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1 OS PROFESSORES NA VIRADA DO MILÊNIO: DO EXCESSO DOS DISCURSOS À POBREZA DAS PRÁTICAS 1 António Nóvoa (Universidade de Lisboa) RESUMO Escrito na sequência de uma Conferência proferida na Universidade de São Paulo, este artigo procura analisar a “realidade discursiva” que marca grande parte dos textos sobre educação neste final de século. A chave de leitura do artigo é a lógica excesso-pobreza, aplicada ao exame da situação dos professores: i) do excesso da retórica política e dos mass-media à pobreza das políticas educativas; ii) o excesso das linguagens dos especialistas internacionais à pobreza dos programas de formação de professores; iii) do excesso do discurso científico-educacional à pobreza das práticas pedagógicas; iv) do excesso das “vozes” dos professores à pobreza das práticas associativas docentes. Não recusando um pensamento “utópico”, o autor critica as análises “prospectivas” que revelam um “excesso de futuro” que é, ao mesmo tempo, um “défice de presente”. RESUME Rédigé à la suite d’une Conférence donnée à l’Université de São Paulo, cet article cherche à analyser la “réalité discursive” qui marque la plupart des textes sur l’éducation dans cette fin de siècle. La clef de lecture de l’article est le couple excès-pauvreté, appliqué à l’examen de la situation des enseignants: i) de l’excès de la rhétorique politique et des mass-media à la pauvreté des politiques éducatives; ii) de l’excès des langages des experts internationaux à la pauvreté des programmes de formation des enseignants; iii) de l’excès du discours scientifique-éducationnel à la pauvreté des pratiques pédagogiques; iv) de l’excès des “voix” des enseignants à la pauvreté des pratiques associatives des enseignants. Ne refusant pas une pensée “utopique”, l’auteur critique les analyses “prospectives” qui sont porteuses d’un “excès d’avenir” qui est, en même temps, un “déficit de présent”. 1 Este artigo surge na sequência de uma palestra proferida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, no dia 20 de Maio de 1999. Uma versão deste texto foi publicada na revista espanhola Cuadernos de Pedagogía (nº 286, Dezembro de 1999).

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    OS PROFESSORES NA VIRADA DO MILNIO: DO EXCESSO DOS DISCURSOS POBREZA DAS PRTICAS1

    Antnio Nvoa

    (Universidade de Lisboa)

    RESUMO Escrito na sequncia de uma Conferncia proferida na Universidade de So Paulo, este artigo procura analisar a realidade discursiva que marca grande parte dos textos sobre educao neste final de sculo. A chave de leitura do artigo a lgica excesso-pobreza, aplicada ao exame da situao dos professores: i) do excesso da retrica poltica e dos mass-media pobreza das polticas educativas; ii) o excesso das linguagens dos especialistas internacionais pobreza dos programas de formao de professores; iii) do excesso do discurso cientfico-educacional pobreza das prticas pedaggicas; iv) do excesso das vozes dos professores pobreza das prticas associativas docentes. No recusando um pensamento utpico, o autor critica as anlises prospectivas que revelam um excesso de futuro que , ao mesmo tempo, um dfice de presente. RESUME Rdig la suite dune Confrence donne lUniversit de So Paulo, cet article cherche analyser la ralit discursive qui marque la plupart des textes sur lducation dans cette fin de sicle. La clef de lecture de larticle est le couple excs-pauvret, appliqu lexamen de la situation des enseignants: i) de lexcs de la rhtorique politique et des mass-media la pauvret des politiques ducatives; ii) de lexcs des langages des experts internationaux la pauvret des programmes de formation des enseignants; iii) de lexcs du discours scientifique-ducationnel la pauvret des pratiques pdagogiques; iv) de lexcs des voix des enseignants la pauvret des pratiques associatives des enseignants. Ne refusant pas une pense utopique, lauteur critique les analyses prospectives qui sont porteuses dun excs davenir qui est, en mme temps, un dficit de prsent.

    1 Este artigo surge na sequncia de uma palestra proferida na Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo, no dia 20 de Maio de 1999. Uma verso deste texto foi publicada na revista espanhola Cuadernos de Pedagoga (n 286, Dezembro de 1999).

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    Nos dias de hoje, h uma retrica cada vez mais abundante sobre o papel

    fundamental que os professores sero chamados a desempenhar na construo da sociedade do futuro. Um pouco por todo o lado, polticos e intelectuais juntam as suas vozes clamando pela dignificao dos professores, pela valorizao da profisso docente, por uma maior autonomia profissional, por uma melhor imagem social, etc.

    Nos programas de aco poltica ou nos discursos reformadores, nos documentos dos especialistas da Unio Europeia ou na literatura produzida pelos investigadores, reencontramos sempre as mesmas palavras, repetidas uma e outra vez, sobre a importncia dos professores nos desafios do futuro. Ou porque lhes cabe formar os recursos humanos necessrios ao desenvolvimento econmico, ou porque lhes compete formar as geraes do sculo XXI, ou porque devem preparar os jovens para a sociedade da informao e da globalizao, ou por qualquer outra razo, os professores voltam a estar no centro das preocupaes polticas e sociais.

    Recentemente, vrias organizaes internacionais tm falado da nova centralidade dos professores, referindo-se mesmo necessidade de trazer outra vez os professores para o retrato. O meu artigo procura analisar esta realidade discursiva, questionando as suas razes e contradies. O subttulo desvenda a linha central da argumentao: Do excesso dos discursos pobreza das prticas.

    No pretendo, obviamente, sugerir uma oposio entre discursos e prticas, como se estivssemos perante dois mundos distintos. Bem pelo contrrio. Quero demonstrar de que forma os discursos induzem comportamentos e prescrevem atitudes razoveis e correctas (e vice-versa). Mas quero mostrar, tambm, o modo como eles constroem uma ideia de profisso docente que, muitas vezes, no corresponde intencionalidade declarada. A chave de leitura do artigo o par excesso-pobreza, aplicado anlise da situao dos professores:

    Do excesso da retrica poltica e dos mass-media pobreza das polticas educativas.

    Do excesso das linguagens dos especialistas internacionais pobreza dos programas de formao de professores.

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    Do excesso do discurso cientfico-educacional pobreza das prticas pedaggicas.

    Do excesso das vozes dos professores pobreza das prticas associativas docentes.

    DO EXCESSO DA RETRICA POLTICA E DOS MASS-MEDIA POBREZA DAS POLTICAS EDUCATIVAS

    Em sociedades marcadas por crises de legitimidade poltica e por dfices de

    participao, surge sempre uma dupla tendncia: por um lado, para pregar o civismo, o que compensaria a falta de uma autntica vivncia democrtica; por outro lado, para evitar o presente, projectando todas as expectativas na sociedade do futuro.

    Para pregar o civismo ou para imaginar o futuro, nada melhor do que os professores. para eles que se viram as atenes dos polticos e da opinio pblica quando no encontram outras respostas para os problemas. A inflao retrica tem um efeito desresponsabilizador: o verbo substitui a aco e conforta-nos no sentimento de que estamos a tentar fazer alguma coisa...

    O excesso dos discursos esconde a pobreza das prticas polticas. Neste fim de sculo, no se vm surgir propostas coerentes sobre a profisso docente. Bem pelo contrrio. As ambiguidades so permanentes.

    Por um lado, os professores so olhados com desconfiana, acusados de serem profissionais medocres e de terem uma formao deficiente; por outro lado, so bombardeados com uma retrica cada vez mais abundante que os considera elementos essenciais para a melhoria da qualidade do ensino e para o progresso social e cultural.

    Umas vezes, as respostas procuram-se num liberalismo levado ao extremo: vejam-se, por exemplo, as recentes medidas decretadas pelo governo de Tony Blair concedendo a empresas privadas a gesto dos professores substitutos nas escolas pblicas inglesas. Outras vezes, assistimos ao recurso a um autoritarismo inusitado: vejam-se, por exemplo, certas medidas de controlo estatal ou de avaliao dos

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    desempenhos profissionais. No caso dos professores, o liberalismo e o autoritarismo surgem frequentemente

    associados, configurando polticas desgarradas e contraditrias. Como escreve Hans Vonk, nas sociedades actuais, os burocratas definem vrios problemas sociais e educacionais numa perspectiva gerencial e no numa perspectiva de contedo (1991, p. 134). O excesso dos discursos faz lembrar o final do sculo XIX, quando os professores eram investidos de todos os poderes (at o de ganhar guerras). Mas nessa poca havia um consenso social em torno da misso dos professores. Hoje, no h. E o excesso dos discursos tende, apenas, a esconder a pobreza das polticas.

    DO EXCESSO DAS LINGUAGENS DOS ESPECIALISTAS INTERNACIONAIS POBREZA DOS PROGRAMAS DE FORMAO DE PROFESSORES

    Nos ltimos anos, os especialistas internacionais tm estado particularmente

    activos no aconselhamento e consultoria na rea da educao. As grandes organizaes (Unesco, OCDE, Unio Europeia, etc.) parecem ter redescoberto as anlises prospectivas, anunciando nos seus documentos a sociedade educativa, a sociedade do conhecimento, a sociedade que aprende ou a sociedade cognitiva do prximo sculo.

    nestes textos que se cunha o conceito de centralidade dos professores. No relatrio da OCDE, Education Policy Analysis (1998), em apenas trs pginas utilizam-se expresses como: trazer outra vez os professores para o retrato; colocar os professores no centro dos processos sociais e econmicos; os professores so os profissionais mais relevantes na construo da sociedade do futuro; os professores tm de voltar para o centro das estratgias culturais; os professores esto no corao das mudanas. Tudo isto para concluir que a centralidade dos professores nem sempre devidamente reconhecida no plano poltico.

    Um dos domnios ao qual os especialistas internacionais dedicam mais ateno a formao inicial e continuada de professores. As medidas propostas insistem nos sistemas de acreditao (no caso da formao inicial) e nas lgicas de avaliao (no caso

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    da formao continuada), arrastando uma concepo escolarizada da formao de professores. Consolida-se um mercado da formao, ao mesmo tempo que se vai perdendo o sentido da reflexo experiencial e da partilha de saberes profissionais.

    Nos Estados Unidos, um dos grupos que mais tem influenciado as polticas educativas nas ltimas dcadas, o Holmes Group, escreve na abertura do seu relatrio Tomorrows Schools of Education: Muitas pessoas e instituies dedicam-se formao de professores, apenas e unicamente por se tratar de um mercado rentvel. A formao de professores e de educadores um grande negcio numa nao que emprega mais de trs milhes de educadores. Os dlares cintilam nos olhos daqueles que andam procura de boas oportunidades de mercado (1995, p. 1).

    Na Europa, os 4 milhes de professores constituem um mercado altamente cobiado. No espanta, por isso, que a coberto dos mais diversos argumentos (racionalizao, eficcia, flexibilidade, excelncia, etc.) se esteja, simultaneamente, a desmantelar as escolas superiores e universitrias de formao de professores e a tentar colocar sob gesto privada a oferta de formao dos centros de professores. Num e noutro caso, as grandes palavras servem para ocultar interesses concretos. Ainda h pouco tempo, o ministro da Educao Nacional do governo socialista francs afirmava que era necessrio instilar no sistema de ensino o esprito de empresa e de inovao, considerando que a educao ser o grande mercado do sculo XXI.

    A luta por este mercado tem trazido para a formao de professores um conjunto de instituies e de grupos cientficos, que nunca tinham demonstrado grande interesse por este campo. Infelizmente, os benefcios desta aproximao no so muito visveis. E o resultado a pobreza actual da maioria dos programas de formao de professores nos pases europeus.

    DO EXCESSO DO DISCURSO CIENTFICO-EDUCACIONAL POBREZA DAS PRTICAS PEDAGGICAS

    Uma das realidades mais importantes das duas ltimas dcadas o

    desenvolvimento extraordinrio do campo universitrio da pedagogia e/ou das cincias

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    da educao. Hoje em dia, h milhares de investigadores nesta rea, que produzem uma quantidade impressionante de textos, documentos, pesquisas, revistas, congressos, cursos, etc.

    Em grande parte, esta comunidade cientfico-educacional alimenta-se dos professores e legitima-se atravs de uma reflexo sobre eles. Deste modo, no espanta que tambm os pedagogos sejam excessivos nas referncias aos professores, pois esta a melhor maneira de valorizarem o seu prprio trabalho. A consequncia uma recorrente responsabilizao dos professores pelas resistncias que opem razo cientfica tal como lhes servida pelos investigadores.

    A profissionalizao dos professores est dependente da possibilidade de construir um saber pedaggico que no seja puramente instrumental. Por isso, natural que os momentos-fortes de produo de um discurso cientfico em educao sejam, tambm, momentos-fortes de afirmao profissional dos professores. Todavia, estes momentos contm igualmente os germes de uma desvalorizao da profisso, uma vez que provocam a deslegitimao dos professores enquanto produtores de saberes e investem novos grupos de especialistas que se assumem como autoridades cientficas no campo educativo. O entendimento deste paradoxo parece-me essencial para compreender alguns dos dilemas actuais da profisso docente.

    verdade que existe, no espao universitrio, uma retrica de inovao, de mudana, de professor reflexivo, de investigao-aco, etc.; mas a Universidade uma instituio conservadora, e acaba sempre por reproduzir dicotomias como teoria/prtica, conhecimento/aco, etc. A ligao da Universidade ao terreno (curiosa metfora!) leva a que os investigadores fiquem a saber o que os professores sabem, e no conduz a que os professores fiquem a saber melhor aquilo que j sabem.

    A estratgia de desapossar os professores dos seus saberes serve objectivos de desenvolvimento da carreira dos universitrios, mesmo que se legitime com o argumento de que serve para o desenvolvimento profissional dos professores. Como desabafava um dos mais prestigiados professores portugueses dirigindo-se a uma plateia de universitrios na rea das Cincias da Educao: Vocs domesticaram-nos! No temos mais espao, nem legitimidade, para lanar dinmicas pedaggicas novas.

    No deixa de ser estranho que, numa poca em que tanto se fala de autonomia profissional ou de professores reflexivos, se assista a um desaparecimento dos

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    movimentos pedaggicos, no sentido que este termo adquiriu na primeira metade do sculo XX, isto , colectivos de professores que se organizam em torno de princpios educativos ou de propostas de aco, da difuso de mtodos de ensino ou da defesa de determinados ideais.

    A pobreza actual das prticas pedaggicas, fechadas numa concepo curricular rgida e pautadas pelo ritmo de livros e materiais escolares concebidos por grandes empresas, a outra face do excesso do discurso cientfico-educacional, tal como ele se produz nas comunidades acadmicas e nas instituies de ensino superior.

    DO EXCESSO DAS VOZES DOS PROFESSORES POBREZA DAS PRTICAS ASSOCIATIVAS DOCENTES

    Finalmente, til chamar a ateno para o excesso das vozes dos professores.

    Face a situaes de dificuldade e de desvalorizao social e profissional, eles deixam-se tentar pelo sobre-dimensionamento das suas misses, apropriando-se de alguns dos discursos anteriores e transformando-os em vozes prprias. Assumem, assim, responsabilidades desmedidas, ambio que se vira frequentemente contra eles.

    evidente que nenhum grupo profissional pode ser indiferente sua imagem pblica. E esta estratgia procura valorizar socialmente o seu papel. Mas ela particularmente perigosa e tem constitudo um factor importante do mal-estar docente. A escola e os professores no podem colmatar a ausncia de outras instncias sociais e familiares no processo de educar as geraes mais novas. Ningum pode carregar aos ombros misses to vastas como aquelas que so cometidas aos professores e que eles prprios, por vezes, se atribuem.

    Curiosamente, neste tempo de tantas ambies que se tem acentuado uma maior dependncia dos professores face aos poderes pblicos, s entidades privadas e s instituies universitrias. E que se tem notado uma grande dificuldade de consolidar prticas de partilha profissional e de colaborao inter-pares. verdade que h sinais de revitalizao do sindicalismo docente, mas este facto no compensa a inexistncia de uma colegialidade que no se esgota nos modelos sindicais tradicionais.

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    Ao olharmos para a histria, verificamos que nunca a fragilidade associativa dos professores foi to grande, o que no deixa de ser preocupante. Ora, sem um reforo das dimenses colectivas e colegiais no seio do professorado, no vale a pena levantar a voz (as vozes), pois no por falarmos mais alto que temos mais razo ou que defendemos melhor os nossos interesses.

    Tradicionalmente, os professores oscilaram entre um extremo individualismo na aco pedaggica e modelos sindicais tpicos de funcionrios do Estado. So, nos dias de hoje, formas obsoletas de encarar a profisso. O empobrecimento das prticas associativas tem consequncias muito negativas para a profisso docente. urgente, por isso, descobrir novos sentidos para a ideia de colectivo profissional. preciso inscrever rotinas de funcionamento, modos de deciso e prticas pedaggicas que apelem co-responsabilizao e partilha entre colegas. fundamental encontrar espaos de debate, de planificao e de anlise, que acentuem a troca e a colaborao entre os professores.

    EM JEITO DE CONCLUSO PROVISRIA: POLTICAS, FORMAO, PRTICAS, ASSOCIATIVISMO

    Seria fcil identificar outros excessos no modo de pensar os professores: por

    exemplo, a atitude dos pais exigindo que os professores assegurem aquilo de que eles prprios j se demitiram ou o comportamento dos empresrios reclamando que os alunos desenvolvam competncias que mais tarde no valorizam. Mas os excessos mencionados so suficientes para sustentar a minha recusa de um pensamento que se projecta num excesso do futuro como forma de justificar a pobreza do presente. Como j se escreveu, no por avanarmos os relgios que o futuro chega mais cedo (Koselleck, 1979).

    Aparentemente, estou em desacordo com Zaki Ladi quando ele denuncia a tirania da urgncia: Exigimos do presente o que espervamos do passado. A urgncia no nega o tempo. Ela sobrecarrega-o com exigncias inscritas apenas na imediatez. (...) por isso que, na ausncia de um pensamento sobre o futuro, a urgncia contribui para

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    o destruir. A sua pretensa neutralidade temporal totalmente ilusria, porque toda a preferncia implica uma escolha e toda a preferncia excessiva pelo presente conduz necessariamente a opes excessivas contra o futuro (1999, p. 27). Mas este desacordo aparente. Ambos recusamos um presente e um futuro como fugas ou refgios.

    Eu sei que a reflexo prospectiva foi, num passado no muito distante, a manifestao de um pensamento utpico, de uma vontade de mudar as coisas da educao. Mas hoje trata-se, na maior parte dos casos, de um mero jogo nominalista, como se no houvesse outra mudana para alm da alterao dos nomes. So exerccios tcnicos, eszaviados de uma ideia de futuro inscrita numa relao ao tempo histrico e social.2

    Consciente deste facto, no me lanarei em mais um exerccio de antecipao. Mas, tal como dizia Antnio Vieira no sculo XVIII, h elementos da histria do futuro que podem ser trazidos para o debate. As quatro denncias que organizam este artigo contm, evidentemente, outros tantos aspectos essenciais para os professores. Permitam-me que os relembre, em jeito de concluso.

    Polticas educativas As sociedades actuais manifestam grandes ambiguidades em relao escola e

    aos professores. O sculo XX foi aquele em que mais se investiu afectivamente nas crianas, mas foi tambm aquele em que elas mais tempo passaram separadas das famlias. Adquiriu-se uma noo muito ntida da importncia da educao, ao mesmo tempo que as comunidades foram abdicando da sua funo educativa. Os pais que exigem escola a defesa dos valores, da tolerncia e do dilogo, reclamando mesmo a restaurao da ordem e de normas de disciplina ditas de tolerncia zero, so os mesmos pais que deixam os filhos ver filmes ou divertirem-se com jogos para computador de extrema violncia...

    2 Ver, por exemplo, o documento da Comisso Europeia, La prospective en ducation au sein des

    tats membres de lUnion europenne (Bruxelles, 1999).

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    Ao mesmo tempo, os problemas polticos tendem a ser redefinidos como problemas pedaggicos. O que no possvel fazer noutras arenas transfere-se para o campo da educao. Aqui o discurso e a aco ficariam libertos dos constrangimentos democrticos, dando livre curso s prticas autoritrias do Estado, da sociedade civil ou do mercado. Hoje em dia, raro aquele que defende o primado da autoridade como modo de organizao da vida social ou poltica. Mas, na escola, o discurso outro. Para muitos lderes de opinio o princpio democrtico no teria, aqui, razo de ser, importando, sim, insistir no uso da autoridade, na exigncia do esforo, na promoo do mrito e na seleco dos melhores. A lgica da autoridade e da competio seriam, assim, os elementos-chave para uma educao dita de qualidade. As ideias de democracia e de participao estariam condenadas a ficar porta da escola.

    Os professores sabem que no assim. E que a democracia comea no respeito pelas crianas e pelos seus percursos. E sabem que so eles que tm de defender a possibilidade destes percursos, por vezes contra as famlias ou contra as comunidades locais. Mas, para tal, preciso que exista um resgate social da profisso docente e a definio de polticas educativas coerentes. Os professores tm de redescobrir uma identidade colectiva, que lhes permita cumprir o seu papel na formao das crianas e dos jovens.

    Os tempos de hoje so mais complexos do que os tempos passados. E mais difceis. Mas grande parte das crenas fundadoras da profisso docente continuam actuais. A comear por esse sentimento de que nos compete cuidar das crianas e do seu futuro. Para que isso seja possvel, fundamental que os professores ocupem um espao mais dinmico (e menos defensivo) nas mudanas em curso.

    Formao de Professores impossvel imaginar alguma mudana que no passe pela formao de

    professores. No estou a falar de mais um programa de formao a juntar a tantos outros que todos os dias so lanados. Quero dizer, sim, da necessidade de uma outra concepo, que situe o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores ao longo dos diferentes ciclos da sua vida. Necessitamos de construir lgicas de formao que valorizem a experincia como aluno, como aluno-mestre, como estagirio, como

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    professor principiante, como professor titular e, at, como professor reformado. Nos ltimos anos, tem-se insistido, ora na formao inicial, ora na formao

    continuada. Mas, tanto num caso como no outro, h tendncias claras para a escolarizao e para a academizao dos programas de formao de professores. Assim sendo, e apesar da retrica do professor reflexivo, os resultados conduziro inevitavelmente a uma menorizao dos professores face aos grupos cientficos e s instituies universitrias. Ou, como diria Ademar Santos, para que os professores das escolas superiores continuem a ditar as suas leis aos professores das escolas inferiores.3

    Pela minha parte, gostaria de perceber como que os professores reflectiam antes de os investigadores terem decidido que eles eram profissionais reflexivos. E encontrar processos que valorizem a sistematizao dos saberes prprios, a capacidade para transformar a experincia em conhecimento e a formalizao de um saber profissional de referncia. As abordagens autobiogrficas (no apenas num sentido pessoal, mas geracional), as prticas de escrita pessoal e colectiva, o desenvolvimento de competncias dramticas e relacionais ou o estmulo a uma atitude de investigao deveriam fazer parte de uma concepo abrangente de formao de professores.

    verdade que no faltam programas onde estas dimenses esto contempladas. Mas a questo essencial no organizar mais uns cursos ou atribuir mais uns crditos de formao. O que faz falta integrar estas dimenses no quotidiano da profisso docente, fazendo com que elas sejam parte essencial da definio de cada um como professor/a.

    Prticas Pedaggicas A aco educativa sempre se revestiu de uma grande complexidade e de margens

    significativas de imprevisibilidade. Estas caractersticas so ainda mais marcadas nos dias de hoje, devido presena na escola de crianas de todas as origens sociais e

    3 Ademar Santos, Interveno proferida numa aco de formao de professores em S. Pedro

    de Moel (Portugal), no dia 2 de Julho de 1999.

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    culturais, bem como democratizao do acesso s mais variadas tecnologias de informao e comunicao.

    Face a este panorama, grande a tentao de enveredar por uma planificao rgida ou por uma tecnologizao do ensino. Estes caminhos levam, inevitavelmente, a uma secundarizao dos professores, ora obrigados a aplicarem materiais curriculares pr-preparados, ora condicionados pelos meios tecnolgicos ao seu dispor. O reforo de prticas pedaggicas inovadoras, construdas pelos professores a partir de uma reflexo sobre a experincia, parece ser a nica sada possvel.

    Um elemento essencial deste debate a afirmao de que as zonas indeterminadas da prtica se encontram no cerne do exerccio profissional docente. Tal facto leva-nos a conceder uma nova ateno ideia de deliberao. O momento em que o professor julga e decide, a partir da anlise de uma situao singular e com base nas suas convies pessoais e nas suas discusses com os colegas, transforma-se assim numa dimenso central do processo identitrio.

    Um outro elemento, que tem sido pouco explicitado, diz respeito ao horizonte tico do trabalho docente. uma reflexo inevitvel, num tempo marcado por tantos conflitos e dilemas. Os professores no podem refugiar-se numa atitude defensiva e tm de estar preparados para enfrentar as interpelaes dos seus alunos. A definio da conscincia e da responsabilidade profissional no se esgota no acto tcnico de ensinar e prolonga-se no acto formativo de educar.

    A concepo de prticas pedaggicas que respondam a estas preocupao contm, actualmente, uma dimenso organizacional e, por isso, to importante reequacionar o papel da escola enquanto espao de referncia da profissionalidade docente.

    Associativismo Docente

    O ponto anterior indica a necessidade de reinventar as prticas associativas docentes. Tem faltado ao professorado uma dimenso colectiva, no no sentido corporativo, mas na perspectiva da colegialidade docente. No me refiro a dinmicas voluntaristas de colaborao, mas sim instaurao de culturas e rotinas profissionais

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    que integrem esta dimenso. A literatura sobre os professores tem vindo a produzir conceitos que aproximam esta ideia (partilha, cooperao, equipas de trabalho, ensino por equipas, desenvolvimento profissional, investigao-aco colaborativa, regulao colectiva das prticas, avaliao inter-pares, co-formao e tantos outros), mas ainda longo o caminho a percorrer, no plano do pensamento cientfico e na aco concreta nas escolas.

    A ideia de equipa pedaggica, tal como formulada por Philippe Perrenoud (1996), aponta justamente para a necessidade de erigir sistemas de aco colectiva no seio do professorado. Na perspectiva deste autor, o trabalho em equipa no deve ser visto como uma conquista individual da parte dos professores, mas como uma faceta essencial de uma nova cultura profissional, uma cultura de cooperao ou colaborativa. til mencionar a importncia de uma anlise colectiva das prticas pedaggicas que pode sugerir momentos de partilha e de produo colegial da profisso. Num certo sentido, trata-se de inscrever a dimenso colectiva no habitus profissional dos professores.

    Guy Le Boterf, em trabalho de 1994, sublinha que a competncia do indivduo depende da rede ou redes de conhecimento s quais pertence. Mobilizando o termo colgio invisvel, refere que a competncia das equipas profissionais no se reduz soma das competncias individuais que as compem. Nesta linha, sugere o conceito de competncia colectiva, encarado numa dupla vertente: a competncia colectiva de uma equipa de trabalho e os sistemas de competncias organizados em rede.

    A concretizao destas propostas faz aparecer um actor colectivo, portador de uma memria e de representaes comuns, que cria linguagens prprias, rotinas partilhadas de aco, espaos de cooperao e dinmicas de co-formao participada. uma mudana decisiva para a profisso docente.

    * * * * *

    a partir deste novo entendimento das polticas educativas, da formao de professores, das prticas pedaggicas e do associativismo docente que possvel imaginar o trabalho dos professores no prximo sculo. H quase trinta anos, Ivan Illich escreveu a sua Sociedade sem escolas, utopia que nos conquistou a todos, de uma ou de

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    outra maneira. Hoje, sabemos que as nossas sociedades sero, ainda por muitos anos, sociedades com escolas. Mas sabemos tambm que as escolas que temos no nos servem.

    A refundao da escola tem muitos caminhos, mas todos eles passam pelos professores. Esta profisso representou, no passado, um dos lugares onde a ideia de escola foi inventada. No presente, o seu papel essencial para que a escola seja recriada como espao de formao individual e de cidadania democrtica. Mas, para que tal acontea, preciso que os professores sejam capazes de reflectirem sobre a sua prpria profisso, encontrando modelos de formao e de trabalho que lhes permitam no s afirmar a importncia dos aspectos pessoais e organizacionais na vida docente, mas tambm consolidar as dimenses colectivas da profisso.

    A paixo pelo futuro um bom spot publicitrio. Mas, no campo educativo, ele significa, muitas vezes, um dfice de presente. O pensamento educacional tem sido marcado pelo conformismo. Frequentemente, a anlise prospectiva no mais do que a face criativa deste conformismo, para no dizer resignao. Como se imaginar nos dispensasse de agir. importante pensar o futuro dos professores. Mas sem esquecer o presente e sem calar a indignao pelo estado actual das coisas. Porque, parafraseando Louis Althusser, o futuro (ainda) demora muito tempo.

    Referncias bibliogrficas ALTHUSSER, Louis (1992). Lavenir dure longtemps. Paris: Stock. HOLMES GROUP (1995).Tomorrows Schools of Education. East Lansing, MI: The Holmes Group. ILLICH, Ivan (1973). Sociedade sem escolas. Petrpolis: Editora Vozes. KOSELLECK, Reinhart (1990). Le futur pass: Contribution la smantique des temps historiques. Paris: coles de Hautes tudes en Sciences Sociales. LADI, Zaki (1999). La tyrannie de lurgence. Montral: Muse de la civilisation. LE BOTERF, Guy (1994). De la comptence - Essai sur un attracteur trange. Paris: Les ditions dOrganisation. NVOA, Antnio (1998). Histoire et Comparaison (Essais sur lducation). Lisboa: Educa.

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