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“Nós temos que fazer o oposto do ‘escola sem partido’, nós precisamos como sociedade, ter claro que o papel da escola é o de debater questões polêmicas”, comenta Ivã Gurgel, professor do Instituto de Física da USP, ao falar sobre o tema negacionismo científico e ensino de Ciências Por Caian Cremasco Receputi Em entrevista concedida à Revista BALBÚRDIA, Ivã Gurgel, professor do Instituto de Física da USP, fala so- bre o tema negacionismo científico e ensino de Ciên- cias, argumentando que o papel da escola deveria ser o de fomentar o debate de questões polêmicas. O professor Ivã Gurgel é licenciado em Física pelo IFUSP (2004), mestre em Ensino de Ciências pelo PIEC-USP (2006) e doutor em Educação pela FE-USP (2010). Realizou estágio de doutorado no laboratório SPHERE - Sciences, Philosophie e Histoire do CNRS-França. Atualmente é professor no Instituto de Física da USP. Realiza pesquisa nas áreas de História da Ciência, Epistemologia e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: História da Física nos Séculos XIX e XX, História da Ciência no Brasil, Estu- dos Culturais da Ciência e Teorias Críticas de Currículo. É membro do Cen- tro de História da Ciência da USP e coordena o Grupo de Teoria e História dos Conhecimentos (TeHCo) e o Acervo Histórico do IFUSP.

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Page 1: “Nós temos que fazer o oposto do ‘escola sem partido’, nós

““

“Nós temos que fazer o oposto do ‘escola sem

partido’, nós precisamos como sociedade, ter claro

que o papel da escola é o de debater questões polêmicas”,

comenta Ivã Gurgel, professor do Instituto de

Física da USP, ao falar sobre o tema negacionismo científico

e ensino de CiênciasPor Caian Cremasco Receputi

Em entrevista concedida à Revista BALBÚRDIA, Ivã Gurgel, professor do Instituto de Física da USP, fala so-bre o tema negacionismo científico e ensino de Ciên-cias, argumentando que o papel da escola deveria ser o

de fomentar o debate de questões polêmicas.

O professor Ivã Gurgel é licenciado em Física pelo IFUSP (2004), mestre em Ensino de Ciências pelo PIEC-USP (2006) e doutor em Educação pela FE-USP (2010). Realizou estágio de doutorado no laboratório SPHERE - Sciences, Philosophie e Histoire do CNRS-França. Atualmente é professor no Instituto de Física da USP. Realiza pesquisa nas áreas de História da Ciência, Epistemologia e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: História da Física nos Séculos XIX e XX, História da Ciência no Brasil, Estu-dos Culturais da Ciência e Teorias Críticas de Currículo. É membro do Cen-tro de História da Ciência da USP e coordena o Grupo de Teoria e História dos Conhecimentos (TeHCo) e o Acervo Histórico do IFUSP.

Page 2: “Nós temos que fazer o oposto do ‘escola sem partido’, nós

Em entrevista concedida à Revista BALBÚRDIA, Ivã Gur-

gel, professor do Instituto de Física da USP fala sobre os

temas negacionismo científico e ensino de Ciências. Soli-

citamos ao professor que comentasse sobre a disciplina

“Por que confiar nas Ciências? Epistemologias para o nos-

so tempo”, ministrada no final de 2020. O professor des-

taca que é preciso olhar para o negacionismo científico de

outra maneira, é preciso ultrapassar o caráter demasiada-

mente lógico e epistemológico das Ciências e olhar para

a perspectiva humana da atividade científica. Para Ivã, o

primeiro passo para enfrentar o negacionismo é o de es-

cutar as pessoas, tendo o cuidado de buscar compreender

o que deve ser mobilizado para responder às inquietações

em relação às Ciências. Neste sentido, o professor defen-

de que o diálogo é o principal instrumento para superar

a onda negacionista em que vivemos e, que ao contrário

do que prega o movimento ‘escola sem partido’, a escola

deveria ser o local privilegiado para a realização de deba-

tes sobre questões polêmicas. A entrevista foi realizada à

distância, mais especificamente com a realização de uma

videochamada, devido às restrições impostas pela pande-

mia de Covid-19.

BalBúrdia - recentemente você organizou uma dis-ciplina intitulada “por que confiar nas ciências? epistemologias para o nosso tempo”. o que o levou a propor essa disciplina? nos conte um pouco soBre ela, como foi estruturada, o que foi aBordado ao longo da disciplina, quais foram os palestrantes e como foi a recepção dos estudantes.

ivã gurgel - Vou iniciar pontuando questões relacionadas

à disciplina. O primeiro ponto que gostaria de destacar é

uma certa compreensão da forma como eu vejo a Filosofia

e a Epistemologia, indicando que elas possuem um papel

social importante. Digo isso, porque ao conversar com as

pessoas, é possível perceber que normalmente elas têm

uma visão distante da Filosofia, ou como se a Filosofia fos-

se algo distante das nossas vidas. Mas não é bem assim,

a Filosofia questiona as questões básicas de nossa vida,

de nossa vida em sociedade, do que é o conhecimento,

do que é a moral, por exemplo. Nesse sentido, a proposta

da disciplina, que tem um título que tenta ser um pouco

provocativo, em forma de questão “por que confiar nas

Ciências?” e um subtítulo que busca indicar que a reflexão

filosófica possui um papel social relevante “epistemologias

para o nosso tempo”, justamente para fornecer elemen-

tos que nos auxilie a pensar nas questões da atualidade

e, de certa forma, colocar por um lado, uma provocação,

mas por outro lado, que não existe ainda uma resposta

suficientemente completa. Temos que lembrar que esta

não é uma questão nova, é uma questão que está na ori-

gem da Epistemologia, pois ela marca a própria natureza

do que é a Epistemologia, uma área do conhecimento que

se dedica a entender o que é o próprio conhecimento.

Portanto, colocá-la como pergunta também é dizer que

muitas respostas foram elaboradas ao longo dos séculos,

por exemplo, se nós olhamos para o século XX, podemos

perceber que há toda uma tradição da Filosofia da Ciência,

com Karl Popper dentre outros que já lidaram com essa

questão, mas que talvez com a situação atual do mundo

e com os dilemas que nós temos enfrentado, as respos-

tas apresentadas não sejam suficientes para respondê-la.

Portanto, o título da disciplina tem a ideia de indicar que

nós temos que construir respostas para essas questões,

ou seja, não é só conhecer as respostas prontas, mas sim

construir respostas e acreditar profundamente que elas

ainda precisam ser formuladas e aperfeiçoadas. Essa foi

a minha motivação para se organizar essa disciplina, a de

criar um espaço onde pessoas possam se encontrar para

repensar estas questões, propor coisas novas, colocar

ideias em discussão.

Para isso, o principal critério para convidar os palestran-

tes foi o de trazer pessoas com diferentes olhares, pois a

minha intenção foi a de trazer pessoas com visões muito

diferentes entre si. Não vou negar que há um certo núcleo

duro, que são pessoas da própria filosofia, nomes mais

consagrados, por exemplo, o Alberto Cupani, o Antônio

Augusto Videira, o próprio encerramento da disciplina

foi marcado com o professor Michel Paty conjuntamente

com alguns de seus ex-alunos, Olival Freire Júnior, Tatia-

na Roque, pessoas formadas por Paty, mas que hoje já são

consagradas, portanto o encerramento teve um certo ar

de grand finale. Mas como eu não tinha a intenção de en-

cerrar a discussão sobre esse tema dentro de uma disci-

plina específica, fiz questão de trazer pessoas de diversas

áreas. Tanto das humanidades, com pessoas da História,

da Sociologia, que é um disciplina que muitas vezes não

tem o papel de destaque que merece, pois normalmente

se aborda a História e a Filosofia das Ciências, mas deixa-

-se a sociologia de lado, mas a considero como uma das

mais importantes, ou a que mais nos conecta com o tem-

po atual, como também, pessoas que possuem toda a for-

mação e carreira nas Ciências da Natureza. Isso porque

muitos que trabalham com a História, a Filosofia e a So-

ciologia das Ciências possuem formação inicial nas áreas

de Química, Física e Biologia. Por exemplo, o Paulo Arta-

xo, que é muito reconhecido porque atua no IPCC (Painel

Intergovernamental de Mudanças Climáticas), e é um dos

cientistas mais reconhecidos em relação ao assunto de

mudanças climáticas, e o Rogério Rosenfeld, presidente

da Sociedade Brasileira de Física (SBF), e que também

participou da disciplina. E claro que esse critério amplo,

quase um não-critério, refletiu um pouco como cada pa-

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17Revista BALBÚRDIA 17

lestrante lidou com a própria questão, algo curioso foi que

a questão de partida foi um pouco subvertida por cada

pessoa para que ela pudesse trabalhar com os temas que

se sentissem mais à vontade. Por exemplo, teve uma mesa

redonda com dois físicos falando sobre física nuclear, este

foi um exemplo muito concreto que os palestrantes opta-

ram em abordar. Teve outras mesas que os palestrantes

buscaram trazer uma teoria mais abstrata. Ou o pessoal da

Biologia que discutiu sobre o Charles Darwin, focalizando

no aspecto histórico, pois todos possuem uma carreira

voltada para a História e Filosofia da Ciência. Esses pales-

trantes trouxeram exemplos muito concretos, abordando

a Teoria da Evolução, contando todas as confusões em tor-

no dela. Essa mesa foi muito legal, pois era composta de

três grandes nomes, o Nélio Bizzo, a Maria Elice Prestes e

o Gustavo Caponi, que concordavam em muita coisa, mas

também discordavam em outras e, presenciar essas dife-

renças foi algo bem interessante. Então, para tentar sinte-

tizar, ao mesmo tempo que alguns abordaram questões de

cunho mais filosófico, mobilizando conceitos e tentando

dar uma resposta racionalmente muito organizada, outros

optaram por fazer uma retrospectiva da História e Filoso-

fia das Ciências, fazendo comentários ao longo da expo-

sição, outros ainda, como a Tatiana Roque que possuem

certa militância política bem reconhecida que

politizaram mais a questão, no bom sentido. Por

fim, também teve colegas que trabalharam com

temas mais específicos de suas especialidades.

As pessoas que participaram, em geral me de-

ram retornos positivos, acredito que

elas gostaram da disciplina, e acre-

dito que a disciplina teve um público

muito parecido com o que vocês têm

na Revista BALBÚRDIA, que são alu-

nos da pós-graduação e professores da Educa-

ção Básica. Quando eu contatei os palestrantes,

sempre mencionei que eu acreditava que o pú-

blico alvo da disciplina seriam os professores da

Educação Básica.

É importante mencionar que a disciplina não foi um ci-

clo em que questões didáticas foram debatidas, inclusive,

quando as pessoas me contataram para se inscrever na

disciplina eu comentei isso para não gerar uma falsa expec-

tativa. Em nenhum momento entrei no mérito da discussão

de como promover esse debate em sala de aula, todos os

vídeos estão no canal do youtube do TeHCo USP (Teoria e

História dos Conhecimentos), mas esse não foi o foco. Por

outro lado, não quer dizer que o debate realizado na disci-

plina não possa dar subsídio, uma base teórica para quem

efetivamente está na linha de frente, fazendo esse debate

com a sociedade, que são os professores e professoras que

podem pegar uma turma de pessoas que podem ter muita

desconfiança em relação às Ciências, que em certas oca-

siões são por um bom motivo, pois não necessariamente

a pessoa que tem alguma desconfiança é um negacionista

ou faz parte de algum grupo negacionista. Quando falamos

de uma educação crítica, temos que levar em consideração

que faz parte da criticidade ser um pouco desconfiado, por

isso que acredito que saber fazer esse debate seja algo fun-

damental e considero, que de certa forma, embora não fos-

se um ciclo sobre Educação, ele tinha um papel formativo

importante para todos que lidam com a Educação.

BalBúrdia - você considera que no final da disci-plina as pessoas tiveram a impressão análoga ao de alan francis chalmers soBre o livro que ele escre-veu, “o que é a ciência afinal?”, emBora ele considere que não tenha respondido a questão do título do livro, considera que ao final do processo o deBate ficou mais refinado, mais Bem fundamentado ou seja, no final da disciplina não se colocou um ponto final soBre a discussão do “por que confiar nas ciências”, mas as pessoas saíram da disciplina com uma funda-mentação mais rica?

ivã gurgel - Exato, considero que a

referência ao Chalmers é boa, pois no

final nós não tínhamos uma resposta

para a pergunta “por que confiar nas

ciências”, na última apresentação não

houve um momento em que nós fala-

mos “então pessoal, agora chegou o momento,

peguem seus cadernos e anotem ciência é…”,

isso não aconteceu. Porém, o objetivo da dis-

ciplina foi o de trazer ideias, subsídios, con-

ceitos que, posteriormente, terão a possibilidade

de formar o seu imaginário e criar as suas próprias

respostas. Mas considero que no livro do Chal-

mers, embora ele não apresente uma resposta, ele

já consegue tratar a questão em um contexto mais

delimitado, as balizas ficaram um pouco mais claras. Já na

disciplina a questão foi posta de uma forma um pouco mais

aberta, portanto a variedade de ideias acabou sendo um

pouco maior do que a esboçada por Chalmers. Até porque

a questão do porquê confiar nas ciências é algo ainda pouco

trabalhado, ainda está muito latente, muito em aberto.

BalBúrdia - pela fala dos palestrantes, dos estudan-tes e pela própria BiBliografia que você disponiBilizou para a disciplina, é possível perceBer que há diferentes perspectivas soBre o que é ciência e o que constitui a lógica e a natureza das ciências. você considera que uma interpretação equivocada ou de má fé soBre os resultados desses estudos pode ter influenciado a

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18 núm. 03 | Agosto, 202118

percepção de parte da população soBre os aspectos da atividade e do conhecimento científico?

ivã gurgel - Essa é uma questão que já me colocaram al-

gumas vezes e que tem sido um pouco recorrente. Eu diria

que é comum as pessoas aceitarem que, de certa forma,

posturas filosóficas excessivamente relativistas em relação

ao conhecimento científico, seriam, em parte, as raízes do

problema em que nós vivemos hoje em relação ao negacio-

nismo. Há pessoas que, inclusive, gostam de colocar o Tho-

mas Khun como o ser diabólico que tenha provocado tudo

isso, outras pessoas preferem olhar mais para a sociologia

do conhecimento científico ou falar que foi o David Bloor

ou a antropologia do Bruno Latour, já outras pessoas fazem

mais referência ao pós-estruturalismo. Eu acredito que não

há uma relação direta, pois considero que o que nós vive-

mos hoje, e isso nós não podemos perder de vista, é mui-

to mais do que um movimento intelectual. Eu diria que é

muito mais do que um movimento cultural no sentido mais

amplo, quando, por exemplo, se estuda um determinado

período, o começo do século XX e conseguimos perceber

o modernismo nas artes, uma série de coisas acontecendo,

uma expansão do movimento cultural, mas eu não conside-

ro que seja bem isso. Acredito que o que nós vivemos hoje

é um problema social muito mais generalizado, não é algo

que nós conseguimos circunscrever, olhar os limites e dizer

onde está localizado este movimento, pois está na socieda-

de como um todo, está na fala do cidadão comum, que está

mais distante do debate sobre a natureza do conhecimento.

E eu insisto nesse ponto, pois não dá para dizer que a pes-

soa que está indo participar de um protesto sem usar más-

cara, se aglomerando, defendendo o comércio, dentre ou-

tras coisas, está informada. O que eu quero dizer é que são

discursos que estão muito longe da população e, portanto,

considero um grande equívoco tentar localizar as raízes do

problema nesses movimentos.

Por outro lado, e considero que indiretamente, possa ser

que nós, e eu me coloco como grupo de pessoas que se de-

dica a discutir o que é Ciência, tenhamos pecado um pouco

em não termos nos antecipado e ter construído um contra-

-discurso mais ou menos organizado, pois esse problema

explodiu agora, mas não é novo. Se nós olharmos para a

História e Filosofia da Ciência do século XX, pode-se per-

ceber que, tipicamente, há uma redução dos autores sobre

a definição do que é Ciência, em um processo que aponta

cada vez mais o quanto ela não é algo que produz conhe-

cimento 100% confiável. Portanto, a atitude crítica em

relação à Ciência, essa ideia de ir desconstruindo todos os

mitos, todos os critérios de demarcação muito rígidos, cer-

tamente foi a tônica de todo o debate. Por isso que consi-

dero que nós pouco nos mobilizamos para a formulação de

um discurso que possibilitasse uma resposta positiva para a

pergunta “por que confiar nas Ciências?”.

Hoje nós vivemos um período de inflexão na própria Histó-

ria e Filosofia da Ciência que é o de começar a ter um movi-

mento mais construcionista, no sentido de que nós já fomos

demolindo a Ciência para não se ter uma imagem muito

idealizada dela. Isso nós já fizemos bastante e nos auxiliou a

não ser tão ingênuos, a não dar respostas simplistas sobre

o que é Ciência. Mas agora nós precisamos parar e dar uma

reformada, temos que ver o que sobrou em pé, quais os cri-

térios comuns. Até porque há uma sensação generalizada

de que a Ciências merece um tipo de confiança, pois quan-

do debatemos esse assunto, não há muita dúvida de que há

motivos para se confiar na Ciência.

Mesmo vários dos autores acusados de terem promovido

a descrença na Ciência, atualmente têm reforçado a im-

portância de se confiar nas Ciências. Por exemplo, se você

assistir as entrevistas atuais do Bruno Latour, ele diz “então

pessoal, vamos com calma, o que eu disse não era bem isso”

e ele mesmo diz “nós precisamos combater esse negacio-

nismo”. Paul Feyerabend, vinte anos após escrever o livro

Contra o Método, por volta dos anos 1990, tinha uma pos-

tura mais ponderada. Estas obras foram escritas nos anos

1970. Naquela época fazia sentido as pessoas serem mais

provocativas, de dizerem “olha, a Ciência não é esse ideal

que vocês possuem”. Mas já se passaram 50 anos, por isso

que nós temos que contextualizar o texto desses autores

com a época em que eles viviam, nós precisamos mostrar

por que às vezes as coisas estão pintadas de certas cores

para aquela época, mas hoje nós precisamos reequilibrar o

discurso. Portanto, considero que nós temos um desafio di-

fícil, o de construir uma visão construtivista que possibilite

a formulação de respostas a essa questão.

BalBúrdia - o que os professores da educação Bási-ca e do ensino superior, podem fazer para fomentar uma reflexão mais profunda da atividade e do conhe-cimento científico, tanto com os alunos, como tam-Bém com a comunidade escolar e acadêmica?

ivã gurgel - Eu sempre tenho medo dessa pergunta, não

por que de certa forma ela seja legítima, pois ela é, mas eu

tenho medo dela, pois é fácil de se cair em uma receita de

bolo. Então eu que estou podendo trabalhar em casa em

um certo conforto, falo para o professor “olha, você faz A,

depois B, depois C”. Eu acho que não é bem assim, pois a

questão é complexa.

Recentemente a Elysandra Figueredo Cypriano do IAG

(Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféri-

cas, da USP) me questionou “Ivã, por que você não faz um

vídeo curto, de uns 15 a 20 minutos, sobre porque confiar

nas Ciências” e eu pensei “ai meu Deus, agora vou ter que

dar uma resposta para a pergunta que eu mesmo falo que

não tem resposta?”, mas eu achei que valia a pena encarar

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19Revista BALBÚRDIA 19

o desafio, então no vídeo eu tento deixar claro que não há

resposta definitiva, mas o que eu tentei fazer, e que pelo

menos dá alguma luz, foi o de tentar fazer um movimen-

to que fomente a mudança da percepção das pessoas de

que não é necessário responder positivamente à pergunta

sobre o “por que confiar nas Ciências”, no sentido de es-

sencializar a Ciência. Por exemplo, a de que existe um mé-

todo que não falha ou a de que o método pode falhar de

vez em quando, mas se nós reproduzirmos várias vezes o

experimento, dará certo. Ou ainda, dizer que os cientistas

são sempre iluminados pela razão e, portanto, você pode

confiar no cientista. Eu acredito que a Ciência é humana em

todos os sentidos, nos bons e nos ruins, portanto, se nós

olharmos para a história da Ciência fica muito claro que por

diversas vezes sobressaíram as necessidades humanas, as

pulsões humanas. Se voltarmos alguns séculos na História

das Ciências, podemos perceber algumas pessoas errando,

outras sendo mau caráter, podemos perceber preconcei-

tos, ou seja, é possível ver de tudo. Portanto, nós precisa-

mos evitar idealizar as Ciências, de construir um caminho

que seja do tipo “certificado de garantia ISO 9000”. Algo

que nós normalmente tentamos fazer, a de ir por uma via

demasiadamente lógica e epistemológica para responder

a pergunta, e embora essa perspectiva seja relevante para

fornecer respostas, nós também precisamos olhar para o

problema de outra maneira. E é desta outra maneira que eu

tenho tentado sensibilizar as pessoas, que é o de olhar para

as Ciências em sua perspectiva humana, pois se os proble-

mas das Ciências vem de sua natureza humana, então va-

mos olhar a Ciência por um viés mais sociológico, antropo-

lógico e psicológico. Às vezes, por mais contraditório que se

pareça, são por essas perspectivas que nós encontramos

respostas do porquê confiar nas Ciências. Por exemplo, eu

confio mais nas instituições científicas do que nos cientis-

tas, pois acredito que os cientistas estão muito mais pro-

pensos a erros do que as comunidades científicas. Hoje,

com a pandemia, fica muito clara essa diferença, pois você

pode ver casos de cientistas, individualmente, defendendo

de tudo, porém não se vê nenhuma sociedade científica sé-

ria defendendo algo como a Hidroxicloroquina. São nesses

casos que fica evidenciado que é interessante olhar para a

Ciência como um constructo que tem instituições, tem mo-

dos de organização e modos de legitimação que são pró-

prios a ela, pois assim é possível perceber que socialmente

há pontos de garantia que, embora não dê certezas, ajudem

esses processos a serem mais interessantes. Em um artigo

que eu escrevi recentemente com a Graciella Watanabe,

utilizamos o termo ‘epistemologia social’ para caracterizar

o contexto atual, referente à esta epistemologia do conhe-

cimento, a qual é preciso olhar para a Ciência com um olhar

mais amplo, como um constructo da comunidade científica.

Nesse sentido, o que eu diria para os professores é que é

preciso estar mais sensível para abordar sobre o porquê

confiar nas Ciências, é preciso abordar essa questão com

diferentes perspectivas. Algo importante para mim, e é cla-

ro que é o meu lado freiriano falando um pouco mais alto, é

preciso ouvir os estudantes, porque normalmente quando

vemos uma atitude de um jovem que não é muito favorável

às Ciências a nossa tendência é de se assustar, em primei-

ro lugar, e, logo em seguida, de ter um espírito combativo

e, mesmo que não se cometa nenhum tipo de agressão e a

situação se transcorra com alguma normalidade, às vezes é

um discurso impositivo, o que é péssimo porque nós acaba-

mos nem ouvindo o estudante. Portanto, o primeiro passo é

o de ouvir o aluno e tentar entender o porquê de ele estar

com alguma dúvida em relação à Ciência, e ouvir com um

certo cuidado para saber o que precisa ser mobilizado para

responder a inquietação dele. Em muitos casos o aluno tem

mais predisposição de confiar nas Ciências do que nós te-

nhamos percebido a priori, e faz parte, nós temos dúvidas. O

que nós, professores, precisamos saber fazer é localizar na

fala dos alunos essas dúvidas para saber como abordá-las.

BalBúrdia - nas suas falas você já direcionou para algumas ações que o professor pode fazer caso o aluno o questione soBre o porquê confiar nas ciên-cias, mas pergunto se você quer complementar essa pergunta ou passar algum relato de algum aluno ou se você tamBém vivenciou isso enquanto professor.

ivã gurgel - Sim, como eu já citei o Paulo Freire, autor que

eu gosto muito. Para mim, Paulo Freire é um filósofo e digo

isso não somente para tecer um elogio, mas também cha-

mar a atenção para como nós podemos olhar para a obra

dele. Considero que ele tem uma obra que constantemente

aborda questões educacionais, mas também de epistemo-

logia. Ele fala sobre o que é o conhecimento, e digo isso para

chamar a atenção que o diálogo para o Paulo Freire é mais

do que uma maneira de troca de conhecimento, é parte da

construção do conhecimento, e isso é muito profundo, pois

às vezes nós achamos que o diálogo é uma maneira de ser

mais educado, de se estabelecer uma relação mais afável,

de estar mais próximo ao estudante e, portanto, construir

uma relação pessoal e interpessoal mais interessante. O co-

nhecimento, utilizando um termo mais atual, perspectivo -

pois nenhum conhecimento dá conta de tudo que existe na

realidade, portanto, o conhecimento ser perspectivo - sig-

nifica que às vezes é só pelo diálogo que nós conseguimos

aprender e mudar de perspectiva, no sentido de você olhar

por um outro viés e dizer “hum, agora eu entendi”. Em mui-

tos casos nós falamos sem parar, mas a pessoa não está no

mesmo canal que você, então a jogada do trabalho didático

é a de mudar de canal.

Quando eu falo da Ciência, das instituições científicas, a

Ciência criou as instituições, as academias científicas foram

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20 núm. 03 | Agosto, 202120

criadas no século XVII justamente porque as pessoas pre-

cisavam debater, portanto, uma das coisas que mais carac-

teriza a Ciência é o debate. Não é o que se faz dentro do

laboratório, são esses momentos onde as pessoas debatem

e criam um discurso justificado. Ou seja, uma atitude funda-

mental para alguém que está na Ciência é o mínimo de hu-

mildade, embora muitas pessoas que nós conheçamos não

pareçam muito humildes. Quando um estudante vai defen-

der o doutorado, o que ele faz é submeter a sua tese para

uma banca, é preciso se colocar em julgamento, portanto, é

parte do processo aceitar o julgamento e responder tudo o

que perguntarem. Esta mesma ideia sobre a defesa de um

doutorado está presente quando eu vou em um congresso,

quando eu submeto um artigo e vem um parecer. Por mais

que eu discorde do parecer que foi dado, se eu quero pu-

blicar, terei que responder aquele parecer, então é preciso

aceitar essas regras do jogo para se inserir na comunidade,

caso não aceite, você está fora. No dia a dia isso é chato,

pois todo mundo odeia receber um parecer muito crítico

ou quando estamos defendendo o doutorado, é horrível

receber umas pauladas da banca, não é nada confortável.

Mas voltando à Paulo Freire, o que é legal é que no fundo é

o diálogo acontecendo e esse diálogo é justamente o diálo-

go do conhecimento, o diálogo onde um consegue chamar

atenção e fazer o outro perceber coisas que ele não per-

cebia. Eu, por exemplo, sempre que estou em uma banca

tento conduzir o diálogo de uma maneira mais agradável

possível, pois eu também acho que isso ajuda a construir

os laços, mas independente disso é que o diálogo ocorra e

que ele ocorra de uma maneira onde os pontos de vistas se-

rão colocados, debatidos e revistos, pois nesse contexto eu

sou obrigado a justificar o meu posicionamento. Portanto,

voltando para a questão didática, eu adoro quando o aluno

me pergunta algo, inclusive algo que me desestrutura, pois

muitas vezes é a pergunta de um estudante em sala de aula

que me fez pensar em algo que eu nunca havia pensado e

isso me obriga a refletir e correr atrás da resposta. Essas

perguntas se davam nas aulas de Física tanto quando eu era

professor na Educação Básica, como agora que sou profes-

sor no Ensino Superior.

Um exemplo que tem muita relação com essa discussão

refere-se à disciplina que ministro, intitulada Introdução

à Epistemologia. O objetivo do curso é debater o que é a

Ciência. Claro que ao longo da disciplina eu constantemen-

te faço esse debate com os estudantes e no primeiro dia eu

já os alerto para qual será a questão da prova. No último dia

do curso os alunos fazem uma redação sobre o que é Ciên-

cia. Eu já podia falar da questão da prova no primeiro dia,

pois há múltiplas respostas para essa pergunta e, portanto,

cada aluno iria esboçar uma resposta distinta. Após o cur-

so, depois de eu ter apresentado o Popper, o Feyerabend, o

Khun, sempre tendo o cuidado de evidenciar como os dife-

rentes autores responderam a essa questão, os alunos me

intimaram e disseram “professor, nós não vamos encerrar

esse curso sem você dar uma aula dizendo o que você acha

que é a Ciência”. Eu achei aquilo muito legal, pois não estava

nos meus planos lecionar aquela aula, mas como eu fui inti-

mado eu tive que organizar uma série de coisas para tentar

responder a pergunta. Isso e as perguntas que os alunos

fizeram ao longo da aula me fizeram refletir para questões

que eu nunca havia me atentado. Portanto, eu dei esse re-

lato para realçar que é o debate que permite a construção

do conhecimento, uma das coisas que eu acho mais impor-

tante, que tem um valor epistemológico mais importante é

o debate, esse debate de trocas.

Eu abordei essas questões para dizer que, como eu já fui

professor na Educação Básica, sei que os alunos nos con-

frontam, os alunos do ensino médio sabem colocar ques-

tões ácidas, que nos abala e não é nem um pouco fácil li-

dar com esse tipo de situação. Mas o que nós temos que

aprender como professor, é lidar com esse tipo de situação

e isso não é nada simples, mas é possível, por isso que eu

não gosto das receitas. Eu fui aprendendo a lidar com es-

sas situações com o tempo. Já como professor da Educa-

ção Básica eu gostava de trazer algumas questões, de fazer

provocações para os estudantes. Às vezes eu até era um

pouco corajoso demais, eu lembro que em uma aula para o

ensino médio eu discuti com os alunos se o átomo existe e,

para minha surpresa, eles diziam que não, diziam “eu sei que

você está explicando bonitinho o modelo atômico e tal, mas

para mim isso não existe”, então eu comecei a questionar o

porquê de eles não acreditarem. A partir daí o debate foi

acalorando de um jeito que no final enquanto um aluno di-

zia que não acreditava em átomo, pois não conseguia vê-lo,

o outro contra-argumentava dizendo que ele acreditava

em Deus sem também o ver, e eu no meio gerenciando tudo

isso e é essa a habilidade que tem que ser construída.

Tenho certeza que entre mortos e feridos, e apesar das di-

ficuldades de se lidar com esses debates, são justamente

esses debates que devem ser feitos, pois eles tem um po-

tencial de discussão. O que nós devemos aprender, e digo

aprender como sociedade, é reconhecer a escola como

esse espaço de debate. Se nós reconhecermos a escola des-

sa forma, a vida do professor da Educação Básica será mais

fácil, pois se existir um projeto ‘escola sem partido’, algo que

é um retrocesso sem tamanho, mata o debate, e o professor

dirá, “assim eu não vou fazer o debate” e ele estará corre-

to. Portanto, nós temos que fazer o oposto do ‘escola sem

partido’, nós precisamos como sociedade, ter claro que o

papel da escola é o de debater questões polêmicas. No mo-

mento em que a sociedade estiver convencida disso, será

o momento em que o professor estará na sala de aula com

muito mais tranquilidade. Ele até pode ficar nervoso com o

aluno que deu uma alfinetada exagerada, mas isso será de-

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21Revista BALBÚRDIA 21

Ivã Gurgel Ivã Gurgel

Um cientísta?

Um Educador/pro- fessor de ciências?

Lise Meitner.

BATE-BOLA “Why Trust Science?” da professora de Harvard, Naomi Oreskes

Um sentimento sobre a USP?

Paulo Freire e Manoel Roberto Robilotta

Um divulgador cien- tífico ou um projeto

O Bandeijão [Restauran- te Universitário] Central.

Um lugar específico da USP

A de que ela precisa continuar existindo, pois a universidade está sob ataque e não só um ataque polí- tico explícito com os cortes de verbas, algo que ocorreu mais nas Universidades Federais, mas ela está sob ataque sobre o que ela é. Nós temos que defender a universidade como um centro de produção de conhecimento, um conhecimento de interesse público.

O projeto Cecília, pois conside- ro que é um projeto muito bonito e especial por fomentar a participa- ção das mulheres jovens na Ciência.

Um livro (negacionis- mo científico)?

Entrevista

vido às dificuldades do dia a dia, das relações humanas, algo

normal. Portanto, eu sei que o que eu proponho enfrenta

problemas com o atual contexto político, fica muito mais di-

fícil. Eu ainda tenho tentado ter fôlego para fazer, pois mes-

mo nas universidades esses debates já não tem sido muito

fáceis. Entendo que muitos professores não queiram fazer,

mas o que nós devemos fazer, como já mencionei, é ter cla-

ro como sociedade que esse é o papel da escola.