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1 IX ENCONTRO DA ABCP Teoria Política O AGON ENTRE OS AGONISTAS: CONTROVÉRSIAS SOBRE CONFLITO E PLURALISMO Jean Castro da Costa Universidade Federal de Santa Catarina Lara Bethânia Zilio - Universidade Federal de Santa Catarina Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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IX ENCONTRO DA ABCP

Teoria Política

O AGON ENTRE OS AGONISTAS: CONTROVÉRSIAS SOBRE CONFLITO E

PLURALISMO

Jean Castro da Costa – Universidade Federal de Santa Catarina Lara Bethânia Zilio - Universidade Federal de Santa Catarina

Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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O AGON ENTRE OS AGONISTAS: CONTROVÉRSIAS SOBRE CONFLITO E

PLURALISMO

Jean Castro da Costa – Universidade Federal de Santa Catarina Lara Bethânia Zilio - Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo do trabalho: Apresentamos uma análise crítica sobre as controvérsias acerca das noções de conflito e pluralismo na vertente agonística da teoria democrática. Os teóricos agonísticos apresentam divergências sobre o que entendem como conflito. Chantal Mouffe entende o conflito especialmente a partir de Carl Schmitt e Max Weber. Outros teóricos pensam o conflito principalmente a partir de Hannah Arendt, Nietzsche e Foucault. Neste viés, destacamos os trabalhos de B. Honig, W. Connolly e D. Villa. Em jogo está o próprio alcance da distinção entre antagonismo e agonismo e o grau de pluralismo que os teóricos estão dispostos a sustentar. Problematizamos essas controvérsias a partir da suspeita, inspirada em Nietzsche, de que este debate ainda se dá à sombra da metafísica que estes teóricos dizem rejeitar, especialmente quando entendem os antagonismos em termos binários, enfatizando o momento da negatividade, e quando pressupõem o pluralismo e a decisão como mutuamente excludentes. Palavras-chave: Teoria democrática. Agonismo. Pluralismo. Conflito.

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INTRODUÇÃO: SITUANDO A CORRENTE AGONÍSTICA

Os teóricos do agonismo tem uma presença relevante na teoria democrática

contemporânea, especialmente no meio acadêmico anglófono. Destacam-se nesse campo os

trabalhos de William Connolly, Chantal Mouffe, Bonnie Honig, James Tully, Lawrence

Hatab e Christa Davis Acampora. Os agonistas procuram repensar e aprofundar a democracia

em um contexto de morte do fundamento e de perda de credibilidade das grandes narrativas.

Nesse movimento, estes teóricos dirigem críticas ao modelo liberal minimalista de

democracia, mas também ao modelo deliberativo. Seus principais interlocutores são os

teóricos ligados ao liberalismo de John Rawls e à democracia deliberativa de Jurgen

Habermas, embora também exista um diálogo crítico com outros teóricos contemporâneos

como Charles Taylor e George Kateb.

Os agonistas encontram suas raízes teóricas no pós-estruturalismo francês e, em geral,

aderem aos pressupostos deste movimento intelectual depois de terem sido vinculados

politicamente, com maior ou menor intensidade, aos projetos emancipatórios radicais do

século XX, entre os quais o marxismo tinha destaque. Os próprios franceses, pais do pós-

estruturalismo, começaram a produzir neste contexto de “crise do marxismo” e dos “grandes

relatos” especulativos e emancipatórios. Politicamente, no meio intelectual francês dos anos

1960, havia uma crescente desilusão de intelectuais de esquerda com o modelo soviético e

com o marxismo ortodoxo. Ao mesmo tempo, na academia, tinha início um forte

questionamento às correntes antes hegemônicas tais como a fenomenologia, o existencialismo

e o estruturalismo. Nesse contexto, Nietzsche e Heidegger tornaram-se referências

fundamentais para todos os autores conhecidos como pós-estruturalistas. Tanto que, por

vezes, estes teóricos são denominados como os “novos nietzschianos franceses”1, e, em

alguns casos, como “heideggerianos de esquerda”2.

Dando continuidade à primeira onda pós-estruturalista, os teóricos agonísticos apesar

de abandonarem grande parte dos conceitos e expectativas do marxismo, preservam a adesão

ao projeto de aprofundamento da “revolução democrática” dos tempos modernos, e, em maior

ou menor medida, ao ethos do enfrentamento político que surgira desta. Além do pós-

estruturalismo, os agonistas também recorrem a outras correntes teóricas, que, a partir de

1 Sobre a importância de Nietzsche para os pós-estruturalistas ver SCHRIFT (1995) e MARTON (2009, pp. 13-

52). 2 Sobre a leitura pós-estruturalista de Heidegger ver: MARCHART (2007).

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diferentes vias, também chegaram a uma posição pós-fundacional entre quais se destacam a

filosofia pós-analítica, o pragmatismo e o neo-pragmatismo.

Neste paper em que pretendemos analisar a compreensão que a vertente agonística

tem de conflito e pluralismo, iremos nos concentrar nos trabalhos de William Connolly e

Chantal Mouffe, e recorreremos, quando necessário, a outros teóricos agonísticos e a

comentadores. O texto está divido em duas partes: 1) A crítica imanente dos agonistas ao

liberalismo e 2) Radicalizando o liberalismo democrático.

1. A CRÍTICA IMANENTE DOS AGONISTAS AO LIBERALISMO

Os teóricos do agonismo fazem uma crítica imanente ao liberalismo. Os agonistas não

atacam o liberalismo no seu conjunto e nem se colocam fora da tradição liberal, que é

considerada por eles como uma tradição muito ampla e associada, em sua origem, à revolução

democrática dos tempos modernos3. O sentido da crítica imanente dos agonistas ao

liberalismo é “vocês liberais dizem defender o liberalismo, mas não realizam o próprio ideal

que prometem. Nós vamos mostrar uma maneira melhor de realizar este ideal”. Os teóricos do

agonismo dirigem suas críticas especificamente a duas tendências particulares do liberalismo:

1) um liberalismo de origem utilitarista que defende um modelo minimalista de democracia e

2) um liberalismo normativo de origem kantiana, que teria expressões mais recentes no

pensamento de John Rawls e Jürgen Habermas. Há também um conjunto de críticas aos

fundamentos comuns – e metafísicos – destas duas tendências. Comecemos por essa crítica.

Para os teóricos do agonismo, tanto o liberalismo de origem utilitarista quanto o

liberalismo de tipo kantiano tem fundamentos metafísicos que seriam visíveis (1) na ideia de

self centrado; (2) na concepção essencialista de identidade e (3) na crença na razão como

incondicionada e universalista que seria capaz de se impor infalivelmente à sensibilidade e de

produzir um consenso a respeito de valores. Esses pressupostos metafísicos condicionam a

ideia de liberdade em termos de “soberania” e entendida em oposição ao poder. É a partir

3 Essa revolução pode ser entendida aqui em termos tocquevillianos, como o avanço da igualdade, em oposição

às anteriores sociedades aristocráticas. Um avanço que, desde as revoluções americana e francesa de fins do

século XVIII, não cessou de ampliar o escopo daqueles que mereceriam tratamento igual. Ao mesmo tempo,

para o liberalismo, esse desenvolvimento da igualdade deveria ser conciliado com a liberdade, os direitos do

indivíduo e das minorias. Para Mouffe, “a democracia liberal não é o inimigo a destruir para criar, através da

revolução, uma sociedade inteiramente nova. (...) o problema com as democracias liberais „atualmente

existentes‟ não são com seus valores constitutivos cristalizados em seus princípios de liberdade e igualdade para

todos, senão com o sistema de poder que redefine e limita a operação destes valores. Por isso, nosso projeto de

uma „democracia radical e plural‟ foi concebido como uma etapa no aprofundamento da „revolução

democrática‟, como a extensão das lutas democráticas por igualdade e liberdade a um numero crescentemente

amplo de relações sociais” (LACLAU, MOUFFE, 2004, p. 16).

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dessas noções que se ergue o ideal metafísico de liberdade como ausência de poder que

culmina, em certas tendências políticas modernas, na ideia de emancipação radical.

a) A crítica aos pressupostos metafísicos das noções de self e identidade do liberalismo

Para Connolly, as noções de self centrado e de identidade em termos essencialistas têm

origem cristã. Nascem da resposta augustiniana ao “primeiro problema do mal”: se Deus é

onipotente e infinitamente bom, quem é o responsável pelo mal? Para Connolly, seguindo

Nietzsche, é a partir do ressentimento com a condição humana de mortalidade, contingência e

devir, que surge a necessidade de encontrar uma explicação mais consistente para as injustiças

fundamentais da vida, como a mortalidade, as doenças ou as catástrofes que atingem culpados

e inocentes de modo indistinto. Esse ressentimento da condição humana opera por trás da

pergunta e da elaboração das respostas ao problema do mal: ou Deus não é onipotente ou Ele

não é bom, porque permite a existência do mal4 (CONNOLLY, 1991, pp. 1-15). Mas Santo

Agostinho queria preservar, ao mesmo tempo, a onipotência e a bondade de Deus, então

responde dizendo que Deus deu livre-arbítrio ao homem, que passa, portanto, a ser

responsável pelo mal. Associada à ideia de uma vontade divina onipotente e incondicionada,

nasce a ideia de que há no homem um ponto incondicionado – a razão na alma – que poderia

determinar infalivelmente (de modo “soberano”) os apetites maus de sua alma e das suas

partes baixas (corpo).

Para Connolly, a partir da resposta augustiniana ao primeiro problema do mal nasce o

“segundo problema do mal”: “o segundo problema do mal é o mal que é derivado da tentativa

de estabelecer a segurança da identidade de qualquer indivíduo ou grupo através da definição

do outro como mau ou irracional” (CONNOLLY, 1991, p. 8). Para Connolly, todas as

culturas tem alguma noção de responsabilidade e a lógica da identidade requer a diferença.

Mas a tendência em transformar a alteridade em encarnação do mal teria sido intensificada no

Ocidente somente a partir da “doutrina forte da responsabilidade” que nasce com Santo

Agostinho (CONNOLLY, 1991, p. 99). Com essa mudança, segundo Connolly, o sujeito

“moral” passa a ver os outros indivíduos como dotados de “livre-arbítrio” como ele, mas que

não se comportariam como deveriam. Os outros indivíduos não podem mais ser vistos

simplesmente, por exemplo, como pessoas que tragicamente tem um temperamento irascível

que os levaria à própria queda. Tampouco podem ser vistos simplesmente como “loucos”,

diferentes ou enganados por um deus. São pessoas que escolheram livremente o mal. O

4 Para outras respostas cristãs ao primeiro problema do mal, ver: LACLAU (2011, p. 33)

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sujeito livre e centrado precisa preservar sua conduta e identidade, mas, para tanto, precisa

conter sua pluralidade interna de forças. E quanto mais tiver que conter essa pluralidade

interna, mais esse sujeito – que será também o sujeito do humanismo (e do liberalismo) –

precisará negar o desvio dos outros indivíduos. É da necessidade de manter a qualquer custo

sua própria identidade – consequência da décadance e do ressentimento da condição humana,

seguindo o pensamento de Nietzsche – que nasce uma intolerância violenta contra o diferente.

Chantal Mouffe também notou esse vínculo entre assegurar a qualquer custo a própria

identidade moral e a negação dos outros:

(...) deveríamos nos dar conta de que um mecanismo particularmente

perverso está em jogo nessas relações moralistas. Este mecanismo consiste

em assegurar a própria bondade mediante a condenação do mal nos outros. O

fato de denunciar os outros sempre foi uma forma poderosa e fácil de obter

uma ideia elevada do seu próprio valor moral (MOUFFE, 2007, p. 81).

Portanto, o moralismo no indivíduo, que nasce com a doutrina forte da

responsabilidade, tem o efeito de pressioná-lo a refletir interiormente em meios para afastar o

mal e preservar a coerência do seu self centrado, reprimindo seus “múltiplos eus” de modo

tirânico (não agonístico). Connolly não atribui a origem da noção de antagonismo absoluto

exclusivamente ao cristianismo augustiniano, afinal é nas três religiões monoteístas da

salvação que se encontram as origens da compreensão dos conflitos como antagonismos

absolutos – de luta do Bem contra o Mal. No caso do cristianismo e do islamismo (ao

contrário do judaísmo, em que há um povo eleito), essa luta é intensificada em razão do

universalismo e da ideia de missão dos fiéis na expansão da fé, que culmina na lógica da

guerra santa. Tudo isso poderia ser apenas um assunto religioso com importância menor em

uma Era secularizada, entretanto, para Connolly, tendências seculares modernas herdaram

muitos pressupostos dessa visão augustiniana (CONNOLLY, 1991, p. 2). Para Connolly, uma

das heranças mais visíveis dessa visão seria o que Heidegger denominou como

“ontoteologia”:

(...) uma tradição de pensamento que exige ou pressupõe uma resposta

definitiva para a questão do ser, uma resposta que inclui um princípio ético

que seres humanos são obrigados a seguir autoritariamente ou são

internamente predispostos a reconhecer, uma vez que influências que

distorcem sejam retiradas de suas almas (CONNOLLY, 1991, p. 71).

A perspectiva ontoteológica, portanto, teve uma primeira versão “autoritária”, em que

os homens são obrigados a seguir a ética que emana do próprio Ser e cuja essência pode ser

conhecida por nós (embora nem todos a vejam, por isso alguns devem ser obrigados), e uma

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segunda versão, secularizada, em que os homens são entendidos como sendo internamente

predispostos a reconhecer o mandamento ético que provém desta ordem do Ser, desde que

afastem as influências negativas que distorcem esse reconhecimento do mandamento ético,

como a influência das “partes baixas”, dos interesses e das paixões.

Em nenhum dos dois modos de ontoteologia há, verdadeiramente, pluralismo, pois

existe apenas uma moral (universal) que corresponde à ordem do Ser e que pode ser

conhecida pela fé ou pela razão. Isaiah Berlin considerou que esse foi um modo de pensar

persistente no Ocidente desde Platão, e, que além de pressupor uma única ordem e uma única

moral derivada dela, também acreditava que todos os “bens” seriam compatíveis. O

pluralismo dos teóricos da democracia agonística se parece com o de Isaiah Berlin, pois eles

não supõem que nós possamos conhecer de modo transparente a ordem do Ser, nem que

exista uma ética única derivada dessa ordem, nem que todos os bens que nós estimamos sejam

compatíveis. Também compartilham a visão de que a ontoteologia pode conduzir ao

fanatismo moral que destrói o pluralismo e a liberdade.

A ontoteologia procura apagar as contingências e os paradoxos e substituí-los por uma

ordem necessária que pode ser conhecida e na qual os paradoxos podem ser resolvidos pela

lógica. Para o filósofo trágico Clément Rosset, “a história da filosofia ocidental abre-se por

uma constatação de luto: a desaparição das noções de acaso, de desordem, de caos. Disso é

testemunha a palavra de Anaxágoras: „no começo era o caos; depois vem a inteligência, que

arruma tudo‟” (ROSSET, 1989, p. 13). Um dos inúmeros exemplos desse apagamento da

contingência teria sido o pensamento de Hegel, para quem o “real é racional” e há uma razão

conduzindo a história apesar das contingências aparentes. Para Nietzsche, o “primeiro filósofo

trágico”, em contrapartida, a lógica assim transformada no “critério do ser verdadeiro”,

transforma-se em metafísica (MÜLLER-LAUTER, 2009, p. 44-45). Podemos dizer que se o

lógico formal não vê contradições efetivas na realidade, o dialético as vê, mas suas

contradições sempre caminham para a resolução em uma síntese superior. O trágico, por sua

vez, enxerga paradoxos efetivos, e precisa saber avaliar, em cada contingente jogo de forças,

os paradoxos que condicionam as escolhas trágicas daqueles que precisam agir. São escolhas

“indecidíveis”, nas quais não há critérios seguros para decidir, e não existem ganhos sem

perdas, nem a paralisação pacificadora do jogo eterno e inocente do devir.

Diante da “paranoia” racionalista5, o trágico pergunta: e se a vida e o mundo não se

submeterem às projeções da nossa lógica? E se a vida exigir, ao mesmo tempo, resistência e

5 “Todo homem, enquanto lógico, é paranoico, na medida em que ele é constitutivamente motivado a passar da

ideia de relação à ideia de ser. A ordem não é, no limite, senão um pretexto que permite passar ao ser (as

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superação da resistência? E se ela tiver a indesejada propriedade de crescer justamente na

tensão não resolvida? E se os bens que nós estimamos não forem todos compatíveis e

existirem conflitos trágicos entre bem e bem? E se, como afirmam Laclau e Mouffe (2004,

p.x) o “universal for, ao mesmo tempo, necessário e impossível”? E se, como diz Connolly,

nós precisamos da identidade e a identidade requer a diferença, mas, ao mesmo tempo, há um

impulso de combater a diferença transformando-a em alteridade radical?

O modo de lidar com o pluralismo e o conflito muda quando passamos de uma

perspectiva ontoteológica que perpassa o pensamento liberal de tipo kantiano (e também de

tipo utilitarista), para uma “perspectiva trágica” que é, em maior ou menor medida, a

perspectiva dos teóricos da democracia agonística. O pluralismo e tolerância liberais

derivados da ontoteologia são apenas de fachada. Tolera-se apenas seu próprio tolerável e

considera-se como necessário apenas o seu próprio necessário6. Daí resulta um pensamento

que é “necessariamente intolerante” (ROSSET, 1989, p. 171). A “filosofia trágica”, em

contrapartida, exibe “uma capacidade de tolerância a toda prova, que a esse título pode

reivindicar como seu bem próprio (sendo toda tolerância não incondicional, a seus olhos,

intolerância). Visão do acaso, o pensamento trágico caracteriza-se por uma ética do

acolhimento” (ROSSET, Id)7.

Connolly considera que a ontoteologia secularizada derivada do iluminismo, substitui

a fé em Deus pelo progresso:

(...) elas compensam a perda da garantia transcendental ao preencher o

pensamento secular com uma fé de que o próprio mundo está predisposto a

ser dominado em favor dos fins e identidades que elas favorecem, e então se

esquecem do elemento da fé que opera em suas doutrinas. (...) Eles, assim,

secularizam o „esquecimento da diferença‟ que, no texto de Heidegger, é

uma marca que define a ontoteologia (CONNOLLY, 1991, p. 72).

investigações de Lacan sobre a origem da paranoia puseram em relevo a ligação entre as tendências agressivas

próprias à paranoia e a impossibilidade de pensar um ser: no caso, seu ser próprio, o eu). Se há uma lógica não

paranoica, é aquele que se pensa como não afetando senão a ordem do pensamento: tal é, por exemplo, a lógica

de David Hume, talvez o filósofo não-paranoico por excelência” (ROSSET, 1989, pp. 26-27). 6 “Notas que significam que o século XVIII não tolera senão seu próprio tolerável, do mesmo modo que não

considera como necessário senão seu próprio necessário, e que chama ateísmo apenas uma hostilidade à religião

cristã. Fora desses objetivos, ele não se interessa de modo algum pela ideia de tolerância: esforça-se, ao

contrário, por dizer o caráter intolerável de certas formas de opressão social e intelectual que, com a mudança

dos tempos, perderam razão de ser; É por isso que a tolerância da qual falam Voltaire e Montesquieu é bem

diferente da tolerância que, por exemplo, se recomendam implicitamente os Ensaios de Montaigne; a primeira se

diz em nome de valores que, tão logo reconhecidos, farão seu reinado e suas proibições; a segunda, em nome a

impossibilidade de reconhecer valores” (ROSSET, 1989, p. 175). 7 O que Rosset chama de ética do acolhimento está presente no pensamento de William Connolly, visível em

seus conceitos de “agonistic respect” e “critical responsiveness”, que discutiremos na parte 2 deste paper.

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Perdida a fé no Céu transcendente tratava-se agora de trazer o Céu a terra. Mas, para

Connolly, outros seguidores seculares da ontoteologia, como os liberais de origem kantiana –

muitos dos quais se consideravam agnósticos ou ateus – também continuavam sendo homens

de fé. O problema para Connolly não é que eles tenham fé, mas o fanatismo que pode decorrer

do não reconhecimento de que se trata de uma fé, cujos fundamentos são tão contingentes

quanto os de outras crenças. O próprio Connolly diz possuir uma fé − que ele retira de

Nietzsche e chama de “uma reverência não teísta pela terra e pela abundância da vida”−, mas

admite a contestabilidade da própria fé.

É a partir dessas considerações que se pode entender a crítica de Connolly ao

secularismo de algumas versões do liberalismo de origem kantiana, como seria o de Rawls e

Habermas, mas que também pode ser encontrado em versões do utilitarismo ou no liberalismo

“perfeccionista” (emersoniano) secular de George Kateb. Para Connolly, esses secularistas

esquecem a sua própria fé, visível nos fundamentos contestáveis da sua noção de self e de

identidade, e imaginam ser possível algo como a neutralidade quando defendem que nossas

crenças mais controversas, como certas crenças religiosas, sejam deixadas na vida privada e

só sejam levados à vida pública assuntos sobre os quais poderemos chegar a um consenso. O

resultado disso, tanto para Mouffe, quanto para Connnolly, é a manifestação de uma forte

tendência à homogeneidade, que deixa pouco espaço para o dissenso e para a disputa na

esfera política. Connolly chamou esse tipo de pluralismo liberal, de um pluralismo “estático”

que reconhece apenas as diferenças já existentes, mas tende a se fechar às diferenças por vir.

Ainda, Connolly critica a noção liberal de inspiração kantiana de individualidade que poderia

ser reduzida, segundo ele, a uma “doutrina da normalização”:

Mas o individualismo pressupõe um modelo de indivíduo normal ou racional

a partir do qual se deve avaliar a conduta e o interior de cada self existente.

Esse padrão de “indivíduo centrado e consistente”, como Nietzsche o teria

caracterizado, fornece a base para uma teoria dos direitos, justiça,

responsabilidade, liberdade, obrigação e interesses legítimos. A doutrina do

indivíduo centrado (do agente autônomo, autointeressado ou do indivíduo

normal) torna-se facilmente - vista a partir do ponto de vista perseguido aqui

- uma doutrina da normalização através da individualização (CONNOLLY,

1991, pp. 73-74).

O individualismo liberal, entendido nestes termos, esconde o que há de contingente e

construído nesse modelo de indivíduo centrado, reduzindo “o politico ao jurídico” e

“deflacionando a política da identidade e da diferença” (CONNOLLY, 1991, p. 74). Pois,

segundo Connolly, o indivíduo “normal” e não ambíguo que serve de fundamento a estas

teorias liberais secularistas, continua sendo, ele próprio, “um produto da demanda por uma

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identidade fundamental pura e fixa”. Identidade essa que procurou criar uma “vida sem

paradoxo” e que, portanto, “não supera o ressentimento da condição humana” que estava por

trás destas demandas niilistas. Logo, essa demanda por uma identidade fundamental pura e

estável não supera o “segundo problema do mal” que transforma a diferença em alteridade

má.

Portanto, esse entendimento liberal do individualismo não seria uma boa forma de

realizar o próprio ideal liberal que estimula um florescimento das individualidades e da

diferença. Segundo Connolly, para que esse ideal presente no individualismo liberal seja

plenamente realizado, ele precisaria ser “traduzido no vocabulário político da diferença”

(CONNOLLY, 1991, p. 86), especialmente em um mundo em que o poder disciplinar e o

biopoder descritos por Foucault afetam de modo inescapável as possibilidades de vida dos

indivíduos.

b) Crítica ao ideal metafísico de liberdade como ausência de poder

O modelo minimalista de democracia, mas também alternativas deliberativas que

ainda se baseiam na ontoteologia secularizada e racionalista, deságuam em um ideal de

neutralidade procedimental que, sob a capa de supostamente eliminar o poder arbitrário de

uns homens sobre outros, de algumas perspectivas do Bem sobre outras, escondem a

expansão do seu próprio poder. Uma sociedade sem poder e reconciliada seria apenas um

sonho metafísico para os teóricos agonísticos que compartilham o diagnóstico da morte do

fundamento. Um sonho que teve consequências desastrosas já que um poder invisível é mais

perigoso que um poder que se apresenta abertamente como poder. Nesse sentido, Mouffe

destaca a contribuição de Judith Butler que “nos recorda que „estabelecer um conjunto de

normas que se situem mais além do poder ou da força é, em si mesmo, uma prática conceitual

poderosa e vigorosa que sublima, disfarça e amplia seu próprio jogo de poder mediante tropos

de universalidade normativa‟” (MOUFFE, 1999, p. 194).

A tradição da filosofia política ocidental, profundamente vinculada à metafísica

tradicional e a “ontoteologia”, produziu aquilo que Nietzsche denominou “ideal unânime”,

que seria a compreensão do poder como algo negativo, em trade off com a liberdade. Essa

visão resulta na utopia da ordem social espontânea, uma sociedade sem poder de uns homens

sobre outros, um “rebanho autônomo” (NIETZSCHE, BM, § 202). A primeira manifestação

deste ideal teria sido o governo “técnico” dos filósofos de Platão: superar a arbitrariedade do

poder só seria possível se houvesse um conhecimento verdadeiro, imparcial, que superasse a

arbitrariedade particularista das opiniões (doxa). Não seria verdadeiramente um poder

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político, mas uma administração das coisas. Se não tivermos uma teoria da Verdade

imparcial, em contrapartida, a manutenção da ordem em uma sociedade plural só se explicaria

pelo poder de um homem, ou conjunto de homens, com suas opiniões arbitrárias, sobre outros

homens, cujas opiniões arbitrárias foram, ao menos momentaneamente, subjugadas, como

descrevia o sofista Trasímaco.

Os teóricos agonísticos, em contrapartida, seguindo as intuições de Nietzsche e

Foucault após a morte do fundamento, abandonam esse ideal e partem da questão nietzschiana

bem apresentada por Lebrun: “Que „potência‟ é essa, que só pode se desenvolver reclamando-

se do interesse alheio, e sob a caução de um ideal que lhe fosse superior?” (2010)8. Como os

sofistas, os agonistas “sabem de sua imoralidade”, quer dizer da sua parcialidade inevitável e

da contestabilidade das próprias posições, e procuram demonstrar, ao contrário do inábil

sofista Trasímaco, que a dominação a serviço do universal é uma ilusão e que a tentativa de

superar o poder acabou produzindo um poder ainda mais forte. Um poder, contudo, que não

se apresenta como poder, tornando mais difícil o surgimento de resistências. Ao invés de

visualizar uma sociedade sem poder, a utopia da ordem social espontânea e reconciliada, os

teóricos do agonismo irão entender a ordem social como um jogo agonístico permanente entre

poder e resistência. E o nome desse jogo é hegemonia. Não há jogo ou hegemonia sem regras,

mas ao contrário de visões estritamente procedimentais, de tempos em tempos, as próprias

regras devem ser colocadas em jogo (TULLY, 2008, pp. 142-143). O problema não é mais o

poder em si, mas um tipo de poder “despótico” que procura neutralizar o jogo agonístico entre

as forças em nome do imperativo do temor, o imperativo da moral de rebanho, aquele que é

no fundo o motor da expansão da biopolítica e diz “„queremos que algum dia não haja mais

nada a temer‟. Algum dia – em toda a Europa, a via e a vontade que conduzem a ele se

chamam agora „progresso‟” (NIETZSCHE, BM, § 201).

Portanto, contra a ideia de liberdade como laisser aller, que está relacionada com o

“ideal unânime”, Nietzsche entende que é necessário o estreitamento de perspectivas

fornecido pelas leis, costumes, identidades, cultura, etc. A vida precisaria de medida, ela é

necessária para produzir um acúmulo de forças que permitiria a própria superação da medida,

o surgimento de novas possibilidades de vida e o estabelecimento de novas formas de medida.

Estas serão novamente superadas em um agonismo sem fim entre resistência oferecida pela

medida e superação da resistência.

8 É visível como essa questão nietzschiana orienta as investigações de Foucault sobre a biopolítica.

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Os teóricos do agonismo, por vezes, parecem defender a liberdade como laisser aller,

mas esta seria uma leitura equivocada, pois eles acompanham o diagnóstico de Nietzsche

sobre a morte de “Deus” e, consequentemente, abandonam a crença no “ideal unânime”. O

poder, na perspectiva agonística, difere tanto do despotismo de um só, como do despotismo

que resulta da neutralização das forças em nome da ausência de riscos. A compreensão

agonística entende o poder mais no paradigma do jogo, em que há uma luta pelo predomínio

preservando a necessidade dos adversários, do que no modelo da guerra, que visa eliminar os

adversários, como lembrou Lebrun (2010), ao comentar um texto que também seria muito

citado pelos teóricos do agonismo, A disputa de Homero, de Nietzsche9.

2. RADICALIZANDO O LIBERALISMO DEMOCRÁTICO

Com a “morte de Deus”, sem ontoteologia, a emancipação é impossível, mas a

liberdade como criação agonística de novas possibilidades de vida permanece como ideal10

.

Os teóricos do agonismo querem dar continuidade a estas novas possibilidades, querem

prosseguir a revolução democrática dos tempos modernos sem a ontoteologia que a fundou.

Eles pensam que a versão minimalista da democracia seria insuficiente e estão dispostos a

radicalizar o liberalismo democrático, concedendo um lugar maior para a participação e para

as paixões, o pluralismo e o conflito na política, contrariando os ideais de neutralidade,

pluralismo limitado e consensualismo de um liberalismo que teria se tornado conservador.

Mas estes teóricos do agonismo querem fazer isso sem que o conflito assuma a forma de um

antagonismo destrutivo da própria democracia e de suas instituições.

Depois de mais de dois mil anos de ontoteologias – que procuraram apagar a

contingência imaginando uma ordem necessária e objetiva do Ser e um mandamento ético

universal derivado dela – formou-se um tipo homem cuja sensibilidade facilmente deságua

em dogmatismo e intolerância. O fechamento de sentido promovido pelas ontoteologias não é

9 Nesse texto, o filósofo alemão defendeu que os gregos a partir da época homérica souberam sublimar os

impulsos agressivos e expansivos, que no período pré-homérico eram selvagens e destrutivos e os canalizaram

para o bem da polis e para a superação de si dos indivíduos. O interesse de Nietzsche pelo agonismo grego está

relacionado com a sua crítica ao radicalismo do platonismo e do cristianismo que, em vez de tentarem embelezar

e espiritualizar os desejos, procuraram colocar a razão como tirana (Sócrates) e a castração como tratamento

(Igreja). Contra esses remédios radicais, Nietzsche valoriza o agonismo, o equilíbrio tenso e produtivo entre as

forças. 10

“Estamos hoje admitindo nossa própria finitude e as possibilidades políticas que ela enseja. Este é o ponto em

que os discursos potencialmente liberatórios de nossa era pós-moderna têm de ser iniciados. Podemos dizer que

hoje estamos no fim da emancipação e no início da liberdade” (LACLAU, 2011, Da emancipação à liberdade, p.

32, pp. 44-45).

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13

naturalmente amigo da democracia, que nasce na Atenas clássica, na Era dos trágicos e

sofistas.

A cosmologia trágica dos gregos era uma cosmologia que não fechava a questão do

sentido, mas, pelo contrário, “descobriu o abismo”11

, e, ao mesmo tempo, nossa limitação e

finitude. A democracia é um poder político, um governo da opinião, e não um governo

técnico da verdade. Seu nascimento ocorre em uma cultura que mantinha aberta a questão do

sentido. Haveria, assim, uma afinidade eletiva entre essa abertura cognitiva e a criação da

democracia, como defende Castoriadis no seu belo texto A polis grega e a criação da

democracia (1983). Os sofistas ao apontarem para o caráter perspectivo, humano, demasiado

humano de todo conhecimento, eram os pensadores da democracia, e Platão, homem da

verdade, foi o seu grande crítico. Os gregos da Era trágica inventaram o modo político de

equacionar o conflito entre opiniões plurais e a necessidade de unidade da polis, quer dizer,

inventaram a hegemonia como um jogo (agonístico) entre cidadãos iguais em status, mas

diferentes em opiniões, e a democracia como uma ampliação no quadro daqueles que podem

jogar.

Curiosamente, hoje, depois de mais dois mil anos de ontoteologias, assistimos a um

número cada vez maior de cidadãos e tendências intelectuais das mais diversas origens

redescobrindo radicalmente a contingência e, consequentemente, a condição de

imprevisibilidade e de incerteza inerente ao âmbito dos assuntos humanos12

. Essa mudança de

percepção está no “ar do tempo” do pensamento contemporâneo, chamado por alguns de

“pós-moderno”13

. Tal percepção ressalta o caráter contingente, construído e relacional do

conhecimento, do self, das identidades e dos nossos valores últimos, expondo os paradoxos

que as ontoteologias buscaram esconder. Essa mudança resultou nas noções de politeísmo de

valores, insuperabilidade das opiniões (perspectivismo) e do próprio poder, que passa a ser

visto como um jogo agonísitico. Se há uma afinidade eletiva entre abertura cognitiva e a

democracia, como sugeriu Castoriadis, então não é surpreendente que os que levaram até o

fim as consequências da “morte de Deus” firmem um compromisso com a democracia e o seu

aprofundamento, contra os sonhos totalitários de “Unidade” e reconciliação final das

ontoteologias.

11

Para Castoriadis (2004), o “abismo” é o “sem-fundo”, sem fundamento, mas o cristão já encontrou um

fundamento absoluto, fechando a questão do sentido do Ser. 12

Hannah Arendt, outra importante referência para os teóricos agonistas, discorre, assim como Nietzsche, sobre

o caráter “trágico” ou sobre o fato da não soberania do agente na ação. Em: CORREIA (2011); EUBEN (2011). 13

Ou “pagão”, como escreveu certa vez o próprio Lyotard (1989), “pós-fundacional”, como nomeou Marchart

(2007), um “retorno do trágico”, como prefere Maffesoli (2008).

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14

Para Connolly, há uma relação entre a experiência de contingência e a democracia,

pois “a democracia, mais do que as outras formas sociais, acentua nossa exposição à

contingência e aumenta a probabilidade de que a afirmação da diferença encontre expressão

na vida pública”. De acordo com o autor, é “essa intensificação da experiência do caráter

construído e relacional da identidade/diferença que constitui a virtude e o perigo da

democracia” (CONNOLLY, 1991, p. 193). Perigo porque existem riscos. Como evitar a

tendência da identidade em transformar a diferença em alteridade radical a ser combatida na

forma de antagonismo absoluto e destrutivo? Como evitar o fundamentalismo? Como

sublimar o antagonismo transformando-o em agonismo? Como evitar que a luta contra as

opressões resulte apenas em uma inversão das opressões ou em uma sociedade do controle em

nome do Bem? Estas questões indicam que antes de pensar no quadro institucional da

democracia agonística é preciso fomentar uma nova sensibilidade, um novo ethos. Nesse

sentido, os agonistas afirmam a importância de uma certa normatividade para a

implementação de um modelo agonístico de democracia. William Connolly propôs o

“respeito agonísitico” e a “responsividade crítica”, enquanto Chantal Mouffe sugere um

“respeito ao pluralismo” e afirma a importância de se reconhecer a legitimidade da posição do

outro. Para apresentar as propostas dos teóricos da democracia agonística, dividiremos esta

seção em duas partes: a) ethos agonístico e b) instituições agonísticas.

a) ethos agonístico

Diferentemente da visão fundamentalista, a prática do “respeito agonístico” pela

diferença requer que os adversários entrem na disputa sabendo da contingência e

contestabilidade de suas próprias posições, pois, como parece crer Connolly, isso dificultaria a

transformação imediata da diferença em mal. Nesse sentido, Connolly pensa que a

experiência da identidade e da diferença teria que ser distinta daquela que surgiu com o

cristianismo, ou seja, aquela que resultou no “segundo problema do mal”: a transformação da

diferença em um mal a ser extirpado. Seria preciso superar a tendência, presente nas

ontoteologias, para uma visão fundamentalista da identidade. Este conhecimento das

contingências presentes na formação do próprio self e das identidades étnicas, religiosas,

políticas, se faz por meio das genealogias. Entretanto, de acordo com Connolly, não é

necessário que a genealogia se torne um tipo de conhecimento dominante em nossa cultura. A

sua presença relevante como competidora com outras visões já seria suficiente para

desestabilizar dogmatismos.

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15

Para Connolly, o respeito agonístico é semelhante à tolerância, mas não é a mesma

coisa, pois “é uma relação por meio da diferença que não implica a consolidação de uma

identidade majoritária em torno da qual as minorias são toleradas como satélites”

(CONNOLLY, 1991, p. XXVII). Segundo Connolly, “em uma cultura predominantemente

cristã, a dimensão pública da fé pode facilmente escapar à atenção, pelo menos para aqueles

que são cristãos praticantes e para os secularistas que estão mais ligados às concepções cristãs

de vontade, responsabilidade, mal e liberdade do que eles próprios imaginam”. Desse modo,

os limites da “tolerância” tornam-se mais visíveis “desde o momento em que você passa a ver

Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, Budismo, Kantianismo, Rawlsianismo, Habermasianismo

e Nietzschianismo como crenças existenciais contestáveis e competidoras para o fornecimento

da matriz pública em que as crenças particulares serão definidas” (CONNOLLY, Id.). Quer

dizer, os que fazem parte de uma crença dominante, não notam a contestabilidade de sua

própria crença e por isso não podem perceber que o quadro institucional supostamente neutro

e procedimental não é imparcial, mas é “nosso”, em outras palavras, não se dão conta da

parcialidade necessária de toda perspectiva. Na tolerância dos “secularistas” é apenas a crença

dos outros que deve ser “tolerada”, desde que permaneça como “crença privada”. Nesse

sentido, o respeito agonístico é mais amplo que a tolerância porque implica colocar em jogo

também estes fundamentos últimos contestáveis que permaneciam protegidos sob a capa da

neutralidade liberal.

Já a “capacidade de resposta crítica” (critical responsiveness), outro conceito de

Connolly, seria o respeito agonístico em relação às diferenças minoritárias desqualificadas

que ainda lutam para sair da obscuridade e assumir um lugar de identidade constituída

legítima (tema desenvolvido em The Ethos of Pluralization, 1995). Isto não significa que,

segundo Connolly, todas as diferenças poderão ser harmonicamente incluídas. Como Isaiah

Berlin, os agonistas não supõem que todos os bens sejam compatíveis e, por isso, argumentam

que inevitavelmente haverá exclusões (CONNOLLY, 1991, pp. 159-160). A hegemonia é

inescapável, pois toda ordem é uma articulação temporal e precária de práticas contingentes.

Mas não precisa ser uma hegemonia que a priori transforme a diferença em mal para

preservar a própria identidade a qualquer custo. A democracia requer dos sujeitos um pathos

da distância em relação à contingência e contestabilidade de sua própria identidade e da

identidade dos outros (CONNOLLY, 1991, p. 184). Essa abertura em relação às diferenças

pode estimular o aparecimento de diferenças no próprio self 14

.

14

Quando Connolly ressalta a contingência, isso não quer dizer que ele considere que toda contingência é

modificável. Há contingências que são mais arraigadas e profundas e outras mais superficiais e maleáveis e “nem

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16

Connolly sabe que tanto o “respeito agonístico” como a “capacidade de resposta

crítica” que propõe são “idealismos”, mas afirma que há muitos idealismos e o respeito

agonístico mereceria entrar na competição com outros idealismos presentes na sociedade

contemporânea. Em alguma medida, eles já estão presentes no “ar do tempo” em que as

grandes narrativas perdem credibilidade.

A agonista Chantal Mouffe também reconhece a importância de um “respeito ao

pluralismo” (1999, p. 14) e de reconhecer a relatividade e a contingência das nossas crenças,

mas ainda assim querer lutar por elas (2011). Contudo, o ethos agonístico de Mouffe parece

ser distinto daquele de Connolly. Para Mouffe, “dado o pluralismo inerradicável de valores,

não há solução racional para o conflito – daí a sua dimensão antagonística”. Segundo Mouffe,

William Connolly e Bonnie Honig (claramente mais influenciada pelo pensamento de Hannah

Arendt do que os outros agonistas) não teriam esta compreensão. De acordo com a autora

“suas concepções deixam aberta a possibilidade de que o político, sob algumas condições,

torne-se absolutamente congruente com o ético – otimismo de que não compartilho”

(MOUFFE, 2003, p. 115).

Parece que em seu esforço para se diferenciar dos outros teóricos agonísticos, Mouffe,

seguindo uma velha tradição fratricida da esquerda em que cada um procura resguardar para

si a pureza radical que o outro não teria, cria um espantalho ao acusar Connolly e Honig de

possuírem uma visão de “pluralismo sem antagonismo”, pois Connolly nunca acreditou em

uma política em que todas as diferenças seriam incluídas de modo harmônico e reconheceu

que toda política, inclusive a democrática, passa pela hegemonia (CONNOLLY, 1991, p.

212). Da mesma forma, Bonnie Honig nega defender um pluralismo sem antagonismo e

afirma que “Mouffe acriticamente reimplanta os termos binários que regem grande parte da

literatura Arendt sobre o agonismo (por exemplo, o conflito versus deliberação) enquanto

acusa outros teóricos agonístas da falta de um total compromisso com o conflito e

contestação” (ACKERMAN; HONIG, 2011, p. 344).

O que surpreende é o enorme esforço de Mouffe para se diferenciar a qualquer custo

de outros agonistas, que também não acreditam nas ontoteologias, e, portanto, não acreditam

em uma miragem de pluralismo sem conflito e sem antagonismo. Entendemos que as

diferenças entre eles não são grandes, mas é perceptível uma diferença de grau na ênfase que

eles dão ao “antagonismo”.

todas as contingências podem ser transformadas pela vontade ou decisão” (CONNOLLY, 1991, p. 176).

Entretanto, é possível “dar estilo ao caráter”, para usar uma expressão de Nietzsche, retrabalhando e produzindo

novos arranjos entre as contingências mais arraigadas e mais superficiais do self (CONNOLLY,1991, p. 178).

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17

Estas diferenças talvez tenham relação com a trajetória intelectual e política de cada

um deles que leva a uma relação diferente com a “pós-modernidade”. Mouffe admite ter uma

posição ambígua entre o moderno e o pós-moderno. Mouffe é pós-moderna no sentido

epistemológico, mas não abandona, como supostamente teria feito Lyotard, o projeto

moderno de “liberdade e igualdade para todos”. Seguindo Richard Rorty, Mouffe afirma que

não há relação forçosa entre o projeto político moderno e os fundamentos epistemológicos

metafísicos que o sustentavam e entende que hoje não precisamos mais preservar essa ligação

para defender o projeto de liberdade e igualdade para todos ou a radicalização do projeto

liberal democrático. Mas também sobre estes pontos, não há diferenças entre Mouffe,

Connolly e Honig. Pois os dois últimos, também não abandonam o projeto de ampliação da

liberdade e igualdade, nem acham que esse projeto precise se sustentar na metafísica. Ainda

assim, Mouffe enfatiza mais a necessidade do antagonismo e da “unidade” entre diferentes

lutas parciais para o avanço do projeto liberal democrático.

Para Mouffe, hoje vivemos sob uma “hegemonia neoliberal” em um “mundo unipolar

aonde não existem canais legítimos para se opor à hegemonia dos Estados Unidos”

(MOUFFE, 2011, p. 122). Nesse mundo, as perspectivas “pós-políticas”, que apagam a

distinção entre esquerda e direta, teriam cada vez mais destaque. Para Mouffe, isto dificultaria

a luta por igualdade, que “requer a dimensão da utopia”, entendida como “imaginario como

conjunto de significaciones simbólicas que totalizan en tanto negatividad un cierto orden

social” (LACLAU & MOUFFE, 2004, p. 237). Ora, mas a utopia nasceu e sempre esteve

vinculada a uma metafísica racionalista. As utopias pressupõem uma ontoteologia e uma ideia

de reconciliação final unitária, transparente e harmônica. Foi assim desde a primeira utopia, a

República de Platão, até as utopias modernas de emancipação radical. Mouffe reconhece essa

ligação entre utopia e metafísica racionalista, mas diz que “toda política democrática radical

deve evitar os dois extremos representados pelo mito totalitário da Cidade Ideal e o

pragmatismo positivista dos reformistas sem projeto” (LACLAU & MOUFFE, 2004, p.

237)15

.

Mas como alguém pode ser reformista e, ao mesmo tempo, ser “sem projeto”? Se não

há projeto não há reforma, toda reforma pressupõe alguma direção que se quer tomar, quer

dizer, algum projeto de mudança e não a simples manutenção conservadora do existente. A

15

Guardemos nesse momento a crítica de Mouffe ao reformismo, para verificar depois se ela própria também

não é reformista.

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18

menos que Mouffe entenda o termo “projeto” apenas como projeto “radical”16

. Mas os

projetos radicais nasceram das metafísicas racionalistas. Mouffe quer, ao mesmo tempo,

preservar a ideia de “projeto radical” sem os pressupostos metafísicos que o fundaram. Nesse

sentido, parece que Mouffe, mais do que uma pós-moderna, é uma órfã do “projeto moderno”,

e, nessa medida, uma órfã de “Deus” (Razão, Verdade) e do paraíso (comunismo), afinal os

projetos modernos de emancipação radical são versões seculares das escatologias religiosas.

Os antagonismos binários absolutos entre Bem e Mal e a lógica da guerra santa também

nasceram nas escatologias monoteístas17

.

Mouffe quer preservar então esse padrão binário e radical de antagonismo, para alterar

a “hegemonia neoliberal”, por considerar que a luta política genuína deve se dar entre projetos

políticos hegemônicos distintos (MOUFFE, 2011, p. 11).

Para Mouffe, seguindo Derrida, as identidades individuais ou coletivas só podem se

formar a partir da diferença entre “nós” e “eles”. Essa distinção pode se tornar mais forte em

um processo de radicalização e assumir a forma da distinção entre amigo e inimigo. O

paradigma agonístico do jogo seria assim insuficiente para pensar o político de acordo com

Mouffe, que recorre ao paradigma da guerra, na forma da distinção amigo e inimigo,

formulada pelo conservador católico Carl Schmitt. O político, na forma de antagonismo, seria

“uma possibilidade sempre presente na política”, segundo Mouffe (2003, p. 29), e a simples

diferença entre “nós” e “eles” pode então potencialmente se transformar em antagonismo.

Este antagonismo poderia emergir, de acordo com Mouffe, de duas formas distintas: o

antagonismo propriamente dito e o agonismo. Enquanto o “antagonismo é a luta entre

inimigos”, o “agonismo representa a luta entre adversários”. Nesse sentido, o agonismo seria

uma forma sublimada de antagonismo e o próprio objetivo da política desde a perspectiva

agonística proposta por Mouffe, para quem “o propósito da política democrática é transformar

antagonismo em agonismo” (MOUFFE, 2003, pp. 115-116).

Mas Mouffe considera que para que seja possível uma disputa entre adversários é

preciso compartilhar “um espaço simbólico comum” (MOUFFE, 2003, p. 30), fundamentado

sobre um “consenso conflitual”, isto é, “um consenso sobre os valores éticos políticos de

liberdade e igualdade para todos e um dissenso sobre a sua interpretação” (MOUFFE, 2011, p.

16

Outro exemplo de que, para Mouffe, só é projeto se for radical, se “desafiar a hegemonia dominante”, surge

quando ela critica uma posição cosmopolita de governança global: “Isso implica em uma concepção da política

como resolução de problemas técnicos e não como participação ativa de cidadãos exercendo seus direitos

democráticos a partir de uma confrontação agonista entre projetos hegemônicos em disputa (...) Seu objetivo é

alcançar um objetivo ou o consenso racional e não desafiar a hegemonia dominante” (MOUFFE, 2011, p. 111)

Grifos nossos. 17

Esta origem foi reconhecida pelo próprio Laclau (2011, p. 44).

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19

129). Portanto, poderiam haver diferentes interpretações destes princípios, seja sob uma

perspectiva “social-democrata, neoliberal ou democrata radical”, por exemplo (MOUFFE,

2006, p. 317). A interpretação “democrata radical” seria o projeto da esquerda proposto

inicialmente por Mouffe e Laclau, no interior do enfoque democrático agonístico. Enquanto

esta última seria o espaço comum em que as interpretações diferentes sobre liberdade e

igualdade lutariam pela hegemonia, e, a democracia “radical”, não seria “uma política

revolucionária de tipo jacobino”, nem a “tradição lenininsta de uma ruptura revolucionária

total”, mas uma interpretação da democracia “compatível com a manutenção da denominada

„democracia formal‟”, contudo, apartada do “enfoque liberal de neutralidade do Estado”18

(MOUFFE, 2011, p. 59). Assim, Mouffe, apesar de não acreditar na utopia da reconciliação

final, quer preservar um padrão de conflito mais intenso que o mero jogo agonístico para

derrotar a hegemonia neoliberal atual e produzir uma nova hegemonia, desta vez, uma

hegemonia “democrática radical”. Esta seria “compatível com a democracia formal” e não

seria uma “ruptura radical” (MOUFFE, 2011, p. 59). Portanto, ainda que tenha dificuldade em

admitir, talvez em razão de sua trajetória política passada, Mouffe é reformista, pois não

propõe uma refundação radical da sociedade. Mouffe não é explícita, por exemplo, em propor

uma saída do capitalismo em geral, mas quer apenas enfrentar “modo neoliberal” de

hegemonia capitalista (MOUFFE, 2011, p. 39).

O posicionamento político de Connolly e Honig é semelhante ao de Mouffe, pois eles

também são críticos de esquerda do neoliberalismo, mas, em contraste com Mouffe, eles não

demonstram tanta preocupação em rejeitar os termos “reformismo” e “liberal”. Mouffe,

Connolly e Honig têm uma posição política que poderia ser chamada de “left liberal” com

ativismo, pois querem aprofundar o “liberalismo democrático”. Mouffe enfatiza a necessidade

de entendermos essa luta como uma luta coletiva em que é necessária uma certa “unidade”,

estabelecida por meio de uma “cadeia de equivalências entre as várias lutas democráticas e

contra as diferentes formas de subordinação”. Nesse sentido, “as lutas contra o sexismo, o

racismo, a discriminação sexual e a defesa do meio ambiente necessitam ser articuladas com

as dos trabalhadores em um novo projeto hegemônico de esquerda”. Colocando em termos

atuais, Mouffe insiste que a esquerda “necessita encarar tanto as questões ligadas à

18

Entretanto, em outro texto, Mouffe afirma que “a diferença fundamental entre a perspectiva dialógica e a

agonística é que o objetivo desta última é uma profunda transformação das relações de poder existentes e o

estabelecimento de uma nova hegemonia” (MOUFFE, 2011, p. 58). Mas aqui é a perspectiva “agonística” e não

a “radical” que se opõe à perspectiva dialógica, o que confunde os seus leitores. Daí também deriva uma

dificuldade para entender porque em alguns momentos Mouffe parece compreender o agonismo como

insuficiente e em outros ela defende a “transformação do antagonismo em agonismo”, sublimando ou

domesticando o conflito.

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20

„redistribuição‟, como ao „reconhecimento‟” (MOUFFE, 2004, p. 19). Mas Connolly e Honig

não discordariam dela sobre a necessidade de unir lutas por redistribuição com lutas por

reconhecimento.

Outro aspecto da crítica de Mouffe aos outros “agonistas” era que “suas concepções

deixam aberta a possibilidade de que o político, sob algumas condições, torne-se

absolutamente congruente com o ético – otimismo de que não compartilho” (MOUFFE, 2003,

p. 115). Mouffe sugere com isso que Connolly e Honig também fariam parte do “ar do

tempo” da “pós-política”. Em outro texto, ela se refere à “perspectiva ética” de autores

influenciados por “Levinas, Arendt, Heidegger, ou até Nietzsche” (MOUFFE, 2003, pp. 141-

142). Essa “perspectiva ética”, segundo Mouffe, não teria uma reflexão adequada do

momento da “decisão” e da violência na política. Portanto, um problema desta perspectiva

seria a ideia de um “pluralismo sem antagonismo”, que Mouffe tanto critica. Esta perspectiva

ética não enxergaria a especificidade do “político”, que estaria relacionada ao fato de que toda

ordem hegemônica se assenta sobre fundamentos que são contingentes e “indecidíveis”.

Portanto, o antagonismo seria inerradicável do político, porque não há critérios racionais e

imparciais para decidir entre eles e estabelecer um consenso pleno. Daí a inseparabilidade,

segundo Mouffe, entre a distinção amigo e inimigo e o político.

Para Mouffe, com a diluição da distinção entre esquerda e direita e sua substituição

por uma concepção “pós-política”, encobriu-se a competição entre diferentes projetos

hegemônicos e, com isso, o aspecto contingente e indecidível de toda fundação de ordem

hegemônica foi “esquecido”, para falar de modo heideggeriano. O problema seria que a

república pós-política “de centro”, apagaria a figura necessária do “adversário” e isto poderia,

paradoxalmente, favorecer ao extremismo que destrói a democracia. Mouffe considera que na

ausência de alternativas políticas hegemônicas, como aquela entre “adversários” de esquerda

e direita, os conflitos tendem a assumir uma forma mais extrema, como “uma confrontação

moral entre bem e mal”, na qual “o oponente só pode ser visto como um inimigo que deve ser

destruído e isto não conduz a um tratamento agonista” (MOUFFE, 2007, pp. 12-13).

Não compreendemos porque Mouffe faz essa separação entre moral e política a partir

da cegueira da moral em relação ao “indecidível”. Tampouco compreendemos a suposta

incompatibilidade entre ética e violência ou porque o antagonismo específico entre esquerda e

direita teria a capacidade de evitar o surgimento de extremismos. Estamos de acordo com

Mouffe quando ela diz que a “moral” é cega ao indecidível, afinal, as morais de comando dos

monoteísmos e de suas secularizações já encontraram a Verdade, quer dizer, elas já

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preencheram o “abismo”. Mas não entendemos por que as decisões “políticas” de esquerda ou

direita estariam imunes a esta cegueira “moral”.

A dificuldade em separar moral e política está relacionada com o fato de que o sujeito

político que decide nunca é vazio e desestruturado, mas sempre preenchido por afetos,

valores, moralidades etc. E pouco importa que estes fundamentos morais e psicológicos sejam

contingentes. Contra Mouffe, pensamos que os conflitos políticos entre esquerda e direita não

são fundamentalmente diferentes de conflitos morais, pois as próprias posições políticas de

esquerda são fundamentadas na moralidade democrática moderna, que herda seus

pressupostos fundamentais da moral cristã, a moral da compaixão. Assim como

posicionamentos políticos da direita conservadora estão inseparavelmente ligados a outras

interpretações da moralidade cristã. Os dois lados, ao modo de Santo Agostinho, “sabem o

que Sócrates não sabia, sabem o que é o bem e o mal” (NIETZSCHE, BM, § 202), que todo

mal tem um culpado, combatem os “inimigos” do Bem, perseguem os “responsáveis”

buscando justiça (vingança), aguardando a redenção em outra vida (direita cristã

conservadora) ou neste mundo (esquerda).

A ênfase de Mouffe na decisão parece ser o que restou da ideia de liberdade absoluta

(liberdade incondicionada, ausência de determinação), que nascera daquela metafísica

escatológica cristã. A decisão, assim concebida em termos “radicais”, se parece com a ideia

de “escolha radical” de Sartre, em que uma escolha se faz sem estar fundada em nenhum

conjunto de princípios a priori. Connolly considera que essa ideia de escolha radical é uma

versão moderna e radicalizada da doutrina forte da responsabilidade que nasceu com Santo

Agostinho, e, através da história formou a “moderna cultura secular da punição, culpa,

responsabilidade e doença” (CONNOLLY, 1991, p. 116). Contra essa ideia de escolha

radical, Connolly concorda com Charles Taylor quando ele diz que “a escolha do self nunca é

verdadeiramente radical porque ela sempre pressupõe um fundo que exerce atração sobre o

self e a partir do qual ele faz avaliações” (CONNOLLY, 1991, p. 107). Para Connolly, Taylor

está correto em apontar que a escolha nunca é radical porque o self sempre está “preenchido”,

entretanto, afirma que o próprio Taylor vai buscar, entre os diversos preenchimentos do self,

aqueles mais profundos que seriam “mais próximos do que o que eu sou como sujeito”.

Assim, Taylor, de acordo com Connolly, não considera a “pluralidade de concepções de self

que seriam compatíveis com uma compreensão ampliada da relação entre reflexão e pré-

reflexão” e permanece preso ao modelo augustiniano (CONNOLLY, 1991, pp. 109-110).

Sem querer abolir toda ideia de responsabilidade, Connolly considera que o

“ressentimento existencial” presente na resposta augustiniana inflacionou a ideia de

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responsabilidade. Em vez dessa doutrina forte da responsabilidade, Connolly sugere uma

“doutrina contingente da identidade e da responsabilidade ambígua”, como uma base melhor

para a política. Com ela, “a política transforma-se em um meio para a enunciação de

alternativas suprimidas e de contestação de comunalidades arraigadas. Ela se torna um meio

pelo qual práticas inequívocas de responsabilidade são negociadas e perturbadas”, e, é com

essa perturbação que podemos nos tornar “alertas para novas dimensões de preocupações

éticas nas relações entre identidade e diferença. Podemos nos tornar alertas para o elemento

de vingança existencial instalada dentro das idealizações da identidade e da diferença”

(CONNOLLY, 1991, p. 121).

Connolly, portanto, está explicitamente em oposição à ideia de liberdade (escolha

radical) e de decisão que surge com a tradição escatológica. Mas o pensamento “radical”,

como pretende ser o de Mouffe, em contraste, tem dificuldade para estabelecer uma ruptura

com a tradição escatológica, já que, de alguma forma, permanece à sombra de Deus. A ênfase

no momento “decisionista da liberdade” só é possível se se imagina a liberdade como

ausência de determinação − concepção que, para Nietzsche, tem origem na “moral escrava” e

que, como já dissemos, Connolly, de modo mais específico, indica o seu nascimento com a

doutrina forte da responsabilidade de Agostinho. Uma doutrina que teve também versões

modernas e secularizadas. Assim, conforme sugerimos anteriormente, a ênfase no momento

“decisionista” do político tem relação com essa ideia de liberdade como “ausência de

determinação”, ainda que não de modo tão forte quanto na versão sartreana de “escolha

radical”.

Mouffe compartilha muito de sua própria visão com Ernesto Laclau, e este destacou o

momento do “deslocamento”, de “falha estrutural” que “força o sujeito a escolher”, como o

momento da liberdade (LACLAU, 2011, p.46). Embora Laclau escreva que quer se afastar

tanto da “liberdade espinosiana” quanto da “liberdade sartreana”, no fim, acaba oferecendo

uma concepção de liberdade que se aproxima mais da versão sartreana, de liberdade absoluta

como “ausência de determinação”. Laclau afirma que a liberdade ocorre em um momento de

“falha estrutural”, ou seja, em um momento de ausência de determinação. Ele apenas pondera

que esse momento de maior liberdade também é o de maior perigo, por isso a “busca por

liberdade absoluta para o sujeito é o mesmo que uma busca por um deslocamento irrestrito e a

total desintegração do tecido social” (LACLAU, 2011, p.46). O que ele não coloca em

questão é a própria ideia de liberdade como ausência de determinação, uma concepção que

não é universal, mas histórica e específica, que só aparece quando surge a ideia de que há uma

vontade soberana incondicionada (Deus) e seres humanos com algum ponto incondicionado

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na alma (razão) capaz de determinar soberanamente os afetos e impulsos afastando-se do mal

(livre-arbítrio/Santo Agostinho). As ideias de liberdade como ausência de determinação e

como soberania, estiveram juntas no projeto de “emancipação radical” de certas utopias

políticas modernas. A ideia moderna de revolução é apocalíptica, pois envolve um evento

único que destrói um mundo e cria outro mundo radicalmente novo de redenção. Nessa

concepção, é precisamente esse momento de refundação radical o momento de maior

“liberdade”.

Nesse sentido, Laclau parece estar mais vinculado à tradição escatológica do que

Chantal Mouffe, pois, como notou Aletta Norval, “Laclau tende a tratar as discussões

relacionadas com a organização da vida democrática como problemas administrativos” ou

“institucionais”, e, as questões que emergem deste terreno são caracterizadas por Laclau como

“meramente ônticas”, em contraste com seu interesse na “ontologia do político” (NORVAL,

2007, p. 160). É por isso que Laclau trata mais do antagonismo e não usa o termo

“agonismo”. Mouffe, em contraste, fica em uma posição ambígua entre a defesa da primazia

do antagonismo (entre inimigos) e a defesa de sua domesticação na forma do agonismo (entre

adversários). Nessa divisão, o momento do antagonismo propriamente dito ocorreria no

“momento da constituição do campo político como tal”, enquanto o agonismo “seria

reservado para capturar momentos de antagonismo ocorrendo no interior do terreno já

constituído do regime democrático” (NORVAL, 2007, p. 159). Mouffe quer pensar em um

modelo agonístico de democracia e em uma subjetividade democrática, e, para tanto, precisa

enfrentar essa dificuldade de ter que equacionar a inevitabilidade do antagonismo e a

necessidade de sua domesticação em agonismo. Esse problema não existe, segundo Norval,

para Laclau, porque ele não teria interesse por questões “meramente ônticas”.

Como não lembrar, neste momento, da crítica de Derrida a Walter Benjamin no seu

texto O prenome de Benjamin, adendo de Força de Lei? Porque a posição de Laclau, e, em

menor medida, a de Mouffe, se assemelha a de Benjamin. Derrida afirma que o texto de

Benjamin, Zur Kritik der Gewalt, “é ainda excessivamente heideggeriano, messiânico-

marxista ou arqui-escatológico” (DERRIDA, 2010, p. 144). Derrida sugere que essa herança e

o momento de crise da democracia parlamentar na República de Weimar talvez expliquem o

diálogo amistoso entre Benjamin e “o grande jurista conservador católico Carl Schmitt”, que

escreveu uma “carta de felicitações” a Benjamin por seu texto Zur Kritik der Gewalt

(DERRIDA, 2010, p. 71). Derrida escreve que naquele contexto “discursos revolucionários,

de esquerda ou direita”, se “assemelhavam de modo perturbador” na justificativa do “recurso

à violência, alegando a instauração, em curso ou por vir, de um novo Estado” (DERRIDA,

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2010, p. 82). Para Derrida, a associação entre Benjamin, Schmitt e Heidegger indicaria uma

“correspondência epistolar que ligou esses três pensadores (Schmitt/Benjamin,

Heidegger/Schmitt). Trata-se sempre de espírito e de revolução” (DERRIDA, 2010, p. 109).

A ideia de refundação radical liga-se então a uma noção de sagrado que considera que “o que

é sagrado em sua vida não é sua vida, mas a justiça de sua vida. Mesmo que os animais e as

plantas fossem sagrados, não o seriam por sua simples vida, diz Benjamin. Essa crítica ao

vitalismo ou biologismo, se ela se assemelha também à de certo Heidegger, e de propostas

hegelianas, aparece aqui como o despertar de uma tradição judaica” (DERRIDA, 2010, p.

125). Para Derrida, foi na tradição judaica que surgiu pela primeira vez (portanto, antes de seu

desenvolvimento cristão) a ideia de uma violência divina, justa e fundadora, e, nós somos

instrumentos dela e não seus autores em nome próprio.

Mas como sustentar essa concepção de liberdade como refundação radical, soberana e

justa após a “morte de Deus”? Para os teóricos da democracia agonística mais inspirados em

Nietzsche, Arendt e Foucault, com a morte de Deus era precisamente essa ideia de liberdade

como soberania que teríamos que abandonar (TULLY, 2008, p. 136). Arendt abandonou as

especulações metafísicas sobre liberdade interior e entendia a liberdade como ação e

performance não soberana. Segundo Tully, a ação envolveria, para Arendt, um “jogo

agonístico por reconhecimento e domínio” e criaria algo novo, mas, no interior das regras do

jogo político. Foucault, também entenderia a liberdade como jogo agonístico, mas, em

contraste com Arendt, o agonismo de Foucault envolveria colocar em jogo as próprias regras

do jogo (TULLY, 2008, p. 143). Portanto, a liberdade é para Arendt e Foucault um jogo

agonístico que envolve em maior o menor grau a criação de algo novo. Entretanto, não há

mais aqui nenhuma nostalgia do apocalipse ou projeto de refundação radical da totalidade do

social em um evento único, tal como aparecia na ideia moderna de revolução e emancipação

radical. Como se sabe, Foucault abandona a compreensão marxista de poder e revolução.

Mouffe e Laclau ainda parecem viver à sombra deste ideal, pois, embora não acreditem mais

nos fundamentos metafísicos que o criaram e afirmem que a emancipação é impossível,

continuam presos, em certa medida, a uma concepção de antagonismo e liberdade que teve

origem no modo escatológico de pensar. Talvez seja essa a principal diferença entre Chantal

Mouffe e Ernesto Laclau, por um lado, e William Connolly, Bonnie Honig, James Tully,

Lawrence Hatab e Christa Acampora, por outro.

O texto de Derrida, anteriormente citado, também é interessante porque sugere que a

correspondência amigável entre Benjamin e o conservador católico Carl Schmitt tem relação

com filiação de ambos à tradição escatológica. É por aí que podemos compreender também o

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grande interesse de Mouffe em se apropriar concepção schmittiana do político a partir da

distinção amigo e inimigo. Afinal, Mouffe vem de uma tradição política escatológica, ainda

que sua trajetória, pelo menos desde a publicação de Hegemonia e Estratégia Socialista

(1985), tenha sido marcada por uma reflexão em que cada novo posicionamento teórico

assumido por ela indica mais um passo no processo de desmoronamento da tradição

escatológica.

As diferenças entre as primeiras obras de Mouffe e as últimas ou entre ela e os teóricos

da democracia agonística mais inspirados em Nietzsche, Arendt e/ou Foucault, podem ser

explicadas pelo grau de afastamento em relação à tradição escatológica. O político definido

em termos do conflito amigo e inimigo nasce com essa tradição escatológica. Segundo

Arendt, entre os gregos o conflito antagônico entre “amigo e inimigo” era típico da guerra

entre as cidades-estados gregas ou do exército grego contra outros povos, enquanto o conflito

interno, nas assembleias e praças públicas da polis seria um conflito entre adversários

(ARENDT, 2009, pp. 240-247). O historiador Moses Finley tinha a mesma avaliação. Para

Finley (1983, pp. 134-135), mesmo nos conflitos civis mais intensos (stasis) entre pobres e

ricos (conflitos que ocasionalmente até poderiam desaguar em guerra civil), nunca se colocou

em questão, por exemplo, a existência da aristocracia e da escravidão. Quer dizer, revolução

para o mundo pré-escatológico era apenas alteração brusca do governo, mas não a criação de

uma sociedade radicalmente nova e de um novo homem e, os conflitos políticos entre ricos e

pobres eram entendidos simplesmente como um conflito de interesses. Havia espaço para

reformas, de Sólon, Clístenes, Péricles etc., mas não havia a ideia moderna de revolução, que

só surge depois da associação entre o racionalismo metafísico e a tradição escatológica.

Quando esta associação entre o racionalismo metafísico e a tradição escatológica

ingressa na política, a partir da Revolução Francesa, a guerra entre amigo e inimigo é

introduzida no interior da “polis”. Uma guerra entre diferentes concepções de “fabricação”

(Arendt) de uma nova sociedade e de reações contra essa fabricação. Mas a introdução desse

padrão de conflito amigo e inimigo no interior da polis, quando levado a termo com a vitória

de um dos projetos de fabricação, sempre destruiu a pluralidade e a liberdade em nome da

Unidade reconciliada. É por isso que Andrew Schaap, inspirado em Arendt, questiona o uso

de Schmitt por Mouffe.

Para Schaap (2007), a apropriação que Mouffe faz do conceito do político de Schmitt

é problemática, porque dificilmente seria compatível com o pluralismo que ela própria alega

defender. A concepção de Arendt do político seria mais adequada para alcançar este objetivo.

Para Arendt, prossegue Schaap, o agonismo político implica “o confronto entre uma

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pluralidade de perspectivas que são trazidas para o mundo por indivíduos”, e, ainda que a

pluralidade possa aparecer “por dois lados”, “uma visão dicotômica do mundo é, em última

análise, redutora da realidade política”, pois “é apenas onde três ou mais perspectivas entram

em jogo que a política genuína começa” (SCHAAP, 2007, p. 70, grifos nossos). Seguindo a

perspectiva arendtiana, Schaap afirma que a “distinção schmittiana entre amigo e inimigo

torna-se antipolítica, na medida em que impede que essas outras perspectivas emergam” (Id).

Em contraste com Schmitt, a “compreensão de Arendt do político em termos de liberdade”,

permitiria o reconhecimento do agonismo como emergindo da pluralidade baseada na

“diferença absoluta de todos os homens entre si”, que, nos termos de Arendt “é maior do que

a diferença que existe entre os povos, nações ou raças” (ARENDT apud SCHAAP, p. 70). Por

outro lado, prossegue Schaap, o entendimento de Schmitt do político em termos de exclusão

significa que o agonismo necessariamente refere-se “a um conflito entre dois grupos opostos,

o que torna problemática a ambição de Mouffe para empregá-lo como uma forma de

compreender a pluralidade dentro da política” (SCHAAP, 2007, p. 70, grifos nossos).

Schaap também questiona a ideia de que toda identidade política seja necessariamente

construída em oposição a um antagonista (SCHAAP, 2007, p. 68) e pergunta “se o diálogo

orientado ao consenso é sempre suspeito de ser ideológico”, como é para Mouffe, “então

como pode o conflito ser democraticamente sublimado para que venha a ser entendido como

comum aos grupos opostos, uma relação de agonismo em vez de antagonismo?” Uma

orientação ao consenso não significa acreditar que seja possível efetivamente alcançá-lo.

Portanto, não se exclui a possibilidade de conflito na perspectiva arentiana do político, mas

este não é entendido em termos dicotômicos e absolutos. Mouffe parece querer fomentar o

antagonismo dicotômico e, ao mesmo tempo, sublimá-lo em agonismo e, seguindo Schmitt,

parece não considerar a sugestão arendtiana de que “só com o surgimento de mais

perspectivas é que a representação de um conflito como um conflito incomensurável entre

duas formas concorrentes de vida pode ser reformulado de modo a que possa permitir que os

antagonistas políticos compreendam-se a si mesmos de forma diferente” (SCHAAP, 2007, p.

68). Schaap reconhece que a concepção schmittiana da política é importante para trazer a

política do liberalismo de volta à vista, mas só seria compatível com o pluralismo se pudesse

“explicar o surgimento de mais de duas perspectivas de um conflito que é inicialmente

dicotômico”, e, para tanto, “a concepção arendtiana da política fornece um ponto de partida

mais adequado” (SCHAAP, 2007, p. 64).

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b) Instituições agonísticas

Para Schaap, o agonismo de Mouffe fornece uma perspectiva crítica importante a

partir da qual podemos “reconhecer os usos potencialmente ideológicos em que as

justificativas dialógicas de regimes políticos podem ser colocadas” (SCHAAP, 2007, p. 69),

entretanto, segundo Schaap, tanto a perspectiva de Mouffe quanto as dos demais teóricos da

democracia agonística, se restringiria a constituição de um ethos agonístico, carecendo de

“uma explicação adequada da institucionalização da democracia agonística e, em particular,

em como isso seria possível sem domesticar política agonística” (SCHAAP, Id). Esta ausência

de reflexão institucional para um “modelo de agonístico de democracia” talvez tenha relação

com o fato de que Mouffe chamou a atenção para a função potencialmente ideológica das

instituições democráticas na regulação do conflito político e, por isso, “não pode se apoiar

(como ela, às vezes faz) em um compromisso comum com essas mesmas instituições a fim de

sublimar uma confrontação potencialmente antagônica entre inimigos em uma competição

agonística entre adversários” (SCHAAP, Id.).

Lawrence Hatab também apontou a ausência de reflexão institucional sobre a política

agonística em Mouffe, Connolly e Honig. Hatab está entre aqueles que consideram que o

pensamento de Nietzsche pode ser útil para a democracia19

, ainda que o próprio Nietzsche não

tenha sido um defensor da democracia moderna. Estes teóricos avaliam que existem aspectos

centrais do pensamento do autor de Zaratustra que seriam bastante fecundos para uma

reflexão sobre a democracia e o seu aprofundamento, particularmente se considerarmos a

compreensão nietzschiana de perspectivismo, agonismo e pluralismo.

Na sua recuperação do agonismo nietzschiano Hatab se distancia tanto daqueles que

defendem que Nietzsche contra a democracia20

, quanto de teóricos pós-modernos que

mobilizam Nietzsche para a democracia. Por um lado, Hatab considera que o desafio lançado

por Appel − sobre a compatibilidade do pensamento de Nietzsche para pensar a democracia,

tendo em vista seu aristocratismo − não foi levado a sério pelos “nietzschianos pós-

modernos”. Hatab tende a concordar com a crítica de Appel à “leitura seletiva” de Nietzsche

feita por estes autores pós-modernos, mas não concorda com Appel que o agonismo

19

Na teoria democrática contemporânea têm surgido diversos trabalhos neste sentido. Hatab é o que mais se

esforçou em pensar em um uso de Nietzsche para a democracia, especialmente no seu livro: A Nietzschean

Defense of Democracy (1995). Outros trabalhos importantes sobre Nietzsche para a democracia são: WARREN

(1988); CONNOLLY (1991); HONIG (1993); OWEN (1995); ACAMPORA (2013). No Brasil, além de artigos

publicados na revista Cadernos Nietzsche, destacamos o livro de Fernando Costa Mattos, Nietzsche,

perspectivismo e democracia (2013). 20

Em oposição a esta leitura de Nietzsche para a democracia, destacam-se, no contexto anglo-saxão, Appel

(1999) e Dombosky (2004), que entendem Nietzsche sempre contra a democracia e apontam para a

impossibilidade de separar o perspectivismo e agonismo de Nietzsche do seu aristocratismo, e, consideram que

os teóricos pós-modernos fazem um uso seletivo e equivocado do pensamento de Nietzsche.

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nietzschiano seja incompatível com a democracia. Para Hatab, as críticas de Nietzsche à

democracia, não são propriamente críticas a uma forma de governo específica, mas à

moralidade democrática moderna que teria, para Nietzsche, profundas raízes na moral

escrava, especialmente em virtude de seu igualitarismo que se ressente contra a excelência e

as instituições.

Segundo Hatab, a leitura de Nietzsche feita por muitos pós-modernos exagera

unilateralmente a dimensão dionisíaca e anti-institucional do pensamento do filósofo alemão e

negligencia quase toda dimensão apolínea de seu pensamento. Essa leitura unilateral esquece

que Nietzsche defendia um equilíbrio entre o apolíneo e o dionisíaco e não tinha uma

concepção de liberdade como ausência de determinação. A não existência de fundamentos

metafísicos não exclui, para Nietzsche, a necessidade de imposição de formas para a vida. A

apresentação nietzschiana sobre a origem da lei, na Genealogia da Moral, é citada por Hatab

como um exemplo de que Nietzsche não pode ser lido simplesmente como um anti-

institucionalista21

. A lei não é apresentada por Nietzsche como um produto do ressentimento

reativo, mas das forças ativas que se tornam capazes de oferecer uma resposta mais impessoal

aos crimes, contendo a reação pessoal, ressentida e vingativa que a comunidade tende a ter

contra aqueles que violam a lei (HATAB, 2002, p. 137). O igualitarismo extremo na forma de

“democratismo” que se ressente contra qualquer autoridade é, para Nietzsche, sintoma de

décadence, de “declínio da capacidade organizadora”22

. Esse igualitarismo, em sua forma

extrema, seria aquele que é praticado por anarquistas que só tomam decisões em assembleias

e por unanimidade, pois somente as decisões por unanimidade respeitam o igual valor de

todos os indivíduos presentes na assembleia. Mas isso inviabiliza a capacidade organizadora.

Os nietzschianos pós-modernos da democracia agonística celebram a diferença e a

abertura democrática em nome de Nietzsche, mas poucos entre eles “celebram também a

excelência” (HATAB, 2002, p. 139). Não é qualquer diferença, portanto, que eles celebram,

talvez porque “a excelência é uma forma de diferença que implica gradações e juízos sobre

superior e inferior, piores ou melhores performances” (Id). Para Hatab, “muitos abraçaram a

abertura nietzschiana à diferença em nome de uma libertação generalizada de diferentes

estilos de vida e modos de autocriação, mas tal emancipação generalizada teria causado

21

Bonnie Honig também compartilha essa visão de Hatab sobre Nietzsche, que, para ela, apresenta “o mesmo

„amor ao mundo‟ arendtiano e igual „compromisso com a manutenção responsável de um espaço de público de

aparências‟”. Honig, assim como Hatab, cita a defesa da “lei”, mas também a “admiração nietzschiana de Roma

e suas instituições” em Genealogia da Moral (HONIG, 1993b, pp. 529-530). 22

“Crítica da modernidade. – Nossas instituições nada mais valem: acerca disso há unanimidade. O problema

não está ligado a elas, mas a nós. Depois que perdemos todos os instintos dos quais nascem as instituições,

estamos perdendo as instituições mesmas, porque não mais prestamos para elas. O democratismo sempre foi a

forma de declínio da força organizadora” (NIETZSCHE, CI, Incursões de um extemporâneo, § 39)

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repulsa em Nietzsche. Ele estava mais interessado em promover indivíduos especiais e

grandes realizações” (Id).

A excelência e a democracia podem ser compatíveis, segundo Hatab, “desde que a

excelência seja entendida em sentido contextual e performativo, em vez de no sentido de uma

superioridade permanente, pervasiva ou essencial” (Id). Nesse sentido, nem todo elitismo

seria incompatível com a democracia, mas apenas aquele que fixa elites a partir de posições

de classe, status, casta etc. Seria possível permanecer democrático abrindo oportunidades, em

sentido meritocrático, para que “todos possam provar a si mesmos, sem assumir lugares de

excelência fixos ou protegidos”. Dessa forma, seria possível “permanecer aristocrático

realizando juízos apropriados de inferioridade e superioridade, dependendo do contexto, e

assim, evitar aquilo que Nietzsche considerava ser o mais insidioso aspecto do igualitarismo,

o ressentimento em face da excelência”23

(HATAB, 2002, p. 140).

Ainda, Hatab considera que as instituições da democracia representativa já são em

parte constituídas de modo agonístico24

e foram entendidas por seus criadores como um misto

entre aristocracia e democracia. Hatab lembra que os pais fundadores da constituição dos

EUA pretendiam criar uma “aristocracia natural”, um governo dos melhores, não em termos

de classe, nascimento e status, mas de virtude. Por isso que criaram o governo representativo

e não uma “democracia pura”, plenamente igualitária, que seria apenas formada por

“assembleia de cidadãos e cargos escolhidos por sorteio”. Para Hatab, “quaisquer reservas

acerca de tais perspectivas [democracia pura] abrirão espaço para uma concepção de elitismo

democrático” (HATAB, 2002, p. 140). Hatab também destaca que os pais fundadores da

constituição herdaram de Montesquieu a ideia de que a divisão de poderes é o melhor meio

para evitar a tirania, “em outras palavras, a tirania não é evitada por algum projeto de

harmonia, mas pela multiplicação dos lugares de poder em um governo e pela afirmação da

competição entre eles por meio da autoafirmação e desconfiança mútua” (HATAB, 2002, p.

137). A tradição da “common law” também seria agonística na concepção e na prática, pois

“muitas regras procedimentais são construídas em torno da ideia de competição igual em uma

corte aberta frente a um júri que decidirá o resultado e o juiz, em muitos aspectos, assume o

papel de um árbitro imparcial”, e, “a presunção de inocência pretende fundamentalmente

contestar o poder do governo de julgar e punir” (HATAB, 2002, p. 138). Para Hatab, as

noções de separação de poderes e “adversarialismo legal” são compatíveis com a concepção

23

É preciso lembrar que o “nobre” para Nietzsche não era o membro de uma classe social, mas um nome para

um tipo psicológico e para indivíduos excelentes que podem ser recrutados em diversas classes sociais. 24

O agonismo, que para Nietzsche é uma forma não radical de medida que propicia a preservação dos

adversários e a permanente superação de si, portanto, seria um meio para a excelência e a grandeza.

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de Nietzsche sobre a lei e da ordem legal “não como algo que deve evitar o conflito, mas

como um meio de luta entre complexos de poder” (Id). Para Hatab, a democracia não é o

mesmo que “democratismo”, pois não requer necessariamente o “igualitarismo” extremado

contrário à excelência, nem a neutralização dos conflitos em nome de algum ideal metafísico

de harmonia e unidade. Assim, não seria absurda uma defesa nietzschiana da democracia.

Isso não significa que Hatab entenda que as instituições liberais representativas sejam

neutras ou sem falhas. Hatab concorda com William Connolly e Chantal Mouffe quando eles

criticam os “secularistas” ou os “liberais dialógicos” que defendem que os assuntos religiosos

ou ideológicos de difícil consenso sejam mantidos na vida privada e longe da política. Hatab

pensa que esses assuntos – todos os assuntos e perspectivas – devem entrar no agon que é a

vida política. Nesse sentido, Hatab considera que os teóricos agonísticos como Connolly,

Honig e Mouffe tem uma visão limitada do agonismo, pois só admitem o agonismo entre

aqueles que compartilham a defesa da liberdade e da igualdade, ainda que aceitem

interpretações diferentes dessa defesa. Mas assim esses teóricos deixam fora do agon muitas

perspectivas.

O problema, para Hatab e para Acampora, não é que existam exclusões, inevitáveis em

qualquer formação hegemônica. Tampouco é problema o fato que Mouffe tenha uma

hierarquia de valores que exclua do agon quem não tiver um compromisso com a liberdade e

a igualdade. O problemático na perspectiva de Mouffe é o fato de que ela “se recusa a fundar

sua própria hierarquia de valores agonisticamente” (ACAMPORA, 2003, p. 386). Hatab e

Acampora, contra a neutralização, estão dispostos a expandir o círculo de perspectivas que

podem ingressar no agon, e, para que essa expansão seja possível, Hatab pensa que seria

importante aprofundar a ideia de respeito agonístico de Connolly e fomentar um “respeito

democrático”, que implica “valorizar os procedimentos democráticos mais do que as nossas

próprias crenças” e “consequentemente uma práxis e um ethos democrático terá que

reconhecer a finitude existencial, um tipo de modéstia intelectual e uma disposição

experimental” (HATAB, 1995, p. 68).

Hatab sabe que esse “respeito democrático” não é uma garantia suficiente para a

sobrevivência de um regime político que se abre de tal forma à disputa e reconhece que

“muitos teóricos democráticos insistem que a política deve estar fundada em princípios

seguros que sejam incontestáveis, de modo a impedir que as vozes antidemocráticas tenham o

seu dia e solapem os procedimentos ou resultados democráticos”, entretanto, prossegue

Hatab, “de uma perspectiva histórica, apesar das pretensões metafísicas em alguns lugares, as

fundações democráticas emergiram de fato a partir do „abismo‟ das convenções e momentos

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decisionistas” e “com respeito às convenções constitucionais do nosso sistema, é evidente

que, do ponto de vista performativo, qualquer resultado é realmente possível na democracia,

inclusive resultados antidemocráticos (não desejáveis, mas possíveis). A tragédia é que a

democracia pode morrer por suas próprias mãos” (HATAB, 2002, p. 144). A inexistência de

“garantias fundacionais” não impede os defensores de ideais democráticos e igualitários de

lutarem pelos seus ideais. Deve-se lutar por eles, mas não se pode, a partir de uma perspectiva

nietzschiana, deixar de agir ou tentar neutralizar as ações dos “outros”, em razão da ausência

de garantias fundacionais ou de um medo de derrota. Tal recusa da disputa seria “vista por

Nietzsche como fraqueza” (HATAB, 2002, p. 145). Para Hatab, o elemento mais profundo

das concepções de vontade de potência, agonismo ou eterno retorno é que “agir no mundo é

sempre agir em meio à alteridade, resistências ou obstáculos” e “sonhar com uma ação sem

alteridade é anular a ação. Afirmar o outro como necessariamente constitutivo de si não é

apenas afirmar o campo completo da ação, mas afirmar a ação como ação, quer dizer, como

um movimento real na vida em meio a resistências reais” (Id).

Mouffe e Connolly queriam recuperar o espaço da ação, do agon, contra as

neutralizações do liberalismo “dialógico” de origem kantiana ou do liberalismo utilitarista.

Mas a leitura de Hatab sugere que até mesmo estes críticos agonísticos não estariam dispostos

a colocar tudo em disputa e acabam se recusando a fundar agonisticamente a sua própria

hierarquia política de valores mais profunda, quer dizer, sua abertura ainda não é suficiente

para que se sintam em casa na democracia entendida como um regime trágico.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os teóricos da democracia agonística criticam os fundamentos metafísicos e as

neutralizações, que ainda estariam presentes na democracia liberal-representativa, nas

alternativas deliberativas e “consensuais” a ela formuladas a partir de teóricos como Rawls e

Habermas. Entretanto, nessa crítica, os teóricos da democracia agonística não oferecem um

modelo alternativo de democracia, mas, fundamentalmente, uma teoria normativa que aponta

para a criação de um novo ethos. Este envolveria, ao mesmo tempo, uma abertura maior à

diferença – por meio de uma compreensão afirmativa da contingência de toda perspectiva e

dos paradoxos reais da ação –, e uma disposição para a disputa ativa por sua própria posição

política. Mesmo Hatab, que escreve mais sobre a dimensão institucional, não oferece

propriamente um modelo novo, pois mostra como o agonismo já estaria presente na

democracia representativa, ainda que sua reflexão modifique a nossa compreensão dela,

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negando a sua suposta neutralidade e aprofundando o leque das perspectivas que podem entrar

na disputa. Nesse aspecto, Hatab parece oferecer uma abertura maior para a disputa que

Connolly e Mouffe. Outra diferença é a respeito do igualitarismo. Hatab desvincula a

democracia do igualitarismo na sua forma extrema, igualitarismo este que estaria fundado no

ressentimento contra a excelência e na aversão contra qualquer direcionamento que não

respeite o igual valor de todos (democratismo), o que, por sua vez, poderia inviabilizar a

capacidade de organização.

As diferentes trajetórias teóricas e políticas destes autores talvez expliquem as

diferenças entre eles. Mouffe foi marxista pelo menos até a publicação de Hegemonia e

Estratégia Socialista (1985), e, a partir de então, vem incorporando as reflexões de diversas

correntes teóricas que partem do diagnóstico da “morte de Deus”, do fundamento e das

“grandes narrativas”. Connolly também é um militante de esquerda, mas já em suas primeiras

obras publicadas, demonstra uma vinculação com o pós-estruturalismo francês e o

nietzschianismo de esquerda. O mesmo se pode dizer de Bonnie Honig. Todos estes teóricos

querem pensar o aprofundamento dos ideais democráticos de liberdade e igualdade para todos

sem os fundamentos metafísicos que os fundaram e sem a ideia de emancipação radical que

surgira do mesmo processo. As diferenças entre eles com respeito ao grau de pluralismo

tolerável e ao tipo de conflito que deve ser promovido (agônico ou antagônico; dicotômico ou

com mais de três posições) têm relação com o grau de afastamento destes autores em relação

a projeto moderno de revolução e emancipação radical, que resultou da associação entre

racionalismo metafísico e escatologia de origem religiosa em versão secularizada.

Nenhum dos teóricos da democracia agonística permanece com este ideal da miragem

da reconciliação final, entretanto, eles têm que lidar com a sombra deste ideal. Mouffe estaria

menos distante deste ideal e do padrão de conflito que ele requeria, do que Connolly, ou

menos ainda, que Lawrence Hatab. De qualquer forma, nenhum deles considera que a perda

de fundamentos metafísicos e de categorias da escatologia impossibilite o respeito agonístico

pela diferença e a luta por reformas igualitárias. Entretanto, é necessária uma reflexão mais

detida sobre um tema já antigo: a possibilidade de que, tragicamente, exista um conflito entre

Bem e Bem, entre a promoção da diferença e da igualdade. Diante desse conflito trágico

surgem dificuldades, pois, de um lado, a apropriação de uma concepção schmittiana do

político pode facilitar a luta contra a desigualdade social, mas tende a sufocar diferença e a

pluralidade. E de outro, uma concepção arendtiana do político seria mais afim com a

pluralidade, mas seria preciso saber como empregá-la de uma forma a politizar a desigualdade

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social25

. Diante desse paradoxo real talvez seja mais apropriado abandonar qualquer ideia de

solução final e permanecer com a phronesis e a perspectiva de um equilíbrio tenso (ou

harmonia conflitual) entre estes dois bens estimados pela democracia moderna, a diferença e a

igualdade. Na democracia, entendida como regime trágico e agonístico, a phronesis e o

equilíbrio tenso substituem os posicionamentos categóricos sobre o Bem e a ideia de

reconciliação final. Nesse sentido, a igualdade e a diferença poderiam ser pensadas como dois

bens que devem ser permanentemente equilibrados pelo homem da phronesis que atravessa,

com coragem e alegria, por uma corda esticada sobre o abismo.

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Isso é o que já sugerem Connolly e Honig, que acusam a teoria política de Arendt de ser “elitista”. Bonnie

Honig e William Connolly não deixam de criticar o caráter “reducionista” e “aristocrático” do espaço público de

Arendt, que excluiria, segundo estes teóricos, lutas por justiça e antidiscriminatórias que se vinculam aos novos

movimentos sociais. Se Connolly (1997), ao criticar o “purismo político” de Arendt, se volta para Foucault e

para Nietzsche, Honig (1993), diferentemente, opta por “radicalizar” a política arendtiana com mais

“nietzschianismo”. Honig recorre a Derrida e estabelece uma reconsideração da ação arendtiana “ofuscando” a

distinção entre o público e privado, mediante o caráter seu “rebelde” e “ilimitado”. Dessa forma, Honig

considera que apenas está “radicalizando” o que a própria Arendt já teria notado, isto é, o elemento transgressor

da ação, e isso, para o próprio benefício da concepção arendtiana da política, ao torná-la mais apropriada para

pensar as lutas de gênero, raça, classe, etc.

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