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René Magritte , A condição humana Óleo sobre tela, 1933 NOTAS SOBRE AS JANELAS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE MAGRITTE * Claudia Zimmer de Cerqueira Cezar Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS Bolsista CAPES Este artigo tem como ponto de partida a obra A condição humana (1933) de René Magritte, que traz discussões sobre as janelas - dispositivos de passagens que se situam num entre, mecanismos de enquadramento por excelência. Tal pintura desencadeia no texto um debate acerca do modo como permanece ainda assentado entre as pessoas, de um modo geral, um olhar crente na perspectiva, bem como este é problematizado pela arte e, neste âmbito, perde força. Na segunda parte do texto, aborda-se o fato de como visão se desfaz de sua supremacia enquanto sentido privilegiado ao longo da história e como esta superioridade foi posta em dúvida. Em conseqüência, estes questionamentos vieram sustentados por argumentos que evidenciaram a importância dos outros sentidos, elevando, desta forma, a linguagem. Há, todavia, um novo giro icônico; e este põe em pauta novamente a questão visual, apostando na presença dos objetos. Entre falar e ver, entre a imagem e a linguagem, o texto traz ainda uma abordagem sobre o trabalho artístico Caixa para meia paisagem da presente autora. * À primeira vista, o quadro de Magritte apresenta um cavalete em frente a uma janela. Olhando mais minuciosamente podemos perceber que se trata da apresentação da transparência na transparência. A parte frontal da tela exibida pelo cavalete não possui opacidade alguma, o que nos possibilita ver o que existe por trás, isto é, a vidraça. Sendo igualmente transparente, o vidro viabiliza a percepção da paisagem. É pelos indícios do tripé e da parte superior da estrutura que sustenta a tela ‘invisível’ e também pelas linhas laterais, principalmente a da direita que devido ao ângulo se apresenta mais larga, que III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 617

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René Magritte , A condição humana

Óleo sobre tela, 1933

NOTAS SOBRE AS JANELAS: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE MAGRITTE*

Claudia Zimmer de Cerqueira Cezar

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

Bolsista CAPES

Este artigo tem como ponto de partida a obra A condição humana (1933) de René

Magritte, que traz discussões sobre as janelas - dispositivos de passagens que se situam num

entre, mecanismos de enquadramento por excelência. Tal pintura desencadeia no texto um

debate acerca do modo como permanece ainda assentado entre as pessoas, de um modo geral,

um olhar crente na perspectiva, bem como este é problematizado pela arte e, neste âmbito,

perde força. Na segunda parte do texto, aborda-se o fato de como visão se desfaz de sua

supremacia enquanto sentido privilegiado ao longo da história e como esta superioridade foi

posta em dúvida. Em conseqüência, estes questionamentos vieram sustentados por

argumentos que evidenciaram a importância dos outros sentidos, elevando, desta forma, a

linguagem. Há, todavia, um novo giro icônico; e este põe em pauta novamente a questão

visual, apostando na presença dos objetos. Entre falar e ver, entre a imagem e a linguagem, o

texto traz ainda uma abordagem sobre o trabalho artístico Caixa para meia paisagem da

presente autora.

*

À primeira vista, o quadro de Magritte apresenta um

cavalete em frente a uma janela. Olhando mais

minuciosamente podemos perceber que se trata da

apresentação da transparência na transparência. A parte

frontal da tela exibida pelo cavalete não possui opacidade

alguma, o que nos possibilita ver o que existe por trás, isto

é, a vidraça. Sendo igualmente transparente, o vidro

viabiliza a percepção da paisagem. É pelos indícios do tripé

e da parte superior da estrutura que sustenta a tela

‘invisível’ e também pelas linhas laterais, principalmente a

da direita que devido ao ângulo se apresenta mais larga, que

III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR

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podemos entender que se trata de um quadro em frente a uma janela.

É comum encontrarmos na produção de Magritte discussões acerca da visibilidade e

da invisibilidade. Muitas vezes suas obras abordam estas questões por meio da opacidade de

objetos e coisas sobrepostas. Mas em A condição humana, estes objetos que se apresentam

como superfícies que ocultam, dão lugar “[...] à transparência que devolve a visibilidade ao

antes ocultado”1. Sendo facilmente notável esta observação na obra aqui descrita, o que

gostaria de propor é tomá-la como ponto de partida para discutir algumas noções, como estas

surgiram, se sedimentaram e perderam força nas Artes Visuais. São elas: o quadro percebido

como uma janela transparente que dá a ver uma cena e a transparência da janela – ambos por

terem natureza diáfana apresentam a paisagem. A paisagem, então, também carregada de certa

transparência. Em todos estes casos, o enquadramento é ponto em comum. Gostaria, contudo,

de esclarecer que meu interesse aqui não é o de dar continuidade a crenças arraigadas,

tampouco dizer que o advento da contemporaneidade extinguiu as implícitas certezas, mas

sim de perceber como questões tão distintas ainda convivem juntas.

Com a Arte Moderna as pontuações acima mencionadas começam a perder força, pois

esta se põe contra a toda uma tradição que vinha mantendo o mesmo esquema espacial do

século XV até o século XVIII; esquema este de cunho naturalista. Conforme Alberto

Tassinari2, ‘por não ter um esquema pré-estabelecido de formulação do espaço, a Arte

Moderna toma distância da concepção do quadro como uma janela aberta a uma cena do

mundo.’

O aparecimento da noção da pintura em perspectiva como sendo um vidro transparente

de uma janela e através do qual podemos ver certas cenas tem sua origem no Renascimento.

Segundo Luís Antônio Jorge, autor do livro O desenho da janela, não por coincidência, há no

mesmo período a tomada de consciência em arquitetura de que a janela seria o dispositivo que

viabilizaria ver de um ponto interior o espaço que se abre ao exterior de um edifício. O autor

sublinha ainda que se presume que esta não esteve presente desde a origem da arquitetura,

aparecendo “[...] como uma evolução no espaço arquitetônico”3. Muitos dos templos e

construções da Antiguidade apresentavam espaços em penumbra iluminados por pequenas

aberturas situadas na parte superior da edificação. Referenciando Charles de la Roncière,

observa que se têm notícias do uso de janelas envidraçadas em Bolonha por volta de 1331 e

em Gênova em 1368; vinte anos mais tarde elas também foram encontradas em Florença. A

partir do século XV, painéis de vidro fixos ou móveis aparecem em casas francesas,

difundindo-se por toda a região o gosto por vidraças munidas de venezianas.

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A janela, percebida em contiguidade com a parede, é um mecanismo que possibilita

ver o espaço fora. Devido a sua transparência ela é um dispositivo que permite ver através.

Desta forma, o uso do recurso perspectivo para a execução de um quadro que possui apenas

duas dimensões foi o que lhe possibilitou apresentar-se dotado de tridimensionalidade.

Mas voltemos à obra de Magritte, A condição humana, onde é possível ver que o

quadro sobreposto à janela faz alusão à transparência que lhe é implícita, uma vez que a

lógica da perspectiva concede a cada quadro a condição de desaparecer enquanto tal, ou seja,

enquanto matéria para dar a ver uma cena. Neste mesmo sentido encontra-se a janela, que por

sua própria natureza formal e material transparece uma cena devidamente enquadrada,

colocando o dentro e o fora em ininterrupta relação. Aberta ou fechada conduz o olhar e pode

dissimular o tempo. Ela se camufla, sumindo para ser o lá e o aqui ao mesmo tempo e também

nem um e nem outro. Neste aspecto, Michel Serre assinala que: “[...] fechada, ela desaparece,

torna-se parede; assim que é aberta, torna-se paisagem, novamente desaparecida [...]”4.

Resta, então, trazer à discussão a transparência e o enquadramento implícitos na

paisagem. Para esclarecer a questão, recorre-se a algumas pontuações de Anne Cauquelin em

A invenção da paisagem, onde a autora tece reflexões a respeito do fato de como foi se

infiltrando em nosso discurso a ideia de paisagem como sendo equivalente da natureza.

Entretanto, deixa claro logo nas primeiras páginas a sua necessidade de renunciar a esta

ilusão.

No subcapítulo Grande obra, pequenas formas, a autora observa em relação à

paisagem, que “a operação que garante o transporte de uma realidade para sua imagem é

justamente uma operação retórica [...]”5. O discurso garante e legitima a transação entre o

referente e a sua imagem; sendo no caso da paisagem a operação retórica baseada na

perspectiva. Isto foi gradativamente formando nosso modo de perceber a paisagem, pois a

perspectiva “[...] instaura uma ordem cultural na qual se instala imperativamente a

percepção”6. Portanto, já estando implícita, a perspectiva subsidia o discurso; mas, embora

não se tenha necessariamente consciência deste ajuste, pode-se perceber tal retórica quando

se enuncia esperar do mar, da serra, do campo, etc., uma ‘bela paisagem’.

É interessante notarmos que a concepção do espaço seguindo os ditames perspectivos

está ainda muito presente entre as pessoas de modo geral. Como exemplo, e indo ao encontro

das observações de Cauquelin descritas acima, lembro das experiências que tive em sala de

aula quando era professora de Arte no Ensino Fundamental, Ensino Médio e EJA, ao

identificar nos alunos a vontade de conseguir realizar uma imagem como ‘cópia fiel do visto

ou do imaginado’. Entretanto, por serem desprovidos do conhecimento técnico da perspectiva,

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esta vontade era seguida de uma frustração e, por conseguinte, da fala: “não sei desenhar”.

Esta atitude manifestava o tipo de imagem que povoava seus imaginários e que eles

consideravam ‘perfeita’. Assim, notei neles algumas crenças que invisivelmente lhes eram

implícitas.

Cauquelin salienta que paisagem durante muito tempo foi pensada como equivalente

da natureza. Tudo se passa como se não houvesse nada entre nós e a natureza, e é aqui que

podemos perceber sua transparência. “A paisagem seria transparente àquilo que apresenta”7.

Dentre as operações básicas indispensáveis ao advento da paisagem, segundo a autora,

encontra-se o enquadramento. É ele, pois, que vai possibilitar ‘subtrairmos ao olhar uma parte

da visão’. Aqui a autora dá o exemplo da fotografia que ao ser realizada exclui

necessariamente parte do que se apresenta à frente do fotógrafo. Entretanto, ao se deparar com

o mundo contemporâneo, onde há o dissolvimento de fronteiras, os territórios se misturam e

aumentam as esferas de atividades, a paisagem também passa a ser pensada a partir destes

novos aspectos. Nas práticas artísticas atuais, podem-se construir realidades que põem em

xeque nossas implícitas certezas. Intervenções na paisagem, desconstrução do ponto de fuga,

sobreposições de imagens, construção de paisagens digitais, informatizadas, abrem espaço à

construção de uma realidade que se distancia da ‘Natureza-Naturante’8 para se aproximar da

‘Natureza-Artifício’.

A paisagem com a imagem digital, não está mais contra natureza, isto é, em acordo contrastado com seu fundo, não se apoia mais na verdade natural que revela ao mesmo tempo em que a oculta, dada contra, em troca de, equivalente a... É uma pura construção, uma realidade inteira, sem divisão, sem dupla face, exatamente aquilo que ela é: um cálculo mental cujo resultado em imagem pode – mas isso não é obrigatório – assemelhar-se a uma das paisagens representadas existentes. 9

Ainda que as paisagens se situem num entre naturezas – Naturante e Artifício –,

conforme aponta Cauquelin, muitas trabalhos artísticos trazem presente o enquadramento.

Podemos percebê-lo nos monitores de TVs e computadores, nas projeções, pinturas, gravuras,

fotografias contemporâneas, etc. Neste sentido, poderíamos pensar nas palavras da

compositora Adriana Calcanhoto – “[...] eu vejo tudo enquadrado”– e questionar: seria esta a

condição humana a que Magritte se refere?

A partir do título dado a seu trabalho, Magritte traz à discussão a história que durante

séculos conferiu supremacia ao visível, pondo em questão a problemática da noção de

transparência da experiência visual. Segundo Martin Jay, Magritte tinha “[...] o propósito de

desafiar a fé depositada pelo espectador em seus próprios olhos.”10

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Esta fé a que Magritte se refere acaba recebendo respaldo também da fotografia

devido a sua capacidade mimética, conformada pelo enquadramento; embora esta última

tenha sido fator de peso ao declínio da pintura. É valido salientar, todavia, que assim como a

paisagem que deixa de ser vista como equivalente da natureza para apresentar uma realidade

inteira, a fotografia desfaz-se da ideia de cópia de um referente para ser uma apresentação

dada11.

*

No livro Ojos abatidos12, Martin Jay traça uma trajetória da crítica francesa ao

ocularcentrismo, sistematizando a superioridade dada à visão ao longo da história e como esta

foi posta em dúvida como sentido privilegiado. Em conseqüência, estes questionamentos

vieram sustentados por argumentos que evidenciam a importância dos outros sentidos. Há,

neste aspecto, uma elevação da linguagem, em que tanto Magritte quanto Duchamp souberam

habilmente travar jogos entre as palavras e as imagens que nos dão a ver; neste aspecto, os

títulos assumem grande importância.

A palavra título deriva de titulos quem vem do latim e significa “inscrição”, “marca”,

sendo, desta forma, um índice para acessarmos os trabalhos artísticos. Eles nos dão pistas,

funcionando como um caminho por via da linguagem. No caso de Magritte e Duchamp esta

indexação muitas vezes vem carregada de ironia e jogos de duplo sentido através das

metáforas por eles utilizadas.

Em Fresh widow, de 1920, Duchamp põe à mostra uma pequena janela, do tipo

francesa, e que tem suas faces fechadas. Fato este que não nos permite ver o que há do outro

lado. Ainda mais por apresentar seus oito vidros cobertos por um tipo de couro usado na

confecção de sapatos. Este trabalho de Duchamp deixa em suspenso a ação de olhar através

dos vidros. Por meio do objeto não é possível exercermos a descrição do que há no outro lado,

havendo, então, um total esvaziamento de duas das principais funções das janelas: dar a ver o

mundo ao exterior e iluminar o interior.

A partir do título Fresh widow (viúva fresca) esperamos encontrar uma mulher vestida

de preto. Mas também há proximidade da pronúncia com french window (janela francesa),

sendo este o modelo que o objeto apresenta. Em analogia, a janela do artista está fechada, e

isto é o que se espera daquela que acabou de perder o marido: estar fechada em sua dor. A

ideia é ainda mais realçada pela cor preta presente na janela.

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Marcel Duchamp Fresh widow Objeto 1920

Em relação a este trabalho de Duchamp, Jay

sublinha, do mesmo modo como observa em Magritte, a

problematização da questão da transparência da

experiência visual. No caso de Duchamp, o

questionamento se dá através da opacidade que

suspende a ação do olhar e, em função disso, põe em

xeque a dependência que temos da visão.

Embora a janela de Duchamp esteja fechada e

com os vidros vendados, os objetos estão sempre

associados à funcionalidade, que por sua vez

desencadeia de nossa parte a ação. Então, qual é a

função de Fresh widow? É a (des)função posta em cena

neste trabalho que nos leva a argumentar, subsidiados

por W. J. Y. Mitchell13, que as obras de artes visuais são contaminadas por outros sentidos

além da visão. Ao pôr à mostra um objeto, o artista traz junto a questão do tato desencadeada

por sua funcionalidade.

No texto No existen medios visuales, Mitchell discute a impertinência do termo “meio

visual”, uma vez que meios como a televisão, o cinema, a fotografia, a pintura, etc., envolvem

outros sentidos. Para ele, do ponto de vista da modalidade sensorial, todos os meios são

“meios mistos”. Trazendo para a discussão Aristóteles, que observou que o drama combina

três ordens – as palavras, a música e o espetáculo –, e Barthes, que mesmo no campo da

semiótica que aponta a divisão entre “imagem/música/texto”, o “[...] caráter misto dos meios

tem sido um postulado capital”14. Não há, portanto, segundo o autor, nem nos meios antigos e

nem nos modernos, a possibilidade de qualquer noção de pureza.

O autor observa que mesmo na pintura que tem um peso canônico na História da Arte,

podendo, assim, ser percebida como um possível meio puramente visual, a opticalidade pura

ainda assim não seria viável. Como exemplo desta impossibilidade traz à discussão o

Expressionismo abstrato, movimento sustentado pelas teorias de Clement Greenberg - teórico

este que primava por uma arte destituída de qualquer ligação com o exterior, onde ela só

referenciava a ela mesma.

Segundo Mitchell, a pureza do visual já era abolida ao ser sustentada pelo discurso dos

teóricos. “[...] Este discurso crítico foi tão decisivo para a compreensão da pintura moderna,

como a Bíblia, a história ou os clássicos eram para a pintura narrativa tradicional”15. E ainda

que a linguagem pudesse ser apartada completamente da pintura e o espectador não trouxesse

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a seu encontro nenhum juízo, associações e observações, a pintura traria consigo o fazer a

mão, isto é, o gesto do artista.

Em Devolver la mirada: La respuesta americana a la crítica francesa al

ocularcentrismo, Jay destaca o fato de que enquanto a França da década de quarenta do século

XX já discutia as teorias antiocularcêntricas há um tempo considerável, os Estados Unidos

ainda estava à busca da pureza do visual. Mas de acordo com Jay, o consenso greenberguiano

perde força entre os anos sessenta e setenta a partir de três motivos: ‘a introdução de novos

movimentos artísticos difíceis de encaixar nos esquemas modernistas, sobretudo a Pop Art, o

Minimalismo e o Conceitualismo; uma crescente politização do mundo da arte; e uma nova

abertura à teoria que vinha de fora, especialmente da França’16.

No período acima citado, chegam aos Estados Unidos as teorias estruturalistas com o

imperativo de conceituar a produção cultural em termos de linguagem e textualidade. Mas

ainda que tenha havido uma forte infiltração das questões linguísticas, o intuito de

aniquilamento total da visualidade não foi completamente possível, sendo a recepção mútua

visual e verbal ainda frequente. Neste sentido, emergiu uma nova valorização dos

experimentos com jogos verbais e visuais levados a cabo pelos surrealistas e pela figura de

Duchamp. A partir daí, as abordagens e investigações artísticas americanas entrariam num

caminho sem volta, estabelecendo-se de vez as teorias francesas antiocularcêntrica.

Jay observa que há hoje a presença de um novo “giro icônico” ou “giro visual”, e este

se nutre das ideias do discurso antiocularcêntrico desenvolvido na França. Sob esta

perspectiva, Keith Moxey pontua que “As obras de arte são objetos agora considerados de

uma maneira mais apropriada como encontrados mais que interpretados”17 e discorrendo

sobre a questão da presença dos objetos, observa que devemos tomar “[...] nota do que os

objetos “dizem” antes de tentar forçá-los em padrões de significados”18. Ao estudar o

pensamento de vários pesquisadores, tanto anglo-americano19 quanto alemães, que por vezes

coincidem e em outras divergem, sublinha que urge atender o status da imagem como uma

apresentação, uma vez que nossa tendência no passado era ignorar a presença em favor do

sentido. Em presença dos objetos devemos prestar atenção como estes captam nossa atenção e

dão forma a reações.

Este “giro icônico” que assinalei brevemente, pois meu intuito foi apenas trazê-lo à

discussão para apontar um retorno à questão do visual, vem, como observou Martin Jay,

consciente que ele não está sozinho. Há ainda abordagens voltadas aos significados das

imagens. Neste sentido, as conclusões de Moxey, se mostram aqui pertinentes:

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Este “giro” icônico nos lembra que os artefatos visuais se negam a ser confinados pelas interpretações que lhes situam no presente. Objetos de interesse visual persistirão em circular através da história exigindo métodos de análise radicalmente diferentes e obrigando-nos a gerar novas narrativas de suas passagens20.

Assim, após tecer algumas reflexões desencadeadas pela obra de Magritte, A condição

humana, que parece trazer à tona nossa natureza claudicante e que oscilante entre falar e ver,

entre a imagem e a linguagem e entre outros entres, proponho a seguir uma abordagem sobre

o trabalho artístico Caixa para meia paisagem, de minha autoria.

*

Caixa para meia paisagem

uma caixa branca uma caixa com tampa e meia paisagem para guardar meia paisagem

caixas acondicionam (res)guardam são receptáculos de lembranças (a)guardam o olhar

para espiar nela meia recordação semi meio quase paisagem ela dentro da caixa -janela

Caixa para meia paisagem21 é um objeto de cor branca, feito em madeira. Uma caixa

para acondicionar a paisagem, mas também uma caixa janela. Na parte superior há uma tampa

que ocupa metade de sua extensão, elaborada em acrílico branco leitoso que é um material

completamente opaco. No interior, comporta a fotografia de uma paisagem que devido ao

Claudia Zimmer Caixa para meia paisagem Objeto 5 X 22 X30 2008

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deslizamento da tampa podemos ver parcialmente. Ora enxergamos um lado, ora o outro, e

nunca sua totalidade.

Um dado importante deste trabalho é o fato de que o título surgiu antes de qualquer

intuito de realização. É a partir do nome concebido previamente que foi pensada sua

execução. Um nome instigado pela ideia de investigar algo que dá a ver exatamente a metade

de um todo. Hélio Fervenza escrevendo a respeito deste objeto observou: “A partir da

experiência, percorrer uma meia paisagem, deslizar e alternar uma película translúcida e

esbranquiçada, uma sombra em negativo” 22. Complemento sua ressalva salientando que de

um lado posso ver algumas características da paisagem, mas só depois posso ver outras.

Sendo que nas minhas caixas só é possível acessar visualmente um lado de cada vez,

cabe perguntar: Qual a relação entre o lá e o aqui? Qual a relação que a esquerda tem com a

direita e/ou vice-versa? Os dois lados têm relação entre si? É possível uma paisagem ser

dividida ao meio? Se sim, cada parte da divisão seria, então, ‘meia paisagem’?

O fato de só podermos ver um lado de cada vez traz à tona noções como: unido e

separado, longe e perto, dentro e fora, contínuo e descontínuo, avizinhar. Estes parâmetros são

noções topológicas usadas para descrever as relações espaciais entre uma coisa e outra, ou

seja, entre um ponto e outro. Excluindo a medida em geral a topologia vai lidar com as

relações. Embora seja um ramo da matemática, abandona as medidas para descrever as

posições; para tanto, no lugar do cálculo, exprime-se pelos advérbios e preposições. Na Caixa

para meia paisagem os atributos acima mencionados são convocados tanto na descrição de

parte da paisagem que se vê no interior do objeto quanto de um lado em relação ao outro ao

movimentarmos a tampa.

O texto de Michel Serres, Ser fora daí, presente no livro Atlas, dá-nos algumas noções

de topologia a partir de O Horla, conto de Guy de Maupassant23. De modo resumido,

podemos dizer que a história de Maupassant conta o encontro do narrador com seu duplo –

com uma outra parte de si desconhecida e cuja personalidade é completamente diferente da

sua. Este reconhecimento causa ao protagonista um conflito excessivo consigo mesmo,

fazendo com que realize sucessivas viagens como forma de fuga aos pavores vividos em sua

casa, no intuito de se livrar deste duplo que o acompanha.

Serres também relata que o narrador tem sua residência às margens do Sena e que por

um determinado momento permanece deitado sobre a relva em frente ao rio observando várias

situações que acontecem naquele espaço. Os fatos se referem à questão do habitat e das

deslocações, uma vez que nesta sua parada percebe as idas e vindas de alguns barcos. O que

está em pauta, então, é a relação do próximo e do longínquo.

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Hors indica o exterior e o retirado, enquanto là designa o lugar próximo: o Horla descreve, então, uma tensão entre o adjacente, o confinante, o contíguo e o afastado, atingido ou inacessível, a partir dessa proximidade. Uma contradição opõe esse hors e este là ou, pelo contrário, haverá um movimento ou um vínculo que os associa?24

Enfim, a denominação O Horla surge para designar dois espaços que caminham

unidos e separados, longínquos, mas próximos, dentro, porém fora, aqui e lá. Assim, tal

concepção que é a um só tempo lá e aqui, nem lá e nem aqui, é identificável na Caixa para

meia paisagem, uma vez que solicitamos constantemente algumas noções e ações que

aproximam e afastam a totalidade da paisagem.

Dentre as várias discussões possíveis que o trabalho abre, há uma que se refere à

questão do enquadramento presente na noção de paisagem. Noção esta, diga-se de passagem,

que reporta à ideia primeira de paisagem como sendo o enquadramento perceptual de um

espaço. É importante observar que com práticas artísticas como a Land Art a paisagem

adquire certa flexibilidade em relação as suas definições iniciais que se referia apenas a noção

de enquadramento. Tem-se, na verdade, desde as caminhadas propostas pelos dadaístas no

início do século XX a paisagem percebida pelos agenciamentos dos corpos.

Mas se retomarmos a noção de enquadramento, a Caixa para meia paisagem propõe a

cada deslocamento da tampa um novo ajuste e, portanto, uma nova paisagem. Não seria,

então, mais adequado intitular este trabalho de Caixa para muitas paisagens? No entanto, o

fato de poder deslizar a parte superior da caixa possibilita que ganhemos uma parte da

imagem ao mesmo tempo em que perdemos outra. Esta ação nos dá a ideia de incompletude e,

por conseguinte, de termos sempre diante de nós meia paisagem.

Janela de um único vidro, ou melhor, de um único acrílico, Caixa para meia paisagem

o tem como detentor e/ou desvelador do lá e do aqui. Tudo que se dá neste objeto tem relação

com as bordas do ‘vidro’. Estas extremidades são pontos intermediários entre o visível e o

invisível. Neste jogo semi-visível, estamos diante de um objeto que tem o interior

parcialmente velado, ‘meio’ ocultado tal como as Moscas volantes25 (série fotográfica de

minha autoria), mas que aqui alçam vôo para deslizar à superfície.

Como todo objeto, o presente trabalho deve ter uma funcionalidade, que por sua vez

desencadeia de nossa parte a ação. Neste sentido, Milton Santos, ainda que se reportando à

geografia, realça que ação e objetos são inseparáveis e que entre os dois há a intencionalidade.

O autor salienta que existe o sistema de objetos e o sistema de ações e a relação estabelecida

entre eles gera o espaço, o qual, por sua vez, se transforma constantemente. Os objetos são

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elementos fabricados pelo homem e que, segundo A. Moles, citado por Santos, ele “[...] deve

assumir e manipular”26. Santos observa também que, conforme Moles, os objetos apresentam

complexidade funcional e estrutural. A complexidade funcional tem relação com as

combinações das funções que o objeto pode exercer no seu uso: “[...] o que podemos fazer

com um objeto, o que ele pode nos oferecer, como podemos usá-lo”27. Quanto à

complexidade estrutural, trata-se da sua informação: o que ele comunica, o que ele realiza,

quais suas respostas às ações humanas.

Em relação ao sistema de ações, o autor sublinha que este é um processo dotado de

intenção e que a corporeidade é um de seus agentes. A ação modifica a situação. Não à toa

pontuei que na Caixa para meia paisagem a cada deslizamento da tampa modifica-se o visto,

surgindo uma nova paisagem. “Um ato não é um comportamento qualquer, mas um

comportamento orientado no sentido de atingir fins ou objetivos”28.

Há na Caixa para meia paisagem um ocultamento paulatino conseguido pela ação de

deslocar sua tampa. O ocultamento nas obras de arte sempre desencadeia no espectador a

curiosidade de saber como se configura o ocultado, mas também lhe causa certa angústia.

Hélio Fervenza, no texto que escreveu para a exposição estado-cegueira \ estado-escuta, já

citado anteriormente, faz o seguinte questionamento acerca deste trabalho: “O que acontece

quando não consigo ver completamente aquilo que em princípio seria possível de ver? Que

tipo de olhar surgiria?”29 Estas perguntas fazem-nos pensar sobre a necessidade que temos de

completar o olhar diante de algo que obstrui o que antes podia ser visto. Desta forma, quanto

mais uma obra se apresenta contravisual, mais visual ela se torna. E é neste mostrar-se

escondendo que o objeto aqui analisado e que foi idealizado e feito a partir da linguagem, isto

é, de seu título, impõe sua presença.

*

Referência bibliográfica CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.l CEZAR, Claudia Zimmer de Cerqueira. Meia paisagem e meia: algumas considerações sobre o semi-visível. (Dissertação de mestrado) - Porto Alegre: UFRGS, 2009. COSGROVE, Denis. A geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Orgs). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004, p.92-123.

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* O presente texto é parte integrante da dissertação de mestrado Meia paisagem e meia: algumas considerações sobre o semi-visível, defendida em 2009 e retomado na disciplina Estudos Visuais, ministrada pela professora Dra. Daniela Kern, no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – UFRGS, 2010/2. 1 IERARDO, Esteban. La continua visibilidad de lo invisible: Magritte, Foucault, Hegel y la pintura del pensamiento. (online) Disponível em: <http://www.temakel.com/galeriamagritttefhegel.htm#LA CONTINUA VISIBILIDAD DE LO VISIBLE> Acesso em: jan. 2009. 2 TASSINARI, 2001. 3 JORGE, 1995, p.24. 4 SERRES, 1998, p.31. 5 CAUQUELIN, 2007, p.113. 6 CAUQUELIN, 2007, p.114. 7 CAUQUELIN, 2007, p.121. 8 Anne Cauquelin emprega o termo ‘Natureza-Naturante’ para designar a paisagem vista como equivalente da natureza. 9 CAUQUELIN, 2007, p.180. 10 JAY, 2007, p.187. 11 Sobre a fotografia realizada pelos artistas na arte contemporânea, ver ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: SENAC, 2009. 12 Livro primeiramente lançado em língua inglesa em 1993. 13 MITCHELL, 2005. 14 MITCHELL, 2005, p.17. 15 MITCHELL, 2005, p.17. 16 JAY, 2003, p. 66. 17 MOXEY, 2009, p.8. 18 MOXEY, 2009, p.8. 19 Moxey salienta que o pensamento anglo-americano tendeu a estar dominados por um paradigma interpretativo ao conceber a imagem como representação. Lembremos aqui da forte entrada das terias estruturalistas nos Estados Unidos na década de sessenta, conforme observou Martin Jay. 20 MOXEY, 2009, p.23. 21 O pequeno texto acima foi escrito a partir de observações sobre este trabalho. Propus-me antes de realizar qualquer reflexão deixar vir à superfície o que o objeto em si me sugeria. 22 FERVENZA, 2008. Texto para o folder da exposição estado-cegueira \ estado-escuta realizada no Museu de Arte Contemporânea do Paraná em 2008. 23 Escritor e poeta francês do século XIX, realizou cerca de 300 contos, sendo considerado um dos grandes expoentes da literatura fantástica. 24 SERRES, 1998, p.65. 25 As séries Mosca volante I e Mosca volante II são fotografias da beira-mar de São José/SC que possuem algumas manchas pretas que as obstruem parcialmente. Neste trabalho o ocultamento acontece pela sobreposição de nódoas escuras às paisagens. 26 SANTOS, 2002, p.66. 27 SANTOS, 2002, p.69. 28 SANTOS, 2002, p.78. 29 FERVENZA, 2008. Texto para o folder da exposição estado-cegueira \ estado-escuta realizada no Museu de Arte Contemporânea do Paraná em 2008.

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