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a a a Para repensar a cultura brasileira: identidade, literatura e colonização To rethink the Brazilian culture: identity, literature and colonization Luiz Roberto Alves* * Professor da Pós-Graduação em Comunicação Social do IMS.

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Para repensar acultura brasileira:

identidade, literaturae colonização

To rethink the Brazilian culture:identity, literature and colonization

Luiz Roberto Alves*

* Professor da Pós-Graduação emComunicação Social do IMS.

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Resumo

As práticas culturaislatino americanas podem

iluminar maneiras decompreender as culturasbrasileiras neste século.

Palavras-chaves: Práticasculturais, cultura(s)

brasileira (s).

Abstract

The cultural practices inLatin American can showthe ways of understandingthe Brazilian cultures inthis century.

Key-words: Culturalpractices, brazilian(s)culture(s).

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Esta reflexão sobre Identidade, Literatura e Colonização noBrasil pretende, de forma introdutória, apresentar um modo de pen-sar a cultura, ou melhor, as culturas brasileiras, a partir de váriosensinamentos da prática cultural latino-americana deste século. Umpensamento que, antes de tudo, deve superar, embora respeite evalorize, o conceito de cultura tecido em torno das belas artes eletras para pensá-la também como presença e valor na criação docotidiano dos grupos populares, os quais, não obstante tenham sidorecusados no universo escolar brasileiro, produziram e acumula-ram ações culturais e memórias dignas de serem revistas, avaliadase consideradas como contraponto produtivo para pensar a cultura.Esta precisa ser vista como direito dos segmentos sociais e não pro-priedade de um setor projetado sobre o todo social. Aí o modo pro-posto já se associa ao trabalho de educação de base, onde se cru-zam os movimentos pela implantação de direitos de cidadania comas práticas de diálogo nascidas dos princípios educacionais de Pau-lo Freire e demais educadores que investiram no processoeducativo como círculo de cultura e lugar de avanço da consciênciasócio-política e não somente como processo de transmissão da his-tória dos vencedores e campo de manobra do poder estatal. Umpensamento que passa pela universidade e considera o seu debru-çar sobre o real, mas que também tem aprendido, talvez mais, como acompanhamento cotidiano da criação simbólica, portanto cultu-ral, de crianças, idosos, jovens, grupos operários, migrantes e imi-grantes da extraordinária experiência cultural brasileira, que aindanão pôde mostrar mais amplamente ao mundo o que significa ga-rantir espaços de identidade dentro da real diversidade cultural eétnica. Um pensamento que se construiu sob o impulso do novouniverso de comunicação de massa, de alguma forma oposto a algu-

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mas constatações de Mc-Luhan e dos integrados na pós-modernidade, visto que o primeiro induz à acomodação no úteroda aldeia global, como se de fato nós estivéssemos nos comunican-do e criando a vida em comum, e os segundos porque embarcaramem uma nave conduzida oportunisticamente pelo neoliberalismo,na qual o espaço social é um grande cassino regulado somente pelodeus-mercado e, portanto, onde todos parecem ser iguais, porquemodernos, ou porque jogadores com algum dinheiro no bolso. Semnegarmos a modernidade, pois nós a somos, o que nos cabe fazerantes de tudo é uma rigorosa crítica de todos os seus componentesestéticos, políticos e econômicos, a fim de garantirmos direitos e so-berania às próprias práticas culturais e nos situarmos responsavel-mente na nova conjuntura internacional. No caso brasileiro, omodelo coronelista e mistificador da modernidade já nos rendeuFernando Collor e seu bando, que tanto desgosto, atraso e humilha-ção impuseram ao país. Efetivamente, esse pensamento que me per-mito compor busca superar os estereótipos que formaram a nossareflexão cultural: não coloca a cultura erudita ou a popular,alternadamente, no altar do louvor, mas busca os seus intercâmbi-os mais profundos; aliás, dados na história da arte brasileira desdeo século 16; não se acomoda com aquela sociologia que vem de Gil-berto Freire e que assume a cor azul da democracia racial, porqueela conduz à hipocrisia. Tampouco se basta ou se contenta com avisão estrangeira (e honesta) do tipo Stefan Zweig, que apresenta oBrasil como país do futuro (futuro feito de quê e para quem?) emuito menos se associa ao pensamento positivista que, no seurigorismo atrelado ao poder dos proprietários, deixou de lado mi-lhões de brasileiros em nome de modelos importados que nemmesmo a elite importadora foi competente para compreender e,talvez, produzir uma simbiose digna. Busca, respeitosamente, re-visar os rótulos que (muitas vezes sinceramente) definiram a gentebrasileira como cordial, triste, carnavalesca etc., e que, ao fazê-lo,realizavam a projeção do seu próprio universo de classe sobre avida brasileira, relegando à marginalidade formações humanas evalores indispensáveis para a compreensão da nossa riqueza cul-tural, os quais devem ser a base para os projetos políticos e eco-nômicos, enfim culturais. Sempre correndo os riscos de novasestereotipias, cabe-nos pensar a cultura com o cuidado do pastore do semeador das parábolas evangélicas: não somente semear ecaminhar com as ovelhas, mas fazer o percurso de retorno e reto-

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mada, bem como estar disposto a deixar as 99 em segurança rela-tiva para buscar a centésima que se perdeu, mas que compõe ogrupo, que pertence ao rebanho, como pertencem à semeadura asvárias sementes dos vários tipos de solo e dos vários momentosem que se semeou. Tanto considerar a fala do Drummond sobre apoética dos homens concretos do tempo real quanto levar a sérioFerreira Gullar quando diz: “...a história humana não se desenrolaapenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Elase desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nasruas de subúrbio, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios,nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minhapoesia. Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura einjustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e sóé justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e ascoisas que não têm voz”. Assumir responsavelmente, sem voltaraos chavões do engajamento compulsório e partidarista, aquelamemória forte do riso, do canto, da fé e do pranto do Brasil, que foia razão de escrever e viver de um Lins do Rego, um Lima Barreto,um Murilo Mendes, ainda na memória romana que ele ajudou aconstruir sobre o Brasil.

As antenas da literatura na cultura colonizadaCom o devido respeito às diversas e inteligentes análises da

cultura brasileira — notadamente as que trabalharam sobre li-teratura, cinema e música —, dentre as quais se destacam as re-flexões hauridas nas vertentes sócio-lingüística, psicanalítica eestética, temos amadurecido a compreensão de que é fundamen-tal ancorar e mesmo imergir no universo cultural brasileiro comos sentidos e o coração repletos da historicidade que nasce do co-tidiano imaginado e vivido. Noutras palavras, é urgente que fa-çamos leituras do Brasil — e de outras terras longamente coloni-zadas — como quem faz a boa educação das gerações: auscultan-do com atenção as trocas de sentido entre emissor e receptortomados como sujeitos de diálogo, no esforço nada fácil de tornarcomuns e inteligíveis os sinais conduzidos por retóricas, ideolo-gias e outros veículos geralmente escondidos ao homem e àmulher comuns, embora brilhantes e sedutores como a últimacaravana artística do filme Bye, Bye Brasil, de Cacá Diegues e,portanto, capazes de funcionar como armadilhas ao esforço deconhecimento e participação.

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Esse novo esforço pode significar um retorno renovado ao rei-terado esforço da crítica da cultura brasileira, que consistia em des-cobrir as relações entre a produção, suas leituras públicas e a cons-ciência do produtor. Antonio Cândido buscou, entre outros inesque-cíveis valores do seu trabalho crítico, esclarecer as relações entreobra, autor e público. Deste modo, demonstra que a partir do alvo-recer romântico a literatura brasileira apresenta maior organicidadena produção e circulação das obras, em um contexto de construçãode novas categorias políticas, como nação, progresso, modernidade,sem nos esquecermos do processo de diferenciação das classes soci-ais e suas exigências de veículos para sua expressão. A linha que vaidos manifestos românticos à fina sondagem sócio-psicológica deMachado de Assis, passando por Alencar e Macedo, para citar pou-cos, é a própria concentração sobre os novos modos de produçãosocial do país desejoso de modernizações e competente para realizá-las, o qual, no entanto, amiúde é traído pelas formas como as elitesdirigentes conduziram o processo dito modernizador. Claro está que,ao alinhar-se na tradição crítica, esse esforço integrador da reflexãosobre o país precisa considerar os últimos cinqüenta anos de comu-nicação social no Brasil, os quais, infelizmente, seguiram o diapasãocolonizatório das elites, isto é, quiseram impor a crença de que semassificavam os frutos da cultura para todos, que se produzia umalíngua comum, que se integrava a nacionalidade quando, de fato,produzia-se um espelho de imagens virtuais, parciais, de mão únicae, portanto, infiel às belas expressões da riqueza cultural da nossaterra. E para homenagear — mutatis mutandis — a reflexão crítica quevai de Sérgio Buarque de Holanda a Raimundo Faoro, o processo decomunicação de massa, feito e refeito sob os modelos da indústriacultural, compôs o mesmo mito da modernização discriminatória eparcial, que tenta se esconder nas mãos de poucas famílias de pro-prietários, como se o universo da comunicação social devesse man-ter (e em nosso caso mantém) o mesmo sistema de posse caracterís-tico das fazendas de café e gado, ou das fábricas e indústrias, nãomais que um novo ciclo econômico-político nas mesmas mãos. Nosúltimos trinta anos, enquanto vários povos e várias partes do mun-do eram beneficiados com uma obra educativa que propõe o inter-minável diálogo sobre valores e sinais da realidade cotidiana, suamemória e sua história, que é a de Paulo Freire, perpetrava-se noBrasil, com o apoio decisivo da ditadura militar, 1964-1982, umprocesso de informação que se impôs como comunicação sem sê-lo,

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que se afirmou integrador de massas sem mesmo saber se as massasexistiam, que proclamou a distribuição parcimoniosa dos resultadosda acumulação cultural e não fez senão a folclorização do real, a fa-bricação de uma passarela por onde desfilam signos raquíticos da-quele extraordinário esforço de produção cultural, uma metonímiaque jamais engendra uma bela metáfora, bastando-se como partepretensiosa de abarcar o nosso inteiro ser cultural. O conhecimentotransformado em migalhas e centelhas, prendendo a atenção conti-nua como se um dia viéssemos, juntos, nós e o vídeo, nós e a emissãoimpessoal da informação, nós e os grandes nomes da comunicação arefazer o vaso partido, o tecido rasgado, o pão pulverizado. Enfim, omito. Ora, um texto clássico de Antonio Cândido, Dialética da Malan-dragem, no qual analisou a obra de Manuel Antonio de Almeida, apre-sentou-nos a gênese das formas modernas de manipulação da infor-mação muito antes do rádio e da tv, quando já se desenvolvia o es-paço público para a circulação de mensagens, bem como as formaspossíveis de resposta que a consciência popular oferecia para man-ter o mínimo e digno equilíbrio nas relações de comunicação, quesignificam relações de poder. Os estouros modernistas dos anos 20e a seqüência de criação artística, quer na literatura, no teatro ou nocinema, acrescentaram ao doloroso e poético pensar sobre o país esua gente os desdobramentos dos mitos, a ampliação de persona-gens, o adensamento da vivência cotidiana, a amplificação dos gran-des embates entre os discursos aprovados socialmente e os desejoshumanos sufocados no coração ou na garganta.

Mas essa tendência tem história. É necessário dizer que as artesbrasileiras, notadamente a literatura, buscaram ser alternativas deconhecimento e consciência que as instituições políticas, educacio-nais e jurídicas não puderam e, quando puderam, não desejaramser. Luciana Stegnano na sua obra Profilo della letteratura brasiliana ob-serva a penetração vigorosa da vida brasileira na sua literatura. Àmedida em que se adensaram as relações entre obra, autor e público,fomos decodificando sinais literários que também eram filosóficos nafalta do espaço e do estímulo para fazer filosofia, educacionais por-que muito tardiamente a escola se abre para outros que não os fidal-gos; sinais sociológicos e políticos numa sociedade semprecensuradora do pensamento. Sem deixar de fazer arte, embora tal-vez perdendo um pouco de densidade estética, as nossas artes qui-seram dizer e mesmo ser o que é o país real. Nessa linha podemospesquisar tanto Aleijadinho e Gregório de Matos como a difícil

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dialética da sobrevivência em Memórias de um sargento de milícias ou emLima Barreto, a condição gauche de Drummond, a travessia trágicado engenho para a modernosa e canibalesca usina nordestina, pre-sente em todo o ciclo neo-realista e amplificado por Graciliano Ra-mos, o desvelamento dos desejos na poética de Chico Buarque deHolanda e a evidente deglutição dos sintomas e razões do subdesen-volvimento realizada pelo nosso cinema, do amplamente conhecido— e pouco compreendido — Glauber Rocha ao quase desconhecidoAron Feldman. Até mesmo nos encontros com poéticas tão abertasquanto as de Clarice Lispector, Mário de Andrade ou Manuel Ban-deira — o último trabalhado de modo belo e justo por Ettore FinazziAgrò — vemos que a percuciente produção de memória a compor osnovos sentidos do cotidiano é fiel ao universo surpreendentementerico das falas e gestos populares no seu cruzamento de poética e ne-cessidade de sobrevivência. A despeito de uma antiga ignorância,mantida e estimulada, sobre as falas do povo, elas foram reveladasnas cantigas, nos folhetos, nos sumários de devassas, nos filmessobre greves e nas histórias narradas e gravadas na comunidadenarrativa, abrindo novos espaços para o cruzamento de sentidos.Essas falas podem nascer de uma pesquisa lingüística, como a nar-ração do zungu da tia Ciata, no mangue carioca do Macunaíma, ou dapaisagem concreta de Adelino Magalhães, onde de repente um “filhoda puta” explode naturalmente. Pode ser resultado do carinho pro-fundo com que Alcântara Machado trata o mundo itálico-paulistano. Mas elas também estão presentes no universo misto eru-dito-popular de Patativa de Assaré, entre a individualidade triste ea invectiva política. Um canto diz: “Minha viola é um romance/ Detristeza e ilusão/ Parece que o destino/ Foi que fez traição./ Minha es-perança é perdida/ Quando eu canto a minha viola/ Dói em qualquercoração”. O outro canto difere: “Na canga do boi de carro/ Tem genteamarrada lá/ Gente não é boi de carro/ Pra carro de boi puxá/ Gentetem mente que gira/ Mente que pode girar/ Gira a mente do carreiro/A canga pode quebrar”. Na longa tradição dos folhetos, tanto estãopresentes os tipos e motivos clássicos quanto as mensagens moder-nas dos sindicatos. Por exemplo, Pedro Macambira, que investe con-tra os maus-patrões e os sindicalistas traidores, chamados depelegos: “Os operários da fábrica/ Não me deixam mentir/ As condi-ções de trabalho/ Faz até cachorro rir/ Urubu pousou no banheiro/Caiu duro com o cheiro/ Que dali pôde sentir./ Na fábrica a coisa éfeia/ Parece campo de concentração/ Na maioria das máquinas/ Não

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existe nenhuma proteção/ Se trabalha acelerado/ O peão passa aper-tado/ Enriquecendo o patrão”. “Sobre o pelego: “O que aqui vamosrelatar/ É a história de um traidor/ Que deixou de ser operário/ Ven-dendo-se sem pudor/ Mandou operário pra trás da grade/ É Joaquimdos Santos Andrade/ O nome do delator”. O esforço do poeta parapermanecer no contexto das redondilhas maiores e o vocabulárioerudito-popular atestam a presença da tradição íntima aos novosoperários do universo metropolitano, migrantes a viver novo pro-cesso, mas mantendo preferências estilísticas e temáticas. A traiçãoé um tema caríssimo à moralidade da gente migrante. Por outrolado, quem poderia ignorar que em uma sociedade colonizada e re-primida, circulasse desde o século 16 tanta informação, tanta narra-tiva, tanta poética? Pois nos demonstram isso os processosinquisitoriais e outras narrativas devidamente decodificadas. Du-rante três anos li processos da inquisição ibérica, que vitimou muitagente no Brasil, Peru, México etc. e posso testemunhar sobre umuniverso ainda pouco considerado como componente da nossa cul-tura intelectual. O poeta Bento Teixeira, que inicia o movimentobarroco entre nós e é processado pela Inquisição portuguesa (bomcomeço, não?), em um momento dramático do seu processo, compossibilidade de ser mandado ao braço secular e, portanto, à foguei-ra, do fundo do cárcere grita aos seus inquisidores que “cada um seguia pela sua crônica” isto é, aquela sociedade não poderia ser mo-delada segundo discursos previamente dispostos pelo colonizador,mas por meio das várias contribuições culturais dos homens e mu-lheres tornados colonos da aventura brasileira. O pobre BentoTeixeira, depois reconciliado e sambenitado, em pleno movimento con-tra-reformista nos legou um pouco do humanismo que, da fonte ita-liana, chegava com dificuldades ao mundo ibérico. A sua memóriarecupera o legado humanista: Nec ad dexteram, nec ad sinistram. Mediotutissimus ibis. Saltando três séculos, recorro a um exemplo da relaçãoentre o imperador Pedro II e os aventureiros da nova fasecivilizatória, os imigrantes italianos localizados na periferia de SãoPaulo, uma força motriz do novo operariado, daquele que não acei-tou a imposição do mundo agrário. Sabe-se que as condições de vidados imigrantes italianos eram muito ruins naquela periferia quehoje forma a região do ABC, um universo itálico-nordestino-brasi-leiro que produziu a maior consciência operária conhecida no país.Em 1880, 20% dos imigrantes, especialmente crianças, morriam amenos de um ano da chegada. Os italianos reclamaram em alto e

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bom som a favor da dignidade de condições sanitárias e de trabalho.D. Pedro, preocupado com a falência do seu projeto de importaçãode mão-de-obra, resolveu visitar os imigrantes. E o fez de trem, numdia de sábado, entre uma aula assistida na Faculdade de Direito deSão Paulo e outras atividades pessoais. Ficou exatamente uma horaentre os italianos e talvez os tenha ouvido em tradução. Se o tradu-tor foi ou não traidor, não sabemos. O fato é que temos, num traba-lho de José de Souza Martins, o trecho do seu diário em que anotaque era uma colônia de imigrantes italianos, gente que havia pros-perado com o trabalho agrícola, que talvez as suas casas preci-sassem de reformas e que, enfim, estavam contentes. Eis a questão:estavam contentes. Esta é a semiótica do poder, que produz o discur-so do outro mesmo que não-dito. Que passa à margem daquelereal acumulado na história e na literatura e cria uma imagemparticular, embora poderosa, do real. É o real político oposto aoreal vivido e acontecido. Enquanto este somente se realiza por umquase-milagre, aquele paira como se compusesse a natureza. D.Pedro II destila a fala típica do universo da elite, como a conhece-mos. Para a posteridade ficam a letra e o sinal da satisfação dositalianos. Ora, porventura estariam contentes depois de teremperdido para a morte quase um quarto dos seus filhos em diarréi-as, em meio às casas sórdidas e sem contar com a mínima infra-estrutura de serviços?

Não é assim que faz Graciliano Ramos quando prefeito dePalmeira dos Índios, em 1928. Ao fazer um relatório para o gover-nador, em linguagem deliciosa e verdadeira, que altera completa-mente o modo horrível com que são feitos relatórios administra-tivos, ele produz a realidade da sua cidade empobrecida, da an-gústia do administrador sensível, mas também do olhar irônicosobre a história da administração das coisas públicas. Depois deescrever sobre as pequenas falcatruas e extorsões dos funcionáriospúblicos em cima do povo e de dizer que enterrou 189 mil réis nocemitério (ampliando o campo semântico do lugar relatado), oprefeito Graciliano mostra algumas formas de desperdício evanglória perpetrados comumente com o dinheiro do povo:

Não há vereda aberta pelos matutos forçados pelos inspetores,que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamandoque a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas aogoverno do Estado, que não precisa disso; todos os aconteci-mentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha

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— um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua — um te-legrama; porque o deputado esticou a canela — um telegrama.Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem,que o deputado morreu, que não choramos e que em 1556 D.Pedro Sardinha foi comido pelos caetés.

É nesses confrontos que vamos descobrindo as marcas daidentidade brasileira, também necessariamente pluralizada

Literatura: ponta de lança do social negadoQuero dizer que foi precisamente no cruzamento dos discur-

sos e gestos do poder e dos despossuídos que se produziu a melhorliteratura do Brasil e, curiosamente, a agudeza intelectual, a altacriatividade lingüística e a estetização do cotidiano foram os pró-prios instrumentos de reação, organização social, manutenção devalores e, mais tarde, de renovação dos discursos sociais nos mo-vimentos reivindicatórios, mais conhecidos nos anos 20, anos 50e, depois de 1976, nas periferias urbanas. O cotidiano enriquecidoe a memória expandida, precisamente os lugares privilegiadospela melhor literatura, pelo melhor cinema do século no Brasil equiçá na América Latina, bem como pela bossa-nova musical epelas tropicálias, foram também os espaços de onde se detonou,nos últimos tempos, a incipiente, mas produtiva, consciência socialcapaz de rever conceitos sobre trabalho, família, nação, salário,cultura, prazer.

A literatura brasileira, bem como a música, o cinema e o te-atro têm sido não somente espaços semióticos privilegiados parapensar o processo cultural e político, mas também uma forçametalingüística a interpretar continuamente o modo de produçãosocial e a buscar, infelizmente com sucesso modestíssimo, alargaros espaços de leitura para o encontro produtivo de linguagens emque melhor se dialetize a nossa história de colonizados. O que nãoquer dizer que se vive a chorar a contínua dependência e a opres-são externa. De modo algum. A colonização está há muito tempodentro de nós e são necessários vários movimentos, do pensamen-to e da prática política, para a superação desses nós que nos segu-ram e para os quais não haverá melhor destino fora da contínuacriação cultural Aqui já não penso a cultura como belas artes, mascomo um movimento coeso de falares, imaginação, formas de vidaanimadas por algum grau de proximidade social, e, portanto, ca-pazes de oferecer sentido de destino ao grupo em ação. Essa ótica

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de cultura é a única que nos serve para o confronto com as seqüe-las e mesmo as forças vivas da colonização e das várias formas dedependência.

As obras de Euclides da Cunha, João Guimarães Rosa e JoãoCabral de Melo Neto constituem sinais fundantes do confrontoque nos preocupa e desafia. Os Sertões, originados de um diário decampanha do jornalista enviado ao campo de batalha pelo jornalO Estado de S. Paulo, no final do século passado, conservam em suaevolução narrativa as marcas de um projeto de conversão da pró-pria consciência estruturadora do texto. O intelectual, munido doarsenal de cultura científica e estética então disponível, inclusiveteorias racistas sobre a degeneração da espécie humana, mete-sea descrever e narrar a epopéia sertaneja de Canudos/Monte Santo,nisto de luta política e expectativa messiânica contra a PrimeiraRepública, cujos projetos entraram em falência poucos anos de-pois de instaurados. No processo de trabalho, o intelectual,preconceituoso mas de boa fé, vê mais coisas do que era supostover no seu horizonte intelectual. Entrevê novos valores. Percebeque alguns restos culturais estão vivos e produzem luta, esforço,solidariedade. Vê que um homem esquálido, um dos pobres dosertão, luta mais aguerridamente do que o soldado treinado. Vê atransmutação do sentido de fanatismo perante os seus olhos: o queé considerado no discurso oficial exclusivamente negativo se reor-ganiza de fato como destino comunitário, espaço de uma lingua-gem comum e lugar para jogar, como grupo identificado, as cartasda vida, mesmo que fatais, como naquele caso. O que é loucura seordena, o ininteligível se comunica e o impossível faz-se possibi-lidade. Então, o homem culto e sensível conclui, desconfiado, queali há mais coisas entre o céu e a terra. Se é verdade que a conver-são de Euclides não se faz completa no sentido de tomar partidopelos pobres da terra, também é verdade que as cenas da guerraintestina, no seu absurdo e violência, no seu genocídio, criam, demodo fático e interjetivo na evolução da narrativa do Diário e d’OsSertões, espaços para a reeducação do próprio intelectual, quedeixa de ser mestre para ser aprendiz do mundo do povo e dassuas grandes lutas pela sobrevivência, o que mais tarde veremosem Grande Sertão: Veredas, já em outra chave estética, em outrouniverso de valores humanos, mas ainda vibrando aquela dispo-sição de queimar as mãos no encontro com o outro, aquele que foideixado à margem da história das elites, objeto de campanhas

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eleitorais mas nunca sujeito de discurso, aquele que precisou ca-var o seu próprio caminho de calvário para afirmar a sua presen-ça, ou identidade, sempre negada. Num lance de Os Sertões encon-tramos a asserção: “A natureza toda protege o sertanejo. Talha-ocomo Anteu, indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar amarcha dos exércitos”, isto é, depois de mostrar a competência doguerreiro sertanejo nas batalhas em meio à caatinga, na luta de-sigual da espingarda pica-pau contra a mannlicher, mas que vence-ria não fosse a enorme desproporção de homens e equipamentos,o autor cria um novo panteão para entronizar esse desconcertanteser sertanejo. Noutro passo de sua obra, resultado de viagens àAmazônia, ele produz uma imagem grotesca, mas elucidativa, emparte fruto da sua ignorância perante a gente que queria compre-ender e em parte síndrome do seu próprio espanto diante daquelainteligência exótica e estranha ao tipo de civilização que a ciênciaeuropéia produzira no homem de letras. Vê um homem a prepa-rar uma figura vicária, o Judas, instrumento da vingança alegre epreconceituosa do sábado da aleluia. Quando o boneco está quasepronto, a imagem de Euclides é esta:

Repentinamente o bronco estatuário tem um gesto mais comove-dor do que o parla!, ansiosíssimo, de Miguel Angelo; arranca o seupróprio sombreiro; atira-o à cabeça de Judas; e os filhinhos todosrecuam, num grito, vendo retratar-se na figura desengonçada e si-nistra o vulto do seu próprio pai. É um doloroso triunfo. O serta-nejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo:pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra (...)

O intelectual ignora muitas coisas, mas conhece algumas.Entre elas, sabe que a vida dos pobres da terra é resultado dosprojetos enganosos e ilusórios dos poderosos. Aliás, já vira queCanudos fora um soco no rosto do Brasil, uma demonstração dafalsidade das promessas da República, que proclamara dividir oslatifúndios, assistir os miseráveis, estimular a unidade nacional e,de fato, fizera exatamente o contrário, na onda da nova divisão dapropriedade segundo os poderes dos coronéis nordestinos e dosgrandes proprietários do Sul. Canudos não é a vingança, mas a re-sistência, enfim destroçada. Assim também era a vida Amazônica,onde cada palmo de terra caminhado significava pisar sobre otúmulo de um irmão da esperança, um migrante. O intelectual ig-norante, no entanto, não vê o valor da atitude similar do sertanejoe da exclamação atribuída a Michelangelo. Entre eles a obra é de-

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sigual, as motivações são diversas e o produto é díspar, mas con-flui a atitude símile e superior de criar a vida, de produzir o si-mulacro — naquele antigo sentido do termo — capaz de possibi-litar um novo diálogo, capaz de estabelecer uma nova companhiacom quem realizar, talvez, a harmonia, e afugentar o “oco sem bei-ras” do silêncio. O silêncio amazônico é terrível, comparável talvezao silêncio dramático da obra em realização pelo artista ansiosode comunicação. Assim, pelo sim, pelo não, a obra de Euclides éum conjunto de dois sinais muito claros: a rotação do intelectualno encontro doloroso com o outro colocado abaixo da condição decidadania burguesa e a amplificação mal-vista, porém brilhante,dos discursos que restaram à margem da história e que, segundoo intelectual-autor, não poderiam mais ali ficar. Mário de Andradevai, depois, entender isso, buscar o encontro conseqüente, mastambém realizar mea culpa em 1942 na conferência-memória sobreo movimento modernista. Disse Mário que a sua geração deveriater sido mais radical, provavelmente superando o estouro e orde-nando caminhos da libertação. A obra lúcida e pungente deEuclides faria muito bem se transposta e entrevista pelos estimu-ladores das guerras civis em nome dos acordos de influência e dojogo econômico em torno da mais-valia. Essa dor que nas últimassemanas vemos erguer-se na voz, principalmente, dos jornalistasque cobrem a nova história da ex-lugoslávia e nela morrem lem-bra a voz e o olhar de Euclides sobre o absurdo do genocídio deMonte Santo e de todos os genocídios da história, de antes e de-pois. Da mesma forma, os economistas do presidente mexicanoSalinas e Gortari também desconhecem ou desejam desconhecer Aguerra do fim do mundo, metáfora produzida diretamente sobre otexto do nosso Euclides por Mario Vargas Llosa, obra útil e verda-deira para pensar o que acontece em Chiapas e animar a sensibi-lidade para um fato que não é local, mas de toda a vida presente.

Para falar em modernidade, também dizer da diversidadeJá em 1955-1956, quando o Brasil inaugura um dos seus ex-

traordinários projetos de crescimento no âmbito da economia capi-talista internacional, momento em que um desdobramento dos seussurtos modernizadores promete a hipérbole do progresso na contra-ção do tempo, a voz do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveiraencontrava o seu contraponto na edição de duas obras: Grande sertão:veredas, de Guimarães Rosa, e Morte e vida Severina, do embaixador-

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poeta João Cabral de Melo Neto. À análise do país e sua projeçãohistórica feita pelos planejadores e políticos, aquela literatura res-ponde com a mostra da velha condição humana brasileira que, adespeito dos surtos modernizadores, se não fosse encarada como umdesafio cultural e político, botaria a perder quaisquer projetos feitose impostos de cima para baixo. À imagem risonha e franca do pro-gresso (na qual não se pode descartar alguma sinceridade de Jusce-lino e de vários políticos, mesmo entre equívocos) retomada depois,mas de modo sórdido, pelos militares, opunha-se aquela buscapercuciente do ser brasileiro pela pertinência a um espaço seu e umtempo seu, a favor do direito continuamente negado de possuir oindispensável. Uma literatura que queria mostrar a realidade domundo dividido e não falsamente unificado por atos de mágica eco-nômica. O que também se depreende da leitura atenta de GarciaMarquez, de Carlos Fuentes, do peruano Arguedas ou do poeta chi-leno Pablo Neruda, cuja obra tem fortes ecos no romance de IsabelAllende, agora transformado em filme, A casa dos espíritos. Aliás, aofazer uma leitura da literatura de folhetos e ouvir as histórias popu-lares, você vê que todo o equilíbrio, ou quaisquer conquistas, só seconcretizam após a exibição, clara e transparente, dos termos opos-tos, em processo de dialetização. E a dialética não passa pela sofísticafácil dos números e dos dados oficiais, mas é produzida pelo discur-so que lentamente vai criando o conhecimento e o conhecimentoproduzindo a lenta consciência e a consciência empreendendo solu-ções capazes de efetivamente estabelecer a mínima harmonia. Tudose faz por uma intensa dialogação, jogo entre o eu e o nós no julga-mento dos fatos e acontecimentos, de que nasce um aprendizadocapaz de sugerir soluções. Aqui, provavelmente, se situa a intuiçãooriginal que produziu as pedagogias da liberdade. Aqui a literaturabrasileira busca remontar a um direito histórico que lhe foi negadona opressão contra-reformista e assume o confronto para recuperaro humanismo tolhido, mas entrevisto nas resistências de gestos ememórias. As soluções porventura encontradas no intertexto dessaliteratura e dessa pedagogia sugerem o equilíbrio da vida e não oprivilégio de um grupo a reinar sobre outro em clima de opressão,falsidade, mentira. A caminhada do Severino de João Cabral norumo da morte somente obstaculizada pela nova e franzina vida dorecém-nascido, ou de Jesus, também pobre, ou a condição sertanejado mundo-sertão devem ser o ponto de partida sincero, humilde eatento de quaisquer atos de planejamento. Não só porque seria um

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sinal de resgate de uma dívida social de quatro séculos, como tam-bém pelo fato simples e trágico de que 70% da população do paísvive essa condição “literária”, por isso real. Ora, essa literatura quefoi boa intérprete da condição humana expressa melhor e mais radi-calmente a verdade da vida popular brasileira, cujos discursos, nodizer de Alfredo Bosi, ficam e ficaram sempre “abaixo do limiar daescritura” e, portanto, foram e são truncados no ato mesmo deenunciação pela força de uma língua a serviço da sociedadepatrimonialista e seu poder acumulado na história do país. Os dis-cursos populares brasileiros foram sempre inferiores à sua repre-sentação artística, exceto em alguns poucos momentos de intensaelaboração intelectual, como em saídas de ditaduras e movimentossociais similares, quando a alta comunicabilidade da experiênciaentre os grupos sociais pôde prover a ampliação de sentidos comunspara os discursos necessários à coletividade. Há um pouco disso naexperiência dos anos 40 e 50, bem como após 1976. Mas novamentepode-se dizer: o país não terá futuro garantido se não encarar a di-versidade real, que não significa divisão física, mas sinais doacúmulo deformado, desigual e descuidado dos frutos da chamadacivilização. A violência contra as crianças pobres, não original ouexclusiva, mas aterrorizadora, compõe esse painel e sinaliza exata-mente essa ausência de futuro. Aqui se trata de ser ou não ser. Nãohá meio-termo. Simular a unidade sem descobrir as razões, formase métodos pelos quais se implanta a diversidade — e mesmo ignoraro acúmulo cultural da diversidade — implica em marcar encontrouma, outra e mais uma vez com a real secessão dos espíritos incon-ciliáveis, das linguagens esterilizadas. É a vitória do novo ciclo decolonização, tão modernizador quanto anti-humano. A vitória dadeformação coloca na boca do garoto Fafá, de 11 anos, menino dasruas de Salvador da Bahia, a fala do fim da história:

Sou pobre, não tenho casa, não tenho família, não tenho nada!... Jáapanhei muito, já fui muito maltratado, já passei fome, não tenhoescola e, quando chove, não tenho pra onde ir. Acho que a vidadas outras crianças que vivem na rua é igual à minha... a mesmavida ruim!... O futuro é tudo acabado!... os pobres todos mortos!...

Por isso, algumas faces da modernidade podem até mesmoser aproveitadas nas literaturas francamente populares, mas tam-bém são julgadas. Meu amigo J. Barros, que tanto vende seus folhe-

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tos na Praça da República em São Paulo quanto ensina universi-tários a pensar a cultura do outro social, promove um gigantesco,senão dantesco, julgamento infernal para personagens e veículosda comunicação de massa, sinais decisivos da indústria cultural eda lustrosa modernidade. No seu folheto Roberto Carlos no Inferno enoutros que não tenho em mãos, intensas discussões sobre culpas,expiações, justificativas e promessas de arrependimento povoamo espaço infernal de que fazem parte os privilegiados do processosocial (os pobres já vivem no inferno contínuo) e, embora hajalances de belo e franco humor, a velha temática do julgamento,cuja matriz culta e humanista passa via oralidade e estimula acaminhada dos poetas populares a julgar a sociedade prenhe dedesigualdades e carente da purgação que enseja alguma harmonia.Como se vê, a leitura popular da acumulação cultural tambémfornece instrumentos para a crítica social e, o que não se esperavano universo da integração almejada pela política de comunicaçãode massa, o inferno é lugar de julgamento da nova indústria dacultura e talvez da sua justa purgação.

De fato, o erudito e o popular intercambiam significações emgrau mais elevado, muitas vezes imperceptível para a consciênciasocial comum, a qual, sempre que pode, busca obstaculizar taisencontros. Dado, porém, o grau profundo do encontro, não é mui-to importante discutir o lugar social do erudito e do popular. Seusencontros superam em muito a sua especialização, que talvez ja-mais tenha existido, a não ser quando o erudito e o popular fo-ram cooptados pelas instituições da sociedade de classes e se pos-taram a seu serviço de modo acrítico.

A crítica da cultura e a crítica da críticaEm razão do pensamento central que se deseja transmitir

nesta reflexão, não podemos concordar com certas análises, emparte pelo uso da documentação oficial na sua origem e, pior,quando se pretende traduzir essa reflexão para a nossa condiçãolatino-americana. Por exemplo, o trabalho interessante, mas limi-tado, de Peter Burke A cultura popular na Idade Moderna. Nesta obra,a documentação com que Burke, trabalha parece mostrar que apartir do século 18 não se pode falar de culturas populares naEuropa e que toda a produção cultural se enforma e se cristalizanum universo indiferenciado de classe, ou ainda como se tivesseexistido um momento europeu, talvez aquele analisado por

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Michail Bakhtin, em que a sociedade tivesse possibilitado a eclosãodo “sorriso do povo na praça “(para lembrar outra vez Bakhtin),o que morre definitivamente no processo orgânico de constituiçãode blocos nacionais, na vitória unificadora da Contra-Reforma eno desenvolvimento dos sistemas industriais. Bem, em primeirolugar convém desconfiar da documentação de Peter Burke, somen-te escrita e talvez oficial. Em segundo lugar, faz falta ouvir opovo, ouvir segmentos de classe (ou as classes não mais existem enão provocam alguma sorte de diferenciação cultural?), e o que émais grave, parece que um conceito rígido e limitado de culturaimpossibilita ver e ouvir sinais de resistência, diferenciação, alter-nativas. No entanto, chega um momento em que tais diferenciaçõessão notadas, mas aí elas já se transformaram em deformação, sec-tarismo, divisionismo, violência. Se a reflexão fosse feita em tempoprévio à eclosão sangrenta dessas forças, o cuidado para com es-ses valores e projetos dar-se-ia no campo da normalidade social enão, como ocorre posteriormente, no universo da patologia, quera psicológica e médica, quer a da segurança, da polícia e do exér-cito. No caso brasileiro, quiçá latino-americano, — deveríamos terconsciência há muito tempo de que somos fruto direto damodernidade, isto é, da expansão mercantil-capitalista. Então, nãose pode nem mesmo falar de uma unidade histórico-política emque tivessem vicejado as culturas do povo, depois impossibilitadacomo apresenta, talvez equivocamente, Peter Burke. Entre nós, osorganismos de falsa unificação, como as instituições contra-refor-mistas, amplos setores da educação, práticas elitistas em ciência ecultura e os discursos oficiais veiculados para serem antes vene-rados do que entendidos, todos eles foram o nosso cotidiano du-rante quatro séculos. E foi de dentro dessa realidade que se produ-ziram marcas dialéticas das culturas não-oficiais e não-oficializa-das, o que é quase um milagre, ou o que Paulo Freire chama de“sonho possível”. Recolho um símbolo antigo e um moderno. Nomeio dos sacos de farinha e outros víveres transitados na relaçãoEuropa-Brasil, já no século 16, eram encontrados — e denunciadosàs autoridades — trechos de obras proibidas, como Diana, deMontemor, Eufrosina, de Vasconcelos, os pares de França, da Cavala-ria, Salmos de David em línguas vulgares e outras mais ou menosperigosas. Quisessem ou não quisessem as autoridades, essa lite-ratura foi lida à maneira das possibilidades de leitura dos colonose suas mensagens compuseram o nosso imaginário, presentes até

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hoje e fecundando nosso pensamento. Como se vê, a história docontrabando também se insere na ambigüidade e nareversibilidade. Um exemplo moderno, para não citar somentefatos do Brasil, nos é contado pelo professor e crítico da comuni-cação de massa Jesus Martin Barbero, da Colômbia. As mulheresda periferia de Bogotá criaram um modo peculiar de dialogar comas autoridades usando a moderna tecnologia da gravação. Sempreque se encontram com as autoridades administrativas vão muni-das da tecnologia e realizam um serviço da maior transparênciacom os grupos da comunidade por elas representados, levando etrazendo mensagens. Além disso, sabem que a voz gravada é avoz presa, a qual se pode cobrar depois, se pode responsabilizar,o que é básico notadamente para populações enganadas mil vezespelo discurso fácil das campanhas eleitorais e das promessas depalanque. Portanto, também a melhor análise sobre cultura pre-cisa ser revista, tanto no terceiro quanto no primeiro mundo, afim de que os cochilos na ação política e as acomodações ao dis-curso científico não nos criem armadilhas capazes de transformara prática cultural diversificada em objeto da patologia social.Machado de Assis já nos advertira quanto a esse perigo na obra-prima O Alienista.

A modernidade que nos interessa(?!)Outro preconceito histórico que precisamos vencer é o da

modernidade. Ora, somos modernos desde 1500 e isso em si não sig-nifica senão um desafio, jamais um orgulho ou complexo de juven-tude. Há, hoje, um perigoso discurso sobre os frutos damodernidade, feito sem aquela crítica da modernidade tão necessá-ria. A propósito, convém anotar os dados de uma obra recente deOctavio Ianni, denominada A idéia de Brasil moderno, que é a expansãode um ensaio publicado pela Universidade de Campinas. Aí o soci-ólogo brasileiro mostra que por ocasião da declaração de Indepen-dência, em 1822, na proclamação da República, em 1889, e na décadade 30 deste século fomos capazes de entender a conjuntura mundial,nossa realidade — notadamente nossos equívocos e injustiças sociais— a viabilidade das mudanças e seus instrumentos necessários. Noentanto, pouco depois dessa onda de positividade e ânimo se cons-tatou a prevalência do continuísmo, do passado, da estrutura colo-nizadora. O que se evidenciava como antigo e inadequado — e quechegava aos ouvidos do povo pelos discursos inflamados — depoisse recobria de legitimidade e, entre repressões e sutilezas, o

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patrimonialismo dava continuidade ao seu projeto histórico, despre-zando não somente a inteligência dos nossos intelectuais, mas tam-bém os desejos da maioria humilhada e contida. O Brasil desejousempre ser moderno, chegando a esquecer que já o era e que o valormaior não estava nessa condição. Nossa inteligência se debruçou so-bre o passado, perscrutou o presente e anteviu reais possibilidadesno futuro. Espantou-se, citando lanni, “com o divórcio entre as ten-dências da sociedade civil e as do poder estatal”. Apropriou-se deMax Weber, Simmel, Smith, Boas e Malinowski, empreendendo vôosde alta significação, desenvolvendo técnicas adequadas à compreen-são dos problemas. Grandes campanhas abolicionistas, lutas pelademocracia e pela reforma da terra. Tudo isso, ironicamente, deulugar à vitória dos canavieiros, cafeicultores e pecuaristas associadosao coronelismo e demais projetos estamentais. Da boca para fora oBrasil era um país liberal. Internamente, diz Ianni, “predominava opatrimonialismo “, corroborando a análise de Faoro. Quando nosaproximamos da segunda guerra mundial, abre-se um novo ciclo depossibilidades de modernidade, logo depois abafado pelo mesmomodo antigo e patrimonialista. Diz Octavio Ianni:

Em todos os lugares, combina-se o moderno material com o au-toritário do mando e desmando. Como na Madeira-Mamoré, emCanudos, Contestado, Revolta da Vacina, ocupações de terras,greves operárias, protestos contra desmandos. Uma história naqual a modernidade está mesclada no caleidoscópio dos preté-ritos, dos ciclos desencontrados de tempos e lugares, como se opresente fosse um depósito arqueológico de épocas e regiões.Todos, a despeito das diversidades de perspectivas e propostas,pensam o Brasil moderno, o capitalismo nacional, o capitalismoassociado, a industrialização, o planejamento governamental, areforma do sistema de ensino, a reforma agrária, ainstitucionalização de garantias democráticas, a superação dapreguiça pelo trabalho e da luxúria pelo ascetismo, a mudançadas instituições e atitudes, a reversão de expectativas, a revolu-ção política, a revolução social. Em distintas gradações, as pers-pectivas de uns e outros abrem-se em um leque bastante amplo,compreendendo propostas de cunho liberal, liberal-democrático,corporativo, fascista, socialista e outras.Como se vê, realmente a colonização esteve dentro de nós. A

aparente diversidade de enfoques e análises das nossas possibili-dades modernizadoras não incluía a leitura radical (que a litera-tura sempre fez) das condições culturais da nação, e mais: a apa-

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rente desigualdade do enfoque tinha como vetor de unificação oesforço por ser moderno, de granjear os frutos do progresso. As-sim, no desestímulo, cooptação e repressão às formas de organiza-ção de base, no processo de comunicação social continuamente di-rigido, no desnorteio de largos setores da inteligência perante asmodernizações, no desinteresse em descodificar os sinais vindosdas áreas periféricas empobrecidas, nesse quadro ficou relativa-mente fácil às elites patrimonialistas manter o mesmo velho podertingido de novidade e progresso.

Os confrontos da identidadeNão é difícil dizer que a questão da identidade em países

como o nosso passa pela sensibilidade perante a diversidade, amudança. O processo é o mesmo sobre o qual estamos refletindo.Para as elites, a identidade se agarra aos valores da ordem, doprogresso, da propriedade e se busca passar o mesmo projeto,como em um jogo de espelhos, para a aceitação da nação. Neleembarcam muitos. No entanto, mesmo diante de tão forte projeto,com quatro séculos de garantia, o que temos procurado mostrar éque novos quadros de referência possibilitaram relações de iden-tificação diversas. A arte brasileira, a comunicação em torno daarte, o esforço de criação de massa crítica, mesmo sob repressão,a busca da associatividade e da expansão da sua comunica-bilidade, o uso alternativo das tecnologias à disposição, a acumu-lação de memória e sua comunicabilidade, tais ações-valores têmensejado novas relações de pertinência, coesão social, trabalhocomum, reivindicação coletiva, memória familiar e social. Identi-dade no Brasil só pode ser pensada nesses marcos que fogem àpretensa identidade do colonizador projetada sobre o colonizado.Em melhores palavras, identidade é, lembrando Guimarães Rosa,não o diabo, mas de fato o homem no meio da rua, no meio doredemoinho. Identidade produzida nos confrontos, nos atos ama-durecidos de conhecimento, quer a criança educada para ver adiversidade rica da vida, quer o adulto sofrido a produzir com asmãos calejadas, sinais da sua própria história no grupo de traba-lho ou na escola noturna, quer ainda os segmentos de bairro a fa-zer a crítica do processo de comunicação e empreender a sua pró-pria criação de instrumentos de comunicação social. Ou ainda osmovimentos negros no seu reconhecimento histórico e valorizaçãoda sua capacidade organizatória, bem como a nova agressividade

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indígena, embora pacífica, perante o esquecimento sistemático edesestruturador de suas histórias e suas línguas.

Os confrontos produtores de identidade podem ser encontra-dos na fala forte de Mário de Andrade:

Nos períodos de maior escravização do indivíduo, Grécia, Egito,artes e ciências não deixaram de florescer. Será que a liberdade éuma bobagem?... Será que o direito é uma bobagem?... A vida hu-mana é que é alguma coisa a mais que ciências, artes e profissões.E é nessa vida que a liberdade tem um sentido, e o direito dos ho-mens. A liberdade não é um prêmio, é uma sanção. Que há de vir.

Mas a nova identidade operária também tem o seu caminhode identificação. Por exemplo, as comissões de fábricas. No casobrasileiro, esses grupos de representantes sindicais compostos poroperários locais ganharam força e legitimidade por meio de umanova “gramática” das relações de trabalho, em que o sujeito dosdiscursos e ações é o nós, pronome coletivo que nomina a unidadedesejável do movimento sindical, enquanto que o verbo é o pró-prio movimento sindical, capaz de veicular e carregar a informa-ção substantiva. Desse modo, a comissão de fábrica significa oelemento conectivo, as junções, as ligas, a soldadura do tecido derelações. Sua função é a de ouvir, preparar encontros, situar pro-posições, conectar-se para retro-alimentação, abrir canais de ex-pressão. Não é a voz definitiva do Sindicato; é a conexão indis-pensável para a descoberta dos sentidos do nós em ação. As suasconexões, nessa gramática do poder, visam exatamente a que osconteúdos do embate entre capital e trabalho sejam implemen-tados na melhor consciência dos seus significados. As comissõesde fábrica são um novo modo de produzir a informação, elemen-to identificador do novo projeto sindical; se são um fator demodernidade, o são também como reação ao silêncio desejado pelamoderna fase das relações entre capital e trabalho, com a contínuaperda de postos de trabalho, os novos alinhamentos do sistemaeconômico, as crises hiperbolizadas no processo de modernização.

Outro confronto é aquele que se dá entre o tradicional e omoderno em culturas como a boliviana, especialmente quechua-aymara, pesquisadas por um meu ex-orientando, Estebam Guardia.Lá, a exposição da música tradicional andina no universo deCochabamba ou La Paz, inclusive em festivais, reafirma o con-fronto, que se denomina tikun. Entendidos como cooperação, mos-

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tra, fomento ao turismo e valorização da música tradicional, osfestivais revelam as distâncias das classes sociais na produçãodos códigos de comunicação, a diversidade dos tempos e seus sen-tidos, o despreparo da sociedade moderna na recepção aos ho-mens e mulheres do mundo rural. De fato, não são os camponesesincompetentes para mostrar a sua arte musical. Ao contrário, eleso fazem com mais ênfase do que se lhes solicita, porque a sua pro-dução musical remete à comunhão entre modos e sentidos dadosna história comunitária, que se manifesta tanto na organizaçãodos sons quanto na duração, na concatenação das partes, na ati-tude do corpo, na imagem da coreografia. Aquela música, posta nopalco para sonorizar alguns instantes fugidios, na verdadesobrepassa o tempo do espetáculo e revela a fugacidade do tempomodernizado. No interior daquela rodinha de músicos, voltadospara si e para a sua história, concretiza-se o encontro da memóriae da comunicação na ritualização do código, cuja gramática des-conhece o que é formal e o que é conteúdo para ser “vendido” aosespectadores. Os cantores do Potosi enfrentam e talvez superem obrilho de Cochabamba e La Paz.

Algumas relaçõesHá uma pergunta de Cecília Meireles que estimula a pensar as

relações entre identidade, literatura e colonização. À pergunta deCecília sugiro a resposta de Guimarães Rosa em um conto curto,enigmático e profundamente revelador. A poetisa brasileira per-gunta no poema Retrato: “Em que espelho ficou perdido o meu retra-to?” Há uma versão italiana de Raffaele Spinelli. O pequenino contoSoroco, sua mãe, sua filha, conhecido em italiano pelas mãos de GiuliaLanciani, compondo o livro Le sponde dell’allegria, responde e vai alémda resposta: oferece-nos as chaves para a melhor pintura dos rostosbrasileiros. Cecília nos indaga sobre a possibilidade de algumaidentidade nesse processo que, a despeito do passar do tempo, nãoacumula memória e se faz espelho em vez de retrato. A perguntaenseja à pesquisa no tempo e no espaço mais abertos, onde se podedizer que somos brasileiros por sermos universais e somos univer-sais porque somos marcadamente brasileiros. O conto de quatropáginas nos revela um homem que perde tudo o que tem, mãe e filha,ambas enlouquecidas. Aí a narrativa lembra muito o escritor judeuShrnuel Yossef Agnon, para quem a universalidade implica a cria-ção de rostos concretos, com marcas reais, étnicas e sociais. O conto

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de Guimarães Rosa oferece dados mensuráveis: um trem, pago pelogoverno, levará as duas para longe, para sempre. Para Barbacena. Eaí a frase-chave: “ Per il povero, i posti sono più lontano”, (Para ospobres, os lugares são mais longe). Soroco desce a rua abraçado àssuas mulheres, a fim de embarcá-las. O povo observa, pesaroso. Afilha, num átimo, se põe a cantar e a canção é de não sair da memó-ria, desencontrada, distante, louca. Já perto do trem, entre uma eoutra manifestação de solidariedade dos amigos, a velha se afastade Soroco e também se põe a cantar aquele mesmo desatino da neta.Aquele chirimia, como diz o texto original, uma chirimia queavocava, ou cianciuglío che attirava. Enfim, o trem veio, encostou, asduas entraram e se foram, ainda entoando aquela canção sem senti-do aparente. Soroco fica só, no “oco sem beiras”. A solidariedade éboa e necessária. Alguns chegam perto. Até as crianças, que antestinham medo dele, porque era um homem alto, estranho, barbagrossa, voz rouca. No entanto, também ele, Soroco, de repente, come-ça a cantar. Canta e canta sozinho. Levanta a voz. E também semexplicação alguma, o grupo solidário começa a cantar. E a canção éa mesma sem sentido entoada pelas loucas. Todos cantam e a procis-são sobe no rumo da casa de Soroco. Das loucas restou a memória docanto. A última frase da estória: “La gente, con lui, andava fin doveandava quella canzone.”

O modo de produção do conto é exemplar para a obra de Gui-marães: o universo dos pobres, o jogo reversível dos componentesnarrativos, a própria ambigüidade sempre disposta ao ser datado elocalizado no sertão-mundo das minas gerais e das bahias, a cria-ção-recriação lingüística. Esse jogo ambígüo e reversível, em feiturae não-acabado, que perde as marcas dos opostos aprovados pelacultura: macho-fêmea, deus-diabo, bem-mal, amplia-se nas demaisobras de Rosa e também participa ativamente do melhor cinemabrasileiro. No entanto, o que mais interessa aqui é que no lugar doespelho fugidio alguma coisa ficou patente: existe o rosto, emboradiverso, existe o lugar, embora amplo e perigoso, existe e vive aque-la gente, a despeito de pobre e desamparada. Existe, acima de tudo,uma alta capacidade de simbolizar, de sintonizar valores, de mudarcomportamentos, de ser mutante em nome da alegria possível, de seconstituir um caminho de vida na estrada maior da morte. Ora, essaobra é sinal forte do que temos descoberto nas pesquisas sobre amemória histórica, na audição dos que antes não tinham voz, noacompanhamento dos movimentos que visam à mudança da vida.

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Sem a perfeição do texto literário, a mesma disposição espiritualpovoa os espaços da cultura brasileira raramente perscrutados equase nunca levados a sério, até porque se essas formações culturaismenos letradas fossem levadas a sério alterariam as relações demando, liquidariam com o patrimonialismo em nome da solidarie-dade. Essa literatura, que supera a oposição entre erudito e popular,é sinal de uma antropologia que fecha os espaços à entrada dos este-reótipos e preconceitos, abrindo até para a aparente falta de sentidono domínio da loucura o direito à nova voz e ao novo canto. Talvezessa distância que se faz próxima, essa loucura prenhe de sentidos eainda a impossibilidade que se faz possível, que detectamos na aná-lise carinhosa da criação cultural brasileira seja, noutra chave deleitura e com outros materiais, o que também Massimo Canevacci vêao penetrar, como antropólogo visual, no interior da metrópolepaulistana. A sua obra Cidade polifônica oferece decidida contribuiçãopara repensar São Paulo, fatia-síntese do Brasil.

Enfim, nessa literatura e nessas práticas culturais instaura-se um mundo novo em cima daquele que já foi, infelizmente, cru-cificado. É o da voz coletiva, solidária, que ecoa e embala outroscorpos animados pelo som imperturbável. Do confronto perigoso,silencioso, dramático, surge a identidade, talvez provisória massinalizando novas possibilidades. Do texto literário e das vozeshumanas surgem antenas para pensar a sociologia e a política.Esses sinais de identificação fundados numa literatura que assu-miu conviver no universo de uma cultura negada e pouco conta-da, é o melhor libelo que temos para o esforço que enseja superaro espírito de colonização que nos dificulta criar os nossos novosrostos. Essa criação é capaz de aproximar faces e gestos de cultu-ras distintas, mas de sensibilidade convergente: por exemploaquele rosto que se vai transformando lindamente na cena final deAs noites de Cabíria lembra o rosto do sofrido Soroco, sertanejomutante ao embalo da música e do riso solidário.