peixoto - cidade sem janelas

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Cidade sem janelas Nelson Brissac Peixoto Arte/Cidade Agnaldo Farias As Figurações do Tempo Ismail Xavier english version Cidade sem janelas Nelson Brissac Peixoto Um horizonte de concreto chapado contra os nossos olhos. O muro de prédios se assemelha ao chão de pedra das calçadas e o fosco das fachadas espelhadas impede qualquer transparência. Coisas que se recusam a partir, sedimentadas, amontoandose umas sobre as outras. Tudo é abarrotado, os espaços profusamente tomados por camadas de reboco, tapumes de madeira, vigas de ferro soterradas por improvisações de alvenaria, restos de trilhos e traquitanas, detritos e pó. Um palimpsesto formado pelos vários usos que tiveram as coisas. Os galpões do antigo Matadouro da Vila Mariana abrigam um mundo subterrâneo e sombrio. Um espaço desprovido de memória, do qual só restam a estrutura fabril e resquícios mecânicos da atividade esquecida. As grossas paredes de tijolos, as vigas de ferro, as portas e janelas cerradas exercem um peso opressor. Universo maquinal marcado pela corporiedade, onde o arado fende a terra e a alavanca move as engrenagens. Esforço humilde contra um mundo coagido pela força da gravidade. Ao oposto do impulso contemporâneo à transparência e leveza, à tentativa de evitar a compacidade do mundo pelas torres e arranhacéus, temos um confronto direto com o volume esmagador da matéria. Os artistas aqui reunidos atuam sobre a espessura das coisas. Em vez de uma expectativa de transcendência, eles olham para baixo, para o que tem densidade e concretude, o que puxa para o chão. Uma paisagem intrincada articulase aí, onde a visão é sempre parcialmente encoberta por obstáculos. Não há como apreender, de um só golpe, o conjunto do espaço, obrigando a percorrer este labirinto. Muros, grades, mezaninos e sombras represam a vista, tirando a perspectiva das coisas para comprimilas contra a parede. Onde nada fica de fora, ver está ligado ao manuseio. Tudo compartilha a mesma materialidade: evidência da operação, do gesto, do esforço. Em todo lugar, marcas da mão, depositando escuridão sobre a luz. Mundo feito de terra, onde se atua lastrado na matéria, escavando o chão, raspando as paredes, como o ferreiro que malha o metal ou o gravador que opera com o buril. Essas maquinarias pesadas referências a um universo mecânico anacrônico estão destinadas à imobilidade, não lhes resta nenhuma chance de vôo. Mesmo as instalações que a princípio comportariam elementos aéreos como as feitas com fotografias, cinema e vídeo apresentam imagens densas e carregadas. O solo em vez do céu. Um universo sistêmico paranóico resultou da ocupação deste antigo abatedouro. Cada obra contribui para articular uma estranha engrenagem, um sistema de vasos comunicantes, uma trama de portões, arcadas e pilares. Em cada canto um dispositivo em funcionamento, uma câmara escura, um artefato de escavação ou apoio, uma colagem de inscrições, uma instalação sonora. O espaço compacto entre as coisas, como uma vegetação espessa, funciona como cimento, ligando objetos e planos de diferentes dimensões. A cidade é um muro impenetrável e opaco. A estrutura arquitetônica de Anne Marie Sumner estabelece, já na entrada, uma relação de evidência e obstrução com o visitante. Três telas metálicas paralelas deixam entrever os galpões da exposição através das suas malhas sobrepostas, mas bloqueiam toda visão panorâmica do lugar. De diferentes comprimentos, cruzam diagonalmente um terreno acidentado, guardando

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Peixoto - Cidade Sem Janelas

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Cidade sem janelas Nelson Brissac PeixotoArte/Cidade Agnaldo Farias

As Figurações do Tempo Ismail Xavierenglish version

Cidade sem janelas

Nelson Brissac Peixoto

Um horizonte de concreto chapado contra os nossos olhos. O muro de prédiosse assemelha ao chão de pedra das calçadas e o fosco das fachadasespelhadas impede qualquer transparência. Coisas que se recusam a partir,sedimentadas, amontoando­se umas sobre as outras. Tudo é abarrotado, osespaços profusamente tomados por camadas de reboco, tapumes de madeira,vigas de ferro soterradas por improvisações de alvenaria, restos de trilhos etraquitanas, detritos e pó. Um palimpsesto formado pelos vários usos quetiveram as coisas.

Os galpões do antigo Matadouro da Vila Mariana abrigam um mundosubterrâneo e sombrio. Um espaço desprovido de memória, do qual só restama estrutura fabril e resquícios mecânicos da atividade esquecida. As grossasparedes de tijolos, as vigas de ferro, as portas e janelas cerradas exercem umpeso opressor. Universo maquinal marcado pela corporiedade, onde o aradofende a terra e a alavanca move as engrenagens. Esforço humilde contra ummundo coagido pela força da gravidade. Ao oposto do impulso contemporâneoà transparência e leveza, à tentativa de evitar a compacidade do mundo pelastorres e arranha­céus, temos um confronto direto com o volume esmagador damatéria. Os artistas aqui reunidos atuam sobre a espessura das coisas. Emvez de uma expectativa de transcendência, eles olham para baixo, para o quetem densidade e concretude, o que puxa para o chão.

Uma paisagem intrincada articula­se aí, onde a visão é sempre parcialmenteencoberta por obstáculos. Não há como apreender, de um só golpe, oconjunto do espaço, obrigando a percorrer este labirinto. Muros, grades,mezaninos e sombras represam a vista, tirando a perspectiva das coisas paracomprimi­las contra a parede. Onde nada fica de fora, ver está ligado aomanuseio. Tudo compartilha a mesma materialidade: evidência da operação,do gesto, do esforço. Em todo lugar, marcas da mão, depositando escuridãosobre a luz. Mundo feito de terra, onde se atua lastrado na matéria, escavandoo chão, raspando as paredes, como o ferreiro que malha o metal ou ogravador que opera com o buril. Essas maquinarias pesadas ­ referências aum universo mecânico anacrônico ­

estão destinadas à imobilidade, não lhes resta nenhuma chance de vôo.Mesmo as instalações que a princípio comportariam elementos aéreos ­ comoas feitas com fotografias, cinema e vídeo ­ apresentam imagens densas ecarregadas. O solo em vez do céu.

Um universo sistêmico ­ paranóico ­ resultou da ocupação deste antigoabatedouro. Cada obra contribui para articular uma estranha engrenagem, umsistema de vasos comunicantes, uma trama de portões, arcadas e pilares. Emcada canto um dispositivo em funcionamento, uma câmara escura, um artefatode escavação ou apoio, uma colagem de inscrições, uma instalação sonora. Oespaço compacto entre as coisas, como uma vegetação espessa, funcionacomo cimento, ligando objetos e planos de diferentes dimensões. A cidade éum muro impenetrável e opaco.

A estrutura arquitetônica de Anne Marie Sumner estabelece, já na entrada,uma relação de evidência e obstrução com o visitante. Três telas metálicasparalelas deixam entrever os galpões da exposição através das suas malhassobrepostas, mas bloqueiam toda visão panorâmica do lugar. De diferentescomprimentos, cruzam diagonalmente um terreno acidentado, guardando

porém sempre o nível, de modo a acompanhar as irregularidades. Elas searticulam com o entorno, criando com o muro de arrimo e o pátio um espaçoampliado. A grade redesenha a topografia do local, tornando mais alta a áreaao pé da ladeira e mais baixa a parte da construção que, subindo a elevação,se pode ver de cima. Mesmo a perspectiva construída pelo paralelismo doseixos é interrompida por sucessivos anteparos perpendiculares, abolindo todohorizonte. A entrada ­ por definição uma área aberta de trânsito facilitado ­passa a requerer um itinerário. A obra não pode ser compreendida de um sóponto de vista, exigindo um percurso que a contorne, que possibilite vê­la dasdiferentes posições do terreno.

As janelas obstruídas da primeira sala não dão para nenhum horizonte. Nadaas distingue daquelas pintadas na parede cega: todas abrem para dentro. Aopintá­la inteiramente de vermelho, usando pigmento puro, Marco Giannotticriou um ambiente que em vez de emanar luz ­ como os espaços sacrosagraciados por vitrais ­ absorve toda luminosidade na parede porosa eaveludada. O ambiente leve e aberto torna­se denso, tomado por ummovimento centrífugo. Espaço negativo, ela é o oposto do lugar, o reverso daarquitetura: um buraco negro. Sua intensa força cromática é opaca. Ela éconvertida numa câmara escura.

Aqui é que a montagem teatral de Enrique Diaz localiza seis das cidadesinvisíveis de Calvino. Dois paradoxais contadores de história, pois desprovidosde experiência, relatam cidades descritas em livros encontrados numabiblioteca. Tudo se passa num lugar fechado, esta sala vermelha de janelascegas: a viagem é um movimento sem sair do lugar. Os gestos são contidos, afala impessoal: sintomas da claustrofobia urbana moderna. As cidades, que sóexistem como registro fantástico, sugerem espaços labirínticos e anônimos.

Ao fundo de uma sala vedada à entrada de luz, caixas de diferentes tamanhossão irregularmente assentadas ou empilhadas, de modo que a iluminaçãoinstalada dentro delas só se propague pelas frestas. O espaço criado pelainstalação de Carlos Fajardo é o contraponto do anterior. A luminosidade aquivem de dentro, lutando contra a resistência das embalagens e do espaço.Cerceada pelo peso da escuridão. A ausência ganha densidade material.Como se a escultura fosse tudo aquilo que ela não é: o espaço que existeentre ela e as paredes, massivamente tomado pela escuridão. Uma esculturade sombras. Enquanto o primeiro ambiente absorvia a luz, este impede queela se expanda: nos dois casos, estudos de contenção. Os elementos maisleves e cinéticos podem ser agentes da gravidade. Desprovido de visão, ovisitante experimenta a mesma desorientação espacial que o acomete desdea entrada, com a grade que redefinia as posições do terreno e os pontos devista. Ele é obrigado a estabelecer uma relação tátil com o local. Apalpar aescuridão mostra que ela é material.

Os buracos escavados por Carmela Gross iniciam um movimentodescendente, condicionado pela bruta fisicalidade do lugar. Como se essasperfurações larvais pudessem ser uma busca de novos horizontes, umatentativa de insuflar um pouco de ar num ambiente asfixiante. Mas, janelasperversas, dão para o chão. Cada buraco é meticulosamente desenhado ealocado numa planta do local. Tal como a demarcação do terreno para umaintervenção cirúrgica ou militar: não por acaso uma de suas referências são osquadros de autópsia de Rubens, artista do desenho massivo e da solidezcorpórea. Dispostos segundo uma grade, esses buracos fazem ummapeamento negativo do espaço, indicam tudo aquilo que não é, que não sepode ver. Ao fundo, um painel formado por reproduções coladas sobre pano,espécie de sudário dessas perfurações, parece tentar elevar aquilo queinexoravelmente aponta para baixo. Paradoxal leveza, que só reforça o pesoque afunda o chão.

As fotografias de Antonio Saggese enfrentam a mesma tensão entre a levezae o pesadume. Na primeira série, fotos de uma estátua desmontada. As

imagens da massiva figura de bronze são ampliadas ­ mutilação amplificadaem pedaços compostos pelo computador ­ e suspensas no ar. Grandespainéis impressos em papel leve, pendendo soltos. As imagens texturadaspela reprodução técnica, volumes que ocupam todo o quadro, evidenciam amaterialidade da própria fotografia. Na segunda série, fotos feitas do retrovisorde um automóvel parado em cruzamentos, de pessoas dentro do carro detrás.Figuras constrangidas no interior de veículos, submetidas à inércia que asimpede de deslocar­se, que bloqueia a visão. O que é estático, o monumento,aparece em movimento e o que é móvel é visto em suspensão. As fotos,tiradas através do espelho, misturam o que está à frente com o que estárefletido, criando superfícies de grande densidade visual. As composições, empapel peixero, são coladas diretamente na parede. Papel pesado, aderido aostijolos, com imagens de um emblema da transparência: a fisionomia humana.Nada mais opaco, porém, que rostos em trânsito. As imagens anônimas ebanais, reproduzidas em série, utilizam­se da linguagem do cartaz barato deshows e propaganda eleitoral, mal impresso e efêmero, que forra os muros dacidade. A panfletagem dos galpões recria o ruído visual da paisagem urbana.Mas esses cartazes acumulados, cuja força provém da própria presençainsistente e caótica, podem também engendrar, em algum momento, umaimagem diferenciada e informativa.

Arnaldo Antunes retoma esta técnica dos "lambe­lambes", os anúncios deshows e os avisos de serviços e oportunidades que saturam a cidade.Sucessivas camadas de papel acumulam­se sobre as paredes. Inchadas pelaumidade, enrugadas pelo sol, as folhas ganham consistência e peso. O tema éa deterioração, provocada pela cola, pela exposição ao tempo, pela sujeira. Avisceralidade desse material, dotado de algo orgânico. São poemascompostos em tipografias tradicionais, cada palavra impressa em cartazesdiferentes, de modo a se misturarem ao acaso, criando novas constelações.Como um Oráculo (obra mais ampla que o artista vem realizando), permiteuma leitura aleatória da cidade enquanto colagem de acontecimentos. Oscartazes são colados por cima dos outros, depois rasgados, fazendo váriascamadas. O rasgo tem função importante: vai deixando aparecer as palavras,permitindo novos agenciamentos entre elas. Leituras parciais entre ospedaços de papel. Cada cartaz é tomado em relação ao que está embaixo.Como ocorre com os avisos de shows ou com a propaganda eleitoral, trata­sesempre de encobrir o outro: sugere transparência. Mas as diversas camadasproduzem opacidade, uma crosta que passa a fazer parte do próprio muro.

No limite, as imagens poderiam ser emulsionadas diretamente na parede,prescindindo da lisura do papel fotográfico. O grande painel de CassioVasconcellos ­ sobre entretela ­ é uma panorâmica urbana articulada atravésde formas desproporcionais e perspectivas desencontradas. Um horizontecompacto, cuja materialidade mimetiza o skyline de concreto. Essasfotografias ­ entretanto apenas uma película química ­ comportam a mesmadensidade dos muros de papel. A imagem entranha o reboco carcomido,penetrando nas fissuras da parede. Processo oposto ao do fotógrafo, quecomo o pintor joga luz: ele opera como um gravador, rasgando a parede como estilete. A imagem fotográfica aqui não se revela ­ este horizonte não temtranscendência ­ ela deita escuridão na cidade. Como se fosse restos de umafresco, estranhamente moderno, que aos poucos vai desaparecendo no murodescascado.

Projetadas diretamente sobre a terra, as imagens de Eder Santos enfatizam a"espessura ótica" do vídeo. A inusitada consistência material dessas imagens ­da mesma natureza que a obtida pela fotografia ­ tem relação com otratamento dado ao tempo. Cenas de trens em movimento são desaceleradas,tornando perceptíveis as figuras, vistas pela janela, no interior dos vagões.Uma mulher em desatino contorce­se no interior de um carro. Filmada a seisquadros por segundo, seu rosto praticamente se dissolve na paisagem quepassa atrás. Os corpos confundem­se com o entorno. Tanto a freada quanto aaceleração afetam as figuras, revestidas de inusitada concretude. A rapidez ­

em geral associada ao cinetismo ­ passa a alimentar a espessura da imagem­vídeo. Uma geologia feita em câmara lenta, uma inscrição do tempo noespaço. O retardamento vai depositando camadas de matéria ótica nasimagens.

O espaço é também denso de ruídos sonoros, que têm volume estrutural.Música, o barulho de máquinas e projetores, trilhas, gravações e sonsambientes tornam ainda mais opaco o lugar. Intensidades sonoras e batidascompassadas como as que ritmam um local fabril. As instalações sonoras deLivio Tragtenberg ­ uma centena de alto­falantes distribuídos em cerca de oitoninhos espalhados pelo chão dos galpões ­ funcionam como esteirasmecânicas, carregando massas sonoras de um canto a outro, sistemasdistributivos que misturam os sons e regulam suas intensidades. Falasgravadas das próprias discussões, de conversas telefônicas. Cidadeeletrônica: ruído de caixa automática, chamadas de metrô... O som nãoultrapassa três metros de cada fonte: os volumes relativamente baixospermitem perceber, devido à distância, um pequeno atraso de um núcleo paraoutro, gerando uma espécie de onda dos mais próximos aos mais distantes.Uma sensação de movimento. Variações de volume e densidade (agudos egraves): a sonoridade é tratada plasticamente. O som tem massa, a mesmainesperada materialidade que apresenta o vídeo. Não expande o espaço, ele opreenche. Torna o ambiente mais pesado.

"Inferno", de Arthur Omar, aprofunda a descida aos tormentos da memória e àviolência do presente, iniciada nos buracos da primeira sala. Qualquerpossibilidade de transcendência é negada a essas figuras aspirandoredenção. Duas séries de monitores de TV sugerem um espaço espiralado: oscírculos do inferno. No alto passam nuvens. Embaixo, antigas imagensamadoras mostram a mãe do artista, ainda jovem. Essa sugestão de pureza ésucedida por cenas de abandono e desvario do carnaval carioca e, depois,pela pulsação luminosa das imagens feitas do interior de um trem emmovimento, até converterem­se em chamas. Configura­se o itinerário dadanação. Tudo é colocado em termos de transporte: para onde vão as almas?A parte alguma, pois céu e inferno são aqui, estamos condenados a não sairdo lugar. Neste mundo mecânico não é possível voar. O vídeo aqui é condutorde eletricidade, um pára­raios que conduz para o fundo da Terra.

A coreografia de Susana Yamauchi instala suas criaturas nos mesmosespaços intersticiais desse purgatório. Esses seres larvais saem de buracosou descolam­se das paredes para o chão. Mimetizam os muros em ruínas,adquirindo a mesma textura esgarçada e rugosa. Pessoas incrustadas emconchas, cercadas de concreto, como as que moram sob os viadutos, nosapartamentos junto às vias expressas. Habitantes de algum infernobruegheliano ­ mas muito contemporâneo ­ vestidos de farrapos, os rostosmascarados. Além disso, procura­se explorar os gestos repetitivos da dança,os movimentos maquinais da produção em série que dominaram todas asoutras instalações. O grande número de bailarinos cria uma impressão demultidão: todos se movem em conjunto, como um bloco compacto. Umamassa bruta e informe como a cidade.

O "filme de curta­metragem e fenaquistoscópio", de Jorge Furtado, trata ocinema como recomposição do movimento através de um disco com imagensfixas. O cinema quando o encadeamento brusco das imagens ainda deixavaperceber a mecânica que sustenta esse fenômeno ótico. São dois dispositivosconjugados: no objeto, o homem­músculo, o operário­máquina, a mulher­esteira. Pessoas sem rosto, só corpo e movimento. O registro cinematográficodesse "trabalho escravo" é uma quase interminável repetição, os gestosencadeados correspondendo à sistemática fabril. Ao lado, numa projeção, ocaleidoscópio de ofertas da cidade: máquinas de empacotar, botões a varejo,panelas de pressão, decalcomania e outras coisas anunciadas no "Jornal deServiço" de Carlos Drummond de Andrade. Cada uma das noventas ofertas dopoema corresponde a uma imagem ­ xerox, polaroid, slides, cartuns, fotografia

digital, desenhos, pinturas... Dentro do objeto, a ilusão de movimento se dápela estroboscopia causada pelo movimento do objeto. Fora, a luz éestroboscópica, fixando por alguns segundos a imagem do objeto emmovimento. Nos dois casos, o ritmo sincopado constitui, graças aos efeitos depersistência retiniana, essa mecânica da imagem. O cinema é uma arte da erafabril, com engrenagens semelhantes às dos antigos parques de diversões ematadouros.

Outro dispositivo de montagem e desmontagem foi engendrado por JoséResende. Um guidaste é programado para compor ininterruptamenteestruturas com elementos encontrados no local. Desde uma base formada porpedras espalhadas ao acaso, sobrepõem­se tubulações metálicas, vigas demadeira e postes de concreto. A partir de um roteiro com algumasconfigurações, estruturas vão ser seguidamente erguidas e desfeitas, cadarepetição servindo para ajustar o desenho e encontrar novas variantes. Trata­se aqui de um estudo sobre as articulações dos objetos e materiais. Umabusca de encaixes e ajustes não programados nas peças, não previsíveis nosmateriais. Engates que sugerem uma arquitetônica, mas que evidenciam atensão entre a precariedade da sustenção e o peso dos materiais, os limitesda construção. O gesto de suspensão ­ realizado por uma máquina, de modoa retirar­lhe toda conotação pessoal, toda intencionalidade artística ­ écontrastado pela força da gravidade. Como a torre de Babel. Problematizaçãoda verticalidade, que o artista efetua também em suas esculturas. Renúnciaao impulso construtivo, retomada contínua do esforço para erguer oinsustentável pesado.

Não por acaso esse itinerário termina contra outra grade, não deixandoalternativa senão andar em círculos: as obras aqui instaladas armam ummoto­contínuo. Um percurso acidentado através de um terreno obstruído, umasondagem do abismo. Não se trata aqui de perceber o invisível das coisas,mas de confrontar sem descanso sua impenetrável e irremovível presença.

Cidade sem janelas Nelson Brissac PeixotoArte/Cidade Agnaldo Farias

As Figurações do Tempo Ismail Xavierenglish version

Arte/Cidade

Agnaldo Farias

Estamos inaugurando hoje a série de palestras relativas ao encerramento doprimeiro bloco do projeto Arte/Cidade, concebido por mim e pelo NelsonBrissac Peixoto. A minha intenção é apresentar­lhes a concepção geral doprojeto, as questões que permearam sua formulação, algumas das muitasdificuldades que encontramos para realizá­lo, e fazer alguns comentáriossobre o resultado que atingimos aqui com esta exposição. Naturalmente estescomentários serão indicativos, uma vez que é impossível aprofundar­me sobrecada um dos trabalhos, com o tipo de reflexão que eles exigiriam.

O projeto Arte/Cidade nasce de uma conjunção muito favorável que nós,assessores do Ricardo Ohtake ­ o que inclui além de mim e do Nelson, oGuilherme Almeida Prado, de cinema, Marta Góes, de teatro, o RodolfoStroeter, de música e a Clarisse Abujamra de dança, encontramos na suagestão para o desenvolvimento de um projeto mais experimental, que saísseda rotina de atividades da Secretaria. Pareceu­nos interessante aproveitar aoportunidade para tentar romper através de uma atividade multidisciplinar umrelativo silêncio, de uma relativa clausura a que hoje está submetida cada umadas áreas de expressão artísticas. Aliás é interessante notar que também essatradição foi perdida, afinal já tivemos muito mais debate e intercâmbio deidéias neste país. Mas, ainda dentro da conjunção positiva que encontramosna Secretaria, deve­se frisar o direito de fracasso que nos foi dado. Ora,

trabalhar com esse tipo de franquia garante a qualquer projeto o direito àtransgressão, um acento experimental que é sempre muito desejável.

Falar de Arte/Cidade é falar de um binômio muito complexo, que vem sendotrabalhado com muita consciência desde o advento da modernidade,sobretudo desde as Vanguardas artísticas do entre­guerras. Este fato garantea consciência que temos do caráter pouco original de nosso trabalho, a faltade pretensão de estarmos inventando alguma coisa fora do comum. Se háalguma coisa que sai do trivial, do ordinário, é a tentativa de reatar em outraclave um certo tipo de discussão que já teve presença aqui no Brasil, aqui emSão Paulo, e que era muito corrente até o início dos anos 80, mas quesubmergiu numa certa vaga em que estamos atravessando, onde a tônicaparece ser o desmantelamento de toda a produção cultural, agudizado com acrise das instituições culturais ocorrida durante o governo Collor. Assim, pensoque o que nós ­ coordenadores, artistas e críticos ­ fizemos aqui, foisimplesmente repropor sem nenhum traço de nostalgia, a consideração dessebinômio sem ser de forma anacrônica, avaliando e tirando partido de algumasdas experiências anteriormente realizadas.

O projeto Arte/Cidade nasce sob a cifra da impossibilidade, nasce tentandocriar saídas para uma série de circunstâncias complicadoras que rondam cadaum dos termos que compõem este binômio. A primeira delas, que eu tenderiaa nomear como essencial, deriva da própria complexidade do fenômenourbano, entendido hoje de um modo muito mais ampliado, na medida em quenão se confunde com os limites estritos, físicos, da cidade. Ao contrário,estende­se por tudo aquilo que o termo compreende: as tramas mais oumenos invisíveis que atravessam e enredam indistintamente todas aspessoas. Este estado de coisas conduz a um dilema crucial: o quê é que sepode eleger de uma cidade para se refletir? O quê, dentro de tudo aquilo aconstitui, é hierarquicamente mais importante?

Coerente com esse problema, o dramaturgo Enrique Dias desenvolveu aquium trabalho inspirado na leitura de "As Cidade Invisíveis", de Ítalo Calvino. Háum momento nesse livro, que relata os encontros imaginários entre o grandeimperador mongol Kublai Khan e seu embaixador predileto, Marco Polo, noqual se toca essa impossibilidade constitutiva acerca de qual ângulo deve­seprivilegiar diante desse fenômeno multifacetado, aparentementeintransponível, que é a cidade. É quando o imperador põe em dúvida aexistência daquelas cidades extraordinárias descritas por Marco Polo eargumenta que cada uma daquelas cidade corresponderia a um diferenteaspecto de uma mesma cidade, a única que Marco Polo conhece, e que éVeneza. Em sua resposta lapidar, Polo afirma que não se deve confundir acidade com o discurso que a descreve. Que o que existe entre ambos ostermos é só uma relação. De fato é só isto que existe. Mas, a rigor isto é tudo.

Uma outra impossibilidade resulta da constatação de que não existe mais umdesenho urbano regular, claro em sua conformação, na sua racionalidade,capaz de garantir a fruição equânime da cidade a todos seus habitantes.Sabemos que isto que é uma das principais heranças do pensamentomoderno, não passa de uma grande utopia, que o desenho de São Paulo éexcludente na sua própria urdidura. A impossibilidade de prosseguirmosidealizando esta cidade, de prosseguirmos acreditando pura e simplesmentenos poderes demiúrgicos da planificação urbana, é quem talvez vem noslevando à sistemática revalorização das ruínas urbanas, tal como esseMatadouro onde estamos hoje. Contudo temos consciência que já há algumtempo persevera uma certa compulsão preservacionista que transformaespaços como este em um sem número de centros culturais, na maioria dasvezes improdutivos e que, coerente com a lógica geral do sistema, incorreigualmente na expulsão daqueles que o habitavam anteriormente.

Há, por último, mais uma impossibilidade que se refere à fruição da obra dearte dentro desses espaços tranquilizadores, projetados com o fim específico

de abrigá­la. Com isso quero aludir aos museus e instituições correlatas. Defato pensamos que seria oportuno, sem, negar a eficácia do sistema dedifusão de arte vigente, alargá­lo; pensamos que seria interessante inserir aobra de arte dentro de um espaço arquitetônico que não lograsse encobrir suapotência. Mas, devo esclarecer que não pensamos o uso deste Matadourocomo uma saída para os impasses relativos ao meio da arte. Seu uso portantonão é prescritivo. Daí ele ser efêmero como demonstra a própria seqüência doprojeto Arte/Cidade, destinado a ocorrer no centro da cidade.

Ponderados todos estes aspectos posso então afirmar que o projetoArte/Cidade concebe a cidade não como tema, mas como suporte. Destemodo a idéia de se eleger o Matadouro justifica­se pelo nosso pressupostoque qualquer um dos artistas convidados não trata a cidade como algumacoisa exterior ao seu trabalho. Cada um dos trabalhos expostos incorporaelementos que têm presença na cidade, e os trazem no âmbito da sualinguagem. Naturalmente esta coerência decorre do fato de que cada uma dassensibilidades que os produziram são, por sua vez, sensibilidades forjadas nomeio urbano. Por outro lado isto também quer dizer que a obra de arte épensada em seu campo autônomo, o que contraria um certo pensamentonaturalista ainda em curso que cobra da obra de arte referências explícitas.

O projeto Arte/Cidade está previsto para acontecer em três blocos, sendo quecada um se encerra com uma exposição de trabalhos de todos os artistasparticipantes. Neste primeiro bloco tivemos a participação de quinze artistas equatro teóricos, além de mim e do Nelson. Foram três meses de discussõesmuitas vezes tensas, muitas vezes divertidíssimas, sempre sobre o mesmotema, e que tiveram seu fecho nesta exposição que aqui está. Bom, naverdade devo ressalvar que essas discussões muitas vezes ­ seguramentemuito mais do que eu e o Nelson gostaríamos ­ não foram sobre o tema ACidade Sem Janelas, tema esse que ora passo a explicar a vocês.

Em primeiro lugar é preciso que se tenha em mente que a idéia de umaCidade Sem Janelas, surge como uma espécie de emblema para que osparticipantes pudessem ver de um modo mais nítido qual era o solo conceitualcomum em que todos estariam se movendo. Ou seja, nossa intenção eragarantir um mesmo denominador, um ponto em comum capaz de preservar aheterogeneidade do grupo mas atenuando­a rumo a uma direção maisprodutiva que não a babel em que nos encontramos hoje. Por certo que todosos artistas convidados para o projeto o foram em função de suas buscaspoéticas particulares, buscas que no nosso ponto de vista ­ e é aí que a nossacuradoria surge de forma mais clara ­ além de estarem afinadas entre si, emque pese a diferença de linguagens em jogo, harmonizavam­se com oconceito geral do bloco. Desse modo, compreendendo que cada campoexpressivo possui uma linguagem e conceitos que lhes são particulares,oferecemos a cada um dos convidados uma lista de palavras que abarca ouniverso que nos dispunhamos a tratar, sabendo que cada um deles seaproximaria mais de um ou outro termo. A seguir apresento a lista de palavras:

prédios, empenas, fachadas, becos, vielas, sky line, impotência, solidão,clausura, angústia, opacidade, saturação, acúmulo, artérias, detritos, ruínas,sobras, escombros, concreto, lama, pedra, metal, solo mineral, arqueológico,porosidade, espessura, massa, peso, gravidade, cheio, fechado, duro, cinza,amorfo, inerte, descascado, sujo, usado, volume, sobreposição,entrelaçamento, articulação, ruído, indistinção, amontoado, aglomerado,acoplamento, engate, expansão, superfície, plano, epiderme, aridez, secura.

Como se vê, trata­se muito mais de uma nuvem, uma nebulosa conceitual, doque propriamente um campo de limites claros. De fato seus limites são tãofrágeis que alguns destes termos pertencem aos blocos seguintes.

Foi muito estimulante, embora por vezes o sentimento de angústia tenha sidogeneralizado, perceber o efeito desse encontro interdisciplinar. Ocorre que

hoje, a produção artística em seus diversos campos é tão sofisticada quequalquer um, mesmo que seja artista, que não pertença a uma determinadaárea na qualidade de produtor direto ou ao menos de observador sistemático,termina se sentindo um leigo. É muito comum, e penso que vocêsconcordariam comigo, encontrar um arquiteto que não entende nada demúsica, um músico que não entende nada de pintura e assim por diante. Daí oteor inquietante dos nossos encontros. Códigos cifrados, sem maiorespossibilidades de interlocução eram freqüentemente utilizados. Demorou­semuito tempo e eu não creio que tenhamos atingido sucesso, a não ser queentendamos que esta foi apenas uma primeira experiência, uma primeiratentativa.

Mas houve um elemento importante para garantir que todo o evento nãodescambasse no ruído e na incompreensibilidade mútua: este Matadouro. Namedida em que se discutia durante a quase totalidade do tempo suaocupação, aparentemente desviava­se da custosa tarefa de discutir o temaproposto. Ele foi todo o tempo, ou ao menos durante grande parte dele, ogrande subterfúgio, o álibi, mas que curiosamente teve o condão depossibilitar a discussão do tema de forma indireta, uma vez que ele, graçasaos seus predicados, harmonizava­se perfeitamente com o tema que nosservia de norte.

O Matadouro foi uma solução muito mais feliz do que a princípio podíamossupor. Suas características foram férteis para o desenvolvimento dos projetosdos artistas. O fato dele ser um espaço desmemoriado ainda localizado dentroda malha urbana, um espaço que não se confunde com as práticas que neleeram exercidas. Foi fundamental para a criação de todos os trabalhos queaqui se apresentam e para o avanço do debate que propusemos a fisicalidadeostensiva de suas paredes densas e pesadas, a meio caminho da destruição.De fato foi decisivo encontrar um espaço onde o tempo comparece de maneiratão condensada e cheia de gravidade, como que encapsulado numa grandecâmara escura que se recusa a abrir ao contato com a cidade que circula asua volta.

Cidade sem janelas Nelson Brissac PeixotoArte/Cidade Agnaldo Farias

As Figurações do Tempo Ismail Xavierenglish version

As Figurações do Tempo

Ismail Xavier

Os trabalhos apresentados no Matadouro, seguindo uma proposta central doprojeto Arte/Cidade, dissolveram a idéia de áreas estanques do audiovisual.Ao me ocupar de cinema e vídeo, não deparo com filmes ou videoarte nosentido tradicional, coisa auto­contida no retângulo da tela. Examinoinstalações e suas formas variadas de expor materiais num ambiente. AndréKlotzel justapõe uma tela de cinema e um cartaz­poema. Eder Santos projetatrês imagens contíguas num monte de terra: trata­se de vídeo em superfícieirregular ou de escultura sobre a qual incidem certas luzes? Arthur Omaralinha treze monitores na horizontal junto à platéia e, mais ao alto, quatromonitores em cruz num cotejo de geometrias tão revelador quanto o teor dasimagens. Jorge Furtado usa duas salas separadas por uma cortina que lembraatrações de feira do século XIX: de um lado, uma versão 1994 doFenaquisticópio inventado em 1832; de outro, o projetor 16mm. A "obra" aquié o espaço de confronto das diferentes técnicas do ilusionismo.

A singularização do dado técnico, a justaposição de linguagens e a atenção àtextura dos materiais trazem os dispositivos para o primeiro plano, afirmam asua opacidade. Expondo a sua lei de formação, eles exibem afinidades deprocedimento com os demais trabalhos da Mostra, incluída a incidência, na

fatura das video­instalações, da arquitetura do Matadouro em seu estadoatual. Esta é lugar privilegiado capaz de cristalizar o sugerido na constelaçãode palavras geradoras que balizaram esta fase do projeto. Já se comentou ofato de as obras terem assumido o espaço e seus fantasmas, num toqueteatral que ganha contundência em Arthur Omar mas se faz, de certo modo,condição geral pelo que o estar­em­contiguidade impõe de resíduocenográfico a cada "atração". No assumir o engastamento das obras nassuperfícies, os fotógrafos foram tão incisivos quanto os artistas plásticos.Recusando molduras, Saggese e Cássio Vasconcelos ocuparam pontos depassagem, ou cantos sem relevo, tematizando a cidade de forma maisexplícita, seja no entrelaçamento de planos e reflexos, nos retratos de figurasaprisionadas ou no painel em foto­montagem cuja fatura não esconde atextura e as emendas da parede.

Passagens: Alice no Matadouro.

Vídeo e cinema, integrados no circuito da exposição de arte tendem a buscaro que Maya Deren definiu como verticalidade do poético ­ justaposição eadensamento de situações específicas ­ em oposição à horizontalidade danarrativa. Tal tendência inclui soluções como a de André Klotzel, que se apoiana interação direta com o texto literário. André reproduz, num cartaz, o poemaJabberwocky, de Lewis Carroll, em tradução de Augusto de Campos,enquanto, na tela faz Zezé Macedo deslizar pelo espaço do próprio Matadouroa declamar o mesmo pema. A atriz vivencia a poesia como menina coquete,desliza como Alice na jornada pelo outro lado do espelho. Este, enquantolugar da travessia, se põe como metáfora do cinema, mundo que desde JeanCocteau (Sangue do poeta) define a superfície refletora, não como devoluçãodo mundo do lado de cá, mas como portal para outras dimensões que a atrizatravessa ao narrar a aventura folclórica do herói do poema, numa pose demenina urbana, vestida à caráter (de colegial britânica), envolta em livros efantasia. Desta cena, já se comentou a junção de poesia moderna echanchada pela presença de Zezé Macedo, mas o dado mais interessante é ogesto de compor passagens dentro passagens, num jogo em abismo pelo qualo tempo parece não avançar. O mergulho da velha­menina na diegese dopoema é o momento de enlevo, viagem repetida, entre dois reconhecimentosda presença da câmera­espelho. Cada retorno no final desse deslize pelaspalavras­valise de Lewis Carroll, o fim do texto a devolve ao Matadouro,estranhada.

Curvaturas do tempo: o inconsciente ótico das imagens em movimento

A idéia do tempo que não avança ganha maior plasticidade no tríptico de EderSantos, momento em que a luz, em vez do espelho, encontra o anteparorugoso e disforme do monte de terra. Resulta uma relação forma/fundoinstável, e a variedade dos procedimentos chega a tornar difícil oreconhecimento do que se passa diante da câmara.

Na imagem do centro, o ponto de partida é a situação clássica de umobservador e de um trem em estado de movimento relativo. No entanto, asalterações na velocidade do registro, os lances de edição e as sobreposiçõesexploram a moldura das janelas e os corpos em movimento para criar umcampo de percepção novo, um espaço­tempo sintético que faz da chegada dotrem à estação uma experiência distante do registro de Lumiere. O que seevoca aqui é uma dinâmica afinada ao cubismo: os recortes de planos esimultaneidades como que congelam o instante, criam uma pulsação defiguras geométricas. Auxiliada pela música e suas recorrências, tal pulsaçãose faz obsessiva, instância de repetição no aparente deslocamento.

A imagem à direita traz um movimento lateral que sugere um passeio de carro.Junto à câmara, uma mulher se agita; seu rosto pouco discernível, seuscabelos, suas mãos e o tecido roxo da roupa se inserem num jogo detonalidades, luz e sombra nervoso em sua fatura. A alteração de velocidade

cria efeitos que lembram a teoria de Jean Epstein sobre a imagem emmovimento e sua capacidade analítica de revelar micro­estruturas dotadas decerta "personalidade", movimento próprio (como os cabelos aqui). Fica asugestão de ordens localizadas que, na sua relativa autonomia, supõe umespaço­tempo descontínuo. Há constante movimento mas não há teleologia,siquer passagem a um outro estado; as várias "realidades locais", tornadasvisíveis pelo dispositivo, compõem um campo fragmentado que não podeavançar.

Na imagem à esquerda, o movimento de câmara pela cidade à noite é maislegível: os estímulos são rarefeitos, mas a passagem de luzes e superfíciesindica um mundo urbano de concreto, estruturas de ruas e avenidas, espaçosvazios pelos quais a câmara avança. E nítida a subjetivação do olhar peloconstante movimento de câmera­na­mão que explora texturas. Na oscilação,portanto, entre o explorar geometrias com disciplina e o construir este olhar­projeção de um sujeito, as três imagens de Eder retomam pesquisas davanguarda dos anos 20: franquear os limites da percepção, fazer ver o quenão se oferece ao olhar desarmado, tensionar o campo do visível, questionaro senso comum e convidar a uma nova vivência da cidade. O nervosismo dasimagens assinala uma dinâmica que nos ultrapassa. E o desconcerto fazdesta itinerância do olhar não bem uma flanerie mas o enfrentamento de umaopacidade radical.

As fachadas de Marco Giannotti definem a matriz do vídeo Céu Livre, delepróprio, Eder Santos e Nelson Brissac, mergulho no campo de forças dascores saturadas. A textura das superfícies torna­se aqui o paradigma e o vídeoaproxima quadros de Giannotti expostos no MASP, paredes de edifícios emdecomposição e os tijolos e janelas do Matadouro. A itinerância tem pontos derepouso e há a sombra do observador que se impõe em certos instantes. Acadência das imagens estabelece uma relação mais contemplativa e osdeslizamentos suaves, embora se apoiem num meio que é basicamentevibração de cor, não excluem harmonias, acasalamentos que encontramreforço no poema de Haroldo de Campos e na música de Lívio Tratenberg.Algumas freqüências de cor acolhem o olhar; outras o tensionam, o que dáaparência de ligeiros avanços e recuos da imagem. Mas a saturação privilegiaa superfície, e o título é pura ironia: não há horizonte nesta obra que se iniciacom o plano de um chão salpicado de folhas mortas e passa a transformarpaisagens em fachadas, paredes em quadros e vice­versa. a dominante dovermelho e as interferências na passagem de uma cor a outra criam o drama,num dinamismo cromático bem oposto ao universo majestático do azul ­ o"céu livre" aqui ausente ­ de Arthur Omar.

O direito e o avesso: inconsciente político das imagens em série

No fenaquitiscópio de Jorge Furtado o tempo também se detém. O desfile deimagens provém da rotação do aparelho e, cada ciclo, tudo se repete, pois ailusão de movimento se cria a partir de fotos observadas através de fendas nocilindro giratório. Tal como seu modelo de há 150 anos, o dispositivo deFurtado faz suceder, em sua superfície interna, imagens fixas das várias fasesde uma ação, reproduzindo­a em aparente continuidade: um pedreiro levamaterial escada acima, uma empregada limpa um chão de cozinha, outropedreiro usa um porrete numa demolição. Três gestos de trabalho quesublinham seu lado mecânico com a repetição. Há, porém, do lado de fora docilindro uma outra coleção de imagens fixas cuja disposição não visa a ilusãode movimento. Esta coleção repassa a cada ciclo como conjunto discreto,exigindo um esforço de focalização pois seu movimento lateral não facilita oolhar. E o efeito maior do aparato está no sistema de iluminação: opacidade etransparência dependem do ângulo de incidência da luz no cilindro; ora a luz"normal" incide de um ângulo que destaca a parte interna e nos sonega oexterior, ora uma luz estroboscópica incide na parte externa e destaca asimagens fixas, gerando uma alternância entre o dentro e o fora. O lado externotraz "reclames" antigos, símbolos de almanaques, fotos de objetos de

consumo, ilustrações de divulgação científica, emblemas Pop. A oposiçãoentre dois conjuntos homogêneos, um referido ao trabalho manual, outro aotecido de imagens que compõem a superfície do social­urbano. Na suaestrutura, o dispositivo configura a clássica articulação de trabalho alienado efetichismo, opondo o mundo da produção e o das imagens­mercadorias. Ageometria engenhosa encanta e há uma dimensão lúdica nesta arqueologiaque refaz o aparelho; ao mesmo tempo, há a exposição gráfica de umconceito que se imprime nesta dinâmica que contrapõe as duas faces docarrossel.

Na sala ao lado, o filme 16mm recompõe a oposição entre o externo e ointerno, agora expostos em sucessão linear. A série do lado de fora desfila nacadência de um poema de Drummond ­ "Serviço de jornal" ­ onde as imagenslá do cilindro vêm se combinar com planos de ruas e sinais de trânsito,edificações, imagens de objetos e serviços postos à venda pelo jornal,gadgets, banalidades e exotismos, enfim a malha visível de mercadorias quese sucedem na tela sob o comando das palavras. O aspecto lúdico­mecânicoda série se adensa pela exata sincronia entre palavra e ilustração visual, numjogo de decifração que lembra o passatempo de jornal ou revista antiga comsuas cartas hieroglíficas". Tudo se move ao som de mecanismos de fábricacuja cadência se impõe dentro de uma intenção satírica: som e imagemenumeram, justapõem e, pela repetição, acabam criando o efeito de umsistema total, desenhando a anatomia do social enquanto comédia damecanização e do automatismo. A cidade e suas coleções convergem nomosaico do jornal que o sujeito observa sem esquecer as zonas sombrias, osdados corrosivos que assinala com ironia. Na segunda parte do filme, seu"lado de dentro", temos a repetição tal e qual das imagens do trabalho vistasno cilindro, agora sobrepostas à imagem dos ponteiros de um relógio asublinhar a medida mecânica do tempo. No som, lê­se um fragmento dopoema em prosa de João Cabral inspirado em Quadrilha de Drummond. JorgeFurtado escolheu a passagem em que o desiludido do amor fala, não do seramado que tem nome (Maria, Teresa, etc) mas do amor como ente que corrói,se expande e engole o sujeito, "comendo" o retrato, o nome, a coleção denúmeros que qualifica objetos pessoais (número da roupa, do sapato). Ouseja, o esvaziamento do eu se assinala pela abolição dos sinais que marcam oindivíduo como membro de uma série. A diferença entre esta enumeração eaquela do "serviço de jornal" é que agora tudo gira em torno de um sujeitoempenhado em expor a dissolução pelo "lado de dentro". Vai­se além daironia implícita da primeira parte e introduz­se, aos poucos, um tempoirredutível à serialização: "o amor comeu o dia, a noite, o inverno, o verão_ aminha dor de cabeça, o meu silêncio e o meu medo da morte". Ao contrário dasérie anterior, esta converge para a dimensão da experiência intransferível esubverte a fluência mecânica da sucessão. Faz emergir dor, medo, morte,qualidades de experiência que encontram eco no gesto dos pedreiros e daempregada repetidos ad nauseum. Da fluência, passamos a um tom opressivoe a segunda parte do filme acaba por desfazer o efeito pop da primeira. Estemodo de introduzir a contradição lembra o efeito gerado pela noção deliberdade ao final de Ilha da Flores. Lá e cá o jogo se desfaz quando seintroduz o que não tem lugar na lógica interna da série. Ou, seja, o que resisteà decomposição em fatores, supõe uma interioridade, um tempo vivido quetransmuta a sátira em drama. Para o nosso olhar, o ritmo mecânico, o ciclo dorelógio e cadeia das imagens marcam um sistema de repetições que nivela osdispositivos, o fenaquitiscópio e o cinema. Com uma diferença: o aparelhoantigo nos dá mais liberdade, pois pescamos as imagens que passam,escolhemos isto ou aquilo. O filme, ao contrário, monitoriza a sucessão, fechaa malha; nele, o fluxo de estímulos se adensa, aumentando o poder dasimagens sobre o espectador. Se há alegoria no dispositivo de Furtado, é paraevocar um mundo que avança, tecnicamente, sem conseguir juntar o homoludens e o homo faber.

O alto e o baixo: a "outra cena" da bela imagem.

No dispositivo de Arthur Omar, tempo cíclico, repetição e série se articulamem novos termos. O arranjo dos monitores instaura a oposição entre o alto e obaixo, antes mesmo das imagens trabalharem, pelo seu conteúdo, asdualidades céu­inferno, abismo­beleza. No alto, 4 monitores em cruz trazem amesma imagem serena de céu azul e nuvem branca mas o conjunto não temo efeito de repetição em série, uma vez que cada monitor tem seu eixodefasado de 90 graus face ao contíguo, de modo a criar um giro de 360 grausquando se percorre o conjunto ­ as nuvens parecem se movimentar emcirculo, a forma da cruz se torna pregnante, compondo uma imagem global,não a soma de quatro imagens iguais. A mudança de eixo, aparente gestosimples, é momento raro de invenção, um "achado" como se diz, pois criagestalt, estabiliza a forma como universo fechado, com tempo próprio, campode forças centrípeto, na tradição de certa pintura, afastando­se da vocação"centrífuga" das imagens do cinema e do vídeo. A cruz em circulo de Omaraltera as relações do campo e do extra­campo, deixando clara a diferença desua lei de formação frente à que preside a série de baixo. Esta se compõe detreze vídeos em linha horizontal com treze versões da mesma imagem, nestecaso gerando o efeito de série. O que não impede que o fogo, imagemdominante, ganhe unidade na diversidade das imagens, como uma pira ailuminar o rosto da platéia, enquanto a música, saturada de freqüênciaextremas, cria forte tonalidade trágica, reforçando o efeito das imagens. Delonge ou de perto, o dispositivo se impõe: o céu em cruz no alto e a linha defogo em baixo figuram, na geometria e no cromatismo, uma cenografia deritual. E os monitores em linha acolhem uma dupla imagem de sacrifício: emcâmara lenta, portanto em cadência específica, desfila a violência de ummatadouro de começo a fim, da pancada na cabeça do boi à sua carnedespedaçada para consumo, ação que uma lenta montagem intercala comimagens de carnaval de rua e cenas antigas de família. Tanto as cenas domatadouro quanto as imagens dos cortejos e das máscaras dançantesemergem e se dissolvem como que consumidas pelo fogo.

Convivem, portanto, aqui o toque minimalista cristalizado na limpidez do azul­e­branco e a tônica de excessos presente no carnaval, no assassinato e naschamas da linha horizontal. As cenas do matadouro definem um paroxismo deviolência observada no detalhe ­ o horror de perto, e lentamente. Nasucessão, o cineasta dilata o tempo e queima as imagens que produziu: as decarnaval são de um filme anterior seu e as de grupos familiares pertencem àmemória afetiva ­ é sua mãe ainda criança que vemos nas últimas imagensdissolvidas no fogo. Singulariza, portanto, o tempo presente do exorcismo, fazdele um teatro da crueldade em que o sacrifício do boi ­ esta atraçãoeisensteiniana ­ se põe como metáfora referida à própria experiência doartista. Olho no olho do animal sacrificado, o homem com a câmara sinalizaum movimento de identificação que suger tal experiência limite ­ onde seaniquilam as marcas de identidade, memória e trabalho ­ como condição paraa emergência do novo. Violência e convulsão, estes dados do lado inferior dodispositivo, não estão, em verdade, excluídos do mundo da bela imagem. Altoe baixo formam dois pólos necessários do mesmo processo. Deslocando oparadigma, sua oposição não se daria como dualidade céu­inferno no sentidocristão, mas como figuração da dialética apolíneo/dionisíaco ou, se quiserem,como figuração da fórmula nietzschiana da arte como "sublimação do susto":vivência da dor e contemplação do abismo como condição para se conceber oOlimpo, o mundo clássico das belas imagens. Nesta chave, o espírito degeometria e a experiência de choque do ritual estão juntos para queserenidade e convulsão, equilíbrio e violência encontrem aqui sua figuraçãolimite como duas faces solidárias do mesmo processo. A gênese da boa formase dá então como drama, risco. Envolve a travessia pelo horror e peladesmedida, o encarar de frente o horizonte do aniquilamento. Em síntese, oque esta co­presença sui generis dos pólos antitéticos oferece é uma imagemdo tempo da criação.

Como "outra cena", o ritual de Omar mobiliza a geometria para expressar asforças de um tempo cíclico estranho à fluência e à ordem das progressões

mecânicas. Tal como outros tempos figurados no Arte/Cidade, o que seprocura aí é um adensamento de experiência, recusa de uma prosaautomática do mundo.

Cidade sem janelas Nelson Brissac PeixotoArte/Cidade Agnaldo Farias

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