nunca fomos humanos nos rastros do sujeito

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CCCCCréditos

“Modo de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisade educação também” é traduzido dos capítulos 1 e 2 (p. 21-53)do livro de Elizabeth Ellsworth, Teaching positions. Difference, pe-dagogy, and the power of address, publicado pela editora TeachersCollege Press, Nova York, 1997. © Teachers College Press. Todosos direitos reservados. Publicado sob permissão da editora.

“Inventando nossos eus” é traduzido do capítulo 8, “As-sembling ourselves”, p. 169-197, do livro de Nikolas Rose,Inventing ourselves. Psychology, Power, and Personhood, publicadopella Cambridge University Press, 1996. © Cambridge Uni-versity Press. Todos os direitos reservados. Publicado sob per-missão da editora.

“Corpos sem órgãos: esquizoanálise e desconstrução” é tra-duzido do capítulo 11, p. 226-240, do livro Mapping the subject.Geographies of cultural transformation, organizado por Steve Pilee Nigel Thrift, publicado pela editora Routledge, 1995. © Taylor& Francis. Publicado sob permissão da empresa detentora dosdireitos de reprodução.

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Belo Horizonte2001

Elizabeth EllsworthFrancisco J. TiradoLucía G. Sánchez

Marcus DoelMiquel Domènech

Nikolas Rose

Tradução e organização:Tomaz Tadeu da Silva

Nunca fomos humanosNos rastros do sujeito

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Copyright © 2001 by Tomaz Tadeu da Silva

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,

seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópiaxerográfica sem a autorização prévia da editora.

Autêntica EditoraRua Januária, 437 – Floresta – 31110-060

Belo Horizonte/MG – Telefax: (55 31) [email protected]

www.autenticaeditora.com.br

CAPAJairo Alvarenga Fonseca

EDITORAÇÃO ELETRÔNICAWaldênia Alvarenga Santos Ataíde

REVISÃOErick Ramalho

2001

S586n Silva, Tomaz Tadeu daNunca fomos humanos – nos rastros do sujeito/ organização e tradução de Tomaz Tadeu daSilva --- Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

208 p. (Coleção Estudos Culturais, 7)

ISBN 85-7526-025-1

1. Cultura. 2. Filosofia. 3. Antropologia I. Títu-lo. II Série.

CDU008

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Sumário

07Modos de endereçamento:

uma coisa de cinema;uma coisa de educação também

Elizabeth Ellsworth

77Corpos sem órgãos:

esquizoanálise e desconstruçãoMarcus Doel

111A dobra: psicologia e subjetivação

Miguel Domènech,Francisco Tirado, Lucía Gómez

137Inventando nossos eus

Nikolas Rose

205Sobre as autoras e os autores

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Modo de endereçamento: umacoisa de cinema; uma coisa de

educação tambémElizabeth Ellsworth

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MODO DE ENDEREÇAMENTO:UMA COISA DE CINEMA

No meu curso de pós-graduação não estudeiteoria educacional. Estudei teoria do cinema. Cine-ma de Hollywood, principalmente. Mas durante ocurso também trabalhava como professora estagiá-ria e por isso tive que tentar aprender como ensinar.

Durante o período em que estive no curso depós-graduação, eu via, quase todos os dias, filmestais como Young Mr. Lincoln ou Meet me in St. Louis[Agora seremos felizes]. Eu também lia e tentava com-preender Althusser ou Lacan ou Eisenstein ou Kuhnou Mulvey ou Barthes – gente que escrevia sobreimagens e histórias e significado e desejo e mu-dança social. Ao mesmo tempo, eu tentava ensinara um grupo de discussão, formado por estudantes degraduação, como se podia analisar a forma, o estilo,o gênero e a ideologia do filme que eles tinham

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acabado de ver. Eu ficava fascinada e estimulada pelaforça social, política e estética dos filmes.

Assim que saí do curso de pós-graduação emcomunicação fui contratada por uma escola de edu-cação para lecionar uma disciplina sobre produçãode filmes de vídeo e crítica de mídia para educado-res.1 Foi uma experiência intercultural. Eu não falavaa linguagem da pesquisa educacional. Eu não conhe-cia as narrativas e os personagens daquele campo.

O mais estranho e alienante de tudo era ter queaprender as teorias e as práticas desse novo mundoacadêmico chamado “currículo e ensino”, na ausên-cia absoluta de qualquer suspense, romance, sedu-ção, prazer visual, música, enredo, humor, dança desapateado ou páthos. Tudo que eu havia aprendidosobre as teorias contemporâneas da lingüística, ateoria literária, a semiótica, o feminismo, a cultura,havia sido aprendido na presença da (sob a luz da,sob o prazer da, na esteira da) história, das metáfo-ras, das estrelas, das imagens, do modo de endere-çamento de algum filme.

Mas a educação era um campo em nada parecidocom o do cinema e da televisão. Não era em nadaparecido com o campo da literatura e da teoria literá-ria. Era mais parecido com as aulas de sociologia queeu tive – aquelas ensinadas por meio de livros-textode instrução programada. Como eu acabava de des-cobrir, o campo da educação era uma ciência social.

O que eu mais aprendi do meu encontro com ocampo acadêmico da educação, que agora já durapor mais de dez anos, foi que eu não quero ensinarou aprender na ausência de prazer, enredo, emoção,

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metáfora, artefatos culturais e de envolvimento einteração com o público.

É aqui que entra o modo de endereçamento.Faz vinte anos que comecei a trabalhar como pro-fessora auxiliar em uma disciplina de introduçãoao cinema. Faz quatorze anos que estou tentandoimaginar o que as pessoas pensam que estão fa-zendo nesse campo acadêmico da educação e porque elas fizeram com que esse campo seja o que eleparece ser. E estou pensando, outra vez, em mo-dos de endereçamento.

O MODO DE ENDEREÇAMENTONOS ESTUDOS DE CINEMA

O modo de endereçamento é um termo dos es-tudos de cinema, um termo que tem um enormepeso teórico e político. Aprendi sobre ele nas aulassobre cinema e sobre mudança social. É a isso queele se resume: quem este filme pensa que você é?

Apresento, neste capítulo, uma leitura algo sele-tiva da teoria e da política que está por detrás dessaquestão e do conceito de modo de endereçamento.Não estou interessada em tentar definir exatamenteo que é “modo de endereçamento”. Estou interes-sada em saber por quê, nestes dias, quando pensocomo uma educadora sobre pedagogia continuopensando em termos de modo de endereçamento.Fico me perguntando como os educadores podem,por sua vez, ser educados pela noção de modo deendereçamento, incluindo aquela utilizada nos es-tudos de cinema.

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Os teóricos do cinema desenvolveram a noçãode modo de endereçamento para lidar, de uma for-ma que fosse específica ao cinema, com algumas dasgrandes questões que atravessam os estudos de cine-ma, a crítica de arte e de literatura, a sociologia, aantropologia, a história e a educação. Essas questõestêm a ver com a relação entre o “social” e o “indivi-dual”. Questões como: “qual é a relação entre o textode um filme e a experiência do espectador, a estrutu-ra de um romance e a interpretação feita pelo leitor,uma pintura e a emoção da pessoa que a contempla,uma prática social e a identidade cultural, um deter-minado currículo e sua aprendizagem?”. Em outraspalavras, qual é a relação entre o lado de “fora” dasociedade e o lado de “dentro” da psique humana?Como pode ser igualmente verdadeiro afirmar que“as pessoas agem de forma independente e intencio-nal” e, ao mesmo tempo, dizer que os padrões queorientam suas ações – como elas pensam, o que elas“vêem”, o que elas desejam – “são, já, aspectos de seuser social” (DONALD, 1991, p. 2)?

Trata-se de grandes questões. Elas são tambémcentrais para as pessoas interessadas em mudançasocial. Se você compreender qual é a relação entre otexto de um filme e a experiência do espectador, porexemplo, você poderá ser capaz de mudar ou influen-ciar, até mesmo controlar, a resposta do espectador,produzindo um filme de uma forma particular. Ouvocê poderá ser capaz de ensinar os espectadorescomo resistir ou subverter quem um filme pensaque eles são ou quem um filme quer que eles sejam.

Os teóricos do cinema têm utilizado, sob umaforma ou outra, a noção de modo de endereçamento

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para compreender essas questões. Vou esboçar, aqui,alguns dos significados que essa noção tem apresen-tado para os teóricos do cinema. Esta leitura seletivacomeça com o “modo de endereçamento” como umconceito que se refere a algo que está no texto dofilme e que, então, age, de alguma forma, sobre seusespectadores imaginados ou reais, ou sobre ambos.Existe, depois, um momento, na lógica da teoria docinema, em que os teóricos do cinema começam aver o modo de endereçamento menos como algo queestá em um filme e mais como um evento que ocorreem algum lugar entre o social e o individual. Aqui, oevento do endereçamento ocorre, num espaço que ésocial, psíquico, ou ambos, entre o texto do filme eos usos que o espectador faz dele. Essa mudança,que deixa de localizar o modo de endereçamento nointerior do texto de um filme e passa a compreendê-lo como um evento, fará com que minha leitura sele-tiva da noção de modo de endereçamento deixe ateoria do cinema e vá para a educação, para os estu-dos culturais e para a psicanálise.

Quem este filme pensa que você é?

Os filmes, assim como as cartas, os livros, oscomerciais de televisão, são feitos para alguém. Elesvisam e imaginam determinados públicos. Entre-tanto, os diretores de cinema, os roteiristas, os produ-tores e os proprietários de salas de cinema estão, comfreqüência, distanciados dos espectadores “reais” ou“concretos”. As distâncias podem ser econômicas,temporais, sociais, geográficas, ideológicas, de gêne-ro, de raça. Entre a redação do roteiro e a exibição,

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os filmes passam por muitas transformações. Entre-tanto, a maioria das decisões sobre a narrativa es-trutural de um filme, seu acabamento e sua aparênciafinal são feitos à luz de pressupostos conscientes einconscientes sobre “quem” são seus públicos, o queeles querem, como eles vêem filmes, que filmes elespagam para ver no próximo ano, o que os faz cho-rar ou rir, o que eles temem e quem eles pensamque são, em relação a si próprios, aos outros e àspaixões e tensões sociais e culturais do momento.

Os filmes visam e imaginam determinados pú-blicos. Eles também desejam determinados públi-cos. Alguns filmes, como Jurassic Park [O parque dosdinossauros], por exemplo, são produzidos com odesejo de atrair o maior público de “massa” possí-vel. Outros, como Go fish [O par perfeito], por exem-plo, são produzidos para apelar a pessoas que vão afestivais alternativos e são feitos com a esperança deserem exibidos em cinemas voltados para um públi-co intelectualizado e sofisticado, freqüentado porpessoas que seguem orientações alternativas em ter-mos ideológicos, sexuais, raciais e políticos.

O conceito de modo de endereçamento está ba-seado no seguinte argumento: para que um filmefuncione para um determinado público, para queele chegue a fazer sentido para uma espectadora, oupara que ele a faça rir, para que a faça torcer por umpersonagem, para que um filme a faça suspendersua descrença [na “realidade” do filme], chorar, gri-tar, sentir-se feliz ao final – a espectadora deve en-trar em uma relação particular com a história e osistema de imagem do filme.

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Eis aqui uma maneira de conceptualizar esse pro-cesso: existe uma poltrona no cinema para a qualaponta a tela do filme, uma poltrona para a qual osefeitos cinematográficos e as composições dos qua-dros estão planejados, uma poltrona para a qual aslinhas de perspectiva convergem, dando a mais ple-na ilusão de profundidade, de movimento, de “rea-lidade”. É a partir dessa posição física que o filmeparece atingir seu ponto máximo. Da mesma for-ma, existe uma “posição” no interior das relações edos interesses de poder, no interior das construçõesde gênero e de raça, no interior do saber, para aqual a história e o prazer visual do filme estão diri-gidos. É a partir dessa “posição-de-sujeito” que ospressupostos que o filme constrói sobre quem é oseu público funcionam com o mínimo de esforço,de contradição ou de deslizamento.

Por exemplo, filmes orientados para garotosbrancos de 12 anos que vivem em bairros ricosestão sintonizados às posições que esses garotossupostamente ocupam (ou que os produtores defilmes e de mercadorias paralelas desejam que elesocupem) no interior das relações sociais contem-porâneas, dos gostos de mercado, da fantasia se-xual e do desejo, da construção de gênero e de raça.Para que esses garotos “peguem” o filme e “sigamsua onda”, eles têm que estar no lugar para o qualo filme está sintonizado. Para que eles se tornemparte da estrutura de relações que compõem o sis-tema de olhares, de desejos, de expectativas, de tra-mas narrativas e de gratificações que compõem aexperiência de ir ao cinema, eles têm que estar “lá”.Para que eles “completem” o filme tal como seus

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produtores imaginaram que eles o fariam, eles têmque assumir as posições que lhes são oferecidasnaqueles sistemas – ao menos durante o tempo deduração do filme, ao menos na imaginação.

“Ei, você aí!”

E, assim, os produtores de filmes fazem muitassuposições e têm muitos desejos conscientes e in-conscientes sobre o tipo de pessoa para a qual seufilme é endereçado e sobre as posições e identidadessociais que seu público deve ocupar. E essas suposi-ções e esses desejos deixam traços intencionais e não-intencionais no próprio filme. Para algumas escolasde estudo do cinema, um filme é composto, pois,não apenas de um sistema de imagens e do desen-volvimento de uma história, mas também de umaestrutura de endereçamento que está voltada paraum público determinado e imaginado.

Os “traços” dessa estrutura não são visíveis. Elesnão se apresentam diretamente na tela, para seremestudados, tal como se apresentam os aspectos doestilo de um filme como, por exemplo, a composi-ção dos objetos e das pessoas em um quadro, o usoda cor, o movimento, o trabalho de edição, a ilumi-nação. O modo de endereçamento parece-se maiscom a estrutura narrativa do filme do que com seusistema de imagem. Tal como a história ou a trama,o modo de endereçamento não é visível.

Tampouco é o caso de que alguém no filme digaliteralmente: “ei, você aí! Garoto branco e rico, de12 anos! Veja isto! Será divertido. E você vai querer

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comprar o brinquedo [relacionado ao filme]. E vocêse sentirá mais velho e mais poderoso – e mais alto– do que você é e o mundo inteiro vai parecer girarao redor de você. E quando o filme terminar, vocêsentirá que ser um garoto branco e rico, de 12 anos,é a melhor coisa que pode acontecer no mundo”. Omodo de endereçamento não é um momento visualou falado, mas uma estruturação – que se desenvol-ve ao longo do tempo – das relações entre o filme eseus espectadores.

Os estudiosos do cinema que têm se concentra-do na idéia de “modo de endereçamento” têm de-senvolvido formas de falar desse invisível processoque parece “convocar” o espectador a uma posiçãoa partir da qual ele deve ler o filme. Os críticos queestudam a narrativa cinematográfica têm tomadocertos conceitos de empréstimo da crítica da litera-tura e do teatro e inventado outros, de forma a po-der nomear e analisar a intangível experiência dahistória no filme. Essa experiência inclui trama, per-sonagem, subtexto, gênero, vínculos causais, pontode vista, e assim por diante. De forma similar, oscríticos interessados no modo de endereçamento têminventado conceitos que nomeiam e analisam as-pectos sobre a experiência da “convocação” ou da“interpelação”. “Posicionamento de público” é umdeles. Masterman (1985) descreve-o desta forma:

Nos meios visuais, nós, como membros do pú-blico, somos compelidos a ocupar uma posiçãofísica particular, em virtude do posicionamentoda câmera. Identificar e estar consciente dessaposição física significa revelar que somos também

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convidados a ocupar um espaço social. Por meiodo modo de endereçamento do texto, de sua con-figuração e de seu formato, um espaço social seabre para nós. Finalmente, o espaço físico e o es-paço social que somos convidados a ocupar estãoligados a posições ideológicas – maneiras “naturais”de examinar e dar sentido à experiência. (p. 229)

Masterman dá, depois, um exemplo de posicio-namento de público nos programas de notícias datelevisão:

Quando o noticiário inicia, somos endereçados porum locutor que olha diretamente para a câmera eapresenta os “fatos”. Cada espectador é colocadono papel de endereçado direto. O locutor intro-duz uma entrevista filmada. Nossa posição muda.Não somos mais endereçados diretamente, mas“espiamos”, vemos e julgamos. As diferentes po-sições nos asseguram que alguns aspectos da ex-periência devem ser aceitos (fatos), enquantooutros (opiniões) exigem nosso julgamento. Adistinção jornalística, altamente questionável, en-tre fato e opinião está embutida nas maneiras pe-las quais somos posicionados em relação adiferentes aspectos da experiência. (p. 229-30)

O que Masterman está sugerindo é que, para com-preender os filmes ou os programas de TV em seuspróprios termos, o espectador deve ser capaz de adotar –nem que seja apenas imaginária e temporariamente –os interesses sociais, políticos e econômicos que são ascondições para o conhecimento que eles constroem.

O endereço de um filme educacional dirigido àestudante, por exemplo, convida-a não apenas à

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atividade da construção do conhecimento, mas tam-bém à construção do conhecimento a partir de umponto de vista social e político particular. Isso fazcom que a experiência de ver os filmes e os sentidosque damos a eles sejam não simplesmente voluntá-rios e idiossincráticos, mas relacionais – uma proje-ção de tipos particulares de relações entre o eu e oeu, bem como entre o eu e os outros, o conheci-mento e o poder.

Assim, parte da experiência e da relação de umgaroto de 12 anos com um filme como Jurassic Parknão é apenas uma resposta ao seu estilo e à sua his-tória, mas também uma resposta às formas pelasquais sua estrutura de endereçamento solicita ou atémesmo exige dele uma certa leitura. Sua experiên-cia do filme inclui a experiência consciente e incons-ciente de ser endereçado – por meio, por exemplo,do posicionamento da câmera e do espaço socialque ela constrói “para” ele – como se ele fosse aque-le alguém que o filme quer que ele seja, que o filmepensa que ele é, ou ambas as coisas.

“Quem, eu?”

Ele não é, entretanto, exatamente quem o filmepensa que ele é – um garoto de 12 anos, estaduni-dense, branco, rico. Essas coisas não significam,nunca, uma única coisa. Essas posições sociais nãoconstituem, nunca, uma posição única ou unifica-da. Talvez ele seja um garoto homossexual de 12anos. O que isso causa à suposição de que ele tem12 anos, é branco, é rico, é garoto [e não garota])?

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Talvez ele seja filho de pais de diferentes raças, masque “passa”, em geral, por “branco”. Talvez ele te-nha 12 anos e seja filho de um pai ou de uma mãeque o maltratam e nunca tenha sentido, de fato, ter12 anos. Talvez ele viva em um bairro rico, mas gostede viver num bairro popular da cidade e vá até lásempre que possa.

O espectador ou a espectadora nunca é, apenasou totalmente, quem o filme pensa que ele ou ela é.(O espectador ou a espectadora nunca é tampoucoexatamente quem ele ou ela pensa que é, mas vamosdeixar isso para mais adiante). A maneira como vi-vemos a experiência do modo de endereçamento deum filme depende da distância entre, de um lado,quem o filme pensa que somos e, de outro, quemnós pensamos que somos, isto é, depende do quan-to o filme “erra” seu alvo. Imaginemos que o lugar“ideal” esteja situado na poltrona central da últimafileira da sala de cinema. O modo de endereçamen-to do filme pode “errar” o “alvo” por apenas duascadeiras, atingindo, por exemplo, aquela poltronasituada duas cadeiras à esquerda do assento ideal.Ou, no outro extremo, pode passar bem distante do“alvo”, “acertando” a poltrona situada junto à pare-de, na primeira fila. Ambas as posições “fora do alvo”exigem algum rearranjo de parte da espectadora parafazer o filme voltar ao foco – alguma reescrita, algu-ma revisão, pela qual a espectadora, ao imaginar-seno centro do endereçamento, desfaz aquele processode descentramento. Ver um filme do assento situadojunto à parede, na primeira fila, exige uma traduçãoperceptual constante da imagem, solicitando que aespectadora se projete como estando situada naquele

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assento perfeito no centro da sala de cinema e ima-ginando como seria muito melhor e mais agradávelver o filme daquela poltrona onde ela “deveria” es-tar sentada.

Seja qual for a distância pela qual o modo deendereçamento de um filme “erra” o alvo (mínimaou enorme) é necessário aquilo que alguns estudio-sos chamam de “negociação” por parte do especta-dor. Como posso extrair prazer da história de JurassicPark caso eu tenha 12 anos e for uma garota [e nãoum garoto]? Mas essa negociação tampouco é, ja-mais, uma coisa simples ou única. Pois, da mesmaforma que o espectador ou a espectadora nunca éexatamente quem o filme pensa que ele ou ela é,assim também o filme não é, nunca, exatamente oque ele pensa que é. Não existe, nunca, um único eunificado modo de endereçamento em um filme.

Se Jurassic Park tivesse sido endereçado estrita eunicamente aos garotos estadunidenses brancos, ri-cos, de 12 anos, seria muito menos provável que oresto do planeta fosse vê-lo. Há algo nesse filme queé dirigido para quem os seus produtores imaginamque sou. (Minha desconfiança é de que a cientistaforte, corajosa, inteligente está dirigida para umaparte de mim – mesmo que se tenha a impressão deque ela entrou no filme meio a contra-gosto de seusprodutores e como que de última hora. E mesmoque ela seja uma versão diluída da cientista do livrohomônimo). Assim, no processo de negociação dosmodos de endereçamento de Jurassic Park, com vis-tas a “pegar” o filme e desfrutá-lo, não foi precisoque eu simplesmente me imaginasse como um ga-roto de 12 anos.

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“Entrar” em um filme por meio de uma multipli-cidade de lugares é uma necessidade comercial. Issocomplica toda a idéia de modo de endereçamento.

Angela McRobbie (1984) ressalta isso em seuestudo do modo como as adolescentes que ela en-trevistou reagiram aos filmes Flashdance e Fame[Fama]. De acordo com McRobbie, as cenas dedança, em ambos os filmes, parecem ter sido ende-reçadas primariamente a dois grupos de espectado-res masculinos e heterossexuais: aqueles que figuramnas histórias dos filmes e aqueles que viram os fil-mes nos cinemas. Os números musicais parecemorganizados – por meio da localização e dos ângu-los da câmera e do trabalho de edição, que alternatomadas do ponto de vista da câmera com tomadasdo ponto de vista da personagem – para apelar aosdesejos e aos prazeres visuais que espectadores comoesses supostamente extraem do ato de ver mulheresdançando para eles.

Entretanto, há aspectos das histórias, em ambosos filmes, que são endereçados primariamente àsmulheres no público e àquilo que os produtores dofilme, consciente e inconscientemente, imaginam sero desejo das mulheres, em termos de controle sobreseus corpos e em termos de sentir prazer e poderem seus corpos e em suas vidas. Assim, estabelece-se uma tensão no interior dos modos de endereça-mento desses filmes – uma tensão entre quem osnúmeros de dança pensam que você é e quem a his-tória pensa que você é.

As histórias de ambos os filmes complicam aquestão sobre “para” quem as mulheres estão dan-çando nos espetáculos dos números musicais do filme.

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Os prazeres das garotas adolescentes ao ver esses fil-mes podem advir de uma leitura que vê as dançarinascomo “realmente” dançando para si mesmas e nãopara os homens que, não obstante, as estão obser-vando. Ou, de forma mais complexa, os prazeres dasgarotas adolescentes podem advir de uma leitura quevê as dançarinas como “realmente” dançando tantopara si próprias quanto para os homens que as obser-vam. O modo de endereçamento do espetáculo dasperformances de dança atrita-se com o modo de en-dereçamento do desenvolvimento da história; essesdois modos de endereçamento não funcionam ne-cessariamente de forma conjunta e compatível. Dife-rentes sistemas formais e estilísticos, presentes em umúnico filme, podem ter diferentes modos de endere-çamento. Podem estar ocorrendo, de forma simultâ-nea, múltiplos modos de endereçamento.

Além disso, assim que públicos reais, vivos, che-gam ao cinema, o modo de endereçamento de umfilme torna-se apenas um dentre os muitos que com-põem o cotidiano de um determinado espectador ouespectadora. A posição que um espectador ou umaespectadora “assume” em relação a um filme, e a par-tir da qual ele ou ela dá sentido ao filme e dele extraiprazer, muda drasticamente, dependendo dos (con-flitantes) modos de endereçamento que possam es-tar disponíveis. Ela está vendo um vídeo de Flashdancecom um grupo de amigas que ficaram para passar anoite em sua casa; em um cinema com um namora-do; com sua amante lésbica; como uma estudanteem uma aula de cinema; ou como uma mulher afro-americana que raramente vê outras mulheres afro-americanas na tela do cinema?

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O modo de endereçamento de um filme tem aver, pois, com a necessidade de endereçar qualquercomunicação, texto ou ação “para” alguém. E, con-siderando-se os interesses comerciais dos produto-res de filme, tem a ver com o desejo de controlar,tanto quanto possível, como e a partir de onde oespectador ou a espectadora lê o filme. Tem a vercom atrair o espectador ou a espectadora a umaposição particular de conhecimento para com o tex-to, uma posição de coerência, a partir da qual o fil-me funciona, adquire sentido, dá prazer, agradadramática e esteticamente, vende a si próprio e ven-de os produtos relacionados ao filme.

Mas, à medida que os estudiosos do cinema têmtentado emparelhar os mecanismos de endereçamen-to presentes no texto de um filme particular com asleituras que um público real faz do filme, eles têmficado cada vez mais atentos às complicações e aosparadoxos da experiência de ir ao cinema. Os públi-cos não são simplesmente “posicionados” por umdeterminado modo de endereçamento. Entretanto,para dar qualquer sentido a um filme ou para des-fruta-lo até mesmo minimamente, eles têm que seenvolver com seu modo de endereçamento. Aindaque de forma mínima ou oblíqua, o modo de ende-reçamento de um filme está envolvido nos prazerese nas interpretações dos públicos – inclusive em suadecisão de simplesmente recusar-se a ver o filme.

“Sim. Você.”

É aqui que entram as relações de poder e a mu-dança social. O modo de endereçamento não é um

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conceito neutro na análise cinematográfica. Trata-se de um conceito que tem origem numa aborda-gem de estudos do cinema que está interessada emanalisar como o processo de fazer um filme e o pro-cesso de ver um filme se tornam envolvidos na di-nâmica social mais ampla e em relações de poder.

Embora os públicos não possam ser simplesmen-te posicionados por um determinado modo de en-dereçamento, os modos de endereçamento oferecem,sim, sedutores estímulos e recompensas para que seassumam aquelas posições de gênero, status social,raça, nacionalidade, atitude, gosto, estilo às quaisum determinado filme se endereça. Ninguém, nopúblico global do Jurassic Park, é exatamente aquelegaroto estadunidense, branco, rico, de 12 anos, queo filme imagina e deseja. Entretanto, aquela posi-ção-de-sujeito, independentemente de quanto elaseja mítica, está ligada, no filme, a potentes fanta-sias de poder, domínio e controle.

Os estudiosos do cinema têm gostado de algu-mas posições-de-sujeito oferecidas nos filmes popu-lares e não têm gostado de outras. Aqueles, porexemplo, que trabalham a partir de perspectivasmarxistas ou feministas ou humanistas têm utiliza-do o conceito de “modo de endereçamento” para“provar” que a maior parte dos filmes popularesoferecem, de forma repetida, uma gama estreita esistematicamente enviesada de posições-de-sujeito.Essa gama estreita exclui todo tipo de outrasperspectivas e experiências sociais e culturais.(Onde estão os filmes de aventura ou de histórias so-bre o desabrochar da adolescência, dirigidos às garo-tas de 12 anos – de qualquer origem racial ou étnica?

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Por que parece ser certo colocar esta questão entreparênteses?).

Mas os filmes tradicionais de Hollywood nãopecam apenas por omissão. Eles também pecam porrepetidamente darem a entender, por meio da ex-clusão ou do ridículo ou da punição inscrita na nar-rativa, que ser uma garota (ou ser negro/a, ou gay,ou gordo/a, ou falante de espanhol, ou ser uma ga-rota e uma ou outra dessas identidades) não é a coi-sa certa. Ou ser um tipo particular de garota ougaroto ou latino/a ou gordo/a pode ser certo, masser outro tipo não.

Fazer a pergunta “quem este filme pensa que vocêé ou quer que você seja?” significa, pois, fazer umapergunta carregada. Trata-se de uma questão formula-da pelos estudiosos do cinema, que acham que osmodos de endereçamento dos filmes – isto é, quemfilmes particulares pensam que você é ou quem elesquerem que você seja – podem contribuir para rela-ções desiguais de poder e para a formação inconscien-te de subjetividades específicas. Há subjetividadesespecíficas – homens e mulheres sexistas e machistas,racistas de qualquer cor, pessoas ricas e poderosas vol-tadas à exploração dos outros, por exemplo – e dinâ-micas de poder que alguns estudiosos do cinema nãoquerem ver “formados” ou recompensados pelas nar-rativas e pelos sistemas de imagem dos filmes.

“Eu não!”

Alguns cineastas, convencidos de que as rela-ções sociais e de poder podem ser afetadas pelofato de fazer e de ver filmes, têm feito algumas

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experimentações com vários tipos de “contra-cine-ma”. Algumas cineastas feministas, por exemplo, têmtentado voltar as convenções de Hollywood contrasi próprias. Elas tentam chamar a atenção, rejeitan-do-os, para os prazeres de se ver filmes que depen-dem da objetificação dos corpos das mulheres e darepressão de sua agência.

Chantal Akerman, por exemplo, em um filme de 3horas e meia, feito em 1975, intitulado Jeanne Diel-man, descreve três dias na vida de uma mulher belga,uma viúva pequeno-burguesa, dona-de-casa e mãe.Annette Kuhn (1982) descreve o filme desta forma:

Seus movimentos ao redor de seu apartamento,sua execução das tarefas diárias, são descritos comgrande precisão: muitas de suas tarefas são filma-das em tempo real. A rígida rotina de Jeanne in-clui uma visita diária de um homem – um homemdiferente a cada dia – cujo pagamento por seusserviços sexuais ajudam-na a mantê-la e a seu filho[...]. O trabalho doméstico nunca foi, provavel-mente, descrito com tanto detalhe em um filmede ficção; por exemplo, uma seqüência de cincominutos mostra Jeanne, no terceiro dia, preparan-do um bolo de carne para o jantar. A recusa emefetuar tomadas feitas do ponto de vista da perso-nagem implica uma rejeição do efeito de “fixa-ção” da sutura do filme clássico: a espectadora éforçada a manter distância tanto em relação à nar-rativa quanto em relação à imagem, construindoa história e produzindo expectativas, em relação ànarrativa, por conta própria. (p. 173-4)

A idéia é que um filme como Jeanne Dielmané mais “aberto” e menos manipulativo no seu

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posicionamento de seu público do que um filme deDoris Day na qual ela faz o papel de uma dona-de-casa. Um filme como esse se nega a utilizar os mo-dos de endereçamento típicos de Hollywood, osquais “fixam” a espectadora a uma única forma deinterpretar o filme.

Por exemplo, Ackerman nega-se a fazer tomadasa partir do ponto de vista ótico de Dielman. Ela senega a utilizar essa convenção de operação da câme-ra, que é familiar ao público e que está destinada,com freqüência, a suscitar sua empatia e cumplici-dade imaginária para com as intenções, experiên-cias e objetivos de um determinado personagem.Sendo supostamente mais aberto e menos manipula-tivo, o modo de endereçamento de Jeanne Dielman“dá força”, teoricamente, à espectadora para que elapossa construir a história e produzir expectativas,em relação à narrativa, por conta própria.

As experiências de contra-cinema têm produzidotoda uma série de estratégias para endereçar o públi-co que nunca ou raramente são vistas nos filmes deHollywood (tais como a tomada estática, com dura-ção de 5 minutos, de Dielman fazendo bolo de car-ne). Essas experiências têm ampliado o léxiconarrativo e visual – e as expectativas do público – àdisposição das cineastas. E, em alguns casos, essasinovações têm mudado a política de representaçãoque reina em Hollywood (pode-se também dizer queessas inovações foram cooptadas, dependendo daperspectiva).

A esperança revolucionária era de que diferentesmodos de endereçamento nos filmes pudessem

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mudar os tipos de posições-de-sujeito que estão dis-poníveis e que são valorizados na sociedade. Filmescomo Jeanne Dielman poderiam, inclusive, produ-zir novos sujeitos sociais – novos tipos de “mulhe-res”, por exemplo, mulheres que tenham o poderde construir suas próprias histórias e expectativas.Em outras palavras, tais filmes poderiam produziruma mudança social para melhor.

Mas tampouco isso é uma coisa simples ou dire-ta. Filmes como Jeanne Dielman são difíceis de se-rem lidos quando se está acostumado a ler os filmesde Hollywood. E quando filmes difíceis de seremlidos, filmes que rejeitam as fantasias e os prazeresusuais e esperados (sexistas, racistas, escapistas),tornam-se parte de uma estratégia política intencio-nal, então, como diz um crítico de cinema:

A linha de divisão entre o estranhamento comouma espécie de distanciamento apaixonado e re-flexivo e o estranhamento como alienação no piorsentido da palavra é, obviamente, muito tênue.(COOK, 1985, p. 220)

Em outras palavras, alguns filmes produzidos emnome do contra-cinema e do reforçamento de po-der [empowerment)] de seus espectadores são difí-ceis de ler ou alienadores por causa da forma comoeles negam e denegam os prazeres do ato de verfilmes na sua forma mais convencional. Pior ainda,alguns dos públicos a quem eles pretendem se diri-gir não querem necessariamente renunciar a seusculposos prazeres. O prazer e a fantasia podem serpolíticos, mas isso não é tudo o que eles são.

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“Sim, eu (1) e eu (2) e eu (3) e...”

Judith Mayne é uma estudiosa feminista do ci-nema. Ela é o tipo de espectadora feminina a quem,pode-se dizer, muitas das experiências de contra-ci-nema são endereçadas. Ela escreve:

Posso ser uma espectadora bem-informada, masisso não diminuiu meu prazer naquilo que algu-mas pessoas podem considerar como produtos in-feriores como, por exemplo, os filmes de ArnoldSchwarzenegger. Em vez disso, o estudo do atode ver filmes me tornou consciente, em termosbem ordinários e cotidianos, dos tipos de impul-sos contraditórios que compõem o prazer. Pois,embora o feminismo, por exemplo, constitua, deforma plena, uma parte de minha vida cotidiana,eu tenho fantasias regressivas um tanto peculiares(isto é, peculiares para meus amigos e para minhafamília, não para mim) sobre a adolescência mas-culina, as quais recebem uma perfeita expressãoem Schwarzenegger. O ato de ver um filme é umdos poucos lugares em minha vida no qual as atra-ções para com a adolescência masculina e a poéti-ca do feminismo de vanguarda coexistem. Pois aabordagem particular do ato de ver filmes desen-volvida por Chantal Ackerman, por exemplo, meenvolve de forma diferente mas tão satisfatóriaquanto os filmes de Arnold Schwarzenegger(1993, p. 3).

Como uma pessoa que está acostumada a ir aocinema, Mayne é não apenas capaz de agir contraaquilo que suas amigas feministas e ela própria pro-vavelmente chamariam de seus “melhores interesses”

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como uma mulher em uma cultura dominada porhomens, mas ela é também capaz de desejar e des-frutar dessa representação no ato mesmo de pô-laem execução.

Ora, isso coloca um grande problema para pes-soas que pensam que o modo de endereçamentopode fazer a diferença entre, de um lado, um ato dever filmes que é “crítico”, reflexivo e apaixonada-mente distanciado e, de outro, uma ato de ver fil-mes que, como diz Mayne (1993), “me fazrepresentar e esquecer” (p. 3) e realmente reforçarpráticas, prazeres e desejos cinemáticos e culturaisdominantes e injustos. Obviamente, o modo deendereçamento de um filme não é algo onipotente.

Alguns estudiosos do cinema têm adotado a ên-fase que a chamada “teoria de resposta do leitor”coloca no ato de leitura, deslocando o poder do atode atribuir sentido para o espectador. Eles têm rea-lizado estudos de recepção para tentar entender ereconhecer a agência que os espectadores sempretêm exercido nos filmes. Não importa quanto omodo de endereçamento do filme tente construiruma posição fixa e coerente no interior do conheci-mento, do gênero, da raça, da sexualidade, a partirda qual o filme “deve” ser lido: os espectadores re-ais sempre leram os filmes em direção contrária aseus modos de endereçamento, “respondendo” aosfilmes a partir de lugares que são diferentes daque-les a partir dos quais o filme fala ao espectador.

Essa mudança de foco, do modo de endereça-mento do texto para a resposta que lhe é dada peloespectador, tem levantado a questão das diferentes

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leituras que são feitas não apenas por parte do mesmoespectador (tal como nas duas leituras de Maynes: afeminista e aquela baseada na fantasia sobre garotosde sua adolescência), mas também das diferentes lei-turas que são feitas por diferentes “tipos” de público.

Mayne e outras teóricas do cinema têm utiliza-do o ato de ver filmes das pessoas negras e das pes-soas gays como exemplos de lugares de ver o filmeque supostamente diferem drasticamente daquelesendereçados pelo cinema convencional. Como pú-blicos “negros”, “gays”, ou ambos, por exemplo,lêem filmes que nunca lhes são endereçados?

Mayne (1993), por exemplo, examina essa ques-tão evocando a descrição de como uma platéia ne-gra de resistência vê o filme The defiant ones (1958).Aquele filme

conta a história de dois prisioneiros fugitivos, umdeles branco (Tony Curtis) e o outro negro (SidneyPoitier). Durante a maior parte do filme eles estãopresos um ao outro por meio de algemas. Conta-se,por meio de sua relação, uma parábola sobre as rela-ções raciais nos Estados Unidos. (p. 155)

Pelo fato de o filme ser um mito branco sobre asrelações entre negros e brancos, ele

contém numerosos “pontos cegos” (para utilizara linguagem da teoria do cinema dos anos 70),nos quais o personagem de Poitier age não comoum homem negro mas como a imagem brancasobre o que é ser um homem negro. (p. 155)

A “verdade” da “negritude” de Poitier estavaà mercê, nesse filme, da “mentira” do mito das

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relações entre brancos e negros da narrativa, de suainabilidade em “descrevê-la da forma certa”. Entre-tanto, pelo desempenho de Poitier e pela forma comoo público negro a sentia, a verdade de sua negritudetambém frustra o poder da narrativa para realizar-se completamente de acordo com o planejado. Paramostrar que é isso o que ocorre, Mayne cita a descri-ção que James Baldwin (1976) faz da reação dos “es-pectadores brancos liberais”, como sendo de alegria,quando Poitier salta do trem no final do filme, “sa-crificando sua própria chance de escapar para ficarcom seu amigo branco” (p. 156). O “público negrodo Harlem” que Baldwin descreve, entretanto, “in-dignou-se” com isso, gritando: “Volta para o trem,seu idiota!” (BALDWIN, 1976, p. 76).

“Nós... quem?”

Assim, as teóricas do cinema reconhecem queos públicos não são todos iguais e que os diferentespúblicos fazem leituras diferentes e extraem praze-res diferentes, e muitas vezes opostos, do mesmofilme. Mas esse reconhecimento tem produzido seuspróprios problemas. Por um lado, um pressupostotácito de grande parte da teoria do cinema é quequando a posição social visada pela produção cine-matográfica de Hollywood “possui os atributos da‘dominação’ – branco, masculino, heterossexual, declasse média etc.” e Hollywood endereça-se àquelaposição, então “os espectadores dominantes [taiscomo os constituídos pelo público branco e liberaldo filme The defiant ones] fundem-se, de forma sim-biótica, na tela” (MAYNE, 1993, p. 159). Supõe-se

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que os espectadores “dominantes” ajustam-se deforma “natural” e pouco problemática à posiçãoideológica e de prazer que lhes é oferecida.

Todos os “outros” (tais como os que formam opúblico negro do Harlem) são considerados margi-nais e resistentes. E pelo fato de que a resistência énão apenas interessante, mas necessária à maior partedos projetos políticos da teoria do cinema, os estu-dos de recepção tendem a se concentrar nos assimchamados espectadores marginais e subculturais.Entre as questões típicas de pesquisa estão as que seseguem. Existe resistência e diferença relativamenteao endereçamento sedutor e homogeneizador deHollywood? Onde? Quem resiste? Quem é diferen-te? Como eles resistem e mantêm a diferença? Comopodemos fazer com que a diferença e a resistênciase difundam?

O problema com esse tipo de abordagem, argu-menta Mayne (1993), é que ela estabelece um dua-lismo entre “espectadores dominantes” e “especta-dores marginais” (e portanto “resistentes”) e“perpetua a falsa dicotomia do ‘nós e eles’” no mo-mento mesmo em que tenta enfraquecê-la. “Definiro outro como a vanguarda do ato de ver filmes ape-nas inverte a dicotomia” (p. 159).

Além disso, ainda não está claro para aquelas pes-soas que trabalham no campo dos estudos de cinema“o quê”, precisamente, constitui um “público”. Autilização das noções de “identidade” e “política deidentidade” para estudar o que variados grupos so-ciais supostamente fazem com os filmes não contri-buiu para tornar as coisas mais claras. Falar de “um

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público gay”, por exemplo, sugere que “todos oshomens gays e todas as mulheres lésbicas partilhamalguns padrões específicos de identificação ou al-gum tipo de capacidade inerente para ler o ‘texto’do filme a contrapelo” (Mayne, 1993, p. 166). Masé tão impossível identificar uma experiência do atode ver filmes das pessoas gays ou lésbicas que sejacomum a todas as pessoas de um desses grupos (paranão falar de uma experiência que seja comum a ambosos grupos) quanto o é identificar um único modode ver filmes para negros, mulheres ou garotos de12 anos. Na verdade, os críticos literários e os estu-diosos do cinema estão agora argumentando queexistem fortes correntes homossexuais em todos osatos de ler e ver filmes e que uma presença afro-americana orienta todos os textos culturais estaduni-denses, moldando as experiências que os leitoresbrancos têm de si próprios e de outros (Sedgwick,1990; Morrison, 1992). Quer dizer, não se podedar muito crédito às distinções que, em geral, sefazem entre centro e margem.

Ainda assim, argumenta Mayne (1993), a análi-se acadêmica sobre a “política” do ato de ver filmescriticamente continua, em geral, presa a um raciocí-nio do tipo “ou isto ou aquilo”. Ou estamos falan-do de uma micropolítica do espectador e do gruposocial marginal, na qual toda leitura é um ato decontestação porque o modo de endereçamento dofilme nunca se encaixa perfeitamente ou, pelo fato deque esses atos localizados, subculturais de leitura resis-tente supostamente não se somam para levar à mu-dança social, estamos falando de uma “macropolíticana qual nada significa, realmente, contestação a

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menos que seja parte de uma pauta política glo-balmente definida” (p. 172).

Como em todos os empreendimentos acadêmi-cos, os interesses políticos afetam as teorias sobre asformas como as pessoas vêem os filmes e sobre asformas como eles devem ser vistos. Como diz May-ne (1993), “o propósito mesmo dos estudos acadê-micos do ato de ver filmes é o de encorajar odesenvolvimento de um ato de ver crítico, sobretu-do na medida em que, em sua grande maioria, aque-les que escrevem estudos de cinema tambémensinam” (p. 165). Por “crítico”, Mayne não querdizer simplesmente um ato de ver educado ou bem-informado. Ela quer dizer um ato de ver que resis-te, de forma ativa, a se tornar cúmplice dos filmesconvencionais na produção de significados que sim-plesmente reinscrevem a objetificação dos corpos edas vidas das mulheres, a “normalidade” heterosse-xista, a exploração econômica e os estereótipos ra-cistas, por exemplo.

Muitas das pessoas que estudam e ensinam cine-ma desejam entender melhor a forma como o pú-blico lê filmes, de forma que se possa ensinar, deforma melhor, o público a ler filmes de forma resis-tente. O que subjaz a esses estudos, como diria Fou-cault (1979), é o desejo de estilizar as leituras poucocríticas dos espectadores (“estudantes”) para que setransformem em leituras críticas.

Mas, em sua maior parte, aqueles de nós queestamos interessados em estimular a mudança socialestamos sujeitos a lapsos na nossa forma crítica dever filmes – como os exemplificados na entrega às

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fantasias de adolescência via filmes de Schwarzneggerque Mayne se permitia. E esses lapsos (prazerosose, em parte, bem-vindos) apontam para alguns dosdilemas que são enfrentados pela maior parte dasteorias de mudança social, complicando as estraté-gias políticas e educacionais lançadas em seu nome.

O MODO DEENDEREÇAMENTO COMO EVENTO

Na ausência de “ajustes” previsíveis e controlá-veis entre os modos de endereçamento e a experiên-cia do espectador, algumas teóricas do cinemadesistiram de tentar atribuir um “tipo” de ato dever resistente a cada tipo de público (marginaliza-do) à medida que ele responde aos vários tipos demodos de endereçamento. Elas deslocaram sua aten-ção, do modo de endereçamento como um aspectorelativamente estático do texto de um filme, para omodo de endereçamento como um aspecto mais flui-do dos contextos nos quais os espectadores usam osfilmes. Mayne (1993) descreve essa mudança deênfase como uma mudança que vai de questões dotipo: “como públicos constituídos de pessoas gays elésbicas resistem aos modos de endereçamento dosfilmes convencionais?” para questões tais como “quepapel exerce o ato de ver filmes na forma como aspessoas e grupos imaginam e constituem variadasculturas e identidades culturais e sociais?”; “comoos próprios modos de endereçamento são assumi-dos e usados, juntamente com uma ampla rede detextos e contextos, incluindo os rumores e as ‘fofo-cas’, na construção de identidades, práticas culturais

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e grupos organizados e politizados?”; “como o estilocamp2 – que pode ser compreendido como um exa-gero das formas pelas quais os modos de endereça-mento deixam de “atingir” quase todo mundo –funciona como um prazer social partilhado no inte-rior das comunidades gays e lésbicas”?; “como o atode ver filmes é usado na constituição das lésbicas edos gays como uma força política – como quando osgays se organizam como um grupo de consumo paraquestionar a representação homofóbica que caracte-riza os filmes convencionais?” (p. 166).

MODO DE ENDEREÇAMENTOQUESTÕES NÃO-RESOLVIDAS

Ao perguntar “quem este filme pensa que você é?”,as estudiosas do cinema se saíram com algumas idéiase alguns argumentos bastante interessantes sobre ofuncionamento das estruturas narrativas e os sistemasvisuais em filmes reais. É difícil, por exemplo, discor-dar do argumento de que os filmes falam de algumlugar no interior das idéias, fantasias, ansiedades, de-sejos, esperanças e dos eventos atualmente em circula-ção – e de que esse “algum lugar” possa ser localizadopor meio de um exame das formas pelas quais certospersonagens, vozes, pontos de vista, discursos e açõessão visual e narrativamente privilegiados e recompen-sados em detrimento de outros nos filmes.

É também difícil discordar do argumento de queesse privilegiamento e essa recompensa por meio domodo de endereçamento constituem uma tentativapor parte dos produtores de filmes para antecipar

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(e falar para) as ansiedades, os medos, os gostos, asesperanças e as formas de dar sentido do públicopor eles desejado. Parece claro que ao falar para es-ses elementos, um filme tenta encontrar o públicoque ele imagina e deseja no lugar onde se encon-tram seus medos e suas esperanças. Mesmo que opúblico nunca esteja no lugar para o qual o filmefala, o lugar que o filme endereça parece existir comoum “lá” abstrato e partilhável, uma posição-de-su-jeito imaginada no interior do poder, do conheci-mento e do desejo que os interesses conscientes einconscientes por detrás da produção do filme pre-cisam que o público preencha. Abstratamente ounão, os filmes parecem “convidar” os espectadoresreais a essas posições e encorajá-los, ao menos ima-ginariamente, a assumir e a ler o filme a partir de lá.E os espectadores parecem ser “recompensados”(com o prazer da narrativa, com finais felizes, comexperiências coerentes de leitura) por “assumir” eagir a partir daquela posição imaginária, à medidaque interpretam o filme.

Entretanto, a maior parte das teóricas do cine-ma concordaria que as questões sobre a relação en-tre, de um lado, a posição abstrata supostamenteatribuída aos espectadores de um filme por seu modode endereçamento e, de outro, a pessoa real que vêo filme, não foram resolvidas. Os prazeres que te-mos com os filmes rejeitam, teimosamente, quais-quer dicotomias rígidas entre, de um lado, simplese puros atos de reprodução altamente receptiva ecúmplice das posições que nos são oferecidas e, deoutro, a resistência crítica a essas posições ou suacompleta rejeição.

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O que parece claro para mim, depois de vinte ecinco anos de estudos de cinema, é que as relaçõesentre a forma como os textos cinematográficos en-dereçam seu público e a forma como os espectado-res reais lêem os filmes não são nítidas ou puras –elas tampouco são lineares ou causais. E a busca porrelações nítidas e puras, lineares e causais não é umabusca inocente. Como diz Mayne (1993), as ques-tões sobre modos de endereçamento feitas por pes-quisadores do cinema têm sido questões “assom-bradas” – têm sido questões assombradas por desejosde realizar “a possibilidade do ato de ver filmes comouma potencial atividade de vanguarda”, com vistasa pautas políticas progressistas (p. 172). Esses de-sejos são orientados por uma política totalizante:“suas interpretações de um determinando filme ousão de resistência e portanto revolucionárias ou sãode cumplicidade e portanto reacionárias. Os estu-dos do cinema estão agora às voltas com os signi-ficados da posição pós-moderna de que uma polí-tica totalizante – mesmo que sua intenção sejaprogressista – não é realizável e, talvez, em últimainstância, não seja desejável.

Os estudos do cinema ainda não deram respostasconvincentes às questões: “que diferença faz o modode endereçamento de um filme?”; “faz alguma dife-rença a quem o espectador ou a espectadora, cons-ciente ou inconscientemente, pensa que ele ou elaé?”; “que diferença faz quem um espectador ou umaespectadora pensa que ele ou ela é à forma como eleou ela age no mundo?”; “podem diferentes modosde endereçamento provocar ou encorajar outras oudiferentes formas de ser e agir no mundo?”.

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Em outras palavras, pode a mudança social co-meçar ou ser estimulada pelas formas pelas quais ospúblicos são endereçados pelos filmes?

E, uma vez que a educação tem a ver com mu-dança, como um educador ou uma educadora podereescrever algumas dessas questões? Pode a mudan-ça social ou mudanças individuais nas formas comoalguém compreende o mundo começar – e ser esti-mulada – pelas formas como os estudantes e as es-tudantes são endereçados pelo currículo e pelapedagogia?

Podem os professores e as professoras fazer umadiferença em termos de poder, conhecimento e de-sejo não apenas por aquilo que eles e elas ensinam,mas pela forma como eles e elas endereçam seus alu-nos e suas alunas?

Trata-se de questões ainda não resolvidas nosestudos sobre cinema. E de questões que sequer sãofeitas na educação.

MODO DE ENDEREÇAMENTO:UMA COISA DE EDUCAÇÃO TAMBÉM

Quando deixamos a primeira parte deste ensaio,as estudiosas do cinema estavam mudando os tiposde questões que elas estavam fazendo sobre o modode endereçamento. Inicialmente, nos anos 70, elastinham formulado a questão do endereçamento emtermos do posicionamento do espectador, ao per-guntar: “como o modo de endereçamento de umfilme posiciona seus espectadores no interior de re-lações de poder, conhecimento e desejo? Nos anos

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90, elas começaram, em vez disso, a perguntar:“como os públicos adotam e utilizam os termos domodo de endereçamento de um determinado filme,juntamente com uma ampla rede de outros textos econtextos, como materiais com os quais podemimaginar e viver identidades culturais e sociais?”.

O que causou essa mudança foi, em parte, a con-clusão, por parte das teóricas do cinema, de que to-dos os modos de endereçamento “erram” seuspúblicos de uma forma ou de outra. Não existe ne-nhum ajuste exato entre endereço e resposta, o quenos faz concluir que não há como garantir a respos-ta a um determinado modo de endereçamento. Oque eu gostaria de argumentar agora é, portanto,que o fato de não existir um ajuste exato entre en-dereçamento e resposta torna possível ver o endere-çamento de um texto como um evento poderoso,mas paradoxal, cujo poder advém precisamente dadiferença entre endereçamento e resposta.

Lembram como Mayne (1993, p. 3) apresentouseu “culpado” desejo de ver os filmes de Schwarze-negger como um exemplo de que os públicos exce-dem e extravasam as posições “aceitáveis” que lhessão oferecidas, por exemplo, pelos modos de endere-çamento “feministas”? Quero argumentar, aqui, quea diferença entre quem um endereçamento pensa queseu público é e o “quem” que os membros do públi-co concretizam por meio de suas respostas é um re-curso que está à disposição tanto dos produtores defilmes quanto dos públicos, em seu envolvimento naatividade de dar sentido aos textos cinematográficos,no processo de produção cultural e na prática da in-venção de novas identidades sociais.

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Vou explorar, neste capítulo, os significados queo paradoxal poder de endereçamento pode ter paraos educadores. O que pode um professor fazer como espaço momentoso e volátil da diferença ou “de-sajuste” entre, de um lado, quem um currículo pen-sa que seus estudantes são ou deveriam ser e, deoutro, a forma como os estudantes realmente usamo endereçamento de um currículo para constituí-rem a si próprios e para agir sobre a história e nahistória? Como os professores podem tirar vanta-gem do fato de que todos os modos de endereça-mento “erram” seus públicos de uma forma ououtra, utilizando isso de forma interessante e cria-tiva? Vou fazer três afirmações sobre a falta de ajusteou sobre o espaço de diferença entre o endereça-mento e a resposta.

Em primeiro lugar, o espaço da diferença entreo endereçamento e a resposta é um espaço social,formado e informado por conjunturas históricas depoder e de diferença social e cultural.

Em segundo lugar, o espaço da diferença entreendereçamento e resposta é um espaço que carregaos traços e as imprevisíveis atividades do inconsci-ente, tornando-o, assim, capaz de escapar à vigilân-cia e ao controle tanto por parte dos professoresquanto por parte dos estudantes.

Em terceiro lugar, o espaço da diferença entreendereçamento e resposta está à disposição dos pro-fessores como um recurso poderoso e surpreenden-te. Entretanto, e de forma paradoxal, os professoresnão podem controlar o modo de endereçamento –nem mesmo por meio de práticas pedagógicas como,

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por exemplo, as práticas chamadas de “dialogais”,cuja intenção seja regulá-lo.

Assim, neste capítulo, quero ampliar ainda maismeu paradoxal argumento de que o modo de ende-reçamento é uma coisa poderosa que os educadoresnão devem ignorar, sendo preciso considerar, entre-tanto, que todos os modos de endereçamento “er-ram” seus públicos, de uma forma ou de outra. Opoder de endereçamento não é, pois, o poder deobter, à vontade, respostas previsíveis e desejadasdos estudantes ou dos públicos. Não é o poder deposicionar os estudantes em algum desejado e pre-ciso ponto do mapa de relações sociais. O poder deendereçamento não é algo que os professores pos-sam dominar, controlar, predizer ou transformar emuma tecnologia.

E contudo, meu propósito é o de mostrar queignorar o poder do endereçamento empobrece osprofessores. Em que sentido o termo “poder” estásendo utilizado aqui? Se o poder de controlar, pre-dizer e dirigir as respostas dos estudantes por meiodo endereçamento não está à disposição dos profes-sores, qual é, então, o poder de endereçamento queos professores devem explorar? Tentarei no que sesegue explicar o que quero dizer quando digo que,no ensino, o poder de endereçamento reside em seucaráter indeterminado.

O MODO DE ENDEREÇAMENTOE O VOLÁTIL ENTRE-ESPAÇO

O espaço entre um filme e seu público, ou entre umcurrículo e seus alunos vistos como “espectadores” ou

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“leitores”, é um espaço volátil. E é esse entre-espa-ço que os modos de endereçamento tentam mani-pular. Nos filmes, a volatilidade desse espaço éreconhecida e explorada em favor do lucro comer-cial e do valor de entretenimento.

Mas Hollywood nunca teve muito êxito em ga-rantir a reação de um público por meio da utiliza-ção de um modo particular de endereçamento. Emgeral, determinar o sucesso de um filme é uma ques-tão de adivinhação. Na verdade, as pessoas envolvi-das na produção de um filme são as que, em geral,se mostram mais surpresas quando um filme atingeseu público em cheio, fazendo dele um sucesso.

Por exemplo, Thelma e Louise, Falando de amor eClube das desquitadas são todos filmes sobre os quaisos espectadores e os críticos disseram coisas como“as histórias e os personagens são exagerados, bei-rando o fantástico” ou “as mulheres não se pare-cem, absolutamente, com mulheres reais emqualquer sentido literal”. E, entretanto, os termospor meio dos quais esses filmes endereçaram seuspúblicos – o “quem” que eles pensavam que suasespectadoras eram – tocaram em pontos sensíveisde um grande número das mulheres que foram vê-los. E ninguém previu a avassaladora reação dessasespectadoras a filmes que nunca pretenderam sergrandes sucessos de bilheteria.

É aqui que eu gostaria de sugerir uma razão parao caráter escorregadio da prática do endereçamen-to. Isso pode ser também uma razão para a nature-za paradoxal de seu poder. Trata-se de uma razãoque, penso eu, pode libertar a noção de modo de

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endereçamento de suas formulações dos anos seten-ta, com sua dependência do estruturalismo e suaconcepção de posições fixas, conhecíveis, localizá-veis e, portanto, endereçáveis. Considerando a emer-gência, nos Estudos Culturais, de teorizações sobrea possibilidade de posicionamentos sociais fluidos,múltiplos, cambiantes e estratégicos, penso ser pos-sível dar uma formulação atual ao conceito de modode endereçamento, ressaltando o jogo e o poder dadiferença que estão aí implicados.

Consideremos, por um momento, o final deThelma e Louise. Depois de pesarem suas opções,que incluíam: serem presas por assassinato e encar-ceradas no Texas; serem imediatamente baleadas pelapolícia; ou se atirarem com o carro no precipícioem frente delas, Thelma diz: “acelera, Louise”. E asduas mulheres se atiram, com o carro, juntas, noprecipício.

Aquele segmento de diálogo, “acelera, Louise”, éum elemento do modo de endereçamento do filme.Assim como o é a atitude com a qual Thelma pro-nuncia a frase. Assim como o é a atitude com a qualLouise recebe a frase. Assim como o é o final que seinicia com a fala e a escuta dessa frase. São, todoseles, elementos do modo de endereçamento do filmeque se desenvolvem nesse momento. Mas a frase“acelera, Louise” não constitui, em si e por si, o modode endereçamento do filme. O modo de endereça-mento do filme, lembremos, é invisível, não-localizá-vel – é uma relação e não uma coisa. É um produtoda contínua interação entre uma série de aspectos dosusos particulares de forma, de estilo e estrutura nar-rativa feitos por um determinado filme.

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Assim, que relação constitui o modo de endere-çamento de um filme em qualquer momento deter-minado? Como podemos dizer qual relação entreos elementos do filme constitui seu modo de ende-reçamento e qual relação constitui, digamos, o esti-lo visual de um diretor particular?

O que eu gostaria de sugerir é que o modo deendereçamento do filme nesse ponto de Thelma eLouise consiste na escolha dessa frase (“acelera, Loui-se”), na atitude corporificada nessa frase, na respos-ta que ela provoca e no final iniciado por essa frase,à plena luz da diferença e dos conflitos entre cada umdesses elementos e todas as outras opções disponí-veis aos produtores do filme, social e historicamen-te, no momento em que o filme é feito.

Em outras palavras, o que estou dizendo é que oparadoxal poder de endereçamento consiste na dife-rença entre, de um lado, todas as outras frases quepoderiam ter sido ditas e foram ditas em outros fil-mes, telenovelas, noticiários, romances, comédias datevê e, de outro, a frase que foi dita aqui. O modo deendereçamento consiste na diferença entre o que po-deria ser dito – tudo o que é histórica e culturalmen-te possível e inteligível de se dizer – e o que é dito.

É aqui e dessa forma que o modo de endereça-mento excede as fronteiras do próprio texto do filme eextravasa para as conjunturas históricas da produção eda recepção do filme. O modo de endereçamento en-volve história e público e expectativa e desejo.

O poder de endereçamento – o que um públi-co faz dele – navega na diferença entre a decisãodo cineasta em escolher a frase “acelera, Louise”

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e todas as outras escolhas que eram histórica ediscursivamente possíveis e inteligíveis. E o poderde endereçamento navega nessa escolha (“acelera,Louise”), contra o pano de fundo de formas emer-gentes, mas ainda não disponíveis discursivamente,de representar e responder à situação das mulheres.

E é esse caráter de acontecimento histórico ecultural do endereçamento que faz com que se tor-ne impossível que os produtores de filmes possamcontrolá-lo inteiramente da forma que eles contro-lam, por exemplo, a iluminação. (Talvez seja por issoque não seja concedida nenhuma estatueta do Os-car ao Melhor Modo de Endereçamento).

É intrigante considerar isso: é o endereçamentode um filme a seu público a coisa que faz ou impedea popularidade ou a importância cultural de um fil-me? Não se poderia dizer que alguns filmes “fracas-sam” não porque suas histórias ou seus atores sejamparticularmente ruins, mas porque o modo de en-dereçamento está “mal sintonizado” – como se o“tom de voz” do filme ou sua “atitude” estivesse ematrito com diferenças ainda não articuladas, fazen-do uma diferença na forma como os públicos ob-têm prazer, em quem eles pensam que são ou emquem eles querem ser?

De forma similar, algumas pedagogias e algunscurrículos talvez funcionem com seus alunos nãopor aquilo que ensinam ou pela maneira como ensi-nam, mas pelo quem que colocam à disposição dosestudantes – um “quem” que estimula sua imagina-ção a serem e a agirem de uma determinada manei-ra. Talvez uma determinada pedagogia funcionedevido aos significados que os estudantes dão à

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diferença entre, de um lado, quem a atitude ou otom do endereçamento dessa pedagogia pensa queeles são ou quer que eles sejam e, de outro, todos osoutros “quem” que estão circulando, por meio dopoder e do conhecimento, naquele momento, com-petindo por sua atenção, por seu prazer, por seu de-sejo e por sua ação. Talvez uma determinadapedagogia funcione porque essa diferença no ende-reçamento – essa mudança de endereçamento – trans-fere seu público de um lugar no qual eles não queremmais estar (mas talvez ainda não tenham sequer sedado conta disso) para um lugar que eles queiramexperimentar por um tempo (mesmo sem saber comsegurança o que eles farão e encontrarão lá).

Infelizmente, entretanto, muito freqüentemen-te, a tarefa do professor consiste em neutralizar, eli-minar ou distrair os estudantes das diferenças entreo que um currículo “diz” e o que um estudante“pega” – ou compreende – e os voláteis aconteci-mentos que se passam naquele espaço. Não obstan-te, na medida em que as relações de sala de aula sãomoldadas pelos antagonismos sociais e econômicosmais amplos bem como definidos pelas relações degênero e raça, os educadores não podem cerrar oespaço da diferença entre endereçamento e respos-ta. Eles jamais podem impedir o medo, a fantasia, odesejo, o prazer e o horror que fervilham no espaçosocial e histórico entre endereçamento e resposta,currículo e estudante.

Não, o currículo e a pedagogia – os veículos pe-los quais as instituições e as práticas educacionaisendereçam seus estudantes e seus professores – nãosão “tesouros naturais aos quais faltam quaisquer

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traços de horror humano” (OSTROW, apud WILLARD,1993, p. 85). E o modo de endereçamento, vistocomo uma coisa da educação, tem a ver, em parte,com “traços de horror humano”. Tentarei explicar.

O INCONSCIENTE EO VOLÁTIL ENTRE-ESPAÇO

Além das formas pelas quais os significados e asoperações da história e da diferença social interfe-rem com ajustes perfeitos, há uma outra razão pelaqual o rebelde e eruptivo espaço entre o modo deendereçamento de um currículo e a resposta da es-tudante não vai simplesmente desaparecer. Ele nãovai desaparecer porque está habitado pela diferençaentre os conhecimentos conscientes e os conheci-mentos inconscientes, entre os desejos conscientese os desejos inconscientes.

Por isso era inevitável que um educador fosse es-crever um livro sobre o monstruoso e a educação (DO-NALD, 1992). E não estou surpresa que para escrevê-lo foi preciso alguém que estivesse profundamenteenvolvido com os estudos de cinema no exato mo-mento em que a noção de modo de endereçamentoestava sendo desenvolvida como um conceito crítico.A relação de James Donald com os estudos de cine-ma desenvolveu-se em relação com seu trabalho comoeducador na Society for Education and Film and Televi-sion, da Grã-Bretanha. Ele tem utilizado a mídia paraperguntar: “que tipo de instituição é a educação?”.

Donald (1991) localiza sua discussão da insti-tuição da educação no espaço que se abre entre as

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respostas conscientes e as respostas inconscientesque as estudantes e as professoras dão aos textos eaos apelos educacionais. Ele usa a psicanálise paraintroduzir a “idéia de uma outra localidade, umoutro espaço, uma outra cena, o entre-espaço que secoloca entre a percepção e a consciência” (p. 5).Essa outra cena é a fissura, a falta de ajuste, a dife-rença entre, por exemplo, de um lado, os modosde endereçamento dos materiais educacionais mul-ticulturais e, de outro, o real “efeito psíquico emtermos de sentimento” de uma estudante que entraem contato com eles (p. 5).

Além de chamar a atenção das educadoras paraessa outra cena que se coloca entre a percepção e aconsciência, o trabalho de Donald explora o argu-mento de que as fronteiras entre o “lado de fora” oua sociedade (por exemplo, um texto curricular) e o“lado de dentro” ou a psique (por exemplo, a com-preensão da estudante) “não são, nunca, estáveis oufacilmente impostas” (1992, p. 2).

Donald introduz, assim, dois momentos de ins-tabilidade. Existe uma falta de ajuste entre o lado defora (o currículo) e o lado de dentro (a compreen-são). E existem fronteiras instáveis, impossíveis deserem impostas, entre o lado de fora (a sociedade) eo lado de dentro (o efeito psíquico do sentimentoou a psique individual). Isso faz com que a relaçãoentre um currículo e a compreensão que uma pro-fessora ou estudante tem dele “não seja uma deter-minação de mão única e nem mesmo uma dialética”.Não, é muito mais interessante que isso. Donaldargumenta que o espaço da diferença entre o currí-culo e a compreensão da estudante “é caracterizado

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por oscilação, deslizamento e transformações impre-visíveis” (1992, p. 2).

“Oscilação”, “deslizamento” e “transformaçõesimprevisíveis” não são imagens em geral invocadasquando as educadoras falam sobre a compreensãodas estudantes. A educação, em seus momentos maisprogressistas, é governada, em grande medida, poruma outra imagem de como o lado de fora se ajustaao lado de dentro. Trata-se da imagem da intera-ção mútua que está freqüentemente associada coma noção de diálogo. Obviamente, a análise queDonald faz do deslizamento, da instabilidade e daconfusão “representa uma versão menos assépticade como existimos no mundo” (1991, p. 5) do queaquela que está implicada na noção de diálogo. ParaDonald, no espaço (inarticulado e inarticulável) dadiferença entre dois participantes no diálogo, “fervi-lham o rumor, a fofoca, a proibição e a falta” (p. 5).As fissuras entre o eu e o outro, entre o lado dedentro e o lado de fora, que o diálogo supostamen-te transpõe, abranda, alivia e, em última instância,permite cruzar, são cenas perturbadas por incertezacognitiva, pensamentos proibidos, percepções pou-co confiáveis e bastante instáveis. Atravessamos parao outro lado do diálogo.

O’Shea (1993) adota os argumentos de Donaldpor causa das implicações que ele viu para suas pró-prias práticas docentes. De acordo com O’Shea, otrabalho de Donald mostra-nos que nem mesmoaquelas subjetividades associadas com a vida públi-ca (por exemplo, cidadão, professor, político) po-dem fugir da dinâmica da vida “interior”. Mesmoaquelas subjetividades envolvidas na socialidade da

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“interação mútua” “não estão, nunca, desconecta-das das fantasias, dos desejos transgressivos e dosmonstruosos terrores do tipo que emerge nos so-nhos” (O’SHEA, 1993, p. 504).

E, assim, de acordo com essa visão, as sociologiasda educação que concebem a interação mútua pri-mariamente – quando não exclusivamente – em ter-mos de vida pública são extremamente empobrecidas.Isso ocorre porque as fantasias que emergem na “pri-vacidade” de nossos sonhos estão, não obstante, in-timamente conectadas com a cidadania, a educaçãoe com nossas afiliações públicas. Os assim-chama-dos desejos transgressivos privados e terrores mons-truosos têm força em nossas assim-chamadas vidaspúblicas porque

não podemos, nunca, realizar ou “completar”as identidades que a sociedade exige de nós – “obom cidadão”, “o indivíduo livre e racional”,“o acadêmico sofisticado e bem-informado”, “obom pai ou a boa mãe”, “o homem ou a mulherideal”. (p. 504)

Mas nossos fracassos em efetivar identidades ple-nas, completas, inconsúteis não são patológicos. Elessão “normais”. O que a psicanálise oferece aos pro-fessores, de acordo com O’Shea (1993), pode sermais bem compreendido “não como uma descriçãoda ‘socialização’, mas como uma descrição da im-possibilidade de seu sucesso e da instabilidade daidentidade” (p. 504).

É aqui que as formas da cultura popular entramna discussão que Donald faz sobre educação. Deacordo com Donald (1992), os filmes de horror, o

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monstruoso, o grotesco, o estranho, o sublime, são,todos, formas que nos ajudam a lidar com a insegu-rança e as instabilidades de “nossas” identidades. Elesnos ajudam a lidar com “aquilo que não se encaixa,que não pode ser satisfatoriamente identificado”(O’Shea, 1993, p. 504). O “problema”, para Donalde O’Shea, não está nos impulsos transgressivos ou nosterrores monstruosos em si. Eles são, afinal, inevitá-veis e podem até ser produtivos, dada a impossibilida-de da socialização e a precariedade da identidade.

Não, o problema é que os discursos que temosutilizado para pensar sobre a educação e praticá-lamal começam a se dar conta de tudo isso. Desde oIluminismo, argumenta O’Shea (1993), os discur-sos educacionais dominantes, “seja do lado da so-cialização, seja do lado da libertação, têm sidoexcessivamente racionalistas” (p. 504). Com “exces-sivamente racionalistas” O’Shea quer dizer que eles

ignoram o fato de que não importa quão cuida-dosamente os objetivos sejam estabelecidos, os cur-rículos planejados e implementados, não existequalquer garantia de que as subjetividades e osconhecimentos sociais oferecidos às alunas serãoapropriados de acordo com a intenção com queforam imaginadas. Pois não se trata apenas do fatode que as subjetividades são sempre problematica-mente ocupadas, mas de que elas também têm quepassar pela “emaranhada e confusa dinâmica dodesejo, da fantasia e da transgressão”. (p. 504)

Isso resulta naquilo que O’Shea chama de “eurebelde e não-resolvido” (p. 504). Esse “eu” é aquiloque é gerado “na fissura entre aquilo que se supõe

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que sejamos e aquilo que na realidade nós não nostornamos” (p. 504). Longe de ser um impedimen-to a ser ultrapassado ou resolvido, Donald e O’Sheaargumentam, essa fissura deve ser adotada pelaseducadoras. É precisamente essa fissura que “forne-ce o espaço da individuação e da agência – o recursoque sustenta não apenas a resistência bruta, mas tam-bém a recusa consciente e intencional” (O’SHEA,1993, p. 504).

O fato do inconsciente, pois, “faz explodir a pró-pria idéia de uma identidade completa ou realiza-da” (DONALD, 1991, p. 5) – identidade consigomesmo (por meio da consciência) ou identidade comoutros (por meio da compreensão). Nossos fracas-sos em nos tornarmos plenamente idênticas comaquilo que as normas sociais querem que nós seja-mos ou com aquilo que nós próprias queremos nostornar – esses fracassos são “incessantemente repe-tidos e revividos, momento por momento, ao lon-go de todas nossas histórias individuais” (p. 4). Issoocorre porque é impossível dizer tudo, de uma vezpor todas, na linguagem. Qualquer tentativa de di-zer “eu sou” – de fazer com que a linguagem setorne plenamente idêntica consigo mesma e comi-go mesma – me coloca contra os limites da lingua-gem, contra a impossibilidade de que a linguagemcoincida com aquilo de que ela fala, contra a fissuraentre o que é falado e o que é referido, contra oinevitável fracasso da linguagem.

Donald (1991) argumenta que, de fato, “no pró-prio centro da vida psíquica”, a auto-identidade ple-na e completa é não apenas impossível, mas que nós,na verdade, resistimos a ela. Existe uma resistência à

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identidade – ao perfeito ajuste entre, de um lado, asnormas sociais e, de outro, a forma como nós senti-mos e o que queremos (p. 4). Essa resistência estáligada a um sentimento freqüentemente inconscien-te de que nós somos – de que devemos ser – mais doque os eus que nossas culturas, nossas escolas, nossosgovernos, nossas famílias, nossas normas sociais enossas expectativas estão nos oferecendo ou exigin-do que sejamos. É essa resistência às banalidades danormalização que torna a agência possível:

Ao negociar as auto-imagens fornecidas pela [...]educação e pela cultura popular, o eu nunca reco-nhece plenamente a si próprio. Ele continua des-confiado de que deve existir algo mais do que asnormas e as banais transgressões que estão dispo-níveis. (p. 95)

De fato, se fosse possível obter ajustes perfeitosentre as relações sociais e a realidade psíquica, entreo eu e a linguagem, nossas subjetividades e nossassociedades seriam fechadas. Completas. Acabadas.Mortas. Nada a fazer. Nenhuma diferença. Não ha-veria nenhuma educação. Nenhuma aprendizagem.

A EDUCAÇÃO E O VOLÁTILE PSÍQUICO ENTRE-ESPAÇO

Os educadores simplesmente não têm lidado comquestões de endereçamento da forma ou na exten-são que os estudiosos do filme o têm feito. Isso émuito curioso para mim. Parece que paralelos e in-tersecções entre “estudante” e “público” são inesca-páveis. Os estudantes e os públicos têm muito em

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comum tanto como construtos teóricos quantocomo participantes reais no processo de atribuiçãode sentido. E com o advento dos novos meios inte-rativos e os chamados edutainments [educação +entretenimento], as fronteiras entre o estudante e opúblico estão se tornando ainda mais borradas epermeáveis.

Dessa forma, tanto os filmes populares quantoos textos educacionais (tais como livros-texto, cur-rículo, vídeos e softwares educacionais) fazem pres-suposições sobre quem seus públicos são – emtermos de suas sensibilidades estéticas, graus de aten-ção, estratégias de interpretação, propósitos e dese-jos, leituras e experiências visuais prévias, vieses epreferências. Muito freqüentemente, essas pressu-posições estão baseadas em pressuposições adicio-nais sobre a localização de membros do público nointerior da dinâmica de raça, gênero, status social,idade, ideologia, sexualidade, rendimento educacio-nal, geografia.

Por exemplo, os livros-texto utilizados na edu-cação estão constantemente redesenhando sua “apa-rência” para atrair públicos estudantis cujas estra-tégias de leitura e cujos interesses são moldados,de uma forma extraordinária, pela televisão e pelamúsica popular. Parecendo-se cada vez mais comrevistas populares e até mesmo com sites da Inter-net, os livros-texto endereçam-se aos baixos grausde atenção e à familiaridade dos estudantes com es-ses meios pela utilização de pequenos quadros des-tacados do texto principal, de referências cruzadas,de atividades baseadas na cultura popular (por exem-plo, “componha um poema rap”), muita cor e uma

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abundância de escolhas. Os vídeos educacionais, aomenos nos minutos de abertura e em um esforçopara atrair a atenção dos estudantes, freqüentemen-te tentam se parecer com a MTV. Os museus deciência estão começando a se endereçar aos estu-dantes de forma similar àquela dos filmes de ação eaventura de Hollywood. Por exemplo, a exposi-ção interativa sobre a floresta tropical do Museude Milwaukee aparece misteriosamente à medidaque ando por uma densa floresta visual, cercada porestranhos sons e odores, subindo cada vez mais altoaté a copa das árvores onde encontro estranhas cria-turas que vivem suas vidas inteiras centenas de me-tros acima do chão da floresta.

Tudo isso levanta a possibilidade de discutir ostextos educacionais (tais como livros-texto, sites daInternet, vídeos educacionais, instalações de museus,currículos multiculturais) e as práticas pedagógicas(tais como a interatividade, o diálogo, os meios uti-lizados na sala de aula) em termos de modo de en-dereçamento. O que significa para os educadorescomeçar a reconhecer o paradoxal poder do endere-çamento nos textos educacionais?

Quero, aqui, utilizar a forma como Donaldquestiona a educação para explorar o que está ocultoquando ajustes exatos ou “corretos” entre o textoeducacional e a compreensão do estudante são pressu-postos, desejados, buscados. O que é apagado e nega-do, e a que custo, quando agimos como se não existissenenhum modo de endereçamento no ensino?

Muito freqüentemente, os professores ende-reçam-se aos estudantes de forma planejada para

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eliminar, minimizar ou conter as emaranhadas coi-sas sociais, históricas e inconscientes que poderiamconfundir a compreensão de um texto educacional.Para que um currículo ou uma pedagogia “funcio-nem”, alguns momentos de sala de aula – e ideal-mente todos eles – têm que resultar em um ajusteentre o que está sendo ensinado e a compreensãodo estudante. E todo mundo – estudantes e profes-sores – tem que estar na mesma página ao menosem parte do tempo, especialmente quando se tratade exames e avaliação. Como diz Karen Evans, éisso que faz uma enorme diferença entre filmes ecurrículos – “ninguém submete os espectadores aum teste após a sessão de cinema” (comunicaçãopessoal, 25 de outubro de 1996).

O importante, em termos dos propósitos daavaliação, é que o estudante “pegue” o texto,compreenda-o, esteja “consciente” dele, mesmo queo estudante não queira “pegá-lo”, não se divertiuem “pegá-lo” ou não tem a intenção de utilizá-lo – aeducação é um sucesso quando a diferença entre umcurrículo e a compreensão que dele tem um estu-dante é eliminada. Podemos ver essa formulação emação em um livro progressista recente sobre educa-ção multicultural. Um ensaio conclui que “o que otornou tão gratificante foi que as crianças estavamconscientes do que estavam fazendo. Eu realmenteacredito que no fim do ano quase todas as criançascompreendiam que tinham uma estrutura para es-crever, quisessem elas prosseguir ou não” (MIZELL,BENETT, BOWMAN & MORIN, 1993, p. 46).

É esse interesse estreito no ato de compreensãoque faz com que seja possível agir como se o modo

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de endereçamento não fosse uma questão ou um fa-tor na educação. É aqui que um encontro interdisci-plinar com os estudos de cinema pode dar umasacudida nas coisas – e de forma produtiva, acredito.

Que tal se, da mesma forma que ocorre entreum filme e seu espectador, a relação de um estudan-te com o currículo fosse um evento confuso e im-previsível que constantemente excedesse tanto acompreensão quanto a incompreensão?

Essa perspectiva não tem uma circulação fácil nocampo da educação. Entretanto, tal como a leituraque um estudante faz de um filme, sua leitura de umcurrículo passa, constante e inevitavelmente, pela coisaincontrolável do desejo, do medo, do prazer, do po-der, da ansiedade, da fantasia e do impensável.

Convidar os públicos a jogar/brincar nessa e (comessa) desordem é o feijão com arroz dos produtoresde filmes. Mas é exatamente planejando eliminar issoda aula do dia seguinte que os educadores, em suamaioria, ficam acordados até tarde da noite. São exa-tamente os atos e os momentos de desejo, medo, pra-zer, poder e desentendimento na sala de aula o queos educadores, em sua maioria, suam para tentar pre-venir, impedir, negar, ignorar, terminar. Uma coisadessas é aterrorizante para professores com trinta ouquarenta crianças em uma sala de aula, bem comopara professores com doze estudantes de pós-gra-duação que estão escrevendo suas dissertações.

Além disso... por que um professor ia querer vi-ver nos domínios da ansiedade, da fantasia, do pra-zer e dos jogos de poder? Tais estados são estranhosse a relação que estamos realmente tentando fazer

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acontecer entre o currículo e o estudante é pura esimplesmente uma relação de “pegar” ou não “pe-gar”. É certo que os educadores podem ser força-dos a entrar nesses perturbadores domínios quandoencontramos estudantes e professores que não “pe-gam” o texto ou que, quando o “pegam”, não oquerem. Mas o problema de “pegá-lo” é raramentepercebido como algum problema com a idéia decompreensão em si. Ele é comumente concebidocomo uma questão de alguma relação onerosa entreos estudantes e seus contextos e constrições cultu-rais e sociais mais amplos. Em outras palavras, osestudantes o “pegarão” apenas se eles tiverem ascompetências culturais, as habilidades intelectuaisou as virtudes morais adequadas.

Isso permite que a própria idéia de compreen-são deixe de ser analisada. Isso faz com que a com-preensão e sua “expressão” nos testes continue sendovista como a relação apropriada, desejada e, em úl-tima instância, alcançável, definindo,assim, o suces-so para os professores.

Definir, pois, a relação entre currículo e estudan-te em termos de compreensão e incompreensão sig-nifica que, na prática, a maior parte dos textoseducacionais endereça-se aos estudantes como se suaspedagogias estivessem vindo de lugar algum no inte-rior das relações circulantes de poder. Ao se apresen-tar como desejando apenas a compreensão, os textoseducacionais endereçam-se aos estudantes como seos textos não fossem de ninguém, como se não tives-sem nenhum desejo de colocar seus leitores em qual-quer posição exceto a de uma compreensão neutra,benigna, geral e genérica. E a compreensão não é

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realmente vista como posicionando os estudantespor meio de um modo particular de endereçamentoporque, supostamente, a compreensão é tanto neu-tra quanto universal.

Entretanto, mesmo quando os professores estãose endereçando aos estudantes com uma atitude oucom um tom de voz “neutro”, sem qualquer refe-rência às (ou ao aproveitamento das) fissuras entretextos e leitores, os termos de seu endereçamentotentam “colocar” os estudantes no interior de rela-ções de conhecimento, desejo e poder. E os estu-dantes, por sua vez, respondem aos modos deendereçamento em termos que colocam os profes-sores e os currículos no interior de relações circu-lantes e conflitivas de conhecimento, desejo e poder.Isso é verdade mesmo na prática pedagógica supos-tamente “democrática” do diálogo. O que é apaga-do e negado – e a que custo – quando agimos comose fosse possível eliminar, no diálogo, por meio dacompreensão, o espaço da diferença entre o textodaquele que fala e a resposta daquele que escuta?

A própria crítica da educação feita por Donaldconduz a essa questão. Ele baseia sua crítica na idéia,extraída da psicanálise, de que ajustes perfeitos sãoimpossíveis. Um ajuste perfeito entre eu e socieda-de, entre relações sociais e realidade psíquica, é umaimpossibilidade (1991, p. 7). E isso significa quetambém são impossíveis ajustes perfeitos entre tex-to e leitura, modos de endereçamento e interpreta-ções do espectador, currículo e aprendizagem, oestudante ideal ou imaginado e o estudante real, aeducação multicultural e os sentimentos reais dosestudantes sobre raça.

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Parte do projeto de Donald como educador con-siste, pois, em acrescentar os trabalhos do inconscien-te às razões já em circulação para explicar por queos educadores não devem ver a relação entre o cur-rículo do professor e a compreensão do estudantecomo uma relação de determinação unilateral. Asatuais formas de pensar e ensinar não oferecemmuitas alternativas a essa formulação, mas existemumas poucas.

As teorias sobre a “resistência” do estudante aoconhecimento escolar oficial, por exemplo, tentamapreender a forma pela qual os estudantes “retru-cam” ao que estão aprendendo. Mas os sociólogosda educação raramente pensam na resistência emtermos do que acontece no espaço da diferença entreo lado de fora (o social) e o lado de dentro (a psiqueindividual). Em vez disso, a resistência é freqüente-mente vista como aquilo que os estudantes fazem de-pois que eles já alcançaram a compreensão. Em outraspalavras, segundo essa perspectiva, os estudantes “pe-gam” o que está sendo ensinado, mas por causa doscontextos sociais e culturais de desigualdade que in-cidem sobre a relação estudante-professor, os estudan-tes recusam-se a se conformar. Ou, ainda segundo essaperspectiva, quando os estudantes resistem mesmo an-tes que compreendam o que eles supostamente de-vem aprender, então a resistência é freqüentementepatologizada como alguma disfunção ou ruído emsua capacidade de compreender, resultante de pro-blemas com suas capacidades cognitivas, grau de aten-ção ou motivação.

Existe, entretanto, nos discursos educacionais,uma alternativa a essa perspectiva que vê o ensino

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como uma relação de determinação unilateral entreo currículo e a compreensão do estudante. É essa aalternativa que mais me interessa porque ela real-mente se endereça ao espaço da diferença entre olado de fora (o social, o currículo) e o lado de den-tro (a psique individual, o estudante). Na verdade,ela supõe alcançar a compreensão pela eliminaçãodo espaço da entre-diferença. Estou me referindo àrelação de duas mãos entre o texto e o estudantechamada “diálogo”.

O DIÁLOGO COMUNICATIVOAFIRMA: “NENHUM MODO

DE ENDEREÇAMENTO AQUI!”

As educadoras constantemente invocam o diálo-go como um meio para se chegar à compreensão semimposição e de uma forma mais democrática do quea da determinação de mão única. Ele é apresentadocomo uma forma de satisfazer desejos comuns e par-tilhados por compreensão mesmo que permaneçamdiferenças de opinião e poder. As educadoras freqüen-temente associam diálogo com democracia. Elas con-vocam o diálogo como um meio de assegurar que,quando as estudantes e as professoras interagem, elasestão sendo abertas (em oposição a serem dogmáti-cas) e que elas estão dispostos a serem mudadas (emoposição a serem ditatoriais) pelas compreensões ra-cionais (em oposição às paixões e aos auto-interessesirracionais) a que elas acabam chegando.

Mas o que acontece quando o diálogo, vistocomo uma estratégia de ensino, como um condutorsupostamente neutro de significado e intenção, é

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questionado sobre seus próprios interesses e inten-ções? A despeito do que está implícito em grandeparte da literatura atual na educação, o diálogo não éum estado natural do qual nós, algumas vezes, nosafastamos, precisando da ajuda das professoras pararecuperá-lo. Ele não é, tampouco, a realização supre-ma da civilização ocidental, uma forma ideal de inte-ração social que os outros da civilização ocidentaldeveriam se esforçar por alcançar. Ele tampouco é aestrada real para a comunicação e a conexão, em ummundo cronicamente carente de comunicação.

O que escapa às discussões sobre o diálogo emeducação é isso: o diálogo – como uma prática deensino advogada em quase toda a literatura educa-cional – é, ele próprio, uma relação socialmente cons-truída e politicamente interessada. Não importa seas educadoras apresentam-no, de forma simplista,como uma conversação entre grupos interessadosna busca de uma compreensão mútua ou como ummeio mais teoricamente inspirado de constituiruma relação social transformativa entre os falan-tes. O diálogo como uma forma de pedagogia éuma prática histórica e culturalmente plantada.Trata-se de um instrumento socialmente construí-do, com intenções que fazem parte intrínseca desua própria lógica.

O argumento que quero desenvolver aqui é quequando as professoras praticam o diálogo como umaspecto de sua pedagogia, elas estão empregandoum modo de endereçamento. As regras e os movi-mentos e as virtudes do diálogo, considerado comouma forma de pedagogia, não são neutros – elesoferecem “lugares” muito particulares às professoras

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e estudantes no interior de redes de poder, desejoe conhecimento.

Negar que o diálogo seja um modo de endere-çamento estruturado na história e, na verdade, inspi-rado por interesses particulares, significa conceder-lheum status transcendental. E é precisamente isso queparece acontecer em muitos discursos e práticas edu-cacionais. Supõe-se que o diálogo seja capaz de tudo:desde construir conhecimento, resolver problemas,assegurar a democracia, implantar processos coope-rativos, assegurar a compreensão, construir virtudesmorais e diminuir o racismo ou o sexismo até satisfa-zer desejos por comunicação e conexão.

Mas não é assim tão fácil. O que acontece com odiálogo-como-uma-estratégia-de-ensino tendo emvista a insistência de Donald no estado confuso eemaranhado do espaço entre o lado de fora da so-ciedade (do currículo) e o lado de dentro da psiqueindividual (da compreensão do estudante)? O queacontece quando a ponte de – supostamente – duasmãos do diálogo entre estudante e texto, estudantee professora, estudante e estudante, é uma ponteinstável que oscila, escapa e muda de forma impre-visível? O que acontece quando aquela ponte de duasmãos é habitada por medos, horrores humanos, his-tória e diferença?

O diálogo no ensino não é um veículo neutroque carrega as idéias e as compreensões de quem falapara lá e para cá, através de um espaço livre e abertoentre os dois pontos. Ele é um veículo desenhadocom uma tarefa particular em mente e o acidentadoterreno entre falantes que ele atravessa faz com que

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haja uma passagem constantemente interrompida enunca completada.

Por exemplo, quem o endereçamento do diálo-go pensa que eu sou, exatamente da mesma formaque o filme Jurassic Park pensa que eu sou, nunca éexatamente quem eu fui ou que estou querendo ser,disposta a ser, capaz de ser. Especialmente nos cur-rículos e nas conversações sobre gênero, raça, se-xualidade, etnia, o espaço entre um endereçamentoe a resposta de um estudante é um espaço confuso eemaranhado, atravessado pela história, por interes-ses e pela ignorância. Quando alguém me convidapara o diálogo, ela me convida para uma práticaparticular que também existe em relação àquelashistórias, interesses e ignorâncias e neles está envol-vida. E aquelas pessoas que iniciam o diálogo, nãoimporta quão “imparciais” ou “abertas” sejam suasintenções, não podem deixar de se colocar em rela-ção a mim, a outros, à história. James Baldwin (1963)enfrentou isso em “Uma fala para os professores”,quando ele falou sobre ser endereçado – chamado –como um “crioulo”. “Se eu não sou o que dizemque sou, então isso significa que você também não éaquilo que você pensava que era. E é isso que cons-titui a crise” (p. 8).

Se eu não respondo do lugar situado no interiorda relação social construída e interessada chamadadiálogo, à qual você falou quando se endereçou amim, então também você não está no lugar que vocêpensava. E essa é a crise social, política e pedagógi-ca provocada se eu ouso recusar-me a fazer dos in-teresses que subjazem à relação dialógica os meuspróprios interesses.

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ENSINANDO: AS COISASNÃO SÃO O QUE PARECEM

E se a relação entre o currículo e a compreensãodo estudante não puder ser desenhada como umaestrada linear, de mão única, na qual o currículo de-termina a compreensão? Ou nem mesmo como a ruade duas mãos composta daquelas versões do diálogogovernada por regras nas quais os trajetos acabam seencontrando e, então, alegremente se separam emuma terceira – e mutuamente consentida – direção?Que tal se a relação entre currículo e estudantes fossedesenhada como constituída de oscilações, dobras ereviravoltas, voltas e retornos inesperados?

Gostaria de enfatizar a diferença produtiva entre,de um lado, o pensamento de que nós sabemos oque estamos fazendo como professores – quando, porexemplo, prescrevemos várias versões do diálogo paraensinar sobre e através da diferença social e cultural –e, de outro, a idéia de que o ensino é indecidível.

É isso que quero dizer com “indecidível”: nãopodemos observar, inspecionar ou regular direta-mente os espaços abertos pelos ajustes imperfeitosentre o que os currículos dizem que nós suposta-mente devemos ser e aquilo que na realidade nãonos tornamos. O que impede os professores de ob-ter objetivos pedagogicamente prescritos, como, porexemplo, educar um indivíduo virtuoso em uma boasociedade, é o espaço entre a percepção e a consciên-cia – e esse espaço constitui “um obstáculo à trans-parência” (BAHOVEC, 1993, p. 167). Trata-se de umobstáculo que também (e afortunadamente) “im-pede a possibilidade de vigilância total” (p. 167).

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Ninguém, argumenta Donald (1992), descobriu“exatamente como as normas sociais afetam a textu-ra de nossa experiência ou como elas são transfor-madas nesse processo” (p. 92). Não se trata apenasde que aquilo que ocorre nos espaços entre o social eo individual, entre a percepção e a consciência esca-pa à observação e ao controle direto por parte dosprofessores, (a partir do lado de fora), mas é tam-bém impossível de ser conhecido pelo indivíduo emquestão (a partir do lado de dentro).

Mas nós sabemos que o “entre” que fica entre apercepção e a consciência está lá – mesmo que nãopossamos vê-lo ou controlá-lo:

Nós “sabemos” que os processos culturais ope-ram, rotineiramente, por meio do inarticulado, donão-registrado, por meio do hábito e da “segundanatureza”; nós sabemos porque nós podemos tantoobservar esses processos em outros quanto sur-preender a nós próprios em processos culturaissimilarmente “inconscientes”. Nós também sabe-mos que agimos contra nossas melhores intençõesou fracassamos em fazer o que “queremos” fazer.(O’SHEA, 1993, p. 505)

É aqui que, na análise de Donald, a educação setorna mais parecida com um filme de horror do quecom um programa de notícias.

Nós, professores, não podemos observar direta-mente a desordenada dinâmica do desejo, da fantasiae da transgressão que inevitavelmente descarrilham osconhecimentos e as identidades sociais que nossos cur-rículos oferecem aos nossos alunos – ou a nós próprios.O espaço nos quais eles operam não é transparente.

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É por isso que Donald (1992) estuda os filmesde vampiro. Ao se perguntar quê tipo de instituiçãoé a educação, ele não estuda os filmes instrucionaisproduzidos pela Encyclopedia Britannica. Em vezdisso, fazendo a mesma coisa que se faz em outroscampos, como na psicanálise e na crítica literária,Donald baseia seu trabalho nessa idéia: a rebelde enão-resolvida dinâmica do eu e da sociedade quereina naquele espaço entre a percepção e a cogniçãonão pode ser diretamente observada ou regulada.

Mas essas dinâmicas podem ser acessadas indire-tamente. Pode-se interagir com elas e responder aelas de forma indireta, metafórica, por meio de alu-sões literárias, por meio da diferença entre endereçoe resposta, e por meio dos momentos em que a aná-lise ou o raciocínio briga com a escrita. Elas podemser acessadas indiretamente por meio da atenção àsausências que estruturam o que está presente, pormeio da atenção àquilo que não se ajusta. Podemosir em direção a esse conhecer indireto, metafórico,de acordo com Donald, se prestarmos atenção àsformas culturais populares, especialmente aquelas,como os filmes de horror, que são feitas das sobraslascadas que deixamos para trás, depois de nossasdesordenadas tentativas para ajustar nossos eus àqui-lo que supostamente devemos ser, para ajustar osocial ao pessoal.

Essas sangrentas sobras sobem à superfície (nãomuito) metaforicamente nas partes corporais des-membradas e na violência sexualizada e histérica defilmes tais como Pulp Fiction [Pulp fiction: tempo deviolência], e na obsessão com alienígenas, tal comonos filmes The X Files [Arquivo X]e Independence Day.

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Em Roseanne, os des-feitos e os re-feitos hilariantese cruéis d’A Família como uma Instituição Ameri-cana estão baseados nos desejos, nos medos e nosanseios que são violentamente truncados pelos mi-tos americanos da boa mãe, do bom pai, do bomfilho e da boa filha.

Assim, argumenta Donald, os educadores podemaprender algo sobre educação ao estudar a culturapopular – especialmente os gêneros do horror e dafantasia. Nos filmes de horror e de fantasia, as coisasnão são, nunca, o que parecem. Quando um educa-dor como Donald começa a explorar os significadosda psicanálise para a educação, quando se introduz aidéia de uma outra localidade, de um outro espaço,de uma outra cena – o entre-a-percepção-e-a-cons-ciência – nas discussões sobre conhecimento, apren-dizagem e compreensão, nós estamos excedendo ocurrículo oculto. Não estamos mais falando sobre aoculta ideologia do currículo, que pode ser trazida àluz e determinada por meio da análise. Não estamosmais fazendo perguntas que já anteciparam suas pró-prias e corretas respostas, tais como “o conhecimentode quem é ensinado e a quem beneficia?”. Chegamos,em vez disso, à “rachadura interna” da educação,a qual “não pode ser resolvida” (BAHOVEC, 1994,p. 171). Chegamos à impossibilidade de ajustes per-feitos entre aquilo que um professor ou um currículoquer e aquilo que um estudante compreende; entreaquilo que uma instituição educacional quer e aquiloque o corpo estudantil responde; entre aquilo queuma professora “sabe” e aquilo que ela ensina; en-tre aquilo ao qual o diálogo convida e aquilo quechega sem ser convidado.

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Que ocorreria se não houvesse nenhuma divisãonítida, imposta-por-meio-das-regras-do-diálogo-ou-da-pedagogia-crítica entre “a autoridade da razão eseu outro lado, habitado pelas figuras da loucura,da sexualidade, da morte e do diabólico” (p. 171)?O que ocorreria se

a negatividade não viesse de fora e não pudesseser dispensada? A educação esbarra na impossibi-lidade básica de se colocar um limite relativamen-te ao mal, à perversão que vem de fora e à queadvém de dentro.4 A frágil fronteira é apenas aquelada “volta do parafuso”, pela qual o natural torna-se não-natural e sobrenatural, o virtuoso torna-setotalmente pervertido, o bem-intencionado e pres-crito pelos fins da educação revela uma rachadurainterna que não pode ser resolvida. (p. 171)

A rachadura não possível de ser resolvida den-tro da própria educação, seus perenes fracassospara produzir resultados sociais desejados ou paraproteger suas jovens mentes de suas próprias som-bras e daquelas da sociedade por meio da razão,da compreensão e do diálogo torna a educação,para Freud, uma das profissões impossíveis. Talcomo na psicanálise e no governo, observa Freud,também na educação “ninguém pode estar segu-ro de antemão de obter resultados insatisfatórios[ou satisfatórios]” (FELMAN, 1987, p. 70). Comodiz Donald:

Promessas exageradas sobre a realização da criançae o desenvolvimento da sociedade são incessante-mente quebradas na prática... O eu não pode serperfeitamente adaptado às normas sociais, mesmo

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que por meio de técnicas cada vez mais difundi-das de educação, governo e terapia. (p. 3)

Donald diz que ele se voltou para a psicanálise,esperando, inicialmente, encontrar algumas pistaspara superar os frustrantes fracassos da educação eda política para produzir resultados sociais deseja-dos. Mas o que ele aprendeu, em vez disso, foi “queessa ‘impossibilidade’ é menos uma disfunção doque um signo do necessário fracasso da identidadena psique e no fechamento do social” (1991, p. 8).Sociedades e indivíduos inacabados bem como ajus-tes fracassados entre o social e o individual são ne-cessários para que sejam possíveis a agência, acriatividade, a paixão pela aprendizagem e as trans-gressões – e não a conformidade – relativamente àsrelações de poder.

O que ocorreria se os professores se tornassemtão curiosos sobre a produtividade de nossas continu-amente remodeladas ignorâncias, faltas de ajuste elimitações do saber quanto têm sido sobre a formacomo obter uma compreensão plena e completa?

Somos conduzidos para fora da caverna de Platãopor meio de uma série de desilusões. A forte luzda razão coloca até mesmo nossas sombras paracorrer. Mas à noite, quando nossas vidas nos fa-zem retornar aos sonhos, quem se importa com arazão? (WILLARD, 1993, p. 80)

Nenhuma compreensão? Nenhuma razão? Ne-nhum diálogo? Nenhuma educação? E, entretanto,as pessoas que se localizam e trabalham na rachadu-ra interior do terreno da educação – professores

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dedicados e “críticos” como Donald, Felman, Lacan– ainda assim ensinam, aprendem, lêem, escrevem.

Estou agora ficando curiosa sobre os significadospara mim, como uma educadora, das borradas e per-meáveis fronteiras entre aquilo que os discursos edu-cacionais têm tradicionalmente considerado comosendo o lado de fora (o social, o currículo) e o ladode dentro (a consciência, a cognição, o sentimento).O que se torna inescapável e intrigante para mim éisso: nossas vidas nos fazem retornar ao sonho inclu-sive – talvez especialmente – sob as luzes florescentesde nossas aulas sobre a diferença social e cultural oudas nossas aulas que atravessam a diferença social ecultural. E a forte luz de nossos currículos pode colo-car até mesmo nossas sombras para correr.

Mas enquanto fogem, elas escorregam e dãomeia-volta e se deixam apanhar e se perdem e aca-bam retornando... para serem involucradas em nos-sas vidas conscientes dos momentos de vigília,transformadas pela jornada em algo irreconhecívelainda que familiar e de uma forma estranha – mate-rial novo ainda que antigo, para tornar-se curiosooutra vez, para se sujeitar de forma renovada à forteluz da razão – apenas para ser posto a correr outravez em uma nova e inesperada direção, apenas pararetornar às sombras a partir de um lugar que nãopodemos, nunca, predizer ou imaginar.

Enquanto entretenho essas idéias, ... a educação,da forma como eu tenho sido ensinada a pensar e apraticar, torna-se impossível. E eu decidi, como pro-fessora, perseguir meu desejo em outro lugar.

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Notas1 Na tradução deste artigo, ensaio uma nova forma de lidar

com a questão do sexismo na linguagem. Em vez de utili-zar, por exemplo, “professores/as”, procuro alternar, notexto, entre o masculino e o feminino. Recentemente ouviuma respeitável intelectual, especialista em questões delinguagem e educação, afirmar que “o masculino em por-tuguês é neutro” e por isso não há nenhuma razão paraconsiderar sexista sua utilização generalizada para se refe-rir aos dois gêneros. É, para mim, estranho que pessoassofisticadas em questões de poder, política e linguagemcontinuem isentando a gramática de qualquer cumplici-dade na perpetuação de relações de desigualdade. Pareceque a gramática é o transcendental, irredutível e intocá-vel, das professoras e dos professores de português (ou degramática?). Apesar das dificuldades de lidar com essa ques-tão em uma língua extremamente flexionada como o Por-tuguês, continuo achando que vale a pena tentar encontrarsoluções (N. do T.).

2 Na definição do American Heritage Dictionary (ediçãoeletrônica), camp é “banalidade, vulgaridade ou artificiali-dade, quando deliberadamente afetada ou quando apreci-ada por sua ironia”. De acordo com Susan Sontag (1987),no seu clássico “Notas sobre camp”, “a essência do camp ésua predileção pelo inatural: pelo artifício e pelo exagero”(p. 318). Exemplos de camp: “lâmpadas Tiffany; O lagodos cisnes; óperas de Bellini; King Kong, de Schoedsack;vestuário feminino da década de 20 (boás de plumas, ves-tidos com franjas e missangas, etc.)” (p. 321) (N. do T.).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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WILLARD, N. Telling time: angels, ancestors, and stories. NovaYork: Harcourt Brace: 1993.

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Corpos sem órgãos:esquizoanálise e desconstrução

Marcus Doel

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Não há viagem quenão seja esquizofrênica.

(DELEUZE & GUATTARI, 1966, p. 232)

AURORA DO MORTO

O diagnóstico de “liquidação” demonstra em ge-ral uma ilusão e uma ofensa; ele acusa: eles tenta-ram “liquidar”, eles pensaram que podiam fazê-lo,nós não deixaremos que o façam. O diagnósticoimplica, portanto, uma promessa: nós faremos jus-tiça, nós salvaremos ou reabilitaremos o sujeito.Um slogan, portanto: um retorno ao sujeito, oretorno do sujeito. (DERRIDA, 1988a, p. 113)

Precisamos contar a estória do sujeito e mapearsua trajetória. Como qualquer espécie em risco deextinção, o sujeito deveria ser registrado em termosde sua inscrição genealógica no interior de diferen-tes aparatos sociais, de acordo com sua evolução e

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mutação no interior de uma sucessão de contextospermeáveis e cambiantes. Como um ponto de par-tida, poderíamos fazer uma incursão nas inúmerasdisciplinas e perspectivas em que existe um senti-mento crescente de desconforto e pressentimento arespeito da sorte do sujeito. De fato, pode-se já dis-cernir o esboço de um motivo dominante – o sujei-to como local de catástrofe, acompanhado por umconsenso que se torna rapidamente ossificante: odinamismo do sujeito finalmente se esgotou e estáagora destinado a entrar em um processo de deca-dência terminal. Para muitos, há a convicção de quea catástrofe já ocorreu e de que estamos vivendo emuma zona morta – ou em um período de espera –assombrada pela morte do sujeito. Daí a urgênciateórica, política e ética da questão especulativa: quemvem depois do sujeito? (Topoi, 1988). Haverá um-Outro sujeito, um niilista suicida, uma comunida-de, uma nova forma de esquizofrenia, um ciborgue,uma infestação maquínica, nada, algo inumano ounão-humano? Ou talvez devêssemos tentar reviver,ressuscitar ou rejuvenescer o sujeito a fim de dar-lheuma sobrevida? Além disso: na medida em que afilosofia do sujeito foi sempre apenas um pseudo-começo, um começo que esteve sempre e já em de-clínio, um começo que só serviu para dissimular,marginalizar e reprimir todos aqueles “outros” dosquais derivou seu lugar e seu poder, muitos autoresaceitaram e internalizaram jubilosa e prontamente amorte, a dispersão e a liquidação do sujeito: o sujeito,que horror! Muitos, entretanto, continuam incrédu-los frente a essa hipérbole. E, contudo, caso se trate,de fato, do declínio terminal do sujeito, podemos

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apenas esperar que no rastro deixado pelo sujeito,algo mais desejável possa finalmente ter a chance deocorrer: lance de dados.

Ao considerar a sorte do sujeito, o discurso do-minante tem sido um discurso de catástrofe e exaus-tão, um discurso que se tornou associado, em geral,com o advento do pós-estruturalismo e do pós-modernismo e, em particular, com a obra de LouisAlthusser, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, JacquesDerrida, Michel Foucault, Jacques Lacan e Jean-François Lyotard (DEWS, 1987; HARLAND, 1987;LAWSON, 1985; MEGILL, 1985). Alguns poucos ten-tam deleitar-se com o que eles percebem como sen-do as conseqüências apocalípticas de uma formavirulenta de anti-humanismo (KROKER E COOK,1988; LAND, 1992). Muitos mais se envolvem emuma nostalgia e em uma lamentação por aquilo quefoi perdido, com freqüência entregando-se a umabusca heróica pela restituição do sujeito por meioda sua re-alocação, da sua reabilitação e da sua re-construção (ROSEN, 1987; SOPER, 1986). Finalmen-te, tem havido uma série de tentativas de literalmentecorporificar o sujeito, seja por meio da introduçãode uma série de substitutos que tomariam o lugardo sujeito ou então por meio de um enquadramen-to desse etéreo termo em uma variedade de partescorporais: pele, rosto, órgãos genitais, mãos, olhos,pés. No rastro deixado pelo sujeito, tornou-se outravez possível situar corpos humanos que vivem e querespiram (NICHOLSON, 1990). Em suma,

o corpo não é mais o obstáculo que separa o pen-samento de si próprio, aquilo que tem que ser

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superado para se chegar ao pensamento. É, aocontrário, aquilo no qual o pensamento mergu-lha, a fim de chegar ao impensado, isto é, à vida.(DELEUZe, 1989, p. 189)

No rastro deixado pelo sujeito tem havido, pois:alegria, lamentação, nostalgia, restituição, ressurrei-ção, substituição e corporificação. O que une cadauma dessas respostas é o fato de que elas estão to-das baseadas em algum evento negativo que teriaocorrido ao sujeito abstrato e universal. Em algu-mas versões esse evento negativo é verdadeiramenteapocalíptico, manifestando-se em temas como mor-te, liquidação, dissolução, aniquilamento e desapa-recimento. E na medida em que esse evento negativoconstitui um declínio terminal e irreversível, é inútile inoportuno tentar recuperar um tal sujeito. Daí ainclinação ao pranto, ao riso ou à indiferença. Emoutras versões, o momento negativo é mais modes-to, expressando, em vez de um declínio absoluto,um declínio relativo. Em particular, essas versõessão dominadas pelo sentimento de uma forma desubjetividade danificada, defeituosa, disfuncional oulimitada. Especificamente, nessas versões, o sujeitoé – por meio de uma série de constrições – encolhi-do: pelos arranjos maquínicos que o constroem e oanimam; pelos discursos que circulam através dele;pelas linguagens que o ocupam; pelos desejos que omovem; pelos poderes que o saturam; e pelo tecidomaterial que o amarra. Em contraste com o anseiopor um sujeito imortal, a-histórico, incorpóreo,universal e abstrato, há uma insistência no fato deque o sujeito é limitado, de que ele é fixado poruma infinidade de aparatos sociais. O sujeito é, com

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certeza, uma máquina, mas uma máquina que émontada e articulada em um lugar apropriado. Alémdisso, da perspectiva de um desejo de escapar ao ca-ráter localizado e finito do humano, essa produçãomaquínica do sujeito contextual é apenas um cons-trangimento. No momento em que se debilita a forçadesse desejo, a singularidade situada torna-se a pró-pria vida. Em outras palavras, o sujeito é o contextono qual ele é produzido: uma-obra-em-processo;uma-obra-como-processo. O sujeito é articulado duasvezes: a produção maquínica de uma máquina pro-dutiva; produzindo, um produto.

O que há por toda parte são máquinas e sem qual-quer metáfora: máquinas de máquinas, com as suasligações e conexões. Uma máquina-órgão está liga-da a uma máquina-origem: uma emite o fluxo que aoutra corta .(DELEUZE & GUATTARI, 1966, p. 7)

Conseqüentemente, sempre que se fala do declí-nio absoluto ou relativo do sujeito, está-se indican-do que o sujeito é despossuído de seu eu. O que édifícil de apreender, entretanto, é que essa despos-sessão ocorre por meio de um duplo movimento:uma vez por meio da re-imersão do “eu” universalnos contextos singulares nos quais ele se expressa;e, outra vez, por meio da re-inscrição do “eu” indi-viduado no interior dos aparatos sociais que o ani-mam e o sustentam. Entretanto, é importante enfati-zar que esse não é um movimento negativo na medidaem que uma negação do sujeito necessitaria ou umanegação da negação (fazendo surgir uma nova posi-tividade por meio da suprassunção [Aufhebung]: achegada de um-Outro sujeito) ou uma forma

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extrema de niilismo que buscaria bloquear e frus-trar um tal efeito de ressurreição. Conseqüentemen-te, é importante insistir que a ex-propriação do su-jeito abstrato e universal é afirmativa e não negativa,para que não fiquemos presos no movimento emespiral das duas linhas de uma tira de Möbius queparecem passar pelo lugar do sujeito. Enquanto aprimeira linha traça a recorrência eterna da constru-ção maquínica, da des-construção e re-construçãodo sujeito (algum sujeito deverá existir), a segundatraça o movimento de uma construção anterior queresulta em uma destruição irreversível (não existiránenhum sujeito). Entretanto, embora essas duas li-nhas pareçam se bifurcar e divergir, com a primeiraprogredindo por meio de investimento e acumula-ção (uma perfeição dialética), e a segunda buscan-do um simples dispêndio sem retorno (morte purae simples), as duas se entrelaçam, realmente, paraespreitar os limites de um duplo vínculo. Seja lá qualdas linhas for seguida, o lugar do sujeito é sempretornado disponível a um-Outro ocupante. Daí o fatode que toda resposta à negação do sujeito é sempreacompanhada pela questão especulativa: quem vemdepois do sujeito? Mesmo na morte, o sujeito sub-sistirá por hipertelia: “Estou – morto” (COURTINE,1988, p. 103). O sujeito vampírico, que horror! Éprecisamente nesse sentido que o declínio do sujeitona teoria social contemporânea continua assombra-do por uma ressureição e pelo retorno do reprimido.Em particular, pode-se observar como a des-cons-trução do sujeito invariavelmente produz um jor-ro de partes do corpo que são, então, reunidas emuma série de corpos fragmentados e subjetividades

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partidas: nacos de carne embrulhados em envelo-pes de pele e carimbados com as marcas da rostida-de. Tentarei, neste ensaio, distinguir esse parcela-mento das partes-do-corpo por meio de umasucessão de combinações e permutações arbitráriasa partir dos Corpos sem Órgãos (CsO) que emer-gem na esteira de uma experiência esquizo-analíticae desconstrutiva. Especificamente, o CsO não é umcorpo fragmentado; não é o resultado fraturado edisfuncional de uma totalidade partida.

Fora da ordem simbólica edipicamente organizadadiz-se que existe apenas um corpo infantil indife-renciado (o OsC: órgãos sem um corpo), traba-lhando em um estado pre-lingüístico de confusãoimaginária entre (a fusão com) o eu e a mãe-ou-tra1... A assim chamada fragmentação exibida pelocorpo “pre-edípico” é, na verdade, a fractalidade deobjetos-parte... não a debilitante falta de uma velhaunidade mas uma capacidade real para uma novaconexão. Não é uma negatividade em contraste coma qual uma plenitude pode ser desejada. É umafaculdade positiva... Um retorno ao corpo semórgãos é, na realidade, um retorno da fractalida-de, uma re-emergência do virtual. Não uma re-gressão: uma invenção. (MASSUMI, 1992, p. 85)

Entretanto, antes de passar ao mapeamento dosujeito esquizo-analítico na desconstrução, gostariade, brevemente, demarcar o terreno da filosofia vam-pírica do sujeito que “continua a viver” até mesmo naesteira de seu próprio declínio – relativo e absoluto.Em particular, quero problematizar a fragmentação, aliquidação e a ressurreição do sujeito universal eabstrato e ressaltar a necessidade de uma afirmação,

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em vez de uma negação, dos movimentos fissíparosque atravessam o lugar do sujeito.

CORPOS FRAGMENTADOS

Fraturado, tudo. Todo passo cai em um vazio.Assim que acabamos de ter uma unidade, ela setorna uma dualidade. Assim que temos uma dua-lidade, ela se torna uma multiplicidade. Assim quetemos uma multiplicidade, ela se torna uma pro-liferação de fissuras que convergem em um va-zio... Em si mesmo, o evento tem apenasextinção. Seu sucesso é sua evaporação na infi-nita interação de seus agitados componentes... Oser é fractal. (MASSUMI, 1992, p. 19-21)

Convencionalmente, supõe-se que o sujeito éidêntico a si mesmo; ele é o ponto – o lugar nomapa – que perdura. Ele é o centro da identidade,estável e inabalável. Embora seja a condição de pos-sibilidade da identidade, da presença e da diferença,o sujeito precede toda identificação, toda apresen-tação e diferenciação. Eu sou, antes que eu seja algu-ma coisa. O sujeito é Um: universal, indivisível eeterno. O sujeito é o sujeito e, portanto, cumpre duasfunções distintas na topografia da teoria social: uni-versalização e individuação. Por um lado, o sujeito éuma figura de universalização na medida em que é ograu-zero da humanidade, o lugar ao qual, de formaindicial, todas as características humanas se referem edeferem (eu sou – sujeito). Em suma, o re-conheci-mento se transfere – por meio dos corpos e faces indi-viduais – para o lugar do sujeito universal. Alémdisso, esse movimento do individual ao universal

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não depende da variação real entre corpos e facesindividuais: há universalização antes que existamindividuações. De fato, o universal é indiferente atoda quantificação. É por isso que a proliferação, ades-diferenciação ou a fragmentação dos rostos edos corpos nunca servirão para problematizar o su-jeito universal: sujeito há. O sujeito é o sujeito. Sozi-nho ele está. E sem uma necessidade de pele, carne, faceou fluido. O corpo nunca é. Os corpos são os inimigos dosujeito. O sujeito é o que resta quando o corpo éretirado; ele é literalmente in-umano (eu sou – mor-to). Por outro lado, o sujeito é também uma figurade individuação na medida em que só pode se ex-pressar por meio de corpos e rostos. O sujeito sóexiste em seus efeitos, na subtração de seus efeitos;sem um corpo ou um rosto através dos quais passar,o sujeito não pode cumprir sua função de universa-lização. Daí a complementaridade e o paradoxo: osujeito exige a individuação a fim de expressar auniversalização; mas existe sempre o risco de que oolhar e o re-conhecimento se apeguem ao corpo, sealojem na carne, se fixem no rosto e submirjam nofluido. Em suma, o tecido material do corpo podefrustrar a passagem em direção ao lugar do sujeitouniversal e abstrato. Daí o fato de que a carne e oscorpos são sempre sedimentados, estratificados eatravessados pelo duplo movimento de universali-zação e individuação que os envelopa com a pele eos carimba com o rosto – eu sou embrulhado emmim; eu sou desembrulhado em você.

No interior da dupla atadura ou do movimentode pinça da universalização e da individuação, um agen-ciamento de aparatos sociais agarra violentamente

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nacos talhados de carne, embala-os na pele, inscre-ve-os com rosto e codifica-os com os estriamentosda raça, da etnia, do gênero, da sexualidade, da clas-se... Entretanto, a produção de sujeitos humanosnão é, nunca, completa; ela é sempre uma obra-em-andamento e um local de experimentação contínua.Daí o fato de que o sujeito humano é sempre umcorpo pleno a advir; ele perdura sem jamais existircomo tal. Ser é devir. Em outras palavras, o sujei-to perdura por meio de um contínuo romper-se,mas esse não é um evento negativo. Como vere-mos adiante com mais detalhes, o pressuposto deque existe um sujeito universal, unitário e centra-do, que poderia ser ou situado, corporificado, frag-mentado, descentrado, des-construído, ou destruí-do é precisamente o que está em questão. De fato, éa filosofia do sujeito que trabalha por meio da iden-tidade, da semelhança e da negação, com sua rígidasegmentação e despótica territorialização de sujei-tos molares (eu = eu = não você). Nesse meio tem-po, a desconstrução e a esquizo-análise afirmam omovimento molecular nas coisas.

Conseqüentemente, as identidades molares nãoestão aí desde o início, como uma enfiada de pleni-tudes ou de plenipotenciários que poderiam ser se-letivamente atualizados em eventos particulares ouque poderiam acabar se embrulhando em uma sé-rie de complicações, contaminações ou confusõeslabirínticas. Pelo contrário, elas são anexadas, comose fossem outras tantas próteses dendríticas, àcongestionada massa de fluidas multiplicidades, a fimde deter os devires, regular o movimento e impor aestabilidade. E como todos os agregados molares, o

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sujeito é arranjado, é montado, como uma inter-rupção e uma derivada dos fluxos que o animam, osustentam, o atravessam e o descarregam. Em suma,as identidades molares perduram e entram em co-lapso por meio do tartamudear e do gaguejar deuma palavra-de-ordem: “Parado lá!”.

A molaridade é modo de desejo, assim como é qual-quer movimento que se afaste dela... É uma ques-tão de força: é uma sobreposição categórica, umaimposição avassaladora de efeitos regularizados.Pelo fato de constringir ações a uma gama limita-da, é inevitável que será experienciada pelo corpoexcessivamente codificado como uma constriçãofísica. O devir começa como um desejo para fugirda limitação corporal. (MASSUMI, 1992, p. 94)

É pouco surpreendente, pois, que o CsO devatão freqüentemente experienciar os aparatos maquí-nicos para impor identidades molares sobre os mo-vimentos moleculares como se fossem outros tantosinstrumentos de tortura. Entretanto, é vital com-preender que o desejo de fugir da molaridade é umdesejo de fugir da limitação antes que do caráterlocalizado, da mesmidade antes que da singularida-de. É por isso que Bordo (1990, p. 142-44) equi-voca-se em misturar esquizo-análise e desconstruçãocom “uma fantasia de fuga do caráter localizado”da subjetividade humana por meio “de uma novaimaginação de desmembramento: um sonho de es-tar em toda parte”. A confusão é séria na medida emque desvia a atenção da afirmação para colocá-la nofalso problema do controle quantitativo: sem algunspontos de parada, a fragmentação e a dispersão sem

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fim autodestruiriam e levariam a um apagamentodo corpo em um abismo fractal. Como observouBordo (1990, p. 145): “a apreciação da diferençaexige o reconhecimento de algum limite para a dan-ça, além do qual a dançarina não pode ir”. E, contu-do, um limite à fragmentação é precisamente o que,da perspectiva da filosofia vampírica do sujeito, estáfaltando: o ser ou se desvia para o Nada ou então caiem um devir-imperceptível; enquanto a fragmenta-ção ou acelera-se em uma liquefação ou então se trans-forma em uma fractalização (DOEL, 1993). Daí ainsistência de Rose (1993, p. 79) de que “a críticadeve estabilizar, mas de forma contingente, deve tor-nar os fechamentos arbitrários, apoiar um essencialis-mo estratégico, fazer gestos provisórios”, a fim de lidarcom as “as questões (históricas, sociais): a verdadede quem?; a natureza de quem?; a versão da razão dequem?; a história de quem?; a tradição de quem?”(BORDO, 1990, p. 137). Não obstante, podemos ape-nas fingir a habilidade de localizar e identificar quemvem na esteira do sujeito universal e abstrato, mes-mo que essa linha de questionamento necessariamenteinaugure um retorno do reprimido na medida emque o mesmo imperativo é sempre interpolado nofluxo de eventos: sujeito há. Fica parado lá – quemvem lá? De uma vez por todas, estamos de volta aoduplo nó da universalização e da individuação e dahipertelia do sujeito vampírico.

Como começamos a ver, a fragmentação, a mul-tiplicação e a corporificação não serão suficientespara permitir uma fuga da tirania da filosofia vampí-rica do sujeito. A hipertelia do sujeito é exemplifica-da e assegurada por meio do tartamudeio e da

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gagueira da palavra-de-ordem par excellence: quemvem depois do sujeito? Em vez de reivindicar umeterno retorno do sujeito, o que é necessário é umaexperiência de desconstrução e esquizo-análise a fimde nos sensibilizar para a imóvel viagem sem sair dolugar do CsO: tudo é fluxo, fluir, devir. Em suma,esforçamo-nos por libertar a singularidade da faixade Möbius da fórmula que equaciona universaliza-ção com individuação, a experimentação da faixa deMöbius que equaciona negação com ressureição e acomplicação da faixa de Möbius que equaciona frag-mentação com totalização. Além disso, ao abrir essasestabilizações forçadas para algo inteiramente Outro,surge uma rachadura ao longo da qual um fractal,um cristal ou um câncer podem proliferar, levandoembora todos os fluxos excessivamente codificadosque têm ficado preso no circuito fechado das máqui-nas molares. O CsO pleno cresce nessa rachadura,não em uma massa amorfa e indiferenciada, mas comoum enxame de multiplicidades virtuais, de um ban-do de singularidades e de complicações e invençõesexperimentais. Algo terá finalmente a oportunidadede acontecer; isto é tudo: lance de dados.

VIAJANDO DE FORMA IMÓVEL:SEM SAIR DO LUGAR

Indivíduos ou grupos, somos atravessados por li-nhas, meridianos, geodésicas, trópicos, fusos, quenão seguem o mesmo ritmo e não têm a mesmanatureza. [...] E constantemente as linhas se cru-zam, se superpõem a uma linha costumeira, se se-guem por um certo tempo. [...] Perceber, como

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diz Deligny, que essas linhas não querem dizer nada.É uma questão de cartografia. Elas nos compõem,assim como compõe nosso mapa. Elas se transfor-mam e podem mesmo penetrar uma na outra. Ri-zoma. (DELEUZE & GUATTARI, MP, v. 3, p. 76-7)

O sujeito está em declínio. Ele é um agencia-mento que está continuamente estragando, vazan-do em todas as direções. E contudo o sujeitofunciona; ele reintegra incessantemente tudo quepareceria escapar a suas esferas de influência. Emtoda a parte, trata-se de um acoplamento de fluxosassimétricos: desterritorialização e re-territorializa-ção; codificação e sobrecodificação; des-construçãoe re-construção; tantas articulações duplas e tantosmovimentos de pinça que tornam (o lugar do) su-jeito uma inescapável obra-em-andamento: sujeitohaverá. Mas trata-se também de um local para umainfindável experimentação, complicação e invenção;um local que é, apenas e sempre, atualizado como asingularidade do contexto no qual ele é produzidocomo a superfície de registro. Em relação a essesaparatos sociais, a desconstrução e a esquizo-análisebuscam acentuar e intensificar os processos de des-territorialização, desestratificação e decodificação deforma que eles se separem do circuito do agencia-mento maquínico e se tornem, em vez disso, umalinha de fuga em direção a algo inteiramente Outro.Em outras palavras, a desconstrução e a esquizo-análise de-limitam os fluxos, curto-circuitam as es-triações e misturam os códigos, por meio de umaimóvel viagem que nos leva da identidade à multi-plicidade, da posição ao potencial, do Ser ao De-vir, da arborescência aos rizomas, das constantes

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às variáveis, dos fragmentos aos fractais, dos órgãossem corpos aos corpos sem órgãos e da subjetiva-ção à esquizofrenia.

DESCONSTRUÇÃO:DESESTABILIZANDO O SUJEITO

A fim de remodelar, se não rigorosamente re-fun-dar um discurso sobre o “sujeito”, sobre o qual sesustentará o lugar do sujeito (da lei, da moralida-de, da política – tantas categorias apanhadas namesma turbulência!) deve-se passar pela experiên-cia de uma desconstrução... há um dever na des-construção. Tem que haver, se existe algo como odever. O sujeito, se sujeito deve haver, deve virdepois disso. (DERRIDA, 1988a, p. 120)

Já tocamos em três das mais importantes carac-terísticas da desconstrução: afirmação, movimentoe responsabilidade. Essas características contrastamfortemente com a prevalente e muitas vezes mali-ciosa caracterização da desconstrução como negati-va, estática e irresponsável (MARGOLIS, 1991;MERQUIOR, 1986; ROSEN, 1987). Pois, embora sejaverdade que a desconstrução funciona por meio doindecidível (sem o qual não haveria nem teoria, nempolítica, nem ética, nem responsabilidade), não setrata, de forma alguma, de uma “filosofia da hesita-ção” que permaneça neutra, impassiva e indiferenteao fluxo dos eventos (CENTORE, 1991; CRITCHLEY,1992; MARTIN, 1992). Ao contrário, a desconstru-ção intervém, mas em vez de intervir em uma tentati-va para impor a ordem molar, ela intervém em umesforço para liberar o potencial do corpo pleno sem

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órgãos. Especificamente, ela intervém ao longo daslinhas de força, do desejo e do poder, a fim de ala-vancar e deslocar estabilizações forçadas, transforman-do-as em uma multiplicidade Aberta: “se o todo nãoé ..., é porque ele é o Aberto, e porque sua natureza éa de mudar constantemente, ou de fazer emergiralgo novo, em suma, de perdurar” (DELEUZE, 1986,p. 9). Além disso, a desconstrução não está absolu-tamente confinada à assim chamada “prisão da lin-guagem”, a uma nova onto-teologia ou idealismorejuvenescido do Texto, na medida em que inter-vém nos fluxos materiais e imateriais heterogêneosde toda a história-do-mundo (DERRIDA, 1988b). É,pois, importante distinguir rigorosamente entre, porum lado, uma desconstrução afirmativa e, por outro,uma des-construção reativa (DOEL, 1994a). Enquan-to a primeira afirma o corpo pleno sem órgãos, aúltima esforça-se por recapturá-lo por meio da re-territorialização, da re-estratificação, da sobrecodi-ficação e da subjetivação.

A desconstrução não tem absolutamente nada aver com a catástrofe ou com o apocalipse. Ela não énem niilista nem destrutiva, nem tampouco equivalea uma “dissolução do sujeito” (DERRIDA, 1992, p 7).Em suma, a desconstrução não vem depois que osujeito foi construído, estabilizado e estabelecido.Ela não é nem um investimento especulativo na ne-gatividade – um investimento que tenha como baseuma expectativa racional de um retorno acumulável– nem é uma tentativa de efetuar uma despesa semretorno: ela não é parte de um regime de acumula-ção nem um local de consumo expiatório. Em ou-tras palavras, a desconstrução não encontra seu lugar

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próprio nem numa série dialética de investimentosespeculativos (construção/des-construção/re-cons-trução) nem uma binarização metafísica de despesaabsoluta (construção/destruição) (DOEL, 1992).Qualquer esforço para des-construir, desmantelar oudestruir pode, apenas e sempre, ser uma catástrofesimulada, na medida em que seu único efeito dis-cernível consiste em fornecer os recursos necessári-os exigidos para uma re-construção. Como já vimos,a questão “quem vem depois do sujeito?” exempli-fica esta hipertelia por meio da qual a filosofia dosujeito “continua a viver” a despeito da total exaus-tão de seus recursos.

Em contraste com o risco fingido da des-cons-trução reativa que é sempre avalizada por uma ga-rantia de re-construção e ressurreição dialética, adesconstrução afirmativa segue os movimentos dedesestabilização que atravessam o (lugar do) pró-prio sujeito; ela afirma a iterabilidade, a alterabili-dade e a alteridade do Mesmo. Conseqüentemente,a desconstrução está menos preocupada em pertur-bar, desmantelar e destruir o sujeito do que em tra-zê-lo para o Aberto que está sempre e já perturbandoe ameaçando sua consistência, coerência, estabilida-de e pertinência. Em suma, a desconstrução afirma adesestabilização em movimento que Abre o (lugar do)sujeito àquilo que é inteiramente Outro. Da perspecti-va do organismo molar, dos aparatos sociais de captu-ra e dos estratos codificados, esses movimentosaparecem como um colapso catastrófico e um declínioterminal, mas da perspectiva dos fluxos moleculareseles fornecem linhas expedientes de desarticulação ede fuga em direção a algo inteiramente Outro:

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experimentação, complicação, invenção e singularida-de. Mas quem vem depois do sujeito?

A fim de desenvolver essa questão ao longo delinhas topológicas (“Qual é o lugar do sujeito?”),seria necessário, talvez, renunciar ao impossível,isto é, tentar reconstituir ou reconstruir o que jáfoi desconstruído (e que, além disso, desconstruiua “si próprio”, uma expressão que resume toda adificuldade). (DERRIDA, 1988a, p. 114-5)

A insistência de Derrida em um retorno ao (lu-gar do) sujeito e um retorno do (lugar do) sujeitosurpreenderá, sem dúvida, àqueles que gostariamde acusar a desconstrução de defender sua morte,sua dispersão e sua liquidação. Ao contrário, na des-construção, o sujeito é precisamente aquilo que evi-ta todos esses momentos de negatividade, decatástrofe e de apocalipse que tão prontamente im-plantam-se na leitura equivocada da desconstruçãocomo uma des-construção arquitetônica: desman-telamento, desarranjamento, fragmentação, desin-tegração, esquartejamento, desmembramento,decomposição, dissolução etc.

Não se trata absolutamente de um corpo despe-daçado, esfacelado, ou de órgãos sem corpo(OsC). O CsO é exatamente o contrário. Não háórgãos despedaçados em relação a uma unidadeperdida, nem retorno ao indiferenciado em rela-ção a uma totalidade diferenciável. (DELEUZE &GUATTARI, MP, v. 3, p. 28)

Em outras palavras, a desestabilização em movi-mento que atravessa o (lugar do) sujeito não nos

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faz retornar a uma massa amorfa, indiferenciada ouhomogênea (um estado de confusão empírica). Emvez disso, ela nos leva para além do molar e do mo-lecular, em direção à alteridade e à singularidade.Portanto, ao fato de que o CsO deve ser criado;trata-se sempre de um corpo pleno a advir. É porisso que o CsO nunca pertence a qualquer agrega-do molar, menos ainda a um indivíduo; trata-se sem-pre de um corpo em ex-apropriação, tanto nomádicoquanto rizomático, curto-circuitando, misturandoe levando embora todas as pretensões à proprieda-de. Em outras palavras, quanto tudo é levado em-bora, não resta nada a não ser uma distribuição dehecceidades, de singularidades e de eventos. Entre-tanto, é vital compreender que a intensidade zerodo CsO não é um momento negativo em relação aalguma Unidade ou Totalidade positiva. Pois parahaver um momento negativo, um momento negati-vo no qual um sujeito ou um organismo cairia, de-veria já haver algo arranjado no lugar. Mas o sujeitoe o organismo não são absolutamente constantes (porexemplo, a equação fechada: eu=eu=não você). Elesnão estão tampouco estabilizados em si mesmos,nem fixos no lugar. Conseqüentemente, a genealo-gia do sujeito não pode ser mapeada como se fossea trajetória de uns tantos átomos circulando em umespaço-tempo quatridimensional, com suas veloci-dades e trajetórias, atrações e repulsões, fusões e fis-sões, órbitas e quantas. Ao contrário, o sujeito éuma variável em uma modificação contínua e Aber-ta (por exemplo, a equação aberta: ...+y+z+a...).Em suma, o sujeito não deve ser entendido nemcomo um universal, nem como um indivíduo, mas,antes, como uma multiplicidade virtual.

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O universal, na verdade, nada explica; é o uni-versal que precisa ser explicado. Todas as linhas sãolinhas de variação que não têm sequer coordenadasconstantes. O Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objeto,o sujeito não são universais, mas processos singula-res – de unificação, totalização, verificação, objeti-vação, subjetivação (DELEUZE, 1992, p. 162).

É por isso que o sujeito é sempre tanto umaobra-em-andamento quanto um aparato social, so-frendo a contínua variação do Devir-Outro pormeio de uma viagem no lugar, de uma viagem imó-vel. Ele é, portanto, tanto nomádico (sem casa ourefúgio) quanto rizomático (sem raízes ou ancora-gem). Em suma, o sujeito perdura por meio dacontínua variação da ex-apropriação e do Devir-Outro. Esquizoanálise.

ESQUIZOANÁLISE: CORPO SEM ÓRGÃOS

Temos tantas linhas enleadas em nossas vidasquanto as que temos nas palmas de uma mão.Mas nós somos complicados de uma forma dife-rente... a esquizoanálise, a micropolítica, o prag-matismo, a diagramática, a rizomática, acartografia não têm outro objetivo do que o es-tudo dessas linhas, em grupos ou em indivíduos.(DELEUZE, 1983, p. 71-2)

Destruir, destruir: a esquizoanálise tem que pas-sar pela destruição, fazer toda uma limpeza, todauma raspagem do inconsciente. [...] Destruir cren-ças e representações, cenas de teatro. E não há mal-dade que chegue para cumprir essa tarefa(DELEUZE E GUATTARI, 1966, p. 325, p. 328).

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Frente a isso, a ênfase que a esquizoanálise colo-ca na destruição pareceria alinhá-la com o reativo emvez de com a desconstrução afirmativa, mas essa incli-nação seria equivocada (BOGUE, 1989; MASSUMI, 1992;PEREZ, 1990). Pois, exatamente da mesma forma quea desconstrução afirmativa deve ser distinguida da des-construção reativa, assim também deve a destruiçãoesquizoanálitica ser diferenciada da destruição para-nóica. Uma vez mais, descobriremos que a esquizoa-nálise não é nem negativa, nem catastrófica, nemapocalíptica, nem expiatória. Tal como a desconstru-ção, a esquizoanálise afirma a eterna recorrência daviagem imóvel, da viagem sem sair do lugar, da deses-tabilização sempre em movimento e da contínua vari-ação das multiplicidades proliferantes – o CsO pleno.De forma similar, a esquizoanálise não é neutra, im-passiva ou indiferente aos aparatos sociais de capturaque impõem variados graus de estabilização à fluidezheterotópica dos eventos singulares; ela intervém a fimde liberar um CsO pleno. Em suma, tanto a descons-trução quanto a esquizoanálise ativam multivariadaslinhas de perburbação, agitação e comoção no (lugardo) sujeito a fim de afirmar a alteridade do Mesmo.O (lugar do) sujeito é sempre e já uma multiplicida-de apinhada; o local de um CsO pleno: “há toda umageografia nas pessoas” (DELEUZE & PARNET, 1988,p. 10; DELEUZE, 1988).

Existem muitos tipos de linha que atravessam o(lugar do) sujeito. Algumas delas se embaraçam econvergem para formar nós, redemoinhos e vórticesde relativa estabilização, juntando tudo que flui paraseu meio em agregados molares. Esses agregadospodem, então, ser convocados pela ordem molar para

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mais experimentação e complicação: reconstrução,reprodução e rearticulação. Nesse meio tempo, ou-tras linhas se soltam desse emaranhamento e emba-raçamento, provocando movimentos de relativadesestabilização que traçam linhas de fuga, desapa-rição e desterritorialização. Os agregados se divi-dem, se molecularizam e se decompõem em umCsO. Mas que tipo de CsO emerge desse viajar imó-vel? Para lidar com essa questão, é necessário distin-guir entre três tipos de linha. Em primeiro lugar,existem linhas de segmentaridade rígida que confi-nam o movimento em células específicas, em agre-gados molares e em territórios distintos. Esse tipode linha age por meio de uma infindável laceraçãodo CsO, escavando células, estratos, regiões e iden-tidades por meio de divisão e bifurcação: casa, fa-mília, estado, fábrica, comunidade, rosto etc. Emsegundo lugar, existem linhas de segmentaridade mo-lecular, as quais produzem segmentos flexíveis, umfluir molecular e desestabilizações em movimento,as quais são distribuídas de uma maneira inteira-mente diferente; elas se abrem em pequenas fratu-ras, linhas dissimuladas de desorientação edesarticulação e partículas irreconhecíveis. Em suma,uma célula começa a se distanciar de seu metabolis-mo usual, um fluxo repentinamente transborda seucanal ou um programa momentaneamente perdeseu código. Mas a coisa importante a observar éque esses desvios e distanciamentos permanecemrelativos na medida em que a ordem pode apertaro torniquete sobre eles por meio de reinvestimen-to, reintegração, reconstrução e sobrecodificação;eles permanecem relativos enquanto a ordem

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molar puder capturá-los em um novo segmento,estrato ou código. Por exemplo, de vez em quando,por meio de um novo lançamento dos dados, umevento curtocircuita os segmentos, as estriações eos códigos da raça, da classe, do gênero e da sexua-lidade, por meio de um devir-clandestino, imper-ceptível e acategórico; mas essa fuga momentâneade desterritorialização absoluta – uma vez detectadapelo aparato molar – será submetida ao torniquetecom a plena força da Lei e confinada em uma novaidentidade. Parado! – quem vem lá? Em suma, aordem molar assegura que a possibilidade e a forçada anomia e da transgressão será neutralizada e con-tida sob a curvatura assintótica da anomalia estatís-tica: tudo será explicado como constituindo umaquantidade determinada de desvios-padrão da dis-tribuição normal do Mesmo (BAUDRILLARD, 1990;DOEL, 1994b). Da perspectiva da molaridade, nãoexiste mais qualquer lado de fora, mas simplesmen-te eventos e ocorrências que ainda não foram reco-nhecidos e integrados na distribuição normal de umaeconomia do Mesmo. É por isso que a ordem mo-lar é irredutivelmente despótica e paranóica na me-dida em que ela acredita que tudo cai na suajurisdição e nas suas esferas de influência. “A cadainstante, a máquina rejeita rostos não-conformes oucom ares suspeitos. Mas somente em um certo nívelde escolha. Pois será necessário produzir sucessiva-mente desvios padrão de desviamento para tudoaquilo que escapa às correlações biunívocas [...]”.Em suma, a molaridade “jamais detecta as partícu-las do outro, ela propaga as ondas do mesmo até àextinção daquilo que não se deixa identificar [...]”

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(DELEUZE & GUATTARI, MP, v. 3, p. 44-5, 45-6). Daío fato de que o (lugar do) sujeito é tecido e trança-do por meio do emaranhamento desses dois tiposde linha: uma molecularização do molar e umamolarização do molecular. Na verdade, as funçõesde molaridade funcionam por meio da dupla arti-culação e de um espiralamento tipo Möbius de des-territorialização e reterritorialização, desestabilizaçãoe re-estabilização; decodificação e sobrecodificação;amaciamento e estriação. O que importa à ordemmolar é que – por intermédio de uma contençãoque é imposta por quaisquer meios que forem ne-cessários – todos esses movimentos de desestabili-zação continuam relativos. Em suma, limites econstrições são interpolados sobre o CsO pleno afim de deter, canalizar, interromper e avariar o de-vir. Enquanto as lacerações molares estão para sem-pre inclinadas a fatiar o (lugar do) sujeito em umapolpa desmembrada, fragmentada e dispersa, osmovimentos moleculares podem ser sempre arran-jados a fim de levar os restos de volta aos aparatosmolares para uma perpétua reciclagem.

A cumplicidade potencial da segmentação mo-lar e da segmentação molecular permite-nos cla-rificar o significado do último tipo de linha: aslinhas de fuga. Essas linhas se soltam do espirala-mento tipo Möbius da segmentaridade molar eda segmentaridade molecular, desarticulando osestratos e misturando os códigos à medida que eleslevam embora eventos singulares para uma dester-ritorialização absoluta: fluido em estado puro, es-correndo sobre o CsO, sem limitação ou interrupção.O CsO pleno é aquilo que resta quando tudo foi

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tirado; intensidade=zero (eu sou outro). Trata-sedo plano de consistência sobre o qual as viagensimóveis fatalmente se aproximarão assintoticamen-te. À questão “quão longe pode o demasiado longeir?”, a esquizoanálise sugere que um corpo nuncapode ir demasiadamente longe com a desterritoria-lização, desestratificação e decodificação dos fluxos.A dificuldade, entretanto, reside em saber de queforma melhor se pode atravessar o (lugar do) sujei-to, com seu envelope de pele, sua cobertura de ros-to e seu amálgama de carne. É relativamente fácilproduzir um CsO vazio ou descosido por meio deuma desestratificação demasiadamente violenta, ouum CsO drogado, paranóico e suicida, por meio deum ódio dos órgãos, ou mesmo um CsO totalitá-rio, canceroso e viral que ataca os órgãos e faz pro-liferar segmentos molares e moleculares redundantespor todo lado. Desmantelar a si mesmo por meiode um processo esquizofrênico de dessubjetivaçãotem seus perigos: “O pior não é permanecer estrati-ficado – organizado, significado, sujeitado – masprecipitar os estratos numa queda suicida ou de-mente, que os faz recair sobre nós, mais pesados doque nunca” (DELEUZE & GUATTARI, MP, v. 3, p. 23-4).Conseqüentemente, o CsO pleno só pode ser abor-dado por meio de uma experimentação e uma com-plicação cautelosas no interior de contextossingulares. Em cada ocasião, deve-se perguntar:

1. Quais são seus segmentos rígidos, suas máqui-nas binárias e sobrecodificadoras? Pois mesmo essasnão lhe são dadas prontas, nós não somos simples-mente divididos por máquinas binárias de classe, sexoou idade: existem outros que nós constantemente

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mudamos, inventamos sem nos dar conta. E quaissão os perigos se explodimos esses segmentos deforma demasiadamente rápida? [...] 2. Quais sãosuas linhas flexíveis, quais são seus fluxos e limiares?Qual é seu conjunto de desterritorializações relati-vas e reterritorializações correlativas? E a distribui-ção de buracos negros [...] na qual uma besta espreitaou um microfascismo prospera? 3. Quais são suaslinhas de fuga, nas quais os fluxos são combinados,nas quais os limiares alcançam um ponto de adja-cência e ruptura? São ainda toleráveis ou já ficarampresos em uma máquina de destruição e autodes-truição que pode reconstituir um fascismo molar?(DELEUZE, 1993, p. 253-4).

Em suma, é importante clarificar que a esquizo-análise não reside em elementos, agregados, órgãos,sujeitos, relações, fragmentos ou estruturas. Ao con-trário, seu lugar é apenas o dos lineamentos que atra-vessam toda a ordem molar, percorrendo osindivíduos assim como os grupos: uma prolifera-ção e uma invaginação das linhas; o “esquize” daesquizoanálise é traçado pelo “passeio ao acaso” deum fractal de dimensão infinita e porosidade imen-surável – um fractal de encher o espaço. Como umaobra-em-andamento, o lugar do sujeito é um lugarde embaraçamento interminável: “a única unidadesem identidade é do fluxo-esquize, do corte-fluxo.O elemento figural puro [...] que nos leva até àsportas da esquizofrenia como processo” (DELEUZE

& GUATTARI, 1966, p. 254). É nesse sentido que o(lugar do) sujeito é ex-apropriado por meio de umaimóvel viagem, de uma viagem sem sair do lugar,fluindo sem interrupção e jorrando sobre a superfície

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de um CsO pleno. A esquizoanálise e a desconstru-ção simplesmente esforçam-se por desestabilizar, des-carregar e curto-circuitar as forças, os desejos e ospoderes que se esforçam por capturar, estabilizar elimitar esses fluxos no interior de uma pletora deaparatos sociais e organizações molares. É poucosurpreendente, pois, que o sujeito maquinicamenteagregado está fadado a se des-organizar, a se deses-tratificar, a se fragmentar e a se despedaçar: “O cor-po é a superfície inscrita dos eventos, traçada pelalinguagem e dissolvida pelas idéias, o locus de um eudissociado, adotando a ilusão de uma unidade subs-tancial – um volume em desintegração” (FOUCAULT,1977, p. 138). É ao seguir essa desintegração e essadecomposição do organismo humano – com suacarne estriada, com seu envelope de pele e sua co-bertura de rosto – ao longo das linhas de desterrito-rialização que somos levados em direção ao CsOpleno. Mas, como vimos, esse Corpo não é um re-torno ou uma regressão. Ao contrário, o Corpo ple-no está sempre por chegar; é aquilo que resta quandotudo é tirado: intensidade zero. É um Devir em es-tado puro, para além da dupla prisão e do espira-lamento tipo Möbius da universalização e daindividuação; decodificação e sobrecodificação; des-territorialização e re-territorialização. Em outras pa-lavras, as linhas de fuga fazem com que a produçãomaquínica de sujeitos humanos passe da fragmenta-ção paranóica para a fractalização esquizofrênica: nadaa não ser movimento, nada a não ser fluxo. Elas le-vam os fluxos ossificados conservados no interior do(lugar do) sujeito para o contexto Aberto da inteirahistória-real-do-mundo, estrangulando hierarquias

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arborescentes e instituindo rizomas intrincados àmedida que se movem: complicação, experimenta-ção, invenção, singularidade, alteridade.

Como a figura fissípara sem limite por excelên-cia, o fractal é o motivo perfeito para a esquizoaná-lise, a desconstrução e o CsO pleno. Entretanto, odesejo por organização e o poder para impor limi-tes arbitrários à fissiparidade não deveriam ser su-bestimados. Na verdade, quando examinamos oabismo fractal, a maioria de nós intuitivamente sacaaquilo que Deleuze e Guattari (MP, v. 3, p. 74) cha-mam de “a terrível Luneta de raios”, que serve não“para ver, mas para cortar, para recortar”. Sua açãode corte age sobre “os movimentos, as manifestaçõessúbitas, as infrações, perturbações e rebeliões que seproduzem no abismo” (MP, v. 3, p. 73) a fim de res-taurar “a ordem molar por um instante ameaçada. Aluneta para recortar sobrecodifica todas as coisas; tra-balha na carne e no sangue, mas é apenas geometriapura [...]” (MP, v. 3. p. 73). Além disso, os estratos,segmentos e códigos que ela escava do CsO forçamos movimentos moleculares a se juntar em agrega-dos molares: uma verdadeira Geologia da Moral.Você será um ou outro, ou outro, ou...: “Os estratoseram juízos de Deus, a estratificação geral era todoo sistema do juízo de Deus (mas a terra, ou o corposem órgãos, não parava de se esquivar ao juízo, defugir e se desestratificar, se descodificar, se dester-ritorializar)”, a caminho da proliferação assubjeti-va, assignificante e acategórica do CsO pleno(DELEUZE & GUATTARI, MP, v. 1, p. 54).

À medida que a capacidade de sustentação do(lugar do) sujeito aproxima-se do zero absoluto, com

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uma hemorragia de fluxos anteriormente estabiliza-dos em todas as direções, há uma tendência de am-bos a se recolher dos CsOs vazios e a se abster deproduzir um CsO pleno. Em vez de se arriscar aexperimentar com linhas de fuga, há uma tentativageral a revigorar e a rejuvenescer a ordem molar:alguns temem perder os agregados molares; outrosbuscam impor segmentos flexíveis sobre o fluxomolecular; outros exigem que todo o terreno sejaestabilizado por meio da sobrecodificação; enquan-to outros ainda transformam as linhas de fuga emuma paixão pela destruição. Em particular, a decom-posição do (lugar do) sujeito tem feito com quemuitos se apeguem ao rosto do Outro como umaforma de cultivar “um sujeito-ético-em-processo”(KEARNEY, 1988, p. 365; CRITCHLEY, 1992). Mas aprodução maquínica da rostidade é precisamente oaparato molar por excelência, que serve para imporondas de mesmidade sobre um plano de hecceida-des, eventos e singularidades. “O quanto se é tenta-do a se deixar prender aí [ao buraco negro dasubjetividade, da consciência e da memória, do ca-sal e da conjugalidade], a ser embalado aí, a se agar-rar a um rosto... [...] Rosto, que horror [...]” (DELEUZE

& GUATTARI, MP, v. 3, p. 56, p. 61). Em contrastecom essa ânsia por identificação e reconhecimentomolar, a desconstrução e a esquizoanálise intervêma fim de desmantelar os aparatos de captura queconstroem e animam o sujeito, o corpo e o rosto, aoreterritorializar, reestratificar e sobrecodificar os flu-xos moleculares. Elas esfolam os autômatos, os si-mulacros e as aparições que assombram o (lugardo) sujeito a fim de afirmar o CsO pleno. Seja lá ondeestivermos, nunca poderemos ir demasiadamente

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longe ao longo das linhas de fuga que vão em dire-ção à desterritorialização absoluta. Na verdade, o (lu-gar do) sujeito fica inundado com essas modalidadesde desaparecimento que se Abrem para a imóvel via-gem do Devir-outro. Na verdade, até mesmo o rostodo Outro é, antes e sobretudo, uma superfície cheiade furos. Entretanto, qual linha de fuga seguir emqualquer contexto particular de estabilização forçadasó pode ser determinado por meio de um lançamen-to de dados. Sacode. Chacoalha. Deixa rolar.

NOTA DO TRADUTOR

1 No original, “mOther”.

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A dobra:psicologia e subjetivação

Miguel DomènechFrancisco Tirado

Lucía Gómez

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O MITO DA INTERIORIDADEEM PSICOLOGIA

Há mais de duas décadas as ciências sociais as-sistem à morte do Sujeito. Sob a rubrica “crise doeu”, critica-se e rejeita-se a definição de um sujeitouniversal, estável, unificado, totalizado e totalizan-te, interiorizado e individualizado. Há já mais devinte anos que o sub-jectum não é o sol em torno doqual gira nosso pensamento social. Em seu lugar,apareceram novas imagens. Fala-se de subjetividadedistribuída, socialmente construída, dialógica, des-centrada, múltipla, nômade, situada, de subjetivi-dade inscrita na superfície do corpo, produzida pelalinguagem, etc. Nessa mudança, o psicológico aban-dona o espaço privado e intransferível das psiquesindividuais para alojar-se nas encruzilhadas e nasruelas que marcam o estar-no-mundo com outrosseres humanos (KVALE, 1992).

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Esta crise do eu1 possui, certamente, amplas raí-zes e uma gestação complicada. Para acompanhar,de forma breve, essa linha genealógica, observemospor um momento o que diz o senso comum. Deacordo com o senso comum, pretender que o psi-cológico não é uma questão individual, mas, ao in-vés disso, um evento social, atenta diretamentecontra evidências inquestionáveis. Pensar é algo quediz respeito a nossas cabeças, é algo que produzi-mos, manipulamos à vontade e interrompemosquando nos apetece. O que persiste é a imagem deuma experiência privada, intransferível, inquestio-nável e irrenunciável; trata-se de um dado que defi-ne nossa própria condição humana. Assim, afirma-seque aquilo que nos diferencia dos animais não é maisdo que nossa capacidade reflexiva, a possibilidadede representarmos a nós mesmos como entidadespróprias, a habilidade de sermos conscientes de nossamesmidade. Semelhantes imagens têm raízes emuma longa tradição cultural. Como argumentouTaylor (1989), a tendência a situar em um espaçointerior tudo aquilo que tem que ver com a alma, asubjetividade, o mental, a moral ou a virtude remon-ta a concepções cristãs. Santo Agostinho é o exem-plo mais palpável desse exercício, que adquire suaformulação mais acabada na obra de Descartes. Naobra desse pai da modernidade, é possível encontrara justificação filosófica, more geometrica, para a dis-tinção entre um mundo “interior” e outro “exterior”,em que o primeiro é povoado por conjuntos e sériesde entidades mentais, pensamentos e idéias que,em si mesmas, são independentes do segundo, espa-ço relegado para o material, o inerte e o mecânico.

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Nosso senso comum não fez mais do que converter-se em caixa de ressonância desse diagrama.

Esse esquema tem colocado dois problemas apa-rentemente insolúveis e que têm perseguido a episte-mologia moderna durante dois séculos, continuandoa ocupar uma psicologia que não consegue rompercom a herança cartesiana. Por um lado, quantomaior for a certeza que tenhamos sobre nossa exis-tência mental como mundo interior, mais problemasteremos para não duvidar da existência da realidadeexterior e da verosimilitude de outras mentes pen-santes. O abismo entre o âmbito interior e o exteriorparece alargar-se. Torna-se impossível de ser salvado.Por outro lado, seguir Descartes até o final nos colo-ca na difícil situação de explicar como essas entidadesmentais foram engendradas, produzidas nesse reinosecreto e privado que é nossa interioridade.

Essa concepção do ser humano adquire imedia-tamente, na psicologia, a forma do individualismometodológico, denominador comum de diversosenfoques teóricos. Segundo essa perspectiva, a úni-ca matéria relevante para o investigador são deci-sões privadas tomadas por indivíduos que operamem um exterior mais ou menos hostil e do qual ten-tam extrair a máxima vantagem. Nessa mesma li-nha, o recurso ao cérebro como locus específico daatividade mental não faz mais do que reforçar essedispositivo metodológico ao essencializar os pro-cessos cognitivos e enfatizar o papel desempenhadopelas práticas culturais e pelas produções sociais naconformação do pensamento. A análise do indiví-duo como sendo, essencialmente, um processadorde informações, implica, em primeiro lugar, que os

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processos cognitivos convertem-se no centro da re-flexão científica e, em segundo lugar, que tais pro-cessos estão localizados em nosso interior e sãocapazes, por meio de diversos procedimentos, deserem examinados e descritos (BRUNER, 1990).

DO SER PSICOLÓGICO AO SER SOCIAL

Sem abandonar esse dualismo interior-exterior,refletido em inumeráveis tensões como, por exem-plo, “indivíduo-sociedade” ou “agência-estrutura”,diferentes perspectivas, originadas no interior dasciências sociais, têm insistido na idéia de que é preci-so – para compreender o mental, o subjetivo, a pró-pria identidade – prestar mais atenção ao que ficafora do espaço interior. Não poderia ser de outra ma-neira. Para todas essas perspectivas, a definição de serhumano em termos de “ser social” antes que de “serpsicológico” é tanto o ponto de partida de sua reflexãoquanto a definição de sua própria identidade.

De fato, poder-se-ia dizer que dispomos de umaversão débil e de outra forte para pensar o ser hu-mano como ser social (BAKHURST & SYPNOWICH,1995). A versão débil implica aceitar que nossa iden-tidade toma forma a partir de poderosas influênciasexternas. Noções como as de internalização, educa-ção ou socialização remetem à idéia de que nossoespaço interior se configura a partir do efeito quesobre ele exerce o espaço do social ou do cultural,servindo para definir como a estrutura da sociedadese reflete na estrutura do eu1 e gera indivíduos com-petentes em seus contextos sociais (WIDDICOMBE,

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1998). Nessas versões, a subjetividade pre-existe àsinfluências posteriores. Ela simplesmente recebe sua“forma” do exterior. Ela é in-formada a partir defora. Ao contrário, na versão forte, questiona-se a pró-pria possibilidade de que pre-exista algum interior àmargem de certos processos constitutivos que te-riam sua origem e localização no exterior, no social:

Assim, o processo de internalização não é a trans-ferência de uma atividade externa a um “plano deconsciência” interno pre-existente: é o processono qual esse plano se forma. (LEONTIVEV, 1981,citado em BAKHURST & SYPNOWICH, p. 6)

Essa versão forte pretende uma dissolução defi-nitiva da dicotomia interior-exterior. A superaçãodo abismo que existe entre um mundo privado einterior, de um lado, e um mundo externo e públi-co, de outro, constitui, desde há muitos anos, o ca-valo de batalha essencial dos denominados“construcionismos sociais”. Em todas as suas ver-sões, rejeita-se tanto a possibilidade de uma psiqueisolada e alheia aos contextos socioculturais que aproduzem quanto de uma identidade que molda ein-forma sob a ação de um mundo exterior. Aquiloque chamamos subjetividade não é senão parte dotecido relacional, da trama social nos quais todo in-divíduo está sempre inserido:

Pressupõe-se, em outras palavras, que aquilo quechamamos entidades mentais pertence à discursi-vidade em que se banha – e da qual está em partefeito – todo ser social. Quando se rejeita a dicoto-mia interior/exterior, a “realidade psicológica”

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apresenta-se sob outras características e se abremnovas perspectivas para sua investigação. (DOMÈ-NECH & IBÁÑEZ, 1998, p. 19)

Assim, atividades tradicionalmente consideradascomo próprias do mundo interior aparecem agoradotadas de um caráter eminentemente social e cul-tural: pensar já não é um processo psicológico masum processo de argumentação coletivo (BILLIG,1987); a memória já não é uma possessão indivi-dual mas um bem partilhado, baseado na interaçãocontínua dos membros de uma comunidade deter-minada (MIDDLETON & EDWARDS, 1990). Em suma,o que antes denominávamos mente converte-se emum dispositivo essencialmente retórico. Desse modo,os construcionismos sociais enfatizam o papel de-terminante do lingüístico, do discursivo e do signi-ficado na constituição de nossos mundos mentais:

Em vez de contemplar o estudo do discurso comoum caminho para a vida interior dos indivíduos,seja essa constituída de processos cognitivos, mo-tivações ou algum outro material mental, nós ve-mos as questões psicológicas como construídas epostas em ação no próprio discurso. (EDWARDS &POTTER, 1992, p. 127)

LIMITES DO CONSTRUCIONISMO SOCIAL:O LOGOCENTRISMO

Todas essas propostas compartilham um mes-mo e único centro de gravidade: o “eu” é um relatoque emerge essencialmente a partir das proprieda-des da linguagem, do discurso e/ou do significado.

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Temos um bom exemplo disso em Gergen e Ger-gen (1988, p. 18), uma dupla de intelectuais que sepode considerar como fundadora do construcionis-mo social em psicologia:

Não apenas narramos nossas vidas sob a forma derelato, mas, em um sentido importante, nossasrelações são vividas também em uma forma nar-rativa. (GERGEN & GERGEN, 1988, p. 18)

A subjetividade constitui-se, dessa perspectiva,no uso e elaboração de um complexo de narrativas,discursos, conversações, atos de fala ou significadosque a cultura põe à nossa disposição e que manipu-lamos nas realidades interacionais que habitamos.Entretanto, embora essas análises representem umavanço na denúncia do essencialismo naturalistadominante nas explicações psicológicas, elas fracas-sam em sua concepção do lingüístico e do discursi-vo e, por isso, também na concepção do “social”(DOMÈNECH, 1998). A linguagem, nessas análises,não é mais do que uma espécie de “fala”, negociadaexclusivamente entre indivíduos localizados em umasituação concreta e por meio de significados produ-zidos na interação, também exclusiva, desses indiví-duos. Por um lado, elas apresentam certos elementosque estariam implicados nessa interação: indivíduoshumanos; por outro, apresentam certos recursos lin-güísticos, palavras, relatos, explicações, histórias,atribuições, com os quais se elaboram mensagensque estabelecem intenções, levam à ação, à persua-são e agem sobre outras pessoas. Por um lado, te-mos um canal; por outro, um problema: o êxito oufracasso da interação. Como se pode observar, nada

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de novo: o velho modelo comunicacional. Essaspropostas põem no centro das atividades produto-ras de sentido e significado as relações entre agenteshumanos. Assim, o ser humano é definido de modoacrítico como um agente que se constrói a si mes-mo como um “eu”, dando à sua a coerência de umanarrativa, utilizando e pondo em ação recursos lin-güísticos. Como assinala Rose (1996), o “eu”, en-quanto virtude ou capacidade de narrar-se dediversas maneiras, é implicitamente re-invocadocomo uma exterioridade a esse evento lingüísticoque já está em si mesmo unificado e totalizado. Dessamaneira, essas abordagens acabam mantendo velhosdualismos (sujeito/objeto, natureza/sociedade...),embora seu propósito seja desfazê-los. E apenasaparentemente rompem com a imagem clássica deSujeito, porque não conseguem escapar do logo-centrismo e da circularidade que encerra seu modode entender a conformação da subjetividade.

DELEUZE: SUBJETIVAÇÃO E DOBRA

Basta compreender, e sobretudo ver e tocar asmontanhas a partir de seus dobramentos para quepercam sua dureza, e para que os milênios voltema ser o que são, não permanências, mas tempo emestado puro, e flexibilidades. Nada é mais pertur-bador que os movimentos incessantes do que pa-rece imóvel. Leibniz diria: uma dança de partículasreviradas em dobras. (DELEUZE, 1992, p. 195)

A questão é que é preciso buscar em outro lugara crítica mais radical e a proposta mais alternativa à

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imagem convencional da subjetividade. Neste sen-tido, o pensamento de Deleuze apresenta-se comoum caminho, como uma saída, que nos permitepensar a subjetividade à margem dos pressupostosaos quais a psicologia, sob formas as mais diversas,continua presa. A crítica, para Deleuze, não consis-te em justificar mas em procurar outra sensibilida-de. Para isso, cria, “fabrica” conceitos que rompemcom as modalidades dominantes de pensar e repre-sentar a subjetividade e que são inseparáveis de no-vos perceptos (novas maneiras de ver e escutar) e denovos afectos (novas maneiras de sentir). Conceitose não metáforas, porque a metáfora implica umarelação com algo que já existe, remete a um signifi-cado prévio, enquanto os conceitos atuam comoimagens performativas (BRAIDOTTI, 1995), que nãoreduzem a linguagem a logos, porque mais do quesignificar buscam cartografar futuras paragens,“construir uma região no plano, acrescentar umaregião às existentes, explorar uma nova região, pre-encher um vazio” (DELEUZE, 1996, p. 234). Con-ceitos como hecceidade, corpo sem órgãos, nômade,agenciamento, devir, máquina abstrata, espaço liso,rostidade, território, rizoma, dobra, linhas molares,linhas moleculares, linhas de fuga, que servem paracombater a primazia do verbo ser e, por isso, reme-tem sempre a circunstâncias: em que caso?, onde equando?, como?, e nunca a essências, desenhandouma subjetividade em movimento e continuamenteproduzida. Assim, Deleuze, frente a uma idéia deSujeito essencializado, dotado de uma identidadeunitária, autônoma, privada, estável, de contornos

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fixos, ajuda-nos a perfilar formas de subjetividademúltiplas, heterogêneas, de confins fluidos.

Deleuze efetua uma genealogia da subjetivida-de, na qual analisa os processos de subjetivação. Defato, para Deleuze só existem processos e esses pro-cessos só podem ser processos de unificação, de sub-jetivação, de racionalização. Ele examina a gêneseda subjetividade em um momento e em um nívelanterior à individuação, compreendida como enti-dades do tipo “substâncias” ou “sujeitos”. Ele ten-ta, como assinala Foucault,

Pensar intensidades em vez (e antes) de qualida-des e quantidades; profundidades em vez decomprimentos e larguras; movimentos de indivi-duação em vez de espécies e gêneros; e mil peque-nos sujeitos larvares, mil pequenas palavrasdissolvidas, mil passividades e formigueiros lá ondereinava, ontem, o sujeito soberano. (FOUCAULT,1993, p. 238)

Ele nos mostra, assim, um território povoadode singularidades pré-individuais: intensidades, pro-fundidades, movimentos, sujeitos larvares... A ge-ração de subjetividades não consiste na demarcaçãodos limites de um eu, enclausurado e interior, masna idéia de que ele é o efeito de uma função ouoperação que sempre se produz na exterioridadedesse eu. O sujeito já não é uma unidade-identida-de, mas envoltura, pele, fronteira: sua interioridadetransborda em contato com o exterior.

Deleuze substitui a lógica do ser pela lógica daconjunção, substitui o “é”, que identifica, pelo “e”,que relaciona: a identidade pela multiplicidade. E o

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sujeito seria, portanto, o espaço de conexão ou demontagem, contínua pre-posição, uma dobra do ex-terior. A dobra. Essa figura faz referência a proces-sos, relações de movimento e descanso, capacidadesde afectar e ser afectado, definindo, pois, modos deindividuação que não correspondem a um sujeito eque, por isso, não precisam do recurso a meta-teoriaspsicológicas ou lingüísticas. Como assinala Rose, apartir do próprio campo da psicologia:

O ser humano não é, aqui, uma entidade com umahistória, mas o alvo de uma multiplicidade de ti-pos de trabalho, é mais como uma latitude ou umalongitude na qual diferentes vetores, de diferentesintensidades, se cortam. A “interioridade” que tan-tos sentem-se compelidos a diagnosticar não éaquela de um sistema psicológico, mas a de umasuperfície descontínua, de uma espécie de dobra-mento, para dentro, da exterioridade. (ROSE, 1996,p. 37; cf. ROSE, no prelo)

Assim, a partir das propostas deleuzianas, Rose(1996, 1999) afirma que a imagem de um “eu”1

dialógico defendida pelo construcionismo social éinsatisfatória. Ela oferece apenas uma análise par-cial de nossa realidade social. Do ponto de vista deRose, é preciso resistir à tirania do dispositivo lin-guagem-discurso-significado na hora de pensar asubjetividade. E nesse sentido, a dobra serve paranos deslocar, das anatomias mentais imaginárias elingüísticas fabricadas por nossas ciências sociais,para um universo de fluxos ou linhas de força gera-das nas conexões entre órgãos e objetos ou artefa-tos, entre seres humanos e espaços, entre sujeitos e

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escolas ou oficinas, entre instituições. A subjetivaçãocompreendida como dobra é um processo de agru-pação, de agregação, de composição, de disposiçãoou agenciamento ou arranjamento, de concreção sem-pre relativa do heterogêneo: de corpos, vocabulá-rios, inscrições, práticas, juízos, técnicas, objetos...que nos acompanham e determinam. Na subjetiva-ção, prevalece – relativamente a qualquer objeto totale acabado, evidente, manifesto – a parte molecular,fragmentada, incerta, rompendo, assim, com as ve-lhas dicotomias articuladoras das ciências sociais:

As dobras incorporam sem totalizar, internalizamsem unificar, juntam-se de maneira descontínuana forma de plissês, formando superfícies, espa-ços, fluxos e relações. (ROSE, 1996, p. 37; cf.ROSE, no prelo)

LINGUAGEM, MULTIPLICIDADEE AGENCIAMENTO

Por isso, Rose propõe que o pensamento socialse volte não para o signo ou a comunicação, maspara a analítica dos dispositivos nos quais esse emer-ge como tal, com certo sentido e valor interacional.Nessa analítica, a linguagem seria simplesmenteoutro elemento entre os muitos que compõem osdiferentes agenciamentos ou arranjamentos em quenos vemos implicados.

A subjetivação não se refere tanto à linguagem eàs suas propriedades internas quanto a um agencia-mento ou arranjamento de enunciação. As relaçõesentre signos sempre estão agenciadas, conectadas,

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reunidas, em outras relações. E nossas práticas nãohabitam ou não se localizam em espaços de signifi-cado e negociação entre indivíduos homogêneos,amorfos e assepticamente funcionais. Elas estão sem-pre localizadas em estabelecimentos e procedimen-tos particulares. Se aceitamos que a linguagem estáorganizada em regimes de significação, que, pormeio desses regimes, ela está distribuída em espa-ços, tempos, zonas, estratos e forças, então a cons-trução da subjetividade adquire outra aparência.Perguntas tais como, “quem fala?”, “segundo quecritério de verdade?”, “a partir de quais lugares eespaços?”, “em que relações?”, “agindo de que ma-neira?”, “apoiando-se em que hábitos e rotinas?”,“autorizado de que maneira?”, “sob que formas depersuasão, sanção, mentira e crueldade?”, passamao primeiro plano e delimitam a atividade do pen-samento social. Não se trata de conhecer o signifi-cado de uma palavra, de uma frase, de um relato oude uma narração; nem se trata de saber o que cono-ta ou o que denota. O problema é, antes, com “quê”se conecta, em “quê” multiplicidades se implica, com“quê” outras multiplicidades se junta. Para a análiseda produção de subjetividades, não precisamos desemânticas ocultas, mas do esclarecimento de regi-mes de produção de conexões superficiais. Trata-sede ver o que faz a linguagem, com que ela conecta epara quê. Seus efeitos são apenas uma parte dessatrama. A linguagem não deve ser tomada comomatéria prima e primária na constituição da subjeti-vidade, mas, antes, como parte de um complexomaior. O lingüístico e o discursivo certamente esta-bilizam relações e geram relações, mas não são, em

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essência, questões interacionais e interpessoais. Oque torna possível qualquer relação ou intercâmbioé um regime de linguagem, incorporado em práti-cas que capturam os seres humanos sob diversasformas, inscrevem, organizam, formam a produçãodessa mesma linguagem.

ONDE ESTÃO OS OBJETOS?

É certo que as análises baseadas no discurso e nolingüístico supõem uma proposta que evita a refe-rência a um lugar interior, mas, ao exteriorizar a sub-jetividade, elas nos apresentam um exterior povoadoexclusivamente por seres humanos e suas relações, quesão as entidades que têm o privilégio e o status deexplanans, enquanto que outras entidades, por exem-plo, os objetos tecnológicos, são sempre excluídos etratados como explanandum. Desse modo, o essen-cialismo naturalista é substituído por um essencialis-mo social que não se problematiza e continuajustificando a dicotomia natureza/sociedade.

Para romper com essa dinâmica torna-se ne-cessário praticar uma sociologia simétrica (DOMÈNECH

& TIRADO, 1998), na qual se reconheça que huma-nos e não-humanos formam parte do mesmo cole-tivo. Esta é, sem dúvida, a principal contribuiçãoda Teoria do Ator-Rede (CALLON, 1986; LATOUR,1987; LAW, 1994), nascida, no interior dos estu-dos da ciência, a partir das formulações de MichelSerres. Apesar de constituir uma teorização extre-mamente complexa, se existe algo que possa resu-mir de alguma maneira a contribuição da Teoria

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do Ator-Rede é precisamente sua tentativa de umaredefinição do que significa reflexão social. Emlugar de continuar ampliando a fratura entre ohumano e o não-humano, o social e o natural, aTeoria do Ator-Rede recupera o papel do tecnoló-gico, dos objetos, do natural, nas explicações so-bre questões que se vêm formulando como alheiasa essa classe de elementos: as relações de poder, asdinâmicas institucionais ou a constituição de sub-jetividades, para apresentar apenas alguns exem-plos, aparecem sob uma nova luz ao deixar deconsiderá-los como processos que têm a ver, únicae exclusivamente, com humanos.

Nessa linha, Serres (1994) ao falar, precisamen-te, da dobra, assinala a importância dos objetos,daquilo que não é meramente corporal e/ou huma-no. A dobra permite o mínimo espaço que a vidanecessita para ter lugar: “só habito dobras, sou ape-nas dobras” (SERRES, 1994, p. 47). Para Serres nãoexiste vida humana sem diferença; precisamos deuma dobra para onde nos retirarmos, mesmo queseja apenas por um pequeno lapso de tempo. Con-fundidos permanentemente na coletividade de se-res considerados como animais verdadeiramentepolíticos, perderíamos nossa condição humana. Pre-cisamos de algo que nos permita diferenciar-nos,uma membrana que nos dê um limite. E o que per-mite que apareça a mínima diferença é o caráterobjetual, um pertencimento, uma propriedade. Aodefender essa perspectiva, Serres traz à baila a vidade vagabundos consumados, pobres consumados,carentes de quase tudo. E no “quase” é que está aquestão. Diógenes, São Francisco, Jesus Cristo,

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caracterizados por sua renúncia dos bens materiaisnão podem evitar possuir alguma propriedade, algoque não tenha nada a ver com os demais. O tonel éa propriedade de Diógenes – tomando-se proprie-dade em sua dupla acepção: aquela coisa que é pos-suída e atributo ou qualidade essencial de umapessoa, como a porciúncula, no caso de São Fran-cisco, ou a túnica, no de Jesus Cristo.

Assim, seguindo Serres, podemos dizer que nãoexiste vida humana sem ao menos um objeto. Adobra mínima aparece na relação com um objeto. Asubjetividade, nesse sentido, é sempre um dispositi-vo que exige ao menos a relação com um objeto.Não se pode falar de processos de subjetivação semreferir-se a dobras, mas não se pode falar de dobrassem referir-se ao objetual. Essa perspectiva, poroutro lado, está coerente com a cosmovisão serre-siana, que implica, em uma mesma rede, o mundo,os aparatos e nós próprios:

Podemos dizer que essa harmonia é tão nova sobo Sol? Quando indicava a hora do equinócio e aposição, em latitude, do lugar, o eixo do qua-drante solar escrevia – em nossos tempos, sobrea terra, o solo – alguns resultados que nós atri-buíamos a nós próprios: essa inteligência sutil,temos que chamá-la de própria, de interior a nos-sos neurônios e vinculante de uma sociedade decérebros, ou remetê-la às ferramentas e, portan-to, artificial; ou referi-la ao mundo, que traça,automaticamente, sobre si, a longitude sombre-ada de sua própria luz? Qual das três – cultura,técnica ou natureza – goza dessa função? Esco-lhe, se você se atreve! (SERRES, 1994, p. 125)

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O MOVIMENTO DA DOBRA:POLÍTICA E POÉTICA DAQUILO QUE SOMOS

Pensar os processos de subjetivação como dobraimplica, como vimos, despojar o Sujeito de todaidentidade (essencialista) e de toda interioridade(absoluta) e, ao mesmo tempo, reconhecer a possi-bilidade de transformação e de criação que eles dei-xam aberta. Em outras palavras, a dobra nos permitepensar os processos pelos quais o ser humano trans-borda e vai para além de sua pele, sem recorrer àimagem de um Sujeito autônomo, independente,cerrado, agente... a não ser, precisamente, com baseem seu caráter aberto, múltiplo, inacabado, cam-biante... Agora, o problema já não seria tanto per-guntar-se sobre que tipo de sujeito é produzido, masque pode fazer o ser humano, que capacidade de afec-tar e de ser afectado tem em um dispositivo concre-to. Essa capacidade não é tampouco uma propriedadeda carne, do corpo, da psique, da mente ou da alma.É, simplesmente, algo variável, produto ou proprie-dade de uma cadeia de conexões entre humanos, ar-tefatos técnicos, dispositivos de ação e pensamento.É nessa direção que vão as palavras de Serres:

Quem somos? A intersecção, flutuante em funçãoda duração, dessa variedade, numerosa e muitosingular, de gêneros diferentes. Não deixamos decoser e tecer nossa própria capa de Arlequim, tãomatizada ou tão disparatadamente colorida quan-to nosso mapa genérico. Não tem sentido, pois,defender com unhas e dentes um de nossos per-tencimentos; o que se deve, ao contrário, é multi-plicá-los, para enriquecer a flexibilidade. Façamos

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farfalhar ao vento ou dançar como chama a ban-deira multicolor do mapa-documento de identi-dade (SERRES, 1994, p. 200).

Neste ponto, é necessário ressaltar que precisa-mente o conceito de dobra é utilizado por Deleuzepara explicar a possibilidade – lançada por Fou-cault em seus dois últimos livros – de um si mes-mo constituído como núcleo de resistência frentea poderes e saberes estabelecidos. Foucault, assi-nala Deleuze (1991), depois de haver analisado asformações de saber e dos dispositivos de poder,isto é, os estados mistos de poder-saber que nosconstituem, vive um impasse, em que se coloca apossibilidade de ir além do poder-saber, de passaro limite prescrito pelo nexo poder-saber, de “pas-sar para o outro lado”. Assim, os volumes II e IIIda História da sexualidade assinalam um ponto deinflexão, de transição, na obra foucaultiana, por-que, sem renunciar à sua concepção do sujeito comoforma constituída historicamente e não como nor-ma constituinte, ele concebe os processos de sub-jetivação como ensaio, como processo ético eestético que busca produzir modos de existênciainéditos. E é aqui que Deleuze, leitor de Foucault,recria o conceito de dobra para explicar os proces-sos de subjetivação como modificação dos limitesque nos sujeitam, para nos reconstruir com outrasexperiências, com outra delimitação.

Modificação dos limites que nos sujeitam, quenos convertem em sujeitos, possível na medida emque a dobra nos mostra um cenário diferente àque-le ao qual a oposição interior/exterior nos remetia.

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O movimento da dobra tem lugar entre um lado dedentro e um lado de fora que não equivalem a uminterior e a um exterior, marcando um território erelações completamente distintas. Assim, na sepa-ração interior/exterior, em sua versão mais cartesia-na, mantêm-se as coerções identitárias: sujeitos eobjetos aparecem enquadrados em gêneros e espé-cies, o exterior sólido e extenso distingue-se de uminterior inexpugnável e isolado, mas em todos oscasos e em todas as versões, independentemente dequem ou quê esteja em um ou outro lado, essa se-paração remete-nos sempre ao já existente, ao jáconhecido, reconduzindo-nos à forma do Mesmo.Trata-se, por isso, não apenas de uma dicotomia es-tática, mas também estéril:

O que ocorre quando falta outrem na estrutura domundo? Só reina a brutal oposição do sol e da ter-ra, de uma luz insustentável e de um abismo obs-curo: “a lei sumária de tudo ou nada”. O sabido e onão-sabido, o percebido e o não-percebido enfren-tam-se em termos absolutos, num combate semnuanças [...]. Mundo cru e negro, sem potenciali-dades nem virtualidades: é a categoria do possívelque se desmoronou. (DELEUZE, 1998, p. 315-6)

Entretanto, a dobra supõe um movimento queincorpora essa categoria do possível, precisamenteporque a dobra permite habitar o limite que traçaas bordas do que somos, permite nos situar em umalinha instável e arriscada, a linha do lado de fora, naqual os contornos do familiar (imaginável e represen-tável) diluem-se em contato com o desconhecido (in-traduzível, irrepresentável) e, nas palavras de Deleuze:

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é preciso conseguir dobrar a linha, para consti-tuir uma zona vivível onde seja possível alojar-se, enfrentar, apoiar-se, respirar – em suma,pensar. (DELEUZE, 1992, p. 138)

Enfrentar a linha do lado de fora, membrana,borda, essa zona estranhamente intermediária, li-mite e, ao mesmo tempo, desvanecimento de pode-res e saberes (DELEUZE, 1996), que definem o quefazemos, pensamos e dizemos, e ser capazes de do-brá-la, para construir espaços, dobras, que permi-tam alargar o que somos, dar-nos um novo corpocom outro umbral de sensibilidade, de modo aná-logo ao que ocorre no movimento do aprenderquando se o compreende como possibilidade detornar habitável a fronteira onde se encontram e setransformam o representável e o que ainda não seconhece (JÓDAR, 2000). Por isso, entre o lado defora e o lado de dentro não há separação, mas con-fusão, inversão, intercâmbio. É o lado de fora o queabre um si mesmo, um lado de dentro que não émais o dobramento, o dobrado do lado de fora,dobrado que se produz quando uma força afeta a simesma em vez de afetar a outras forças, isto é, pormeio da relação de si consigo mesmo:

É como uma glândula pineal, que não pára de sereconstituir variando sua direção, traçando umespaço do lado de dentro, mas coextensivo a todaa linha do lado de fora. O mais longínquo torna-se interno, por uma conversão ao mais próximo:a vida nas dobras. (DELEUZE, 1991, p. 130)

Dessa maneira, o Outro instala-se e atravessa asubjetividade, impedindo uma identidade fechada,

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privada, autêntica e pura. Tendo em conta que oOutro não faz referência a uma identidade em con-fronto com outra, mas que é o irredutível a qual-quer identificação, o Outro, pois, como diferença,quer dizer, como aquilo que faz diferir, que produznovidade. A dobra, como a arte barroca, excita, de-sestabiliza a ordem do sistema e o submete a turbu-lências e flutuações (CALABRESE, 1992).

A dobra, compreendida agora como criação depossibilidades de existência que rejeitam a ordemde identificação existente, adquire imediatamenteuma dimensão política. O conceito de dobra cons-titui uma figuração ou imagem da subjetividadenecessária, como assinala Foucault (1982), paracombater o tipo de individualidade que se nos im-põe e para pensar(-nos) de outra maneira. Nessesentido, se a dobra só pode avançar variando, bifur-cando-se e metamorfoseando-se, o problema não énunca como acabar a dobra, mas como continuá-la.É necessário dobrar, desdobrar, redobrar: o manei-rismo substitui o essencialismo (DELEUZE, 1989).Dobrar, desdobrar, redobrar, não apenas porque osprocessos de subjetivação são continuamente pe-netrados pelo saber e recuperados pelo poder, masporque as próprias subjetivações – se estão assen-tadas dentro das estruturas fixas e da segurançaagradável da identidade – podem converter-se emum obstáculo que impede cruzar a multiplicidade,que impede a prolongação de suas linhas, a produ-ção de novidade (DELEUZE, 1996, p. 232). Dessamaneira, a dobra nos permite entender a crise queafeta diversos movimentos, desde o feminismo atécertos nacionalismos, que enfrentam os limites, as

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contradições, os perigos, de fazer política com aidentidade, isto é, de reivindicar identidades mo-dernas de caráter essencialista, identidades que de-vem ser recuperadas, reencontradas, desveladas... eque quando o são acabam convertendo-se em lei,princípio e código, funcionando como mecanismosde constrição e exclusão (GÓMEZ & BUENO, 2000).E não apenas isso: entender a subjetivação comodobra inaugura outra política, uma política que re-nuncia ao esquema opressão/libertação/identidadee que busca criar novas formas de experimentar ede sentir, afirmando a diferença, a variação, a meta-morfose, como formas de resistência a duas formasatuais de sujeição: uma, que consiste em individuar-nos de acordo com as exigências do poder; a outra,que nos vincula, nos ata a uma identidade sabida econhecida e à qual devemos responder:

Se é verdade que o poder investe cada vez maisnossa vida cotidiana, nossa interioridade e indi-vidualidade, se ele se faz individualizante, se éverdade que o próprio saber é cada vez mais in-dividualizado, formando hermenêuticas e codifi-cações do sujeito desejante, o que é que sobrapara a nossa subjetividade? Nunca “sobra” nadapara o sujeito, pois, a cada vez, ele está por se fazer,como um foco de resistência, segundo a orientaçãodas dobras que subjetivam o saber e recurvam opoder. (DELEUZE, 1991, p. 112-3; ênfase nossa)

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NOTA

1. Self, no original (N. do T.).

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Inventando nossos eus

Nikolas Rose

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A idéia de “eu”1 entrou em uma crise que podemuito bem ser irreversível. Os teóricos sociais têmescrito inúmeros obituários da imagem de ser hu-mano que animou nossas filosofias e nossas éticaspor tanto tempo: o sujeito universal, estável, unifi-cado, totalizado, individualizado, interiorizado. Paraalgumas análises, particularmente aquelas inspira-das na psicanálise, essa imagem sempre foi “imagi-nária”: os humanos nunca existiram, nunca puderamexistir, nessa forma coerente e unificada – a ontolo-gia humana é necessariamente a ontologia de umacriatura despedaçada no seu próprio núcleo. Paraoutros, essa “morte do sujeito” é, ela própria, umevento histórico real: o indivíduo ao qual essa ima-gem do sujeito correspondia surgiu apenas recente-mente, em uma zona limitada de tempo-espaço,tendo sido, agora, varrido pela mudança cultural.No lugar do eu, proliferam novas imagens de sub-jetividade: como socialmente construída; comodialógica; como inscrita na superfície do corpo;

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como espacializada, descentrada, múltipla, nôma-de; como o resultado de práticas episódicas de auto-exposição, em locais e épocas particulares.

Deve-se assinalar, entretanto, que no mesmomomento em que essa imagem do ser humano édeclarada passé pelos teóricos sociais, certas práticasregulatórias buscam governar os indivíduos de umamaneira que está, mais do que nunca, ligada àque-las características que o definem como um “eu”. Damesma forma, as idéias de identidade e seus cogna-tos têm se colocado no centro de muitas das práti-cas nas quais os seres humanos se envolvem. Navida política, no trabalho, nos arranjos domésticose conjugais, no consumo, no mercado, na publici-dade, na televisão e no cinema, no complexo jurídicoe nas práticas da polícia, nos aparatos da medicina eda saúde, os seres humanos são interpelados, repre-sentados e influenciados como se fossem eus de um tipoparticular: imbuídos de uma subjetividade indivi-dualizada, motivados por ansiedades e aspirações arespeito de sua auto-realização, comprometidos a en-contrar suas verdadeiras identidades e a maximizara autêntica expressão dessas identidades em seusestilos de vida. As imagens de liberdade e autono-mia que inspiram nosso pensamento político ope-ram, da mesma forma, em termos de uma imagemdo ser humano que o vê como o foco psicológicounificado de sua biografia, como o locus de direitose reivindicações legítimas, como um ator que busca“empresariar” sua vida e seu eu por meio de atos deescolha. A julgar pela popularidade das problemáti-cas do psi na mídia, pelas demandas por toda espé-cie de terapia e pela enorme quantidade de todo

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tipo de conselheiros, parece que os seres humanos,ao menos em certos locais e entre certos setores,acabaram por se reconhecer nessas imagens e nessespressupostos e por se relacionar consigo mesmos ecom suas vidas em termos análogos – isto é, nostermos da problemática do “eu”. A dispersão con-ceitual do “eu” parece caminhar em paralelo comsua intensificação “governamental”.

Teremos nós, então, apesar dos argumentos dosfilósofos e teóricos críticos, nos tornado “sujeitos psi-cológicos”? É hora de abordar a questão da “subjeti-vidade” mais diretamente. Não em termos dos efeitosda “cultura” sobre a “pessoa” ou em termos de uma“teoria do sujeito”, mas buscando caracterizar, por as-sim dizer, o modo de ação das diversas tecnologias pside subjetivação. Isso nos obriga a um desvio por al-guns textos contemporâneos sobre o “problema dosujeito”, antes de retornar, em conclusão, a uma análi-se do tipo de criatura que nós nos tornamos.

VOCÊ É MAIS PLURAL DO QUE PENSA

Gilles Deleuze e Félix Guattari foram, prova-velmente, os autores que formularam a alternativamais radical à imagem convencional da subjetivi-dade como coerente, durável e individualizada:“Você é longitude e latitude, um conjunto de velo-cidades e lentidões entre partículas não formadas,um conjunto de afectos não subjetivados. Você tema individuação de um dia, de uma estação, de umano, de uma vida (independentemente da duração);de um clima, de um vento, de uma neblina, de umenxame, de uma matilha (independentemente da

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regularidade). Ou pelo menos você pode tê-la, podeconsegui-la” (MP4, p. 49).3 Você pode tê-la – paraDeleuze e Guattari, os humanos, ao menos ao lon-go de um determinado plano de existência, são maismúltiplos, mais transientes e mais não-subjetiva-dos do que somos levados a acreditar. Além disso,podemos agir sobre nós mesmos para habitar es-sas formas não-subjetivadas de existência. Eles cha-mam essas formas não-subjetivadas de “hecceida-des” – modos de individuação que não são os deuma substância, de uma pessoa ou de um sujeito,mas os de uma nuvem, de um inverno, de umahora, de uma data – “relações de movimento e derepouso entre moléculas ou partículas, poder deafetar e ser afetado” (MP4, p. 47). Entretanto, emoposição a essa dimensão ou a esse “plano de con-sistência” – que não deve ser pensado como umaestrutura oculta, mas como um plano “imanente”,formado apenas da distribuição e da relação entreseus efeitos – está um outro plano de organização,estratificação, territorialização.

De modo que o plano de organização não párade trabalhar sobre o plano de consistência, ten-tando sempre tapar as linhas de fuga, parar ouinterromper os movimentos de desterritorializa-ção, lastreá-los, reestratificá-los, reconstituir for-mas e sujeitos em profundidade. Inversamente,o plano de consistência não pára de se extrair doplano de organização, de levar partículas a fugi-rem para fora dos estratos, de embaralhar as for-mas a golpe de velocidade ou lentidão, de quebraras funções à força de agenciamentos, de microa-genciamentos. (MP4, p. 60).

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Se a experiência e a relação que temos com nósmesmos não é de movimentos, fluxos, decomposi-ções e recomposições é por causa da localização doshumanos nesse outro plano, esse plano de organi-zação que tem a ver com o desenvolvimento de for-mas e com a formação de sujeitos, no interior deagenciamentos,3 cujos vetores, forças e intercone-xões subjetivam o ser humano, ao nos reunir – emum agenciamento – com partes, forças, movimen-tos, afectos de outros humanos, animais, objetos,espaços e lugares. É nesses agenciamentos que sãoproduzidos os efeitos de sujeito, efeitos do fato desermos-reunidos-em-um-agenciamento. A subjeti-vação é, assim, o nome que se pode dar aos efeitosda composição e da recomposição de forças, práti-cas e relações que tentam transformar – ou operampara transformar – o ser humano em variadas for-mas de sujeito, em seres capazes de tomar a si pró-prios como os sujeitos de suas próprias práticas edas práticas de outros sobre eles.

Existem, sem dúvida, muitas dificuldades comessas hipóteses, as quais eu retirei de seu contextopara utilizá-las em minha própria teorização.4 Es-tou menos preocupado, de qualquer forma, em ser“fiel a Deleuze e Guattari” – o que seria uma aspira-ção curiosa – do que em usar o que eles escreveramcomo uma plataforma de lançamento para minhaprópria questão: como os humanos são subjetiva-dos, em quais agenciamentos, e como podemos pen-sar as práticas psi como um elemento operativo noseu interior. Aqueles que utilizam uma “teoria dosujeito” – cujas condições mesmas de possibilidadese situam no interior de um certo regime histórico

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de subjetivação – para explicar esse regime de sub-jetivação encontram-se em uma situação contraditó-ria. Essas teorias da subjetividade são desenvolvidaspara explicar eventos que aquelas próprias teorias aju-daram a produzir, eventos que elas plantaram ao lon-go de nossa existência, localizando-os em umainterioridade que elas próprias ajudaram a cavar. Emcontraste com essa perspectiva, proporei, na discus-são que se segue uma análise da subjetivação quenão utiliza uma metapsicologia para explicar como,em um momento histórico e cultural particular, nostornamos o que somos.

O eu não deveria ser investigado como um es-paço contido de individualidade humana, limitadopelo envelope da pele, que foi precisamente a formacomo, historicamente, ele acabou por conceber suarelação consigo mesmo. “Por que nossos corposdevem terminar na pele? Do século XVII até agora,as máquinas podiam ser animadas – era possível atri-buir-lhes almas fantasmas para fazê-las falar ou mo-vimentar-se ou para explicar seu desenvolvimentoordenado e suas capacidades mentais. [...] Essas re-lações máquina/organismo são obsoletas, desneces-sárias” (HARAWAY, 2000, p. 101). De fato, a própriaidéia, a própria possibilidade, de uma teoria sobreum corpo separado e envelopado, habitado e ani-mado por sua própria alma – “o” sujeito, “o” eu,“a” pessoa – é parte daquilo que tem que ser expli-cado, constituindo justamente o próprio horizontede pensamento que esperamos ultrapassar. Se osseres humanos acabaram por se conceber como su-jeitos, com um desejo de ser, com uma predisposi-ção ao ser, isso não surge, como alguns sugerem, de

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algum desejo ontológico, sendo, em vez disso, a re-sultante de uma certa história e de suas invenções(cf. BRAIDOTTI, 1994b, p. 160). Escrever no espíri-to de Deleuze significa formular nossas questões emtermos daquilo que os humanos podem fazer e nãodaquilo que eles são. Nossas investigações deve-riam buscar as linhas de formação e de funciona-mento de uma gama de “práticas de subjetivação”historicamente contingentes, nas quais os humanos,ao se relacionarem consigo mesmos sob formas par-ticulares, dotam-se de determinadas capacidades, taiscomo: compreender a si mesmos; falar a si mes-mos; colocar a si mesmos em ação; julgar a si mes-mos. Essa “aquisição” de capacidades dá-se emconseqüência das formas pelas quais suas forças,energias, propriedades e ontologias são constituí-das e moldadas ao serem utilizadas, inscritas e ta-lhadas por agenciamentos diversos e ao seremconectadas a agenciamentos diversos.

Dessa perspectiva, a subjetividade não deve, cer-tamente, ser vista como um dado primordial e nemmesmo como uma capacidade latente de um certotipo de criatura. Ela tampouco é algo que deve serexplicado pela “socialização”, pela interação entre,de um lado, um animal humano biologicamenteequipado com sentidos, instintos, necessidades e, deoutro, um ambiente externo, físico, interpessoal, so-cial, no qual um mundo psicológico interior é pro-duzido pelos efeitos da cultura sobre a natureza. Aocontrário, sugiro que todos os efeitos da interiorida-de psicológica, juntamente com uma gama inteira deoutras capacidades e relações, são constituídos pormeio da ligação dos humanos a outros objetos e

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práticas, multiplicidades e forças. São essas variadasrelações e ligações que produzem o sujeito comoum agenciamento; elas próprias fazem emergir to-dos os fenômenos por meio dos quais, em seus pró-prios tempos, os seres humanos se relacionamconsigo próprios em termos de um interior psico-lógico: como eus desejantes, como eus sexuados,como eus trabalhadores, como eus pensantes, comoeus intencionais – como eus capazes de agir comosujeitos (ver ROSE, 1995a, 1995b; cf. GROSZ, 1994,p. 116). Uma forma melhor de ver os sujeitos é como“agenciamentos” que metamorfoseiam ou mudamsuas propriedades à medida que expandem suas co-nexões: eles não “são” nada mais e nada menos queas cambiantes conexões com as quais eles são associa-dos (MP1, p. 16-37). Sugiro também que a multi-plicidade de linhas que tem reunido, em umamontagem, os seres humanos a diferentes relaçõesno século XX – os “rizomas” que têm conectado, apre-endido, diversificado, expandido, divergido, forma-do pontos de entrada, pontos de separação e saídapara os humanos – deve algo importante a esses con-ceitos, ações, autoridades, estratificações e ligaçõespara os quais eu utilizei o termo psi.

A psicologia, como um corpo de discursos e prá-ticas profissionais, como uma gama de técnicas esistemas de julgamento e como um componente deética, tem uma importância particular em relaçãoaos agenciamentos contemporâneos de subjetivação.As disciplinas psi compreendem mais que uma for-ma historicamente contingente de representar a rea-lidade subjetiva. As disciplinas psi, no sentido quelhes dou aqui, têm feito parte, de forma constitutiva,

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das reflexões críticas sobre a problemática do go-verno das pessoas de acordo com, por um lado, suanatureza e verdade e, por outro, com as exigênciasda ordem social, da harmonia, da tranqüilidade edo bem-estar. Os saberes e as autoridades psi têmgerado técnicas para moldar e reformar os eus, asquais têm sido reunidas – em um agenciamento –com os aparatos dos exércitos, das prisões, das sa-las de aula, dos quartos de dormir, das clínicas...Eles estão presos a aspirações sociopolíticas, a so-nhos, a esperanças e a medos, relativamente aquestões tais como a qualidade da população, aprevenção da criminalidade, a maximização do ajus-tamento, a promoção da autodependência e da ca-pacidade de empreendimento. Eles têm sido cor-porificados em uma proliferação de programas,intervenções sociais e projetos administrativos. Dessaforma, as disciplinas psi estabeleceram uma varie-dade de “racionalidades práticas”, envolvendo-se namultiplicação de novas tecnologias e em sua proli-feração ao longo de toda a textura da vida cotidia-na: normas e dispositivos de acordo com os quaisas capacidades e a conduta dos humanos têm setornado inteligíveis e julgáveis. Essas racionalida-des práticas são regimes de pensamento, por meiodos quais as pessoas podem dar importância a as-pectos de si próprias e à sua experiência, e regimesde prática, por meio dos quais os humanos podemfazer de si próprios seres “éticos” e dotados de“agência”, definidos de modos particulares, comopais, professores, homens, mulheres, amantes, che-fes, e por meio de sua associação com vários dispo-sitivos, técnicas, pessoas e objetos.8

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NARRANDO O EU

Comecemos com a linguagem. Marcel Mauss,em seu famoso ensaio sobre a história da noção ouconcepção de eu, argumentava que essa categoriahavia surgido apenas recentemente, ressaltando oassociado culto do eu e o respeito pelo eu na lei e namoralidade. Ele advertia, entretanto, que não ia dis-cutir a questão da linguagem. Ele acreditava quenão havia nenhuma tribo ou linguagem na qual apalavra “eu” não existisse, na qual ela claramentenão representasse algo, e que a onipresença do eu seexpressa também na linguagem, o que é visível naabundância de sufixos posicionais que dizem res-peito às relações no tempo e no espaço entre o su-jeito falante e aquilo sobre o qual ele fala (MAUSS,1979b, p. 61). Concedia-se, aqui, à própria lingua-gem, efeitos subjetivantes, mesmo que os sujeitosassim formados nem sempre refletissem sobre simesmos como sujeitos no sentido que nossa culturadá a esse termo. Um argumento diferente, mas rela-cionado, com respeito às propriedades subjetivan-tes da linguagem, foi apresentado por ÉmileBenveniste, o qual colocava uma grande ênfase nacapacidade de criação de sujeito que têm os prono-mes pessoais. Para Benveniste (1971), o eu, comosujeito de enunciação, forma um locus de subjetiva-ção, criando uma “posição de sujeito”, um lugar nointerior do qual um sujeito pode surgir. É atravésda linguagem, argumentava ele, que os humanos seconstituem a si próprios como sujeitos, porque éapenas a linguagem que pode estabelecer a capaci-dade de a pessoa se colocar como um sujeito, “como

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a unidade psíquica que transcende a totalidade dasexperiências reais que ela reúne, produzindo a per-manência da consciência”. A subjetividade “é ape-nas a emergência, no ser, de uma propriedadefundamental da linguagem” (ibidem, p. 224). A lin-guagem tanto torna possível que cada falante se es-tabeleça a si mesmo como um sujeito, ao se referir asi próprio como “eu” em seu discurso, quanto é tor-nada possível por esse mesmo fato. As formas pro-nominais são um conjunto de signos “vazios”, semreferência a qualquer realidade, que se torna “ple-na” quando o falante introduz a si próprio em umainstância de discurso. Entretanto, precisamente porcausa disso, o lugar do sujeito é um lugar que temque ser constantemente reaberto, pois não existequalquer sujeito por detrás do “eu” que é posiciona-do e capacitado para se identificar a si mesmo na-quele espaço discursivo: o sujeito tem que serreconstituído em cada momento discursivo de enun-ciação (cf. COWARD & ELLIS, 1977, p. 133).

Para o presente objetivo, entretanto, essa ênfasenas propriedades subjetivantes da linguagem con-cebida como um sistema gramatical, como uma re-lação entre pronomes colocada em jogo eminstâncias de discurso, é insuficiente. A subjetiva-ção nunca pode ser uma operação puramente lin-güística. Devemos concordar, aqui, com Deleuze eGuattari que a subjetivação nunca é um processopuramente gramatical; ela surge de um “regime designos e não de uma condição interna à linguagem”e esse regime de signos está sempre preso a um agen-ciamento ou a uma organização de poder (MP2, p.85-6). A subjetivação, dessa perspectiva, deve refe-

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rir-se, antes de tudo, não à linguagem e às suas pro-priedades internas, mas àquilo que Deleuze e Guat-tari chamam, seguindo Foucault, de um“agenciamento de enunciação”. Em A arqueologiado saber, Foucault propôs o termo “modalidadesenunciativas” para conceptualizar as formas sob asquais a linguagem aparece em espaços e épocas par-ticulares, formas que são irredutíveis às categoriaslingüísticas (FOUCAULT, 1986a). Quem pode falar?De qual lugar fala? Que relações estão em jogo en-tre, de um lado, a pessoa que está falando e o objetodo qual ela fala e, de outro, aqueles que são os sujei-tos de sua fala? Pode-se pensar, aqui, no regime que,em qualquer espaço ou época particular, governa aenunciação de um enunciado diagnóstico na medi-cina, uma explicação científica em biologia, umenunciado interpretativo em psicanálise ou uma ex-pressão de paixão em relações eróticas. Essas enun-ciações não são colocadas em discurso por meio de“uma função unificante de um sujeito”, nem tam-pouco produzem esse sujeito como uma conse-qüência de seus efeitos: trata-se, aqui, de umaquestão dos “diversos status, dos diversos lugares,das diversas posições” que devem ser ocupadas emregimes particulares para que algo se torne dizível,audível, operável: o médico, o cientista, o terapeu-ta, o amante (FOUCAULT, 1986a, p. 61). Assim, asrelações entre os signos são sempre reunidas nointerior de outras relações: “O agenciamento só éenunciação, só formaliza a expressão, em uma desuas faces; em sua outra face inseparável, ele for-maliza os conteúdos, é agenciamento maquínico oude corpo” (MP2, p. 98).

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Dessa perspectiva, a própria linguagem, mesmona forma de “fala”, aparece como um agenciamentode “práticas discursivas”, desde contar, listar, fazercontratos, cantar, passando pela recitação de preces,até emitir ordens, confessar, comprar uma merca-doria, fazer um diagnóstico, planejar uma campa-nha, discutir uma teoria, explicar um processo. Essaspráticas não habitam um domínio amorfo e funcio-nalmente homogêneo de significação e negociaçãoentre indivíduos – elas estão localizadas em locais eprocedimentos particulares, os afectos e as intensi-dades que os atravessam são pré-pessoais, elas sãoestruturadas em variadas relações que concedempoderes a alguns e delimitam os poderes de outros,capacitam alguns a julgar e outros a serem julgados,alguns a curar e outros a serem curados, alguns afalar a verdade e outros a reconhecer sua autoridadee a abraçá-la, aspirá-la ou submeter-se a ela.

Logo retornarei a esse argumento. Mas à luz doque foi dito até agora, quero examinar alguns de-senvolvimentos recentes na própria psicologia, osquais consideram a subjetivação em relação à lin-guagem e que buscam explicar o eu em termos de“narrativa”: as estórias que contamos uns aos ou-tros e a nós próprios.

“Não se trata apenas do fato de que dizemosnossas vidas como estórias: mas existe um sentidoimportante no qual nossas relações mútuas são vivi-das de forma narrativa” (GERGEN & GERGEN, 1988,p. 18). Para aquelas pessoas que argumentam des-sa forma, os eus são realmente constituídos nointerior da fala. A linguagem, aqui, é entendidacomo um complexo de narrativas do eu que nossa

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cultura torna disponível e que os indivíduos utili-zam para dar conta de eventos em suas própriasvidas, para dar a si mesmos uma identidade no in-terior de uma estória particular, para atribuir sig-nificado à sua própria conduta e às condutas deoutros em termos de agressão, amor, rivalidade,intenção, e assim por diante. Isto é, falar sobre o eué tanto constitutivo das formas de autoconsciênciae de autocompreensão que os seres humanos ad-quirem e exibem em suas próprias vidas quanto éconstitutivo das próprias práticas sociais, na medi-da em que essas práticas não podem ser levadas aefeito sem certas autocompreensões:

Em vez de supor que as relações das pessoas coma natureza e com a sociedade são pouco ou nadaafetadas pela linguagem no interior da qual elassão formuladas, descobrimos que essas mesmasrelações são constituídas pelas formas de fala queas inspiram, pelas formas de responsabilização[accountability] pelas quais elas são, por assim di-zer, mantidas em bom estado... Se nos descobri-mos agora como vivendo a nós próprios comoindivíduos autocontidos, autocontrolados, não de-vendo nada a outros por nossa natureza como tal,acabamos por supor que esse é um estado “natu-ral” ou fixo das coisas. Em vez disso, trata-se deuma forma de inteligibilidade historicamente de-pendente, que exige, para sua sustentação conti-nuada, um conjunto de compreensões partilhadas.(SHOTTER & GERGEN, 1989, p. x)

A subjetividade e as crenças sobre os atributosdo eu, dos sentimentos, das intenções, são entendi-das aqui como propriedades não de mecanismos

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mentais, mas de conversas, de gramáticas de fala.Elas são possíveis e, ao mesmo tempo, inteligíveis,apenas em sociedades onde essas coisas podem, apro-priadamente, ser ditas por pessoas sobre pessoas.“A tarefa da psicologia é a de expor nossos sistemasde normas de representação... o resto é fisiologia”(HARRÉ, 1989, p. 34). As regras de “gramática” quedizem respeito a pessoas ou ao que Wittgensteinchamou de “jogos de linguagem” produzem ou in-duzem um repertório moral de características rela-tivamente duradouras, as quais são atribuídas, noshabitantes de culturas particulares, à pessoalidade.“Nossa compreensão e nossa experiência de nossarealidade é constituída para nós, em grande parte,pelas formas pelas quais nós devemos falar em nossastentativas [...] para dar conta dela” (SHOTTER, 1985,p. 168) e devemos falar dessa forma porque as exi-gências para cumprir nossas obrigações como mem-bros responsáveis de uma sociedade particular têmuma qualidade moralmente coerciva.

Essas noções de constituição das característicasda pessoalidade por meio da fala são freqüentemen-te consideradas como exigindo uma análise maisexplicitamente “dialógica”. Uma análise desse tipo,argumenta-se, poderia, ela própria, servir como umaespécie de crítica de certas formas de falar o eu; areferência ao indivíduo solitário serve, de formaenganadora, para localizar no “eu” aquilo que é, naverdade, o produto de um conjunto de relações: “nósfalamos dessa forma sobre nós mesmos porque esta-mos presos no interior do que se pode pensar comoum ‘texto’, como um recurso textual desenvolvidode forma cultural – o texto do ‘individualismo

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possessivo’ – para o qual nós, aparentemente, deve-mos (moralmente) nos voltar, quando confrontadoscom a tarefa de descrever a natureza de nossas ex-periências de nossas relações com os outros e com nósmesmos” (SHOTTER, 1989, p. 136). Procedimentos,práticas ou métodos, histórica e culturalmente desen-volvidos, para a produção de sentido, “são colocadosà nossa disposição como recursos no interior das or-dens sociais nas quais fomos socializados” (ibidem,p. 143) e ao lançar mão deles e ao usá-los em seusencontros, as pessoas vêm a conhecer a si própriascomo pessoas de um tipo particular, por meio de umato de reconhecimento mútuo. A análise, aqui, toma,pois, a forma de uma espécie de “etnografia intera-cional” das “formas de falar” que são utilizadas pe-las pessoas ao colocar em ação seus encontros sociaise nos quais elas mutuamente constroem-se a si pró-prias por meio do gerenciamento do sentido.

Foi esse caráter dialógico das autonarrativas, o fatode que elas são “sociais e não individuais”, que re-centemente acabou por se destacar (cf. HERMANS &KEMPEN, 1993). Por “social”, como já se terá torna-do evidente, esses autores querem dizer “interpes-soal” e “interacional”. Assim, Mary e Kenneth Gergenargumentam em favor da importância do que eleschamam de “autonarrativas”, estórias sobre os eusculturalmente fornecidas, as quais, na passagem porsuas vidas, fornecem os recursos dos quais os indiví-duos lançam mão em suas interações mútuas e comeles mesmos. “As narrativas são, na verdade, constru-ções sociais, sofrendo alteração contínua à medidaque a interação avança [...]. A autonarrativa é umimplemento lingüístico construído pelas pessoas, em

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relações para sustentar, reforçar ou impedir umadiversidade de ações [...]. As autonarrativas são sis-temas simbólicos utilizados para propósitos sociaistais como justificação, crítica e solidificação social”(GERGEN & GERGEN, 1988, p. 20-1). Ao organizar,explícita ou implicitamente, suas relações consigo mes-mos e com outros em termos dessas narrativas, umeu é, por assim dizer, “gerado pela estória”, com oindivíduo escolhendo entre as diferentes formas denarrativa às quais foi exposto.

A “multiplicidade” do eu é, aqui, compreendidacomo uma conseqüência da proposição de que “oindivíduo aloja a capacidade para uma multiplicida-de de formas narrativas” e domina uma gama demeios de se tornar inteligível por meio de narrati-vas, de acordo com as exigências feitas na negocia-ção da vida social – por exemplo, de que a pessoa sefaça inteligível como uma identidade duradoura,integral, coerente (GERGEN & GERGEN, 1988, p. 35).Mas “embora o objeto da autonarrativa seja um sóeu, seria um engano ver essas construções como oproduto ou a propriedade de eus isolados [...]. Aocompreender a relações entre eventos em nossa vida,apoiamo-nos no discurso que nasce da troca sociale que inerentemente implica uma audiência” (p. 37).Trata-se de uma socialidade que é reforçada pelasformas e respostas relacionais que certos modos defalar sobre o eu recebem em trocas contínuas entreas pessoas de vários tipos, nas quais os indivíduosnegociam conjuntamente teorias particulares sobresi mesmos e sobre outros, negociações que assu-mem, elas próprias, certas formas estoriadas cultu-ralmente disponíveis.

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Esses estudos sobre o eu, que o tomam comosendo construído em narrativas interacionais de acor-do com os recursos culturais disponíveis, certamen-te apreendem algo de importante. Se a subjetivaçãoé analisada em termos das relações dos humanos con-sigo mesmos, os vocabulários discursivamente esta-belecidos exercem um papel importante na composi-ção e recomposição dessas relações. Mas as análisesconduzidas sob os pressupostos do “construcionis-mo social” são problemáticas por causa da visão delinguagem que elas sustentam. A linguagem, nessasanálises, é vista como “fala”, como constituída designificados situacionalmente negociados entre indi-víduos. Como “fala”, sua análise segue o modelo ba-nal da comunicação, ou da falta de comunicação, naqual as partes envolvidas, os indivíduos humanos,utilizam vários recursos lingüísticos – palavras, ex-plicações, estórias, atribuições – para construirmensagens que transmitem intenções, ou para mu-tuamente afetar, persuadir, agir. Essas análises ines-capavelmente colocam o agente humano como onúcleo dessas atividades de produção de sentido, aoativamente negociar sua trajetória através das teoriasdisponíveis a fim de viver uma vida significativa. Por-tanto, o ser humano é entendido como aquele agen-te que se constrói a si próprio como um eu ao dar àsua vida a coerência de uma narrativa. Evidentemen-te, o eu, simplesmente em virtude de ser capaz de senarrar a “si próprio”, em uma variedade de formas, éimplicitamente reinvocado como um exterior ineren-temente unificado relativamente a essas comunica-ções. Isso nos faz lembrar a observação de Nietzschede que “um pensamento vem quando ‘ele’ quer e não

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quando ‘eu’ quero [...]. Isso pensa: mas que este ‘isso’seja precisamente o velho e decantado ‘eu’ é, dito demaneira suave, apenas uma suposição, uma afir-mação, e certamente não uma ‘certeza imediata’”(NIETZSCHE, 1992 [1886], p. 23). Entretanto, oque nossos psicólogos radicais invocam é, na verda-de, o velho e familiar eu, aquele reconfortante “eu”da filosofia humanista, que é o ator que interagecom outros em um contexto cultural e lingüístico, apessoa em quem os efeitos de sentido, comunica-ção, assumem sua forma, com todos os pressupos-tos que o acompanham, pressupostos que afirmama singularidade e o caráter cumulativo do tempovivido da consciência. Trata-se do eu da hermenêu-tica, do eu da fenomenologia, agora sendo postula-do aqui como a solução para o problema de comopoderia, ele próprio, constituir uma possibilidade.9

Obviamente, seria absurdo colocar a análise pro-duzida por lingüistas como Benveniste nesse mes-mo campo hermenêutico. Seu trabalho é refrescantecomo um copo d’água tomado depois do adocica-do humanismo dos “construcionistas sociais”, exi-gindo uma atenção mais generosa e produtiva doque a que eu serei capaz de dar aqui. É hora, entre-tanto, de questionar toda a tirania da “linguagem”,da “comunicação”, do “significado”, desde há mui-to invocados pelas “ciências sociais”, no curso desuas pretensões a se distinguirem das “ciências na-turais”, supostamente em virtude da natureza espe-cial de seu objeto. Ao tentar explicar nossa históriae nossa especificidade, não é para o domínio dossignos, dos significados e das comunicações quedevemos nos voltar, mas para a analítica das técnicas,

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das intensidades, das autoridades e dos aparatos.Análises como as que estive discutindo aqui atribu-em coisas demasiadas à linguagem como comunica-ção e absolutamente nada à linguagem comoagenciamento. Pode ser “relativamente fácil não di-zer mais ‘eu’, mas sem com isso ultrapassar o regimede subjetivação; e inversamente, podemos continuara dizer Eu, para agradar, e já estar em um outro regi-me onde os pronomes pessoais só funcionam comoficções” (MP2, p. 95). Se a linguagem está organiza-da em regimes de significação por meio dos quais elase distribui ao longo de espaços, épocas, zonas e es-tratos, e se ela está agenciada em regimes práticos decoisas, corpos e forças, então deve-se conceber a “cons-trução discursiva do eu” de uma forma bem diferen-te. Quem fala, de acordo com que critérios de verdade,de quais lugares, em quais relações, agindo sob quaisformas, sustentado por quais hábitos e rotinas, auto-rizado sob quais formas, em quais espaços e lugares,e sob que formas de persuasão, sanção, mentiras ecrueldades? Em relação às disciplinas psi, esses sãoprecisamente os tipos de questões com que devemoslidar: a emergência de práticas, locais e regimes deenunciação que dão poder a certas autoridades parafalar nossa verdade na linguagem da psique; os regi-mes que constituem a autoridade por meio de umarelação com aqueles que são seus sujeitos como pa-cientes, analisandos, clientes, fregueses; as paisagens,os edifícios, as salas, os arranjos desenhados para es-ses encontros, desde as salas de consulta até as enfer-marias dos hospitais; os vetores afetivos da compulsão,da sedução, do contrato e da conversão que fazem aconexão das linhas.

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Isto é, não se trata de uma questão sobre o queuma palavra, uma sentença, uma estória ou um li-vro “quer dizer” ou o que “significa”, mas, antes,sobre “com o que ele funciona, em conexão com oque ele faz ou não passar intensidades, em que mul-tiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua[multiplicidade] (MP1, p. 12). Isso não significavoltar as costas para a linguagem ou para todos osinstrutivos estudos que têm sido conduzidos sob osauspícios de uma certa noção de “discurso” ou quetêm desenvolvido a analítica da retórica. Mas signi-fica sugerir que essas análises são mais instrutivasquando se focalizam não no que a linguagem signi-fica, mas no que ela faz: que componentes de pen-samento ela coloca em conexão, que vínculos eladesqualifica, o que capacita os humanos a imaginar,a diagramar, a fantasiar uma determinada existên-cia, a se reunirem em um agenciamento: os sexoscom seus gestos, formas de andar, de vestir, de so-nhar, de desejar; as famílias com suas mamães, seuspapais, seus bebês, suas necessidades e suas desilu-sões; as máquinas de curar com seus médicos e pa-cientes, seus órgãos e suas patologias; as máquinaspsiquiátricas com suas arquiteturas reformatórias,suas grades de diagnóstico, sua mecânica de inven-ção e suas noções de cura.10

Em qualquer circunstância, devemos reconhe-cer que a linguagem não é, de forma alguma, pri-mária na produção de pessoas. Em primeiro lugar,a linguagem é, obviamente, mais que apenas “fala”– daí a importância, que é bem reconhecida, da in-venção da escrita pela qual os humanos são capazesde se tornar “máquinas escreventes” por meio do

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treinamento da mão e do olho; por meio da fabri-cação de instrumentos tais como os estilos, os pin-céis, as penas; por meio de um certo conjunto dehábitos corporais; por meio de um modo de com-por e decifrar; por meio de uma relação com a su-perfície mais ou menos transportável de inscrição.Ao escrever, o ser humano torna-se capaz de novascoisas: fazer listas; enviar mensagens; acumular in-formação, a partir de locais distantes, em um únicolugar e em um único plano; e de comparar, tabularmudanças, diferenças e similaridades, estendendonovas linhas de força (GOODY & WATT, 1968; Goody,1977, p. 52-111; ONG, 1982). A invenção da im-prensa torna possível a generalização de “máquinasde leitura” e uma variedade de novas coisas se tornapensável: novas formas de compreender o lugar doshumanos em uma cosmologia, por meio de cálculodos movimentos dos corpos celestes, por exemplo,ou novas formas de praticar a espiritualidade em re-lação ao “livro sagrado” (EISENSTEIN, 1979). A in-venção de técnicas por meio das quais os humanosdesenvolvem a capacidade de calcular torna, similar-mente, os humanos capazes de novas coisas, discipli-na o pensamento e as auto-relações de uma formadistintiva (previsão e prudência, por exemplo, quan-do se calcula a situação financeira futura na forma deum orçamento) e é similarmente dependente de téc-nicas e aparatos – agenciamentos maquinados nosquais as forças do humano são criadas e estabiliza-das (CLINE-COHEN, 1982; cf. ROSE, 1991).

Platão, como é bem sabido, expressou reservassérias à escrita, concebendo-a não apenas como in-ferior à palavra falada, “escrita na alma do ouvinte

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para capacitá-lo a aprender sobre o certo, o bem e obom”, mas também como destrutiva das artes daretórica e da memória (PLATÃO, Fedro, 278a). Mas amemória não deveria ser contraposta à escrita comoalgo imediato, natural, como uma capacidade psi-cológica universal, mas vista em termos daquilo queNietzsche chamou de “mnemônica” (NIETZSCHE,1998 [1887], p. 51; cf. GROSZ, 1994, p. 131).5 Essetermo refere-se aos aparatos pelos quais se “marca aferro em brasa” o passado em si próprio, tornando-o disponível como uma advertência, um consolo,um aparato de negociação, uma arma ou uma feri-da. “Jamais deixou de haver sangue, martírio e sa-crifício quando o homem sentiu a necessidade decriar em si uma memória” (NIETZSCHE, 1998, p. 51).As preocupações de Nietzsche são com as varieda-des históricas de punição cruel, como exemplos dopreço pago pelos seres humanos para fazê-los supe-rar seu esquecimento e “reter na memória cinco ouseis ‘não quero’ [...] a fim de viver os benefícios dasociedade” (p. 52). Não se trata de uma questão,para meus propósitos, da validade das asserções ge-nealógicas específicas de Nietzsche – elas são certa-mente problemáticas. Mas a noção de mnemônicaabre um campo muito importante de investigaçãopara o agenciamento de sujeitos. Frances Yates mos-trou, de forma convincente, que a memória podeser entendida como uma arte ou uma série de técni-cas inculcadas na forma de procedimentos particula-res: uma arte que foi revivida e ampliada na Idade Médiae envolvia técnicas tais como a invenção de lugares ouespaços nos quais itens de saber ou experiência eram“colocados” e que poderiam ser “recuperados” pelo

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sujeito ao fazer um passeio imaginário através deles(YATES, 1966; cf. HIRST & WOOLEY, 1982, p. 39). Aspráticas da pedagogia têm, obviamente, inventadotoda uma gama de outras técnicas de memória, bus-cando inculcá-las nas salas de aula, tendo proliferadoao longo da experiência de quase todos os humanoscontemporâneos e tendo sido elas próprias alimenta-das pelas disciplinas psi. Mas reconhecer o êxito téc-nico e prático da memória é apenas um primeiropasso: essas técnicas da memória não são limitadaspelo envelope da pele do sujeito e muito menos pelovolume de seu cérebro. Não apenas os golpes, a tor-tura, os sacrifícios que Nietzsche descobre como cons-tituindo as raízes impuras de nossos aparentementebálsamos morais puros, mas também juramentos, ri-tuais, canções, escritas, livros, gravuras, bibliotecas,dinheiro, contratos, dívidas, edifícios, projetos de ar-quitetura, a organização do tempo e do espaço: tudoisso – e muito mais – estabelece a possibilidade deque um passado mais ou menos imaginário possa serre-evocado, no presente ou no futuro em locais par-ticulares. Isto é, a memória é, ela própria, agenciada.A memória que temos de nós próprios como um sercom uma biografia psicológica, uma linha de desen-volvimento da emoção, do intelecto, da vontade, dodesejo, é produzida por meio dos álbuns de fotogra-fia de família, a repetição ritual de estórias, o dossiêreal ou “virtual” dos boletins escolares, a acumulaçãode artefatos e a imagem, o sentido e o valor que lhessão vinculados.

As disciplinas psi, obviamente, têm adotado edesenvolvido as tecnologias da memória desde aomenos a época de Mesmer e têm-se envolvido em

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toda uma história de competição sobre o status dasmemórias assim produzidas (MESMER, [1799]1957). A memória foi central às concepções de “de-sordem nervosa” antes que Freud anunciasse que ahistérica sofria de reminiscências e levantasse a pos-sibilidade de que a memória podia não distinguirentre experiência e fantasia. Por pelo menos um sé-culo, as asserções das disciplinas psi sobre a memó-ria têm sido controversas precisamente porque asmemórias em questão pareciam ser o produto desuas “tecnologias” não-naturais – das quais a hip-nose e a associação livre constituíam apenas doisexemplos. As dificuldades contemporâneas damnemotécnica psi são exemplificadas naquilo quese poderia chamar de “crise de memória” em tor-no da produção, por meio das tecnologias da psi-coterapia, das anteriormente ausentes memórias daviolência contra crianças – “memórias falsas”, “me-mórias recuperadas”.6 As disputas sobre essa ques-tão revelam, ao menos em parte, a dificuldade dereconhecer que aquilo que é lembrado só o é pormeio do envolvimento dos humanos com as tecno-logias da memória. Certas dessas tecnologias, quecontinuam estranhas e malignas a muitas culturas,têm sido “naturalizadas” em nossa própria cultura –espelhos, retratos, inscrições duráveis (por exemplo,diários, cartões de aniversário e cartas, que servemde “substitutos” para eventos passados mas “nãoesquecidos”), romances narrativos, fotografias, agoratalvez o vídeo da gravidez de nossa mãe e o mo-mento de nosso nascimento. Muitas daquelas tec-nologias inventadas na genealogia das disciplinas psi– embora, surpreendentemente não sejam aparatos

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de memórias tais como a “história de caso” da medi-cina – continuam tendo um status problemático, ain-da não naturalizado, mas mesmo assim são vistascomo suspeitas por causa de sua associação com atecnologia aparentemente antinatural que as fizeramnascer. Mas me é possível ser “uma-pessoa-com-me-mória” tão-somente em virtude de eu “ter-entrado-em-composição” com esses elementos heterogêneos– a memória, no sentido em que faz uma diferençanas formas pelas quais os humanos agem e se rela-cionam consigo mesmos, é uma propriedade de“máquinas de lembrar”.

A memória, a habilidade de cálculo, a escrita sim-plesmente exemplificam o fato de que as análises dalinguagem que se centram na questão do significa-do concedem demasiada autonomia à semântica e àsintática e dão muito pouca atenção às práticas si-tuadas que intimam, inscrevem, incitam, certas re-lações da pessoa consigo mesma. Elas ignoram osaparatos de inscrição, desde livros de estória, tabe-las, gráficos, listas e diagramas, até vitrais e fotogra-fias, desenho de salas e peças de equipamento, taiscomo aparelhos de televisão e fogões. Esses apara-tos constituem tecnologias culturais que funcionamcomo formas de codificar, estabilizar e intimar “se-res humanos. Eles vão além do envelope da pessoa,perduram em locais, práticas, rituais e hábitos par-ticulares e não estão localizados em pessoas particu-lares, nem são intercambiados de acordo com omodelo da comunicação.

Assim, embora as linguagens, os vocabulários eas formas de julgamento sejam, indubitavelmente, deimensa importância em intimar e estabilizar certas

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relações da pessoa consigo mesma, eles não deve-riam ser entendidos como sendo primariamente in-tencionais e interacionais. Aquilo que torna qualquerintercâmbio particular possível surge de um regimede linguagem, o qual está alojado em práticas queapreendem o ser humano sob variadas formas, queinscrevem, organizam, moldam e exigem a produ-ção da fala – médica, legal, econômica, erótica, do-méstica, espiritual. Mas essa referência às práticase aos agenciamentos dos quais a linguagem fazparte chama a atenção para outra das inescapáveisdebilidades das estórias “psicológicas” do eu nar-rado. Quando a linguagem, nessas explicações, évista como algo situado, ela o é apenas ao modowittgensteiniano vago de “formas de vida”, nasquais a “responsabilização” [accountability] funcionapara tornar possíveis as ações. Essas dispensáveis re-ferências a formas de vida são pouco adequadas àtarefa. O que precisa ser analisado é o modo da re-lação consigo mesmo que é intimado nas práticas enos procedimentos, nos vínculos, nas linhas de for-ça e nos fluxos definidos que constituem pessoas eas atravessam e as circundam em maquinações par-ticulares de força – para trabalhar, para curar, parareformar, para educar, para trocar, para desejar, nãoapenas para responsabilizar [accounting] mas paramanter como responsabilizável. Não se trata de umapelo por uma localização mais delicada e sutil dacomunicação “em seu contexto social”, mas por umarejeição da forma binária que separa a linguagemde seu contexto apenas para reinseri-la contextual-mente em um mundo que é reduzido a uma espéciede pano de fundo cultural para o significado.

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Uma vez tecnicizadas, maquinadas e localiza-das em lugares e práticas, emerge uma imagem di-ferente do processo de “construção de pessoas”.As pessoas funcionam, aqui, como uma forma ines-capavelmente heterogênea, como arranjos cujas ca-pacidades são fabricadas e transformadas por meiode conexões e ligações nas quais elas são apreendi-das em locais e espaços particulares. Não se trata,portanto, de um eu que emerge por meio da narra-ção de estórias, mas, antes, de examinar o agencia-mento de sujeitos: de sujeitos combatentes emmáquinas de guerra, de sujeitos laborais em máqui-nas de trabalho, de sujeitos desejantes em máquinasde paixão, de sujeitos responsáveis nas variadas má-quinas da moralidade. Em cada caso, a subjetivaçãoem questão não é um produto nem da psique nemda linguagem, mas de um agenciamento heterogê-neo de corpos, vocabulários, julgamentos, técnicas,inscrições, práticas.

ANATOMIAS IMAGINÁRIAS

Sugeri, anteriormente, que podemos produzirmais em termos de inteligibilidade se consideramosa questão da subjetivação menos em termos de quetipo de sujeito é produzido – um eu, um indivíduo,um agente – e mais em termos daquilo que os hu-manos são capacitados a fazer por meio das formaspelas quais eles são maquinados ou compostos.Aquilo que os humanos estão capacitados a fazernão é intrínseco à carne, ao corpo, à psique, à men-te ou à alma: está constantemente deslocando-se emudando de lugar para lugar, de época para época,

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com a ligação dos humanos a aparatos de pensa-mento e ação – desde a mais simples conexão entreum órgão (ou uma parte do corpo) e outro em ter-mos de uma “anatomia imaginária” até aos fluxosde força tornados possíveis pelas ligações de umórgão com uma ferramenta, com uma máquina, compartes de outro ser humano ou de outros seres hu-manos, em um espaço montado tal como um quartode dormir ou uma sala de aula. Dessa perspectiva, asquestões a serem tratadas têm a ver não com a “cons-tituição do eu”, mas com as ligações estabelecidasentre, de um lado, o humano e, de outro, outros hu-manos, objetos, forças, procedimentos, as conexõese fluxos tornados possíveis, as capacidades e os devi-res engendrados, as possibilidades assim impedidas,as conexões maquínicas formadas, que produzem ecanalizam as relações que os humanos estabelecemconsigo mesmos, os agenciamentos dos quais elesformam elementos, condutos, recursos ou forças (cf.GROSZ, 1994, p. 165; MP1, p. 91).

Ao pensar dessa forma, podemos ler ao contrá-rio, por assim dizer, os muitos e recentes textos quebuscam fundamentar sua analítica de relações depoder e formas de saber sobre “o corpo”. A corpo-reidade humana, como muitas vezes se sugere, podefornecer a base para uma teoria da subjetivação, daconstituição dos desejos, das sexualidades e das di-ferenças sexuais, dos fenômenos de resistência e agên-cia. Os seres humanos são, afinal, como afirmam essesargumentos, corporificados, a despeito de todas astentativas dos filósofos, desde o Iluminismo, paradescrevê-los como criaturas de razão e para afir-mar que essa capacidade para raciocinar afasta os

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humanos – ou ao menos os humanos masculinos –quase que inteiramente de suas características comocriaturas. E embora aceitando que a corporeidadenão dá qualquer forma essencial ou estável à subje-tividade, como poderíamos negar a asserção dessasanálises de que é sobre esse material bruto do “cor-po” que a cultura trabalha sua constituição da sub-jetividade? Embora abjurando todas as formas deessencialismo, como poderíamos discordar da as-serção de que as formas da subjetividade são irrecu-peravelmente marcadas pela facticidade biológica decorpos sexuados, de corpos infantis que são incapa-zes de automanutenção, de todos os corpos quecomem, bebem, copulam, defecam, deterioram emorrem (por exemplo, BUTLER, 1990, 1993). Essaambivalência está resumida na asserção de Braidottide que “o ponto de partida para as redefinições fe-ministas da subjetividade é uma nova forma de ma-terialismo que coloca ênfase na estruturacorporificada e, portanto, sexualmente diferenciada,do sujeito falante” (1994a, p. 199, ênfase minha).E tal é a aparente compulsão de uma tal forma depensar que mesmo uma escritora antinaturalistacomo Elizabeth Grosz, que quer questionar todosos essencialismos e todos os binarismos, sugere que“o corpo” é o material sobre o qual a cultura, a his-tória e a técnica escrevem e, portanto, “a bifurcaçãode corpos sexuados é um universal cultural irredutí-vel” (GROSZ, 1994, p. 160).

Mas “o corpo” é, ele próprio, um fenômeno his-tórico. Nossa presente imagem dos lineamentos eda topografia do “corpo” – seus órgãos, processos,fluidos vitais e fluxos – é o resultado de uma história

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cultural, científica e técnica particular. As proprie-dades do corpo – andar, sorrir, cavar, nadar – nãosão propriedades naturais mas conquistas técnicas(MAUSS, 1979a). Mesmo o caráter aparentementenatural dos limites e das fronteiras do corpo, queparece definir como que inevitavelmente a coerên-cia de uma unidade orgânica, é um fato recente epertence a uma cultura específica (FOUCAULT, 1994;cf. GROSZ, 1994, sobre a história da noção de “ima-gem do corpo”). E quanto aos “dois sexos”, há tan-tos estudos históricos mostrando quão diversa é essaaparentemente imutável divisão, que trabalhos in-telectuais estiveram implicados em estabilizá-la naforma da natureza duplicada do corpo masculino edo corpo feminino, em fazer de nosso desejo sexualnosso desejo secreto, conectando prazer, sexo, vonta-de, saber, reprodução e companheirismo em uma“sexualidade ciborgue” que acabamos por habitarcomo sendo nossa verdade (por exemplo, FEHER,NADAFF & TAZI, 1989; LAQUEUR, 1990; BROWN,1989; cf. VALVERDE, 1985, sobre nossa fabricaçãocomo sujeitos sexualmente desejantes). Daí que gran-de parte da recente ênfase, na escrita feminista, sobreo corpo e sobre a corporificação, conserva a própriaanalítica que busca subverter, deslocando a normali-zação “iluminista” das propriedades da razão e daabstração, ao simplesmente inverter o velho tropode que as mulheres são mais corpóreas, mais car-nais, mas retendo, entretanto, a carne como a pers-pectiva governante da razão feminista. Mas os corpossão sempre “corpos pensados” ou “corpos-pensa-mento”: algum dia, talvez, nós viremos a olhar re-trospectivamente para o “sexo-pensamento-corpo”

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que tanto tem afetado nosso próprio século, nossaprópria repetitiva e cansativa ansiedade sobre nos-sos corpos sexuais, nossos compromissos com a di-ferença de gênero que nos marca tão indelevelmente,as forças transgressivas e os poderes restauradoresdo sexual e tudo o resto, com um certo deleite per-verso (cf. FOUCAULT, 1985a).

Abandonemos, pois, esse “carnalismo” do cor-po de uma vez por todas.10 O corpo é muito menosunificado, muito menos “material” do que costu-mamos pensar. É possível, pois, que não exista essacoisa de “o corpo”: um envelope limitado que podeser revelado para conter no seu interior uma pro-fundidade e um conjunto de operações que funcio-nem à maneira de uma lei. Deveríamos estarpreocupados não com corpos, mas com as ligaçõesestabelecidas entre superfícies, forças e energias par-ticulares. Em vez de falar de “o corpo”, precisaría-mos analisar apenas como um particular “regime decorpo” foi produzido, descrevendo a canalização deprocessos, órgãos, fluxos, conexões, bem como oalinhamento de um aspecto com outro. Em vez de“o corpo”, tem-se, pois, uma série de “máquinas”possíveis, agenciamentos – de dimensões variadas –de humanos com outros elementos e materiais: co-nectados a livros para formar uma máquina literá-ria, a ferramentas para formar uma máquina detrabalho, a bens para formar uma máquina de con-sumo... O corpo é, pois, “não uma totalidade or-gânica que é capaz de expressar globalmente asubjetividade, uma concentração das emoções, atitu-des, crenças ou experiências do sujeito, mas um agen-ciamento de órgãos, processos, prazeres, paixões,

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atividades, comportamentos, ligados por tênues li-nhas e imprevisíveis redes a outros elementos, seg-mentos e agenciamentos” (GROSZ, 1994, p. 120).E os próprios órgãos são “tácteis”: o olho, o nariz,o ouvido, o tato, reúnem pensamento e objeto emsensuais relações de contato, troca e interpenetra-ção, criando uma multiplicidade de novos sentidosatravés de cada qual “reluzem momentos de cone-xão mimética, simultaneamente corporificados ementalizados, simultaneamente individuais e sociais”(TAUSSIG, 1993, p. 23; embora o argumento sejade Taussig, ele está discutindo aqui o trabalho deWalter Benjamin).

Nosso regime de corporeidade deveria, assim, elepróprio, ser visto como a resultante instável dos agen-ciamentos nos quais os humanos são surpreendidos,induzindo uma certa relação consigo mesmos comocorporificados; tornando o corpo organicamente uni-ficado, atravessado por processos vitais; diferencian-do – hoje por meio do sexo, em grande parte de nossahistória por meio da “raça”; dando-lhe uma certaprofundidade e um certo limite; equipando-o comuma sexualidade; estabelecendo as coisas que ele podee não pode fazer; definindo sua vulnerabilidade emrelação a certos perigos; tornando-o praticável a fimde amarrá-lo a práticas e a atividades (sobre “o corpoda mulher”, ver, por exemplo, LAQUEUR, 1990, DU-DEN, 1991; sobre o corpo racializado, ver GILMAN,1985). A questão de Deleuze, que para ele era a ques-tão de Spinoza, “De que um corpo é capaz?” (oque ele pode fazer; que afectos ele pode ter; comoesses afectos reforçam, enfraquecem, capacitam-node diferentes formas; como o multiplicam; como o

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metamorfoseiam?) é um ponto de partida (DELEUZE,1992b, cap. 14). Mas isso apenas na medida emque concordemos que um corpo não é “o corpo”,mas apenas uma relação particular, capaz de ser afe-tada de formas particulares. Trata-se de uma ques-tão de órgãos, de músculos, de nervos, de aparelhosque são, eles próprios, enxames de células em trocaconstante entre si, ligando e separando, morrendo,reconfigurando, conectando e combinando, onde olado de fora de um é, simultaneamente, o lado dedentro de outro. Trata-se também de uma questãode cérebros, hormônios, moléculas químicas, queconectam e transformam as capacidades das váriaspartes – excitando-as, coordenando-as, fundindo-asou desligando-as.

Esses agenciamentos não são delineados peloenvelope da pele, mas ligam o “lado de fora” e o“lado de dentro” – visões, sons, aromas, toques,coleções – juntando-os com outros elementos, ma-quinando desejos, afecções, tristeza, terror e atémesmo morte. Consideremos as variadas maquina-ções das quais o corpo é capaz: a coragem do guer-reiro na batalha, a ternura ou a violência do amante,a resistência do prisioneiro político sob tortura, astransformações efetuadas pelas práticas da ioga, aexperiência da morte vodu, as capacidades de tran-se que tornam os órgãos capazes de suportar quei-maduras ou de recuperar-se de feridas. Não se tratade propriedades de “o corpo”, mas de maquinaçõesdo “corpo pensado”, cujos elementos, órgãos, for-ças, energias, paixões, temores são reunidos por meiode conexões com palavras, sonhos, técnicas, cantos,hábitos, julgamentos, armas, ferramentas, grupos.

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Isso não significa sugerir que os humanos possamser anjos, que possam voar pelas janelas ou quepossam movimentar-se como minhocas, mas queapelos “materialistas” à corporeidade como o “ma-terial” sobre o qual a cultura trabalha não são coi-sas “boas para pensar”. Os corpos são capazes demuita coisa, em virtude, ao menos em parte, de“serem pensados” e nós não sabemos os limites doque essas máquinas-corpo-pensamento são capa-zes.11 Se nos tornamos criaturas psicológicas nãofoi por causa do caráter dado de um interior, nempor causa dos significados de uma cultura, mas porcausa das formas pelas quais, em tantos locais epráticas, os vetores psi acabaram por atravessar epor ligar essas maquinações.

Duas metáforas para as maquinações dos cor-pos-sujeito foram recentemente propostas: perfor-matividade e inscrição. Judith Butler propôs a noçãode performatividade ao desenvolver uma análise daconstrução da “identidade de gênero” que não su-põe qualquer sujeito essencial ou pré-dado situadopor detrás de suas ações. Para Butler, não precisa-mos “nenhuma teoria da identidade de gênero pordetrás de expressões de gênero... a identidade é per-formativamente constituída pelas próprias ‘expres-sões’ que se supõe ser seus resultados” (BUTLER,1990). Sua noção de performatividade baseia-se,aqui, em Austin e Derrida, para argumentar que ogênero é o resultado de atos performativos. “Umato performativo é aquele que faz nascer ou colocaem ação aquilo que nomeia, marcando, assim, opoder constitutivo ou produtivo do discurso... Paraque um performativo funcione, ele deve basear-se e

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recitar um conjunto de convenções lingüísticas quetêm tradicionalmente funcionado para assegurar ouimplicar certos tipos de efeitos” (BUTLER, 1995, p.134). O gênero é, pois, uma fantasia “instituída einscrita na superfície de nossos corpos”, constituí-do por meio dos efeitos de significação engendra-dos pelas perfomances da linguagem (1990, p. 136).Mas essa noção de performatividade limita-se a siprópria ao manter a ênfase no lingüístico. Conside-remos este argumento sobre a performance da fe-minilidade, o qual devo a Susan Bordo (BORDO,1993, p. 19):12

Sente-se em uma cadeira reta. Cruze suas pernasna altura dos tornozelos e mantenha seus joelhospressionados um contra o outro. Tente fazer issoenquanto está conversando com alguém, mas tenteo tempo todo manter seus joelhos fortementepressionados um contra o outro... Corra uma cer-ta distância, mantendo seus joelhos juntos. Vocêdescobrirá que terá que dar passos curtos, altos...Ande por uma rua da cidade... Olhe, em direçãoreta, para a frente. Toda vez que um homem pas-sar por você, desvie seu olhar e não mostre ne-nhuma expressão no rosto.

“Transformar-se em uma pessoa ‘dotada’ de gê-nero”, como reconhece Butler, juntamente commuitas outras pessoas, significa seguir uma prescri-ção meticulosa e continuamente repetida da condu-ta, da aparência, da fala, do pensamento, da vontade,do intelecto, na qual as pessoas são reunidas em umamontagem não apenas ao serem conectadas com osvocabulários mas também com regimes de conduta

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(andar, olhar, fazer gestos), com artefatos (roupas,sapatos, maquiagem, automóveis, panelas, instru-mentos para escrever, livros), com espaços e lugares(salas de aula, bibliotecas, estações de trem, museus)e com os objetos que os habitam (mesas, cadeiras,livros, plataformas, vitrines). A performatividade,ao menos no sentido do modelo da enunciação lin-güística, em que é definida em termos de citações econvenções, é uma imagem bastante enganadorapara pensar esse processo de montagem da pessoa:é necessário insistir que nós não somos “constituídospela linguagem”.

Tampouco é suficiente uma imagem lingüísticadiferente, a da escrita ou da inscrição. Essa noção éutilizada tanto por Butler quanto por Grosz paradescrever a relação entre, por um lado, o corpo esuas superfícies (concebidos como marcados, ins-critos, gravados) e, por outro, “o traçado de textospedagógicos, jurídicos, médicos e econômicos, deleis e práticas na carne a fim de entalhar um sujeitosocial como tal, um sujeito capaz de trabalho, deprodução e manipulação, um sujeito capaz de agircomo um sujeito e, ao mesmo tempo, capaz de serdecifrado, interpretado, compreendido” (GROSZ,1994, p. 117). Em vez de pensar em uma analíticada inscrição, na qual a cultura seria escrita na carne,considero ser mais útil pensar em termos de tecno-logia. Na verdade, como sugeri, a linguagem, a es-crita, a memória podem ser, elas próprias, vistascomo elementos de uma técnica, cada uma delasimplicando verdades, técnicas, gestos, hábitos, apara-tos, reunidos, por meio do treinamento, em uma mon-tagem, e inseridos em associações mais ou menos

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duráveis. Poderemos compreender melhor as práti-cas de subjetivação se as concebermos em termosdas complexas interconexões, técnicas e linhas deforça que se estabelecem entre componentes hete-rogêneos, incitando, tornando possível e estabilizan-do relações particulares conosco mesmos, em locaise lugares específicos. As tecnologias da subjetivaçãosão, pois, as maquinações, as operações pelas quaissomos reunidos, em uma montagem, com instru-mentos intelectuais e práticos, componentes, enti-dades e aparatos particulares, produzindo certasformas de ser-humano, territorializando, estratifi-cando, fixando, organizando e tornando duráveis asrelações particulares que os humanos podem ho-nestamente estabelecer consigo mesmos.

Não existe nenhuma necessidade de supor qual-quer “meio de propulsão” por detrás de todas essastecnologias, nem qualquer força ou desejo primor-dial que circule por esses agenciamentos, fazendocom que seja possível que eles se movam, ajam,mudem, resistam, sofram mutações. A assim cha-mada “questão da agência” coloca um falso proble-ma. Para dar conta da capacidade para agir nãoprecisamos de nenhuma teoria do sujeito que sejaanterior e que resista àquilo que a apreenderia – taiscapacidades para a ação surgem dos regimes e tec-nologias específicos que maquinam os humanosde variadas formas (nesse caso estou de acordo comBUTLER, 1995, p. 136). A heterogeneidade dessas prá-ticas e técnicas – seus múltiplos conflitos, divergênci-as, interconexões e alianças, as diferentes promessasque elas fazem e as variáveis exigências que elas repre-sentam para o ser humano – podem produzir todos

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os efeitos de resistência, apropriação, utilização,transformação e transgressão que os teóricos do pós-moderno têm ressaltado, sem a necessidade de in-vocar uma concepção unificante de “agênciahumana”. Para dizê-lo de outra forma, a agência é,ela própria, um efeito, um resultado distribuído detecnologias particulares de subjetivação, as quais in-vocam os seres humanos como sujeitos de um certotipo de liberdade e fornecem as normas e técnicaspelas quais aquela liberdade deve ser reconhecida,agenciada e exercida em domínios específicos. Naverdade, as disciplinas psi tiveram, ao longo do sé-culo passado, um papel bastante particular na cria-ção das condições para a emergência da nossacapacidade de nos relacionar conosco mesmos comocerto tipo de agente – como “personagens”, porexemplo, com funções nervosas, as quais, quandomoldadas pelo efeito do hábito e da influência so-bre a constituição da pessoa, produzia a impulsivi-dade ou o controle, dependendo do caso: se a pessoaera homem ou mulher, amo ou ama, trabalhadortemporário, funcionário ou servo (cf. SMITH, 1992,cap. 1); ao longo do século XX, como “personalida-des”, como um tipo que estava em posse de certostraços, manifestados nas formas pelas quais a pes-soa reagia à experiência, expressava seus sentimen-tos e se associava a artefatos, gostos, formas de vestir,estilos de gesticulação e expressão; na segunda meta-de do século XX, como “agentes livres” de escolha eautodesenvolvimento, em guerra contra todas asmáquinas que nos maquinariam como bons sujeitosda burocracia e do conformismo, que diminuiriam

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nossa auto-estima e impediriam nosso autodesen-volvimento.

Para nossa própria cultura, a agência é, obvia-mente, parte de uma “experiência” de internalidade– ela parece acumular-se e emergir de nossas pro-fundidades, de nossos instintos, desejos ou aspira-ções interiores. Não há dúvida de que nem semprefoi assim. A clássica interpretação da Ilíada e daOdisséia, feita por E. A. Dodds, sugere que a des-crição homérica dos humanos é mais do que umaquestão de convenção estética: os humanos, paraHomero, eram agenciamentos dispersos, cujos ele-mentos eram a psyche (alma), a thumos (vontade) e onoos (intelecto), cada um deles com seu modo inde-pendente de operação. A ação era entendida nãoem termos de qualquer faculdade interna da agên-cia, mas em termos de forças tais como ate, queobrigavam a pessoa a um curso particular de ação,por meio da intervenção dos deuses, das deusas doDestino, das Fúrias, de sonhos e visões (DODDS,1973; cf. HIRST E WOOLLEY, 1982). Esses exemplospoderiam, obviamente, ser multiplicados: os pode-res explicativos das vozes das deidades ou dos de-mônios, os efeitos motivadores dos xamãs e dosrituais, e mais próximo de nós, talvez, as conseqüên-cias das multidões ou bandos em arrebatar o indiví-duo em um novo e multicéfalo agente com umaúnica – ainda que maligna – vontade. A agência é,sem dúvida, uma “força”, mas é uma força que sur-ge não de qualquer propriedade essencial de “o su-jeito”, mas das formas pelas quais os humanos têmse reunido em um agenciamento.

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ALMAS DOBRADAS

Se hoje vivemos nossas vidas como sujeitos psi-cológicos que vemos como sendo a origem de nossasações, se nos sentimos obrigados a nos colocar a nóspróprios com sujeitos com uma certa e desejada on-tologia, uma vontade de ser, isso se deve às formaspelas quais relações particulares do exterior têm sidoinvaginadas, dobradas, para formar um lado de den-tro ao qual um lado de fora deve sempre fazer re-ferência. Uma vez mais, é Deleuze quem refletiumais instrutivamente sobre uma filosofia da do-bra (DELEUZE, 1992a, 1992b, veja especialmente ouso dessa noção em sua discussão da subjetivaçãoem seu livro sobre Foucault: DELEUZE, 1988, p. 94-123). “O que importa, sempre, é dobrar, desdobrar,redobrar” (DELEUZE, 1992a, p. 137). O conceito dedobra pode fazer surgir um diagrama generalizávelpara pensar as relações, as conexões, as multiplicida-des e as superfícies – sua formação de profundidades,singularidades, estabilizações. Esse diagrama da do-bra descreve uma figura na qual o lado de dentro, osubjetivo, é, ele próprio, não mais que um momento,ou uma série de momentos, por meio do qual uma“profundidade” foi constituída no ser humano. A pro-fundidade e sua singularidade não são, pois, mais doque aquelas coisas que foram escavadas para criar umespaço ou uma série de cavidades, plissados e cam-pos que só existem em relação àquelas mesmas for-ças, linhas, técnicas e invenções que as sustentam.

As linguagens, as técnicas, os locais institucio-nais e as relações enunciativas da medicina clínica

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introduziram dobras profundas no corpo, o lado dedentro do lado de fora, o lado de dentro como umaoperação do lado de fora, como sugere Deleuze emsua discussão da arqueologia que Foucault faz doolhar clínico. Ou, de novo, em relação às técnicaséticas introduzidas pelos gregos, essas devem serentendidas “no sentido de que a relação consigo ad-quire independência. É como se as relações do ladode fora se dobrassem, se curvassem para formar umforro e deixar surgir uma relação consigo, constituirum lado de dentro que se escava e desenvolve segun-do uma dimensão própria” (DELEUZE, 1991, p. 107).Uma vez que essa nova dimensão tenha sido estabe-lecida, o sujeito é agenciado/montado de novas for-mas, em termos de um problema de “autodomínio”,fazendo com que incida sobre si mesmo – aquele ladode dentro atuando sobre si mesmo – o poder quefazemos incidir sobre outros. Nesse mesmo proces-so, o poder que se faz incidir sobre os outros é recon-figurado como uma relação de poder entre o lado dedentro da gente e o lado de dentro do outro.

Esse lado de dentro singularizado e dobrado é,assim, inevitavelmente estabilizado, não em relaçãoa um domínio de processos psicológicos, mas emrelação a uma configuração de forças, corpos, edifí-cios e técnicas que o mantêm no lugar. Para os gre-gos, isso compreendia todo o aparato de formaçãoética estabelecido na cidade, as relações de família,os tribunais, os jogos de poder e de lazer e as rela-ções eróticas por meio dos quais aqueles varões queexerciam o poder eram agenciados. “Eis o que fize-ram os gregos: dobraram a força, sem que ela dei-xasse de ser força. Eles a relacionaram consigo

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mesma. Longe de ignorarem a interioridade, a in-dividualidade, a subjetividade, eles inventaram o su-jeito, mas como uma derivada, como o produto deuma ‘subjetivação’” (DELEUZE, 1991, p. 108). Essarelação consigo mesmo, esse dobramento que pro-duz os efeitos de subjetivação, não é algo passivo.De novo, como observa Deleuze, ela é criada ape-nas ao ser praticada, ao ser levada a efeito, ao seenvolver com as técnicas de governo do corpo e decontrole da dieta, com as técnicas de sexualidade,com os estilos de jogo e esporte, com a oratória e aexposição em público... Embora tivessem inventa-do uma formulação particular dessa dimensão “darelação do ser consigo mesmo”, os gregos não fo-ram, de forma alguma, os últimos – nem provavel-mente os primeiros – a fazê-lo; em vez disso, o queeles exemplificam é uma forma particular de umarelação mais geral, uma relação na qual a subjetiva-ção é sempre uma questão de dobramento. O hu-mano não é nem um ator essencialmente dotado deagência, nem um produto passivo ou um marionetede forças culturais; a agência é produzida no cursodas práticas, sob toda uma variedade de restrições erelações de força mais ou menos onerosas, mais oumenos explícitas, punitivas ou sedutoras, mais oumenos disciplinares ou passionais. Nossa própria“agência” é, pois, a resultante da ontologia que nósdobramos sobre nós mesmos no curso de nossa his-tória e de nossas práticas. Apesar de todos os desejos,inteligências, motivações, paixões, criatividades e von-tade-de-auto-realização que foram dobrados sobre nósmesmos por nossas psicotecnologias, nossa própriaagência não é menos artificial, menos fabricada,

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menos não-natural – e, portanto, não menos real, efeti-va, confusa, técnica, dependente-da-máquina – do quea problemática agência dos robôs, dos replicantes e dasmonstruosas simbioses que Donna Haraway utilizapara pensar nossa existência: ciborgues, híbridos, mo-saicos, quimeras (HARAWAY, 1991, p. 171-2).

Mas o que é que é dobrado? É, sem dúvida, ver-dade que para Deleuze o que é dobrado é semprealguma “força”. Talvez para nossos próprios propó-sitos, devêssemos tratar dessa questão de uma for-ma um tanto modesta. Em outros locais, utilizei otermo “autoridade” para os dobramentos que fa-zem diferença. Obviamente, isso simplesmente no-meia um campo, mas, em princípio, não o defineou o delimita; o importante é que qualquer coisapode ter autoridade. Mas, em qualquer época e lu-gar, nem tudo a tem. Uma análise a ser feita, aqui,seria a da raridade das autoridades na realidade enão a de seus infinitos componentes e possibilida-des. Não é como qualquer coisa que as pessoas po-dem ser agenciadas em qualquer época e lugar par-ticulares; além disso, os vetores que são dobradostêm limites que não são ontológicos mas históricos.O que é invaginado é composto de qualquer coisaque possa adquirir o status de autoridade em umagenciamento particular. As maquinações da apren-dizagem, da leitura, do querer, do confessar, do lutar,do andar, do vestir, do consumir, do curar invaginamuma certa voz (a de nosso sacerdote, a de nosso mé-dico ou a de nosso pai), uma certa invocação de es-perança ou medo (você pode se tornar o que vocêquiser ser), uma certa forma de ligar um objetocom um valor, sentido e afeto (a “italianidade” que

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Barthes tão maravilhosamente revela nas massas Pan-zani ou talvez o “autocontrole” manifestado pelo cor-po escultural da “mulher pós-moderna”), um certopequeno hábito e uma certa técnica de pensamento(morda a bala, olhe antes de saltar, autocontrole étudo, é bom partilhar os próprios sentimentos), umacerta conexão com um artefato dotado de autorida-de (um diário, um dossiê ou um terapeuta).

Foucault, como vimos anteriormente, sugeriuque as tecnologias éticas podem ser analisadas aolongo de quatro eixos; Deleuze transcreve cada umdesses quatro eixos por meio do conceito de dobra-mento (DELEUZE, 1988).13 O primeiro, sugere ele,diz respeito aos aspectos do ser humano que devemser circundados e dobrados – o corpo e seus praze-res para os gregos, a carne e os desejos para os cris-tãos, talvez o eu e suas aspirações para nossa própriaépoca. O segundo, a relação entre forças, diz respei-to à regra de acordo com a qual a relação entre for-ças se torna uma relação consigo mesmo – uma regraque pode ser natural, divina, racional, estética... Está,pois, sempre associada com uma autoridade parti-cular – a do sacerdote, do intelectual, do artista; emnossos próprios dias, talvez a regra oscile entre aterapêutica e a estilística, cada qual associada comdiferentes autoridades. O terceiro, a dobra do saberou a dobra da verdade, surge do fato de que cadarelação consigo mesmo está organizada sobre o eixoda subjetivação do saber e, portanto, da relação denosso ser com a verdade, quer essa verdade seja teo-lógica, quer seja filosófica, quer seja psicológica. Aquarta dobra (aqui Deleuze se refere à noção de “umainterioridade da expectativa”, devida a Blanchot) é a

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dobra da esperança – da imortalidade, da eternida-de, da salvação, da liberdade, da morte ou da sepa-ração. E a subjetivação é, pois, a interação da múltiplavariabilidade dessas dobras, de seus variados ritmose padrões. “E o que dizer, de nossos próprios mo-dos atuais, da moderna relação consigo? Quais sãoas nossas quatro dobras?” (DELEUZE, 1991, p. 112).Meu trabalho de análise tem sido uma tentativa deresponder a essa questão. Concluirei com algumasreflexões sobre o papel que as psicociências e as psi-cotécnicas exercem nesses dobramentos.

PSICOLOGIAS DE SUBJETIVAÇÃO

Sugeri que as disciplinas psi exercem um papelconstitutivo em nossas “quatro dobras”, obviamenteem complexas e variáveis relações com outros veto-res, mas mesmo assim sobrepondo-se a eles, infun-dindo-os, investindo-os, de tal modo que mesmo o“estilo-de-vida” estético, espiritual, econômico, finan-ceiro ou a ética erótica são saturados com as discipli-nas psi em seus regimes enunciativos, em suastecnologias, em seus modos de julgamento e em suasexibições de autoridade. Deixem-me esboçar algu-mas das características desses dobramentos psi.

O aspecto do ser humano que é circundado edobrado em tantos dos agenciamentos contempo-râneos de subjetivação não é nem o corpo/prazernem a carne/desejo, mas o eu/realização. Passamosa ser habitados por uma ontologia psi, por uma ines-capável interioridade que escava, nas profundezasdo humano, um universo psíquico com uma topo-grafia que tem suas próprias características – seus

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planos e platôs, seus fluxos e precipitações, seus cli-mas e tempestades, seus terremotos, suas erupçõesvulcânicas, seus aquecimentos e esfriamentos. Obvia-mente, o mapeamento desse universo psi é incom-pleto e disputado; seus mapas lembram os de homensdo mar de épocas remotas: onde alguns relatam te-rem visto instintos, características herdadas e predis-posições, outros encontraram repressões, projeções efantasias, outros ainda viram a internalização de ex-pectativas sociais e outros mais observaram apenas ainscrição de um regime de recompensas e puniçõescomportamentais. As dinâmicas dessa ontologia sãocontestadas, seja de uma forma ou outra: pelos pro-cessos da auto-estima e da auto-abnegação, do es-tresse e da realização, do desejo e da frustração, dasansiedades e das fobias ou das involuções sadistas deobjetos internos. Mas essas dinâmicas são agenciadaspor meio de vetores que atravessam o envelope dapele. Na verdade, “o corpo” é agora, ele próprio, vis-to menos como um dado corporal do que como umcomplexo orgânico cujas propriedades são marcadaspor esse psi interior – a imagem do corpo, a psicos-somática, a personalidade tendente ao câncer, a gor-dura ou a magreza consideradas como manifestandoo desejo de amor e de um eu interior, a “boa forma”como uma espécie de economia psíquica da auto-estima e de reforço do poder pessoal. A inculcação, aemulação, a mimese, a performance, a habituação eoutros rituais de autoformação escavam e moldamesse espaço “interno” de uma forma psi.

A ontologia humana é estabelecida, assim, emparte, por meio de conexões constitutivas com as tec-nologias psi que a imaginam e que agem sobre ela.

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Essas conexões ativam algo que Michel Taussig ana-lisou, de forma reveladora, em termos de “mimese”– o devir colocado em ação na contínua interaçãoentre a cópia e aquilo que é copiado (TAUSSIG, 1993).A cópia compreende, aqui, tanto uma “representa-ção” – gravura, artefato, objeto, gesto, dança, mo-delo, diagrama – quanto uma forma de ser. “Entre afidelidade fotográfica e a fantasia, entre a iconicidadee a arbitrariedade, entre o todo e a fragmentação,começamos, pois, a sentir quão estranha e complexase torna a noção de cópia” (TAUSSIG, 1993, p. 17). Amultiplicidade dessas breves fulgurações que Taus-sig chama de “mimese” dobra certas “formas de ser”sobre nós – não apenas por meio de “estórias”, nãoapenas por meio de “recompensas e punições”(como se jamais houvesse sido claro o que é o quê),mas por meio da mímica e da imitação, por meioda emulação e da bricolagem, por meio tanto docopiar quanto do diferir. Para nossos propósitos,pois, a dimensão mimética das disciplinas psi podeser vista em aparatos tais como manuais de auto-ajuda centrados no auto-aperfeiçoamento, na auto-estima e no autoprogresso; nos padrões psi forçadosa se tornarem visíveis em todas as sessões que sepassam nos diversos tipos de consultórios; nosmodelos e simulacros de eus desejáveis que servemcomo espelhos para reativar e refletir de volta fabri-cações de subjetividade às quais se pode aspirar; asimagens do eu normal – a criança normal, a mãe nor-mal, a garota normal, o adolescente normal, o pacien-te normal, o trabalhador ou o gerente normal –desenvolvidas em toda e qualquer prática imaginá-vel; as conexões estabelecidas consigo mesmo por

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meio das tecnologias culturais da fotografia, do filmee da propaganda: uma multiplicidade de máquinasmiméticas. A exigência para que a gente seja um certotipo de eu é sempre conduzida por meio de operaçõesque distinguem ao mesmo tempo que identificam (veja,outra vez, TAUSSIG, 1993, sobre esse tema). Para ser oeu que a gente é, a gente não deve ser o eu que a gentenão é – não aquela alma desprezada, rejeitada ou abje-ta. Assim, o tornar-se eu é um copiar recorrente quetanto emula outros eus quanto difere deles. Hoje, ascaracterísticas pertinentes da mimese e da alteridadesão estabelecidas nos vetores dos estilos-de-vida, dassexualidades, das personalidades, das aspirações.

Falar do dobramento dessa ontologia psi emhumanos é acenar – neste estágio não pode ser maisdo que isso – para os processos que escavam um in-terior por meio do dobramento dos componentespsi que têm sido distribuídos através desses aparatose dessas tecnologias. Esse espaço psi é composto deuma complexa mistura de elementos da pesquisapsicológica nos humanos e nos animais, nas estóriase nas fabulações, nas autobiografias e nas históriasde caso. Ele é “ficcional” apenas no sentido de queo psi “inventa” e reinventa mundos imaginados embusca daquilo que toma como sua premissa: de queum mundo real habita nosso ser como humanos (cf.HARAWAY, 1989). E embora seja, sem dúvida, ver-dade que as características desse mundo dobradosão tão amarrotadas, torcidas, esfarrapadas e puídasquanto os materiais de que é feito, nossas relaçõesconosco mesmos têm sido, não obstante, por pelomenos um século, irrevogavelmente marcadas pornossa dobra do eu, pois é esse nome que nossa época

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tem dado ao agitado universo no interior do qualtodos os humanos serão registrados, localizados,explicados e afetados.

Pelo menos uma dimensão-chave da dobra daautoridade, hoje, pode ser chamada de “terapêuti-ca”: é de acordo com uma regra terapêutica que aslinhas de força são flexionadas para se transformarem um espaço moldado de acordo com o eu emnossa existência e experiência. “Terapêutica”, aqui,não no sentido de um privilégio concedido à pró-pria “psicoterapia”, ou mesmo apenas em termos daproliferação dos ramos e variedades de psi – psicólo-gos forenses com sua construção de perfis de crimi-nosos e vítimas; psicólogos do esporte com seusexercícios mentais para se ter sucesso no campo ouna pista; consultores organizacionais com seus pro-tocolos de uma crescente produtividade e harmo-nia, por meio de uma ação sobre as inclinações deauto-realização dos empregados e semelhantes. “Te-rapêutica”, em vez disso, no sentido de que a rela-ção consigo mesmo é, ela própria, dobrada emtermos terapêuticos – problematizando a si mesmode acordo com os valores da normalidade e da pato-logia, diagnosticando nossos prazeres e desgraçasem termos psi, buscando retificar ou melhorar nos-sa existência cotidiana por uma intervenção em um“mundo interior” que temos dobrado como sendotanto fundamental para nossa existência como hu-manos quanto, entretanto, tão próximo à superfíciede nossa experiência do cotidiano. É essa relaçãoterapêutica conosco mesmos e os componentes con-siderados autorizados dessa relação que têm se mul-tiplicado em nosso presente, uma multiplicação dos

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condutos entre as autoridades que falam as verdadesde nós mesmos e as formas nas quais agimos sobrenossa própria existência, na compreensão, no plane-jamento e na avaliação de nossas paixões, nossosmedos e nossas esperanças cotidianas. O eu é produ-zido no processo de praticá-lo, produzido, portanto,como uma interioridade que é complexa e contesta-da. Essa interioridade fraturada – por meio da inter-secção da multiplicidade de atividades e julgamentosque fazemos incidir sobre nós mesmos no curso derelacionar nossa existência sob diferentes descriçõese em relação a diferentes imagens ou modelos – assanções, as seduções e as promessas pelas quais atri-buímos a essas formas terapêuticas de praticar a sub-jetividade um valor e uma autoridade.

E o que podemos dizer sobre a quarta dobra, oque podemos esperar dela? O que dobramos, o quenos dobra, é uma aspiração tão patética quanto co-movedora; não é mais patética e comovedora, en-tretanto, do que nosso esforço por maximizar nossosestilos-de-vida e nos realizar como pessoas por meiode nossas relações com outras pessoas – nossos aman-tes, nossos filhos, nossas mães e nossos pais, nossascomunidades. A essa esperança demos o nome de“liberdade”. Essa esperança não é uma esperança delibertação para o mundo e seus cuidados, misérias eobrigações urbanos – “ligue-se, sintonize-se e caiafora”. Não se trata, tampouco, de uma libertação doslaços da servidão e da sujeição: “livre, finalmente, livre,finalmente, graças ao Deus poderoso, livre, finalmen-te”. Em vez disso, os sinos de uma liberdade bemdiferente ecoam em nossos sonhos: um modo de serno mundo no qual atribuímos valor às nossas vidas

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na medida em que somos capazes de construí-lasem termos que são simultaneamente políticos (li-vres para escolher) e psicológicos (livres para esco-lher em nome de nós mesmos e não em nome denossa subordinação à autoridade de um outro, emrelação à sombra formada por nossos pais internali-zados ou pelas restrições impostas por nosso temorda própria liberdade). Uma aspiração louvável? Semdúvida, mas uma aspiração que não existe em umarelação de externalidade com nossas ansiedades e frus-trações: esse sonho de liberdade constitui as própriasformas pelas quais nós codificamos e experienciamosnós mesmos e as formas pelas quais dividimos nósmesmos daquilo que, em nós mesmos, e daquiloque, nos outros, não está de acordo com esse sonhoou que fracassa por seus princípios.

O EFEITO PSI

Para investigar essas hipóteses mais diretamen-te, podemos começar por estabelecer algum tipo detopografia dos espaços psi, das práticas ou dos agen-ciamentos pelos quais nossa subjetividade é maqui-nada. Poderíamos chamar isso de “o onde” do psi:sua territorialização. É possível identificar uma va-riedade de agenciamentos nos quais uma tal territo-rialização tem sido organizada: máquinas desejantes,máquinas de trabalho, máquinas pedagógicas, má-quinas punitivas, máquinas curativas, máquinas deconsumir, máquinas de guerra, máquinas de esporte,máquinas de governo, máquinas espirituais, máqui-nas burocráticas, máquinas de mercado, máquinasfinanceiras. Isso não significa afirmar o domínio do

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psi em nossa experiência, pois não se poderia dizero mesmo, por exemplo, das linguagens, das ima-gens, das técnicas e das seduções da economia? Nãosignifica tampouco identificar uma “causa” externade todas essas transformações e mutações que vie-ram a permear tão amplamente toda nossa existên-cia. Mas significa registrar esse “efeito psi” no sentidode “efeito” de Deleuze, no sentido de “efeito” dodiscurso científico, tal como no efeito Kelvin ou noefeito Compton, por exemplo: “Um tal efeito não éem absoluto uma aparência ou uma ilusão; é umproduto que se estende ou se alonga na superfície eque é estritamente co-presente, co-extensivo à suaprópria causa e que determina essa causa como cau-sa imanente, inseparável de seus efeitos (DELEUZE,1998, p. 73, citado em BURCHELL et al., 1991, p. ix).Isto é, o efeito psi não deve ser identificado comuma causa particular, mas, antes, delineado pela des-crição das formas pelas quais a existência humanase torna inteligível e praticável, sob uma certa des-crição, em toda uma multiplicidade de pequenos“cenários éticos” que permeiam nossa experiência.

Por “cenários éticos” quero significar os diver-sos aparatos e contextos nos quais uma particularrelação com o eu é administrada, forçada e agencia-da, e na qual pode-se prestar uma atenção terapêu-tica àqueles que se sentem desconfortáveis com adistância entre sua experiência de suas vidas e asimagens de liberdade e de eu às quais eles aspiram.Trata-se, em parte, de uma questão da moldagemdo próprio espaço. Temos muitos e instrutivos es-tudos da arquitetura “disciplinar”, das relações doscorpos, dos olhares e das atividades nas máquinas

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de moralidade inventadas no século XIX: prisões,escolas, hospícios, reformatórios... (MARKUS, 1993;cf. ROSE, 1995a). Mas, com a exceção da atençãoque os autores têm dedicado, recentemente, aosshoppings e às lojas de departamento, temos poucosestudos da “arquitetura sedutora” de nossa própriaépoca (sobre espaços de consumo, veja BOWLBY,1985, e SHIELDS, 1992; veja também a interessantediscussão em ERÄSAARI, 1991). Isso exigiria que fôs-semos além dos espaços tutelares das escolas, dostribunais, da visita dos assistentes sociais, da cirur-gia dos médicos, das enfermarias dos hospitais psi-quiátricos, da entrevista com o diretor de recursoshumanos. Exigiria que examinássemos também apenetração do psi na configuração da casa, do giná-sio de esportes, do consultório do analista, do gru-po terapêutico, da sessão de aconselhamento, doencontro de aconselhamento de casais, dos progra-mas radiofônicos de conversa telefônica com osouvintes. Além disso, uma topografia dos cenárioséticos precisaria examinar os arranjos espaciais emateriais estabelecidos pela cornucópia de cursos eexperiências de treinamento que buscam instrumen-talizar uma nova concepção psicológica das relaçõeshumanas. De particular importância aqui seria aforma pela qual a coleção de pessoas no espaço e notempo tem sido reconstruída como grupos atraves-sados por forças inconscientes de projeção e identi-ficação, permitindo não apenas uma nova dimensãopara a explicação dos problemas coletivos, mas umanova gama de técnicas – desde grupos T até às tera-pias de grupo – para administrá-los terapeuticamen-te. Uma multiplicidade de cenários tem sido

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inventada para a interação terapêutica com o sujei-to humano, uma gama de locais para cura, reforma,conselho e orientação tem sido transformada de acor-do com o “efeito psi”.

Sobre que coisas há ação? Que linhas, forças,superfícies ou fluxos de ser humano são capturadosnessas máquinas? Desejos? Sim: sem dúvida um dosvetores de nossa relação contemporânea conoscomesmos passa através dos fluxos de pulsões, fanta-sias, repressões, projeções, identificações e dos im-pulsos de fala e conduta que são estabelecidos nointerior dessa ontologia desejante. Mas, como suge-ri, seria sensato evitar construir alguma metafísica dodesejo, ou ao menos deixar esse projeto para nossosfilósofos. Para o genealogista, o desejo é apenas umdos vetores da maquinação psicológica contemporâ-nea do ser humano, de nosso atual “efeito psi”. Po-deríamos também querer enfatizar os vetores quefluem em torno da superficialidade do próprio “com-portamento” – as pedagogias das habilidades sociaise do estilo-de-vida e todas as tecnologias comporta-mentais que elas fizeram surgir. Talvez igualmenteimportantes no interior das novas obrigações éti-cas de realização pessoal seja a nova relação do eu-para-com-o-eu exemplificada pela noção de auto-estima: “uma inovação que transforma a relaçãode si para consigo em uma relação que é governá-vel” (CRUIKSHANK, 1993), no curso da qual todauma procissão de técnicas psi tem sido desenvolvi-da – induzindo um novo vocabulário de auto-res-peito, exercícios envolvendo a narrativização da vidada pessoa em uma variedade de cenários terapêuti-cos, pedagógicos ou íntimos. Além disso, apesar

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de não parecer implicar de forma tão direta umaontologia psi, precisamos examinar as técnicas decomposição e adorno da carne (estilos de andar,vestir, gesticulação, expressão, a face e o olhar, ospelos corporais e os adornos) – toda uma maquina-ção do ser – em termos de uma relação entre, de umlado, o exterior e o visível e, de outro, o interior e oinvisível. Pois também essa relação, ao longo docurso do século XX, tem sido composta e caracteri-zada por meio das tecnologias culturais da propa-ganda e do marketing que têm desenvolvido apara-tos psi para compreender e agir sobre as relaçõesentre pessoas e produtos em termos de imagens doeu, de seu mundo interior e de seu estilo-de-vida.Cobrindo todas as suas diferenças, as técnicas con-temporâneas de subjetivação operam por meio doagenciamento, em toda uma variedade de locais, deuma interminável hermenêutica e de uma relaçãosubjetiva consigo mesmo: um constante e intensoauto-exame, uma avaliação das experiências pes-soais, das emoções e dos sentimentos em relação aimagens psicológicas de realização e autonomia.

Em todas essas maquinações do ser, em todos es-ses heterogêneos agenciamentos, uma série de te-mas é recorrente: escolha, êxito, autodescoberta,auto-realização. Isto é, as práticas contemporâneasde subjetivação colocam em jogo um ser que deveser anexado a um projeto de identidade e a um proje-to secular de “estilo-de-vida”, no qual a vida e suascontingências adquirem sentido na medida em quepossam ser construídas como o produto da escolhapessoal. Seria tolo afirmar que a psicologia e seusexperts são a origem de todas essas máquinas de

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subjetivação – trata-se, antes, de uma questão decomo os agenciamentos de paixão e prazer, de tra-balho e consumo, de guerra e esporte, de estética eteologia, têm dado aos seus sujeitos uma forma psi-cológica. No livro do qual esse ensaio foi extraído(ROSE, 1996), comecei a mapear as formas pelasquais os modos psicológicos de explicação, as asser-ções de verdade e os sistemas de autoridade têmparticipado na elaboração de códigos morais queenfatizam um ideal de autonomia responsável, aomoldar esses códigos em uma certa direção “tera-pêutica” e ao aliá-los com programas para regularos indivíduos em consonância com as racionalida-des políticas das democracias liberais avançadas.

EUS QUE SE DESFAZEM

É possível sugerir, como fiz no livro há poucomencionado (ROSE, 1996), que uma das caracterís-ticas intrigantes e possivelmente esperançosas denossa atual topografia ética é a heterogeneidade doterritório mapeado pelas maquinações do eu, a va-riedade de atributos da pessoa que elas identificamcomo sendo de importância ética e as variadas for-mas de calibrá-las e avaliá-las que elas propõem. Éimportante, entretanto, reconhecer simultaneamenteque este território ético não é um espaço livre: asrelações das pessoas consigo mesmas são estabiliza-das em agenciamentos que variam de setor para se-tor, operando via diferentes tecnologias, dependendoda identificação da pessoa – se ajustada ou mal-ajus-tada, se homem ou mulher, se rico ou pobre, bran-co ou negro, empregado ou desempregado,

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operando sob diferentes formas de autoridade naprisão e na fábrica, no supermercado e no cabelei-reiro, nos quartos de dormir da casa conjugal e nosbordéis das zonas de prostituição, nos novos terri-tórios da exclusão e da marginalização que emer-gem da fragmentação do social. Mas isso nãosignifica dizer que o efeito psi que estive mapeandoestá confinado a uma elite cultural. Novos modosde subjetivação produzem novos modos de exclu-são e novas práticas para reformar as pessoas quesão assim excluídas: como, por exemplo, no desen-volvimento das tecnologias comportamentais tãoamplamente utilizadas nas práticas de reforma quebuscam “dar poder” a seus sujeitos e restaurá-los aostatus de cidadãos dotados da capacidade de livreescolha (BAISTOW, 1995). Os novos modelos psi depessoalidade e os regimes éticos aos quais eles estãoligados não têm qualquer caráter político intrínse-co: eles têm uma versatilidade que lhes permitemmultiplicar, proliferar, ser traduzidos e utilizados sobformas que não são dadas por uma lógica interna,seja de emancipação, seja de dominação.

Entretanto, embora eu tivesse enfatizado a hete-rogeneidade dos dobramentos que agenciaram nos-sas relações contemporâneas conosco mesmos,também tentei argumentar que elas operam de acor-do com um “diagrama” comum, partilhado. Por“diagrama” refiro-me àquilo que Deleuze e Guattaridescrevem como “máquinas abstratas” – não algoque seja a causa ou origem de todas as máquinasreais que temos investigado, mas como sendo ima-nentes nelas. Uma máquina abstrata é, neste con-texto, nada mais que um diagrama de coisas que

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elas têm em comum, uma espécie de plano irreal deprojeção de todos os agenciamentos e maquinaçõesheterogêneos – da mesma forma pela qual, na análisede Foucault, a “disciplina” era o nome de uma espé-cie de máquina abstrata que era imanente na prisão,na escola, nos quartéis (MP1, p. 83; cf. FOUCAULT,1977). Esse diagrama, esse a priori histórico, é apositividade aberta por nossos regimes contempo-râneos de subjetivação, uma positividade trazida àexistência pelo saber e pelas práticas das ciênciashumanas, estabelecendo para elas, ao mesmo tem-po, o próprio império que elas iriam mapear, colo-nizar, povoar e conectar pelas redes de pensamentoe ações. Se podemos parafrasear Michel Foucault,isso “diagrama” um ser que, do interior dos discur-sos que o rodeiam e das práticas pelas quais ele éagenciado/montado, é capacitado a saber, ou obri-gado a saber, aquilo que está em sua positividade –um ser que pensa a si mesmo tanto como livre quan-to como determinado pelas positividades essenciaisa si mesmo, que delimita a possibilidade de suaspráticas de liberdade no mesmo momento em queconcede a essas positividades o status de verdade(cf. FOUCAULT, 1985b).

Esse ser psicológico está agora colocado na ori-gem de todas as atividades de amar, desejar, falar,trabalhar, adoecer e morrer: a interioridade que temsido dada aos humanos por todos esses projetos quebuscam conhecê-los e agir sobre eles a fim de dizer-lhes sua verdade e tornar possível seu aperfeiçoamentoe sua felicidade. É esse ser, cuja invenção é tão recen-te, embora tão fundamental à nossa experiência con-temporânea, que buscamos hoje governar sob o ideal

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regulativo da liberdade – um ideal que impõe tantascargas, ansiedades e divisões ao mesmo tempo queinspira projetos de emancipação e no nome do qualviemos a autorizar tantas autoridades para nos aju-dar no projeto de sermos livres de qualquer autori-dade menos a nossa própria. Embora não estejamos,sem dúvida, nem na aurora de uma nova era nemno crepúsculo de um tempo passado, podemos, tal-vez, começar a discernir o rachar desse espaço deinterioridade que foi uma vez seguro, o desconectarde algumas das linhas que formaram esse diagrama,a possibilidade de que, mesmo que não possamosdesinventar a nós mesmos, possamos ao menos re-forçar a questionabilidade das formas de ser que têmsido inventadas para nós e começar a inventar a nósmesmos de forma diferente.

NOTAS

1 Traduzi self por “eu”, consciente da imprecisão dessa tradu-ção, uma vez que “eu” não tem a mesma conotação de“reflexividade” de self (N. do T.).

2 As referências ao livro Mil platôs, de Deleuze e Guattari,serão abreviadas por MP, seguido do número do corres-pondente volume da edição brasileira (N. do T.).

3 No original assemblage, “o ato ou efeito (resultado) de reu-nir diferentes partes para formar um novo objeto”, comona montagem de uma máquina ou de um carro, por exem-plo. Tem sentido similar à palavra francesa agencement,amplamente utilizada por Deleuze e Guattari, em Mil pla-tôs, e que os tradutores brasileiros decidiram traduzir peloneologismo (em português) “agenciamento”. O tradu-tor de Mil platôs para o inglês, por sua vez, decidiu tra-duzir agencement precisamente por assemblage. Assim,assemblage será traduzida, aqui, por “agenciamento”, nes-se sentido de montagem, arranjamento, combinação. O

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verbo to assemble, por sua vez, será traduzido, correspon-dente, por “agenciar” ou, em alguns casos, por “mon-tar”, “reunir” ou “combinar”, nas suas diferentes formasverbais. Tenha-se em mente, entretanto, sua associaçãoa assemblage (= agenciamento=montagem) (N. do T.).

4 Ao desenvolver o argumento deste ensaio e, em particular,ao utilizar o trabalho de Deleuze e Guattari, beneficiei-meenormemente da leitura da extensa meditação de ElizabethGrosz sobre a analítica do corpo (1994). Embora me en-contre em desacordo com algumas de suas conclusões, meupensamento deve muito a suas esclarecedoras discussões. Otrabalho de Deleuze e Guattari tem sido também utilizadoem uma variedade de estudos que eu não pude levar emconta aqui. Qualquer pessoa que esteja familiarizada com otrabalho de Deleuze reconhecerá imediatamente que eu re-solvi compreender de maneira diferente alguns de seus con-ceitos e evitar muitos outros; por exemplo, o leitor nãoencontrará aqui qualquer “corpo sem órgãos” nem uma re-dução empiricista da problemática do desejo.

5 Devo enfatizar outra vez, aqui, como fiz em outras partes dolivro do qual este ensaio foi extraído (ROSE, 1996), que afir-mar que a subjetividade é tecnológica não significa alinhar-secom as vigorosas críticas sobre os efeitos malignos da ordemtecnológica sobre a subjetividade mais estreitamente associa-das com os escritores da Escola de Frankfurt. A tecnologianão esmaga a subjetividade – ela produz a possibilidade deque os humanos se relacionem consigo mesmos como sujei-tos de certo tipo, bem como as possibilidades de que elesresistam ou recusem certos regimes de subjetivação.

6 Quando estava concluindo este ensaio, tomei conhecimen-to da coletânea de Constantin Boundas e Dorothea Olko-wski (1994) sobre Deleuze, tendo-me beneficiado, emparticular, do capítulo escrito por Boundas (1994).

7 Lembro-me, aqui, em particular, das formas pelas quais Don-na Haraway liga o empreendimento da primatologia com aescrita da ficção científica, e como essa última imagina ou-tras formas de relações entre as criaturas (1989, especial-mente capítulo 16).

8 A referência à retórica, aqui, deveria indicar que tampoucodevemos colocar a fala no lado da natureza.

9 Beneficiei-me aqui da leitura de um capítulo do estudo, a

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10 Veja Deleuze e Guattari (1994) para algumas observaçõessugestivas sobre o “carnalismo”.

11 Obviamente, muitos dos escritores que enfatizam a im-portância de “o corpo” também tentam reconhecer isso:isto é, aquilo que parece estar implicado na afirmação deBraidotti, de que “o corpo” “não deve ser entendido nemcomo uma categoria biológica nem como uma categoriasociológica, mas, em vez disso, como um ponto de inter-secção entre o físico, o simbólico e as condições sociaismateriais” (1984b, p. 161).

12 Bordo cita a partir de um artigo intitulado “Exercises forMen”, por Williamette Bridge Liberation News Service,em The Radical Therapist, dezembro-janeiro, 171.

13 Adaptei a linguagem de Deleuze para que servisse aos meuspróprios objetivos. A divisão quádrupla de Foucault – quepode, sem dúvida, ser remontada a Aristóteles – é formadapor ontologia, ascética, deontologia e teleologia. Veja Fou-cault, 1984, 1985c, 1986b; Rose, 1995a; Dean, 1994.

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Sobre as autoras e os autores

Elizabeth Ellsworth é Professora de Currículo e Instru-ção na Universidade de Wisconsin-Madison. Sua maisrecente publicação é Teaching Positions. Difference, Peda-gogy, and the Power of Address (Teachers College Press), deonde foi extraído o ensaio aqui traduzido.

Francisco Javier Tirado (Barcelona,1968) é ProfessorAuxiliar de Psicologia Social do Departamento de Psico-logia da Saúde e Psicologia Social da Universidade Autô-noma de Barcelona. Sua linha de pesquisa principal secentra no estudo e aplicação de novos conceitos para pen-sar o social. Nessa linha, publicou Against Social Cons-tructionist Cyborgian Territorialisations e, juntamente comMiquel Doménech e José Manuel Alcaráz, A Change ofEpisteme for Organizations: A Lesson from Solaris. Outra desuas linhas de trabalho centra-se na temática das institui-ções e suas transformações sociais. Sobre esse tema publi-cou, juntamente com Miquel Doménech, Extituciones: delpoder y sus anatomías e, com Miquel Doménech, SilviaTravesset e Ana Vitores, La desinstitucionalización y la cri-sis de las instituciones.

Marcus Doel é Professor de Geografia Humana, daUniversidade Swansea, País de Gales. Algumas de suaspublicações: Poststructuralist Geographies: The DiabolicalArt of Spatial Science (Rowman & Littlefield); “A hun-dred thousand lines of flight: a machinic introduction tothe nomad thought and scrumpled geography of GillesDeleuze and Félix Guattari” in Environment and Plan-ning D: Society and Space, 14, 1996: 421–439; “Un-glunking geography: spatial science after Dr Seuss and

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Gilles Deleuze.” In: Thinking Space (Routledge, London).Homepage: http://ralph.swan.ac.uk/personal/mad/

Lucía Gómez Sánchez (Valencia,1970) é Professora Au-xiliar de Psicologia Social no Departamento de PsicologiaSocial da Universidade de Valencia. Sua pesquisa pretendeanalisar criticamente a Psicologia Social a partir de umaperspectiva pós-estruturalista, bem como uma problemati-zação da identidade em relação com o movimento feminis-ta. Entre seus trabalhos se destacam: Política de la verdad yPsicología Social (tesis de licenciatura), Psicología y Regulaci-ón Social, Deleuze y la psicología Social: identidad y multiplici-dad, De la liberación a las prácticas de libertad: reflexionesdesde el pensamiento de la diferencia sexual.

Miquel Domènech (Barcelona,1960) é Professor Titu-lar de Psicologia Social do Departamento de Psicologiada Saúde e Psicologia Social da Universidade Autônomade Barcelona. Seus trabalhos de pesquisa giram, funda-mentalmente, ao redor de dois eixos básicos: as relaçõesde poder a psico-sociologia do conhecimento científico.Entre suas publicações pode-se destacar a coordenação,juntamente com Tomás Ibáñez, de um número mono-gráfrico da revista Anthropos sobre Psicologia Social Crí-tica e a coordenação, juntamente com Francisco J. Tirado,de Sociologia simétrica. Ensayos sobre ciencia, tecnologia y so-ciedad, publicado por Gedisa.

Nikolas Rose é Professor de Sociologia da Faculdadede Ciências Sociais e Matemáticas do Goldsmith’s Col-lege, Universidade de Londres. É autor de The Psycholo-gical Complex: Psychology, Politics and Society in England,1869-1939 (Routledge) e Governing the Soul: The Sha-ping of the Private Self (Routledge). Suas publicações maisrecentes: Power of Freedom: Reframing Political Thought(Cambridge University Press) e The Self: A Reader (FreeAssociation Books).

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