade recluso em regime fechado. Entretanto, ao longo do trabalho de campo esse nmero foise modificando e foi possvel conhecer em torno de 100 mulheres que passaram pelo presdiono perodo em que foi realizada a pesquisa. Reconheceu-se que h no Brasil uma incipiente
tentativa de dar visibilidade a questes que se incorporam no cotidiano prisional, sobretudonos presdios para mulheres. Trs autoras brasileiras so destaques como inovadoras nessarea: Julita Lemgruber (1983); Iara Ilgenfritz e Brbara M. Soares (2002). No exterior merecedestaque Manuela Ivonne da Cunha (2002), na realizao de uma etnografia de um presdiode mulheres em Lisboa/PT. De sorte que, nessa pesquisa foi necessrio articular vriosentendimentos at que pudssemos, a partir dos dados etnogrficos, identificar que asrelaes presa/instituio e priso/violncia embora de extrema relevncia no do contade representar o presdio feminino de Florianpolis tal qual possvel percebe-lo: um lugar deconvivncia e, portanto, de sociabilidades que se sobrepem muitas vezes s prticascoercitivas ali presentes, legitimadas pela sociedade em geral. Foi identificado que aexperincia prisional reedita algumas das prticas j encenadas por essas mulheres, mas d
nfase a algumas relacionadas ao parentesco, a rituais de iniciao na vida prisional e aoestabelecimento de confiana entre pares. Fundamentalmente, o estudo indica que o fluxo deinformaes, pessoas, objetos e desejos, se d de forma a diminuir, ou at mesmo apagar afronteira entre o dentro e o fora da priso, mesmo que, em muitos momentos, essa fronteiraseja decisiva no destino de cada uma das mulheres que ali se encontram.
Palavras-chaves: Priso para mulheres. Reciprocidade. Penalizao.
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ABSTRACT
This research describes social practices in the Female Penitentiary in Florianpolis, SC. Thepenitentiary is one of the units of the penitentiary system in Santa Catarina being the singleone for imprisonment of women in the State. The research aimed in identifying how the
imprisoned women organize themselves, how they relate to each other and which collectiveactions are performed thereof. The number of imprisoned women involved in the researchstarted off as 36 all had undergone trial and had received imprisonment sentence (closedregimen). However, as the research developed, this number changed and reached about 100women who passed by the penitentiary during the research period. It was acknowledged that,in Brazil, there is a crude attempt in showing issues related to the daily life in penitentiaries,especially in female penitentiaries. Three Brazilian writers are highlighted as innovative in thisfield: Julita Lemgruber (1983); Iara Ilgenfritz and Brbara M. Soares (2002). A writer withprominence in a foreign country is Manuela Ivonne da Cunha (2002), on an ethnographyperformed in a female penitentiary in Lisbon (Portugal). Therefore, this research had toundergo several understandings to the point where we were able to identify, from ethnographic
data, the relationship between prisoner/institution and prison/violence that although havinggreat relevance do not duly represent the female penitentiary in Florianpolis as it is in reallife: a place where they live, and thus a sociability place that in many instances overcome thecoercive practices present, justified by society in general. It was identified that the penitentiaryexperience re-edits some practices already performed by these women, but it emphasizessome practices related to family ties, initiation rituals in penitentiary life as well as theestablishment of trust amongst pairs. Basically, the study shows that flow of information,people, object and desires take place in order to decrease, or even erase, the borderline ofinside and outside of prison, even if in some moments, this borderline is decisive in the fate ofeach of the women there.
Key words: female penitentiary, reciprocity, penal standards.
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LISTA DE SIGLAS
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
ONU Organizao das Naes Unidas
HRW Human Rights Watch
DST Doena Sexualmente Transmissvel
AIDS Acquired Immune Deficiency Syndrome
PFF Presdio Feminino de Florianpolis
SUS Sistema nico de Sade
LEP Lei de Execuo Penal
DEPEN Departamento Penitencirio Nacional
DEAP Departamento de administrao penitenciria
ETFSC Escola Tcnica Federal de Santa Catarina
CTC Comisso Tcnica de ClassificaoONG Organizao No-Governamental
LC Liberdade Condicional
PROMENOR Programa Promoo do Menor Trabalhador
CPB Cdigo Penal Brasileiro
SSP Secretaria de Estado de Segurana Pblica e Defesa do Cidado
VEP Vara de Execuo Penal
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SUMRIO
PARTE I 12
A ENTRADA NA PRISO 12
1. INSERO NO CAMPO: ASPECTOS METODOLGICOS 122. O PRESDIO PARA MULHERES EM FLORIANPOLIS 243. DOS MOTIVOS DA PRISO 28
PARTE II 33
O CALDO NA PANELA DE PRESSO: UM OLHAR ETNOGRFICO NO PRESDIO FEMININO DEFLORIANPOLIS 33
1. A TRANSFORMAO DE MULHER LIVRE EM PRESA
332. OS LUGARES PARA ONDE VO 362.1 A cela Zero 362.2 Galerias 372.3 Maracan 372.4 Clnica 382.5 Berrio 39
3. TRNSITOS, ROTINAS E CENRIOS 404. DAS PRTICAS INSTITUCIONAIS 445. O TRABALHO NO PRESDIO FEMININO DE FLORIANPOLIS 566. A EXPERINCIA DE SER ME NA PRISO 657. PRTICAS DO FEMININO/ MASCULINO 768. SOBRE AS REGRAS DE DENTRO E DE FORA DA PRISO 82
9. O NOME DAS COISAS E A PRODUO DOS MEIOS DE SOBREVIVNCIA
10010. A CASA E A RUA: O UNIVERSO DOMSTICO E OS NEGCIOS DO MUNDO 10311. ESTRANHAS AMIGAS E VIZINHAS DE JEGA: O APARENTAMENTO DENTRO DO PRESDIO 11412. QUEM BATIZA QUEM: DA CHEGADA S ACOMODAES 12313. FAMLIA E PARENTESCO: AS AFINIDADES, AS VISITAS E AS TROCAS 124
13.1 Sobre as afinidades 12513.2 As visitas 12713.3 As trocas 130
14. TROCA DE OBJETOS, DE GRUPO, DE IDIAS E DE MULHERES 13115. PARENTE SERPENTE: QUEM VAI VISITAR A PRESA? RELAES HOSTIS E DE MFIA COM A FAMLIA QUE VIVE DOCRIME
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PARTE III 137
ARREMATANDO 137
1. QUANDO A PRESSO ABRE A PANELA, O CALDO ENTORNA 1372. O IMAGINRIO SOCIAL E A VIDA NO PRESDIO: PROPOSTA PARA UM OUTRO OLHAR SOBRE O ESPAO PRISIONAL 1393. REFERNCIAS 142
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PARTE I
A ENTRADA NA PRISO
1. Insero no campo: aspectos metodolgicos
Lima Barreto escreveu, em 1914, quando foi internado pela primeira vez em um
Hospital Psiquitrico: Fui para o pavilho de observao, ramos muitos, tiraram-nos as
roupas, deixaram-nos nus, cortaram-nos os cabelos...1
Este relato, assim como mostra Goffman (1961), retrata parte das estratgias de
despersonalizao de quem inserido em um sistema de confinamento. Uma mulher que
julgada pela justia comum e recebe a sentena de recluso em regime fechado, na cidade
de Florianpolis, experimenta, em diferentes propores, o desnudamento de suas
identidades 2 e, para o poder judicirio, passa a ser identificada por um nmero (uma
matrcula) que lhe confere a condio de presa naquela instituio.
Devolver sociedade pessoas consideradas uma ameaa tem sido o objetivo oficial
maior do sistema prisional. importante dizer, a respeito, que a sociedade ocidental j teve
nos asilos, hospitais, internatos e casernas, o mesmo objetivo. Existem, entretanto, linhas de
fuga de um modelo disciplinar3 de sociedade e, a partir do sculo XX, movimentos polticos
1Aparecero em itlico as falas de autores interlocutores desse trabalho.
2 O termo identidade corresponde, nesse trabalho, a uma forma de ser na sociedade, atravs da qual cadaindivduo se identifica e reconhecido no conjunto das relaes sociais. Corresponde tambm, como quer Pollak(1992, p.5), a imagem que uma pessoa adquire ao longo da sua vida referente a ela prpria, a imagem que elaconstri e apresenta aos outros e a si prpria, para acreditar na sua prpria representao, mas tambm paraser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros. Mas, ainda, tomaremos emprestada a noode Serres (1997), para entender a identidade como um conceito que indica no s um conjunto ao qual sepertence, mas que se caracteriza pela multiplicidade de costuras possveis entre vrios grupos. Assim, umindivduo nunca pertence a apenas um grupo.3 Para aderir a noo de Foucault (1987) acerca da sociedade ocidental, a partir da idade clssica.
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que combatem as diferentes formas de confinamento. Os internatos j so escassos e
correspondem a um contingente que opta livremente por inserir-se na vida de celibato; os
asilos sofrem fiscalizaes contnuas que os obrigam a estabelecer relaes mais
pessoalizadas com seus internos e a buscar uma maior autonomizao dos pacientes; os
hospitais tm sido repensados, sob o paradigma da humanizao, propondo, criando e
implementando programas de ateno sade, mais localizados e menos impessoais.
As perspectivas para as prises, entretanto, no so as mesmas, muito embora
contemos com instituies nacionais e internacionais que visem o controle e a garantia de
direitos universais nos estabelecimentos prisionais, como o caso dos Conselhos
Penitencirios, Pastoral Carcerria e Comisso de Direitos Humanos da OAB, no Brasil, e da
ONU e Human Rights Watch4.
Ainda que possamos identificar esforos dessas e outras instituies, fica a pergunta: o
que nos faz manter a priso como necessria sociedade? Para Foucault (1987) uma
proposta que, ao mesmo tempo, garante a privao da liberdade e transformao tcnica dos
indivduos. Para Loc Wacquant (2001) uma estratgia poltica que atua na capilaridade
econmica, excluindo e mantendo um contingente de pessoas miserveis.
... Conhecem-se todos os inconvenientes da priso, e sabe-se que perigosa
quando no intil. E, entretanto no vemos o que pr em seu lugar. Ela adetestvel soluo, de que no se pode escapar... Como no seria a priso a penapor excelncia numa sociedade em que a liberdade um bem que pertence a todosda mesma maneira e ao qual cada um est ligado por um sentimento universal econstante? Sua perda tem, portanto o mesmo preo para todos; melhor que amulta, ela o castigo igualitrio. (FOUCAULT, 1987, p. 208).
O inchamento explosivo da populao carcerria, o recurso macio s formas maisvariadas de pr e ps-deteno, a eliminao dos programas de trabalho e deeducao no interior das penitencirias, a multiplicao dos instrumentos de
4 A HRW uma organizao, no-governamental, que se dedica proteo dos direitos humanos dos povos domundo inteiro.
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vigilncia tanto a montante quanto a jusante da cadeia carcerria: a nova penalogiaque vem se instalando no tem por objetivo reabilitar os criminosos, mas sim
gerenciar custos e controlar populaes perigosas (WACQUANT, 2001,p. 32)
Embora Foucault (1977; 1979; 1987; 1992; 1997; 1999; 2001) tenha se ocupado com o
modelo de pensamento ocidental e com as produes de saber, e Wacquant (2001a; 2001b)
faa uma crtica do modelo capitalista norte-americano, ambos nos auxiliam a pensar a priso
como um instrumento social que potencializa formas de convivncia, transcendendo seus
supostos e propalados objetivos, como o da reabilitao.Foucault (1979) diz:
Desde 1820 se constata que a priso, longe de transformar os criminosos em gentehonesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afund-los aindamais na criminalidade. [...] A priso fabrica delinqentes, mas os delinqentes soteis tanto no domnio econmico como no poltico. Os delinqentes servem paraalguma coisa. (Foucault 1979, p.131-132).
No Brasil, o sistema prisional mantm a idia que corresponde ao que Foucault (1979)
j assinalava como resultado da maquinaria que se objetivava na priso desde 1820.
RIBEIRO DE S, 1996; LEMGRUBER, 1983; ADORNO e IZUMINO, 2000;
LEMGRUBER, 2000; KANT DE LIMA, 2000; WACQUANT, 2001b; AMORIM, 2004 revelam o
dinmico aumento da criminalidade e a persistncia de prticas de corrupo e de
segregacionismo que se estendem do interior das unidades prisionais para fora do sistemaprisional, num pacto em que se associam vrios setores da sociedade. Para qu? Esse
cenrio de profunda desigualdade social e econmica - que se expressa na excluso de um
grande contingente de pessoas do acesso a direitos j garantidos constitucionalmente
demonstra, para alguns autores, o catico cenrio da atual realidade da priso no Brasil: da
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superlotao, das prticas de violncia reproduzidas no interior dos presdios e as cenas de
corrupo veiculadas pelo sistema de comunicao.
Para Adorno (2003), a distribuio desigual de direitos, na justia, significa que a to
almejada universalidade dos direitos est comprometida em sua base. Ocorre que, em todos
os pases que tm a priso como meio de punir uma quebra de regras, ela a priso ocupa
um lugar significativo no imaginrio social. Ora pela sua funo de privar o direito de ir e vir,
ora por individualizar o sujeito, ora por segregar ainda mais algumas categorias sociais, ou
ainda porque agrupa vrias funes, mantendo-se como o exemplo coercitivo mais eficaz e
ineficaz, ao mesmo tempo.
Para que servem as prises? Sabendo que a resposta no pode ser precisa, uma vez
que estamos falando de complexos arquitetnicos e polticos tecidos pelas malhas de todos
os setores sociais, a fim de responder a interesses tambm polissmicos, tampouco se pode
realizar tal investimento sem considerar uma gama de fatores que correspondem s anlises
dos contextos sobre os quais vimos inscrevendo as formas punitivas da sociedade. S
podemos arriscar que esse modelo de priso, objeto desse trabalho, parece corresponder a
uma tentativa de manter afastado um Outro, e tambm a uma srie de operaes jurdico-
normativas que garante uma continuidade de prticas criminosas de manuteno de poderes
e de produo de saberes.
Considerando que a priso o nico sistema de confinamento que no passou por
reformulaes que alterassem a lgica de clausura que se imprime na relao culpa/punio,
ser tratada, aqui, a vida nas prises: as relaes que no se estabelecem nica e
exclusivamente atravs e com base na violncia, na coero, na opresso; as relaes entre
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as mulheres presas, seus diferentes itinerrios5, seus familiares, os agentes prisionais, e suas
respectivas vivncias no interior das prises.
Na busca de transcender as relaes presa/instituio e priso/violncia, de inegvel
relevncia e urgncia, preciso problematizar e refletir sobre o presdio para mulheres como
um lugar de convivncia e, portanto, de sociabilidades que, na maioria das vezes, se
entrelaam e sobrepem s prticas coercitivas e punitivas que marcam a vida prisional.
Como vivem e se organizam as mulheres no presdio de Florianpolis? Com quem se
relacionam e como so as relaes entre elas, entre elas e os agentes prisionais, entre elas e
seus familiares, maridos, filhos, amigos, quando os tinham? Como essas mulheres constroem
suas vidas dentro de um sistema que, ao menos naquilo que de conhecimento mais geral,
pretende transform-las? Em outras palavras, a preocupao ser entender como, para alm
da violncia inerente e j bem descrita da priso, vivem essas mulheres.
Os relatrios de pesquisas brasileiras realizadas em instituies prisionais tm
assinalado uma resistncia em aceitar as solicitaes de pesquisas nesse campo por parte
das instncias diretoras e das chefias dessas instituies, explicadas pelos solicitantes
(LEMGRUBER, 2000, p.ex.), em, por pelo menos, duas perspectivas. A primeira, mais
psicologizante, que v nessa resistncia uma espcie de sintoma persecutrio daquele que
no deseja ser descoberto. A outra, temos uma explicao que faz eco s leituras de Foucault
(1987) acerca da priso como maquinaria, dispositivo de controle, onde impera a idia de que
a resistncia corresponde a um jogo de foras que procura demarcar os lugares de cada ator
na luta por firmar, reafirmar e constituir novos lugares.
5 Por itinerrios, entende-se os fluxos de informaes, relaes e sentimentos que compem a trajetria da presadentro do presdio desde sua chegada.
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O perodo inicial de insero, de qualquer forma constitui-se, de muitas restries e
olhares desconfiados, chegando, em alguns casos, ao uso abusivo de autoridade:
[...] O fato que no havia a mnima considerao pelas autorizaes queportvamos. Cada ida unidade, tornava-se um tormento, at descobrirmos quemestava de planto e quanto tempo se teria que gastar com os costumeirosaborrecimentos. Em certa ocasio, quando as intransigncias ultrapassaram oslimites at ento tolerados, a coordenadora de campo solicitou ser recebida pelochefe de segurana. Depois de longa espera, foi conduzida s proximidades da saladessa chefia; ali, teve a dupla surpresa de ser ignorada e de ouvi-lo gritar que noiria receb-la, tampouco intervir na questo, uma vez que j estava a par de tudo eno se opunha aos procedimentos de seus subordinados. (Soares e Ilgenfritz, 2002,
p. 15).
Esse trabalho foi procura de questes que escapem das instituies prisionais e que
problematizem as relaes que se referem s formas de agrupamentos familiares. Em um
projeto de reduo de danos e preveno s DSTs/AIDS no presdio feminino de
Florianpolis, tornou-se possvel fazer uma viagem rumo ao universo das relaes sociais
entre mulheres presas 6 no Presdio Feminino de Florianpolis, a fim de conhecer e
compreender o cotidiano, as prticas e os elementos que operam em seu interior, tais como:
formas de constituir parcerias, relaes com a famlia, noes de espao, construo de laos
afetivos, enfim, os modos de viver e se organizar dentro do presdio.
O que mais me chamou a ateno, num primeiro contato, foi a maneira como as presas
lidavam com a alimentao. Elas comem muito. A comida e a cozinha ocupam lugar
importante na vida prisional. As prprias presas que escolhem quem cozinhar, escolha que
depende de entendimentos com a direo do presdio.
O Projeto Vo para a Liberdadeque ensinava as presas a registrar imagens, atravs
da fotografia, a partir de um tema escolhido, promovia encontros que se esgotavam logo que
6 Presa o termo utilizado por elas mesmas e ser adotado ao longo desse trabalho.
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elas se ocupavam com os registros das prprias imagens, que eram enviadas a: familiares
amantes, companheiros(as), filhos(as), pais, irms e irmos, amigas, serviam de lembranas
umas das outras, naquele espao e naquela situao. No se mostravam interessadas em
aprender as tcnicas de fotografar, mas insistiam em serem fotografadas. Os temas
escolhidos para as fotografias, inicialmente, giravam em torno da condio prisional, dos
maus tratos, das negligncias em relao ao direito sade e educao. Essas queixas
deram lugar preparao de refeies. Os lanches ao redor de uma mesa com quitutes,
preparados pelas presas ocasionaram relatos sobre as experincias de ser me na priso7 ou,
simplesmente, de ser presa, e criou um clima de maior intimidade que permitiu conhecer como
essas mulheres viviam no presdio8. Essa foi minha primeira entrada e se caracterizou por
minha disponibilidade em conhecer atravs das presas, a priso.
Depois de orientar outros trabalhos sobre o tema9, no final de 2002, de acordo com a
nova direo do presdio, foi possvel desenvolver o presente projeto de pesquisa, com a
finalidade de estabelecer as relaes que se formavam em torno da alimentao.
A insero no presdio para mulheres de Florianpolis foi cercada de uma relao
respeitosa, sem entraves de ordem institucional, embora em clima de total insegurana, uma
vez que, terreno do controle absoluto e da disciplina. Cada olhar, cada gesto ou palavra so
considerados com desconfiana, sem trgua. preciso evitar a armadilha, muito comum
nesses ambientes, da relao persecutria, em razo das caractersticas do campo,
7 Algumas presas j haviam experimentado a situao de dar luz durante o perodo prisional e a grande maioriaj eram mes antes de serem presas.8 Geralmente estes encontros aconteciam com a minha presena, a da fotgrafa e das presas.9 COSTA, Cristiane. Como as relaes de gnero podem interferir no crime cometido por mulheres que seencontram na Penitenciria Feminina de Florianpolis, 2003. Trabalho de Concluso de Curso (Graduao),Psicologia, UNISUL Universidade do Sul de Santa Catarina, Orientadora Prof Mirella Alves de Brito. DILDA,Juliana. A Mulher aprisionada e o exerccio da maternagem: um estudo no Presdio Feminino deFlorianpolis, 2005. Trabalho de Concluso de Curso (Graduao), Psicologia, UNIVALI Universidade do Valedo Itaja, Orientadora Prof Mirella Alves de Brito.
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perspectiva que visa sempre identificar quem pode estar nos analisando. Mas, tais questes
tambm existem em outros espaos e universos de pesquisas. grande a tenso no trabalho
de campo.
O mtodo da pesquisa descritivo, com base na etnografia, considerando que o olhar
mantm-se fenomenolgico. possvel afirmar que, a prpria escolha da etnografia estava j
presente nas opes de campo e recorte do problema, pois o que se pretende saber que
sentido as mulheres presas do s suas vidas na priso. Como vem, se vem e vivem uma
situao que se mostra, na maioria das vezes, apenas pelas lentes da coero, da violncia,
da privao, da punio, da dor e do sofrimento. Para tanto, foi privilegiada uma insero
criteriosa no campo, a observao participante, entrevistas informais com um pequeno grupo
ou individualmente um roteiro sempre refeito. Alm disso, fotos, filmes e textos, produzidos
pelas mulheres presas, tambm foram recursos empregados no conhecimento e
compreenso daquele universo.
A construo de uma etnografia implica a produo de discursos que descrevem o
campo, razo pela qual a insero o momento crucial, bem como as questes que nos
levam at ele. Foi buscada, assim, uma relao mediada pela confiana que permitisse o
dilogo, lembrando que cada palavra tem o poder de absolver ou punir o ouvinte. Por ser a
priso um lugar em que as pessoas pouco acreditam no que se escreve, a anotao de
campo acontecia depois das entrevistas.
Inicialmente s foi permitido o trnsito, nos alojamentos e galerias, com um agente
prisional, at a direo concordar que no haveria perigo de uma ou de outra parte, o que
permitiu maior privacidade.
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Considerando as particularidades judicirias em se inscrevem as instituies prisionais,
na insero precisei avaliar cada movimento, com quem falaria e pelas mos de quem
entraria, pois no gostaria de ser confundida com representantes da instituio.
Para tanto, foi necessrio utilizar o recurso das visitas, conhecidas dessas mulheres,
em horrios e dias diversos, com a ajuda de registros anteriores10 da vida de mulheres em
presdios. Foram, igualmente, aproveitados materiais produzidos com as presas e por elas,
tais como jornal, vdeo, poesias.
As entrevistas, com as presas e funcionrios da instituio11, incluram a direo do
presdio e a observao de rotinas e de situaes vivenciadas naquele contexto.
A intimidade com o tema ajuda a realizar uma srie de comparaes que permitem
olhar a vida na priso no como um mundo parte, mas que transcende a noo de
instituio total, cunhada por Goffman (1999), pois capaz de engendrar uma srie de
mecanismos simblicos que remetem s relaes intra/extra muros e se aproxima da vida fora
da priso.
Inicialmente, a pesquisa visava populao de mulheres cujas sentenas j tinham
transitado em julgado (aproximadamente 36 mulheres em abril/2003), o que caracterizaria
menos ansiedades decorrentes da incerteza de uma sentena, e mais tempo de contato. No
10 Entre eles esto: BRITO, Mirella Alves de et al. Ensaios para a liberdade. Projeto Vo para a Liberdade.Florianpolis: Instituto Arco-ris/Ministrio da Sade, 2002; LEITE, Eliana (1999). A Dupla condenao deprisioneiras na cadeia: um invisvel objeto da sade coletiva. Dissertao de Mestrado Escola deEnfermagem da USP. So Paulo: USP; SANTOS, Vera Lcia (2003). O Papel desempenhado pelo trabalhodo(a) preso(a) no seu processo de reinsero social. Monografia de ps-graduao em Modalidades deTratamento Penal e Gesto Prisional Universidade Federal do Paran. Curitiba: UFPR; REIS, Marisol (2001)De volta ao exlio: as representaes sociais da reincidncia penitenciria. Dissertao de Mestrado Departamento de Sociologia da UnB. Braslia: UnB; FRINHANI, Fernanda e SOUZA, Ldio. Mulheresencarceradas e espao prisional: uma anlise de representaes sociais. Psicol. Teor. Prat., jun. 2005, vol. 7,n. 1, p. 61 79.11 Ora utilizando o gravador, abandonado no incio, por coibir uma espontaneidade necessria, com notassimultneas, ora realizando as notas logo depois das entrevistas.
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entanto, no decorrer da pesquisa, muitas das presas j estavam em liberdade e outras
passaram a usufruir dela.
As atividades das presas em torno da alimentao, na verdade, permitiram conhecer
outros aspectos da sua vida ali. Entrar pela cozinha foi de grande importncia para o
estabelecimento de vnculos mais fortes e para passar a limpo s primeiras intenes.
No retorno ao presdio foi possvel reencontrar mulheres conhecidas das idas
anteriores, bem como experimentar o que muitas delas vivenciavam e, dessa forma, me
aproximar daquilo que experienciam quando das suas reincidncias. As idas e vindas
colocam-nas, todas, aquelas que no saram e as que retornaram, em contato com o que se
passa e se passou dentro e fora do presdio.
Uma das presas mais antigas, Fernanda (casada, 5 anos de priso, homicdio
qualificado 12 ) 13 que trabalhava na cozinha, j tinha tido contato com outros projetos de
pesquisas, o que a distinguiu das outras, por vezes negativamente, outras de maneira
positiva, quando a tinham como liderana. A situao deixou claro que era impossvel definir
quais seriam as interlocutoras e a melhor e possvel escolha era reconhecer, em cada uma
daquelas mulheres, a possibilidade de reunir informaes sobre a vida no presdio para alm
da violncia que caracteriza o sistema.
Foi necessrio um certo nmero de visitas para criar um clima de confiana. Temiam a
presena da instituio, das agncias de notcia ou do frum 14. Foi necessrio, tambm,
12 CPB, Art. 121 2 .13 Nomes fictcios, seguidos de estado civil, tempo que j est na priso e crime cometido. Vale salientar quenem sempre possvel caracterizar de forma precisa cada presa, uma vez que alguns contatos so muitorpidos permitindo apenas um dilogo no ptio , algumas presas no aceitam falar sobre o crime cometido etambm algumas cometeram mais de um crime, sem ter respondido a todos.14 Isso significa que, comumente, as pessoas presas desconfiam de qualquer pessoa que passe a freqentar opresdio, principalmente quando no lhe dada uma funo definida oficialmente. Desconfiam sempre da
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diferenciar-se de representantes de ONGs, que freqentemente as visitam e levam roupas,
alimentos, e promessas, alm de desenvolverem projetos assistenciais.
A pesquisadora acaba sentindo a necessidade de definir seu status junto comunidade
prisional. Sem ser presa, tampouco funcionria, no estando ali para espionar nem para
oferecer-lhes servios de psicloga ou porta-voz para denunciar a violncia, os maus tratos e
as arbitrariedades prprias desses espaos e instituies, no basta declarar-se
pesquisadora, pois isso s lhes dizia que deveriam responder a muitas perguntas, que seriam
anotadas e gravadas. As presas acreditam que quando encerram seus estudos os
pesquisadores desaparecem.
As conversas no ptio foram constantes durante as visitas ao PFF. O contato era
reiniciado, a cada visita, com perguntas sobre a situao no presdio, as novidades relativas
aos processos, as sadas. E, a partir disso, era possvel iniciar uma conversa relativa
pesquisa em curso. s vezes, as respostas das presas eram monossilbicas, mas,
geralmente, mostravam-se vidas por falar sobre suas vidas.
Foi necessrio tambm construir uma participao, naquele espao, como algum que
tem algo a dizer. No bastava apenas ouvir. Alm das trocas no ambiente acadmico, que
nos ensinam sobre a necessidade de estarmos prximos e distantes, a observar, ouvir e
escrever (Oliveira, 2000), foi no contato com as presas que a necessidade de compreender o
que se v e ouve se fez mais significativa. To diferentes e to iguais a qualquer um...To
prximas quando chamavam para as rodas de conversa; to distantes quando deixavam
muito claro que a pesquisadora era uma intrusa e que, por esta razo, nem tudo poderia ser
dito; to prximas quando buscavam a cumplicidade de algum que sabe do que estavam
possibilidade de trfico de informaes que possam compromet-las de alguma forma, seja atravs de denncias instncias de comando do presdio, seja atravs das pginas dos jornais.
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falando. Entretanto, o que mais me aproxima da experincia tem sido a necessidade de
escrever sobre ela, com isso lembro de Roberto Cardoso de Oliveira:
Se olhar e ouvir constituem a nossa percepo da realidade focalizada na pesquisaemprica, o escrever passa a ser parte quase indissocivel do nosso pensamento,uma vez que o ato de escrever simultneo ao ato de pensar. Quero chamarateno sobre isso [...] no processo de redao de um texto que nossopensamento caminha, encontrando solues que dificilmente aparecero antes datextualizao dos dados provenientes da observao sistemtica (OLIVEIRA, 2000,p.31 e 32).
O autor traz de volta a observao no campo. Fazer parte da cozinha no presdio
importante, principalmente porque indica um lugar social no convvio prisional. Mas, assim
como a cozinha, outros espaos e responsabilidades das presas tambm so marcados por
regras hierrquicas que definem a posio de cada uma.
O local do trabalho15, a responsabilidade com a limpeza nas salas da direo, bem
como as relaes com agentes prisionais e entre as recm chegadas com as veteranas ou asvisitas, demonstram que a alimentao e a cozinha representavam muito mais uma relao
entre presa e instituio, influenciando suas vidas na recluso, do que um projeto prprio.
O que mais inquietante e chama a ateno atravs de suas narrativas, a maneira
como explicam a ocupao de determinados espaos e a forma de atuarem no presdio. So
essas atitudes que demonstram que um estudo etnogrfico no presdio feminino de
Florianpolis poderia levar a entender as prticas sociais experimentadas pelas presas, bem
como compreender como se escolhiam e/ou eram escolhidas para viverem a/na priso. O
contato com o Argonautas do Pacfico de Malinowski (1978) ajudou a pensar o campo como
15 Que corresponde a atividades que se voltam para a prestao de empresas que terceirizam seus servios
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o lugar de onde emergem as perguntas. Mas uma imerso depende de um olhar voltado para
o cotidiano, rotinas e linguagens que nele se expressam.
A alimentao deixou de ser o tema mais inquietante e surgiram situaes que se
impunham com a fora de um estrondo e tomam a pesquisadora por inteira. Nesse processo,
todas as idas ao presdio escancaram a plasticidade com que aquelas mulheres
experimentavam situaes bastante difceis. A experincia de estranhamento do familiar, o
impacto de se reconhecer num Outro que, a priori, deveria ser diferente, pura perplexidade,
que me embargava. Este impacto coloca a pesqusiadora diante de uma espcie de
provisoriedade do Ser, que se v diante de um igual/diferente. Surgiram perguntas no
previstas a cerca do que no sabe sobre aquelas mulheres e suas vidas, o que, pode indicar
dvidas sobre a prpria individualidade de quem pesquisa.
2. O presdio para mulheres em Florianpolis
As dcadas de 1930 a 1950 foram marcadas, em Florianpolis, pelo alto
empreendimento que sedimentaria as propostas de modernidade advindas da Europa e
outros estados brasileiros que j haviam reordenado os espaos pblicos, a fim de
caracterizar os centros urbanos.Em 1926 foi construda a Penitenciria Pedra Branca 16 . Perodo de grandes
investimentos na construo civil, as obras vo desde a implementao das redes bsicas
de saneamento e energia eltrica na capital do Estado de Santa Catarina, at a construo
16 POYER, Viviani. Penitenciria estadual da Pedra Grande: um estudo sobre a poltica de combate criminalidade em Florianpolis entre 1935 1945. Florianpolis: Dissertao de Mestrado/PPGH/UFSC, s/d.
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da Ponte Governador Herclio Luz, nico acesso terrestre entre Continente e Ilha, ambas
parte de um projeto de desenvolvimento urbano.
Apesar de algumas reformas ao longo desses 79 anos, o prdio construdo em 1926
permanece no mesmo lugar, no limite entre os bairros Agronmica e Trindade e continua
sendo o principal presdio de todo o estado. A estrutura da Penitenciria Pedra Branca
congrega os presdios para mulheres e para homens, um hospital de custdia e uma casa
do albergado. So construes isoladas, que formam um conjunto sem qualquer ligao.
Cada uma dessas construes corresponde, tambm, a uma forma de pena ou regime no
contexto do sistema penal brasileiro.
O presdio para homens destina-se ao cumprimento de pena por crime com processo
no transitado em julgado. Ali se encontram os homens presos em flagrante, ou em
situaes suspeitas, ou ainda como medida de segurana durante a apurao de algum
crime no qual esteve envolvido. Esses homens, portanto, no sabem se permanecero
presos ou se cumpriro suas penas fora do regime fechado, ou ainda se conseguiro
absolvio.
No Hospital de Custdia h homens que, aps terem sido condenados em processo
judicial no tm condies psicolgicas de responderem por seus atos, reconhecidos pela
lei como inimputveis. Frente ao cdigo penal so alienados, doentes mentais ou
portadores de necessidades especiais. Esses permanecem em celas individuais, recebem
tratamento psiquitrico e terapia ocupacional.17
17 Nos casos em que a r mulher ela encaminhada ao Instituto de Psiquiatria Colnia Santana. Durante apesquisa, entretanto no houve registro desses casos.
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A Casa do Albergado destinada a presos que, por terem cumprido 1/6 de sua pena,
so avaliados, e, considerando-se o seu comportamento, recebem a regalia18 de serem
re-inseridos no mundo do trabalho, voltando instituio apenas noite, feriados e finais
de semana.19
O Presdio Feminino abriga no mesmo espao as mulheres que se encontram
aguardando suas sentenas 20 e as que j foram sentenciadas. Considerando que a
capacidade mxima de internas era, em 2003, data de incio desta pesquisa, de 50
mulheres e que, em 2005, aumentou para 80, bem como que este espao dividido entre
as que aguardam julgamento e as que j foram julgadas, perceptvel que o nmero de
mulheres presas significativamente menor do que o de homens (300 presos no Presdio
Masculino, 875 na Penitenciria de Florianpolis e 93 na Casa do Albergado, somando
1268 homens presos, no mesmo perodo).
Vale destacar que no PFF, at 2005, no era viabilizada a implementao de regimes
como o semi-aberto e o aberto. Todas as mulheres cumpriam suas penas em regime
fechado.
Em 2003, a estrutura do presdio para mulheres21 era composta por duas galerias com
seis celas com, pelo menos, duas camas do tipo beliche; uma cozinha, onde as presas
preparavam as suas refeies e as dos funcionrios do presdio feminino; um berrio, para
18 Termo usado pela justia para qualificar as mudanas de status do preso ao longo de sua estada no regimeprisional ou progresso de regime, tambm utilizado como favorecimentos cedidos pela direo do presdio.19 Em dez/2003 foi aventada a possibilidade, pela Secretaria de Segurana Pblica, que a Casa do Albergadofosse desativada, ampliando com isto o espao fsico do Presdio para mulheres. Quanto aos presos que semantinham em regime de albergue, a proposta, por parte das autoridades em exerccio na poca, era decontinuarem suas penas em domiclio. O servio da justia contaria com o auxlio de um chip subcutneo, naregio do tornozelo, que seria monitorado por satlite, o que foi contestado pela OAB e at o final dessapesquisa no foi efetivado.20 O mesmo caso dos homens presos.21 Em anexo esboo da planta daquele perodo.
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as mulheres que tm seus filhos ainda em idade de aleitamento. O ptio externo, para
banho de sol, separa as galerias de duas salas destinadas a atividades laborais, tais como
a montagem de peas telefnicas para a empresa Intelbrs, a montagem de grampos de
roupa, de sacolas de papelo para lojas e a confeco de biscuit, artefatos vendidos para
as fbricas ou negociados por elas, nos dias que recebem visita, no caso dos artesanatos
(biscuit, trict, e outros). O dinheiro serve para, comprar materiais de higiene pessoal e
alimentos; destina-se no mais, aos filhos ou alguma outra pessoa da famlia como a me ou
companheiro/companheira. Em alguns casos, esse dinheiro serve tambm para pagar
dvidas dentro ou fora do presdio.
A direo do presdio media os negcios com as fbricas (de sacolas, grampos de
roupa ou Intelbrs). Os outros negcios no possuem atravessadores e so as presas que
vendem e recebem o dinheiro, assumindo as responsabilidades caso a freguesa no pague
ou demore a saldar a dvida, o que pode ser motivo de brigas. Este espao era chamado de
fbrica. Como tal ocupava lugar central na vida daquelas que necessitavam enviar dinheiro
famlia, e na das que no possuam ajuda externa.
O PFF conta com as intervenes disciplinares dos agentes prisionais; com as normas
disciplinares estabelecidas pela direo do PFF, em conjunto com a gerncia de
execues penais da DEAP/SSP; com atividades de ensino bsico e orientao para
supletivo22; e continua contando com atividades laborais que remuneram as participantes,
assunto a ser tratado adiante. Todas as atividades de manuteno do espao so
executadas pelas mulheres que l se encontram - da alimentao faxina - atividades no
remuneradas.
22 Ambos na mesma sala.
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As pessoas que so pressas no Brasil so, em geral, aquelas com mais dificuldades de
acesso defensoria e s redes que empoderam23 pelas prticas de saberes e poderes
(Len, 2000). No PFF, possvel confirmar que as mulheres presas so, em grande parte,
de baixa renda e utilizam a remunerao recebida no PFF para envi-la famlia24.
Outro fator importante que possvel desmistificar, no contato com elas, que a faixa-
etria das presas oscila entre os 19 e 40 anos, com maior concentrao entre 20 e 35
anos. Ao contrrio, h presena significativa de mulheres com mais de 60 anos, na priso,o que levou a direo a construir um alojamento especial para acolher estas mulheres.
3. Dos motivos da priso
O que pde ser observado no PFF foi que a ida para a priso, alm de ser resultado de
envolvimento em um crime, corresponde a um conceito que a presa tem de si e da
sociedade da qual faz parte. Uma das mulheres relatou que foi cair na priso porque no
pensou: S estou aqui porque fui burra, no pensei. Eu no tinha nada, via um monte de
23 A noo de empoderamento, como forma de apropriao de condies de deciso e encaminhamentosnecessrios sobre a prpria vida, corresponde a leituras de M. Foucault, como base para a compreenso dasformas de produo de saberes sobre si e sobre o outro, mas tambm corresponde possibilidade, desenhadapelos marxistas e por existencialistas, de autonomia e exerccio de cidadania.24Sobre peclio ver LEP: Art29 - O trabalho do preso ser remunerado, mediante prvia tabela, no podendoser inferior a trs quartos do salrio mnimo.
1 - O produto da remunerao pelo trabalho dever atender:
a) indenizao dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente e no reparados poroutros meios; b) assistncia famlia; c) a pequenas despesas pessoais; d) ao ressarcimento ao Estado dasdespesas realizadas com a manuteno do condenado, em proporo a ser fixada e sem prejuzo da destinaoprevista nas letras anteriores. 2 - Ressalvadas outras aplicaes legais; ser depositada a parte restante para constituio do peclio, emcadernetas de poupana, que ser entregue ao condenado quando posto em liberdade.
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gente se dar bem com o negcio(referindo-se ao trfico25). O olho cresceu, da sabe como
... O uso e trfico de drogas26 o crime que mais traz as mulheres ao PFF, seguido pelo
roubo, depois o homicdio (que pode envolver latrocnio), em seguida o furto, estelionato,
extorso e receptao.27 comum, no entanto, que cheguem na priso por terem se
envolvido com pequenos furtos associados ao uso de entorpecentes ou ao trfico de
drogas.
A estatstica oficial da SSP que estabelece os nmeros relacionados freqncia decrimes, do Estado de Santa Catarina, no primeiro semestre de 2006, indicava que:
TIPO DE CRIME QUANTIDADE (n absoluto)
USO DE DROGAS 333
TRFICO DE DROGAS 400
HOMICDIO 204
ROUBO 2.155
FURTO 26.454
Fonte: Boletim de Informaes Criminais do Estado de Santa Catarina Divulgado em:
http://www.ssp.sc.gov.br/dini/dini.htm28
25 Este termo utilizado aqui para designar o trfico de drogas utilizado em trabalhos, como o dePERLONGHER, Nstor. O Negcio do mich: a prostituio viril em So Paulo. So Paulo: Ed. Brasiliense,1987; e, LONGRIGG, Clare. Mulheres da Mfia. So Paulo: Landscape, 2004, para designar outras noes queindicam igualmente acertos entre partes.26 Indicados pelo Art.12, do CPB.27 Vale lembrar que esta uma populao que oscila com muita freqncia, exigindo periodicamente aatualizao de dados. Esses so dados fornecidos pela direo do presdio no primeiro semestre de 2006.28 Foram retirados do boletim apenas os dados pertinentes aos crimes encontrados no presdio feminino deFlorianpolis. As estatsticas, entretanto, no contam com um recorte de gnero relacionado ao crime cometido.
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Os dados oficiais no esto relacionados de acordo com o gnero daquele ou daquela
que cometeu o crime. Esta foi uma questo difcil, na pesquisa de campo, uma vez que se
optou, para facilitar o contato, ignorar, nas perguntas, que crimes tinham sido cometidos. Nas
conversas informais, entretanto, surgiam informaes a respeito, o que possibilitou identificar
que do total de informantes da pesquisa (36 mulheres), apenas duas presas no tinham
envolvimento com o trfico de drogas. Pelo menos cinco delas foram pegas em flagrante por
roubo e duas acusadas por furto em loja de departamentos.
Sobre o silncio dos dados oficiais no que se refere ao gnero, vale destacar que
comumente atribui-se gnero apenas quando se refere priso de mulheres, pois comum
que ao falar do aprisionamento de homens, se utilize o genrico: priso ou penitenciria.
Segundo Manuela Cunha este fato deve-se, principalmente, a uma discrepncia entre os
ndices de recluso de homens e mulheres, raramente excedendo os 10% da populao
carceral tanto em Portugal [onde desenvolve suas pesquisas] como na generalidade dos
pases da Unio Europia e nos EUA. (CUNHA, 2006, p. 2). A realidade a mesma no Brasil,
como mostra Camargo (2006) no senso brasileiro, publicado em outubro de 1996. Na
populao de 150.00029 presos, 95,5% eram de homens.
No perodo em que foi realizada a pesquisa (2003 2004), a maioria dos crimes
cometidos pelas mulheres que se encontravam no PFF (7,2% das mulheres com sentena
promulgada), estava associada a uma relao conjugal: o companheiro tambm estava
envolvido no crime30 . Das 36 mulheres que compunham a amostragem, 20 admitiam-se
submissas na relao com o parceiro do sexo masculino, sentiam-se dominadas e tolhidas em
29 Segundo informaes do DEPEN, existem hoje cerca de 361.402 presos distribudos nas unidades prisionaisbrasileiras.30Sobre este tema ver a monografia, de Cristiane Costa, UNISUL, agosto/2003.
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homem nenhum, no sou que nem essas a... (Smara, dois anos de priso, trfico
de drogas)
H diferentes motivos que as levam ao presdio: conheo muita gente boa referindo-
se a pessoas de classe mdiaou ricos que cometem crimes e no vem pra c, s vm pra
c quem pobre. (Samara) A noo de pobreza se relaciona a uma condio de
desvantagem frente s outras classes sociais. Denominam-se pobres e justificam seus
crimes pelas privaes econmicas e de acesso aos direitos, sem ser essa a nica
explicao. Algumas presas atribuem a priso a sua pouca escolaridade ou ainda a uma fora
maior, no tiveram outra escolha.
Suas razes nos remetem s contingncias em que se encontram hoje no Brasil, as
pessoas que constituem as camadas populares. H, sem dvida, um aumento crescente
dessa populao nos espaos prisionais. Aceita-se esse dado de acordo com a noo de que
existem prticas institucionalizadas que contribuem para a localizao do crime e, em
conseqncia, inscreve-se determinados contingentes nesses espaos, associando territrios
urbanos a locais perigosos e de vivncias de criminosos34.
Das 36 mulheres inicialmente entrevistadas, apenas duas vinham de camadas sociais
mais altas, com acesso educao formal. Ambas residiam em bairros de classe mdia e
freqentaram o ensino superior35, sendo que uma delas abandonou o curso para ir embora
com o namorado para outra cidade, onde se envolveu com um homicdio, cujo autor era o
namorado. A outra era professora da rede pblica de ensino e interrompeu uma ps-
34 So casos em que vo se configurando a partir das prticas sociais, em vrios paises, entre os quais o Brasil,uma territorializao de prticas criminosas e um mapeamento da violncia e da criminalidade, sendo que osbolses de misria, as favelas e outras comunidades empobrecidas so considerados pela mdia e pelaspopulaes de entorno, como perigosas. Ver tambm: WACQUANT, Loc (2001); WACQUANT, Loc (2001 b).35 O curso de pedagogia.
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graduao aps ter cometido o crime que a levou para a priso36. As outras 34 entrevistadas
tm origem em bairros populares, envolveram-se, sobretudo, com a rede local de trfico e
algumas delas foram encontradas em batidas realizadas pela polcia nessas comunidades.
36 At o final da pesquisa j havia sido absolvida por ter cometido o crime em legitima defesa.
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PARTE II
O CALDO NA PANELA DE PRESSO: UM OLHAR ETNOGRFICO NO PRESDIO
FEMININO DE FLORIANPOLIS
1. A transformao de mulher livre em presa
Todo o percurso de observao comeou com a entrada das mulheres na priso. Elas
chegam escoltadas37 por policiais, as mos algemadas, o olhar baixo, o corpo geralmente
franzino e vestimentas sujas, cabelos despenteados. Vm de uma estada em alguma cadeia,
delegacia de polcia, da rua, da sua casa, de outro presdio (transferncia); ou de uma
audincia no Frum. A entrada na priso um ato normativo: lavrado um documento de
entrega, a ser assinado pela agente prisional que a recebe. O documento transfere a
responsabilidade imediata da presa para o Estado, atravs da direo do presdio, segundo a
Lei de Execuo Penal (Lei n 7.210/84), que corresponde ao dever de assistir o/a preso/a,
prevenir o crime e orient-lo(a) ao retorno familiar.
Aps receber a presa, relacionar seus bens e confiscar aqueles que, para a instituio,
representam perigo - jias, objetos cortantes, perfumes levam-na para a cela de nmerozero, e l se inicia seu itinerrio pela priso. A cela zero indesejada por todas, pois est
associada solitria, to presente nos filmes e no imaginrio popular. Serve de ameaa e de
castigo, para onde muitas voltam quando infringem as regras de conduta da instituio.
37 Categoria utilizada pelas instituies jurdico-policiais, que identifica o ato de ser acompanhada por um policialque tem, como funo, impedir qualquer reao que indique a tentativa de fuga.
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Quando chegar cela zero, a presa aguardar at ter, sua situao e comportamento,
avaliados, e a possibilidade de moradia, que lhe ser destinada, o que depende de uma
espcie de conselho que atua paralelamente s avaliaes institucionais, entre as presas que
esto h mais tempo no presdio. Corresponde a uma negociao, que define em que casa38
a nova presa ir morar, dados e critrios que sero explicitados mais adiante.
Esta entrada, mesmo que no seja a primeira, sempre marcada pela privao da
liberdade, exercida pela instituio.39 uma experincia que revela identidades, imagens de si
e do outro. Uma vez vivida pelas presas, so consideradas naturais e expressam como cada
um dos envolvidos v o outro. O/A agente prisional que encaminha a presa cela, tem,
geralmente, atitude agressiva, um discurso de conteno e rigidez. No outro lado a presa
resiste, reclama, chora, sofre e torna evidente a violncia e usurpao de seu direito mais
caro: a liberdade. No passar por essa situao sem, de alguma forma, resistir40. Importa,
nesse trabalho, o quanto essas prticas vo constituindo identidades:
Quando eu vim pra c, j sabia41que era assim, porque minha irm j veio pra c e
eu vinha fazer visita (...) ah assim, quando a gente chega tratada como bicho,
parece at que matou a me deles. Empurram, tiram as coisas da gente e no falam
quando tu vai sair de l (...) ah sabe como , presa no tem direito, n.(Telma, trs
anos de priso, homicdio)
38 Todos os termos nativos sero marcados em itlico.39 As narrativas das mulheres presas no PFF correspondem a um discurso dominante que marca uma identidadesocial da mulher e da mulher presa, que as desqualifica como pessoa.40 Tentam no se deixar encostar por quem as leva, procuram seduzir atravs da retrica, xingam, esbravejametc.41 H aqui uma memria socialmente produzida, uma vez que a experincia de visitas e de recluso imprimemsignificados que se objetivam nas prprias experincias, cada acontecimento passa a ser esperado e indicaformas de se relacionar. Ver Pollak (1989; 1990; 1992)
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Um pouco das memrias de Lima Barreto sobre sua ida para o sanatrio aparece no
relato desta mulher. A priso, assim como o sanatrio, traduz o que Goffman (1991) define
como uma das funes das instituies totais42: produzir na pessoa a certeza de que deve
estar ali, que deve fazer daquela forma e que deve SER assim. necessrio, para que essa
performancese desenrole, que presas e carceragem conheam seus papis e como uma e
outra devem e iro se comportar.
Quando o olhar da mulher que empurrada para dentro da cela zero encontra o de
quem a assiste43, ele se baixa rapidamente. Entende-se que este o incio de uma sucesso
de vrias e diferentes violncias que se expressam nos olhares punitivos de quem as deixa na
cela zero, mas tambm na falta de condies de manter o mnimo exigido pela lei de
execuo penal, como o nmero ideal de presas por cela, atendimento psicolgico
especializado, assistncia social, e acesso sade. Tudo isso precrio e depende da
disponibilidade dos rgos governamentais, concorrendo com a demanda da sociedade, das
condies da instituio para deslocamento das presas e de vontade poltica.
Tambm faz parte dessas violncias, a interao atravessada pelo preconceito com
agentes prisionais e entre elas mesmas. Seus objetos confiscados e a desqualificao pelo
fato de serem presas constituem e amalgamam as relaes aps a insero no presdio; elas
dependem de uma confiana44 que todas necessitam para desempenhar seus papis.
Ocorre que os esteretipos, estes pr-conceitos, podem ser desestabilizados quando as
prticas colocam-nas em cheque.
42 Embora deva ser feita uma ressalva sobre a noo de total na atualidade, quando h um movimento para foraem todas as instituies, com acesso a informaes que no circulam em seu interior (telefonia mvel, visitas,internet etc).43 Visto de fora, um momento de extrema repugnncia.44 O termo confiana corresponde a uma das categorias utilizadas pelas presas para designar o estabelecimentode uma relao que se baseia na crena de que o outro corresponder s expectativas em jogo num cenriomarcado por papis sociais, relaes de poder, lugar a ser ocupado por cada um dos atores.
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Sem dvida, a entrada na instituio marcada pelo constrangimento. Geralmente
porque o indivduo submetido a situaes que seqestram suas possibilidades de
reconhecer-se no Outro:... sabe como , presa no tem direito;... tratada como bicho; Fica
bem quietinha porque seno j sabe, n, vai mofar a. [na cela zero] (Telma)
2. Os lugares para onde vo
2.1 A cela Zero
Segundo o regimento interno do presdio, a presa deve ficar na zeropor, no mximo,
cinco dias, onde recebe suas refeies. Dispe de apenas uma hora diria para se expor luz
solar, sob os cuidados de um agente prisional. Aps sair da cela zero, a presa passa a fazer
parte do dia-a-dia do presdio, como todas as outras. Poder receber a visita de pessoas da
famlia, desde que previamente autorizada pela direo que, para tal, consulta o processo e o
juiz, a fim de identificar algum impedimento legal: muitas vezes, o crime que a levou priso
pode ter sido cometido com a participao de outros membros da parentela.
Houve momentos, durante a pesquisa de campo, em que o perodo de permanncia na
cela zeroera estendido at 20 dias embora atualmente seja respeitado o prazo mximo de
cinco dias , podendo ser retirada antes ou depois desse tempo, dependendo dos
antecedentes criminais, do comportamento desde sua chegada e da disponibilidade nas
galerias. Mas, , em tese, de total responsabilidade da direo do presdio.
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2.2 Galerias
As galerias (A e B) correspondem a um corredor com sete celas de um lado (galeria B)
e seis celas mais dois banheiros do outro (galeria A). Tambm h os alojamentos, que so
espaos mais amplos onde se encontram vrios beliches, formando uma cela coletiva. As
galerias parecem uma enorme casa de alvenaria, com um corredor central que se dividem em
celas (dependncias com aproximadamente 4 m). Cada uma dessas celas conta com pelo
menos dois beliches de madeira.
Ao final do corredor, do lado direito de quem entra pela nica porta que lhe d acesso
quase ao centro da construo h uma cela que conta com quatro beliches, por ser maior;
ela serve de acesso ltima cela com mais 2 beliches, que abriga presas em regime semi-
aberto. Para compreender melhor: uma cela serve de circulao para uma outra cela.
Do outro lado (final do corredor, ao lado esquerdo da porta) h uma cela ainda maior,
com seis beliches. Em todos eles alguns adereos so colados ou pendurados ao longo da
cama, tais como: fotos, recortes de revista, poesias e desenhos criados pela moradora, os
quais demarcam os espaos. Daqui dessa foto at aquela outra l no p da cama, so coisas
minhas, depois da companheira de baixo. (Sandra)
2.3 Maracan
As galerias e suas denominaes nativas indicam, tambm, quem mora em cada uma
delas. Para o Maracan (alojamento) vo as barraqueiras, denominao dada a quem se
envolve com freqncia em confuses com outras presas, ou quem j chega, de fora da
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priso, com essa fama. Conforme a direo: Para l vo as que gostam de barraco, fazem
confuso, brigam muito, ou porque ningum quer ficar com elas nas outras celas. Este
alojamento , reconhecidamente, o pior lugar do presdio do ponto de vista do espao ,
pois muito povoado. Cerca de 12 beliches ocupam 16 m,aproximadamente. Com pouca
circulao de ar e escuro. O piso de cimento gasto e sem manuteno mido e as paredes
descascadas no escondem o descuido com o lugar.
Quanto aos beliches, tm o mesmo padro de todos os outros, decorados e
personalizados por quem mora nele. Alm dos adereos encontram-se, tambm, cortinas
confeccionadas pelas presas que separam os leitos, a fim de garantir privacidade, como elas
dizem.
2.4 Clnica
Outro alojamento, o Asilo ou Clnica, recebe esse nome por agrupar as presas de mais
idade, de comportamento menos ostensivo. Nas palavras de uma das presas: so mais
conformadas com a situao e mezonas, tambm h sempre algum doente.
Neste alojamento encontramos quatro beliches, uma mesa, tipo escrivaninha de sala
de aula, prxima a uma janela que d para o ptio, que apia um fogareiro de uma boca e seu
botijo de gs, onde preparam seus alimentos. Ele ocupa o lugar de uma sala de aula,
desativada para ceder espao ao nmero crescente de mulheres encaminhadas para esse
presdio. Alm de abrigar mulheres mais velhas, mantm, principalmente, aquelas que sofrem
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de doenas crnicas, como cardiopatias, diabetes e outras. Recebem ateno diferenciada
dos profissionais da sade que transitam pelo presdio45.
2.5 Berrio
O Berrio, para onde so, encaminhadas as presas, em final da gestao, serve
tambm s mulheres que chegam priso com beb de at 6 meses de vida46, ou ainda
aquelas que do luz um filho ou filha durante o perodo de recluso. Por muito tempo
cerca de 10 anos o berrio era o alojamento mais cuidado. Sempre recebia pintura e
mantinha-se bem arejado e ventilado47. As camas, em torno de cinco eram no inicio dessa
pesquisa individuais e eram acompanhadas de um bero, quase colado ao lado da cama.
Atualmente, embora continue sendo um alojamento ventilado, com janela e porta voltadas
para o ptio interno, acolhe as presas em beliches, com capacidade para at oito mulheres
com seus bebs. Os beros continuam prximos s camas das mes.
Curiosamente, o berrio fica localizado ao lado da clnicaque a direo do presdio
considera um lugar mais calmo, mais silencioso e seguro.(Direo)
45 Durante toda a durao da pesquisa de campo, os profissionais de sade que estiveram no Presdio, eramvoluntrios ou pesquisadores que prestaram servios pontuais. Entretanto, no sistema penitencirio conta-secom mdicos e enfermeiros que, em tese, devem atender todos os estabelecimentos prisionais.46 Idade reconhecida pela lei como limite para a permanncia de uma criana no estabelecimento penal, e pelosmdicos para a amamentao.47 Acredita-se que tais procedimentos devem-se aos preceitos legais do Estatuto da Criana e do Adolescente(Lei n 8.069/90).
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3. Trnsitos, rotinas e cenrios
Os cenrios no presdio indicam rotinas e trnsitos impressos nas paredes
descascadas do Maracan, nos cuidados com o alojamento que mantm crianas e/ou presas
que esto grvidas, no isolamento de quem est em regime semi-aberto e nas cortinas que
estampam a noo de intimidade experimentada na priso.
As galerias A e B abrigam as presas em geral. Embora com algumas
particularidades, as galerias possuem, em comum, o fato de serem decoradas pelas presas.
Peculiaridades que correspondem aos aspectos fsicos da instituio demonstram que, bom
insistir, no Maracano prdio necessita de reparos, por estar depredado. Ali as condies de
habitao so inferiores s das outras galerias. As paredes no tm reboco, a umidade
maior, e a pintura est descascando, razo pela qual as prprias presas desqualificam quem
morano Maracane tambm a instituio, que o mantm este como o lugar indesejado.
O Berriose contrape ao Maracan, insinuando o mesmo que Cunha (2000): h uma
tendncia a tornar os presdios para mulheres, um espao de domesticao da desviante.
Com os cuidados externos demonstra-se que o local de cuidado das crianas o local ideal
para quem pretende se redimir das culpas. A lei que as condena um auxlio, no
estabelecimento da culpa, mas tambm l circulam prticas religiosas que operam na
remisso48. No raro, ouvi nas conversas com as presas a confirmao de que uma mulher s
se realiza como tal quando d luz um filho. O que tambm foi identificado por Cunha (2000)
na Priso de Tires, em Portugal.
48No nos deteremos na descrio das prticas religiosas, mas vale lembrar que, semanalmente, representantes
dos vrios credos freqentam o presdio a fim de trazer conforto a essas um mulheres(Direo).
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Um segundo ingrediente do programa de levantamento moral modulado pelasconstrues sociais do gnero consistia na tentativa de cultivar nas reclusas
sentimentos de responsabilidade materna e competncias domsticas. Por exemplo,embora a permisso para conservar filhos em baixa idade na cadeia levasse emconta o interesse destes, ela era sobretudo ento justificada pela intenoprogramtica de formar as mes. (CUNHA, 2000, p 5)
As galerias ostentam, nas paredes das celas, calendrios colados com riscos nas datas
passadas, o que denuncia a nsia pela sada. Dizem mais: uma tentativa de manter a
orientao temporal, uma conexo com um universo que as devolve identidades diferentes da
atual. Alm da contagem dos dias para o retorno ao convvio fora da priso, utilizam outras
estratgias que demonstram pertencimentos diferenciados no universo prisional, que as
remete aos pertencimentos fora da priso.
Uma das coisas que define a escolha das mulheres para dividir a cela o fato,
geralmente, de j serem conhecidas. Depois pelo que ouviram falar; comum que antes de
chegarem ao presdio, j tenha sido feita pelos agentes e presas uma apurao de quem est
vindo, atravs do artigo do Cdigo Penal que a levou para a instituio. Geralmente essas
informaes so decorrentes do fluxo que percorre os dados registrados em documentos da
direo que passam a circular pela carceragem e, em seguida, chegam ao poder das presas,
atravs de um fluxo sempre azeitado pelas relaes cotidianas entre as presas e delas com
os agentes prisionais.
Ocorre tambm, que essas mulheres j se reconheciam como pertencentes a gruposdistintos, o que, na prtica quer dizer que tm determinados comportamentos e caractersticas
justamente, por pertencerem a tais segmentos. Ao chegarem na priso tudo indica que
buscam agrupar-se a partir da mesma lgica, pois diferente do que alimenta o imaginrio
sobre o crcere, o presdio no um mundo parte, muito diferente daquele que est para
alm das cercas da priso.
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Na priso, elas passam a se relacionar entre si e a criarem laos que as fazem
pertencer ao segmento de mulheres presas, mas tambm, e fundamentalmente, continuar
uma histria e trajetria anteriores priso, que se mantm e atualiza atravs da memria,
no raras vezes, compartilhada com outras mulheres na mesma situao:
Agente se conhecia, ela morava perto da minha casa. Lembra Graziela (20 a.um de
priso, furto) quando a gente era criana? Eu no sei como ela veio parar aqui, por
que ela era toda certinha, eu no gostava de ti, no. Oh era uma briga. Toda metida,
nariz empinado... A me dela no deixava ela ir pra rua brincar. Agora t aqui, mas
pelo menos agora a gente se d bem. Estamos no mesmo barco.
A rotina na priso a principal estratgia para a manuteno da disciplina, razo pela
qual cobrada com rigidez pela direo e agentes prisionais. As presas so acordadas s 7h.
As responsveis pela cozinha organizam o caf e cada uma trata de pegar a sua parte de po
e a caneca. O po colocado em uma grande bacia plstica sobre a mesa do refeitrio, e as
canecas so de plstico, por medida de segurana, uma vez que vidro quebrado pode,
facilmente, transformar-se em armas.
Aps o caf, devem organizar o refeitrio e fazer as atividades para as quais so
designadas (limpeza do ptio, limpeza das galerias, almoo, trabalhos remunerados).
Tambm podem voltar para a cela e dormir ou ler, assistir TV, ou ainda cuidar de suas roupas.
Os trabalhos remunerados podem ser: montagem de grampos de roupa, montagem de peas
de telefonia, ou a confeco de bolas de futebol. So todas terceirizadas por empresas locais
e podem flutuar quanto ao oferecimento de vagas e tipo de atividade, excluindo muitas das
presas.
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Para cada uma das atividades, elas so separadas em grupos cujo tamanho varia de
acordo com a necessidade do trabalho ou com a disponibilidade delas em realizar tais tarefas.
As presas podem optar por no realiz-las, desde que arquem com as conseqncias que, na
maior parte das vezes, resume-se a relatrios desfavorveis sobre sua conduta,
encaminhados ao juiz. Se a gente no faz[a atividade para a qual designada] no consegue
diminuir a pena, porque cada dia que trabalho contado... Que escolha?Diz uma das presas.
Suas relaes aps a entrada na priso so construdas atravs das normas
institucionais, que as colocam diante do fato inexorvel de ser presa, como das suas histrias
particulares, que passam pelos lugares de origem, pelos sonhos e pelas necessidades de
existirem naquele espao. Por isso, as galerias para onde vo e os vnculos que constituem
no presdio so importantes na tentativa de compreender como vivem ali, pois, apesar de
presas, continuam, em certa medida, decidindo sobre suas vidas. Durante toda a estada no
presdio estas mulheres so convocadas a decidirem quem as visitar, quem cuidar de seus
filhos em caso de ausncia, o que e com quem falar e relacionar-se naquele espao, como
diminuir ou no suas penas. Eis algumas questes e dramas que continuam a
desenrolar-se na priso. Na verdade so decises que no tm incio por ocasio do
aprisionamento, mas fazem parte da vida social, dentro e fora do presdio.
Para ajud-las na escolha do destino dos filhos, situao que as preocupa muito,
essas mulheres costumam estabelecer critrios que guiam suas aes e decises: procuram
pessoas de sua confiana, geralmente suas mes ou sogras; amigas, com quem j
combinaram manter relaes durante e aps a sada do presdio; ou, ainda, mulheres
conhecidas na experincia do presdio e com as quais compartilham situaes semelhantes
em relao aos filhos.
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Todas essas experincias so atravessadas pelas prticas institucionais que as
compem e que so alteradas pelas relaes das presas entre si e com a prpria instituio.
4. Das prticas institucionais
Cerca de 21 funcionrios, homens e mulheres, dividem suas tarefas no interior do PFF.Dentre eles a diretora do Presdio, dois secretrios, um chefe de segurana e 17 agentes
penitencirios.49
Os agentes penitencirios trabalham em turnos de 24/48 horas. So homens e
mulheres que dividem as funes. Compem o quadro funcional da atual Secretaria de
Estado da Segurana Pblica e Defesa do Cidado e so efetivados a partir da aprovao em
concurso pblico para agente prisional 50 , passando a seguir ao regime estatutrio das
Secretarias de Estado de Santa Catarina.
Suas atividades correspondem manuteno de segurana como, evitar fugas,
rebelies e/ou invases externas, atravs de conteno, vigilncia e ameaa, bem como
acionando a polcia militar e/ou civil sempre que julgarem necessrio51; revista nas celas, nas
visitas e nas mulheres presas; orientao quanto s regras de convivncia no presdio;acompanhante das mulheres em situaes externas escolta (frum e postos de sade);
49 Habitualmente denominados de carceragem.50 Onde se exige conhecimentos gerais e especficos, e nvel mdio de educao.51 Quando perdem a possibilidade de controlar situaes extremas de violncia, ameaas e fugas.
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compra de artigos pessoais para as presas; e conselhos em situaes de conflito 52
vivenciados por elas.
Os agentes ocupam um espao reservado que tambm abriga uma sala de
enfermagem, uma sala de atendimento (dividida, em horrios distintos, por psicloga,
assistente social e advogados); dormitrios e uma cozinha.
O contato da pesquisadora com as presas e as agentes prisionais demonstrou que as
prticas sociais na priso so constitudas de normas institucionais e que nada mais so do
que performances que identificam quem quem na priso.
Por prticas institucionais entendem-se, nesse trabalho, as formas como vo se
desenhando as relaes entre a estrutura social, as presas, o sistema prisional, o sistema
judicirio e os agentes prisionais. Essas dimenses correspondem a algumas formas de
pertencimento53 que se inscrevem no cotidiano das relaes dentro do presdio. importante
falar delas na medida em que so dimenses que se completam, se colocam num jogo de
relaes onde se afirmam e se confirmam como espaos legtimos da sociedade.
Talvez um exemplo dessas relaes, onde se cruzam as dimenses mencionadas,
corresponda a uma situao de chegada ao presdio. Darci (36 a., cinco de priso, trfico)
veio escoltada por um policial, com quem conversou, tranqilamente, at chegar ao porto
principal. Nesse momento, o policial passou a trat-la com hostilidade, com voz de comando
indicava que deveria baixar a cabea e entrar sem olhar para os lados. Darci, porm,
prontamente virou-se para a cerca do ptio e, como se procurasse algum, avistou Quitria
(33 a. quatro de priso, trfico e estelionato), acenou-lhe e gritou: No teve jeito, me pegaram.
52 Sejam eles de contenda ou emocionais.53 Sobre pertencimento entende-se as qualidades que nos ligam a determinados segmentos, p.ex. ser presa; serbrasileira; ser mulher; ser agente prisional; me; pai; etc.
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Foi interrompida com um empurro para dentro do corredor que leva cela zero. Depois de
acomod-la, o policial e dois agentes prisionais passaram a falar sobre Darci. Lembra dela,
l do 2554, mala pra caramba, mas gente boa. S tem que ficar de olho, por que a minha
cunhada que vizinha dela meu irmo mora l j me falou que ela gosta de dar a Elza55,
no pode dar bobeira, ela rouba mesmo, na cara dura.
O dilogo demonstra como a instituio seleciona e fixa uma caracterstica dessa
mulher que, a partir de ento, ser assim definida e identificada. No se trata de um
esteretipo pronto, fixo, mas que vai se modificando. possvel ouvir falar da ladra que s
rouba roupa, que procura incriminar outra, e, uma infinidade de qualidades do ser ladra vai
sendo criada na medida em que a presa passa a se relacionar com as demais. A novia
ser, entretanto, denominada genericamente de ladra.
Ao sistema prisional corresponde toda a maquinaria de controle e contenso, as
galerias, as celas e perspectivas, a hierarquia e redes de poder que as mantm. O sistema
judicirio , de fato, o lugar da legitimao, onde se oficializam as prticas, onde se instituem
os saberes do dever e do direito. Portanto, este o lugar central de sustentao das prticas
institucionais. Ele garante a encenao de performances de agentes prisionais e presas, mas
tambm da populao em seu entorno56.
Se, de alguma forma, por alguma via, se est em contato com esses cenrios, fica-se
sujeito ao jogo de cena imposto pelos os cenrios. A agente prisional que no costuma revelar
sua profisso quando preenche formulrios no comrcio; ou quando apresentada a algum
fora do contexto do trabalho, procura isentar-se de dar explicaes sobre seu trabalho, evita
54 Morro do 25, designao de uma comunidade no centro de Florianpolis.55 Na linguagem corrente da priso e da rua, dar a Elza furtar.56 Diretores da priso, juizes, promotores, assistentes sociais, psiclogos, psiquiatras, chefes de carceragem,familiares de uns e outros.
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expor-se a uma possvel desqualificao por parte do interlocutor que pode identific-la com
aquele espao.57
comum ouvir um agente prisional dizer:
...A gente que trabalha aqui visto como elas, ningum quer saber que esse um
trabalho, todo mundo acha que somos bandidos tambm. Eu j nem falo que
trabalho na cadeia, eu falo que sou funcionrio pblico, por que isso que sou
tambm, n?! Como percebe isso, as pessoas falam para voc? D pra ver nos
olhos, tambm ficam falando do sistema prisional, sem conhecer, falam que no
adianta fazer nada por que no tm mais jeito[as presas], e tambm no sabem que
aqui tem de tudo, tem as malas, que no tem jeito mesmo, mas tem tambm aquelas
que foi por um vacilo, por necessidade...(Marcela)
O texto reafirma o quanto representaes sociais da priso atravessam o cotidiano da
instituio e o constituem como lugar de perigo, desqualificante e desconhecido. possvel
sugerir que muitas das prticas violentas entre agentes prisionais e presas devem-se,
tambm, a uma espcie de institucionalizao de papis, noes de pertencimento e de
identidades, experimentadas como fixas, que lutam para manter a diferena entre gente de
bem e bandidas. uma classificao igualmente importante para as presas, uma vez que a
utilizam para agruparem-se, o que se reflete, por exemplo, na designao dos respectivos
alojamentos.
Assim como os agentes e outros funcionrios da priso, as presas entendem que h
aquelas que so do bem, que tm jeito, que esto ali por um descuido, e as que so vistas
57 Sobre a produo de identidades marginais, ver GOFFMAN (1999).
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como sem conserto. o que confirma uma conversa, no ptio, entre Marcela (agente) e
Zaira (39 a. quatro de priso, trfico):
No adianta, a Beatriz no tem mais jeito, eu fico s vendo que a Dona Nair. 58, tenta
de tudo pra fazer ela[Beatriz] gostar mais dos filhos, parar de fazer tanta fofoca, mas
no adianta, ela sai num dia no outro ela ta de volta, parece que gosta, um dia ainda
vai aparecer morta de tanto que ela incomoda.(Zaira)
verdade, tem mulher que sai daqui, arranja logo um emprego, vai cuidar da vida,passa o maior trabalho para no cair na tentao de novo, tem umas que chegam a
se mudar de bairro ou de cidade, mas a maioria acaba voltando, quando no traz
uma filha ou mesmo a me.(Marcela)
So conceitos que podem, em algumas situaes, servir de indicativo para tratamentos
agressivos ou negligentes nas relaes entre a instituio e a presa, encenada pelos agentes
prisionais. Uma situao que o ilustra o momento em que uma das presas solicita
atendimento mdico. A agente prisional ignora a solicitao e tambm sugere, em alto e bom
tom, que a dor que a presa est sentindo passar na quinta-feira (dia da visita de seu
companheiro). Ocorre que a presa em questo havia sado de uma internao hospitalar na
semana com sintomas de pneumonia.
Ela quer dar uma voltinha, s porque ficou no hospital uma semana, acha que vai
ficar indo e voltando quando bem entende. Eu conheo a fera, essa a no quer
nada, s sabe fazer encrenca, no v que at a pneumonia era falsa...(Marcela -
agente)
58 Diretora do Presdio.
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