janelas e cidade noturna

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  • 7/22/2019 Janelas e Cidade Noturna

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASFACULDADE DE EDUCAO

    DISSERTAO DE MESTRADO

    A CIDADE E SUAS JANELAS ESPAO E TEMPO NA

    NOITE URBANA

    Autor: Rodrigo Martins Bryan

    Orientador: Prof. Dr. Wenceslao Machado de Oliveira Junior

    Campinas2005

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    i

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASFACULDADE DE EDUCAO

    DISSERTAO DE MESTRADO

    A CIDADE E SUAS JANELAS ESPAO E TEMPO NA NOITE URBANA

    Autor: Rodrigo Martins BryanOrientador: Prof. Dr. Wenceslao Machado de Oliveira Junior

    Campinas2005

    Este exemplar corresponde redao final da

    Dissertao defendida por Rodrigo Martins Bryan e

    aprovada pela Comisso Julgadora.

    Data:

    Assinatura:_______________________________________

    Prof. Dr. Wenceslao Machado de Oliveira Junior

    Comisso Julgadora

    ___________________________________________Prof. Dr. Carlos Eduardo Albuquerque Miranda

    ___________________________________________Prof. Dr. Wilson Roberto Mariana

    __________________________________________Suplente Prof. Dr. Milton Jos de Almeida

    __________________________________________

    Suplente Prof Dr Maria Helena B. e Vaz da Costa

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    Dedico a todos os que me

    acompanham pelas janelas

    iluminadas da cidade noturna.

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    v

    Agradeo imensamente aos que estiveram

    presentes, iluminando meus caminhos.

    Meus pais e minha irm pelo apoioincondicional de uma vida inteira.

    A Gabriela Coppola, pelo amor e pela

    cumplicidade nas descobertas e aos amigos,

    pelas tantas noites de inspirao.

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    A cidade os sistemas de comunicao e transporte impe ganhar

    tempo. Andar depressa esquecer rpido, reter apenas a informao til

    no momento. Seria a anamnese o antpoda da pressa, da velocidade? Em

    vez de acelerar dada vez mais, diferenciar: conservar vrias temporalidades

    no mesmo tempo, simultaneidade de passado e presente, presente e

    futuro. Introduzir um intervalo uma diferena no ritmo das coisas,

    provocando uma sobreposio de andamentos. Retardar o fluxo, criando

    um espao vazio no qual outra coisa pode se instalar. Um mundo da

    lentido, que se d tempo. Devagar: sem destinao precisa, desacelerado.

    o que permite que o passado, o tempo perdido, seja presente, como uma

    aluso, como uma brisa que sopra suavemente.

    Nelson Brissac Peixoto

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    RESUMO

    Estudar a imagem noturna da cidade atravs de janelas, recortes e

    enquadramentos que transformam a paisagem partida, estabelecendo um novo

    entendimento do espao e do tempo no fluxo urbano das luzes, percorrendo com o

    olhar os elementos visveis e onde o invisvel suposto pela memria e pela

    imaginao. A imagem fotogrfica em especial as do fotgrafo Cssio

    Vasconcellos o suporte pelo qual passeio e estudo a permanncia dos espaos

    no urbano, revelando seus intervalos nos quais a(s) cidade(s) acontece(m),

    sobrepostas na memria do espectador.

    PALAVRAS-CHAVE:

    Cidade; noite; janelas; fotografia; memria.

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    ABSTRACT

    To study the night image of the city through windows, cuttings and

    framings that transform the broken landscape, establishing a new

    understanding of the space and of the time in the urban flow of the lights,

    traveling with the glance the visible elements and where the invisible is

    supposed by the memory and for the imagination. The photographic image

    - especially the one of photographer Cssio Vasconcellos - it is the support

    through which I walk and study the permanence of the spaces in theurban, revealing their intervals us whom the city happens, put upon in the

    spectator's memory.

    KEYWORDS:

    City; night; windows; picture; memory.

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    SUMRIO

    Introduo............................................................................... 01

    Ensaio...................................................................................... 05

    01 - Cidade Janela

    Uma Janela Aberta para o Espao Urbano .................................. 07

    Cidade Almada.............................................................................. 17

    Luz na Janela................................................................................ 23

    02 - A Janela Impressa

    Cidade, Desejo, Fotografia............................................................ 31

    03 - Janelas Estrangeiras

    Luz e Sombra na Cidade............................................................... 44

    Cidade e Cor.................................................................................. 55

    Cidade Noturnos. So Paulo......................................................... 62

    Cidade Vermelha, Janela Marginal............................................... 67

    Sombras da Solido....................................................................... 80

    Bibliografia

    Referncias e inspiraes.............................................................. 82

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    ndice de Imagens

    Brodway at Night.....................................................................30 e 55

    Alvin Langdon Coburn

    Open Gutter.....................................................................................49

    Gyula Halasz BrassaiNotre Dame from Ir Saint-Louis.......................................................51

    Gyula Halasz Brassai

    Le Pont Neuf....................................................................................52

    Gyula Halasz Brassai

    From th Back Window.....................................................................54

    Alfred Stieglitz

    Praa Princesa Isabel # 2................................................................63

    Cssio Vasconcellos

    Rua Mau # 3..................................................................................64

    Cssio Vasconcellos

    Marginal do Pinheiros #25..............................................................66

    Cssio Vasconcellos

    Church Tower at Domburg..............................................................69Piet Mondrian

    The Red Tree...................................................................................69

    Piet Mondrian

    The Red Mill....................................................................................69

    Piet Mondrian

    Marginal do Pinheiros #15..............................................................70

    Cssio Vasconcellos

    Marginal do Pinheiros #23..............................................................71

    Cssio Vasconcellos

    Marginal do Pinheiros #2 ............................................................. 72

    Cssio Vasconcellos

    Marginal do Pinheiros #1...............................................................73

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    xvi

    Cssio Vasconcellos

    Marginal do Pinheiros #19.............................................................75

    Cssio Vasconcellos

    Marginal do Pinheiros #12.............................................................76

    Cssio Vasconcellos

    Marginal do Pinheiros # 9..............................................................77

    Cssio Vasconcellos

    Marginal do Pinheiros #7...............................................................79

    Cssio Vasconcellos

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    xvii

    A CIDADE DO TEMPOEM PRESENTE

    PASSADO A LIMPO

    SOBRE A QUAL

    A LUZ REVELADA

    QUE POR TO CLARA

    OFUSCA

    DESMONTA

    ESPAO EM CORES

    RESPIRA O VERSOE TRANSPIRA

    SE TRANPORTA E V

    AINDA QUE NO CONHEA

    MAS TROPEA

    NO PRPRIO ESPAO

    REMONTA E DEFORMA O PULSO

    EM ELEMENTO

    DECOMPOSTO

    COMO SE A ARTE

    RETOMASSE O TEMPOE TODO O INSTANTE

    DESCONTNUO

    TORNA-SE O MESMO PERCURSO

    ECOANDO SEMPRE ESPAO

    NA PERCEPO DO GESTO

    DE TODA A AUSNCIA

    QUE REFLETE

    A IMAGEM E A CIDADE

    Rodrigo M. Bryan

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    Introduo

    Pratico a busca incessante pela imagem das grandes cidades em sua existncia

    noturna, iluminadas pelo brilho das lmpadas. Cidade descoberta dentro de mim, ser

    urbano. Andarilho apaixonado pela solido entorpecente da madrugada nas metrpoles.

    Percorrendo os brilhos intensos que invadem as ruas ausentes de qualquer presena, que

    no a dos meus olhos atentos. Na noite urbana encontrei as janelas abertas, fechadas como

    em Baudelaire, escuras ou luminosas. Distantes ou prximas como descritas por Poe.

    Algumas dentro de mim, iluminando as passagens por onde ardem memrias das tantascidades pelas quais caminhei. Derramei sobre a paisagem minhas intenes mais delirantes

    de transformar as sombras no refgio da minha prpria existncia. Brincando com as

    palavras de Benjamin, quando diz:Baudelaire amava a solido, mas a queria na multido1,

    posso dizer que fao o percurso inverso: amo a multido, mas a desejo na solido da cidade

    durante a noite. Um observador annimo, procurando os vestgios da vida, esparramados

    pelas caladas escuras.

    Espreitando as janelas, os enquadramentos, deixei-me invadir pela percepo

    instantnea da fotografia, que transforma tudo em sombra, luz e cor. A paisagem imvel

    passeia pelos olhos e faz, do espao, mltiplo de si mesmo. No existe movimento, ou

    talvez, acontea apenas dentro de quem v a imagem, atravs de uma ao interpretante da

    memria e da imaginao, que transporta os olhos para outras paisagens,prossegue pelas

    caladas e ruas para alm das bordas da foto.

    Se a fotografia j dispe o espao atravs do enquadramento, estabelece algum tipo

    de recorte na realidade, a iluminao urbana tem uma ao semelhante. A partir dela, a

    cidade no totalmente visvel. Os lugares escuros no existem na paisagem, pois no

    podem ser vistos, porm podem ser percebidos.

    O que me excita no poder ver, tudo o que imagino (supondo) estar ali na imagem.

    Quando falo de fantasia, de encantamento, proponho pensar a cidade exatamente onde no

    1BENJAMIN, 1989. p.46

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    a vejo. Ento ela se torna minha individualmente. Mas inundada pela minha existncia

    enquanto ser poltico, coletivamente inserido no espao, que pblico e ao mesmo tempo

    inventado por mim e para mim.

    No primeiro captulo, circulo em torno da cidade, da sua alma e do enquadramento

    em seus percursos. A cidade, com seus fluxos acelerados e a velocidade imposta pela pressa

    dos veculos, torna-se distante fisicamente do indivduo. A experimentao sensorial do

    espao est ento muito mais relacionada com a imagem que chega ao sujeito que com a

    sua relao direta com o espao, ou no corpo a corpo com a multido. Essa

    descontinuidade, que est imposta visitao da paisagem pelos olhos, superada, no

    entanto, pela aproximao da cidade-imagem, da cidade vivenciada e da cidade idealizada.

    Assim, o indivduo que procura conhecer a cidade, o faz atravs de fragmentos da matria

    na memria e da imaginao, dando a essa cidade o aspecto da semelhana consigo mesmo,como ser coletivo, poltico, pblico. como se dissesse que a cidade exposta e no uma

    cidade especfica, mas qualquer uma no existe, apenas o espectro distante de uma

    recordao pessoal e cada um tem muitas cidades diferentes dentro de si, que s se tornam

    inteiras se sobrepostas umas s outras.

    A maneira como somos invadidos pela descontinuidade da sua presena, nos faz

    enxerg-la a partir dos pedaos expostos e a tornamos mais prxima, imaginando, juntando

    e colando as distncias atravs de uma srie de significaes que de um ou outro modo so

    interpretadas e conceituadas pelas memrias perdidas no inconsciente.

    A cidade ganha uma alma. Ou muitas. A cidade o reflexo da vida nela desdobrada.

    Reflete a distncia que o olhar assume sobre suas coisas, dando a elas a capacidade de

    revidar, encarar o sujeito nos olhos.

    Perambular pela cidade fotografada o exerccio de uma flnerie inventada, que

    percebe apenas a multido, dentro de si mesmo, aglomerada na memria, inventando novas

    fisionomias para os lugares. Oflneurna cidade perdeu o seu espao para a velocidade e o

    consumo de massa. Talvez seja possvel o seu retorno atravs da fotografia. Do esttico.

    Estilhaando o momento, perpetuando a paisagem em superfcie.

    As janelas espalhadas pelas faces dos edifcios so uma espcie de passagem que

    permite a intimidade ser contaminada pelo espao pblico e vice versa. Podem ser vistas de

    dentro para fora e de fora para dentro, seja da cidade explcita ou da prpria alma. E atravs

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    do Homem da Multido2, encontro os caminhos que me carregam para dentro da imagem,

    que me lanam para dentro do espao. No conto de Poe, se o que o narrador v de incio

    uma imagem fugaz da multido estampada na vidraa, em seguida avana para dentro dela

    em busca do incgnito, do flneurj desgastado, um enigma no decifrvel na fisionomia

    que sintetiza a existncia urbana. O criminoso faz das ruas da metrpole seu refgio entre

    as sombras.

    No segundo captulo deste estudo, a janela a imagem da cidade. A aura em torno

    da percepo do objeto traduzida em imagem, conceito, pela capacidade do indivduo de

    recuperar sua histria atravs de suas impresses na memria. A fotografia memria, mas

    tambm objeto, poesia e tcnica, a reprodutibilidade da lembrana interminvel. O

    conceito de mmoire involontaire e mmoire volontaire, descritos por Benjamin,

    apresentam a fotografia relacionada a um tipo de memria disponvel. Acessada pelosujeito voluntariamente, ela torna possvel reproduzir a aparncia das coisas, mas no sua

    aura. A natureza que fala cmera no a mesma que fala ao olhar, outra,

    especialmente porque substitui a um espao trabalhado pelo homem, um espao que ele

    percebe inconscientemente3. Contudo atravs deste inconsciente, que a imagem

    fotogrfica possvel de ser relacionada ao mundo, pois construda sobre a histria. E na

    histria existe alguma relao entre a fotografia e a pintura. Embora esta ltima a princpio

    tenha sido sacudida pela inveno da cmera, posteriormente possvel enxergar

    contribuies para novas perspectivas do movimento pictrico e da percepo da arte.

    Contudo, ambas, mesmo entre todas as suas diferenas, tm como finalidade a apresentao

    do mundo a partir da interpretao de um artista. A fotografia apresenta o instantneo, o

    tempo no controlado, uma impresso sujeita ao acaso. A pintura est mais prxima da aura

    das coisas, pois est toda ela subordinada criao. Tambm s podem ser percebidas

    visualmente atravs da luz refletida, fixada.

    Enfim as janelas espalhadas pela cidade acendem suas vidraas, propagando a

    luminosidade fantasmagrica e incandescente pelo espao escuro. No terceiro captulo, as

    imagens invadem a significao da noite urbana. Apresento as fotografias que me guiaram

    pelas cidades que pertencem ao mundo dos sonhos. Minhas primeiras pesquisas

    2POE, E. A.3BENJAMIN, 1994. p. 33)

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    percorreram imagens em preto e branco, pois buscava nelas, o contraste da sombra e da luz,

    o claro-escuro. No segui nenhuma ordem de escolha a partir da cronologia, elas apenas

    aconteceram em mim. Na noite da Paris dos anos 30 fotografada por Brassai ou em alguma

    cidade americana, na cidade das diferenas de Stieglitz, ou ainda em um passeio noturno

    pela Brodway de Coburn, explodindo em brilhos na umidade da noite. Cidades distantes de

    mim, vistas atravs do acmulo dos tempos entre o passado e o presente.

    Outra cidade nasceu dos brilhos noturnos. A luz transcendeu a existncia plida,

    transformando o espao em cor, concedendo a ele mais profundidade e mais contraste. So

    Paulo das janelas flutuantes, das faces invisveis dos edifcios, do espelho que submete a

    cidade em mltiplos de si mesma. Mas principalmente a cor. A colorao que invade os

    espaos na fotografia de Cssio Vasconcellos4 mgica. Em seu livro: Noturnos So

    Paulo5, a leitura da cidade ganha dimenses espetaculares, gigantescas, quando o fotgrafoexpressa sua percepo dos lugares atravs de um colorido intenso. Revela o espao e

    aproxima a fotografia de uma pintura. A relao das cores torna-se expresso e movimento

    como nas telas de Mondrian. A flnerie de Vasconcellos contaminada pelos vestgios do

    crime iminente, pela investigao imaginativa sobre a solido noturna da cidade. A

    Marginal do Pinheiros6 um caminho vermelho e oculto, pelo qual eu persegui as lentes do

    fotgrafo, descortinando a sombra em luz. O rio um espelho imenso que absorve a

    paisagem, transformando sua existncia material em brilho.

    Entre as janelas, as imagens estudadas sugerem distncia e fantasia. A fotografia

    urbana em seu traje noturno apresenta-me a cidade noite, vista atravs de seus

    enquadramentos, em forma de brilhos e sombras e cores, explorando mistrios, passagens e

    outras paisagens na memria das coisas, vistas pelos olhos e percebidas atravs do sonho e

    da imaginao. Fazendo as imagens to presentes em mim quanto a solido que se arrasta

    pelas ruas annimas, entregues aos delrios da luz.

    4 Cssio Vasconcellos fotgrafo O artista nasceu em So Paulo, Brasil, em 29 de setembro de 1965.Iniciou sua trajetria na fotografia em 1981, na escola imagem-Ao. Durante sua carreira, seu trabalho

    pessoal, sempre voltado a projetos artsticos, percorreu muitas galerias e museus, no Brasil e pelo mundo.Freqentemente convidado a desenvolver novos projetos como o Arte/Cidade, em 1994 e 2002. Disponvelem: www.cassiovasconcellos.com.br - Curriculum. Acesso em 23/10/20045 VASCONCELLOS, Cssio. NoturnosSo Paulo- So Paulo: Bookmark, 20026Marginal do Pinheiros uma srie de fotografias produzidas pelo fotgrafo, presentes no livro NoturnosSo Paulo e que sero apresentadas neste estudo sobre a cidade.

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    ENSAIO

    Cidade S

    Todo o estado de alma uma paisagem. Isto , todo oestado de alma no s representvel por uma paisagem,mas verdadeiramente uma paisagem. H em ns um espaointerior onde a matria da nossa vida fsica se agita. Assimuma tristeza um lago morto dentro de ns, uma alegria, umdia de sol no nosso esprito. E - mesmo que se no queiraadmitir que todo o estado de alma uma paisagem - podeao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode

    representar por uma paisagem. Se eu disser "H sol nosmeus pensamentos, ningum compreender que os meuspensamentos so tristes.

    (Fernando Pessoa)7

    A cidade que me acontece a cidade s. A cidade das luzes transforma-se, perde-se

    na escurido e no silncio que escorre pelas pedras nas caladas. uma cidade de sonho,

    que anuncia o brio e o torpor das sombras que escapam por suas dobras e buracos.

    Caminhando por ruas quase escuras, encontro na noite a cidade que nunca me pertenceu,

    abandonada s vicissitudes da escurido que me invade com imensa voracidade e seduo.

    De noite a cidade poesia. A declamar em versos a histria dos seus lugares.

    Fascinao de luzes embriagadas e libertas.

    A cidade que escapa do olhar, modifica, espalha, abandonada aos excessos, fluindo

    levianamente descontrolada. Encantado pela magia da sua imagem, me refugio nas

    distncias do fantstico. Reconstruo o tempo, sobrepondo real e realidade, reorganizando

    seus ambientes, na tentativa de torn-la mais semelhante a mim mesmo, ou talvez maisprxima da minha cobia. Carrego dentro de mim a minha prpria cidade. De sonho, cidade

    ideal, irreal e opaca, definitivamente minha. No me recolho solido inconstante das suas

    7PESSOA, Fernando. O cancioneiro. Nota preliminar n 2. Disponvel em:http://www.insite.com.br/art/pessoa/cancioneiro/nota.html, Acesso em: 13/08/04

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    esquinas, atravesso as ruas que me atravessam em sonho. E do outro lado reencontro a

    cidade perdida na calada escura. Ainda assim me escapa, gotejando em fios de luz, que

    esticam nas sarjetas e se atiram nos bueiros.

    De noite a cidade festejada. Celebrao da loucura. Da insanidade que esculpe no

    escuro o sbito imprevisto.

    Alucinao e mistrio. O segredo revelado em fraes do tempo, escondido,

    refletido nos intervalos de luz, que vazam pelas frestas nas janelas. Cintilam no topo dos

    postes enfileirados, indicativos, organizados em seus caminhos cruzados, disputando

    (fornecendo) as sombras derramadas, criminosas e ocultas.

    Lgubre encanto que atormenta a taciturna urbe. Feroz em seus devaneios slidos

    recobre toda a face em sombra, esboando os contornos gastos. O tempo parado. S as

    janelas, testemunhas mudas da devassido noturna que instiga e estimula as letras srdidasnas frases descompostas. Pegajosas e embaadas, reverberando falsas rimas pelos becos.

    De noite a cidade fantasia. Eu vejo na cidade, outras tantas cidades. Fantasiadas de

    imagens e abstrao.

    Fantstico mesmo viver a cidade, seja l de que forma ela se revele. Posso ver

    com os olhos ou posso ver com as mos. Tatear as texturas que impregnam os objetos,

    mesmo com olhos fechados, e compreender as marcas h muito cicatrizadas e cutucar as

    feridas abertas na matria refeita. Posso cheirar a cidade, posso comer seus tijolos e lamber

    o asfalto das ruas, misturar na saliva a poeira que acompanha o vento, engolir, degustar,

    sorver seus fragmentos de espao.

    De noite a cidade se alimenta das minhas iluses. Toma formas desconexas, se

    transforma em luz. Eu busco a cidade escura. Contemplo atravs das janelas, mesmo no

    estando abertas. Invento os reflexos que elas me devolvem, transparecendo os brilhos

    turvos da luminescncia. Silenciosa, minha cidade solido. Minha ausncia a cidade que

    me envolve, me reflete, que me absorve a alma em favor da sua permanncia. E permanece.

    De noite a cidade me demora.

    De noite a cidade se derrama em mim.

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    01 - CIDADE JANELA

    Uma Janela Aberta para o Espao Urbano

    Num mundo imaginante, onde no s os homens imaginamas coisas, mas tambm as coisas imaginam os homens e asprprias coisas, o real seria to extenso quanto o infinito eseria composto de imagens, no de concretudes.

    (OLIVEIRA JR., p.76)

    Acelerada pela velocidade do movimento, a imagem da metrpole se parte em

    pedaos de tempos (in)distintos. Fluxos descontnuos de uma cidade configurada por

    tempos e espaos, conectados ento pela percepo imaginao do observador e a sua

    prpria experimentao no contexto urbano. Percorrendo as passagens que encontra entre

    os muros, como janelas abertas, capazes de lev-lo a viajar por caminhos prprios e se

    deixar percorrer pela descoberta de uma cidade nova a cada olhar. Cidade inventada,desejada. Idealizada. Invisvel, contudo presente.

    Ofuscada e desfeita, a cidade se divide em ilhas de nostalgia e inteno, rodeadas

    pelo ritmo frentico dos seus percursos. A cidade presente um corredor de passagem,

    cercada por paredes esburacadas, que se dobram umas sobre as outras e atravs das quais se

    enxergam durante o ininterrupto estado de deslocamento do corpo outras possibilidades

    de durao do espao nos olhos. Velozes e convenientes, os veculos de transporte que

    circulam pela vias urbanas, alteram o tempo de ver e de ler a cidade, mantendo o

    observador em uma condio passiva de letargia diante do enquadramento de suas janelas,

    e ainda, de certa forma isolado ou protegido do contato direto do corpo, seja com o espao

    ou mesmo com outros corpos. A experimentao sensorial no est mais, neste caso,

    concentrada na relao direta com o espao e sim na possibilidade de distanciamento deste.

    Distncia e velocidade que admitem, portanto, criar imaginar e fantasiar a relao entre a

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    matria viva e a concreta. Reorganizar o espao, recriando os lugares de passagem a partir

    dos fragmentos da sua imagem, seja ela existente, impressa, projetada ou ento imaginada,

    fantasiada e rememorada. O relacionamento do corpo com a cidade, est constitudo hoje,

    muito mais atravs das imagens que sua memria sugere, do que propriamente de espaos

    ou do contato, j que este corpo circula e est invariavelmente de passagem, estabelecendo

    a troca somente atravs de sensaes e, principalmente atravs da viso. Embora esta viso

    seja formada muito menos atravs do ato mecnico e muito mais atravs de uma

    interpretao, de certo modo subjetiva, das formas e das coisas que a velocidade arranca

    dos olhos.

    No conseguimos ver os detalhes das coisas que as tornamsingulares, nicas, almadas. Passamos com pressa, pegamos com

    pressa, olhamos com pressa. No mais sorvemos o mundo, oengolimos num lapso mnimo de tempo. As coisas entram e saem,vm e passam por ns como objetos de um mudo exterior quepouco ou nada intervm em nossas vidas. O importante para nssomos ns mesmos e os outros seres humanos afetivamente ligadosa ns. O resto do mundo. (OLIVEIRA JR., p. 76)

    Mesmo considerando um pedestre que caminha pela calada e assim estabelece uma

    relao bem mais prxima e direta com o espao em uma velocidade menos alucinante em

    comparao aos veculos, tendo uma viso mais aberta do espao e sem os recortes das

    janelas, ele tem seu olhar contaminado pelo uso cotidiano do percurso, que na maior parte

    das vezes est diretamente relacionado ao tempo entre local de partida e local de chegada.

    O sujeito no reverencia a paisagem que o cerca, poucas vezes se dispe a observ-la, est

    de algum modo acostumado a ela. O hbito de passar pelas coisas da cidade diariamente,

    quase sempre pelos mesmos trajetos, tem como conseqncia uma certa desateno a elas

    por parte do sujeito. Estarem presentes nele, mas como memria e como imagem, sabe-se

    esto, pois alguma vez j foram vistas e experimentadas. Hoje, no entanto, so somente

    sombras, absorvidas e arquivadas pelo inconsciente, embora sejam capazes de chamar a

    ateno para si quando deixam de existir. A ausncia da coisa em si e as recordaes que tal

    ausncia provoca, atestam a sua presena no inconsciente. Olhando a cidade de hoje,

    invariavelmente, o que se v uma outra cidade que no existe mais, que esteve ali no

    lugar da que est hoje ou que talvez nunca tenha estado exatamente como se a recorda.

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    A distncia perde sua espacialidade e, a nova medida de deslocamento no espao

    o tempo. Entre um e outro lugar, o melhor caminho est, quase sempre, relacionado ao

    tempo mais curto em que se pode cumpr-lo, com o mnimo de obstculos, o que nem

    sempre corresponde ao menor percurso. A velocidade desconsidera as distncias em favor

    do tempo , o espao percorrido se torna apenas um cenrio de luzes e cores velozes, cuja

    leitura, depende inteiramente de uma significao pessoal dos elementos presentes. A

    distncia pode ainda estar relacionada na correspondncia que o indivduo estabelece entre

    suas experincias concretas com o espao da cidade e as interpretaes subjetivas do desejo

    e da lembrana. Uma leitura de um tempo passado atravs do tempo presente. A memria

    de uma imagem borrada nos olhos desatentos que buscam no invento de uma iluso, a

    cidade que no podem enxergar, projetando na mente desejos por outras cidades.

    A cidade o espao do no verbal e a velocidade o ritmo de sualeitura. (FERRARA, p. 12)

    O sujeito enxerga e visita as paisagens urbanas de maneiras diversas, porm est

    destinado a v-la sempre aos pedaos, em ritmo acelerado. A leitura do espao, entendido

    como no verbal, exige, no entanto, a ausncia de qualquer ordem preestabelecida,

    convencional ou sistematizada8, pois subjetiva e individual, submetida a um repertrio

    prprio, decorrente da experimentao pessoal e do uso habitual de um espao ou lugar.Experincias emocionais: coisas que importaram para voc em sua prpria vida; coisas

    importantes para a comunidade, sua histria. Temos memrias emotivas em nossas cidades

    atravs de parques histricos, esttuas de personalidades, memoriais de guerra, a tradio

    dos fundadores. (...) A cidade ento, uma histria que se conta para ns medida que

    caminhamos por ela. Significa alguma coisa, ela ecoa com a profundidade do passado9. A

    cidade tem um passado que se confunde com o do cidado, uma histria que contada em

    partes dele, espalhadas nos lugares, para ele mesmo, sujeita a significaes e interpretaes

    diversas, pois so tambm diversas as maneiras como pode ser lida e percebida.

    A semitica define a provvel leitura do espao urbano atravs de seus smbolos

    (signos) ou significaes, criadas pelo indivduo e relacionadas a uma anlise bastante

    8FERRARA, p. 169HILLMAN, p. 39

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    individualizada dos elementos (objetos) que compem tal espao. Desde cedo, os

    habitantes de uma metrpole aprendem a perceber e interpretar o espao a partir das

    relaes admissveis entre seus elementos constituintes e deles consigo mesmo. No entanto,

    a forma como so percebidos e entendidos diferente, pois acontece a partir de

    experincias nicas, vivenciadas por cada indivduo ao seu modo e ao seu tempo.

    A velocidade engole a enxurrada de cabeas que se aglomeram pelas ruas num ir e

    vir de passos marcados. A cidade transforma-se em magia no tempo descontnuo e irregular

    da memria, no qual vagamos atravs dos objetos-imagem, tais quais peregrinos em

    caminhos fantsticos e repletos de simbolismos. Compete ento ao indivduo, que percorre

    diariamente seus descaminhos, encontrar ou ento inventar buracos, pelos quais, atravs da

    multido de corpos e mquinas passantes, de paredes e muros altos, consiga esbarrar no

    espao, por vezes negando ou invertendo os fluxos impostos, obrigatrios do mesmo modoao movimento dos olhos. A cidade sempre anunciada, todavia nem sempre est visvel,

    composta por intervalos, separados pelo percurso e pelo fluxo. Esses intervalos (buracos),

    nos quais a cidade se expe ou permite o encontro, so provveis de um planejamento e,

    sugestivamente repetidos ou escondidos, ambiciosos em provocar uma imagem provvel ao

    espectador. Imagem que o resultado daquilo que foi visto e daquilo que se fantasia atravs

    das recordaes presentes em si prprio. Sennett compara o urbanista ao diretor de

    televiso, pois ambos criam o que chama de liberdade da resistncia10.

    Enquanto um projeta caminhos por onde o movimento se realizesem obstrues ou maiores esforos, e com a menor atenopossvel aos lugares de passagem, o outro explora meios quepermitem s pessoas olhar para o que quer que seja semdesconforto. (SENNETT, p. 18)

    O planejamento urbano empregado atualmente nas grandes cidades busca libertar o

    corpo da resistncia estabelecida por outros corpos desfavorveis desses ou alheios ssuas intenes na tentativa de fugir de qualquer forma de contato, garantindo no s a

    velocidade e o deslocamento, mas tambm uma espcie de setorizao das atividades e das

    classes sociais vigentes. Sennett acrescenta:

    10SENNETT, p 18

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    O objetivo de libertar o corpo da resistncia associa-se ao medo docontato, evidente no desenho urbano moderno. Ao planejar uma viapblica, por exemplo, os urbanistas freqentemente direcionam ofluxo de trfego de forma a isolar uma comunidade residencial de

    uma rea comercial, ou dirigi-lo atravs de bairros de moradia,separando zonas pobres e ricas, ou etnicamente diversas.

    (SENNETT, p. 18).

    A cidade desejada no realidade, desenho. Possibilita as fantasias que invadem

    os egos e nos inventam personagens de um espetculo caracterstico do desejo humano de

    transformar o ambiente que ocupa e faz-lo prximo de si mesmo. O espao de tempo que

    se abre como fenda na contemplao da paisagem a janela, que por um momento

    contraria o fluxo estabelecido, atravessa e reflete, devolvendo-lhe o olhar. Arranca nossa

    essncia como um espelho que reflete a alma, pois se somos produtos do meio em que

    vivemos; a cidade o meio por ns produzido. Tem os mesmos sonhos, a mesma rotina e

    as mesmas rugas, as mesmas cicatrizes.

    Estabelecidas nossa imagem e semelhana11.

    Semelhana esta que ultrapassa o significado do individuo e alcana sua existncia

    poltica como cidado, dissolve a distncia e abriga a diferena exposta. Diversidade

    vulnervel aos olhos, trafega pela aglomerao dos corpos em trnsito pelos mesmosespaos, todavia enxergando e vivenciando tempos distintos da prpria existncia dentro do

    contexto urbano. Por mais evidente que seja o medo do contato, o choque e a coliso so

    efeitos inevitveis da vida nas metrpoles. Os indivduos vacilantes na multido, oscilam

    entre o ser privado e o ser coletivo. Por alguns instantes, so capazes de perceber o outro,

    tropeam nele, mas sem desviar do caminho, em seguida, esto novamente virados para

    dentro de si mesmos, da sua individualidade. Entre a cidade por eles desejada e a tenso

    estabelecida no espao por eles conquistado ou consumido. Portanto a cidade se faz

    intimamente presente na vida de seus habitantes, estabelecida numa desvairada

    (des)continuidade com o corpo. Tensionada entre poderes e no poderes diversos,

    11Se, como diz o texto sagrado, Deus fez o homem sua imagem e semelhana e o fez de barro, com omesmo material que os homens constroem a cidade, igualando-se, com isso, a Deus, em sua obra, e buscando pela verticalidade da construo chegar aos cus, elevar-se at seus domnios.(PESAVENTO, 1999, p.08).

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    possibilidades e resignaes, que nos levam dos prdios de vidro e ao aos barracos feitos

    da juno das sobras, ambos erguidos pelos mesmos-outros braos, porm providos por

    criatividades distintas, surgidas a partir de necessidades econmicas, sociais ou polticas,

    tambm diversas imaginao.

    No somente o espao, como dito por Sennet, mas a prpria sociedade segrega e

    discrimina o indivduo, inventa padres de aceitao, classificatrios, estabelecendo os

    limites, as barreiras, evitando um contato mais prximo e refutando seu sonho de realidade

    pessoal.Impossibilitando que seja capaz de expressar com facilidade sua existncia social,

    desmantelando parte do encanto que movimenta a criao. Este mesmo indivduo isolado

    vive na tentativa incessante de preservar sua autonomia perante a multido ameaadora,

    que ocupa os grandes centros com seus estmulos scio-econmicos perturbadores. Busca

    ainda reverter ou amenizar a descontinuidade e otemor do contatoentre o corpo privado eo pblico, o espao que habita e a multido no espao coletivo que transita.

    Todas as distncias que os homens criaram em torno de si foramditadas por esse temor do contato. (CANETTI, p. 13)

    A imaginao e o sonho permeados pela memria e pela experincia podem ser

    ento, sua alternativa e capacidade de vencer tais distncias pelo menos para si mesmo

    proporcionando um sentimento de aproximao entre os opostos que circulam pelo

    ambiente urbano. Uma possibilidade de contato com o mundo que reflete a sua prpria

    alma.

    Se do barro foi feito o homem, da mesma matria constituda a sua urbe. Assim

    como de sonho tambm ergueu sua morada. Sonho que sustenta toda a sua permanncia no

    espao modelado pelas mos e pelos sentidos. a humanidade que sonha e desenha a

    cidade de barro, estruturando-a sobre a pedra. Se a pedra que molda o barro ou o barro

    que molda a pedra, a fantasia veste a forma, que de encantamento se corrompe.Desfigurada, assimilada, propagada em luz, provocando a sombra e estabelecendo um

    vnculo dbil entre o visvel e o indizvel. Regida pelos seres que servem da substncia e da

    matria urbana que circula pelas ruas, a pedra sucumbe ao barro, submersa em devaneios,

    se afoga na lama que rege toda inveno e serve aos desenhos e traados; polida e pesada,

    desafiada pelo tempo e lapidada pelo transitar das luzes;dando forma ao sonho desfigurado

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    pela esperana da cidade impossvel. Sobreposta realidade presente, mutvel e

    inconstante aos olhos profanados pela construo da imagem de uma cidade ideal.

    ...a chamada cidade ideal nada mais que um ponto de refernciaem relao ao qual se medem os problemas da cidade real, a qualpode, sem dvida, ser concebida como uma obra de arte que, nodecorrer da sua existncia, sofreu modificaes, alteraes,acrscimos, diminuies, deformaes, s vezes verdadeiras crisesdestrutivas. (ARGAN, 1989, p.73)

    Essa cidade idealizada, no nega propriamente, mas critica e estabelece um modelo

    de reconstruo para cidade real. Tentando transformar o concreto em sonho e imaginaoe vice versa. Moldando suas formas no prprio corpo e desejando nela um lugar

    confortvel, onde se pode acomodar e imaginar-se nico, inserido na coletividade.

    Ideal a possibilidade de deformao sensorial do espao e da sua idealizao na

    memria, pela percepo das coisas e pela imaginao individual. Uma relao hesitante,

    pois se o conceito de ideal percebido como algo relativo fantasia, irreal, fictcio e

    utpico, ao mesmo tempo definido como uma perfeio concebvel da realidade ou, por

    assim dizer, modelo de uma verdade.

    A cidade ideal, mais do que um modelo propriamente dito ummdulo para o qual sempre possvel encontrar mltiplos ousubmltiplos que modifiquem a sua medida, mas no a suasubstncia: dada uma planta em forma de tabuleiro, centralizada ouestrelar, sempre possvel desenhar o mesmo esquema numadimenso maior ou menor.(...)Em geral, o desenho da cidade ideal implica o pensamento de que,

    na cidade realiza-se um valor de qualidade que permanecepraticamente imutvel com a mudana da quantidade, na medida emque, por postulado, qualidade e quantidade sejam entidadesproporcionais. A relao entre quantidade e qualidade, proporcionalno passado e antittica hoje, est na base de toda a problemticaurbanstica ocidental. (ARGAN, 1989, p.74)

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    Portanto, considerando ainda que esse ideal de cidade possa ser ampliado ou

    coletivizado em ampla escala, ao menos em um pedao de tempo qualquer, ser na maioria

    das vezes, uma tentativa ilusria e transitria, de harmonia entre o corpo e o espao em umacidade planejada e, ainda que possa ser multiplicvel, ou satisfaa quantitativamente, com

    passar do tempo no atende mais s necessidades, perde suas funes vitais. A cidade

    passional, apesar de autoritria, delimitadora de seus percursos, mas renuncia fatigada aos

    traados estabelecidos ante a fria da multido que flui desvairada por seus caminhos

    diariamente.

    No centro de Fedora, metrpole de pedra cinzenta, h um palcio demetal com uma esfera de vidro em cada cmodo. Dentro de cadaesfera, v-se uma cidade azul que o modelo para uma outraFedora. So as formas que a cidade teria podido tomar se, por umarazo ou por outra, no tivesse se tornado o que atualmente. Emtodas as pocas, algum, vendo Fedora tal como era, haviaimaginado um modo de transform-la na cidade ideal, mas,enquanto construa o seu modelo em miniatura, Fedora j no eramais a mesma de antes e o que at ontem havia sido um possvelfuturo hoje no passava de um brinquedo numa esfera de vidro.

    (CALVINO, p. 32)

    O planejamento urbano, por tantas vezes, pensou, desenhou ou imaginou a cidade

    ideal, solidificando uma mesma inteno de realidade num organismo em transformao

    constante. Mas assim como em Fedora, o desenvolvimento da vida em qualquer grande

    cidade devasso, ultrapassa qualquer tentativa de racionalizao dos acontecimentos. A

    cidade projetada somente ganha vida quando a alma de seus cidados passa a ser capaz de

    transform-la, criando inmeras pequenas outras, dentro dela mesma.

    Contudo, a pretenso no discutir, neste trabalho, qualquer tipo de soluo

    possvel para o desenho e o planejamento urbano, mas perceber, como a sua imagem, seja

    ela inventada, lembrada ou idealizada, se comporta aos olhos dessa profuso de pessoas que

    freqentam seus lugares e, aos meus prprios olhos, os elementos e as luzes descamadas, s

    quais os habitantes dessas ruas escarnadas se sujeitam. Fundindo-se a elas e compartilhando

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    seus desejos, tomando-as como a prpria carne decomposta, dando a elas formas humanas e

    incoerentes. A cidade que, na escurido da noite brilha e transborda em sombra a lembrana

    do dia, respinga luzes melanclicas sobre os sonhos e estende nas ruas a estreita

    possibilidade de encontrar no espao o desejo escuro de um outro lugar.

    Balzac dizia que as ruas de Paris nos do impresses humanas. So

    assim as ruas de todas as cidades, com a vida e destinos iguais aos

    do homem. (JOO DO RIO, p. 53)

    Entre as formas e contornos, essas ruas que transitam humanizadas e abrutalhadas

    por entre o trfego luminoso dos faris, dos postes e das fachadas, permitem fluir o sonho,como sangue, rugindo e jorrando a vida que marca a face pavimentada; estabelecida pelos

    caminhos que levam a humanidade a desenvolver seus prazeres e escrnios, carregando

    suas (des)iluses encravadas sob o salto oco dos sapatos. A rua conduz a cidade e permite

    que ela se movimente, que seja percorrida. Segundo Le Corbusier: A palavra rua

    simboliza em nossa poca, a desordem circulatria.12 Por ela circulam tudo e todos,

    alheios, annimos, passantes. Sua principal funo verter por seus itinerrios o transitar

    descompassado das mquinas velozes e separado destas os pedestres, de passos no menos

    apressados, porm no to ligeiros. So vias perecveis, expostas aos desmandos da

    urbanizao. Nascem, s vezes desenvolvem-se, outras morrem atropeladas pela velocidade

    e pela necessria fluidez; trocam de nome, desfiguram-se ao transcorrer do tempo, mudam

    os rostos, mas sustentam sempre as mesmas rugas desalinhadas, espremidas, espelhadas por

    fachadas que espalham janelas entre as nuvens.

    Janelas pelas quais a cidade respira e por elas transparece permevel, revelando a

    paisagem atravs dos estilhaos da luz e da velocidade, por vezes transtornando a

    perspectiva ou mesmo interrompendo o deslocamento do olhar, reconstituindo o

    movimento a partir dos pedaos invisveis da memria. A cidade revelada por esses

    buracos-janela. Sua face slida contida entre os recortes e as dobras ,repetida e intercalada,

    formando um emaranhado de lugares e locais fantsticos entre os espaos de tempo

    12LE CORBUSIER, p. 81 arquiteto urbanista francs (1887 - 1965)

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    urbanos. O olhar atravessa as paredes, projetando imagens ao espectador, que por trs das

    fendas, no participa efetivamente, mas modifica o espao deformando sua imagem,

    descobrindo e tecendo caminhos e novas passagens, redescobrindo o seu prprio tempo de

    existir na cidade.

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    Cidade Almada

    A esta altura, Kublai Khan espera que Marco diga como Irene vista de dentro. E Marco no pode faz-lo: noconseguiu saber qual a cidade que os moradores doplanalto chamam de Irene; por outro lado no importa: vistade dentro, seria uma outra cidade; Irene o nome de umacidade distante que muda medida que se aproxima dela.

    A cidade de quem passa sem entrar uma; outra paraquem aprisionado e no sai mais dali; uma a cidade qual se chega pela primeira vez, outra a que se abandona

    para nunca mais retornar; cada uma merece um nomediferente; talvez eu j tenha falado de Irene sob outrosnomes; talvez eu s tenha falado de Irene.

    (CALVINO, p. 115)

    Reconhecendo que sempre atravs das janelas, do jogo de luz e sombra que define

    os volumes e dos enquadramentos escusos que o olhar encontra a cidade, seria possvel

    pensar numa cidade toda de uma s vez, mas no estando dentro dela enxerg-la desta

    forma. A cidade s inteiramente vista com os olhos, em alguns casos, estando seuobservador do lado de fora, afastado fisicamente dela, o que pode aplicar-se ainda em um

    distanciamento no sentido vertical.

    Olhada ao rs-do-cho a cidade se dissolve em fragmentos, cujadisperso infinita sumamente desagradvel. Vista, descrita ourepresentada de um ponto elevado, ela se torna um emblemaabstrato imediatamente apreensvel. Com o auxlio do telescpio,junta-se o fragmento com o emblema, que sugerem uma falsa,

    porm reconfortante unidade. O fato marcante, contudo, que acidade no mais pressentida como sendo o conjunto de emoes,gestos e situaes suscitadas pela vivncia cotidiana de umacomunidade, mas, dado o estado de definitiva solido dosindivduos, como algo externo a cada um, unitrio e abstrato na suaexterioridade: como um objeto simblico suscetvel de serinstrumentalizado para satisfazer os impulsos e fantasias de cadaum. (SEVCENKO, N. p. 81)

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    No interior, as distncias so outras, a viso tem outros limites alm dos seus

    prprios, mesmo na pluralidade dos pontos de vista que alcanam a cidade, sempre

    acontecem dentro de certos enquadramentos, dispondo-a a partir de cenas fugazes e assim,

    apenas supondo ou sugerindo mentalmente sua continuidade, tornando-a quase inteira,

    ligando os pedaos existentes na memria somente no plano das idias, ainda que algumas

    partes desconhecidas sejam subjetivamente supostas ou imaginadas. Quanto maior a

    experincia dentro delas, quanto mais conhecimento do que permanece alm daquilo que

    pode ver, quanto mais circula por seus lugares, mais diversas as perspectivas de atravessar

    pelas passagens e enxergar as cidades possveis atrs do cenrio exposto, como um enigma

    a ser decifrado, que porm impossvel de ser desvendado ou completamente esclarecido.

    Esse mistrio que fascina, envolve e empresta vida multido. Invade com tamanhaganncia que mistura dentro e fora. A cidade falsifica as janelas pelas quais tambm nos v,

    espreita e acolhe com suas luzes fantasmticas. Mas rouba tanto quanto nos acrescenta a

    existncia.

    Todas as coisas exibem rostos, o mundo no apenas umaassinatura codificada para ser decifrada em busca do significado,mas uma fisionomia para ser encarada.

    (HILLMAN, p. 14)

    O encontro do corpo com a cidade acontece em seu incessante conflito com o

    ambiente que o envolve. A fora vital que movimenta ambos a mesma. Quando a cidade

    encarada , como proposto por Hillman, a prpria fisionomia de quem a v que se

    arrisca adivinhar, tentando encontrar significaes para o seu reflexo, mas enxergando

    atravs do espelho para alm de si prprio, a sua oportuna criao, poltica, social e sua

    permanncia coletiva dentro dela. Criador e criatura em uma confusa simbiose. O corpo

    depende da cidade tanto quanto o inverso. o seu alimento e, atravs dela (cidade) e suasadversidades, que cada indivduo se conecta ao mundo efetivamente. Nela se reconhece ou

    inspira, observa a si mesmo. , contudo inerente ao olhar a expectativa de ser

    correspondido por quem o recebe13. Essa correspondncia entre dois universos delirantes

    13BENJAMIN, 1987 p. 139

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    interior e exterior estimula o sonho, ao mesmo tempo permitindo satisfazer nos olhos os

    delrios fantsticos que a imagem das coisas admite.

    Essa exigncia imaginativa de ateno indica um mundo almado.

    Mais nosso reconhecimento imaginativo, o ato infantil deimaginar o mundo, anima o mundo e o devolve alma.

    (HILLMAN, p. 15)

    A cidade almada permanece presente nos relmpagos de imagens que se perdem em

    um tempo, onde a paisagem partida em pedaos, ressoa gravada nas janelas frouxas da

    memria, amontoadas diante dos olhos e dentro da alma. Inventadas pela luz, essa luz que

    desfigura, esconde os acasos nas fendas que desfilam pelas ruas tortas, esquecidas e

    secretas na escurido da noite anunciada pelas lmpadas. Alm do concreto, do ferro e do

    asfalto, a cidade tem alma. Ou almas. E essas almas esto nos homens e tambm nas coisas

    mundo que nele incidem. Perceber a alma das coisas em parte, a capacidade de ilumin-

    las e de torn-las imagem.

    As faces das coisas suas superfcies, suas aparncias, seus rostos como lemos aquilo que vem ao nosso encontro ao nvel do olhar;como nos olhamos uns aos outros, como olhamos a face uns dosoutros, lemos uns aos outros assim se d o contato da alma.

    (HILLMAN, p. 41)

    Assim se d o contato dos olhos com a imagem da cidade, extenso percorrida em

    trechos-paisagens, insistentes em no considerar o tempo contido no espao. As fendas

    abertas aos desejos do espectador, revelam-se em luz e distncia nos lugares inundados de

    sombras, entrecortados por instantes vazios de lucidez e preenchidos por pedaos da

    percepo, em um constante exercitar imaginativo da memria.

    Exerccio esse, caracterstico da figura do flneur, esboada por Baudelaire e

    Benjamin. Versado soberano da cidade, comparsa da multido, na qual a cidade ora

    paisagem, ora ninho acolhedor14; mergulhado no cenrio urbano, sabedor de suas

    memrias. Conhecedor de seus segredos, de suas passagens15, de cada pedra e de cada vida

    14BENJAMIN, 1985. p. 39 (org. Flavio Khote)15a palavrapassagemaqui, pode ainda ser entendida como referncia ao Trabalho das Passagens, escrito

    por Walter Benjamin, do qual deixou apenas notas e arquivos.

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    que nela habita. Morador inquieto das rugas licenciosas que entalham a histria da pedra

    nas faces grosseiras, moldadas em cimento e carne. Encarando a fisionomia de uma e de

    todas as outras cidades possveis, imaginadas, sonhadas, projetadas, idealizadas e

    consumidas. Constitudas de razo e incoerncia, embriagadas de anseios.

    preciso ter esprito vagabundo, cheio de curiosidades malss e osnervos com um perptuo desejo incompreensvel, preciso seraquele que chamamos flneur e praticar o mais interessante dosesportes a arte deflanar. fatigante o exerccio?

    (JOO DO RIO, p. 50)

    Fascinante a desventura de desafiar as limitaes impostas pelo confinamento do

    espao entre as paredes e os muros. Extravasar a paisagem fazendo das ruas um teatro.

    Espectador entre as frias pedras das caladas. Considerando ento a possibilidade de

    transcender o encantamento do esprito da flnerie e transport-lo para dentro dos costumes

    imagticos que inundam a cidade atual, a proposta desta investigao , em princpio,

    baseada na tentativa de flanarpelos lugares atravs da imagem fotografada da cidade

    dos brilhos e da escurido, na noite constituda pelas luzes dos homens, tanto as que ele

    criou como as que carrega nos olhos da alma.

    Tornar-se um flneur, percorrendo o espao que se esconde nas sombras e sentir a

    alma das coisas atravs de um olhar outro, exercido atravs da cmera fotogrfica e seuoperador (o fotgrafo). Na fotografia, investigar, ou mesmo perceber os trs momentos do

    seu olhar para a cidade, trs olhares que se percebem: o do fotgrafo, o da lente (ou da

    mquina) e o que v imagem finalizada, o olhar do observador. Este ltimo, abandonando o

    peso do corpo, pode deixar-se envolver pelo espao, um flneur no mais lanando-se na

    multido, mas deixando-se invadir por lugares distantes, enquadrados pelos olhos

    estrangeiros, que modificam a capacidade de ver, dedicados talvez em transpor na forma de

    linguagem a cegueira entorpecente dos fluxos acelerados.

    Em nosso prprio tempo, no caso do flneur, no sua atitudeperceptiva que se perdeu, mas, mais do que isto, sua marginalidade.Se o flneur desapareceu como figura especifica porque a atitudeperceptiva que ele incorporava saturou a existncia moderna,especificamente a sociedade de massa (que a fonte de suasiluses). Pode-se dizer o mesmo de todas as figuras histricas de

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    Benjamin. Na sociedade de mercadorias, todos ns somosprostitutas, vendendo-nos a estranhos, todos ns somoscolecionadores de objetos. (BUCK-MORSS, p. 11-12)

    De fato a modernidade e o desenvolvimento da cidade, adaptados velocidade que a

    humanidade desenvolve em seu impulso de progresso devastador, so responsveis pelo

    desaparecimento do flneur,foi o trnsito que ocasionou sua extino16. Pelo menos no que

    se refere ao flneur original, que de certa forma sucumbe ao fim das passagens parisienses,

    seu habitat, a flnerie no foi passvel de ser apropriada ao novo e frentico ritmo, no qual a

    sociedade do consumo e dos meios de transporte estabelece. As relaes de consumo so

    estabelecidas em um contexto diverso ao dos tempos ureos da flnerie.

    Foi Adorno quem apontou a mania que as pessoas que ouvem rdiotm de passar de uma estao a outra como uma espcie de aura daflnerie. Atualmente, a televiso proporciona este aspecto de umaforma ptica e no varivel. Particularmente nos Estados Unidos, aforma como os novos programas de televiso so apresentadosaproxima viso distrada, impressionista e fisionmica do flneur,uma vez que as cenas apresentadas levam qualquer um a qualquerlugar do mundo, a industria de turismo em massa vende a flnerieem pacotes de duas ou quatro semanas. (BUCK-MORSS, p. 12)

    A flnerie transformada em mercadoria pela sociedade de massa, consome a si

    mesma. Nas grandes cidades atualmente, um exerccio improvvel devido velocidade

    dos fluxos. Talvez seja possvel somente na distncia que a imagem proporciona,

    permitindo um olhar mais demorado para as coisas.

    Esse olhar afastado e desconfiado sobre as coisas conquista o papel de flneur na

    metrpole atual, no mais percorrendo como um andarilho solitrio das ruas luz do dia ou

    sob a das lamparinas pelas passagens, porm percorrendo a noite das luzes eltricas, do

    choque que acende toda a cidade de uma s vez. um olhar distncia, do lado de fora da

    vida pblica, longe das caladas estreitas, encarando a fisionomia dos brilhos e procurando

    atravs da fotografia, o espelho impresso que reflete sua permanncia no espao escuro. O

    tempo parado e as sombras congeladas. Mesmo assim, pode sentir por dentro da alma, a

    memria da multido acumulando nas caladas, cruzando e refletindo nas vidraas claras.

    16 BUCK-MORSS, p. 10

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    Mas alma urbana ainda transborda ausncia e vaga ociosa pelo escuro, permanecendo

    inquieta e solitria na madrugada.

    Flanar, ento, uma possibilidade de fazer da memria e da fotografia um sonho,

    janelas subordinadas a uma galeria de imagens e experincias arquivadas pelo inconsciente,

    que transportam o olhar atravs das sombras, invadindo a vida que pulsa impune,

    encoberta, mas que vaza, escorre e mostra-se publicada, estampada na face dura do

    concreto, exposta paisagem. O olhar conforta-se pela carcia spera das lmpadas, que

    enumeram-se, multiplicadas, alinhadas s sarjetas. A paisagem agora a impresso da luz e

    nos invade de significaes outras. Atravs dessas passagens (janelas), flanar pela noite

    fotografada da cidade portanto o sublime exerccio de projetar na memria um sonho,

    deflagrado pela paisagem cintilante da imagem, que abre em superfcie outros

    entendimentos e carrega os olhos para dentro da alma. De ns mesmos e da cidade.

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    Luz na Janela

    A cidade das janelas, fronteira no limite indefinido da luz e da sombra, o anteparo

    entre a devassido e o sono. Interferncia para o olhar que escapa pela fresta e assiste

    incgnito ao sopro do vento nas sombras alongadas, refletindo escurido no asfalto,

    buscando no silncio denso que abraa as ruas, resqucios da multido ausente. As sombras

    caminham soltas entre as passagens e os becos. uma cidade s.

    S, como as noites que habitam suas vidraas. Como o tempo obscuro, fatigado pelo

    ofcio de esculpir nas pedras a memria, enquanto esta se alimenta dos fantasmas e traduz

    no escuro um sentimento imediato de solido e fantasia, que absorve o encanto dos brilhos

    turvos, desfeito em pigmento nas faces duras e geladas dos edifcios. Quanto mais caminhei

    pelas caladas nas noites mundanas da cidade traduzida pela luz, onde os aspectos sagrados

    dos contornos luminescentes se desmancham entre as prfidas figuras desmanteladas,

    esquecidas, desfeitas nas sarjetas de pedra, mais percebi as mos escuras acenando as

    sombras, sugerindo o gesto anterior de uma vida agora escondida atrs do sono. So outros

    olhares que consomem a noite, dissimulando a lembrana que insiste em permanecer nos

    olhos incautos e assistindo nas faces rasgadas dos muros a luminescncia mgica da noiteurbana.

    Quando as janelas dormem, permitindo s ruas a inquietude do anonimato,

    protegem os plidos insones da profanao dos olhares mundanos, que espreitam na

    ausncia do limite, os segredos da intimidade. a vida privada que se esconde atrs do

    vidro, evitando a coliso e o choque ocasionado pelo trfego das luzes.

    Quem olha de fora por uma janela aberta, nunca v tantas coisas

    como quem olha por uma janela fechada. No h objeto maisprofundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, maisdeslumbrante que uma janela iluminada por uma candeia. O que sepode ver ao sol sempre menos interessante do que o que aquiloque se passa detrs de uma vidraa. Nesse buraco negro ouluminoso a vida vive, a vida sonha, a vida sofre.

    (BAUDELAIRE, p.115).

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    Contudo inerente a esse olhar que tenta atravessar a janela fechada, o fato de no

    estar mais relacionado direta ou fisicamente aos olhos, mas sim a uma fora imaginante que

    torna possvel inventar a vida que pulsa incgnita atrs do vidro. Assim sendo, no so os

    olhos que avanam janela adentro, mas a imaginao. Mesmo porque, na cidade moderna

    dos grandes edifcios verticais, esta janela, mesmo que aberta ou apenas vedada pela

    superfcie translcida do vidro, ainda est na maioria das vezes, verticalmente distante do

    alcance fsico da viso e somente percebida ou vista distncia, porque dela vaza a luz ou

    a sombra em contraste com a parede.

    Essa luz que escapa atribui ainda um sentido fundamental para o funcionamento da

    vida ntima que se desenvolve atrs da janela. a luz que sugere quando a existncia

    interior estar exposta, mesmo que distante dos olhos. Durante o dia, a luz do sol recebida

    pelas janelas abertas, considerando ainda, que durante esse perodo, a exposio pblica davida privada, seja menos incmoda, nesse perodo que a vida pblica est em plena

    atividade e a existncia dessas aberturas (janelas) permite uma forma de relacionar o

    cotidiano particular das pessoas com o mundo exterior, atravs delas se v e visto. As

    aes que ocorrem no lado de dentro, atrs das paredes, so direta ou indiretamente

    afetadas pelas condies externas permeadas pelas janelas, seja l de que maneira essa

    interferncia se manifeste: visual, sonora ou perceptiva, tornando possveis as relaes

    entre os ambientes. Quando a noite cai e o espao veste o manto negro, as relaes tornam-

    se mais reservadas. A luz muda de lado e est do lado de dentro das paredes escapando pelo

    vidro e pelas frestas da janela fechada que esconde no seu interior, os delrios mais restritos

    da vida privada.

    admissvel idealizar a janela proposta por Baudelaire, sendo vista da rua, o

    ambiente do flneur, espao pblico, que est do lado de dentro da cidade mas de fora da

    intimidade privada e tambm possvel imagin-la mergulhada na noite, pois dela emana

    algum tipo de luz. Ento entende esta, atrs da vidraa, como uma outra janela dentro dela

    prpria, que provoca a fantasia a interpretar, imaginar o que os olhos no alcanam e ento

    neste movimento que pretendo prosseguir, espreitando entre as fendas que o acaso

    descortina em meio aos tijolos. Contudo no devo supor que essa perspectiva do olhar que

    vai do exterior para o interior seja uma manifestao unilateral. As janelas so tambm

    possveis de serem atravessadas pelo olhar e pela imaginao no sentido inverso, de dentro

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    para fora, onde a paisagem existe de forma permanente estampada na parede e est ao

    alcance, diante do olhar.

    Dentro dos edifcios em que as paredes viraram janelas, a cidade uma imagem

    impressa, viva e em constante transformao. Quando o observador, diante da superfcie

    transparente, compreende sua capacidade de superar o reflexo na vidraa e vencer a

    distncia entre ele e os objetos distantes na paisagem, a imagem revela os lugares da

    memria. No entanto, necessrio circular por seu repertrio individual de

    experimentaes e sua capacidade imaginativa de construir o seu espao individual,

    podendo entrever, investigar ou ser afetado pelo espao que se anuncia atravs das

    aberturas por onde respira e nos invade.

    A conquista da transparncia estabelece ao indivduo um novo exerccio de

    correspondncia no mundo das aparncias, o seu modo de vida particular com o espaourbano, impondo novos limites aos olhos. Uma outra circunstncia de ver ou conquistar a

    paisagem e torn-la, mesmo distncia, mais e constantemente presente. Essa relao, nos

    tempos modernos, gira sempre em torno do homem e da sua criao: a paisagem quase

    humana da metrpole, manipulada, modificada e intencionalmente incorporada ao espao

    interno dos edifcios, tendo em perspectiva os espaos sufocados pelas ruas, estreitando o

    horizonte e encurtando o alcance do olhar.

    As janelas ganharam definitivamente espao na cidade moderna. A integrao entre

    a construo e a paisagem. Amplitude, luz. Tecnicamente a arquitetura faz uso da

    tecnologia do ao e do concreto, independendo a estrutura das construes das paredes

    portantes, espessas. Quando se trabalha com ao, deve-se entender que o ao representa a

    linguagem do vazio, da ausncia, do espao, da luz.17.Possibilita assim o alargamento dos

    rasgos ou at mesmo a inexistncia da alvenaria na aquisio da limpidez nos gigantescos

    panos de vidro. Edifcios translcidos, buscando uma luminosidade quase sagrada, que

    flutua sobre os volumes e, alm da luz, a paisagem. No mais representada, mas

    apresentada, encarada frente a frente, existente. Disposta a ser desafiada pela memria dela

    mesma em outras distncias.

    17ZANETTINI, Siegbet. O Uso da Luz Natural em Projetos e Obras de Arquitetura. Palestra proferidana 14 Reunio do Clube das Idias. Disponvel em: http://www.idea.org.br/programas/14.htm. Acesso em28/08/04

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    Em um episdio narrado por Benjamim em seu texto Infncia em Berlim, o autor

    cita suas tias como conhecedoras do mundo atravs da janela na sacada de seu apartamento

    em um bairro burgus, de onde podiam avistar tudo o que acontecia na rua.

    Como fadas, que influenciam um vale inteiro, sem nunca teremdescido nele, reinavam sobre ruas inteiras, sem nunca t-las pisado.

    (BENJAMIM, 1987 p. 85)

    Segundo Bolle, o autor apresenta em seus textos a forma como a burguesia era, de

    certa maneira, cerceada pelo enquadramento da janela na viso do seu entorno: Como que

    a criana percebe o mundo dos pobres, da perspectiva de um daqueles apartamentos de

    alto luxo, cujos aposentos so to numerosos e extensos que leva um longo tempo para

    atravess-los. O observatrio preferido da criana a loggia18.Comentando o fato de queo autor quando criana, conhecedor apenas destes pedaos desconectados, no sabia

    exatamente o que significava a pobreza. Havia um abismo no apenas social, mas tambm

    geogrfico-urbanstico e visual que dividia o seu espao de vivncia, o bairro burgus em

    que morava com sua famlia, de todo o resto da cidade. Assistir a cidade atravs de uma

    janela durante uma vida inteira, permite apenas que se veja uma parte, um enquadramento.

    A distncia transforma a percepo da totalidade, mas no sua substncia.

    E assim como uma mesma cidade vista de diferentes lados, parecediferente, e como que multiplicada em perspectiva, assim tambm,dada a multiplicidade infinita das substncias simples, existemcomo que diferentes universos, os quais, no entanto, no passam deperspectivas de um s, conforme os diferentes pontos de vista decada mnada. (LEIBINIZ apudGINZBURG, p. 193)

    O entendimento bastante distinto entre quem v a cidade do alto de uma janela e

    quem a v estando na rua. Como j dito neste trabalho, o envolvimento diferente, j que

    o ponto de vista outro. Embora a cidade seja sempre a mesma em sua totalidade, o

    universo criado em cada indivduo para se relacionar com o espao, prprio e relativo a

    sua distncia, tanto visual como experiencialmente. Embora vista do alto se faa entender

    18BOLLE, p. 341

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    enquanto um conjunto de elementos planejadamente agrupados no espao, o ato de

    imaginar proporciona ver a cidade do alto de um edifcio e faz-la mais prxima de si

    mesmo, imaginar-se participante dela.

    A individualidade se despe por um momento da incoerncia de existir como ser

    coletivo e v atravs de si mesma, protegida pelo vidro ou pela lente. Como o personagem

    do conto Homem da Multido19,inteiramente submerso em devaneios, abrigado em seus

    pensamentos, transformando cada passante, em protagonista de um espetculo

    excepcional, concebido por sua prpria percepo do mundo que desfila na vitrine.

    Entretido em suas lendas e revolto de certa passividade na busca da essncia que nasce da

    alma urbana e torna to encantadora sua existncia e a sua permanncia na noite. L est o

    homem sentado diante da janela, a testa colada no vidro. A multido o seu prprio

    delrio diante da penumbra que invade a rua. Ele a v e se mantm distncia por algum

    tempo, do lado de fora dela, investigando e inventando traos e redesenhando significados

    distintos, numa sempre mesma fisionomia impressa na parede.

    Conforme a noite avanava, progredia meu interesse pela cena. Noapenas o carter geral da multido se alterava materialmente (seusaspectos mais gentis desapareciam com a retirada da poro maisordeira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergiam com

    maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todasas espcies de infmias), mas a luz dos lampies a gs, dbil deincio, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistadoascendncia, pondo nas coisas um brilho trmulo e vistoso.

    (...)

    Os fantsticos efeitos de luz levaram-me ao exame das facesindividuais e, embora a rapidez com que o mundo iluminadodesfilava diante da janela me proibisse lanar mais que uma olhadelafurtiva a cada rosto, parecia-me, no obstante, que, no meu peculiarestado de esprito, eu podia ler freqentemente, mesmo no breveintervalo de um olhar, a histria de longos anos. (POE, E. A.)20

    19O Homem da Multido, conto de Edgar Allan Poe (1809-1849)20POE, Edgar Alan. O HOMEM DA MULTIDO. Disponvel em:http://www.alfredo-

    braga.pro.br/biblioteca/homemnamultidao.html. Acesso em 02/09/2004

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    Menos trmulos que os dos lampies de Poe, os fantsticos efeitos da noite na

    metrpole atual, so manifestos ento, na conquista da sombra pela luz das lmpadas

    eltricas, com seu brilho to mais intenso e estvel que dos lampies, permitindo ao olhar

    deter-se sobre as coisas, suas sombras menos turvas e desfocadas, agarram nas formas e

    dissolvem-se sobre outras, por vezes ligando opostos numa s obscuridade. A cidade o

    cenrio dos personagens invisveis da noite, marcada e desgastada pela memria de uma

    vida que exala somente o seu vulto e a sua memria atravs das sombras incrustadas nas

    pedras.

    O escurecer urbano prepara o leitor para a transformao do olhardo narrador em observador noturno. Este que, atento a imagensfantsticas e inesquecveis das cenas noturnas, persegue, nas facesurbanas, expresses da alma da cidade. (MIRANDA, p. 43)

    Do outro lado da lente de vidro, o fantasma da multido e do flneur permanecem

    perambulando pela noite, mas seus corpos no tm matria definida, somente a memria

    gasta dos contornos. O vazio percorre as ruas esguias que entrecortam as lembranas. Na

    calada no h mais lampies e, qualquer outra tremulao de luminosidade flutuando no

    ar, que no seja a luz da vidraa ou da lmpada sobre o poste, h de ser o delrio pessoal

    de fantasiar a multido distante, assistindo ao isolamento da noite, permanecendo nela,

    incgnito, como observador da sua alma reluzente. Contudo a memria assume neste

    trabalho, o lugar da multido ausente, explorando nas ruas desabitadas, a luz como mais

    uma janela por onde percorre vias mundanas, vivenciando a cidade s. O olhar

    estabelecido pelo lado de fora janela, onde tudo o que enxerga claro ou escuro, cor e

    silncio e ento as coisas invisveis tornam-se sonhos intudos pela alma. Pretendo

    permanecer envolto nesse espao de iluso que a imagem das sombras permite.

    Novamente como o personagem de Poe, abandonar o outro lado da vidraa e me lanarfurtivamente s ruas e mergulhar no espao urbano, como um detetive que investiga um

    rosto suspeito na multido, este que talvez a reinveno do flneur, em seus aspectos

    mais suspeitos, um criminoso descoberto pela fantasmagoria da sua prpria existncia

    pblica, fazendo do olhar atento nica presena e testemunha da vida que exala das

    coisas e dos lugares, entrelaando seus caminhos na iluso escura da noite. Observador

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    inquieto que, se por um momento, se prende na imagem que passeia do outro lado vidro

    ou da foto, em outro avana com paixo sobre os delrios urbanos reluzentes na escurido,

    reinventando a flnerie atravs das luzes-janela, passagens abertas na fantasia da cidade.

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    Coburn Broadway at Night. 1909

    Devassas as luzes brotandoborradas em fileiras distorcidasespelhadas em caladas frias

    Embaadas na umidade escura

    varrem os contornosdeformando a cidadeDisseminando o brilho deliranteque lateja nos olhos

    A rua um vazio recheadode sombras e de postes

    Personagem fora de focoSerei o espectroQue espreita a cidade

    Fazendo dela meu engenhoCompartilho a minha almaConsumo as suas pedrasJ gastas e pesadas

    Muito mais que os passos apressadosPesam as memriasque ocupam suas fendas

    Fantasiosa noite mundanamanchada no asfaltoA escurido se adensa nos buracosda cidade que no tem formas.

    R.Bryan.

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    02 - A JANELA IMPRESSA

    Cidade, Desejo, Fotografia

    caia noite das noites

    a noite de dentro da noite de dentroda noite

    a noite que s se transforma em si mesma(a voz do eco me chamamas j no tenho nome)

    e anoitece(LEMINSK)

    21

    A cidade impressa em alegorias22 e imagens poticas do espao e da luz,

    pronunciada por luminosidades vibrantes, que anunciam as formas fantasmagricas que

    edifcios e rvores assumem na escurido embaada pelos brilhos da noite. Os postes que

    fornecem luz e sombra simultaneamente e mancham as ruas de efeitos fantsticos,

    determinam as frgeis fronteiras entre os lugares expostos e os ocultos. A imagem

    fotogrfica da cidade noite , talvez, a possibilidade de paralisia do movimento embaadodas luzes, do percurso atravs das passagens em que seu rosto se manifesta e espelha,

    refletindo a alma e resplandecendo a aura que a envolve.

    Essa aura que abraa as coisas uma figura singular, composta de elementos

    espaciais e temporais: a apario nica de uma coisa distante, por mais perto que esteja.

    Observar, em repouso, numa tarde de vero, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou

    21LEMINSKI, Paulo In BONVICINO, Rgis. METAMORFOSE. Publicado originalmente com o ttuloNOTAS SOBREMETAFORMOSEDE PAULO LEMINSKI, como nota introdutria ao livroMetaformose,So Paulo, lluminuras, 1994. Republicado em Envie meu dicionrio, So Paulo, Editora 34, 1999. Disponvelem: http://planeta.terra.com.br/arte/PopBox/kamiquase/ensaio36.htm. Acesso em 30/03/0522Umaalegoria uma representao figurativa que transmite um significado outro que e em adio aoliteral. geralmente tratada como uma figura da retrica, mas uma alegoria no precisa ser expressa nalinguagem: pode se dirigir aos olhos, e com frequncia se encontra na pintura, escultura ou outra forma dearte mimtica.Disponvel em http://pt.wikipedia.org/wiki/AlegoriaAcesso em 10/11/05

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    um galho, que projeta sua sombra sobre ns, significa respirar a aura dessas montanhas,

    desse galho23.

    A sombra que um elemento qualquer projeta sobre quem o observa, pode ser ento

    entendida como a essncia que as coisas exalam sobre os sentidos, quando so percebidas

    por algum. A lembrana das coisas desbota. No entanto, essa aura permanece na memria

    como linguagem, como um conjunto de impresses e de sensaes arquivadas pelo

    indivduo em torno de algo que viu ou experimentou e, na maior parte das vezes, tenta

    traduzir sua recordao revelando-a em imagens. estas sendo projees subjetivas, nicas,

    criadas pelo indivduo, no precisamente fiis ao fato legtimo.

    Se chamamos de aura s imagens que, sediadas na mmoireinvolontaire, tendem a se agrupar em torno de um objeto de

    percepo, ento esta aura em torno do objeto corresponde prpriaexperincia que se cristaliza em um objeto de uso sob a forma deexerccio.(...)A experincia da aura se baseia, portanto, na transferncia de umaforma de reao comum na sociedade humana relao doinanimado ou da natureza com o homem. Quem visto ou acreditaestar sendo visto, revida o olhar. Perceber a aura de uma coisasignifica investi-la do poder de revidar. Os achados da mmoireinvolontaire confirmam isso. (E no se repetem, de resto: escapamda lembrana, que procura incorpor-los. Com isto, elas corroboram

    um conceito de aura, que a concebe como o fenmeno irrepetvelde uma distncia. Esta definio tem a vantagem de tornartransparente o carter cultural do fenmeno. O que essencialmentedistncia inacessvel em sua essncia: de fato a inacessibilidade uma qualidade fundamental do culto).

    (BENJAMIN, 1987-p. 137-139)

    A relao entre a imagem e a aura est ento, na permanncia (durao) das coisas

    distantes ou da lembrana delas, transfiguradas e reveladas em torno da sua aura, no que

    Proust denominou como mmoire involontaire24. Lugar onde persiste no inconsciente, a

    23BENJAMIN, 1994. p. 17024 A memria pura a mmoire pure da teoria bergsoniana se transforma, em Proust, na memoireinvolontaire. Ato contnuo, confronta esta memria involuntria com a voluntria, sujeita tutela dointelecto. (BENJAMIN, 1987-p. 106)Se damos crdito a Brgson, a presentificao da dure(durao) que libera a alma humana da obsessodo tempo. Proust simpatiza com esta crena e , a partir dela, criou os exerccios, atravs dos quais, durantetoda a vida, procurou trazer luz o passado impregnado com todas as reminiscncias que haviam penetradoem seus poros durante sua permanncia no inconsciente. (BENJAMIN, 1987-p. 131)

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    memria individual das coisas e dos objetos. Falando deles em seu tempo como imagem

    ou imaginao e todas as correspondncias empricas que os circundam no ato de record-

    los, seja a partir de um repertrio pessoal de correlaes estabelecidas pelo prprio

    sujeito, ou pela experincia entorno de seu uso e experimentao, o envolvendo com essa

    aura que se manifesta involuntariamente a partir de algum tipo de sensao

    desencadeadora, que a faz renascer. Concedendo vida e conferindo a eles (coisas ou

    objetos) significaes particulares e um estado de alma. A capacidade de devolver o olhar

    e causar em ns suas impresses para que sua lembrana possa ser sempre recuperada

    como imagem e conceito.

    Segundo Benjamin, o mecanismo da cmera fotogrfica e sua capacidade de

    capturar o instante, acrescentam memria outra forma de demonstrao, ampliando a

    possibilidade de acumular e disponibilizar lembranas, que no caso da fotografia ou ainda

    do cinema, considera uma parte da expresso da memria que se manifesta

    voluntariamente.

    Os dispositivos, com que as cmeras e as aparelhagens anlogasposteriores foram equipadas, ampliaram o alcance da mmoirevoluntaire; por meio dessa aparelhagem, eles possibilitam fixar umacontecimento a qualquer momento, em som e imagem, e se

    transformam assim em uma importante conquista para a sociedade,na qual o exerccio se atrofia (BENJAMIN, 1987-p. 137)

    Porm no se pode crer que a imagem fotogrfica seja capaz de simplesmente

    atrofiar o exercitar imaginativo de seu espectador. O declnio da aura, comentado por

    Benjamin tem seu princpio com o progresso dos tempos modernos, tendo na fotografia e

    na tecnologia recente responsvel pela produo e pela reproduo tcnica da imagem

    os principais motivadores do choque,ocasionado pela crescente e excessiva necessidadedo indivduo moderno, em cultuar a posse da imagem, visto que, sua reprodutibilidade

    infinita gera a impossibilidade de uma experincia legtima com as coisas do mundo.

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    Esse declnio deriva de duas circunstncias, estreitamente ligadas crescente

    difuso e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas ficarem mais prximas

    uma preocupao to apaixonada das massas modernas com sua tendncia a superar o

    carter nico de todos os fatos atravs da sua reprodutibilidade25. A reprodutibilidade

    tcnica, garantida ento pela fotografia e tambm pela imprensa, aproxima

    quantitativamente um maior nmero de pessoas, em termos de reproduo e distribuio

    das obras de arte, ocasionando uma diferena crucial na relao com a experincia da

    aura, pois no mais o indivduo que percorre a obra, ela que passa por ele e assim sofre

    o choque dessa aproximao que tem por conseqncia o esvaziamento da aura .

    O carter aparentemente no-simblico, objetivo, das imagens

    tcnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem janelase no imagens. (FLUSSER. P. 20)

    Mesmo crendo em um certo desmerecimento ou esvaziamento de algumas de

    nossas recordaes, em decorrncia da sua existncia como imagem produzida e no

    essencialmente como memria ou alegoria em torno da experincia direta da aura. A

    fotografia no , em sua essncia, somente um smbolo da reprodutibilidade tcnica, pois

    nela admissvel a capacidade de tornar provvel a inveno pela imaginao e pela

    memria, de novas passagens e lugares sobrepostos ou entrepostos aos ento

    apresentados, criando outras formas de existncia dentro da imagem de uma realidade que

    fantstica, o que se assemelha a experincia da aura.

    Ao mesmo tempo que apresenta algo, permitindo que acontea de maneira

    interminvel, coloca sobre esse algo, o peso do tempo. O importante que a foto possui

    uma fora constativa, e que o constativo da fotografia incide, no sobre o objeto, mas

    sobre o tempo26. O retorno das coisas ao olhar, transfigura sua condio inanimada e

    desenha a aura que as envolve de uma maneira diferente a cada regresso, tendocontaminada a existncia da imagem pela de si prprio, do observador. No que as

    imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por cenas27, dando s coisas-

    25BENJAMIN, 1994 p. 170.26BARTHES, 1984. p. 13227FLUSSER, p. 14

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    imagens uma nova perspectiva de vivncia, que independe da nossa vontade e excede em

    racionalidade e temporalidade as distncias que se abrem na mente.

    Como formas expressivas, as coisas falam: mostram as

    configuraes que assumem. Elas se anunciam, atestam suapresena: Olhem estamos aqui. Elas nos observam independentedo modo como as observamos, independente de nossasperspectivas, do que pretendemos com elas e como as utilizamos.

    (HILLMAN, p. 15)

    Com as coisas fotografadas no diferente, pois existem como imagem o que d a

    elas a capacidade de persistir como memria e a fotografia como objeto. Dentro dessa

    possibilidade de existir de forma continuada e independente da vontade de algum, a

    fotografia enquanto superfcie-objeto impregnada por cenas, no mais somente a

    manifestao de posse da lembrana, mas esta, por sua vez, tambm dominada pelo

    desejo de possu-la indeterminadamente. Cada dia fica mais irresistvel a necessidade de

    possuir o objeto, de to perto quanto possvel, na imagem, ou antes, na sua copia, na sua

    reproduo.28

    A imagem revelada pela fotografia uma frao do tempo em que se manifesta um

    fato ou um olhar mais detido sobre alguma coisa. No um conjunto de sensaes

    guardadas em memria, mas um estalo luminoso repousado, apresentado em umasuperfcie qualquer, manusevel e disponvel, que vence a distncia, tanto espacial quanto

    temporal. Tempo que nos pertence no s como imagem ou como memria, mas como

    objeto. Contudo, o desejo no se manifesta simplesmente na posse do objeto fotografado

    (imagem), mas tambm a do objeto fotografia, o que permite possuir o tempo-espao de

    um olhar, que transporta toda a existncia para alm do limite dos olhos, mesmo

    entendendo que se trata de uma interpretao e no da representao de um olhar, nem

    exatamente uma verdade, mas uma verdade fotografada.

    Imagens so superfcies que pretendem representar algo.(FLUSSER, p. 13)

    28BENJAMIN, 1994. p. 170

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    A fotografia imagem estampada em superfcie, mais ainda, um

    objetoinfinitamente multiplicvel e manipulvel. De certo modo, se arrisca a ser entendida

    como um retrato, uma representao da realidade. Como se a partir dela pudesse legitimar

    aquilo que pretende representar. No entanto, a fotografia no representa propriamente a

    coisa, mas apresenta ou expressa, dentro de uma realidade fotogrfica, o objeto-cena

    deslocado de sua existncia efetiva no mundo. Seja o que for o que ela d a ver e

    qualquer que seja a maneira, uma foto sempre invisvel: no ela que vemos29. Mesmo

    porque insustentvel acreditar que a realidade possa ser tambm multiplicada, como a

    imagem, assim como no reproduzvel a aura de encantamento que se forma em torno da

    cena original, mas ganha outro significado cada vez que visitada, outra possibilidade de

    existir no tempo e no espao.

    Janelas, espelhos e enquadramentos servem para fragmentar objetose cenas e disp-los segundo outras constelaes. A fotografia, nestesentido, s pode ser propriamente pensada a partir de uma teoria deintervalos. Da emerge o fotogrfico. (PEIXOTO, p. 242)

    Nesse intervalo, lugar em que a imagem no existe efetivamente, est interrompida,

    recortada, onde a imaginao se manifesta. A partir deste poder de imaginar o no

    revelado, tornamos ento as fotografias vulnerveis manifestao involuntria da

    memria, agindo sobre e ao mesmo tempo que a manifestao voluntria da imagem.

    Somos, enfim, dotados de uma extraordinria possibilidade de burlar o mecanicismo da

    cmera, fazendo dela mais do que uma simples possibilidade de registro tcnico

    reprodutvel, e sim provendo-a de vida. Conferindo a ela a possibilidade do olhar e

    permitindo, ento, que o faa por ns, descortinando a aura incessante que envolve a

    permanncia deste olhar em ns, como cena e ento como conceito30. Portanto, somos, por

    exemplo, capazes de inventar ou rememorar a presena ou a imagem-aura de uma multido

    inexistente em uma fotografia noturna da cidade, em conseqncia no somente dalembrana de sua existncia, mas da permanncia das marcas de sua passagem, gravadas

    nas caladas e nos muros, espremida nas sombras entre as pedras.

    29BARTHES. P. 1630A funo dos textos explicar imagens, a dos conceitos analisar cenas.( FLUSSER, p. 16)

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    A cmera fotogrfica e o ato de fotografar sugerem uma evidente e estreita relao

    entre a tcnica e o esprito. A racionalidade portanto capaz de ampliar os limites do

    sentimento, O ponto de vista tcnico no se ope ao ponto de vista espiritual; um

    matria prima, e o outro o mestre de obra. O primeiro no vive sem o segundo31. De um

    lado a tecnologia da mquina, da atividade industrial, do outro a poesia, o encantamento, a

    fantasia. A fora da racionalidade no totalmente oposta seduo do esprito, mas sim,

    em alguns casos, contribuinte para o entusiasmo do seu crescimento e desenvolvimento,

    possibilitando dilatar os limites da inveno.

    fato que, neste caso, a tcnica da inveno s nos parece atraente, porque nos

    serve simultaneamente como prtica e como exerccio de imaginao, assim como essa

    imaginao criadora e inventiva tem por necessidade atividades que lhe forneam

    desafios, colaborando assim para os avanos tcnicos industriais de produo da imagem.

    Assim que os inventores de um novo instrumento o aplicam nanatureza, o que eles esperavam do instrumento apenas um detalheem comparao com a srie de descobertas subseqentes, das quaiso instrumento foi origem. (ARAGO apudKHOTE, p. 220)

    Com o desenvolvimento da indstria, as mquinas fotogrficas, sendo produzidas

    em larga escala e sua tecnologia se tornando cada vez mais capacitada, financeiramente

    acessvel e conseqentemente popular, ganham um amplo espao na histria da produo

    imagtica da sociedade urbana moderna. Amplia tambm largamente as possibilidades

    tcnicas dessa produo, com equipamentos cada vez mais precisos e menos complexos.

    As fotografias, assim como qualquer obra humana, tm sua histria e essa se cruza com

    as demais histrias daquilo que os homens e as mulheres inventam32. A fotografia

    possibilita uma nova maneira de olhar para o mundo, uma nova maneira de se relacionar

    com ele ou com as coisas nele inscritas.

    A mquina fotogrfica ajudou a descobrir o encanto das cenasfortuitas e do ngulo inesperado. Alm disso, o desenvolvimento da

    31LE CORBUSIER, p. 1932OLIVEIRA JR., 2003 p. 06

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