nos tumbeiros mais uma vez- o comércio interprovincial de escravos no brasil

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Afro-Ásia ISSN: 0002-0591 [email protected] Universidade Federal da Bahia Brasil Graham, Richard Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil Afro-Ásia, núm. 27, 2002, pp. 121-160 Universidade Federal da Bahia Bahía, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77002704 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Comércio de escravos Brasil

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Afro-siaISSN: [email protected] Federal da BahiaBrasilGraham, RichardNos tumbeiros mais uma vez?O comrcio interprovincial de escravosno BrasilAfro-sia, nm. 27, 2002, pp. 121-160Universidade Federal da BahiaBaha, BrasilDisponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77002704 Como citar este artigo Nmero completo Mais artigos Home da revista no RedalycSistema de Informao CientficaRede de Revistas Cientficas da Amrica Latina, Caribe , Espanha e PortugalProjeto acadmico sem fins lucrativos desenvolvido no mbito da iniciativa Acesso AbertoAfro-sia, 27 (2002), 121-160 121NOS TUMBEIROS MAIS UMA VEZ?OCOMRCIOINTERPROVINCIALDEESCRAVOSNOBRASILRichard Graham*O Brasil importou mais escravos da frica que qualquer outro pas,e a escravido persistiu ali at 1888, isto , muito tempo depois de tersido abolida no resto da Amrica.1 Sua experincia diferiu da de outrospases escravocratas em vrios aspectos e certamente nos rumos de seutrfico interno de escravos. Pode ser til neste momento sumarizar o quesabemosdestetrficonoBrasil,extraindodadosdasobrasdeoutroshistoriadores, mesmo daqueles que no focalizaram suas atenes nocomrcio interno de escravos. Na primeira parte deste artigo examinoquantos escravos estiveram envolvidos no trfico brasileiro, quem foitraficado, de onde vieram e para onde foram. Tal abordagem til namedida em que pode sugerir padres no necessariamente visveis napoca. Mas, creio que devemos tambm responder a uma questo verda-deiramente importante: o que o trfico significou para os seres humanosque foram traficados? A resposta no pode ser uma simples generaliza-* Professor Emrito da Universidade do Texas.1Agradeo aos membros do Seminrio de Santa F pelos comentrios que fizeram em relao auma verso muito preliminar deste artigo, e especialmente Sandra Lauderdale Graham. BarbaraSommer me fez valiosas sugestes bibliogrficas sobre o lugar dos ndios no trfico interno deescravos. Tambm agradeo os participantes do Congresso sobre o Estudo Comparativo doTrfico Interno de Escravos na Amrica, realizado no Centro Gilder Lehrman da Universidadede Yale. Aproveitei tambm excelentes sugestes posteriores feitas por Joo Jos Reis. Tradu-o: Valdemir Zamparoni, reviso final: Richard Graham.122 Afro-sia, 27(2002),121-160o diante da enorme variedade que os caracterizou, e esta variedadeda experincia humana o que torna a histria mais elucidativa. Assim,tomo indivduos particulares e considero as realidades do trfico de es-cravos para cada um deles. Da justaposio destes dois tipos de material quantitativo e qualitativo, geral e especfico tiro a concluso deque o trfico interno de escravos contribuiu fortemente para acelerar aabolio da escravido no Brasil. Este raciocnio se baseia no papel par-ticularmente importante dos prprios escravos: o crescimento da resis-tncia daqueles escravos que tinham sido arrancados de seus contextosfamiliares e antigos laos sociais minou a autoridade dos senhores e en-corajou-os a forar sua prpria libertao atravs da ao direta.Antes de 1850Quando os especialistas falam de trfico interno de escravos no Brasil,usualmente se referem mudana dos escravos muitos deles nascidosna frica das antigas regies aucareiras do Nordeste para as recmprsperas reas cafeeiras do Sudeste, aps o fim do trfico transatlnti-co de escravos, em 1850. Mas o movimento de escravos entre as regiestem precedentes muito anteriores. Pelo menos desde o incio do sculodezessete, traficantes embarcavam escravos indgenas para as ricas re-as produtoras de acar da Bahia e Pernambuco a partir de diferentesportosbrasileiros,principalmentedaregioamaznica,incluindooMaranho, e, numa extenso menor, de So Paulo. Numa nica expedi-o para o oeste, em 1628-30, os ndios escravizados pelos paulistas, deacordo com informaes, atingiram nmeros entre 30 e 60 mil, e algunsdeles (as fontes no especificam quantos) foram mandados para os enge-nhos de acar, ao norte. Mesmo antes, como John Monteiro demons-trou, escravos indgenas capturados perto de Patos no extremo sul doBrasil foram embarcados para o norte ao longo da costa at o Rio deJaneiro.2 Embora saibamos que alguns escravos indgenas marcharampor terra do Maranho para Pernambuco, a prtica mais comum era oenvio por barcos. Em junho de 1636 uma sociedade de Belm, seguindo2John Manuel Monteiro, Negros da terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo, SoPaulo, Companhia das Letras, 1994, pp. 64, 65, 74, 76-79.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 123o que parece ter sido uma prtica bem estabelecida, embarcou 900 ind-genas para o sul em dois navios. Durante o perodo em que a CompanhiaHolandesa das ndias Ocidentais governou Pernambuco (1630-54) uminfluente holands a instigou a expandir seu controle sobre o Maranhoprecisamente a fim de monopolizar o trfico de escravos indgenas. EquandoosholandesesocuparamAngolade1641a1647,cortandoosuprimento normal de escravos da frica para a Bahia, a demanda baianapor escravos indgenas cresceu vertiginosamente.3Os fazendeiros geralmente preferiam os escravos africanos aosindgenas por muitas razes. A mais importante que eles eram maisresistentes s doenas do Velho Mundo e, portanto, deles se podia espe-rar que rendessem mais anos de trabalho. Alm disso, os africanos erammenos propensos a fugir para o interior na primeira oportunidade, maisfamiliarizados com o trabalho agrcola num local fixo (especialmente oshomens), e possivelmente mais acostumados noo de servido pesso-al. Contudo, a escravido indgena continuou sendo uma realidade noBrasil mesmo aps sua proibio formal. Chamados de administrados eno de escravos, os ndios eram, contudo, comprados e vendidos comomercadoria, herdados e caados quando escapavam, mesmo no sculodezenove.4 O seu comrcio de longa distncia, entretanto, parece ter seextinguido quase completamente em meados do sculo dezessete com aimportao massiva de africanos. Como Fernando Novais aponta, nohavia uma comunidade mercantil estabelecida dedicada a alimentar otrfico de indgenas tal como houve para o trfico africano, ao que LuizFelipe de Alencastro acrescenta o argumento preciso de que o comrcio3Joo Capistrano de Abreu, Chapters of Brazils Colonial History, Nova Iorque, Oxford UniversityPress, 1997, pp. 102, 105; David Graham Sweet, A Rich Realm of Nature Destroyed: TheMiddle Amazon Valley, 1640-1750, Ph. D. diss. University of Wisconsin, 1974 p. 171, nota 19;Bailey W. Diffie, A History of Colonial Brazil, 1500-1792, Malbar, Krieger, 1987, p. 258.4Alida C. Metcalf, Family and Frontier in Colonial Brazil: Santana de Parnaba, 1580-1822,Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1992, pp. 49-54, 66-67, 69, 78; Monteiro,Negros da terra, pp. 147-52, 209-20; Marcus J. M. de Carvalho, Negros da terra e negros daGuin: Os termos de uma troca, 1535-1630, Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Bra-sileiro, 408 (2000), pp. 329-42. Sobre o abandono do uso de escravos indgenas e sua substitui-o pelos africanos no sculo XVI, veja Stuart B. Schwartz, Indian Labor and New WorldPlantations:EuropeanDemandsandIndianResponsesinNortheasternBrazil,AmericanHistorical Review, 83, 1 (1978), pp. 43-79. O trabalho forado de ndios, de um modo ou outro,era muito comum na Amrica espanhola, e a captura dos ndios Yaqui do noroeste mexicano esua venda para as fazendas de Yucatn e os engenhos em Cuba ocorreu at a dcada de 1890.124 Afro-sia, 27(2002),121-160de escravos, tal como qualquer outro, requeria mercadorias em troca,mercadoriasquepodiam,maisfacilmente,seremfornecidasfricapeloscomerciantesportugueses,aosquaisacoroatinhagarantidoomonoplio do comrcio martimo, do que aos ndios pelos bandeirantes.Alencastro tambm nota que entre os indgenas no havia a noo decapturar membros de outras tribos para vender aos portugueses, em for-te contraste com a situao na frica.5O enorme nmero de africanos transportados foradamente parao Brasil tem sido minuciosamente calculado alhures, especialmente porPhilipCurtineDavidEltis.estimadoquecercadequatromilheschegaram no curso de trs sculos. Comparados com cerca de 560 miltransportados para a Amrica do Norte britnica, o trfico para o Brasilrepresenta quase 40% de todos escravos remetidos da frica. Os enge-nhos de acar da Bahia e Pernambuco permaneceram como o principaldestino dos escravos at 1700, mas alguns foram para outros lugares.6Na verdade, o fluxo de escravos no Brasil mudou de curso quando osafricanos substituram os indgenas: de Salvador, o grande entreposto,os escravos africanos eram reembarcados para o norte, para o Maranhoe Par; de onde os comerciantes os enviavam pelo Rio Amazonas e seustributrios at as longnquas minas de Mato Grosso. Uma conseqnciafoiadistribuiodosescravoseocostumedeospossuirportodaacolniaedepoisnao.Contudo,osnmerosdestamigraointernaeram relativamente pequenos: aqueles indo para o Par foram estimadosem no mais que 500 por ano durante o sculo dezoito.7As descobertas, no final do sculo dezessete e comeo do dezoito,de ouro e diamantes nas remotas florestas do centro-sul do Brasil atraram5Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), SoPaulo, HUCITEC, 1979, pp. 104-105; Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes: A for-mao do Brasil no Atlntico Sul, So Paulo, Companhia das Letras, 2000, pp. 117-119, 126.6Philip D. Curtin, The Atlantic Slave Trade: A Census, Madison, University of Wisconsin Press,1969, pp. 47-49, 88-89; Herbert S. Klein, The Atlantic Slave Trade, Cambridge (Ingl.), CambridgeUniversity Press, 1999, p. 211. Para uma discusso mais detalhada destes dados, veja Paul E.Lovejoy, The Volume of the Atlantic Slave Trade: A Synthesis, Journal of African History,23, 4 (1982), pp. 473-501, e David Eltis, The Nineteenth-Century Transatlantic Slave Trade:An Annual TimeSeriesofImportsIntothe AmericasBrokenDownbyRegion,HispanicAmerican Historical Review, 67, 1 (1987), pp. 109-38.7Vicente Salles, O negro no Par sob o regime da escravido, Rio de Janeiro, Fundao GetlioVargas e Universidade Federal do Par , 1971, pp. 32, 37, 42-43, 50-51.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 125uma corrida de pessoas para Minas Gerais. Alguns senhores de engenhodo Nordeste abandonaram suas velhas fazendas e se mudaram para a re-gio das minas levando com eles seus escravos,8 mas os escravos de lchegaram a Minas Gerais principalmente atravs dos traficantes. Em al-guns casos estes traficantes fizeram suas propriedades humanas marcha-rem por terra, distncias de cerca de mil quilmetros, a despeito do perigodos ataques indgenas. Ainda mais numerosos entre os escravos enviadospara as minas estavam aqueles que chegavam da frica no Rio de Janeiroe eram depois vendidos a intermedirios que os levavam em comboios a ppara o interior. Entre 1695 e 1735 Minas Gerais foi transformada, de umazona habitada quase inteiramente por ndios nmades, numa rea ondemais de 96 mil escravos negros trabalhavam em muitas tarefas mas, prin-cipalmente, no garimpo. Quase 90% destes eram africanos de nascimen-to.9 Em resumo, escravos vinham, h muito, sendo comercializados inter-namente no Brasil, alguns atravessando longas distncias, tivessem elesprimeiro sido transportados do ultramar ou no.A mais importante considerao do mercado era sempre o custodo escravo e, enquanto estes puderam ser comprados na frica por pe-queno preo, o incentivo para movimentar os escravos que j estavamfixados num lugar no Brasil permaneceu relativamente pequeno.10 Masesta situao finalmente chegou ao fim. Em 1831, como resultado decompromissosfirmadosanteriormentecomaGr-Bretanha,afimdeassegurar o reconhecimento da independncia do Brasil, o Congressobrasileiro aprovou uma lei libertando qualquer escravo que fosse trazidopara o pas aps aquela data e imps vrias penalidades aos envolvidos no8C.R.Boxer,TheGolden AgeofBrazil,1695-1750:GrowingPainsofaColonialSociety,Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1964, p. 42.9Laird W. Bergad, Slavery and the Demographic and Economic History of Minas Gerais, Brazil,1720-1888, Cambridge (Ingl.), Cambridge University Press, 1999, p. 84; Kathleen J. Higgins,Licentious Liberty in a Brazilian Gold-Mining Region: Slavery, Gender, and Social Controlin Eighteenth-Century Sabar, Minas Gerais, University Park, Pennsylvania State UniversityPress, 1999, p. 74. Ver tambm Kathleen J. Higgins, The Slave Society in Eighteenth-CenturySabar: A Community Study in Colonial Brazil, Ph.D., Yale University, 1987, pp. 73, 97.10Claro que alguns escravos foram assim vendidos e alguns exemplos aparecem nas pginas se-guintes. Mariza de Carvalho Soares cr, que, j no sculo XVIII, alguns escravos vindos daCosta da Mina na frica, foram primeiro a Salvador e depois para o Rio de Janeiro. Mariza deCarvalhoSoares,Devotosdacor:Identidadetnica,religiosidadeeescravidonoRiodeJaneiro, sculo XVIII, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2000, pp. 19-20.126 Afro-sia, 27(2002),121-160trfico. Os juzes de paz eleitos, porm, eram relutantes em investigar eformular autos de culpa e os jris, invariavelmente, se recusavam a conde-nar ou aceitar como vlidas as evidncias apresentadas pelos promotores;de modo que ento o governo abandonou qualquer esforo para aplicar alei.11 Em 1850, entretanto, parcialmente como uma reao avalanche deescravos recm chegados e o conseqente medo de agitao escrava, par-cialmente como um esforo para suprimir os dbitos assumidos pelos fa-zendeiros junto aos traficantes de escravos na compra de escravos ilegal-mente importados, e principalmente porque a Gr-Bretanha ameaava asoberania nacional do Brasil ao apresar navios brasileiros, mesmo em guasbrasileiras, caso fossem suspeitos de estar engajados no nefando negcio,o governo brasileiro tomou medidas para efetivamente por fim ao trficotransatlntico. Foi emitida uma nova lei colocando a responsabilidade daexecuo nas mos da Marinha e retirando o direito de julgamento porjris dos acusados de traficar escravos. A lei tambm impunha maiorespenalidades aos transgressores e deportava estrangeiros leia-se, portu-gueses engajados no trfico, assim os impedindo de cobrar seus dbi-tos.12 No comeo, alguns navios ainda atracaram clandestinamente na costadescarregando suas lgubres cargas, que eram, nas palavras de um con-temporneo, por caminhos imprvios e atalhos desconhecidos levados aointerior do paiz.13 Mas o governo manteve firme sua resoluo e, comoclasse, os fazendeiros muitos dos quais eram membros do Congressoou do Ministrio no fizeram oposio organizada.Padres de trficoUma vez que o governo efetivamente tinha suprimido o trfico ultrama-rino no comeo dos anos 1850, o nico trfico de escravos que restavaera o interno. Inevitavelmente, devido ao enorme nmero de africanos nopas, muitos dos que foram transferidos de uma provncia para outra j11Arquivo Nacional, Seo do Poder Executivo, Justia, IJ1707, do Presidente da Provncia daBahia ao Ministro de Justia, Salvador, 26/06, 24/07 e 22/09/1834; 14/02 e 07/11/1835.12A historiografia sobre este assunto bem ampla, e foi sintetizada e ampliada por Leslie Bethell,TheAbolitionoftheBrazilianSlaveTrade:Britain,BrazilandtheSlaveTradeQuestion,1807-1869, Cambridge (Ingl.), Cambridge University Press, 1970.13Jos Thomas Nabuco de Arajo, citado em Joaquim Nabuco, Um estadista do Imprio, 3a ed.[1a, 1898-99], Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1975, p. 197.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 127tinham sofrido o trfico transatlntico. Vinte e oito por cento daqueleschegando no Rio de Janeiro, vindos do Nordeste do Brasil, e registradospor alguns meses num documento de 1852, tinham nascido na frica epode se supor que alguns daqueles registrados como nascidos no Brasileram na verdade africanos, importados aps 1831, quando tais importa-es tinham se tornado ilegais. Com o tempo, a proporo de crioulos(escravos nascidos no Brasil) no trfico cresceu e, finalmente, como osafricanos envelheciam, os primeiros eram quase os nicos escravos sen-do enviados de provncia a provncia.14Pela metade do sculo dezenove, a economia cafeeira da provnciado Rio de Janeiro crescia de maneira explosiva, logo seguida por SoPaulo, e foi principalmente para estas reas que os escravos foram trans-feridos. Naturalmente, o fato de haver vrios produtos agrcolas de ex-portao no Brasil e de sua lucratividade no crescer nem decrescer si-multaneamente provocou variaes neste fluxo de escravos de uma re-gioparaoutra.Todavia,elesforamtransferidosdamenoslucrativaproduoaucareiranordestinafontepredominanteoudoRioGrande do Sul onde a atividade do charque estava em declnio, e foramcanalizados para os portos do Rio de Janeiro e Santos. Devido falta deboas estradas interiores, a principal rota para o trfico permaneceu sen-do a costeira; prolongando para os africanos alguns dos traumas de suaprimeira travessia atravs do Atlntico. Os registros policiais existentesacerca da chegada de escravos na cidade do Rio de Janeiro, em 1852,mostram que trs quartos dos navios que os carregavam vinham de por-tos a norte do Rio, e 83% dos escravos brasileiros, cujos registros infor-mam a provncia de nascimento, tinham nascido no Nordeste.15 Evidn-cias de perodos posteriores confirmam esta regio como a fonte da mai-oria dos escravos enviados para o Rio de Janeiro de todas as partes do14HerbertS.Klein,TheInternalSlave TradeinNineteenth-CenturyBrazil: AStudyofSlaveImportations into Rio de Janeiro in 1852, Hispanic American Historical Review, 51, 4 (1971), p.571; este artigo depois entrou como captulo em Herbert S. Klein, The Middle Passage: ComparativeStudies in the Atlantic Slave Trade, Princeton, Princeton University Press, 1978. Quando, na dca-da de 1840, as condies econmicas pioraram no Maranho enquanto o Par prosperava,, escra-vos foram vendidos daquela a esta provncia; alguns podiam ser africanos, mas muitos eram criou-los. Em 1851, quando o trfico atravs do Atlntico estava apenas terminando, o autor de umacarta annima endereada a um jornal j se identificava como sendo um senhor de engenho no Parcujos escravos eram todos crioulos do Cear, Salles, O negro no Par, p. 53.15Klein, Internal Slave Trade, 1852, pp. 577, 579.128 Afro-sia, 27(2002),121-160Brasil embora, em proporo aos escravos existentes, o Rio Grande doSul tenha exportado mais que o Nordeste.16MinasGeraisfoioutrodestinoparaoqualosescravosforamlevados. Tem havido considervel divergncia entre os historiadores acercada amplitude deste trfico, especialmente no perodo de pico dos anos1870, e argumentos contrrios tm sido levantados por Robert Slenes,Roberto Borges Martins, Douglas Cole Libby e Laird W. Bergad, todoscom algum vnculo com a tradio cliomtrica norte-americana.17 se-16Dos escravos existentes no Rio Grande do Sul em 1874, 14,53% foram exportados da provnciaat 1884, enquanto o dado equivalente para o Nordeste como um todo seria s 6,43%. Claro quealgumas provncias nordestinas com relativamente poucos escravos exportaram uma percenta-gem maior, mas entre a provncias exportadoras de escravos o Rio Grande do Sul era a terceiramaior em plantel, em 1874. Robert Conrad, The Destruction of Brazilian Slavery, Berkeley eLos Angeles, University of California Press, 1972, p. 284 combinada com p. 290.17 inegvel que nos primeiros tempos da expanso dos cafezais no Rio de Janeiro e So Paulo (isto ,entre 1820 e 1860) alguns escravos foram removidos de Minas Gerais para essas provncias juntocom seus donos. Alguns historiadores notaram este fato sem dar-lhe muita ateno. A, Roberto BorgesMartins criou um grande caso para negar a validade desta afirmao, a despeito de confessar que asprovas que falam sobre este perodo so indiretas, fragmentrias, e muitas vezes contraditrias. Eleconcluiu que, longe de exportar escravos, Minas Gerais importou, seja da frica ou das outras provn-cias, bem mais de 400.000 escravos durante o perodo de 1800-1873 (as fontes no nos deixamdistingir aqueles importados para esta provncia depois do fim do trfico transatlntico em 1850).Para o perodo que comea em 1873 com o primeiro censo nacional, Martins inverte sua concluso:ainda insistindo que Minas exportava s poucos escravos, ele argumenta que tambm importavapoucos, de modo que o saldo de importaes sobre exportaes seria de uns 7.000 para o perodo de1873 a 1881. Robert Slenes tinha anteriormente sustentado que Minas Gerais durante estes anosimportou quase 24.000 de outras provncias, mas Martins manteve que Slenes havia subestimado onmero de escravos j existentes na provncia em 1873, Roberto Borges Martins, Growing in Silence:The Slave Economy of Nineteenth-Century Minas Gerais, Brazil, Ph. D., Vanderbilt University,1980,pp.169,178,184(citado),212-13,218-20;eRobert W.Slenes,TheDemographyandEconomics of Brazilian Slavery, 1850-1888, Ph.D., Stanford University, 1975, p. 616. Um resumodo argumento de Martins foi publicado em Amilcar Martins Filho e Roberto B. Martins, Slavery ina Nonexport Economy: Nineteenth-Century Minas Gerais Revisited, Hispanic American HistoricalReview, 63, 3 (1983), pp. 537-68. Para a rplica de Slenes veja Robert W. Slenes, Comments onSlavery in a Nonexport Economy, Hispanic American Historical Review, 63, 3 (1983), pp. 569,577, e Robert W. Slenes, Os mltiplos de porcos e diamantes: A economia escrava de Minas Geraisno sculo XIX, Estudos Econmicos, 18, 3 (1988), pp. 449-95. Mesmo que Martins ocasionalmen-te parea se contradizer, Douglas Cole Libby algumas vezes distorce o sentido das palavras deste paracritic-lo, Douglas Cole Libby, Transformao e trabalho em uma economia escravista: MinasGerais no sculo XIX, So Paulo, Brasiliense, 1988, pp. 19-21, 40. Uma viso geral do debate apresentada por Douglas Cole Libby, Historiografia e a formao social escravista mineira, Acer-vo: Revista do Arquivo Nacional, 3, 1 (1988), pp. 13-16. Laird Bergad, auxiliado por uma grandeequipe de pesquisadores, examinou mais de 10.000 inventrios post-mortem e vrios censos locaispara concluir que no houve grande importao de escravos para a provncia antes de 1873 (a dataem que termina seu estudo, apesar do ttulo de seu livro), Bergad, Slavery and the Demographic andEconomic History of Minas. Algumas falhas no argumento de Bergad so apontadas na breve rese-nha de seu livro publicado no American Historical Review, 107, 1 (2002), pp. 258-9.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 129guro concluir que naquela dcada os traficantes de escravos introduzi-ram milhares de escravos na regio.Dados quantitativos sobre o conjunto do trfico interno ps-1850,quando aparecem, so notoriamente imprecisos, mas seu volume inega-velmente menor do que o do anterior trfico transatlntico. Um estatsticocontemporneo calculou o nmero mdio de escravos traficados anual-mente do Nordeste para o Rio de Janeiro nos anos 1850 como sendo de3.439, e estimava em mais ou menos outros 1.500, os que chegaram comseus proprietrios ou vieram da regio sul do pas.18 O historiador HerbertKlein concluiu que estas cifras so plausveis e que, se forem somados osembarques de escravos para o porto de Santos possvel que, nas dcadasde 1850 e 1860, o nmero de escravos vindos do Nordeste chegasse emmdia a 5, 6 mil por ano, comparados com os 24 mil por ano trazidos dafrica para todos os portos do Brasil durante as duas dcadas preceden-tes. O nmero dos envolvidos no trfico interno de escravos declinou umpouco nos anos 1860 porque a Guerra Civil nos Estados Unidos encorajoua produo de algodo para compensar a escassez das exportaes ameri-canas para a Inglaterra, e os produtores do Nordeste por esta razo, umavez mais, puseram alto preo nos seus escravos. Entretanto, o trfico deescravos interprovincial se tornou muito mais intenso nos anos 1870, quandoos preos internacionais do algodo e do acar declinaram precipitada-mente enquanto que o do caf disparou. Robert Slenes estimou em 10 milpor ano o nmero de escravos comercializados nesta dcada, isto , quaseodobrodonvelanterior.Eleconcluiuquecercade200milescravosforam comprados e vendidos de uma provncia a outra aps 1850. Almdisso, nas provncias, ocorreu uma grande transferncia de escravos dascidades, das reas de policultura e das minas de ouro e diamante (onde osveios tinham se esgotado) para as plantaes voltadas exportao. RobertConrad supe que, se este trfico intraprovincial tambm fosse tabulado,os nmeros do trfico interno poderiam ser o dobro dos acima estimados.To grande movimento de pessoas deve ter tido um impacto significativona configurao demogrfica e cultural do pas.1918Sebastio Ferreira Soares, Notas estatsticas sobre a produo agricola e a carestia dos generosalimenticios no imprio do Brazil, Rio de Janeiro, Villeneuve, 1860, p. 135.19Klein, Internal Slave Trade, 1852, pp. 568, 583; Slenes, Demography of Slavery, pp. 124,135-39, 169 nota 39; Robert W. Slenes, Grandeza ou decadncia? O mercado de escravos e a130 Afro-sia, 27(2002),121-160Tem sido calculado que a chance que um escravo tinha de ser em-purrado para o trfico interprovincial brasileiro, num ano das dcadas de1850e1860,erade0,4%,20 mas esta chance aparentemente se tornoumuitomaiornadcadade1870.NotemosestudosparaoBrasiltaiscomo o feito por Michael Tadman para o Velho Sul dos Estados Unidos(nem poderia ser feito por falta de dados censitrios comparveis) quemostra que a chance de ser separado da esposa em algum momento na vidaera de 10 ou 11% para aqueles escravos que chegavam idade de 45-54anos.21 O nmero absoluto daqueles que foram deslocados de um estadopara outro nos Estados Unidos 742 mil obscurece, de forma impres-sionante, os nmeros para o Brasil, algo em torno de 200 mil.22OsescravosenviadosdoNordesteparaoSulnovinhamdasplantaes de cana de acar. Pelo fato de que a exportao nordestinade acar no estava mais em expanso, h a falsa convico de queeram os senhores de engenho que vendiam seus escravos para o Sul, maseconomia cafeeira da provncia do Rio de Janeiro, 1850-1888, in Iraci del Nero da Costa (org.),Brasil: Histria econmica e demogrfica (So Paulo, Instituto de Pesquisas Econmicas),1986, pp. 110-33; Robert Edgar Conrad, World of Sorrow: The African Slave Trade to Brazil,Baton Rouge, Louisiana State University Press, 1986, pp. 179, 181. O efeito demogrfico de togrande migrao deve ter sido muito visvel, veja Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, p.285, e Peter L. Eisenberg, Abolishing Slavery: The Process on Pernambucos Sugar Plantations,Hispanic American Historical Review, 52, 4 (1972), p. 595. O impacto cultural deste trficointerno s pode ser estimado, mas geralmente aceito, que, primeiro, durante o sculo XVIII ecomeo do sculo XIX os escravos africanos que chegavam Bahia (e ao nordeste em geral)vinham principalmente da rea circundada pelo Golfo do Benin e da Costa da Guin onde predo-minavam as lnguas Iorub e Fon, junto com os que falavam Hauss, enquanto no segundoquartel do sculo XIX os que aportavam no Sudeste geralmente falavam lnguas da famlia Bantu,e,segundo,queumagrandemigraodeescravosdoNordesteaoSudestedepoisde1850logicamente implicaria mudanas nos rituais religiosos, prticas familiares, e padres lingsticosno Sudeste, com efeitos presentes at hoje. Veja, por exemplo, Eduardo Silva, Prince of thePeople: The Life and Times of a Brazilian Free Man of Colour, Londres, Verso, 1993, pp. 48-49. Sobre uma mudana igual em Minas Gerais setecentista, veja Elizabeth W. Kiddy, Congados,Calunga, Candombe: Our Lady of the Rosary in Minas Gerais, Brazil, Luso-Brazilian Review,37, 1, (2000), pp. 52-53.20Klein, Internal Slave Trade, 1852, p. 579, notas.21MichaelTadman,SpeculatorsandSlaves:Masters,Traders,andSlavesintheOldSouth,Madison, University of Wisconsin Press, 1989, p. 297. Veja tambm pp. 169-170.22Slenes, Demography of Slavery, p. 145; Klein, Internal Slave Trade, 1852, p. 569, notas. Ofato que a maioria dos escravos no Sul dos Estados Unidos eram crioulos (i.e., no importados dafrica e, portanto, j aclimatizados) e se reproduziam com relativa facilidade num pas ondequase no se conhecia a prtica da alforria, fez com que a populao de escravos l chegasse a sermaior do que a do Brasil. Por outro lado, a populao de afro-brasileiros livres e libertos cresciageometricamente.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 131no foi usualmente este o caso. A mais importante fonte, a longo prazo,para o novo trfico de escravos foram as pequenas e mdias proprieda-des agrcolas. O cnsul britnico informou em 1860 que agentes vas-culhavamointeriorcomprandoescravosdepequenosproprietriosendividados. Na dcada seguinte, um observador brasileiro reclamou queos agentes, os intermedirios, so exatamente os que fazem o comrcio;aquelesvodosulparaasprovnciasdonorte,epercorrendo-asemtodos os sentidos, cometem o que (...) se denominava prear, arrebanharcativos. O historiador Stanley Stein entrevistou um ex-escravo na pro-vncia do Rio de Janeiro que relatou como, no comeo dos anos 1880, eletinha vindo de uma roa de rcino e algodo no Maranho.23 Da mesmamaneira uma significativa mudana na concentrao da populao es-crava ocorreu em Minas Gerais acompanhando a expanso das plantaesde caf na regio sul da provncia, a partir do final dos anos 1860 at osanos 1880; as reas agrcolas e de criao e os distritos mineiros da pro-vncia (isto , todas as regies no produtoras de caf) perderam escravos,enquanto as reas cafeeiras incrementaram sua participao na populaoescrava provincial de 24% a 31% entre 1873 e 1886.24 Portanto, no fo-ram, em primeiro lugar, os senhores de engenho que enfrentaram dificul-dades com a diminuio da fora de trabalho escrava. verdade, todavia, que no final dos anos 1870 uma terrvel secaassolou o interior de algumas provncias nordestinas, produzindo tantouma avalanche de imigrantes livres para a zona aucareira costeira embusca de emprego quanto uma verdadeira liquidao no preo dos escra-vos das regies secas. A provncia do Cear, fora da zona aucareira, foiumadasmaisdevastadaspelaseca;elaenvioumilharesdeescravospara o sul, e durante a dcada de 1870, enviou mais que qualquer outra23Consul britnico citado por J. H. Galloway, The Last Years of Slavery on the Sugar Plantationsof Northeastern Brazil, Hispanic American Historical Review, 51, 4 (1971), p. 589; AgostinhoMarques Perdigo Malheiro, Discurso, 03/07/1877, in Brazil, Congresso, Cmara dos Deputa-dos, Anais, 1877, 2, p. 23; Stanley J. Stein, Vassouras: A Brazilian Coffee County, 1850-1900,Cambridge (MA), Harvard University Press, 1958, p. 72.24Martins,GrowinginSilence,p.243evejapp.217e234.Cf.Bergad,SlaveryandtheDemographic and Economic History of Minas, p. 118, que usa uma definio de reas cafeeirasmenos restrita para asseverar que j em 1872 [1873] estas teriam 31% dos escravos da provn-cia. Martins tenta argumentar que o trfico intraprovincial no foi to numeroso como outrosautores dizem, mas no nega a direo deste movimento.132 Afro-sia, 27(2002),121-160provncia exceto o Rio Grande do Sul. Como resultado da seca, os senho-res de engenho de Pernambuco aparentemente diminuram sua confiananos trabalhadores escravos, voltando-se especialmente para os morado-res, isto , pessoas livres ou libertas, para as quais garantiam o uso dealguma terra disponvel em troca de servios ocasionais, especialmente napoca da colheita. Estes no representavam qualquer peso quando os ne-gcios desaceleravam.25 Mais pesquisas precisam ser feitas para exploraras dimenses deste fenmeno e descobrir se, de fato, nesta provncia enesta poca, os grandes senhores de engenho venderam seus escravos. NaBahia, no entanto, sabemos que os fazendeiros prsperos conseguirammanter por muito tempo o nmero de escravos em suas terras, comprandoescravos das cidades, de pequenos roceiros e de fazendeiros menos afortu-nados. O que dificultou a vida para estes ltimos foi a rpida subida dospreos, de modo que alguns no podiam comprar escravos dos traficantesque faziam melhores negcios vendendo-os para o Sul.26HebeMariaMattosdeCastromostraqueumresultadodoau-mento dos preos foi a concentrao dos escravos em mos de um nme-ro menor de proprietrios, com os menos aquinhoados vendendo seusescravos para os mais ricos. Outro estudo mostra que o preo dos escra-vos no oeste paulista era mais que o dobro do pago no interior da Bahia.Desta forma, o trfico alterou um pouco o padro de ampla distribuioque datava dos tempos coloniais. Outra conseqncia foi a diminuioda proporo dos escravos nas cidades.27 Na medida em que a proprie-25Conrad,DestructionofBrazilianSlavery,pp.174-76;Conrad,WorldofSorrow,p.182;Galloway, The Last Years of Slavery, pp. 601-602; B. J. Barickman, Persistence and Decli-ne: Slave Labour and Sugar Production in the Bahian Recncavo, 1850-1888, Journal of LatinAmerican Studies, 28, 3 (1996), pp. 614-16, 630; Martins, Growing in Silence, p. 209.26Barickman, Persistence and Decline, p. 595; Slenes, Demography of Slavery, pp. 208-13.27Hebe Maria Mattos de Castro, Das cores do silncio: Os significados da liberdade no sudesteescravistaBrasil,sculoXIX,RiodeJaneiro,ArquivoNacional,1995,pp.104-06,121;Erivaldo Fagundes Neves, Sampauleiros traficantes: Comrcio de escravos do alto serto daBahia para o oeste cafeeiro paulista, Afro-sia, 24 (2000) pp. 110-11. Cf. a posse muito difun-dida de escravos em tempos mais remotos descrita em Stuart B. Schwartz, Sugar Plantations inthe Formation of Brazilian Society: Bahia, 1550-1835, Cambridge (Ingl.), Cambridge UniversityPress, 1985, p. 459. Claro que muitos escravos ainda pertenciam a pessoas relativamente pobres,e.g., Sandra Lauderdale Graham, Slaverys Impasse: Slave Prostitutes, Small-Time Mistresses,and the Brazilian Law of 1871, Comparative Studies in Society and History, 33, 4 (1991), pp.669-94. Este artigo foi publicado em portugus com o ttulo O impasse da escravatura: Prosti-tutas escravas, suas senhoras e a lei brasileira de 1871, Acervo: Revista do Arquivo Nacional,9, 1-2 (1996), pp. 31-68.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 133dade de escravos se concentrava em mos menos numerosas e nas reasrurais e no nos centros urbanos, o nmero de defensores entusisticoscom o qual a instituio da escravido podia contar diminuia.Os deputados provinciais da Bahia tentaram ajudar os fazendei-ros ao adotarem vrias medidas para encorajar os proprietrios urbanosde escravos a deles se desfazerem tornando-os disponveis para os pri-meiros. Muitas vezes tais medidas eram disfaradas nos discursos comosendopassosrumoaoprogressoehumanitarismo,comoocorreuemSalvador. Em 1848, a Cmara Municipal de Salvador imps uma taxa atodososescravosengajadoscomoremadoresnossaveirosusadosnacarga e descarga do ativo porto da cidade, e em 1850, os proibiu total-mente de realizar tal tarefa. Alguns anos depois, estes tambm foramvedados de trabalhar como estivadores.28 As motivaes por trs destasaes so complexas. O presidente da provncia explicou que tais medi-das podiam no s canalizar os escravos para o trabalho nos engenhosde acar, mas tambm impedir que se concentrassem na capital. Semdvida ele ainda se lembrava dos eventos que tinham ocorrido quandotinha sido chefe de polcia da provncia, no tempo da famosa revolta dosafricanos mals de 1835.29 Os moradores da cidade se gabavam queesta medida ajudaria os trabalhadores livres a encontrar emprego, umpasso para o futuro.30 O efeito, todavia, foi mesmo a transferncia dosescravos urbanos para o trabalho rural. Podemos supor que os proprie-trios urbanos de escravos venderiam seus escravos tanto para os senho-28Arquivo Municipal de Salvador, 111.11 - Ofcios ao Governo, 1841-52, da Cmara ao Presidenteda Provncia, Salvador, 21/02/1850, fol. 320v; Lei no 374, 12/11/1849, art. 27-28, e Lei no 607,19/12/1856, art. 2, in Bahia, Colleo das leis e resolues da Assemblia Legislativa e regula-mentos do governo da provnciada Bahia; Manuela Carneiro da Cunha, Negros, estrangeiros:os escravos libertos e sua volta a frica, So Paulo, Brasiliense, 1985, p. 96; Ktia M. de QueirsMattoso,Bahia:AcidadedeSalvadoreseumercadonosculoXIX,SoPauloeSalvador,HUCITEC e Secretaria Municipal de Educao e Cultura, 1978, p. 279, notas.29Cunha, Negros, estrangeiros, p. 97; Dale T. Graden, An Act Even of Public Security: SlaveResistance, Social Tensions, and the End of the International Slave Trade to Brazil, 1835-1856,Hispanic American Historical Review, 76, 2 (1996), p. 269. Sobre aquela revolta anterior con-sultarJooJosReis,SlaveRebellioninBrazil:TheMuslimUprisingof1835inBahia,Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1993.30ArquivoPblicodoEstadodaBahia,M.3118,doSecretriodaPolciaaoPresidentedaProvncia, Salvador, 03/11/1853 (devo esta referncia Sandra Lauderdale Graham); ArquivoPblico do Estado da Bahia, M. 1570, Agentes dos remadores de saveiros ao Presidente daProvncia, Salvador, 20/10/1857, e Arquivo Pblico do Estado da Bahia, M. 1570, Comissoencarregada do festejo dos remadores ao Presidente da Provncia, Salvador, 09/10/1879.134 Afro-sia, 27(2002),121-160res de engenho das reas vizinhas, quanto para os traficantes de escra-vos de longa distncia, dependendo inteiramente do preo que por eleseram oferecidos.Nos primeiros anos do novo trfico, a venda de escravos urbanospara o trfico interprovincial ultrapassou aquela feita pelas reas agr-colas. Alguns dados da provncia da Bahia, relativos a 1854, por exem-plo, demonstram que 60% dos escravos exportados desta provncia vi-nham das vilas e cidades. sugestivo que, ao menos nos anos logo aps1850, 23% fossem trabalhadores com qualificaes urbanas.31 Pode serque neste primeiro momento ainda houvesse uma forte demanda por taisescravos na prspera cidade do Rio de Janeiro. Um anncio tpico colo-cado num jornal do Rio de Janeiro em 1854 falava de Escravos (...)chegados a pouco do Norte, bonitos e moos, entre eles (...) um oficial deourives, uma bonita crioula, uma parda de 18 a 20 anos com habilida-des, um preto padeiro e forneiro, um bonito pardo de 17 anos timo parapagem, e mais pretos e moleques.32Tambm da cidade do Rio de Janeiro, como de Salvador, escravosforam finalmente vendidos em grande quantidade para os municpiosrurais vizinhos. Entre 1864 e 1874, o nmero de escravos na cidade doRio de Janeiro declinou cerca de 53%, enquanto o seu nmero na provn-ciadoRiodeJaneiropermaneceupraticamenteomesmodeantes,adespeito das mortes e alforrias. Durante os dez anos seguintes, a provn-cia tambm perdeu escravos, mas o declnio de 14% em seu nmero foimuito menor do que a perda de 32% na cidade.33 Enquanto isto, escra-vos do Nordeste continuaram a fluir atravs da cidade do Rio de Janeiropara as zonas rurais em nmeros mais altos do que nas dcadas anterio-res,edesteuniversoimpossveldistinguiraquelesquetinhamsidoempregados ao menos por algum tempo na cidade daqueles que eramimediatamente comprados pelos fazendeiros dos vrios traficantes urba-nos em seus grandes ou pequenos armazns e quintais. Dados acerca dos31Slenes, Demography of Slavery, p. 207; Klein, Internal Slave Trade, 1852, pp. 574-75.32Jornaldocomrcio,1854,citadoemRobertW.Slenes,SenhoresesubalternosnoOestepaulista, in Fernando A. Novais (org.) Histria da vida privada no Brasil (So Paulo, Compa-nhia das Letras, 1997), Vol. 2, p. 251.33Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, p. 285.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 135escravos vendidos em dois municpios produtores de caf no vale doParaba mostram um forte crescimento no nmero dos originrios doNordeste.34 Em 1879, o presidente da provncia pediu aos juzes de to-dos os municpios que inspecionassem os registros para preparar infor-maes sobre o nmero de escravos em cada um e as razes do aumentoou diminuio a partir do ano-base de 1872-73. Embora alguns tenhamperdido escravos porque estes tinham sido enviados para fora (distintoda diminuio devida morte ou manumisso), e outros tenham ganhado,entretanto, se tomados todos os municpios em conjunto, os dados mos-tram um aumento lquido na migrao de 16.016 escravos.35No sabemos a relao entre os sexos dentre aqueles vendidos dascidades para o campo, mas provavelmente mais homens que mulheresforam enviados para as plantaes. As mulheres estiveram presentes notrfico transatlntico de escravos parcialmente em razo de decises to-madas na frica por outros africanos,36 mas notvel que mesmo entreos escravos nascidos no Brasil e embarcados para o Rio de Janeiro deoutras partes do pas, a maioria era de homens. possvel que a grandeproporo de mulheres nos trabalhos domsticos pode ter levado os ven-dedores a preferir se desfazer dos homens, mas a demanda por trabalha-dores agrcolas no Sul uma explicao mais provvel. Num exemploexaminado por Klein, entre os 978 escravos que chegaram no Rio em1852, a relao entre homens e mulheres era de 182 para 100, e Conradcita um informe consular britnico preparado em Pernambuco acerca daexportao de 606 escravos (provavelmente tanto africanos como criou-los)naqualataxaeraaindamaisdesequilibrada:209para100.Em1884, a populao escrava total do pas era 53% masculina, mas nestemesmo ano os homens nas provncias produtoras de caf chegavam a34Jos Flvio Motta e Renato Leite Marcondes, O comrcio de escravos no vale do Paraba paulista:Guaratinguet e Silveiras na dcada de 1870, Estudos Econmicos, 30, 2 (2000), pp. 282-90.35Clculos baseados no Quadro estatistico da populao escrava matriculada at o dia 31 dedezembro de 1878 com as alteraes occorridas at aquella data, in Rio de Janeiro (provncia),Presidente, Relatorio, 08/09/1879, Rio de Janeiro, Typ. Montenegro, 1879, apndice. O registrode escravos de 1872/73 estava quase completo j no fim de 1872 porque depois desta data osdonos teriam que pagar uma taxa extra para faz-lo (e queriam registrar seus escravos paraproteger seus direitos de propriedade), Robert Slenes, carta particular, 14/07/2000.36DavidEltis,TheRiseofAfricanSlaveryintheAmericas,Cambridge(Ingl.),CambridgeUniversity Press, 2000, pp. 105-113.136 Afro-sia, 27(2002),121-16055%, enquanto que nas provncias exportadoras do Nordeste, sua per-centagem era apenas 49%.37 Em resumo, as mulheres ficavam para trsenquanto os homens eram enviados para o Sul.Todavia, este execrando trfico incluiu muitas mulheres. Se a pro-poro atingida em 1852 continuou a ser mantida (35% feminina), istosignifica que 3.500 mulheres escravas estavam chegando anualmente noRio de Janeiro por volta dos anos 1870. Destas, muitas, talvez a maio-ria, terminaram como domsticas, enquanto outras se destinavam pros-tituio. Sandra Lauderdale Graham notou que pelo menos um importa-dor no Rio de Janeiro chegou a se especializar no suprimento de bordis.Nestes casos as mulheres iam para as madames quase imediatamenteaps a chegada no Rio de Janeiro, embora outras definhassem no estabe-lecimento do fornecedor por semanas ou meses at que este lhes arran-jassealgumlugar,svezesnasmosdeumaproprietriapobrequedependia da renda de uma nica prostituta escrava para aumentar o par-co oramento. Os compradores, sem dvida, avaliavam e inspecionavamtais mulheres com muito mais cuidado e com diferentes critrios do queo usual para outras compras de escravos que pudessem fazer. Os impor-tadores normalmente indicavam as ocupaes destas mulheres como sendoserviais domsticas, mas em 1871 a polcia encontrou muitas mulheresescravas postas janela a jornal; aquelas que foram alforriadas comoresultado do escndalo do momento eram jovens mulatas, quase todasvindas das provncias nordestinas.38A maioria dos escravos envolvidos no trfico interno, fossem ho-mens ou mulheres, estavam na idade de trabalhar. Os exemplos de Kleine de Conrad mostram que entre 84 e 86% tinham idades entre os 10 e 40anos. O exemplo de Klein mostra uma clara concentrao (38%) de es-cravos na faixa dos vinte anos, e, no exemplo de Conrad eles so aindamais jovens, com 57% deles entre os 11 e 20 anos e outros 14% entre 5e 10 anos.39 Dados coletados por Erivaldo Fagundes Neves acerca das37Klein, Internal Slave Trade, 1852, p. 571; Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, pp. 61,286. Tambm consultar Conrad, World of Sorrow, p. 175.38Sandra Lauderdale Graham, Slaverys Impasse, pp. 671-72, 680 (citado), 681.39Klein, Internal Slave Trade, 1852, p. 572; Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, p. 61,notasVejatambmWarrenDean,RioClaro:ABrazilianPlantationSystem,1820-1920,Stanford, Stanford University Press, 1976, pp. 57-58.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 137vendas para o trfico interprovincial do interior da Bahia, entre 1874 e1884,mostramquedoisterosdetaisescravostinhamentre11e30anos.40 possvel que as crianas freqentemente no fossem contadasou fossem subcontadas, mas mais provvel que os baixos preos obti-dos por crianas muito novas no compensassem o custo de seu trans-porte.41 Se este foi o caso, isto significou uma maior probabilidade deseparaes dolorosas, j demasiadamente comuns.O fato de que os escravos eram tratados como propriedade dianteda lei significa que regras comerciais governavam o trfico de escravose sua venda era sujeita a impostos, calculados na metade da taxa cobra-da sobre as vendas de imveis (a meia sisa). Uma vez que o escravoenvolvido no trfico passava de mo em mo por exemplo, do vende-dor para o traficante de escravos em Salvador, para o capito do naviorumando para o Rio de Janeiro, aqui para outro traficante, depois paraalgum levando os escravos para uma cidade do interior, e finalmentepara o fazendeiro de caf necessitado de trabalhadores , tal taxa teriasido proibitiva se cobrada em cada transao. Em vez disso, o vendedor,em troca de uma compensao adequada, passava uma procurao parao primeiro traficante dando a ele o direito de vender o escravo ou detransmitir os mesmos poderes a outros. Este instrumento legal podia en-to ser passado adiante at chegar ao comprador final. Somente entoeste pagava o imposto.42Restries ao trficoEm contraste com o esforo governamental para encorajar o trfico dascidades para as regies rurais vizinhas, tentativas de restringir a vendade escravos atravs das fronteiras provinciais tiveram uma longa hist-40Neves, Sampauleiros traficantes, p. 102.41Cf. os dados sobre os E.U.A. em Tadman, Speculators and Slaves, p. 171.42Slenes, Demography of Slavery, pp. 155-57, e Slenes, Grandeza ou decadncia, pp. 117-19 e146 nota 40. Slenes mostra que o imposto provincial tinha sido uma porcentagem do valor davenda, mas passou a ser uma quantia fixa a partir de 1859. O imposto no mbito nacional pareceque ainda ficou sendo uma percentagem, de acordo com Candido Mendes de Almeida (org.), CodigoPhilippino; ou, Ordenaes e leis do reino de Portugal recopiladas por mandado del rei D.Philippe I..., Rio de Janeiro, Instituto Philomathico, 1870, Liv. I, Tit. 18, par. 9, n 1 e Apndice, p.1387. Este imposto data de 1809 no regime do Prncipe Regente (depois D. Joo VI).138 Afro-sia, 27(2002),121-160ria no Brasil, comeando em 1700 quando, temendo o declnio da produ-o de acar, a coroa proibiu os senhores de engenho de venderem seusescravosparaosgarimpeirosdeMinasGerais.Talleisemostrouinexeqvel, como um governador logo percebeu, e a coroa a revogou em1709.43 No sculo dezenove, quando as elites polticas e econmicas doNordeste temeram que os proprietrios urbanos de escravos pudessemvender todos seus escravos para as prsperas fazendas de caf do Rio deJaneiroouSoPauloenoparaossenhoresdeengenholocais,elastentaram medidas similares e, ento, muitas destas provncias nordesti-nasimpuseramtaxassobreasexportaesdeescravos.NaBahia,aspessoas que deixassem a provncia com seus prprios escravos comoservidores pessoais tinham que depositar uma cauo que s poderia serlevantada se dentro de quarenta dias apresentassem uma certido do che-fe de polcia da outra provncia atestando que os ditos escravos estavamempregados a servio da pessoa que os tinha levado.44 Como estesimpostos de exportao provinciais tinham tido efeito insignificante, JooMaurcioWanderley(depoisBarodeCotegipe),proprietriodeumimportante engenho na Bahia e uma fora poltica em ascenso, tendosido eleito para o Congresso Nacional, props um projeto em 1854 paratambm aplicar o tratado antitrfico de 1850, com todas suas clusulaspunitivas, ao trfico de escravos interprovincial. A proposta provocouvigoroso debate e foi derrotada, mas seu propsito era claro: bloquear ofluxo de escravos do Nordeste para o Sudeste.45Finalmente, os prprios fazendeiros do Sudeste ficaram preocu-pados com o acelerado fluxo de escravos para suas provncias. J em1871 um legislador provincial de So Paulo props impor uma pesadataxa sobre sua importao. Embora na ocasio o projeto no tenha idoadiante, no final da dcada, a maioria dos deputados o aprovou. O presi-dente da provncia primeiramente o vetou, mas mudou de opinio quan-do os principais fazendeiros do rico distrito cafeeiro de Campinas defen-deram sua aprovao. A medida mais que dobrou o preo dos escravos.43DeJoodeLencastre(Governador-Geral)Cmara,Salvador,30/09/1700,inBibliotecaNacional do Rio de Janeiro, Documentos Histricos, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1928-60, vol. 87 (1950), pp. 34-35; Higgins, Licentious Liberty, pp. 32-36.44Jornal da Bahia, 04/02/1854, p. 3.45Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, p. 66.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 139A motivao por trs desta sua aparentemente enigmtica atua-otemadecertacontrovrsia,eosdebatesnalegislaturapaulistafornecem abundante munio para todas as partes nela envolvidas. PaulaBeiguelman situa a deciso no contexto de uma crescente demanda portrabalhadores nas mais novas regies cafeeiras da provncia de So Pau-lo, onde, acredita ela, os futuros cafeicultores anteviram que somente ofornecimento de imigrantes europeus poderia ser suficiente para satisfa-zer suas necessidades. Uma vez que sabiam que tais imigrantes eramrelutantesemsetransferirparaoBrasilsetivessemquetrabalharaolado de escravos, estes proprietrios de terra apoiaram o incipiente mo-vimento abolicionista e buscaram, como primeira medida, restringir ofluxodeescravosdoNordesteparasuaregio.Encontraramaliadosentre os fazendeiros da rea cafeeira mais antiga da provncia (bem su-pridos de escravos), os quais desejavam aumentar o preo dos escravosecomistodeseupatrimnio.Isto,dizela,explicaaimposiodeimpostos proibitivos sobre a importao de escravos para a provncia.46Robert Conrad, ao contrrio, argi que o real propsito destas aes eraevitar que o Nordeste ficasse livre de escravos e ento pressionasse oSudeste a abolir a escravatura. Desconsiderando aqueles discursos oca-sionaisdosdeputadosqueapoiaramaleidenunciandoaescravido,Conrad insiste que o propsito da lei era, pelo contrrio, preserv-la.47Clia Maria Marinho de Azevedo se centra naqueles discursos que ex-pressavam o medo de que uma avalanche de escravos poderia dominaros seus senhores pela superioridade numrica. Ela acredita que quandoum deputado argumentou que o imposto iria diminuir essa lepra que detodas as provncias do norte (...) vem para a nossa, ele no estava sereferindo instituio da escravatura, mas aos prprios escravos e ssupostas caractersticas de negros. O medo de rebelies levou os repre-sentantes dos senhores de escravos a por fim importao de mais es-cravos, a despeito da sua necessidade de trabalhadores numa economiaem franca expanso.48 Seus dados e outras evidncias discutidas abaixo46Paula Beiguelman, A formao do povo no complexo cafeeiro: aspectos polticos, 2a. ed., SoPaulo, Pioneira, 1977, pp. 33-38.47Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, pp. 170-71.48CliaMariaMarinhode Azevedo,Ondanegra,medobranco:Onegronoimaginriodaselites sculo XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 112-13.140 Afro-sia, 27(2002),121-160melevamaconcordarcomesteltimoargumento.Euacrescentaria,entretanto, que os senhores de escravos sabiam que o trfico de escravosexpunha opinio pblica a verdadeira natureza desumanizante da es-cravatura, negando suas tentativas de pint-la (para os outros e para siprprios) como uma mera forma de trabalho com muitas compensaes,caracterizada pelo benevolente paternalismo no qual a punio s eraaplicada como um corretivo til e como ltimo recurso. Era impossvelmanter tal mito diante dos escravos acorrentados nos navios, ruas, mer-cados de escravos ou marchando para o interior e, como um movimentoabolicionistaestavasendoorganizadonascidadespelaprimeiravez,manter o mito era mais importante que nunca. Em todo caso, no final de1880 e comeo de 1881, as provncias de So Paulo, Minas Gerais e Riode Janeiro criaram impostos de tal monta que virtualmente proibiam aimportao de escravos de outras provncias, assim pondo fim ao trficointerprovincial de seres humanos.49No mbito nacional alguns deputados tambm tomaram medidaspara proibir o trfico interprovincial de escravos, retornando s idiascontidasnapropostafeitaporCotegipeem1854.Em1877,umbemconhecido jurista, Agostinho Marques Perdigo Malheiro, discursou noparlamento para defender que comerciar escravos comprar a fim derevender, agindo como intermedirio , tanto entre as provncias comoem cada uma delas, deveria ser ilegal. O abolicionista Joaquim Nabucoem 1880 advogou que os transportados de uma provncia a outra porterra, fossem declarados livres e que todos os traficantes de escravosfossem pesadamente taxados, para fechar de uma vez para sempre es-ses mercados de carne humana (...) esses focos de corrupo. Como sepode conjecturar, estes dois oradores se opunham escravido, Nabucocomo um radical, Perdigo Malheiro como um moderado. Mas um pro-jeto similar foi proposto na mesma poca por Antnio Moreira Barros,que pertencia a uma das mais importantes famlias de cafeicultores e era49Emlia Viotti da Costa, Da senzala colnia, So Paulo, Difel, 1966, pp. 208-210; Slenes,Demography of Slavery, p. 161, nota 18; Martins, Growing in Silence, pp. 212, 230n. Slenese Martins, que escreveram suas teses antes de ser publicado o livro de Clia Maria Marinho deAzevedo, aceitam a argumentao de Conrad, enquanto Emlia Viotti da Costa j em 1966 eramais perspicaz e abrangente em explicar esta legislao.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 141ele prprio conhecido por sua estridente oposio abolio.50 Final-mente, em 1885 uma lei foi aprovada libertando todos os escravos trans-feridos de uma provncia para outra. Uma vez que as mais importantesprovncias importadoras j tinham inviabilizado o trfico interno de es-cravos,amedidatevesomenteumpequenoefeitosobreogrossodotrfico. Mas o ministro Conservador encarregado de implementar estalei, para espanto da oposio e satisfao de muitos cafeicultores, decla-rou que para seus efeitos o Municpio Neutro (uma espcie de distritofederal desde 1834) deveria ser considerado parte da provncia do Rio deJaneiro, onde estava localizado. A cidade perdeu uma grande proporode seus escravos entre 1885 e 1887, provavelmente por causa das ven-das realizadas para as plantaes.51O trfico como experinciaAs experincias dos escravos envolvidos no trfico interno nunca foramboas. Muitos caminharam grandes distncias rumo aos portos nordesti-nos para embarque para o sul e novamente do Rio de Janeiro ou Santospara as fazendas de caf, sempre sob o olhar atento de um feitor. Outros,porm, fizeram todo o caminho por terra.52 Os escravos desconheciamseu destino, ainda mais que passavam de mo em mo e no do proprie-trio original diretamente para o novo, o que deveria ser bastante ruim.O ex-escravo entrevistado por Stein contou como, na dcada de 1880,ele tinha sido comprado por um traficante itinerante no Maranho que olevou cidade de So Luiz; ali foi vendido para um comerciante para sertransportado por mar para o Rio, onde foi guardado at que um fazen-deiro de caf do planalto o comprou e o enviou de trem at a sede do50Perdigo Malheiro, Discurso, 03/07/1877, in Brazil, Congresso, Cmara dos Deputados, Anais,1877, 2, p. 26; Joaquim Nabuco, Discurso, 04/09/1880, in Brazil, Congresso, Cmara dos De-putados, Anais, 1880, 5, p. 36; Moreira de Barros, Discurso, 12/08/1880, in Brazil, Congresso,Cmara dos Deputados, Anais, 1880, 4, p. 194. Sobre Moreira de Barros ver Robert Brent Toplin,The Abolition of Slavery in Brazil, Nova Iorque, Atheneum, 1972, pp. 60, 188, 233, e Conrad,Destruction of Brazilian Slavery, pp. 170-171.51Slenes, Demography of Slavery, p. 123; Conrad, Destruction of Brazilian Slavery, pp. 224,234, 292.52Conrad, World of Sorrow, pp. 178, 180, 183; Martins, Growing in Silence, pp. 211-12. ErivaldoFagundes Neves acha que os 500 e tantos escravos vendidos de Caitit para So Paulo provavel-mente foram levados a p, o que me parece razovel. Neves, Sampauleiros traficantes, p. 108.142 Afro-sia, 27(2002),121-160municpio de onde ele foi levado para a fazenda.53 Ele teve mais sorteque a maioria: somente os mais ricos fazendeiros vinham ao Rio parafazer suas compras, pois os outros confiavam em intermedirios do pla-nalto que tinham contatos com outros comerciantes do Rio ou em condu-tores de tropas de mulas que entregavam o caf na cidade e levavam devolta escravos, tomados em consignao, para venda. Em tais casos, ofuturo do escravo permanecia numa agonizante dvida, com uma suces-so de estranhos tomando posse dele ou dela. Tudo isto deve ter sidoespecialmenteassustadorparatodosaquelesafricanosquemaisumavez enfrentavam o transporte martimo para portos distantes.Em 1852, os escravos eram geralmente embarcados de porto aporto no Brasil em pequenos grupos, muitas vezes em lotes de cerca dequatro, isto , presumivelmente junto com outras cargas comerciais eno em navios negreiros. Em 1854, um jornal de Salvador, anunciou apartidaparaoRiodeJaneirodeumbarcoquetinhamuitosbonscommodos tanto para passageiros como para escravos e uma escunaque recebia alguma carga mida, e escravos a frete. Por volta dos anos1870, todavia, um maior nmero de escravos passou a viajar junto nosnavios.Slenesencontrouexemplosde51,78emesmo232escravostransportados num nico navio no trfico interprovincial. Mas, em 1880,um passageiro reclamou que no se pode viajar nos paquetes [a vapor]da Companhia Brasileira sem ser acompanhado desta carga humana des-tinada a ser vendida no Sul. Portanto, navios exclusivamente destina-dos a transportar escravos parecem no ter sido comuns.54 Uma viagempor mar da Bahia para o Rio durava aproximadamente quatro dias numvapor (o meio de transporte preferido na dcada de 1870), muito menosque as cerca de seis semanas requeridas pelo trfico da frica, emboraos escravos talvez ainda fossem acorrentados. E como um autor do scu-lo dezenove severamente lembrou aos seus leitores, uma grande propor-o dos transportados atravs do Atlntico tinha morrido no processo deaclimatao e de adaptao sua nova situao; ele sups que isto noocorria no mesmo grau entre aqueles transportados no Brasil, onde as53Stein, Vassouras, pp. 72-73.54Klein, Internal Slave Trade, 1852, pp. 578-79; Jornal da Bahia, 22/02/1854, p. 4, col. 6;Slenes, Demography of Slavery, pp. 150, 174-75; Joaquim Nabuco, Discurso, 04/09/1880, inBrazil, Congresso, Cmara dos Deputados, Anais, 1880, 5, p. 35.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 143doenas eram praticamente as mesmas e a barreira da linguagem virtual-mente ausente.55 Ainda assim, j na dcada de 1850, o trfico foi descritopelo futuro Baro de Cotegipe como um negcio repugnante. Ele disse queera um horror ver crianas arrancadas das mes, maridos separados dasmulheres, os pais dos filhos! Ide a rua Direita, esse novo Valongo, eficareis indignados e compungidos com o espetculo de tantas misrias!56Uma vez que os escravos chegavam no Rio de Janeiro, o negoci-ante a quem eles tinham sido consignados geralmente os tratava bastantemal. Um funcionrio do governo descreveu como o maior fornecedor,Antonio Gonales [sic] Guimares, os amontoava num pequeno espao,fazendo com que muitos ficassem doentes, e concluiu que, embora seuempreendimento fosse um dos melhores da redondeza, ele ainda deixa-vamuitoadesejar.Outrofornecedor,umscionafirmacomercialDuarte, Fonseca e Companhia, que recebia escravos de muitas provnci-as nordestinas e nortistas afirmava que eles eram vestidos, alimenta-dos,alojadosetratadosdomelhormodopossvel,equeosdoenteseram enviados ao hospital. Contudo, dos 38 escravos que ele recebeunumaremessadaprovnciadoCearem1879,22morreramquandoestavam sob sua guarda.57Como foi dito acima, dos portos do Rio de Janeiro e Santos osescravos eram forados a andar longas distncias para as fazendas dointerior de So Paulo, Minas Gerais ou na prpria provncia do Rio deJaneiro. Sidney Chalhoub conta como uma transao de venda de escra-vos ocorrida em 1870 no deu certo e acabou no tribunal. De sua hist-ria podemos vislumbrar algo do negcio. Jos Moreira Veludo formouuma parceria temporria com Francisco Queiroz para transportar escra-vos da cidade do Rio de Janeiro para Minas Gerais e l os vender. Am-bos eram portugueses; Veludo forneceu o capital e os escravos e Queiroz,cuja ocupao normal era caixeiro de comrcio, entrou no acordo forne-cendootrabalho.QueirozdeixouoRiocom24escravos,homensemulheres,trsmulas,umamudaderoupaparaosescravos,mantas,55Conrad, World of Sorrow, pp. 171-79; Soares, Notas estatsticas, p. 135.56Cotegipe, Discurso, 01/09/1854, citado por Nabuco, Um estadista do Imprio, p. 209.57Citado em Sandra Lauderdale Graham, Proteo e obedincia: Criadas e seus patres no Riode Janeiro, 1860-1910, So Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 33.144 Afro-sia, 27(2002),121-160esteirasdedormir,umcaldeiroparacozinhar,xcaras,pratos,caf,acar e outros gneros alimentcios (provavelmente farinha de mandio-ca e carne seca). Ele saiu em maio e voltou em agosto, tendo vendidovinte escravos e retornado com quatro sem vender. Alguns dos compra-dores depois reclamaram que eles tinham comprado mercadoria defeitu-osa, tal como um escravo que sofria de gota e que disse que tinha sidotratadodissonosltimoscincoanos.58Comgotaouno,eleeseuscompanheiros tinham andado a p uma distncia de cerca de 200 quil-metros,sobreumaescarpaquesubiadonveldomara800metros.Queiroz, sem dvida, tinha viajado montado numa das mulas e os escra-vos tinham provavelmente sido forados a carregar parte de sua comidae equipamento. razovel supor que a maior parte dos escravos que noficavam nas cidades se mudavam desta forma para as terras que seriamsua nova casa, mesmo se em perodos posteriores algum trecho da via-gem fosse feito por trem.Uma maneira produtiva de se pensar acerca do significado da ex-perincia dos escravos no trfico considerar alguns casos individuais,relembrando que isto no quer dizer que sejam indivduos tpicos. Ashistrias que emergem dos registros judiciais do Rio, usados primeira-mente por Sandra Lauderdale Graham, depois por Sidney Chalhoub, esubseqentemente por muitos outros historiadores, podem sem dvidaser multiplicadas no s naquela cidade, mas em outros lugares, incluin-do as cidadezinhas onde os registros cartoriais so muitas vezes maisacessveis do que os historiadores anteriormente pensavam. Quando umaquantidade suficiente destas histrias tiver sido recolhida, poderemoscomear a tirar concluses gerais, sendo cautelosos, todavia, em focarnonumaimaginadamdiasociolgicamasnoslimitesdopossvel.Enquanto isso, til analisar vrios indivduos que foram enredados notrfico interprovincial de escravos.Cypriano,umafricanofalanteIoruba,foienvolvidonotrficointerno de escravos antes de 1850. De acordo com o testemunho de seusenhor, ele chegou em Salvador trazido da frica em 1827 e foi batizadodois anos depois. Primeiramente foi colocado como aprendiz de um bar-58Sidney Chalhoub, Vises da liberdade: Uma histria das ltimas dcadas da escravido nacorte, So Paulo, Companhia das Letras, 1990, pp. 44-45.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 145beiro, aparentemente sem sucesso, e depois seu senhor o colocou paratrabalhar como caixeiro num armazm. Cypriano, disse seu propriet-rio, se fez tolo quando o quiz aplicar a caixeiro; ento em 1834 seusenhor o consignou para venda a um capito de navio que se dirigia paraa provncia do Rio Grande do Sul. Nesta provncia, entretanto, zelososoficiais o apreenderam sob suspeita de ter sido mandado da frica de-pois da prohibio do trfico de escravos em 1831. Cypriano testemu-nhou que ele havia chegado a nove luas antes de ser enviado ao RioGrande do Sul, que ele nunca tinha sido batizado, embora um colega seuescravo no armazm o tenha ensinado a rezar, e que, antes de ser enviadopara o sul, suas nicas tarefas tinham sido trabalhar como carregador delenha e de outras mercadorias pelas ruas de Salvador, isto , no comoaprendiz, em ntima proximidade com seu mestre. Testemunhas atestarama veracidade das declaraes do proprietrio, mas ningum, alm do pr-prio Cypriano, falou a seu favor. O jri preferiu acreditar na histria doproprietrio e Cypriano voltou escravido, embora no esteja claro se noRio Grande do Sul ou de volta a Salvador.59 Suas esperanas, surgidascom a ao estatal, foram destrudas pelos oficiais do mesmo estado.Luiz Gama teve uma experincia muito diferente. Sua me erauma mulher africana, j liberta na poca de seu nascimento em Salvador.Implicada na preparao de uma revolta, ela foi forada a abandonar acidade, deixando Luiz para trs. Quando seu pai portugus enfrentoutempos difceis, ele ilegalmente vendeu Gama como escravo com a idadede 8 anos, e o garoto foi levado para o Rio de Janeiro, depois para Santosefinalmente,apparaacidadedeSoPaulo,ondetrabalhoucomocriado domstico numa penso. Ajudado por um hspede, ele aprendeu aler e escrever. Com dezessete anos fugiu, se alistou no exrcito, rebelou-se diante da disciplina que o fazia lembrar a escravido e foi des-ligado com desonra. Ele ento encontrou emprego como compositor gr-fico e logo comeou a escrever artigos, assinando sua coluna Afro.Finalmentesetornoueditordejornal,poetaesejuntousfileirasabolicionistas. Provou na justia que tinha nascido livre e ao fazer isto59Arquivo Pblico do Estado da Bahia, Seo Judiciria, Auto Crime, 04/128/3 (M. 3175, n 3),Autuao da petio de Joaquim de Almeida, 1834, fls. 7, v., 10, 35v.-36v., e Acareao einquirio ad perpetuam (includo no mesmo, mas com paginao em separado), fls. 4-4v., 6v.146 Afro-sia, 27(2002),121-160aprendeu os elementos da advocacia, conhecimento que o levou a traba-lhar para outros afro-brasileiros, assegurando a liberdade a numerososescravos no final dos anos 1870, levando os tribunais a reconheceremque aqueles importados aps 1831 eram legalmente livres assim comoseus descendentes. Gama claramente se identificou com outros, cujasdificuldades eram semelhantes s suas.60Honorata foi trazida por sua senhora, uma lavadeira, da Bahia noincio da dcada de 1860 e foi forada prostituio com 12 anos. Quandotinha cerca de 19 anos, por vezes, teve que se virar por conta prpria,pagando semanalmente uma determinada soma para sua senhora, provi-denciando sua prpria casa, roupas, comida e encontrando seus clientes.O auto-sustento foi uma prtica comum para escravos com profisso,homens ou mulheres, permitindo s vezes algum ganho extra para even-tualmente comprar a prpria liberdade. Quando Honorata contraiu umadoena pulmonar, talvez tuberculose, e buscou a ajuda de sua propriet-ria, esta em vez de providenciar cuidados mdicos, mandou lhe bater.Como todas as prostitutas, ela era particularmente vulnervel a doenasvenreas e seguramente envelheceria prematuramente. Por outro lado,Honoratapdecontarcomumcocheiroparalheemprestaroudarodinheiroparasatisfazerasdemandasdesuasenhoraquandoelanoganhava os recursos necessrios, e com seus clientes para a apoiar numeventual esforo para conseguir a liberdade legal. Respeitveis pro-prietrios de escravos viam a prostituio destes como uma ameaa instituio e, por vezes, atacavam as pequenas madames que fora-vam suas escravas a tal prtica.61Corina, uma mulata, foi vendida para o trfico na Bahia com 20anos, em maro de 1867, e foi logo a seguir comprada, de um fornecedorna cidade do Rio de Janeiro, por uma mulher negra de meia-idade, pro-prietria de bordel, muito conhecida por sua coleo de belssimas (...)mulatinhas escravas (...) todas elas mais ou menos claras (...) todas moas,quase implumes. Corina no continuou jovem por muito tempo. Quan-60Sud Menucci, O precursor do abolicionismo no Brasil (Luiz Gama), So Paulo, Editora Naci-onal,1938;ElcieneAzevedo, Orfeudecarapinha:AtrajetriadeLuizGamanaimperialcidade de So Paulo, Campinas, Editora Unicamp e Centro de Pesquisa em Histria Social daCultura, 1999.61Lauderdale Graham, Slaverys Impasse, pp. 669-83.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 147do deu luz, sua criana com alguns dias lhe foi tirada e entregue comoenjeitada na Santa Casa, para que ela pudesse continuar a prestar osseus servios. Corina foi tratada de muitas feridas sifilticas que surgi-ram em suas pernas e virilhas, de uma inflamao nas glndulas linfti-cas no lado de seu pescoo e de muitas erupes na pele. Quando aindaera atraente, e seus dias se estendiam do fim da manh at as duas ou trsda madrugada, foi capaz de juntar pelo menos trs quartos de seu preode venda num esforo para comprar sua liberdade.62 O tipo de liberdadeque ela teria tido, devido sua doena, s podemos imaginar. Do mesmomodo, no sabemos quantas das 3.500 mulheres embarcadas anualmen-te do Nordeste partilharam o destino de Corina, mas sabemos que elano foi a nica.O desejo de voltar para o norte, para os seus antigos e familiareslugares,emergiucomoumtemacomumentreosescravosnoRiodeJaneiro e seus arredores. Um jovem escravo crioulo enviado de Salvadorno comeo dos anos 1870 e depois vendido para um fazendeiro de caf,tentousemsucessoretraarsuatrajetria.Brulio,filhodaescravaSeverina, tinha sido uma criana to turbulenta que feriu outro garoto edepois foi considerado [que] procedesse (to) mal, que a certa altura apolcia foi chamada para pun-lo. Chalhoub descreve como seu destinopiorou com a morte de seu senhor. Este pardo escuro foi colocado nasmos de uma firma traficante de escravos em Salvador junto com suame e irmo, mas enquanto estes foram mandados para o longnquo RioGrande do Sul, Brulio foi embarcado para a cidade do Rio e depoistransferido para o municpio cafeeiro de Valena na provncia do Rio deJaneiro. De forma nada surpreendente, ele no agradou seu novo senhor,que o colocou mais uma vez venda. Aps ter sido propriedade de mui-tos outros, ele voltou ao Rio de Janeiro, onde se fez passar por livre,tomando ofcio de carpinteiro. As cicatrizes em seus tornozelos feitas62Idem, ibidem, pp. 672-5, com informao adicional sobre o local da venda inicial gentilmenteprovidenciada por Sandra Lauderdale Graham e tiradas dos autos no Arquivo Nacional (Rio deJaneiro), Seo Judiciria, Caixa 1624, no 2781, Juzo de Direito da 2 Vara Civel, Libello deLiberdade pela escrava Corina por seu curador, r: Anna Valentina da Silva, Rio de Janeiro,1869. A descrio do prostbulo aparece num relatrio de 1906, cheio de reminiscncias, prepa-rado por Dr. Jos Ricardo Pires de Almeida e citado em Luiz Carlos Soares, Rameiras, ilhoas,polacas...; A prostituio no Rio de Janeiro no sculo XIX, So Paulo, tica, 1992, p. 44.148 Afro-sia, 27(2002),121-160por um tronco de ferro o traram e a polcia o prendeu sob suspeita de serescravo. Quando seu proprietrio visitou o Rio foi cadeia para ver sehaviaalgumfugitivoefacilmenteretirouBruliodeumafila.Todasestas mudanas de um lado para outro, ocorreram antes que ele tivessevinte e um anos. Na primeira oportunidade que teve aps ter retornadopara seu senhor, Brulio enfiou uma lima usada para fazer palitos dedente de ossos no peito do mesmo, admitindo que pretendia mat-loporqueseuproprietrioeraextremamenteviolentoejtinhamatadodois escravos que o tinham desobedecido. Brulio afirmou que preferia apena de morte a continuar a estar sujeito a este homem.63 Por tais aesBrulio desafiou no s seu senhor mas a escravatura e as instituiesdestinadas a proteg-la. Para ele, e sem dvida para outros, a morte nopoderia ser pior que a escravido. Uma vez que esta deciso fosse toma-da, o sistema estava desdentado.Em 1878, com 27 anos, o escravo Serafim, nascido de um casalafricano em Alagoas, foi embarcado para o sul num navio a vapor juntocom outros seis escravos. Dois traficantes, um em Alagoas e outro no Riode Janeiro, acertaram a transferncia. Enquanto os outros escravos logoencontraram compradores, Serafim deu um jeito para mostrar sua inabili-dade para qualquer emprego, insistindo em ser mandado de volta a Alagoas.Finalmente adoeceu e teve que ser tratado no hospital. Depois atacou umcolega escravo e o traficante chamou a polcia; foi preciso dois policiaispara o submeter e lev-lo dali. Por fim, outro traficante o encaminhou paraMinas Gerais e o vendeu a Domingos Pedro Robert, filho de francs, paratrabalhar na lavoura de caf. Serafim logo fugiu de volta para o Rio deJaneiro, viajando noite a p, e sendo alimentado por escravos de outrasfazendas que devem ter apoiado sua empreitada. Em 1884, Serafim foipreso no Rio por ter lutado com um cocheiro e um policial. Ele prontamen-te declarou que era escravo de Robert, mas este preferiu abandon-lo libertando-o do que gastar a soma necessria para recuper-lo e envi-lo para Minas Gerais o que, julgou Robert, excedia o valor de Serafim.64Na verdade Robert tinha sido derrotado; quantos outros senhores tinhampercebido a futilidade de seu esforo em manter a autoridade?63Chalhoub, Vises da liberdade, pp. 54-56.64Idem, ibidem, pp. 59-65.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 149A venda, na maioria das vezes, era um momento de separao edor. Como um reformista afirmou, o que se fazia com os ndios, faz-sehoje com os escravos, assim deshumana e barbaramente arrancados aolugar do seu nascimento, de suas affeies, e s famlias.65 Os transfe-ridos se viam isolados de seus contatos humanos costumeiros. A estra-nheza do novo ambiente que encontravam certamente aumentava seudesnimo. Mes, irms, companheiras e crianas deixadas para trs de-vem ter sido devastadas pelo vazio deixado por aqueles mandados paralonge. Um caso extremo relatado por Hebe Maria Mattos de Castro: aescrava Justina alm de cuidar de seus trs filhos, tambm cuidava dacriana de outra mulher que tinha sido vendida para o trfico, deixandoseu filho para trs; quando Justina acreditou que o mesmo destino estavapara acontecer com ela, afogou seus filhos e tentou o suicdio.66 Tam-bm ela, devido ao trfico interno de escravos, terminou por lanar umaintolervel luz na horrvel realidade da prpria escravatura.Hoje em dia no preciso mais repetir que os escravos davamgrande valor aos laos familiares. Como um ex-escravo afirmou em 1835,ele tinha uma casa, filho, e tudo aquilo que conta na vida, e no espe-rava ser, pela fora, removido da Bahia.67 Uma evidncia de tais com-promissos com a famlia que, uma vez libertos, os membros da famliafaziam tenazes esforos para restabelecer os vnculos com aqueles dosquais tinham sido separados pela venda. Isto era particularmente difcilde ser feito se os escravos fossem vendidos no para uma fazenda vizi-nha, onde existia a possibilidade de contatos contnuos ou ao menos dese receber notcias, mas para um traficante que os enviaria atravs dotrfico interprovincial para uma regio distante. Maria Ana de Souza doBomfim, uma me que tinha sido alforriada na Bahia, foi para o Rio deJaneiro em 1868 procurar sua filha Felicidade, que para l tinha sidovendida muito antes. Lauderdale Graham mostra que, quando Maria Anachegou ao Rio, sua filha j tinha sido entregue a um comprador em Mi-nas Gerais. A me ento contratou um fornecedor de escravos do Rio,65Agostinho Marques Perdigo Malheiro, Discurso, 03/07/1877, in Brazil, Congresso, Cmarados Deputados, Anais, 1877, 2, p. 23.66Mattos de Castro, Das cores do silncio, pp. 124-27.67Felipe Francisco Serra citado em Reis, Slave Rebellion, p. 226.150 Afro-sia, 27(2002),121-160pagando-o para ir a Minas Gerais procurar a sua Felicidade, compr-lae traz-la com ele para o Rio onde Maria Ana iria pagar sua alforria emprestaes.Esteplanodeucerto,atqueamedeixoudefazerdoispagamentos e houve uma batalha judicial acerca do estatuto jurdico deFelicidade. Sua me finalmente conseguiu que Felicidade fosse conside-rada coartada, isto , libertada condicionalmente com a obrigao defazer pagamentos at completar seu preo de venda, e o tribunal decidiuque tais pagamentos podiam ser convertidos na obrigao das duas, meefilha,prestaremserviosporumperododetrsanos.OsenhordeFelicidade concordou com esta soluo, disse ele, por causa do espritode insubordinao de que natural estar possuda.68 A busca e perseve-rana de Maria Ana foi finalmente recompensada, e a insubordinao deFelicidade, reconhecida como natural, s podia significar um questio-namento da viabilidade do sistema.Na dcada de 1820, Maria Lourindo e seu marido Casemiro ti-nhamsidoescravosdeumsenhordeengenhodeimportantefamliapernambucana.IstonoosimpediudeseremseparadosdesuafilhaVictoriana; um traficante embarcou me e pai para o Rio Grande do Sul,mas o destino de sua filha permaneceu um mistrio. Trinta anos depois ame enviuvada, agora liberta, colocou um anncio num jornal pernam-bucano,esperandoencontrarVictorianaouseusfilhos,seelativessetido algum.69 No sabemos se teve sucesso em localizar sua filha, masseu esforo fala do devastador efeito do trfico interno de escravos e dapersistente afeio materna. Devido importncia de tais ligaes fami-liares, quebr-las trazia srias conseqncias pessoais e sociais.Ser vendido para ser levado da cidade para uma plantao no inte-rioroudeumacidadeoufazendaparaoutraprovnciaeravisto,peloescravo e senhor, como uma punio. No se fazia irrefletidamente. Anica ocasio, antes de 1850, que escravos foram embarcados da Bahiapara o Rio de Janeiro em nmero relativamente grande foi logo aps afamosa revolta mal dos escravos africanos e libertos, ocorrida em Sal-vador em 1835. Carlos Eugnio Lbano Soares mostra que 98 de tais es-cravos s dois nascidos no Brasil chegaram ao Rio de Janeiro vin-68Lauderdale Graham, Proteo e obedincia, pp. 81-82; Chalhoub, Vises da liberdade, p. 51.69Idem, ibidem, pp. 97, 186 nota 76.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 151dos da Bahia num navio, e Joo Jos Reis contou mais de 380 escravosvendidos para fora da Bahia em abril daquele ano.70 verdade que, comoSlvia Hunold Lara, Sidney Chalhoub e Flvio Santos Gomes mostram,freqentemente os escravos desejavam ser vendidos para outro senhor paraescapar do controle daqueles extremamente duros; alguns chegavam atmesmo a indicar uma pessoa especfica a quem desejavam ser transferi-dos.71 Mas no encontrei evidncia de nenhum escravo pedindo para servendido para o impessoal trfico interno. Pelo contrrio, descobri o casode um escravo que ficou to enraivecido quando sua senhora lhe disse queele seria vendido que ele a atacou e tentou mat-la. Joo Reis conta que umgrupo inteiro de escravos que se rebelou, sem sucesso, quando seu senhoranunciou a deciso de vend-los para o trfico interprovincial.72Alguns escravos se mudaram de uma regio para outra na compa-nhia de seus senhores e presumivelmente com a maioria dos outros es-cravos com quem eles tinham trabalhado, como parte de uma unidadefamiliar completa, incluindo suas mulheres e filhos. Vimos que algunsdestes movimentos ocorreram no sculo dezoito entre as regies produ-toras de acar do Nordeste e as reas de minerao de Minas Gerais ealguns senhores de escravos desta ltima se mudaram para provnciasdo Rio de Janeiro e So Paulo no comeo do sculo dezenove para plan-tar caf. bem sabido que muitos fazendeiros de caf ou seus filhos se mudaram das exauridas terras de caf do vale do Rio Paraba doSul na provncia de So Paulo para a recm aberta rea do centro-oestepaulista nos anos 1870, levando seus escravos com eles.73 Foi dito aci-ma, entretanto, que isto ocorreu no Brasil muito menos que nos EstadosUnidos, sugerindo que o trauma da venda foi mais comum para os escra-70CarlosEugnioLbanoSoares,AcapoeiraescravaeoutrastradiesrebeldesnoRiodeJaneiro(1808-1850),Campinas,Ed.Unicamp,2001,pp.358e418nota58;Reis,SlaveRebellion, p. 222. Sobre o medo no Rio de Janeiro, provocado pela chegada de escravos daBahiaapsarevoltadosmals,vejaFlviodosSantosGomes,Histriasdequilombolas:Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, sculo XIX, Rio de Janeiro, ArquivoNacional, 1995, pp. 256-259.71Silvia Hunold Lara, Campos da violncia: Escravos e senhores na capitania do Rio de Janei-ro,1750-1808,RiodeJaneiro,Paze Terra,1988,pp.69-70,158-63;Chalhoub,Visesdaliberdade, pp. 68-73, 76-78; Gomes, Histrias de quilombolas, pp. 346-349.72Reis, Slave Rebellion, p. 223.73Costa, Da senzala colnia, pp. 60-62; Pierre Monbeig, Pionniers et planteurs de So Paulo,Paris, Colin, 1952.152 Afro-sia, 27(2002),121-160vos do trfico interno no Brasil. E mesmo para aqueles que se mudaramcom seus proprietrios, se pode afirmar que alguns dos familiares e ami-gos dos escravos foram deixados para trs, tanto porque pertenciam aoutra fazenda, quanto porque o proprietrio em mudana podia se desfa-zer dos escravos menos teis, numa espcie de venda por motivo demudana, para comprar outros novos, no auge da idade de trabalho,para levar. Assim, como o caso de Honorata demonstra, mudar com oproprietrio no significava necessariamente ter melhor sorte.Deveserlembradoqueosescravossempreforamvendidosdeuma fazenda para outra; se perto o suficiente de sua antiga localidade,um escravo podia visitar seu cnjuge, amante, filhos ou pais num dia defolga, ou aproveitar o tempo de descanso para caminhar quilmetros noite para fazer isto. As condies de trabalho em tais casos podiam sersimilares em ambas as propriedades. Ou, se um escravo era transferido,como pode ter ocorrido nas provncias do Rio de Janeiro ou Minas Ge-rais, de um engenho de acar ou mina para uma fazenda de caf relati-vamente prxima, o trabalho poderia, at mesmo, tornar-se mais leve.Embora o choque pessoal causado por tal trfico no possa ser questio-nado, ele pode ter sido menor do que as experincias de esgaramentovividas por aqueles enviados para lugares distantes e desconhecidos.Quando o trfico representou uma mudana do pequeno proprie-trio para a grande plantao, como foi particularmente caractersticono trfico interprovincial de escravos, o relacionamento entre escravo esenhor foi profundamente alterado, como Hebe Maria Mattos de Castrodemonstrou.74 O escravo, ou a escrava, dificilmente poderia esperar queseu novo senhor soubesse o nome de uma centena ou mais de escravos e,emtodocaso,eramentreguesaumcapatazoufeitor,intermediriosdesconhecidos numa pequena propriedade. As normas de comportamen-to e as expectativas dos escravos diante do que seria a posio apropri-ada do senhor tinham agora que ser reaprendidas e provavelmente ques-tionadas. O significado do trfico interno para aqueles 200 mil ou maisescravos que, s no perodo ps-1850, foram arrancados dos ambientesfamiliares, separados dos que amavam, transportados por grandes dis-74Mattos de Castro, Das cores do silncio, pp. 129-33.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 153tncias e coagidos a trabalhar em tarefas estranhas por senhores ou ca-patazes que no conheciam, no pode ser plenamente deslindado com asfontes que temos; mas podemos tentar.Um trfico perigosoRelativamente jovens, desentranhados da vida social de uma comunida-de, violentamente impedidos de manter contatos com a famlia e amigos o que poderia ter exercido uma influncia moderadora no comporta-mento , os homens assim transportados provavelmente estavam ira-dos, ressentidos, ansiosos, menos constrangidos por expectativas sociaise certamente prontos a explodir. Homens sozinhos sempre tiveram me-nos a perder por sua resistncia ativa. Muitos observadores notaram queos escravos recm transferidos eram mais rebeldes que os outros, sendouma fonte, como disse o abolicionista Joaquim Nabuco, de desordem eperturbao na provncia de So Paulo, ameaando seu desenvolvimento,que tinha sido to promissor, disse ele, quando ela tinha confiado predo-minantemente no trabalho livre.75 Em 1854 os fazendeiros de caf dovale do Rio Paraba do Sul formaram uma comisso para assegurar quetodos estariam preparados para qualquer eventual insurreio de escra-vos de suas fazendas, uma vez que o perigo tinha aumentado, acredita-vam eles, hoje que as fazendas esto se abastecendo com escravos vin-dos do Norte.76 Um historiador do Par, trabalhando junto s fontes,descreve os escravos crioulos comprados de outras partes do Brasil nosculo dezenove como sendo mais turbulentos do que os da frica.77 lgico concluir que aqueles que tinham sido arrancados de seu lugartenderiam a culpar o prprio sistema escravista, pois sua experincia nos os colocou numa situao de hostilidade face a seus novos proprietri-os, mas indicou a eles que os arranjos implicitamente negociados com os75Joaquim Nabuco, Discurso, 04/09/1880, Brazil, in Cmara dos Deputados, Anais, 1880, 5, p.35. O fluxo de escravos vindo da Bahia depois da revolta dos mals em 1835 tambm foi culpa-do, na poca, pelo aumento de rebeldia entre os escravos e libertos, Soares, Capoeira escrava,pp. 355-91, esp. p. 390.76Instruces para a commisso permanente nomeada pelos fazendeiros do municipio de Vas-souras, Rio de Janeiro: Typ Episcopal de Guimares, 1854. Sandra Lauderdale Graham memostrou esta fonte.77Salles, O negro no Par, p. 52.154 Afro-sia, 27(2002),121-160antigos proprietrios tinham sido um mero exerccio de tapeao. Os se-nhores que compravam tais escravos sentiam a inquietao entre eles. Ossenhores de escravos, capatazes e feitores precisavam conhecer e ter algu-ma compreenso sobre os escravos e estes precisavam conhecer aquelesque lhes davam ordens, e isto j no ocorria. A verdade que o controlesempre tinha sido problemtico e era o resultado de uma intrincada nego-ciao silenciosa, contingente a situaes especficas e sempre contestado.Tudo isto agora estava sendo questionado, como mostram muitosautores, e a resistncia escrava se tornava mais clara que nunca. Um depu-tado paulista reclamou que estes escravos traziam com eles vcio, imora-lidade, insubordinao (...) Aqueles fazendeiros que compravam escravosde fora abrigavam assassinos (...) em suas casas. Outro disse que asituao crtica e lamentvel que atravessa a nossa provncia, recebendodiariamente dos portos do norte, no braos que venham aumentar as suasrendas e, conseguintemente, concorrer para a sua prosperidade, mas, emregra geral, ladres e assassinos que vm perturbar a paz do lar domsticoe conservar em constante alarma e sobressalto as famlias e, finalmente, aspequenas povoaes. O presidente da provncia do Rio de Janeiro decla-rou que os escravos trazidos para o sul pelo trfico interno no trazem aresignao e contentamento de sua sorte, que so essenciais boa ordemdelas, e esperava que restringindo o trfico poderia ajudar a manter aordem e tranqilidade dos estabelecimentos rurais.78 Um estudo realiza-do por Robert Slenes sobre Campinas, uma cidade predominantementecafeeira,mostraqueacomparaoentrepropriedadesvizinhasapontapara uma maior inquietao naquelas com mais escravos recm chegados,pela via do trfico interno, do que naquelas com um plantel mais estabele-cido.79 Em resumo, os atos de resistncia individual provocada pelo trau-ma do trfico interno de escravos fez elevar o custo de superviso e segu-rana para os senhores e minou a prpria instituio da escravatura. Tantoos senhores quanto seus crticos estavam conscientes de quo precria avelha ordem estava se tornando.78Citados, respectivamente, em Dean, Rio Claro, p. 137; Azevedo, Onda negra, medo branco, p.117; e Lana Lage da Gama Lima, Rebeldia negra e abolio, Rio de Janeiro, Achiam, 1981, p.98; a ltima citao tambm aparece em Stein, Vassouras, p. 67n.79Slenes, Grandeza ou decadncia, 136.Afro-sia, 27 (2002), 121-160 155AaboliofinaldaescravaturanoBrasilem1888resultoudeinmeros fatores, mas um dos mais importantes foi a ao dos prpriosescravos. Dois principais aspectos deste seu papel, um geral outro espe-cfico,merecemserdestacadosaqui.Comoacabodemencionar,suaresistncia cotidiana, durante muitos anos, corroeu a autoridade da clas-sesenhorial.WarrenDeannotaqueaagitaodosescravoscresceuaps 1850, situao que atribui declinante esperana de manumissocausada pela crescente dificuldade dos senhores em obter novos escra-vos aps o fim do trfico transatlntico e a conseqente relutncia emalforriar os que j possuiam. Mas tambm verdade, como mostra CliaMaria Marinho de Azevedo, que tal como uma vez se pensara, que osafricanos eram mais propensos revolta que os crioulos, os contempor-neos notaram que os crioulos que tinham sido enviados de uma provnciapara outra ou da cidade para o campo eram mais inclinados violnciaou fuga do que aqueles criados na fazenda.80 Como os ndios referidosno incio deste artigo, os escravos transportados pelo trfico interno es-tiveram particularmente dispostos a resistir abertamente sua situaoangustiante e, a despeito de terem sido mudados, conheciam, como osndios, o suficente sobre a paisagem mais sobre a social que a fsica,e mais sobre as cidades e campos cultivados que sobre as florestas parasubverterasregrasdaescravido.Certamente,talcomoMariaHelena Machado, Clia Marinho de Azevedo e Flvio Gomes argumen-tam, as ltimas dcadas da escravido viram muita agitao e inmerosassassinatos de senhores e capatazes, embora no esteja plenamente as-sente se estes incidentes tenham ou no ocorrido mais do que anterior-mente. Afinal de contas, todos sempre dizem que as coisas esto pioragora do que antes, e os trs autores confiaram em testemunhos, no emdados quantitativos, e nem mesmo estudaram sistematicamente a forteevidncia da violncia escrava anterior e o medo ento criado.81 Deve80Dean, Rio Claro, pp. 60, 127; Azevedo, Onda negra, medo branco, pp. 188, 190.81Sobre o incremento de rebeldia escrava ver Maria Helena Machado, O plano e o pnico: Osmovimentos sociais na dcada da abolio, So Paulo, Editora UFRJ/EDUSP, 1994; Azevedo,Onda negra, medo branco, pp. 116-18, 180-99; Gomes, Histrias de quilombolas, pp. 329-334. No estou sugerindo que somente dados quantitativos iriam servir, como faz Ciro Cardosoem Ciro Flamarion Santana Cardoso, Hebe Maria Mattos de Castro, Joo Lus Ribeiro Fragoso,eRonaldo Vainflas,EscravidoeabolionoBrasil:Novasperspectivas,RiodeJaneiro,Zahar, 1988, pp. 85-89. Como j apontei acima, depois da revolta dos mals, houve um pnicono s em Salvador, mas tambm no Rio e provavelmente em outros lugares.156 Afro-sia, 27(2002),121-160tambm ser levado em conta que, se a venda para um traficante era umaforma reconhecida de se livrar de um escravo problemtico, isto , queera mais difcil de ser disciplinado, ento seguramente a proporo detais escravos entre os traficados era mais alta do que entre os escravosem geral. Muito antes dos preos dos escravos comearem a subir, noeraincomumencontrarcasoscomoodeJoo,umescravoangolanovendido na Bahia, em 1847, com a condio de ser enviado para fora daprovncia pois era argido de ter parte no assassinato de seu senhor oudos diversos escravos rebeldes entregues a um comissrio para os ven-der para o Maranho, isto antes de 1806.82 Por todas estas razes ossenhores de escravos ficaram crescentemente preocupados com a disci-plina e cada vez mais temerosos diante do compo