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Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas e Letras - CCHLA Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas NOALDO BELO DE MEIRELES A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PREVENÇÃO E DO COMBATE À TORTURA NO BRASIL E NO ESTADO DA PARAÍBA: Querendo ver a frente das coisas olhando de lado. João Pessoa - PB 2015

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Universidade Federal da Paraíba

Centro de Ciências Humanas e Letras - CCHLA

Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos

Programa de Pós-Graduação

em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas

NOALDO BELO DE MEIRELES

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PREVENÇÃO E DO COMBATE À TORTURA NO

BRASIL E NO ESTADO DA PARAÍBA: Querendo ver a frente das coisas olhando de lado.

João Pessoa - PB

2015

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NOALDO BELO DE MEIRELES

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA NO

BRASIL E NO ESTADO DA PARAÍBA: Querendo ver a frente das coisas olhando de lado.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e

Políticas Públicas do Núcleo de Cidadania e

Direitos Humanos da Universidade Federal da

Paraíba – UFPB, para obtenção do título de

Mestre em Direito Humanos, Cidadania e

Políticas Públicas. Área de Concentração:

Políticas Públicas em Direitos Humanos.

Orientadora: Profª. Dra. Lúcia de Fátima Guerra

Ferreira

João Pessoa – PB

2015

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NOALDO BELO DE MEIRELES

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA NO

BRASIL E NO ESTADO DA PARAÍBA:

Querendo ver a frente das coisas olhando de lado

Examinada em ____ de __________________ de ______.

BANCA EXAMINADORA:

_________________________________

Profª. Dra. Lúcia de Fátima Guerra Ferreira - Orientadora

Universidade Federal da Paraíba - PPGDH

_________________________________

Prof. Dr. Luciano Mariz Maia

Universidade Federal da Paraíba - PPGCJ

_________________________________

Profª. Dra. Maria Nazaré Tavares Zenaide

Universidade Federal da Paraíba - PPGDH

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Dedicatória

Para minha família.

À memória de meu pai.

Para minha companheira Jaciara

Para minhas filhas Mariana e Renata.

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AGRADECIMENTOS

Aos professores do mestrado!

À Professora Lúcia Guerra, pela paciência.

À Luciano Maia e Nazaré Zenaide pela

compreensão.

Aos colegas do CAMT!

À Galera da DIGNITATIS!

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EPÍGRAFE

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MEIRELES, Noaldo Belo de. A institucionalização da prevenção e do combate à tortura

no Brasil e no Estado da Paraíba: Querendo ver as coisas de frente olhando de lado.

2015. 130f. Dissertação de Mestrado em Direito Humanos, Cidadania e Políticas Públicas –

Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa,

2015.

RESUMO

A tortura é um “problema” com o qual a humanidade vem convivendo desde os tempos mais

remotos. Durante a maior parte de sua história, a tortura foi permitida. Inicialmente como

forma de provocar medo e terror aos adversários, passando depois a ser utilizada como pena.

Na Grécia antiga ela vai ser institucionalizada como meio de produção de prova e de buscar a

verdade pela confissão. Desde então, autorizada pelo direito ou ilegal, mas tolerada, a tortura

é um instituto muito importante dentro do aparelho de segurança. Outra característica

marcante que vai surgir desse período é o caráter de classe da tortura, pois ela passa a ser

aplicada apenas aos não cidadãos gregos. Característica que é uma marca forte e fundamental

da prática e tolerância com prática da tortura no Brasil democrático. É na Europa que vai se

iniciar a luta pela abolição, proibição e criminalização da tortura a partir das ideias liberais do

movimento Iluminista no século XVIII. O processo de proibição vai se concretizar com

caráter de universalidade com da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU em

1948. No Brasil, seu uso foi legal até o advento da Constituição do Império em 1824. Desta

data até a Constituição de 1988, ela era ilegal, porém praticada e tolerada. Com esta

Constituição ocorre a sua proibição e, com a Lei nº 9.455/97, a sua criminalização. Porém,

mesmo juridicamente criminalizada e politicamente condenada publicamente (taxada de

abominável, vergonhosa, abjeta, horrorosa, degradante, etc.), classificada como um fenômeno

ultrajante à dignidade da pessoa humana, a tortura é praticada clandestinamente,

principalmente por agentes públicos, contra o que se passou a denominar de classe dos

“torturáveis”. O Brasil, apesar da adoção/ratificação de Tratados do Direito Internacional dos

Direitos Humanos contra a Tortura, bem como da edição de vários instrumentos legais e

iniciativas na esfera administrativa, vem tendo dificuldades para combater, prevenir e,

sobretudo, implementar uma política pública nessa área. A situação não é diferente no Estado

da Paraíba. Este trabalho aponta e busca analisar alguns dos principais problemas para a

efetividade da política de prevenção e combate à tortura, notadamente do Mecanismo

Nacional e Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura, com ênfase no Estado da Paraíba: o

caráter seletivo das vítimas, o seu enraizamento no aparelho de segurança como meio de

produção de prova, a visão equivocada da tortura como fenômeno de desvio de conduta, sua

tolerância pelas autoridades, por sua imunidade, e sua introjeção no meio da população que,

mesmo vítima em potencial, passa a aceitá-la. Analisa também o papel dos principais atores

envolvidos com o tema, tecendo críticas e indicando mudanças de posturas. Reconhecer esses

problemas e encará-los de frente será essencial para o êxito e, passando das palavras aos atos,

possa-se banir a tortura do território nacional.

Palavras-chave: Tortura. Mecanismos de prevenção e combate à tortura. Classe social. Lei nº

9.413/2011-PB. e Lei nº 12.847/2013.

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ABSTRACT

Torture is a "problem" with which humanity has been living since ancient times. For most of

its history, torture was permitted. Initially as a way to provoke fear and terror to the enemies,

then moving on to be used as punishment. In ancient Greece it will be institutionalized as a

means of evidence and search the truth in confession. Another striking feature that will

emerge from this period is that of torture class character because it happens to be applied only

to non-Greek citizens. The heyday of the use of torture will happen between the thirteenth and

seventeenth centuries with the Court of the Holy Inquisition. It is in Europe that will start the

struggle for abolition, prohibition and criminalization of torture from the liberal ideas of the

Enlightenment movement in the eighteenth century. The process of ban will be realized with

universal character with the UN Universal Declaration of Human Rights in 1948. In Brazil, its

use was legal until the advent of the Empire Constitution in 1824. From this date until the

1988 Constitution, it was illegal, but tolerated. With the Constitution is its prohibition and to

Law No. 9,455 / 97, its criminalization. But even legally criminalized and politically publicly

condemned (branded as abominable, shameful, abject, hideous, degrading, etc.), classified as

an outrageous phenomenon to human dignity, torture is practiced clandestinely, especially by

public officials against which is now called class of "torturáveis". Brazil, despite the adoption

/ ratification of treaties of international human rights law against Torture, as well as editing

various legal instruments and initiatives at the administrative level, has been struggling to

combat, prevent and, above all, implement a public policy that area. The situation is no

different in the state of Paraíba. This paper points and analyzes some of the major problems

for the effectiveness of the policy and the fight against torture, especially the National

Mechanism and State Prevention and Fight Against Torture, emphasizing the State of Paraíba.

It also analyzes the role of the main actors involved in the theme, weaving criticism and

indicating changes in the positions. Recognizing these problems and face them head on will

be essential to the success and passing from words to deeds, to be free from torture of the

country.

KEY-WORDS: Torture. Mechanisms to prevent and combat torture. Social class. Law nº

9413/2011-PB. and Law nº 12847/2013.

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SIGLAS E ABREVIAÇÕES

ALEPB – Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba

AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros

ANCED – Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente

APT – Associação para a Prevenção da Tortura

ASBRAD – Associação Brasileira de Defesa da Infância e da Juventude

ASSAC – Associação de Apoio e Acompanhamento - Pastoral Carcerária Nacional

CAT – Comitê contra a Tortura

CDDPH – Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana

CEA – Centro Educacional do Adolescente

CEDDHC – Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão

CEDH-PB – Conselho Estadual de Direitos Humanos do Estado da Paraíba

CENTRIM – Centro de Triagem de Menores

CEPCT-PB – Comitê Estadual de Prevenção e Combate a Tortura no Estado da Paraíba

CF – Constituição Federal

CFP – Conselho Federal de Psicologia

CICV – Comitê Internacional da Cruz Vermelha

CIJ – Comissão Internacional de Jurista

CNJ – Conselho Nacional de Justiça

CNPCP – Comitê Nacional de Política Criminal e Penitenciária

CNTP – Conselho Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis e

Desumanos e Degradantes

CUT – Central Única dos Trabalhadores

DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos

GTMN-BA – Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia

IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

IIDH – Instituto Interamericano de Direitos Humanos

IML – Instituto de Medicina Legal

MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos

MNP – Mecanismos Nacionais de Prevenção

MNPCT – Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

MSC – Mensagem à Câmara

NEVUSP – Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo

OAB – Conselho Federal da Ordem de Advogados do Brasil

OEA – Organização dos Estados Americanos

ONG – Organização não governamental

ONU – Organização das Nações Unidas

OPCAT – Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura

PNDH – Programa Nacional de Direitos Humanos

RENILA – Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial

SEDH – Secretaria Especial de Direitos Humanos

SNPCT – Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura

SPT – Subcomitê de Prevenção da Tortura

TPI – Tribunal Penal Internacional

UOL – Universo On-line

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 - UM FLAGELO QUE ACOMPAHA A HUMANIDADE ....................... 22

1.1 – E o que é a tortura? 26

1.2 – A tortura no mundo ocidental 29

1.2.1 – Antiguidade – Um presente de grego 29

1.2.2 – Na Idade Média – Ardendo nas fogueiras 32

1.2.3 – Modernidade e as luzes do Iluminismo 35

1.2.4 – A crítica às intenções humanitárias iluministas 37

1.2.5 – O retorno a tortura no século XX – Entre russos e americanos 40

1.3 – Brasil – De Cabral a Dilma 41

1.3.1 – Colonização – Índios, negros e rebeldes pobres 42

1.3.2 – Brasil Independente 44

1.3.3 – República – Entre revoltas e chibatas 48

1.3.4 – Tortura nos períodos de ditaduras 49

1.3.5 – A tortura na democracia seria um paradoxo? 52

CAPÍTULO 2 – O ARCABOUÇO NORMATIVO E O SISTEMA DE

PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA ....................................................................... 53

2.1 – O Sistema Universal de Combate e Prevenção à Tortura 57

2.2 - O arcabouço normativo nacional 65

2.3 – A visita de Nigel Rodley 72

2.4 – A criação do Sistema Nacional Combate e Prevenção à Tortura 76

2.5 - A tortura na Paraíba e Conselho Estadual de Direitos Humanos 83

CAPÍTULO 3 – A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DA INDIFERENÇA ........................... 88

3.1 – O Conselho Estadual de Direitos Humanos 85

3.2 – O pioneirismo e o Termo de Adesão ao Plano de Combate à Tortura 85

3.3 – A Lei Estadual de 2011 e o Comitê Estadual – CEPCT-PB 86

2.5.4 - Criação do Comitê Estadual 86

2.5.5 – A atuação do CEDH à luz do OPCAT 87

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 90

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 91

ANEXO .................................................................................................................................... 93

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INTRODUÇÃO

O Relator Especial sente-se compelido a observar a intolerável agressão aos sentidos

encontrada na maioria dos locais de detenção, principalmente nas carceragens

policiais visitadas, agressão para a qual o Relator Especial não tem palavras para

expressar. O problema não foi atenuado pelo fato de as autoridades muitas vezes

estarem cientes e o haverem advertido das condições que descobriria. O Relator

Especial só pôde concordar com a afirmação comum que ouviu daqueles que se

encontravam amontoados do lado de dentro das grades, no sentido de que "eles nos

tratam como animais e esperam que nos comportemos como seres humanos

quando sairmos." RODLEY (2001, p. 47) (Grifo nosso)

Lendo e relendo relatórios oficiais e denúncias das entidades de direitos humanos1,

oficiais ou não governamentais, bem como assistindo ou lendo notícias veiculadas em jornais

(escritos e televisivos) ou ainda na rede mundial de computadores sobre a prática disseminada

e descontrolada da tortura no Brasil, poderíamos fazer uma paródia de versos da clássica e

poética música “Águas de março” de Tom Jobim nos seguintes termos: É pau, é caco de

vidro, é porrada no pé/É choque, é afogamento, é saco plástico no Mané/Não é para todos, é

para João e José/É sangue na boca, no rosto um desgosto, é o fim do caminho?

A prática da tortura nega às suas vítimas uma qualidade inata a todo ser humano, a de

que é portador de dignidade. Inclusive, sua institucionalização como meio de produção de

prova na Grécia Antiga vai ter como vítimas os escravos e estrangeiros, por não terem honra,

negando-lhes dignidade (PETERS, 1989).

Independente do referencial teórico que se parta, pensamento clássico ou doutrina

cristã, a dignidade humana é, de maneira pacificada, o elemento fundante da vida moderna. E

foi sendo incorporado em declarações de direitos produzidas nesse período, quer de forma

direta ou indireta: Bill of Rights (1689), Declaração de Independência dos Estados Unidos

(1776), Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789 e 1793).

A dignidade humana vai ser consagrada em diversos documentos do direito

internacional dos direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos da

1 Segundo Relatório Nacional apresentado ao Mecanismo de Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos

das Nações Unidas em 2012; Primeiro Relatório Relativo à Implementação da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes no Brasil entregue pelo Itamaraty à ONU no ano de 2000; Relatório do Relator Especial das Nações Unidas sobre Direitos Civis e Políticos, incluindo as Questões da Tortura e Detenção, Sir Nigel Rodley, divulgado em março de 2001; Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil I e também o II, ambos elaborados pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e pela Comissão Teotônio Vilela em 1999 e 2002; Estudo realizado por Luciano Mariz Maia, da Universidade Federal da Paraíba e procurador Regional da República (DO CONTROLE JUDICIAL DA TORTURA INSTITUCIONAL NO BRASIL HOJE- À luz do direito internacional dos direitos humanos, 2006); Relatório do Movimento Nacional de Direitos Humanos sobre a Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura e à Impunidade de 2003; RELATÓRIO SOBRE TORTURA: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para prevenção da tortura da Coordenação da Pastoral Carcerária Nacional, lançado em 2010; Relatórios de organizações nacionais e internacionais de direitos humanos como Human Rights Watch, Anistia Internacional, Grupo Tortura Nunca Mais, Centro da Justiça Global, Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos - Direitos Humanos no Brasil 2010.

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Organização das Nações Unidas reconhece a dignidade humana como inerente a todos os

membros da família humana (ONU, 1948).

A Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas

Cruéis, Desumanos e Degradantes, nessa mesma esteira, vai declarar que os direitos iguais e

inalienáveis de todos os membros da família humana emanam da dignidade inerente à pessoa

humana (ONU, 1984).

A Constituição Brasileira consagrou o princípio da dignidade da pessoa humana

como fundamento da República e do Estado Democrático de Direito, art. 1º, inciso III

(BRASIL, 2011, p. 8).

O conceito acima pode ser explicitado pelo seguinte ensinamento de Ernst Bloch

(apud PÉREZ LUÑO, 1992, p. 318) ao destacar que a dignidade da pessoa humana possui

duas dimensões que lhe são constitutivas: a) a negativa, que significa que a pessoa não pode

ser objeto de ofensas ou humilhações; b) a positiva, que presume o pleno desenvolvimento e

autodeterminação de cada pessoa.

É nessa dimensão negativa que a dignidade da pessoa humana vai ser violada pela

tortura, tratando suas vítimas como indignos, cidadãos de papel, de terceira categoria e, assim,

“torturáveis”.

No Brasil o ordenamento jurídico proíbe (Constituição Federal) e criminaliza a

tortura (Lei nº 9.455/97). Temos órgãos do sistema de segurança e justiça encarregados de

combater e punir a tortura (Polícias, representantes do Ministério Público e Juízes) que gozam

de autonomia e não sofrem interferências quer interna quanto externa.

Por sua vez, o Brasil é signatário de todos os instrumentos internacionais de

prevenção e combate à tortura, notadamente da: Convenção Interamericana para Prevenir e

Punir a Tortura da OEA; da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros

Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes; e do Protocolo Facultativo à

Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou

Degradantes.

Embora criminalizada e condenada publicamente (taxada de abominável,

vergonhosa, abjeta, horrorosa, degradante, etc.), classificada como um fenômeno ultrajante à

dignidade da pessoa humana, a tortura é praticada clandestinamente, principalmente por

agentes públicos que têm como obrigação proteger e dar segurança aos cidadãos.

A tortura no Brasil ocorre de forma rotineira e em larga escala, sobretudo em

Delegacias, Presídios, Penitenciárias e Centro de Internamento de Adolescentes. Conforme

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demonstra o banco de dados do SOS Tortura, a maior incidência de práticas de tortura

continua sendo nas delegacias de polícia (40%), seguidas pelas unidades prisionais (21%). A

mencionada pesquisa registra que policiais militares, policiais civis e funcionários de unidade

prisionais são os principais agentes agressores, sendo indicados com autores em mais de 70%

dos casos (BRASIL, 2005, p. 11 e 14).

Por fim, o Relatório do SPT sobre a visita ao Brasil, realizada entre os dias 19 e 30

de setembro de 2011, registra diversas denúncias de casos de tortura (ONU, SPT, 2012, p. 16,

23-24 e 27-28).

No Brasil, a tortura continua sendo utilizada como meio de obtenção de prova,

sobretudo confissão, e como pena mediante a aplicação de castigos. Segundo os dados do

Relatório acima mencionado, esses casos representam 46% dos casos de tortura. Já os casos

de tortura para obtenção de confissão ou informação totalizavam 33% (BRASIL, 2005, pp. 11

e 14).

Na Paraíba a situação não é diferente, diversos relatórios, sobretudo, do Conselho

Estadual de Direitos Humanos2 narram e apresentam indícios de prática de tortura. Um dos

grandes focos da prática da tortura é o complexo penitenciário de João Pessoa, formado por

um presídio feminino, quatro penitenciárias e um presídio-penitenciária3.

O Relatório sobre a tortura no Brasil da Comissão de Direitos Humanos e Minoria da

Câmara dos Deputados de 2005 registra que durante o período de 31 de outubro de 2001 a 31

de janeiro de 2004, o SOS Tortura registrou 32 casos de denúncias de tortura na Paraíba,

sendo que os principais locais de ocorrência eram o Presídio Geraldo Beltrão, Presídio do

Roger e Penitenciária Silvio Porto, todos em João Pessoa (BRASIL. Câmara, 2005).

É de se indagar, diante de diagnósticos que apontam os locais, os agressores, as

vítimas, os meios mais comuns de prática da tortura; da existência no ordenamento jurídico de

2 Relatório de Visitas a Estabelecimentos Penais e a Autoridades da Execução Penal do Estado da Paraíba, no período de 12 a

15 de março de 2012, das Conselheiras do CNPCP GISELA MARIA BESTER e MARIA IVONETE TAMBORIL; Relatório de Visita do Conselho Estadual de Direitos Humanos da Paraíba na Penitenciária de Segurança Máxima Dr. ROMEU GONÇALVES DE ABRANTES - PB1/PB2 - João Pessoa (PB), realizada no 28 de agosto de 2012; Relatório de Visita do Conselho Estadual de Direitos Humanos da Paraíba na Penitenciária Feminina JÚLIA MARANHÃO, em 31 de agosto de 2012; Relatório de Visita do Conselho Estadual de Direitos Humanos da Paraíba na Penitenciária Feminina JÚLIA MARANHÃO 17 DE JANEIRO DE 2013; Relatório da visita ao Presídio Silvio Porto por da Comissão do CONSELHO ESTADUAL DE DEFESA DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO – CEDDHC, em 10 de janeiro de 2006. Relatório de Visita ao Centro Educacional do Adolescente (CEA), localizado em Mangabeira, em João Pessoa, por da Comissão do CONSELHO ESTADUAL DE DEFESA DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO – CEDDHC, em 8 de dezembro de 2004; Relatório de Visita ao CENTRIM (Centro de Triagem de Menores), localizado na rua das Trincheiras, Jaguaribe, João Pessoa, por membros da A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção Paraíba, 3 de junho de 2004. 3 A penitenciária, segundo a Lei de Execuções Penais, art. 87, é destinada ao condenado que cumprirá pena em regime

fechado. O presídio do Roger (Flósculo da Nóbrega) funciona como Cadeia Pública ou Centro de Detenção Provisória. Mas, neste presídio, também vamos encontrar condenados cumprindo pena em regime fechado, inclusive dividindo a mesma cela com presos provisórios (aguardando julgamento ou ainda não condenados definitivamente). PORQUE ORA USA MAÍSCULAS ORA MINÚSCULAS EM TODAS AS LETRAS NOMES E ÓRGÃOS??

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dispositivos legais que criminalização a tortura; bem como um conjunto de mecanismos,

internacionais e nacionais, de monitoramento, prevenção e combate, qual (is) o (s) motivo (s)

para a prática da tortura?

Diversos autores brasileiros vão abordar o problema da tortura e a persistência de sua

prática no Brasil e apresentam diversas e diferentes respostas, diante da complexidade do

fenômeno da tortura no Brasil: Luciano Maia (2006), Luciano Oliveira (2009), Paulo Sérgio

Pinheiro (2000), Maria Gorete Marques de Jesus (2009), dentre outros. MELHOR ORDEM

DA CITAÇÃO NA SEQUENCIA DOS ANOS

O caráter de classe ou o caráter seletivo das vítimas do delito de tortura é uma

característica do uso da tortura desde a sua introdução como meio de obtenção de prova pelos

gregos a partir do século VI a. C. (PETERS, 1989, p. 20). Porém, reservada aos estrangeiros e

escravos e muito raramente aplicada ao cidadão grego e, quando aplicada, apenas em casos de

crimes contra o Estado ou a religião (PETERS, 1989, p. 26).

Surgido entre os gregos, esse caráter de classe vai se consolidar entre os romanos

conforme BIAZEVIC (2004, p.4) e SABADELL (2006, p. 143).

A tortura vai atravessar o oceano Atlântico com os portugueses e aportar em terras

brasileiras, trazendo consigo o caráter seletivo de suas vítimas, uma característica que perdura

até seu os dias atuais.

Entre a chegada dos portugueses, em 1500, e a Independência de Portugal, em 1822,

a tortura era legalizada pela legislação vigente em nosso país, as Ordenações do Reino. A

Constituição de 1824, no seu art. 179, vai abolir oficialmente a tortura. Mas o Código

Criminal de 1830 mantinha as penas de açoites para os escravos (COIMBRA, 2002, p. 152-

153). Entretanto, a tortura jamais vai atingir “os chamados homens bons, os donos de terra ou

nobres vindos de Portugal” (BRASIL, Ministério da Justiça, 2000, p. 14).

O escravo negro tinha um status duplo e antagônico, pois para o direito civil não era

considerado pessoa, era coisa. Porém, para o direito penal, quando acusado, é considerado

imputável (COIMBRA, 2002, p. 150).

Julio José Chiavenato relata que “A própria forma como se comercializam os negros

africanos era reflexo de sua desumanização: não se vendia um negro, dois negros, cinqüenta

negros – vendiam-se ‘peças’;” (1980, p. 123).

Entre a Constituição do Império (1824) e a atual Constituição de 1988, a tortura é

tolerada e largamente praticada como método de investigação e de punição contra os pobres,

negros e miseráveis, “numa dupla discriminação racial e social” (PINHEIRO, 2000, p. 2).

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Assim, mesmo com a Constituição de 1988 que proibiu a tortura e com a Lei nº

9.455/97, que tipificou a conduta como crime, a tortura segue sendo praticada cotidianamente

conforme os diversos relatórios anteriormente citados.

Segundo Luciano Oliveira (1994, p. 32), “essa abolição foi quase sempre um ato

meramente de fachada, ou válida apenas para os bem-nascidos, enquanto a massa de

desprivilegiados permaneceu na condição em que sempre esteve”. Para este autor “ao modo

escravagista, vigente durante quase quatro séculos, sucedeu um capitalismo sem preocupações

sociais e uma democracia de poucos cidadãos (2009, p. 17-18).

Assim, exceto em ocasiões de confronto ideológico e/ou político, como nos períodos

do Estado Novo de Vargas (1937-1945) e da Ditadura dos Militares (1964-1985), a tortura de

forma geral, mantém seu caráter de classe e quase nunca atinge membros da classe média ou

alta, protegidos por suas imunidades sociais. Passado o período das ditaduras ela volta a se

abater sobre os torturáveis, ou seja, “pobres, trabalhadores desqualificados, de preferência

pretos e pardos” (OLIVEIRA, 2009, p. 20), que é vitimizada nas delegacias de polícia, nas

casas de detenções, nos presídios e centros de internamentos de adolescentes (MAIA, 2006, p.

89).

Entenda-se classe dos torturáveis como sinônimo de classe dos despossuídos

conforme definido por Florestan Fernandes (1968, p. 72-74).

A noção de classe dos torturáveis vai surgir no romance “Nosso homem em

Havana”, escrito pelo inglês Graham Greene em 1957, ambientado na Cuba do ditador

Fulgêncio Batista. Ao responder uma indagação do Sr. Wormold (diplomata inglês) sobre

quem seria torturável, o Capitão Segura (policial cubano) afirma: “Os pobres do meu país, de

qualquer país da América Latina. Os pobres da Europa Central e do Oriente. Claro que nos

sistemas de bem-estar social em que vive gente como o senhor não existem pobres ... são

todos intorturáveis” (2007, p. 151-152).

Nigel Rodley (2001), Luciano Maia (2006), Luciano Oliveira (2009), Paulo Sérgio

Pinheiro (2000), Maria Gorete Marques de Jesus (2009), Vera Malaguti Batista (2003), Loïc

Wacquant (2001) apresentam, de forma irrefutável, o caráter seletivo da tortura no Brasil.

QUAL A RAZÃO DESSA SEQUÊNCIA DOS AUTORES?

Quais serão as consequências desse caráter de classe, desse caráter seletivo das

vítimas do delito de tortura na implementação e eficácia de uma política pública de prevenção

e combate a tortura no Brasil? Esta é a questão central objeto do presente trabalho.

Para esse trabalho vamos dialogar com alguns dos aspectos levantados por esses

autores, sobretudo, por Luciano Maia, tentando verificar se alguns encaminhamentos de

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criminologia e políticas criminais são considerados e ou adotados pelos atores envolvidos

com e na solução do problema. Recomendações e medidas de caráter prático que não

demandariam muito esforço e pouco recurso para serem colocadas em prática. MUITOS

ESFORÇOS E RECURSOS

Bobbio afirma que o “problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje,

não é tanto o de justificá-los, mas de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas

político” (1992, p. 24). É preciso colocar o problema da tortura como problema político!

Como fez o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que conseguiu colocar um outro

problema secular brasileiro, também com recorte classista, na agenda política do país: o

combate à fome!

A Presidenta Dilma Rousseff, que foi torturada, mas não pertence a classe dos

torturáveis, vai abrir a agenda política, diante de conjuntura atual tão complexa, para incluir a

tortura na agenda do dia?`

No terceiro ano de minha graduação em direito, 1994, tive, tardiamente, contato com

a obra “Vigiar e punir” de Michel Foucault e, através dela, com “Punição e estrutura social”

de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, o que me despertou o interesse pela temática da prisão

e da tortura. No ano seguinte, 1995, fui selecionado para participar do projeto de extensão

universitária “DENTRO DOS MUROS – O SISTEMA PENITENCIÁRIO”, o que me

permitiu ter contato com a realidade carcerária do Presídio do Roger, localizado na cidade

João Pessoa, e, ao mesmo tempo, iniciar conhecimento direto com as denúncias de maus

tratos e tortura.

Ao assumir, em 2004, a Presidência do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do

Homem e do Cidadão – CEDDHC, atual Conselho Estadual de Direitos Humanos do Estado

da Paraíba4*, passei a conviver com o cotidiano das denúncias de tortura, pois a temática da

violência, maus tratos e tortura era pauta constante das reuniões, quer trazida pelos

representantes da Comissão Pastoral Carcerária, quer por parentes de presos e apenados,

sobretudo após rebeliões. Nesse período tornou-se comum fazermos visitas in loco, apesar da

resistência da Secretaria de Administração Penitenciária e da Juíza da Vara de Execuções

Penais. Uma dessas visitas resultou numa representação ao Ministério Público Estadual, em

2006.

Em 13 de fevereiro de 2006, o Estado da Paraíba assinou o Termo de Adesão ao

Plano de Ação Integrada para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil, que foi subscrito

4 Denominação atual feita pelo art. 1º da Lei nº 9.503/2011. A denominação anterior era Conselho Estadual de

Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão JÁ FOI DITO NO TEXTO!!!.

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pelo Governo do Estado, Conselho Estadual de Direitos Humanos, Tribunal de Justiça,

Ministério Público e OAB-PB, e acompanhei as poucas ações e reuniões do grupo de trabalho

formado para implementar a Plano no Estado da Paraíba. Porém, essa tentativa de se criar um

mecanismo interno de prevenção e combate a tortura sucumbiu após algumas reuniões.

Como segunda questão, a presente pesquisa buscará responder se a prática da tortura,

essa herança maldita, conforme expressão de Maria Vitória Benevides (2010, p.11), que

remonta ao início da colonização brasileira, estaria tão arraigada no cotidiano dos órgãos de

segurança, tolerada pelos imunes e introjetada pelos torturáveis que geraria uma tolerância

com a prática desse delito por parte das autoridades?

Segundo o ex-Ministro da Secretária Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi

as “arraigadas estruturas de poder e subordinação presentes na sociedade e na hierarquia das

instituições policiais têm sido historicamente marcadas pela violência, gerando um círculo

vicioso de insegurança, ineficiência, arbitrariedades, torturas e impunidade” (Brasil, 2009, p.

20).

Mas, os poderes públicos, não fazem nada? Fazem, como será demonstrado a seguir.

Porém, por uma série de vários motivos, que são objetos de análise, não conseguem

implementar as medidas lançadas ou obter os resultados esperados. Faltaria vontade política.

Essa ausência de vontade política vai implicar em medidas paliativas, revestidas de

caráter simbólico conforme descreve Marcelo Neves (1994, p. 31-34), pois não criam as

condições ou estruturas necessárias para a efetivação, quando poderia fazê-lo.

Em 1996 foi instituído o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH,

aprovado pelo Decreto nº 1.904/96. Porém, o Primeiro PNDH não trouxe nenhuma meta

específica sobre a questão a tortura, trazendo tão somente como meta a médio prazo na parte

referente à Proteção ao direito a liberdade “promover o mapeamento dos programas

radiofônicos e televisivos que estimulem a apologia do crime, da violência, da tortura”

(BRASIL, 1996).

A visita do Relator Especial da ONU, Nigel Rodley, ocorrida entre 20 de agosto e 12

de setembro de 2000, vai chamar a atenção do Brasil e do mundo para o problema da tortura.

O Relatório divulgado em 2001 vai fazer recomendações ao Governo de “um conjunto de

medidas a serem adotadas no intuito de assegurar o cumprimento de seu compromisso de pôr

fim a atos de tortura e outras formas de maus tratos” (RODLEY, 2001, p. 1).

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Após a visita do Relator Especial foram adotadas algumas medidas, quer por

iniciativa da sociedade civil, quer por órgãos do Estado, para tentar criar/implementar uma

política de prevenção e combate à tortura, criando-se mecanismos e instrumentos gerais ou

específicos.

Nos dias 30 de novembro e 1º de dezembro de 2000, o Centro de Estudos Jurídicos

do Conselho Nacional de Justiça – CNJ organizou o Seminário “A eficácia da Lei de

Tortura”, durante o qual foi lançado o Pacto Nacional contra a Tortura por representantes dos

Três Poderes e da sociedade civil. O seminário contou com a participação de mais de 1500

representações da sociedade civil e do poder público (MNDH, 2009).

Em maio de 2001, o Movimento Nacional de Direitos Humanos, com o apoio da

Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), lançou a Campanha Nacional Permanente

de Combate à Tortura e à Impunidade com o fim de mover esforços articulados entre

instituições públicas e organizações da sociedade civil para enfrentar e prevenir a tortura, bem

como todas as formas de tratamento cruel, desumano e degradante.

Em 13 de maio de 2002, o Decreto nº 4.229/2002 instituiu o Programa Nacional de

Direitos Humanos –PNDH II, que trazia uma previsão de metas, conforme art. 3º, que seria

detalhada em Planos de Ação anuais, “na forma do Plano de Ação 2002, que consta do Anexo

II deste Decreto” (BRASIL, 2002). Por sua vez, poucas medidas do Programa tinham

pertinência com a temática da tortura, como será exposto no Capítulo II.

Em 2005 é criada a Comissão Permanente de Combate à Tortura e à Violência

Institucional, conforme Portaria nº 102/2005, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da

Presidência da República. A comissão é composta por servidores lotados na Ouvidoria-Geral

da Cidadania e na Coordenação-Geral de Combate à Tortura.

Assim, a mencionada Comissão convidou especialistas para elaboração de um texto

básico para um “Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil”

e, desta forma, ter os elementos necessários ao cumprimento de sua missão institucional. O

eixo central do texto são as 30 recomendações feitas pelo relator da ONU para tortura em sua

última visita ao Brasil, em 2000.

Como resultado do trabalho desses especialistas foi lançado em dezembro de 2005, o

“Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil” e dois outros

importantes instrumentos na área da prevenção e combate à tortura: o “Manual de Combate à

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Tortura para Magistrados e Promotores” e o “Protocolo Brasileiro de Perícia Forense no

Crime de Tortura”.

O Plano de Ações Integradas será uma experiência piloto e visava ser implementado,

inicialmente, em oito estados brasileiros – Paraíba, Pernambuco, Espírito Santo, Distrito

Federal, Acre, Pará, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

O Manual de Combate à Tortura para Magistrados e Promotores redigido por Conor

Foley e publicado pelo Human Rights Centre da University of Essex em parceria com Sub-

Secretaria de Direitos Humanos, em 2005, poderia ter se constituído no valioso instrumento

para ser usado por magistrados e promotores de justiça no combate e prevenção à tortura.

Na Introdução ao Manual, além de enfocar a importância da obra para magistrados e

promotores, Conor Foley aborda com precisão cirúrgica uma questão essencial para o

combate e prevenção à tortura no Brasil que é a tolerância dos membros do sistema de

segurança e justiça (2005, p. 1).

Outro importante instrumento surgido em decorrência dos trabalhos de um dos

grupos de trabalho instituído pela Comissão Permanente de Combate à Tortura e à Violência

Institucional foi o Protocolo Brasileiro de Perícia Forense no Crime de Tortura, lançado

também em 2005.

Em dezembro de 2009 é instituído o Programa Nacional de Direitos Humanos –

PNDH III (Decreto nº 7.037), dividido em VI 6 Eixos Orientadores, que, por sua vez, são

subdivididos em Diretrizes, num total de 25. O Eixo Orientador IV trata da Segurança

Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência, sendo a Diretriz 14 a concernente ao

Combate à violência institucional, com ênfase na erradicação da tortura e na redução da

letalidade policial e carcerária.

Finalmente, a Lei nº 12.847, de 2 de agosto de 2013, institui o Sistema Nacional de

Prevenção e Combate à Tortura, que inclui a criação de Comitê Nacional e de Mecanismo

Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, nos termos das orientações do Protocolo

Facultativo à Convenção da ONU contra a Tortura (Brasil, 2013).

Porém, o Segundo Relatório Relativo à Implementação da Convenção Contra a

Tortura, submetido à consulta pública em dezembro de 2013, relata que a Ouvidoria da SDH

recebeu 877 denúncias de tortura no ano de 2012 e 932 denúncias de tortura no primeiro

semestre de 2013 (BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos, 2013, p. 49).

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Remontando ao passado, José Murilo de Carvalho nos relata que a Inglaterra exigiu

que o Brasil assinasse um tratado que proibia a tráfico de escravos como condição para o

reconhecimento da independência. Este tratado teria sido ratificado em 1827 e em 1831, em

decorrência de previsão do mencionado tratado, foi votada uma lei que considerava o tráfico

de escravos pirataria (2002, p. 45). Ainda segundo Carvalho (2002, p. 46) essa lei não teve

muito efeito prático, pois teria ocorrido grande importação de escravos antes de sua entrada

em vigor e, posteriormente, ocorrera novas importações de escravos, o que levou ao

surgimento da expressão “lei para inglês ver”.

Temos leis e órgãos de prevenção e combate a tortura “para inglês ver”?

No Estado da Paraíba, desde 1992, existe em funcionamento o Conselho Estadual de

Direitos Humanos do Estado da Paraíba-CEDH-PB, criado pela Lei nº 5.551/1992, que tem

uma larga experiência com monitoramento de locais de detenção, utilizando-se do sistema de

visitas periódicas, com relatórios e recomendações.

Por último, tentaremos demonstrar se, sob a luz das orientações do Protocolo

Facultativo, o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Estado da Paraíba já atuaria e teria

as prerrogativas necessárias para ser designado como mecanismo interno estadual de

prevenção e combate a tortura, sendo, portanto, desnecessária a criação de um novo órgão.

O método de abordagem escolhido foi o dialético, visto que, se insere no mundo dos

fenômenos por meio de uma ação recíproca e de contradição inerente ao fenômeno tortura. É,

é na perspectiva dialética que ocorre entre e em natureza/sociedade ACHEI A REDAÇÃO

CONFUSA que se dá uma “verdade-processo”, que assume contextos, configurações

históricas enquanto componentes materiais condicionantes da própria atividade de pesquisa.

Por isso, é possível afirmar, que a toda pesquisa é fundamentalmente da dialética é a da

“especificidade histórica da vida humana: nada existe totalmente dado, eterno, fixo e absoluto.

Portanto, não há nem idéias, nem instituições e nem categorias estáticas” (MINAYO, 2008, p.

111).

A pesquisa buscou uma produção que dialogasse com uma revisão da bibliografia de

referência do tema, privilegiando aspectos políticos, históricos-sociológicos, institucionais,

teóricos e jurídicos, percebendo o processo de construção de enfrentamento a tortura enquanto

elemento central para sistematização das informações produzidas pela ONU, Conselhos,

Comitês, Sociedade Civil Organizada e outros atores. Neste sentido, a coleta de dados se deu

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em construção com uma fundamentação dogmática jurídica, revelando a importância ou

anterioridade temporal da tortura nas sociedades ocidentais contemporâneas.

A escolha da metodologia para o desenvolvimento da pesquisa permite que os

objetivos traçados sejam cumpridos, porém, no caso desta pesquisa, na medida em que

pretende gerar conhecimentos que possam ser utilizados na solução de um problema, novos

elementos metodológicos podem ser utilizados para densificar e abordar em geral os tipos de

violência. Neste sentido, foi preferível uma abordagem histórica – instrumental com uso de

bibliografia existente sobre o tema, assim como da análise documental através do estudo de

relatórios, declarações e documentos produzidos pelos organismos internacionais e nacionais

de Direitos Humanos.

No plano técnico metodológico, a condução partiu de um levantamento teórico

bibliográfico, levando em conta textos constitucionais nacionais, leis, decreto, estatutos,

textos internacionais e legislação internacional de promoção e defesa dos direitos humanos.

Os textos teóricos doutrinários apresentados propuseram perspectivas acadêmicas com

enfoque na produção brasileira, porém, em constante diálogo com uma literatura universal

teórica denominada de clássica, de toda sorte, são até o momento autores que abordam

perspectivas críticas dos temas e oportunizam reflexões que potencializam experiências com

foco na efetivação, fiscalização e promoção dos direitos humanos.

Entendendo documento como qualquer objeto capaz de comprovar algum fato ou

acontecimento. A modalidade mais comum de documento é a constituída por um texto escrito

em papel. Mas, os eletrônicos, disponíveis sob os mais diversos formatos, estão cada vez mais

frequentes (GIL, 2010, p. 31).

Iniciando com levantamento bibliográfico sobre o tema, incluindo legislação, livros,

revistas, pesquisas, monografias, jornais, boletins, em seguida, procedeu-se a coleta de

documentos produzidos pelo Comitê Nacional e Estaduais, bem como pelos Mecanismos

Estaduais (decretos, regulamentos, atas de reunião, editais, relatórios de visitas, relatórios de

atividades, recomendações, etc.).

Por fim, este arcabouço de autores, permitiu um estudo comparativo dos textos,

verificando-se uma avaliação entre a teoria e a prática, conjugando os dados e realidades em

busca de soluções - novas provocações - aos questionamentos apresentados na formulação da

doutrina dos direitos humanos em seu caráter interdisciplinar.

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O presente trabalho está dividido em 3 capítulos. O Capítulo 1 se denomina “Um

flagelo que acompanha a humanidade” e tem por objetivo apresentar as definições de torturar,

fazendo um percurso da história da tortura no mundo ocidental, enfatizando as suas

características a partir do seu ingresso no mundo do direito como meio de obtenção de prova

e, já nessa época, o seu caráter seletivo das vítimas. Ressaltamos que a tortura é parte da

cultura ocidental. Abordamos também a campanha pela sua abolição, proibição e

criminalização a partir das ideias iluministas, bem como a crítica feita aos iluministas e a

relação entre o modo de punir e o modelo econômico. A tortura vai chegar ao Brasil com os

portugueses e vai manter as suas características de meio de produção de prova e de busca da

confissão e seu caráter seletivo.

No Capítulo 2 vamos tratar do arcabouço normativo e do sistema universal de

combate e prevenção à tortura, com ênfase na criação dos órgãos e da adesão do Brasil a esse

modelo. Em nível interno a proibição da tortura pela Constituição e sua criminalização pela

Lei 9.455/97. A criminalização não implicou em erradicação, nem em diminuição de sua

prática em delegacias, presídios e locais de internação de adolescente como será escancarado

tratado/apresentado pelo relatório do Relator Especial da ONU Nigel Rodley. Trataremos

também da criação do sistema nacional, comitê e mecanismo nacional. Por último, vamos

tratar das experiências do Conselho Estadual de Direitos Humanos da Paraíba.

No terceiro Capítulo 3 vamos apresentar as tentativas de implantar um mecanismo

preventivo na Paraíba à luz das normas do OPCAT. As dificuldades decorrentes da

seletividade das vítimas, da falta de vontade política das autoridades brasileiras que não

encaram o problema da tortura com todas as suas variáveis, criando leis sem eficácia social e

órgãos sem a mínima estrutura de funcionamento, dependendo o funcionamento da abnegação

dos militantes de direitos humanos.

Como considerações finais mostraremos que algumas características da formação da

sociedade brasileira, de origem escravocrata, autoritária e individualista, criou uma

mentalidade/relação de dominação e submissão entre os não torturáveis e os torturáveis,

pobres, pretos, moradores das periferias. Por fim a situação se agrava diante da onda

conservadora que assola o país diante do aumento da criminalidade, o que vem gerando, por

um lado uma aceitação/normalização da tortura no meio do povo, mesmo sendo suas vítimas

em potencial, e a campanha de flexibilização da sua proibição absoluta.

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CAPÍTULO 1 - TORTURA: UM FLAGELO QUE ACOMPAHA A HUMANIDADE

São objetivos deste capítulo identificar as características principais que marcam o

fenômeno da tortura na sua trajetória ao longo do tempo e se, alguns desses traços,

permanecem e ainda estão presentes na tortura praticada no Brasil.

Para apresentar suas definições, doutrinárias e normativas, e a justificativa por optou-

se pela análise a partir do sistema universal e não do regional, já a partir da iniciando com a

definição de tortura.

O apogeu do uso da tortura vai ocorrer entre os séculos XIII e XVII, momento de

formação dos Estados modernos e de consolidação do absolutismo monárquico, quando se

consolidará firmará como meio institucional de produção de prova em busca da confissão,

considerada a “rainha das provas”. Coincidindo com o período das grandes navegações e

descobertas. E assim , a tortura vai atravessar o Atlântico e aportar nas terras brasileiras.

Os argumentos dos filósofos iluministas na campanha em favor da abolição da

prática da tortura e de como essas ideias não conseguiram atravessar o Atlântico será outro

objetivo desse capítulo! De igual modo, será exposta a crítica aos iluministas feita por

Rusche, Bloch e Foucault e de como essa crítica não é capaz de explicar a permanência da

tortura.

Talvez a tortura seja uns dos institutos mais antigos ainda em prática no mundo

ocidental, pois sua origem remonta as civilizações do Oriente Próximo. Buscar os motivos

para tamanha longevidade é, quem sabe, fundamental para coibir seu uso e preveni-la de

forma eficaz.

1.1 – E o que é a tortura?

O vocábulo tortura vem do latim, tortura, tendo grafia semelhante em diversas

línguas (tortura, em espanhol e em italiano; torture, em francês e em inglês). Segundo o

dicionário Aurélio, tortura “é suplício ou tormento violento infligido a alguém”. Já o

dicionário Petit Larousse define tortura como sendo o “suplício que é infligido a alguém”.

Edward Peters, na História da tortura, demonstra que a definição de tortura variou ao

longo dos anos, porém “aqueles que mais se debruçaram sobre esta questão obtiveram

respostas extraordinariamente semelhantes” (1996, p. 9).

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Retiramos de Peters (1996, p. 9) três definições de tortura. A primeira é de Ulpiano,

jurista do século III: “Por quaestio [tortura] devemos entender o suplício e o sofrimento do

corpo com o objetivo de se descobrir a verdade”. A segunda é do advogado romano Azo,

século XIII, para quem tortura “é a averiguação da verdade por meio do suplício”. A terceira é

a de Bocer, advogado de direito civil do século XVII: “A tortura é um interrogatório feito por

meio do suplício do corpo, a respeito de um crime que se sabe que ocorreu, legitimamente

ordenado por um juiz com a finalidade de se descobrir a verdade sobre o referido crime”.

A definição normativa de tortura surge na Convenção das Nações Unidas contra a

Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, de 10 de dezembro

de 1984, como sendo (art. 1º):

[..] qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são

infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira

pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato cometido; de intimidar ou

coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em

discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimento são infligidos

por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por

sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. (CEPCT-PB, 2013, p.

27)

Essa definição de tortura é a mais aceita no direito internacional e os três elementos

fundamentais para a definição de tortura nela constante, vão aparecer em todas as outras

definições. Esses elementos são: a) a ocorrência de dores ou sofrimentos agudos, físicos ou

psicológicos; b) a existência de uma intenção deliberada; c) o fato de tais dores ou

sofrimentos serem infligidos por funcionário público ou pessoa no exercício de função

pública, ou por sua instigação ou com seu consentimento ou aquiescência.

A definição constante na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura,

de 9 de dezembro de 1985, vai na mesma direção ao definir, no seu art. 2º, a tortura como

sendo

[...] todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou

sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de

intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com

qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, em uma pessoa,

de métodos que tendem a anular a personalidade da vítima ou diminuir sua

capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica.

(CEPCT-PB, 2013, p. 820

A Lei da Tortura, como ficou conhecida a Lei nº 9.455/97, estabelece no seu art. 1º,

incisos I e II (BRASIL, 1997):

Art. 1º Constitui crime de tortura:

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24

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe

sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira

pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de

violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de

aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Como se pode observar, a Lei da Tortura inovou e ampliou um pouco mais o conceito,

criando um tipo penal aberto e como crime comum, que será objeto de análise no capítulo 2, e

o que levou, como já exposto, a se optar pela utilização da definição constante na Convenção

Contra a Tortura da ONU.

Há definições de tortura que enfatizam o caráter moral e/ou sentimental. Nesse sentido

é a definição de tortura encontrada no Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle

da Tortura no Brasil, como sendo “um fenômeno degradante da dignidade da pessoa humana.

Apesar de sua proibição pelos instrumentos internacionais e pelo ordenamento jurídico

interno, essa prática é recorrente no cenário atual” (MONTENEGRO e MAMEDE, 2005, p.

2).

Nessa direção é a definição de Elizabeth Odio Benito (2004, p. 7), extraída do

Prefácio ao Protocolo Facultativo à Convenção da ONU, organizado pelo Instituto

Interamericano de Direitos Humanos – IIDH e pela Associação para a Prevenção da Tortura –

APT:

A tortura constitui uma das violações mais flagrantes dos direitos fundamentais dos

seres humanos. Destrói a dignidade das pessoas, degradando seu corpo e abrindo

feridas, muitas vezes irreparáveis, em sua mente e em seu espírito. As conseqüências

nefastas dessa terrível violação dos direitos humanos estendem-se à família das

vítimas e a seu círculo social. Com a prática da tortura os valores e princípios sobre

os quais se assentam a democracia e toda a forma de convivência humana perde

significado.

A Associação para a Prevenção da Tortura – APT, uma das principais entidades que

trabalham a prevenção e combate à tortura no mundo, tem a tortura como “a pior das

violações dos direitos fundamentais da pessoa. Ela destrói sua dignidade, seu corpo e seu

espírito e tem efeitos nefastos sobre sua família e sua comunidade” (APT, 2013).

Criminalizada internacional e nacionalmente, repudiada por governos, organismos e

entidades de direitos humanos nacionais e internacionais, porém a tortura é praticada

cotidianamente nas delegacias, presídios e locais de internamentos de adolescentes etc., nos

mais diversos rincões do Brasil.

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25

Por que está prática resiste? Por que seus perpetradores, servidores públicos, fazem

uso da tortura mesmo correndo riscos de perda do cargo e de irem presos? Ou não correm?

Por que continuam utilizando-a como meio ilegal para produção de prova? Não há outros

meios para produção dessas provas? E as vítimas, quem são? Para entender o presente, é

preciso jogar um olhar sobre o passado.

1.2 – A tortura ao longo tempo

A origem de uma invenção tão feroz ultrapassa os limites

da erudição, e é provável que a tortura seja tão antiga quão

antigo é o sentimento do homem dominar despoticamente

outro homem, quão antigo é o caso de que nem sempre o

poder vem acompanhado pelas luzes e pela virtude.

(VERRI, 1992, p. 90)

A tortura é um “problema” com o qual a humanidade vem convivendo desde os

tempos mais remotos. A sua prática constitui um flagelo que se combate, sem que, entretanto,

se consiga erradicar.

Hoje criminalizada e condenada publicamente, taxada de abominável, vergonhosa,

abjeta, horrorosa, degradante, etc., classificada como um fenômeno ultrajante à dignidade da

pessoa humana, a tortura é praticada clandestinamente, principalmente por agentes públicos

que têm como obrigação proteger e dar segurança aos cidadãos, ou praticada de maneira

permitida em circunstâncias específicas em alguns ordenamentos jurídicos (JESUS, 2009,

p.10; e GONÇALVES, 2009, p. 134).

Dar-se-á ênfase na mudança do perfil das vítimas da tortura ao longo do tempo, bem

como na situação legal da tortura.

1.2.1 – Na Antiguidade

Oh, eu não sei se eram os antigos que diziam/Em seus

papiros Papillon já me dizia/Que nas torturas toda carne se

trai [...] (Zé Ramalho, 1978)

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Talvez sejam os Assírios5, um dos povos mesopotâmicos, que tenham utilizado a

prática da tortura, primeiramente, contra os povos conquistados. Soldados de povos em guerra

com os Assírios preferiam o suicídio a tornarem-se prisioneiros deste povo. Porém, a tortura

não era empregada como pena, castigo ou para obter informação, ela tinha como objetivo

disseminar o medo e o terror entre os povos adversários.

Souto Maior relata que: “A crueldade dos assírios era proporcional à eficiência de

seus exércitos. Arrancavam os olhos aos vencidos e cortavam-lhes as línguas. Muitos eram

empalados, outros eram esfolados vivos” (1973, p. 41).

Por sua vez, o penalista espanhol Luis Jiménez de Asúa (apud SZNICK, 1998, p. 22),

nos relata o uso da tortura pelos persas, mas já com um sentido de pena,

[...] os persas, na Antiguidade, colocavam o condenado amarrado em dois botes, só

com a cabeça e os membros de fora. Untavam-no com mel e leite o rosto, os

membros e as costas. Viravam-no para o sol. Não demorava muito e o corpo era

invadido pelas moscas que, aos poucos, o dilaceravam.

Mário Coimbra (2002, p.15) nos traz a seguinte passagem da Bíblia, retirada de

Josué (Jos 7, 24-26):

Então Josué, na presença de todo o Israel, pegando em Acã, filho de Zaré, com o

dinheiro, o manto, a barra de ouro, seus filhos e filhas, seus bois, seus jumentos,

suas ovelhas, sua tenda e tudo o que lhe pertencia, levou-os ao vale de Acor.

Chegando ali, Josué disse: ‘já que foste e nossa perdição, o Senhor te perca hoje!’ E

todos os filhos de Israel o apedrejaram. Depois foram queimados no fogo. E

lançaram sobre Acã um grande monte de pedras.

Também o Eclesiástico (Ecl. 33,27) admite a tortura contra os escravos: “Jugo e redá

dobram o pescoço, e ao escravo mau torturas e interrogatório”.

Mas, é na Grécia que a tortura vai ser utilizada pela primeira vez como meio de

obtenção de prova, inicialmente reservadas aos escravos e estrangeiros. Foi aplicada ao

cidadão grego apenas nos casos de crimes contra o Estado ou a religião.

Este é o ponto de vista externado por Daniza Biazevic (2004, p. 4):

[...] a doutrina majoritária prefere ensinar que os gregos foram os primeiros a usar da

tortura sistematicamente na instrução criminal, como meio de prova, contra,

principalmente, os escravos. A idéia era a de que ‘a dor por eles sentida substituía o

juramento que os seus senhores prestavam de dizer a verdade’. Assim, ‘somente

eram supliciados aqueles que, por serem carecedores de honra, não traziam, consigo,

a dignidade de pessoa’.

5 “Os Assírios são descendentes diretos de Assur, filho de Sem, neto de Noé. Dessa terra saiu Assur, que

construiu Nínive, Reobot-Ir, Cale e Rasen, entre Nínive e Cale. Está última é a maior.” (Gn 10.11-12).

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Já para Dalmo Dallari (1992, p. XVII), na Grécia

[...] onde a exaltação do espírito atingiu as culminâncias, houve prática de tortura,

como no caso altamente expressivo do filósofo Zenão de Eléia, torturado

barbaramente por determinação do tirano Nearco, no século quinto antes de Cristo,

acusado de estimular a subversão.

Por fim, é possível constatar a existência da tortura e aquilatar a severidade das

punições aplicadas aos que cometiam crimes políticos na Grécia por essa passagem do

Górgias de Platão (apud BRUNO, 1978, p. 77):

Nessa passagem, diz Polos, em diálogo com Sócrates: ‘Que um homem

surpreendido ao cometer um crime, como o aspirar à tirania, submetido em seguida à

tortura, a quem dilaceram os membros, queimam os olhos e depois de haver sofrido

em sua pessoa tormentos sem medida e de todas as classes e haver visto padecer

outros tantos à sua esposa e filhos, é por fim crucificado e queimado vivo.

A tortura foi um dos costumes apreendidos da cultura grega pelos romanos e que a

utilizaram, inicialmente, da mesma forma que os gregos: contra escravos e estrangeiros.

Porém, conforme relata Biazevic (2004, p. 04), com o passar do tempo o seu uso foi se

ampliando:

Na fase do Império, o processo sofreu grande transformação, restringindo-se em

grande parte o direito de acusação, que foi cedendo lugar à acusação ex officio e ao

procedimento extra ordinem, tendo sido a tortura oficialmente introduzida. Em certo

momento, até mesmo as testemunhas podiam ser torturadas, embora existissem

alguns privilégios em razão da classe social do indivíduo.

O caráter de classe da tortura surgido entre os gregos vai se perpetuar entre os

romanos. Dois episódios são bastante ilustrativos, o de Jesus de Nazaré, filho de carpinteiro, e

o do apóstolo Paulo, cidadão romano.

No Evangelho de Lucas (Lc 22, 63-65) encontramos a seguinte passagem: “E os

guardas caçoavam de Jesus e o espancavam. Cobriam-lhe o rosto, e diziam: Faze uma

profecia! Quem te bateu? E o insultavam de muitos outros modos”.

Por sua vez, nos Atos dos Apóstolos (At 22, 24-29), temos:

Então o tribuno mandou recolher Paulo na fortaleza, ordenando que o interrogassem

debaixo de açoites, para saber o motivo por que gritavam tanto contra ele.

Enquanto estavam amarrando Paulo com correias, ele disse ao centurião aí presente:

“É permitido a vocês açoitar um cidadão romano sem ter sido julgado?” Diante

dessas palavras, o centurião foi prevenir o tribuno: “Veja bem o que vai fazer! Esse

homem é cidadão romano!”. Então o tribuno foi e perguntou a Paulo: “Diga-me,

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você é cidadão romano?” Ele respondeu: “Sou sim”. O tribuno disse: “Eu precisei de

muito dinheiro para adquirir essa cidadania” Paulo falou: “Pois eu tenho essa

cidadania de nascença”. Os que estavam aí para torturá-lo, imediatamente se

afastaram. Até o tribuno ficou com medo ao saber que Paulo era cidadão romano, e

que mesmo assim o havia acorrentado”.

O filho de Deus pode ser torturado, mas o filho da aristocracia romana não pode!

Segundo Peters (1989, p. 27), após o século II d. C, ocorreu a divisão da sociedade

romana nas classes dos honestiores e humiliores, o que teria tornado a “classe dos humiliores

passível dos meios de interrogatórios e punições, antes adequados apenas aos escravos”.

Os romanos, segundo Ana Lucia Sabadell (2006, p. 143), regulamentaram a tortura

judicial e sua definição é encontrada no Digesto de Ulpiano: “Devemos entender a ‘questão’

como tormentos e dores corporais para extorquir a verdade, por isso a simples interrogação ou

a leve ameaça de tormento não são regulamentadas por essa lei”.

Em outra passagem do Digesto, citado também Sabadell (2006, p. 143), temos que a

tortura não se aplicava em todos os casos e a todas as pessoas:

O decreto do divino Augusto é configurado deste modo: as questões não devem ser

decididas sempre em toda cousa e pessoa, mas quando os malefícios capitais e

atrozes não podem ser investigados e esclarecidos de outro modo a não ser por

tortura dos servos, a tortura é muito eficaz na averiguação da verdade.

Esta questão do caráter seletivo sobre quem recaía a tortura será retomada mais

adiante em capítulo próprio. Porém, já nesse momento, merece registro essa citação feita por

Peters (2009, p. 40):

A antiga divisão entre homens e escravos livres?? e entre patrícios e plebeus, incluía

para os romanos a idéia de dignidade pessoal, honra, estima, respeito. Ao definir

dignitas, CíceroO?? (De inventione, 2, 166) declarou: ‘A dignidade é prestígio

honroso. Merece respeito, honra e reverência’.

Na fase final da Idade Antiga, a tortura vai alternar momentos de condenação e de

permissão. Em 382, o Sínodo Romano, presidido pelo Papa Dâmaso, edita alguns cânones que

“declara expressamente que não são livres de pecados os funcionários civis que ‘condenaram

pessoas à morte, deram sentenças injustas e exerceram a tortura judiciária’”

(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1991, p. 284).

Porém, algumas décadas depois, a De Civitate Dei, obra de Santo Agostinho, já não

“chega a condenar a inclusão da tortura no Direito Romano, mas repudia a sua aplicação”

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(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1991, p. 283 284). Em seguida a Epístola VI do Papa

Inocêncio I (401-417) vai inaugurar o consentimento implícito: “Pediram-nos a opinião sobre

aqueles que, após haverem recebido o batismo, tiveram cargos públicos e exerceram a tortura,

ou aplicaram sentenças capitais. A este respeito nada nos foi transmitido” (ARQUIDIOCESE

DE SÃO PAULO, 1991, p. 284).

Mário Coimbra (2002, p. 16-17) afirma que a tortura teria sido uma importante

instituição na antiguidade e que se definiria como sendo

‘o tormento que se aplicava ao corpo, com o fim de averiguar a verdade’, sendo que

sua base psicológica sedimentava-se no fato de que, mesmo o homem mais

mentiroso, tem uma tendência natural de dizer a verdade; e, para mentir, há a

necessidade de exercer um autocontrole, mediante esforço cerebral. Inflingindo-se a

tortura, esse tem que canalizar suas energias, para a resistência à dor, culminando,

assim, por revelar o que sabe, no momento que sua contumácia é debilitada, pelos

tormentos aplicados.

Ainda hoje é esse o método utilizado pelos torturadores, principalmente para os casos

em que objetivam recolher informações que acreditam estar de posse da vítima.

O período de formação dos Estados modernos e de consolidação do absolutismo vai

ser o do auge do uso da tortura. Esse período vai marcar o uso legal da tortura como meio de

obtenção de prova, sobretudo da confissão.

1.2.2 – Na Idade Média – Ardendo nas fogueiras

Eu vi Cristo ser crucificado

O amor nascer e ser assassinado

Eu vi as bruxas pegando fogo

Pra pagarem seus pecados

Eu vi!... (Raul Seixas, 1974)

Ana Lucia Sabadell leciona que a “justificativa do recurso à tortura devido à

necessidade de desvendar a verdade tem sua origem no direito romano e é resgatada pelos

juristas do ius commune” (2006, p. 142-143).

Porém, antes de se abater sobre as bruxas, a tortura vai ter como novas vítimas, entre

os séculos XI e início do século XII, “os criminosos conhecidos” e os “mais inferiores dos

homens”, que “devem ser submetidos a torturas, isto é, ao julgamento do fogo ou da água

fervendo” (PETERS, 1989, p. 60).

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Conforme relato de Pietro Verri, “o uso sistemático da tortura ocorreu após o século

XI, na Europa, atingindo seu apogeu entre os séculos XIII e XVII, com a inquisição”, (1992,

p. 98):

A introdução metódica da tortura, que ocorreu após o século XI, talvez se origine do

mesmo princípio que levou a instituir os julgamentos de Deus: ou seja, quando se

quis incluir como uma irrefletida temeridade o juízo do eterno motor do universo nas

mais frívolas questões humanas, quando, colocando um ferro em brasa na mão ou

mergulhando o braço na água fervente e às vezes atravessando a pira de madeira

ardente, se decidia a inocência ou a culpa do acusado.

A Inquisição Medieval teve início em 1184, em Verona, com o Papa Lúcio III. Em

1198, o Papa Inocêncio III, lidera uma cruzada contra os albinenses do sul da França,

promovendo execuções em massa. Finalmente, em 1229, sob a liderança do Papa Gregório IX

foi criado o Tribunal do Santo Ofício (NOVINSKY, 1988, p. 15).

Domingos de Gusmão, criador da Ordem dos Dominicanos, cria em 1219 uma

confraria chamada de “milícia de Jesus Cristo”, e “seus membros eram doutrinados e

preparados para se lançarem à frente da batalha pela preservação da pureza do catolicismo”

(NOVINSKY, 1988, p. 16).

Assim, a partir do século XIII, a tortura passa a fazer parte diversos códigos

processuais, entre eles: Castella de Afonso X, a Sicília de Frederico II e a França de Luís IX

(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1991, p. 284-285).

É exatamente neste período que a Igreja passa a admitir o uso processual da tortura,

quando em 1244, o Papa Inocência IV aprova a legislação penal de Frederico II e, em 1252,

com a Bulla Ad Extirpanda, que faz a Promulgação de Leis e Constituições que devem ser

observadas por Magistrados, e Oficiais seculares contra Hereges, e os cúmplices e protetores

deles, orienta que “os hereges, sem mutilação e sem perigo de vida podem ser torturados a fim

de revelar os próprios erros e acusar os outros, como se faz com os ladrões e salteadores”

(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1991, p. 284-285).

Mesmo São Tomás de Aquino, considerado o maior pensador da Idade Medieval,

admite que “não havendo outro recurso para se apurar a verdade, é justa a aplicação da

tortura, mesmo sobre um inocente” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1991, p. 285).

Em 1376 surge uma das obras mais marcantes sobre o uso da tortura, o Directorium

inquisitorium (Manual dos Inquisidores), escrito pelo dominicano Nicolau Eymerich.

Leonardo Boff (1993, p. 14) informa que

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Sua importância é tão grande que, depois da Bíblia (o Livro dos Salmos é de 1457),

foi um dos primeiros textos a serem impressos, em 1503, em Barcelona. E quando o

Vaticano quis reanimar a Inquisição para fazer frente à Reforma protestante mandou

reeditar o livro como manual para todos os inquisidores, primeiro em Roma, em

1578, 1585 e 1587, e depois em Veneza, em 1595 e 1607.

Posteriormente o Manual dos Inquisidores foi transcrito e complementado pelo,

também dominicano, Francisco Peña, que redigiu uma “obra minuciosa de 744 páginas de

textos com 240 outras de apêndices” e que foi publicada em 1585 (BOFF, 1993, p. 14).

Há uma semelhança muito grande entre o interrogatório na Inquisição, orientado pelo

Manual do Inquisidor (É NO SINGULAR OU NO PLURAL??), e os interrogatórios durante

o período da ditadura militar no Brasil, com base no Manual do torturador, pois em ambos se

buscava tirar da boca do acusado “toda a verdade” e para “fazer confessar seus crimes”,

instigavam a delação, não seguiam ordem jurídica, os processos não obedeciam às

formalidades do Direito e o modo de proceder no interrogatório, com os artifícios, e as

repetições dos interrogatórios (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1991, p. 285-287).

Os três primeiros casos enumerados para que a tortura fosse empregada pelo Manual

do Inquisidor são (GOULART, 2002, p.27):

1. Tortura-se o acusado que vacilar nas suas respostas, afirmando ora uma coisa, ora

outra, sempre negando os argumentos mais fortes da acusação. Nestes casos,

presume-se que esconde a verdade e que pressionado pelo interrogatório, entra em

contradição. (...)

2. O suspeito que só tem uma testemunha contra ele é torturado. Realmente, um

boato e um depoimento constituem, juntos, uma semiprova, o que não causará

espanto a quem sabe que um único depoimento já vale como um indício. (...)

3. O suspeito contra quem se conseguiu reunir um ou vários indícios graves deve ser

torturado. Suspeita e indícios são suficientes (...).

Hoje, nas delegacias, tortura-se suspeitos acusados de pequenos furtos para que

confesse o ato delituoso, bastando para tanto o testemunho de um acusador insuspeito.

Relata Ernst Bloch (2011, p. 416) que alguns acontecimentos do século XVII, como

epidemias, guerras, a expansão do comércio e a ratio do mercantilismo tiveram como

consequência “uma necessidade crescente de mão-de-obra, acarretando consigo a tendência a

uma conservação útil do delinquente”, e arremata6:

Apenas quando a prosperity do capitalismo incipiente (sem introduzir escravos

negros) faz sua aparição, é que a penitenciária se fez mais rentável que a forca, e se

6 No original: Sólo cuando la prosperity del capitalismo incipiente (sin introducir esclavos negros) hizo su aparición, la penitenciaría se hizo más rentable que la horca, y se dejó de penar el menor delito con penas corporales. Sólo entonces se hizo la justicia em cierta medida humana.

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deixou de punir ao menor delito com penas corporais. Só então se fez justiça com

alguma medida humana.

Para a burguesia já ficara muito claro que os resquícios do feudalismo europeu eram

obstáculos à livre acumulação e circulação de capital. Essa nova classe, demograficamente

pequena, mas economicamente já muito poderosa, precisava de liberdade empresarial,

liberdade de comércio, liberdade para contratar e explorar força de trabalho, liberdade para

obter lucros, liberdade para transformar tudo em mercadoria, inclusive a terra, cuja

propriedade era monopólio legal da aristocracia e do alto clero.

1.2.3 – A Modernidade e as luzes do iluminismo

É também na Europa que surge o movimento de combate à tortura, pela sua abolição

como prática e proibição legal. A partir do século XVIII, sob a influência das ideias

iluministas (Thomasius, Verri, Beccaria, Voltaire, Montesquieu, etc, entre outros.7), a prática

da tortura passa a ser questionada e, gradualmente, vai sendo formalmente proibida em todo o

continente e demais países do “mundo civilizado”.

No entanto, já no século XVI, o humanista cristão João Vives, em seu comentário a

De Civitate Dei, de Santo Agostinho, rejeita decididamente a tortura:

como podem viver tantos povos, inclusive bárbaros, como dizem os gregos e latinos,

que permitem torturar durissimamente um homem de cujos delitos se duvida? Nós

homens dotados de todo senso humanitário, torturamos homens para que não

morram inocentes, embora tenhamos deles mais piedade do que se morressem:

muitas vezes os tormentos são de longe, piores do que a morte..."

(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1991, p. 288).

Em 1705, Christian Thomasius, publica em Halle, sua dissertação De tortura ex foris

christianorum proscribenda, na qual defende “a exclusão da tortura dos processos penais, por

ser uma pena desproporcional e contra a justiça em geral, bem como por ser contra o senso

cristão de justiça e de proporção” (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1991, p. 289).

Segundo Ernst Bloch (2011, p. 502), denominava-se de Direito imperial “ao conjunto

da tortura, por meio de fogo, o desconjuntamento, a roda, os seccionamentos, a ruptura de

7 Thomasius, De tortura ex foris christianorum proscribenda, 1705; Beccaria, Dos delitos e das penas, 1764;

Voltaire, Tratado sobre a Tolerância, 1763; Montesquieu, Do espírito das leis, 1748; Verri, Observações sobre a

tortura, escrito entre 1770 e 1777, mas publicado tão somente em 1804.

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ossos e outros meios de prova no interrogatório penal”8, e esse Direito imperial era

empregado “aos despossuídos, aos que estavam completamente à margem da sociedade, aos

camponeses expulsos de suas terras, aos soldados licenciados e a outros vagabundos forçados,

condenados ao delito já desde o século XVI”9.

Por último, Bloch (2011, p. 503) transcreve uma proclamação feita por Thomasius na

obra Sobre a eliminação da tortura do tribunal dos cristãos10

:

Pela tortura é imposto ao acusado, ainda não condenado, uma pena que excede em

crueldade aquela com a qual seria castigado se fosse completamente comprovada

sua culpa. Horrível perversão do exercício do poder punitivo! O que pode ser

considerado mais injusto, mais distante de toda justiça que dilacerar a pobres

pessoas, às quais ainda não foi provado nada, com penas tão cruéis que fazem

estremecer o ânimo de quem ainda tem um leve sentimento de humanidade?

Em 1764, Cesare Beccaria publica Dos delitos e das penas, obra de grande

importância não somente no combate à tortura, mas também no processo de humanização das

prisões e para o surgimento do princípio da presunção de inocência. Esta obra de Beccaria

influenciou a mudança na legislação de diversos países da Europa.

Beccaria se contrapõe ao uso da tortura durante o processo seja para arrancar

confissões, quer para esclarecer contradições, quer para descobrir os cúmplices (2001, p. 62).

A inutilidade do uso da tortura é advogada Beccaria (2001, p. 62), pois: “Ou o delito é certo,

ou incerto. Se é certo, só deve ser punido com a pena fixada pela lei, e a tortura é inútil, pois

já não se tem necessidade das confissões do acusado. Se o delito é incerto, não é hediondo

atormentar um inocente?”

Por fim, alerta Beccaria (2001, p. 65) para o perigo das injustiças que as confissões

obtidas mediante tortura podem produzir:

A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver

o celerado robusto. É esse, de ordinário, o resultado terrível dessa barbárie que se

julga capaz de produzir a verdade, desse uso digno dos canibais, e que os romanos,

mau grado a dureza dos seus costumes, reservam exclusivamente aos escravos,

vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado.

8 No original: El conjunto de la tortura por meio del fuego, el descoyuntamiento, la rueda, los seccionamientos,

el quebrantamento de huesos y otros médios de prueba em el interrogatório penal. 9 No original: (...) a los desposeídos, a los que hallaban completamente fuera de todo carril, a los campesinos

arrojados de sus tierras, a los soldados licenciados y a otros vagabundos forzosos, condenados al delito ya desde

el siglo XVI. 10

No original: Por la tortura se impone al desdichado acusado, todavía no convicto, una pena que excede en

crueldad a aquella con la que seria castigado de ser completamente probada su culpa. !Horrible perversíon en el

exercicio del poder punitivo! ?Qué puede ser pensado más injusto, más lejano a toda justicia que dilacedar a

pobres gentes a las que todavía no se ha probado nada con penas tan crueles que hacen estremecer el ánimo en el

que aliente todavía un leve sentimento de humanidad?

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Nas Observações sobre a tortura, escrito entre 1770 e 1777, mas publicado tão

somente em 1804 ISSO JÁ FOI DITO EM NOTA DE RODAPÉ, publicado em 1804, sete

anos após a sua morte, Pietro Verri (1992, p. 78-79) apresenta três argumentos para se

contrapor ao uso da tortura. O primeiro é que “os tormentos não constituem um meio de

descobrir a verdade”. E explica:

Todo criminalista, por pouco que tenha empregado este infeliz método, haverá de

me assegurar que não raro réus robustos e determinados sofrem os tormentos sem

nunca abrir a boca, decididos antes a morrer de dor do que reconhecer a culpa.

Nesses casos, que não são raros nem inventados, o tomento é inútil para a descoberta

da verdade. Muitas outras vezes, o tortura?? se confessa culpado do crime; mas

todos os horrores que acima apresentei e desenterrei das trevas do cárcere, onde

jazeram por mais de um século, não bastaram para provar que esses muitos infelizes

se declararam culpados de um crime impossível e absurdo, e que consequentemente

a tortura lhes arrancou uma sucessão de mentiras e jamais a verdade?

A posição contrária à tortura defendida por Pietro Verri (1992, p. 104-105) é

fundamentada em diversas autoridades da Antiguidade, tais como Cícero, Quintiliano e

Valério Máximo, bem como em vários filósofos modernos, notadamente: Schaller, Nicolas,

Ramirez de Prado, Segla, Rupert, Wissemback, Wesenbeck, Matheus, Thomasius e John

Graevius.

No Tratado sobre a intolerância, Voltaire nos conta o famoso caso da morte de Jean

Calas, comerciante e de religião Calvinista, acusado de ter estrangulado o próprio filho, e que,

9 de março de 1762, na cidade de Toulose, é supliciado até à morte. Narra Voltaire (2000, p.

20/21):

O motivo da sentença era tão inconcebível como todo o resto. Os juízes, que

estavam decididos pelo suplício de Jean Calas, persuadiram os outros que esse

ancião fraco não poderia resistir aos tormentos e que confessaria, sob as torturas

aplicadas pelos algozes, seu crime e aquele de seus cúmplices. Ficaram

desconcertados quando esse ancião, ao morrer na roda, rogou a Deus em testemunha

de sua inocência e o conjurou a perdoar seus juízes.

A abolição oficial da tortura no direito criminal acabou por se estender praticamente a

toda a Europa durante o século XVIII e princípios do século XIX, até ao ponto de Vítor Hugo

poder anunciar em 1874 que “a tortura cessou de existir” (PETERS, 1985, p.12).

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Deixou de existir de forma legal, mas continuou sendo praticada de forma

clandestina, e seu retorno no século XX será marcado pelo discurso da sua necessidade para

garantir a ordem.

1.2.4- A crítica às intenções humanistas dos iluministas

Para Georg Rusche (2004, p. 109) a reforma do sistema penal defendida pelos

reformadores iluministas dirigia-se “contra a estupidez e a crueldade da punição” e “contra a

incerteza e arbitrariedade dos tribunais criminais”. Se a questão da natureza da pena afetava

principalmente os pobres, já “os problemas de uma definição mais precisa de direito

substantivo e do aperfeiçoamento dos métodos do processo penal” interessa a burguesia, pois

esta ainda não havia “ganho a batalha pelo poder político e procurava obter garantias legais

para sua própria segurança” (RUSCHE, 2004, 109).

A estreita relação entre o sistema de produção e os métodos punitivos são tidas como

óbvias para Rusche, afirmando que todo “sistema de produção tende a descobrir formas

punitivas que correspondem às suas relações de produção” (2004, p. 20). E arremata o citado

autor: “O sistema penal de uma dada sociedade não é um fenômeno isolado sujeito apenas às

suas leis especiais. É parte de todo o sistema social, e compartilha suas aspirações e seus

defeitos” (2004, p. 282).

Ernst Bloch (2011, p. 414) vai abordar a questão da mudança nos métodos punitivos

asseverando que, mesmo mantendo seu caráter retributivo, pois entende que pena é vingança,

“é olho por olho, dente por dente”, “a medida da pena e a execução da pena com a situação no

mercado de trabalho”11

.

Na alta Idade Média, nos ensina Bloch (2011, p. 414), que a pena do “olho por olho”

foi substituída por penas monetárias, pois as terras agricultáveis estavam pouco povoadas e

precisavam de força de trabalho. Parte da pena monetária ia para o senhor feudal,

representando uma renda suplementar.

Porém, na baixa Idade Média esse quadro se modificou, posto que, com o

desaparecimento da economia natural, o mercado de trabalho não conseguia absorver toda a

mão-de-obra (BLOCH, 2011, p. 415). Esta situação levou “camponeses pauperizados a

tomarem as estradas como mendigos, vagabundos e salteadores”, provocando distúrbios

11

No original: (...) la medida de la pena y la ejecución de pena varían com la situación en el mercado de trabajo.

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sociais que começaram a representar um perigo para a autoridade. Desses delinquentes não se

podia obter-se nada, a pena monetária perdeu interesse e, em seu lugar, surgiu as penas

corporais com seu “triplo efeito de vingança, intimidação e aniquilamento”. Apenas Henrique

VIII enforcou 72.000 vagabundos (BLOCH, 2011, p. 415).

A partir deste momento, o processo penal era iniciado de ofício, seguindo princípios

públicos, “entregava o acusado sem nenhuma proteção a um funcionário que era, ao mesmo

tempo e de modo profundamente parcial, juiz de instrução e juiz penal” (BLOCH, 2011, p.

415).

Relata BLOCH (2011, p. 416) que alguns acontecimentos do século XVII, como

epidemias, guerras, a expansão do comércio e a ratio do mercantilismo tiveram como

consequência “uma necessidade crescente de mão-de-obra, acarretando consigo a tendência a

uma conservação útil do delinquente”, e arremata12

:

REPETIDO P. 32!!!

Apenas quando a prosperity do capitalismo incipiente (sem introduzir escravos

negros) faz sua aparição, é que a penitenciária se fez mais rentável que a forca, e se

deixo de punir ao menor delito com penas corporais. Só então se fez justiça com

alguma medida humana.

Em Vigiar e punir, Michel Foucault (2003, p. 63) apresenta a questão do combate

contra o suplício como estando generalizado na segunda metade do século XVIII “entre os

filósofos e teóricos do direito; entre juristas, magistrados, parlamentares” e que era preciso

“punir de outro modo”. Assim, o suplício tornou-se rapidamente intolerável, revoltante e

vergonhoso, “considerado da perspectiva da vítima, reduzida ao desespero e da qual ainda se

espera que bendiga ‘o céu e seus juízes por quem parece abandonada’”.

Foucault (2003, p. 64) registra que se glorifica “os grandes ‘reformadores’ –

Beccaria, Servan, Dupaty ou Lacretelle, Duport, Pastoret, Target, Bergasse” por terem

“imposto essa suavidade a um aparato judiciário e a teóricos ‘clássicos’ que, já no fim do

século XVIII, a recusavam, e com um rigor argumentado”.

Para Foucault (2003, p. 66) a verdade é que:

a passagem de uma criminalidade de sangue para a criminalidade de fraude faz parte

de todo um mecanismo complexo, onde figuram o desenvolvimento da produção, o

aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral maior das relações de

propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um policiamento mais estreito da

população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, captura, de informação: o

12 No original: Sólo cuando la prosperity del capitalismo incipiente (sin introducir esclavos negros) hizo su aparición, la penitenciaría se hizo más rentable que la horca, y se dejó de penar el menor delito con penas corporales. Sólo entonces se hizo la justicia em cierta medida humana.

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deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma extensão e de um afinamento

das práticas punitivas.

Vamos constatar que, para Foucault (2003, pp. 69-70), não ocorreu apenas uma

mudança no método punitivo, ocorreu uma grande transformação nas instituições e o

surgimento do que ele denomina de sociedade disciplinar:

Durante todo o século XVII, dentro e fora do sistema judiciário, na prática penal

cotidiana como na crítica das instituições, vemos formar-se uma nova estratégia para

o exercício do poder de castigar. E a ‘reforma’ propriamente dita, tal como ela se

formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos, é a retomada

política ou filosófica dessa estratégia, com seus objetivos primeiros: fazer da

punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à

sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade

atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais

profundamente no corpo social o poder de punir.

Porém, a mudança na situação econômica, os dois conflitos mundiais, o contexto do

período da “Guerra Fria”, as ditaduras latino-americanas e o neo-colonialismo na África irão

fazer a tortura reaparecer.

1.2.5 – O retorno da tortura no Século XX – Entre russos e americanos

Como a história não é um caminho em linha reta e linear, na Europa o período entre

as duas guerras vai ser marcado pelo “crescimento do desemprego, pelo declínio dos salários

reais e pelo crescimento do processo de pauperização da classe média, embora não com as

mesmas taxas em todos os países” (RUSCHE, 2004, p. 223), e, junto com a crise, o aumento

da criminalidade. Ressurge, então, “a noção de que a política de repressão é um caminho

satisfatório para combater o crime” (2004, p. 241).

Segundo relato de Rusche (2004, p. 246), na Alemanha, pouco a pouco

todas as garantias pelas quais o liberalismo lutou desde fins do século XVIII foram

destruídas. Tornaram-se desnecessárias para a defesa e proteção das classes

dominantes, uma vez que a demarcação entre práticas lícitas e ilícitas nos países

fascistas é determinado em qualquer caso por um acordo direto com a burocracia,

enquanto o resto da classe média deve entender que a redução das garantias legais é

uma consequência necessária à sustentação de sua posição social. (Grifo nosso)

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A eclosão da Segunda Guerra Mundial e as atrocidades cometidas, sobretudo nos

campos de concentração, palco de maus tratos, torturas, experiências cientificas e extermínio,

levou a ONU à adoção, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH.

O direito de não ser torturado é positivamente reconhecido, inicialmente, no art. 5º da

DUDH, ao estabelecer que “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo

cruel, desumano ou degradante”.

A partir da DUDH, marca na internacionalização dos Direitos Humanos, quase todos

os países do mundo aderiram aos instrumentos internacionais do sistema global de proteção

aos direitos humanos incorporando em suas constituições e normas infraconstitucionais o

conteúdo das declarações de direitos humanos.

Porém, nem a adoção da DUDH, em 1948, nem o Pacto Internacional dos Direitos

Civis e Político, de 1966, o qual proibia a tortura, em seu art. 7º, foram capazes de por termo a

tortura. Segundo Dallari (1992, p. XXII), nesse período “houve a comprovação de largo uso

de tortura, com métodos bastante sofisticados, nos países submetidos a governos militares, o

que chamou a atenção do mundo para a sobrevivência dessa prática bárbara e covarde neste

final de século vinte”.

Esta constatação levou a ONU a aprovar a Convenção das Nações Unidas contra a

Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, em 10 de

dezembro de 1984.

Essa questão da manutenção da ordem levará a prática da tortura nos regimes de

exceção a se abater contra os inimigos do Estado, internos ou externos, como ocorreu no

Brasil durante a ditadura militar e em diversos outros países da América Latina.

1.3 – Brasil – De Cabral a Dilma

[...] seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e

nela morra morte natural para sempre, e que depois de

morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, aonde

em lugar mais público dela seja pregada em um poste até

que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em

quatro quartos, e pregados em postes pelo caminho de

Minas, no sítio de Varginha e de Cebolas, aonde o réu teve

suas infames práticas e os mais nos sítios de maiores

povoações, até que o tempo também a consuma. Trecho da

sentença de Tiradentes (TEIXEIRA e DANTAS, 1979, p.

167).

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No Brasil a tortura é proibida desde a Constituição de 1824 (art. 179, inciso 19),

porém, foi apenas com a Constituição Federal de 1988, marco histórico no nosso ordenamento

jurídico com relação a uma série de temas, que a questão da tortura começou a ter um

tratamento à altura do problema.

Qual seria o legado deixado pelo regime escravista, autoritário e violento que marcou

a formação do Estado Brasileiro?

1.3.1 – Colonização – Índios, negros e pobres

No Brasil a tortura é praticada desde o período colonial contra índios, escravos,

negros libertos, pobres e rebeldes (insurgentes).

O Primeiro Relatório relativo à implementação da Convenção contra a Tortura e

outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes do Brasil (Ministério da

Justiça, 2000, p. 13/14) atribui à herança cultural portuguesa a origem da tortura no Brasil. As

concepções da organização político-administrativa e de todo o aparato da justiça, bem como a

vigência no Brasil das Ordenações do Reino até as primeiras décadas do século XIX, que

expressavam as concepções punitivas predominantes na Europa do século XV ao século XIX,

tendo nas penas corporais o principal instrumento de punição.

Outra herança portuguesa apontada no Primeiro Relatório e que irá marcar toda a

formação da sociedade brasileira, com relevante implicação sobre o delito de tortura, é que as

Ordenações do Reino “previam também a aplicação de penas diferentes segundo a condição

social do agressor e da vítima” (Ministério da Justiça, 2000, p. 13-14).

O modelo de colonização adotado, devido ao endividamento da Coroa Portuguesa,

foi o de utilizar “recursos de particulares, valendo-se do regime das capitânias hereditárias”

(SOUTO MAIOR, 1972, p. 52). As capitânias hereditárias no Brasil consistiam em grandes

áreas de terras transferidas aos donatários em troca do pagamento de alguns tributos. Pelo

contrato denominado de Foral não se transferia a propriedade da terra, mas “grandes poderes

políticos, judiciários e administrativos, e, obviamente vantagens econômicas” (SOUTO

MAIOR, 1972, p. 53).

Podemos verificar que, com fundamento no foral, os donatários podiam, dentre

outras coisas (SOUTO MAIOR, 1972, p. 53):

a) escravizar índios e vendê-los sem tributo algum;

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b) exercer jurisdição cível e criminal em suas terras, podendo condenar à morte

escravos e homens livres. Apenas os nobres escapavam à sua alçada. Em caso de

traição ou heresia, contudo, poderiam ser condenados a degredo;

A exploração econômica do Brasil Colônia iniciada com o pau-brasil e depois com a

cana-de-açúcar é fundada na mão-de-obra escrava. Inicialmente indígena, marcada pela

violência devido à resistência dos índios em se submeterem ao cativeiro.

Horácio de Almeida nos relata a existência de um clérigo chamado de Nigromante na

Capitania de Pernambuco durante a administração de Duarte Coelho (1966, p. 163):

Da capitania de Pernambuco foi senhor e povoador Duarte Coelho. Nunca nele

houve conversão de gentio; guerras muitas e alguns combates de franceses em vida

do referido Duarte Coelho e muito mais em tempo de seu filho Duarte de

Albuquerque Coelho, o qual deu tantas guerras aos índios com favor de um clérigo,

que se tinha por nigromante.

Pelo episódio a seguir narrado por Horácio de Almeida é possível termos a dimensão

dos tormentos a que foram submetidos os nossos indígenas (1966, p. 164):

O clérigo nigromante de que trata a informação era o legendário Padre do Ouro, o

jesuíta Antônio de Gouveia, a ovelha negra do seu rebanho, protegido de Duarte

Coelho de Albuquerque. Não só esse inescrupuloso bruxo matava o infeliz gentio,

como ferrava no rosto os que tomava cativos. Tinha prazer de acoitá-los com suas

próprias mãos e a todos quantos caíam presos despachava amarrados ao donatário.

Houve tanta crueldade no tempo de Duarte Coelho de Albuquerque que o gentio

ficou de tal modo apavorado que se deixava amarrar pelos caçadores e assim ia

sendo carregado para o mercado de Olinda, onde era vendido a um mil réis por

cabeça, segundo informa Frei Vicente. Contra a vontade do donatário, o Padre do

Ouro, foi preso em Olinda em 1571, metido em ferros e em seguida remetido aos

cárceres da Inquisição em Lisboa, onde permaneceu até 1575. A partir dessa data

não há mais notícia a seu respeito.

Ainda no Primeiro Relatório (Ministério da Justiça, 2000, p. 13-14) podemos

constatar os inúmeros tipos de violências a que foram submetidos os africanos trazidos ao

Brasil para trabalharem como mão-de-obra escrava, sobretudo, nos engenhos de cana-de-

açúcar:

Os negros foram trazidos da África do século XVI ao XIX. A condição de escravos

na qual viriam significava uma constante possibilidade de um tratamento violento da

parte do senhor. À penúria das condições de vida e trabalho a que eram submetidos

juntava-se a possibilidade de o senhor, ao seu arbítrio, impor os castigos que

quisesse ao escravo. Privações, açoites, mutilações, palmatoadas, humilhações

diversas foram práticas comuns nas casas e fazendas dos senhores donos de escravos

durante toda a vida da Colônia. (sic)

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A escravidão negra também não foi nada pacífica, marcada por revoltas, violências e

fugas para os quilombos. Na Paraíba, segundo nos conta Sobrinho (2006, p. 166):

A revolta dos negros provocou a execução de leis drásticas, a exemplo da Ordem

Régia de 1741, que determinava que se lhe marcasse o “quilombola”, com um F na

espádua e se já existisse, lhe cortasse uma orelha. Esse castigo era realizado pelos

famosos Capitães-do-mato, que caçavam os escravos por toda a parte. Situação

constrangedora e deprimente, que se prolongou até a abolição da escravatura, a 13

de maio de 1888.

Porém, não eram apenas os índios e os escravos as vítimas desse modelo de

sociedade onde o poder econômico e político da elite, formada pelos proprietários de terras e

das camadas urbanas mais favorecidas, era ilimitado. Além de atingir pobres, agregados e ex-

escravos, garantia a impunidade para seus membros e o funcionamento do sistema de justiça a

seu contento. O que garantia que essas condições não eram vivenciadas pelos “chamados

homens bons, os donos de terras ou nobres vindos de Portugal” (Ministério da Justiça, 2000,

p. 14).

Neste período temos uma sociedade de mentalidade escravista, “onde a crueldade

perpetrada, principalmente, em relação aos negros, era enfocada como algo natural, porquanto

estes eram considerados serem sub-humanos, destinados à produção agrícola e de minérios”

(COIMBRA, 2002, p. 149-150).

O escravo negro tinha um status duplo e antagônico, pois para o direito civil não era

considerado pessoa, mais coisa. Porém, para o direito penal, quando acusado, é considerado

imputável (COIMBRA, 2002, p. 150).

Em decorrência dessa herança cultural temos, na base da sociedade brasileira

nascente, o elitismo, a violência e a intolerância contra os pobres, o uso privado do Estado, o

conservadorismo e o autoritarismo.

1.3.2 – Brasil Independente

O advento da independência em 1822 pouca ou nenhuma mudança trouxe para esse

quadro político-social, pois manteve a escravidão e todos os privilégios da elite.

Assim temos, segundo Paula Bajer (2002, p. 22), por um lado, a Constituição de

1824 que oficialmente aboliu

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açoites, torturas, marcas de ferro quente e outras penas cruéis. Afirmou também, que

as cadeias deveriam ser limpas, seguras e bem arejadas. Permaneceria a pena de

morte. A escravidão seria problema do direito civil e da propriedade. Aliás, no que

se refere aos escravos, não vingou a proibição de penas corporais. Às vezes se lhes

aplicava o ordenamento, outras, não. Eles eram coisa e gente ao mesmo tempo, para

o direito.

Por outro, conforme expõe BAJER (2002, p. 24), vamos ter o Código Criminal do

Império de 1830 que

manteve a pena de morte por enforcamento, assim como as galés, trabalho forçado

com o preso mantido acorrentado. Os açoites, pena corporal, ficaram reservados

para os escravos; não poderiam ser aplicados mais de 50 por dia. É interessante que

o Código Criminal previa que, para os escravos condenados a pena diversa das de

galés, a punição aconteceria por açoites, em número determinado pelo juiz. Após

bem dadas as surras, o escravo seria devolvido ao senhor, que deveria mantê-lo

acorrentado a um ferro também pelo tempo determinado pelo juiz.

Ricardo de Brito A.P. Freitas, em As Razões do Positivismo Penal no Brasil (2002,

p. 235-236), nos relata que:

No Brasil, portanto, o liberalismo constituiu o instrumento ideológico indispensável

à formação do Estado, mas não a concretização da cidadania. Como nos lembra

Costa, no país, o comportamento dos revolucionários, com exceção de poucos, era

frequentemente elitista, racista e escravocrata. Partindo da constatação de que o

Brasil, no século XIX, formou-se a partir de uma relação entre o Estado e a

sociedade do tipo característico da dominação tradicional e não da dominação

burocrático-legal, segundo a tipologia de Weber que serve de base à doutrina, a ela

pode-se atribuir o fato de a democracia não ter fincado bases sólidas no país,

acarretando-se, em consequência, a presença do autoritarismo e da violência como e

enquanto modalidades específicas de resolução de conflitos sociais; a existência de

uma forma de governo que combinou ambivalentemente a monarquia constitucional

com um regime representativo; e, além do mais, a apropriação dos privilégios e

direitos pelas elites, que, por sua via, acabaram por se constituir em autênticos

estamentos senhoriais.

O sistema de justiça criminal surgido dessa sociedade era arbitrário e fundado na

desigualdade de tratamento, e não poderia ser diferente, conforme podemos constatar em

FREITAS (2002, p. 237-238):

É sob a ótica das observações efetuadas que se pode tentar traçar um perfil dos

operadores jurídicos e compreender a sua formação intelectual e política. Igualmente

a sua missão nessa sociedade liberal de fachada, encerrando no formalismo das

fórmulas e institutos jurídicos acolhidos e perpetuados solenemente pelo direito, mas

antidemocrática em seu âmago, voltada pera o controle violento, não apenas de uma

grande massa de escravos, mas também de expressiva população juridicamente livre,

porém destituída dos meios de produção e do poder político.

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A desigualdade de tratamento conforme a classe social dos envolvidos em demandas

criminais é uma característica do sistema punitivo desse período, mas que vigorará até os dias

atuais, marcando a seletividade das vítimas do crime de tortura no período posterior a ditadura

iniciada em 1964.

Ao longo da nossa história encontramos diversos exemplos dessa desigualdade de

tratamento a partir da origem de classe.

Este princípio prevaleceu no marcante episódio da Inconfidência Mineira de 1789,

pois apenas Tiradentes, único dos envolvidos neste episódio da história do Brasil que não era

de origem aristocrática, foi punido com a pena extremada (SOUTO MAIOR, 1972, p. 184):

Ao ser feita a leitura da sentença aos conjurados, já sabiam no entanto os juízes que

a mesma estava reformada por dois acórdão da Alçada, em atendimento a uma “

carta de clemência” (carta-régia de 15 de outubro de 1790) de D. Maria I. Esta

ordenara a limitação das penas a degredo, com exceção daqueles que tivessem agido

com “atrocidade e escandalosa publicidade do seu crime”. Por ordem dos juízes o

escrivão leu pausadamente, durante três horas, a primitiva sentença que condenava à

morte onze conjurados e os outros ao degredo. Horas depois de submetê-los a essa

crueldade é que os julgadores ordenaram a leitura do acórdão definitivo, que

condenava Tiradentes à pena máxima, por ser “indigno da real piedade” e comutava

a dos outros implicados a degredo.

Teixeira e Dantas (1979, p. 167) também nos trazem a mesma visão do episódio:

Portanto, condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier, alferes que foi da tropa

paga da capitania de Minas, a que, com braço e pregão, seja conduzido pelas ruas

públicas ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre, e que depois de

morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, aonde em lugar mais público

dela seja pregada em um poste até que o tempo a consuma, e o seu corpo será

dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelo caminho de Minas, no sítio

de Varginha e de Cebolas, aonde o réu teve suas infames práticas e os mais nos

sítios de maiores povoações, até que o tempo também a consuma; declaram o réu

infame, e seus filhos e netos, tendo-os, e os seus bens aplicam para o fisco e câmara

real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca

mais o chão se edifique, e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos

bens confiscados, e no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve

em memórias a infâmia deste abominável réu.

Na Conjuração Baiana de 1798 o procedimento adotado para punir os envolvidos no

episódio foi o mesmo. Souto Maior (1972, p. 187) resume as punições aplicadas aos

envolvidos:

Apesar do advogado dos acusados, José Barbosa de Oliveira, basear sua defesa no

fato de ser a linguagem dos rebeldes muito superior ao nível intelectual de simples

homens do povo, foram condenados a morrer na forca Luís Gonzaga das Virgens,

Lucas Dantas de Amorim Torres, João de Deus do Nascimento, Manuel Faustino

dos Santos Lira, todos executados no Largo da Piedade a 8 de novembro de 1799.

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Cipriano Barata, o tenente Hermógenes d’ Aguilar e o professor Francisco Moniz

foram absolvidos. Os pobres mulatos Inácio da Silva Pimentel, Romão Pinheiro,

José Félix, Luís de França Pires, Manuel José e Inácio Pires não tiveram tanta sorte

ou prestígio e foram desterrados.

A cidade de Recife, em 1831, foi palco de duas revoltas. Uma de caráter popular,

feita por soldados e contando com a adesão de negros forros e escravos, e outra por parte da

aristocracia liberal pernambucana.

Décio Freitas (1982, p. 74) nos conta que no primeiro episódio a repressão foi

violenta:

Um jornal ultraliberal e federalista de Recife, descreveu o episódio como uma

revolta de “soldadesca desenfreada, na companhia da gente mais abjeta da província,

tudo bem como nos negros dias da Convenção Francesa”. Nem um momento tardou

a repressão: os amotinados foram açoitados, expulsos do exército e mandados para

Fernando de Noronha. Os escravos sofreram menos que todos. Constituindo uma

valiosa propriedade, foram restituídos a seus amos.

No segundo caso, conforme relato do mesmo Freitas (1982, p. 75), nem repressão

houve:

Com um golpe de mão, apossaram-se de uma fortaleza, na qual durante três dias

resistiram ao assédio do governo. Não houve baixas nem prisioneiros. Sequer houve

represálias- afinal de contas, os rebeldes não eram “ soldadesca” ou “ gente abjeta”,

eram componentes da classe dominante.

Um instrumento de tortura surgido nesse período e muito utilizado foi o “colete de

couro”, que “consistia em envolver o tórax do indivíduo em couro cru, molhado, que, ao

secar, comprimia o peito ‘a ponto de provocar vômito de sangue”’ (MONTEIRO, 1987, p.

71).

A invenção desse instrumento de tortura é atribuída ao Capitão Longuinho (ou José

Longuinho da Costa Leite), militar paraibano que atuou na repressão às revoltas populares do

período de 1850-1890. Cita Monteiro que as vítimas que “sobreviveram a esse suplício, diante

do qual se regalava o Capitão Longuinho, não escaparam da tuberculose ou das lesões

cardíacas que, cedo ou tarde, os levariam ao túmulo” (1987, P. 71).

Uma das vítimas do “colete de couro” foi o líder da Guerra dos Cabanos, Vicente de

Paula Ferreira, após ser preso em 1850 (FREITAS, 1982, pp. 160/161):

A bordo do vapor Thetis, conduziram-no para Recife e, daí, para Fernando de

Noronha. Na viagem, vestiram-lhe um colete de couro cru molhado e o expuseram

assim ao sol. À medida que o couro secava, o prisioneiro se contorcia em dores

cruciantes, sofrendo diversas hemoptises. Apesar disso e de uma permanência de

onze anos no inóspito clima de Fernando de Noronha, sobreviveu. Posto em

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liberdade no ano de 1861, regressou a Alagoas. Contava então 70 anos e era um

homem inofensivo. Não se sabe quando nem onde morreu.

O advento da Proclamação da República em 1889, levada a termo pelos militares do

Exército, pouco ou quase nenhuma mudança trouxe no tratamento dado à população pobre. Se

por um lado o “Exército era um instrumento rebelde, progressista frente às oligarquias

monarquistas”, era, ao mesmo tempo, “repressivo, impiedoso frente às camadas mais pobres,

que se levantassem em descontentamento na luta contra o poder central” (ARQUIDIOCESE

DE SÃO PAULO, 1991, p. 54).

A situação dos cidadãos de cor, ex-escravos, pouco mudou ou até piorou, pois “não foi

oferecido nenhum mecanismo de ascensão social”, continuaram sem “acesso às escolas,

terras, nem a empregos”. Ademais após “a euforia da libertação, muitos ex-escravos

regressaram a suas fazendas, ou a fazendas vizinhas, para retomar o trabalho por baixo salário.

Dezenas de anos após a abolição, os descendentes de escravos ainda viviam nas fazendas, uma

vida pouco melhor do que a de seus antepassados escravos” (CARVALHO, 2002, p.52-53).

As acomodações, os acordos conciliatórios em busca de soluções pacíficas são marcas

da política brasileira que, mesmo em momentos iniciais de ruptura, como no episódio da

Proclamação da República, não geraram mudanças na estrutura social.

1.3.3 – República – Entre revoltas e chibatas ...

Há muito tempo, nas águas da Guanabara

[...]

Rubras cascatas jorravam das costas dos santos

Entre cantos e chibatas

Inundando o coração do pessoal do porão

Que, a exemplo do feiticeiro, gritavam então

João Bosco/Aldir Blanc

Assim, mesmo com as “condições favoráveis para a instalação de um novo sistema

político, baseado nos valores democráticos e que incorporava amplos setores da população até

então marginalizados, a República, nas suas primeiras décadas de existência, não desmontou a

herança elitista e hierárquica proveniente do Império” (BRASIL, 2000, p. 15).

As relações políticas do início da República serão marcadas pela máxima “para os

amigos tudo, para os inimigos basta a lei”. Na verdade, uma adaptação do antigo “amigo do

rei”, o que demonstra a continuidade sem mudança estrutural.

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A Constituição de 1891 não fazia referências expressas à proibição da tortura como a

constituição anterior fizera, mas aboliu as penas de galés, o banimento judicial e pena de

morte (art. 72). Porém, se a Constituição proibiu a pena de desterro, o Código Penal de 1890

permitia a remoção de opositores, vadios e indesejáveis para locais distantes.

A ação repressiva contra os “inimigos” ou rebeldes era extremamente violenta, como

nos episódios de Canudos e do Contestado. A aplicação de penas corporais a militares levou à

Revolta da Chibata, em 1910, liderada pelo marinheiro João Candido, o “Almirante Negro”,

desencadeada pela aplicação da pena de 250 chibatadas no marinheiro Marcelino Rodrigues

Menezes, do navio Minas Gerais.

A polícia e a carceragem conjugavam as práticas dos castigos corporais e da tortura

contra a massa populacional pobre, negra e marginalizada. A polícia, com seu poder arbitrário

usava e abusava da força e da violência para conter movimentos sociais, manifestações

populares e fazer a “limpeza” social, executando e prendendo os pobres (PINHEIRO, 2002).

1.3.4 – Tortura nos períodos de Ditaduras

Caía a tarde feito um viaduto

[...]

E nuvens!

Lá no mata-borrão do céu

Chupavam manchas torturadas

Que sufoco!

João Bosco/Aldir Blanc

Em novembro de 1937, com a implantação do Estado Novo, o Brasil viveu cenas de

terror e barbárie em todo seu território. Presos políticos eram torturados e houve censura de

forma acentuada a todos os órgãos de imprensa. As prisões do país passaram a ter, além dos

criminosos comuns, prisioneiros políticos que eram sistematicamente torturados (Brasil, 2000,

p. 16).

Ademais, a Constituição de 1937 é marcada pelo autoritarismo e centralização do

poder. Apesar de apresentar um artigo a respeito dos direitos e garantias individuais, na

prática não se respeitava os direitos e garantias, pois a declaração de “tempo de guerra”

suspendia essas prerrogativas, conforme é possível constatar da leitura do art. 122, 13, alíneas

“a” e “b”:

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Art. 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o

direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

13) não haverá penas corpóreas perpétuas. As penas estabelecidas ou agravadas na

lei nova não se aplicam aos fatos anteriores. Além dos casos previstos na legislação

militar para o tempo de guerra, a lei poderá prescrever a pena de morte para os

seguintes crimes:

a) tentar submeter o território da Nação ou parte dele à soberania de Estado

estrangeiro;

b) tentar, com auxilio ou subsidio de Estado estrangeiro ou organização de caráter

internacional, contra a unidade da Nação, procurando desmembrar o território

sujeito à sua soberania;

Durante esse período, que foi de 1937 a 1945, a tortura foi um dos pilares de

sustentação do regime de exceção, levando para as prisões do país, além de criminosos

comuns, os prisioneiros políticos. Ambos eram cruelmente e sistematicamente torturados.

Paulo Sérgio Pinheiro (apud JESUS, 2009, P. 82) relata que a “volta do país à vida

democrática a partir de 1945 acabou com as prisões e torturas contra presos políticos”. Porém,

nesse curto espaço de tempo em que os direitos e garantias individuais voltaram a ser

assegurados, “não significou uma mudança nas práticas de tortura e maus-tratos contra presos

comuns”, pois no âmbito da atividade policial, a tortura como “um meio para obtenção de

informações, confissão e imposição de castigos e punições extra-legais contra os presos

comuns”.

E, em 31 de março de 1964, um golpe militar inicia novo período de ditadura, que

vai perdurar até 1985. Este regime de exceção instalado sobre “a força das armas”, “derrubou

um presidente democraticamente eleito e interveio na sociedade civil” (MAIA, 2006, p. 83).

Porém, a parte mais sombria “veio com a prática disseminada da tortura, utilizada

como instrumento político para arrancar informações e confissões de estudantes, jornalistas,

políticos, advogados, cidadãos, enfim, todos que ousavam discordar do regime de força

vigente (MAIA, 2006, p. 83).

Cecília Coimbra (2001, p. 9), tratando do período da Ditadura Militar relata que:

Segundo os 12 volumes do Projeto Brasil: Nunca Mais, coordenado pela

Arquidiocese de São Paulo, uma das radiografias mais completas do período

ditatorial no Brasil – trata-se da microfilmagem de todos os processos contra presos

políticos que se encontram no Superior Tribunal Militar, no período de 1964 a 1978

– , 1.843 pessoas denunciaram, em Auditorias Militares, as torturas sofridas. Três

volumes – ‘As Torturas’- num total de 2.847 páginas, descrevem de forma

assustadora os tipos de suplícios a que esses opositores políticos foram submetidos,

assim como os locais e os nomes de alguns de seus algozes.

Durante os períodos do Estado Novo de Vargas (1937-1945) e da Ditadura dos

Militares (1964-1985), momentos de confrontos ideológicos e políticos, a tortura deixou de

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lado seu caráter de classe e atingiu membros da classe média ou alta, até então protegidos por

suas imunidades sociais, conforme narra Luciano Mariz Maia (2006, p. 52):

Não há estudos sobre a tortura utilizada contra o criminoso comum. Mas, na

ditadura, a tortura ressurge como instrumento explícito de dominação, sendo

utilizado contra novas vítimas, agora, não apenas os pobres e despossuídos de

sempre, mas também intelectuais, estudantes, líderes de oposição etc.

É possível constatar no Brasil Nunca Mais (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO,

1991, p. 88) a mudança no perfil das vítimas das torturas durante o período da Ditadura

Militar:

O grau de instrução dos processados permite induzir, com certa segurança, se

invocados os próprios dados governamentais acerca da pirâmide seletiva que existe

no sistema de educação, no país, que a extração social dos envolvidos na resistência

era predominante da classe média. Entre 4.476 réus, cujo nível de escolaridade

aparecia registrado nos processos, 2.491 possuíam grau universitário. Ou seja, mais

da metade havia atingido a universidade, num contexto nacional em que pouco mais

de 1% da população chega até lá.

O relato de Jacob Gorender em Combate nas Trevas (1987, p. 227), vai na mesma

direção, reforçando essa mudança no perfil das vítimas da tortura, sobretudo no governo do

general Médici:

[...] cessaram os privilégios da classe média nos meandros do aparelho repressor.

Até 1968, policiais e juízes eram muito mais severos com trabalhadores do que com

estudantes, os quais raramente sofriam torturas. O pistolão e o suborno continuavam

eficientes, de acordo com a praxe nacional. A partir de 1969, o recrudescimento da

guerrilha urbana evidenciou que os implicados de origem operária mal chegavam a

10% dos presos políticos. Cerca de 55% dos presos eram estudantes e profissionais

com título universitário. Implicados originários deste setor social passaram à

condição de alvo principal. Pistolão e suborno já não tinham eficácia, só

funcionando em episódios de pequena significação do ponto de vista repressivo. São

numerosos os casos de tortura de pessoas de status elevado: diretores de importantes

empresas, filhos de famílias prestigiosas pela tradição ou pela riqueza etc. O

assassinato do ex-deputado Rubens Paiva, em janeiro de 2971, tornou-se simbólico

dessa perda de imunidades costumeiras. Também os oficiais das Forças Armadas,

como já vimos, perderam a imunidade à tortura.

Outro fato que vai marcar o uso da tortura no período da ditadura militar iniciada em

1964 é o “método científico”, pois ela passa a ser estudada, aperfeiçoada, sendo, inclusive,

incluída em currículos e as vítimas serviam de cobaias para as aulas práticas. O livro relatório

Brasil Nunca Mais registra que (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1991, 32):

De abuso cometido pelos interrogadores sobre o preso, a tortura no Brasil passou,

com o Regime Militar, à condição de “método científico”, incluído em currículos de

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formação de militares. O ensino deste método de arrancar confissões e informações

não era meramente teórico. Era prático, com pessoas realmente torturadas, servindo

de cobaias neste macabro aprendizado. Sabe-se que um dos primeiros a introduzir tal

pragmatismo no Brasil, foi o policial norte-americano Dan Mitione. (...) Quando

instrutor em Belo Horizonte, nos primeiros anos do Regime Militar, ele utilizou

mendigos recolhidos nas ruas para adestrar a polícia local. Seviciados em salas de

aula, aqueles pobres homens permitiam que os alunos aprendessem as várias

modalidades de criar, no preso, a suprema contradição entre o corpo e o espírito,

atingindo-lhe os pontos vulneráveis.

Segundo Antonio Carlos Fon (1979, p. 49):

Sistematizado para o combate à subversão, o uso da tortura generalizou-se

rapidamente entre os militares brasileiros a partir do ano de 1969. O recurso à

violência atingiu tais dimensões que, nos anos seguintes, seria utilizado

indiscriminadamente até mesmo dentro das Forças Armadas, para a apuração de

crimes comuns praticados por militares, (...).

Cecília Coimbra (2001, p. 8) informa que o ex-presidente Ernesto Geisel, em seu

livro de memórias, afirmara:

(...) que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter informações. (...) no

tempo do governo Juscelino alguns oficiais, (...) foram mandados à Inglaterra para

conhecer as técnicas do serviço de informação e contra-informação inglês. Entre o

que aprenderam havia vários procedimentos sobre tortura. O inglês, no seu serviço

secreto, realiza com discrição. E nosso pessoal, inexperiente e extrovertido, faz

abertamente. Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o

indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e,

assim, evitar um mal maior.

Neste contexto, a tortura destaca-se como instrumento do terrorismo de Estado para

esmagar e desbaratar seus opositores. Para tanto, foi posto em curso um processo de

racionalização da tortura, através da “inteligência internacional”, regida pela Escola das

Américas sob égide dos Estados Unidos, de modo a produzir efeitos decisivos na América

Latina.

Todo esse aprimoramento a que foi submetida a tortura durante o período militar,

com aulas, técnicas e “método científico”, será em breve redirecionado contra sua vítima

“natural” no período da redemocratização: população pobre e marginalizada.

1.3.5 – A tortura na democracia seria um paradoxo?

Meu Brasil!...

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Que sonha com a volta

Do irmão do Henfil.

Com tanta gente que partiu

Num rabo de foguete

João Bosco/Aldir Blanc

Passado o período da ditadura militar, a tortura voltou a se abater sobre suas vítimas

comuns, ou seja, a população pobre e marginalizada que é vitimizada nas delegacias de

polícia, nas casas de detenções, nos presídios e centros de internamentos de adolescentes, em

becos e ruas escuras de favelas. E, como acima narrado, em alguns casos, os métodos de

tortura foram aperfeiçoados pela experiência adquirida pelos seus executores durante a

ditadura militar.

Luciano Mariz Maia (2006, p. 12) registra que:

A ocorrência da tortura se verifica fundamentalmente em dois momentos marcantes.

O primeiro se dá na fase pré-processual, como meio utilizado pelas forças de

segurança para obtenção de informações ou confissões.

O segundo momento mais importante ocorre quando pessoas presas ou detidas – à

disposição da justiça – são submetidas à tortura ou ao tratamento desumano,

degradante ou cruel. Essa nova fase se dá durante o período em que aguardam

julgamento ou quando já cumprem sentenças.

E onde se tortura? Basicamente em delegacias de policias e unidades do sistema

prisional e unidades de internamento de adolescentes (MAIA, 2006, p. 89):

[...] delegacias de policia respondem por 39,4% segundo dados do Relatório de

Nigel Rodley, e 47,15% segundo dados do MNDH; unidades do sistema

penitenciário (incluindo estabelecimento de internação de menores) respondem por

24,3% dos casos, segundo o Relator da ONU, e 26,87%, segundo dados do MNDH.

Os grandes torturadores continuam sendo os policias militares e civis, agentes

penitenciários e, também, os servidores de estabelecimentos de internamento de adolescentes.

Segundo Luciano Maia (2006, p. 89):

[...] a polícia civil é apontada como responsável pela tortura em 36,3% no Relatório

de Nigel Rodley e 31,43% no Relatório do Movimento Nacional de Direitos

Humanos – MNDH. Ainda, a polícia militar é apontada como responsável pela

tortura em 39,3% dos casos, segundo o Relatório de Nigel Rodley, e em 30,61% dos

casos, pela MNDH. Finalmente, funcionários de prisões e estabelecimento de

internação de menores são responsáveis por 17,7% dos casos de tortura, segundo

achados de Nigel Rodley, e 14%, segundo dados do MNDH.

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Esses dados comprovam que a tortura é uma prática comum entre os membros do

aparelho de segurança, evidenciando onde majoritariamente ela ocorre, com quais objetivos e

quem são suas vítimas.

E a tortura tem na busca de confissão e a imposição de castigo os dois motivos

principais (MAIA, 2006, 93):

[...] confissão foi o motivo apresentado em 30,1% segundo o Relator da ONU, e

36,75% segundo o MNDH. Castigo foi o propósito da tortura em 40,6% das

situações, para o Relator da ONU, acrescido de “castigo no contexto de

Investigação” ( por ausência de confirmação), o que significou mais 23,3% dos

casos. Para o Relator da ONU, portanto, 63,9% dos casos tiveram “castigo” como

motivação.

Porém, com diagnósticos precisos que apontam os locais, os agressores, as vítimas,

os meios mais comuns de prática da tortura; a existência no ordenamento jurídico de

dispositivos legais que criminalização a tortura; bem como um conjunto de mecanismos de

monitoramento, prevenção e combate à tortura, internacionais e nacionais, é de se indagar por

que ela continuar sendo praticada?

Para Luciano Maia a questão não se resume a apontar por que se tortura e por que é

tão difícil combater a tortura no Brasil. Sendo necessário fazer “Indagações complementares,

tais como, por que há tão pouca investigação, por que há ainda pouca denúncia por tortura, e

por que não há condenação, igualmente se impõem” (2006, p. 12). E problematiza:

Certamente, não há uma única resposta para todas as questões. Há vários modos de

entender e explicar por que o fenômeno permanece. Quando se compreende que a

questão da tortura envolve relações de poder, fica fácil entender por que as coisas

são como estão.

No estado de coisas atual, a tortura se caracteriza por ser um fenômeno invisível,

indizível, insindicável e impunível, do ponto de vista do sistema de justiça e

segurança.

Que fazem o Ministério Público e o Judiciário diante dessa realidade? Por que lhes é

tão difícil cumprir seus papéis de garantes do Estado de Direito e assegurar a todos

proteção na lei e nos fatos, contra a tortura? (2006, p. 12)

Constata-se que não se investiga, não se processa e, principalmente, não se pune os

agentes que cometem atos de tortura (executores, mandantes, ou autoridades omissas). Desta

forma, a impunidade é uma das características da resposta institucional à tortura praticada em

nosso País.

É fundamental, para nosso trabalho, fazer uma indagação complementar: por que não

se pune? A impunidade seria apenas uma questão de “inoperância” do sistema de segurança e

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justiça? De necessidade de azeitar a máquina? Ou de falta de boa vontade ou de ausência de

condições de trabalho?

A tortura, como visto, é um fenômeno cultural milenar, não é uma invenção recente,

nem um plano terrível e mirabolante de algum ditador. Nem esteve circunscrita a determinado

povo ou país, ou a certo período da história.

Comumente quando se pensa em tortura, de imediato vem a mente os estados de

exceção. Mas, o nazismo na Alemanha não inventou a tortura. Nem o Stalinismo na ex-

URSS. Nem os franceses na Argélia! Nem os estadunidenses no Vietnã! Nem os porões da

ditadura militar no Brasil pós-64.

Nesses períodos de estados de exceção os métodos e técnicas de tortura até foram

estudados, trabalhados e aperfeiçoados! Mas, como visto, a tortura caminha ao lado do

homem como uma sombra, visível ou invisibilizada, mas sempre presente.

Registre-se, na maior parte do tempo de sua história, a tortura foi usada de maneira

legalizada, fazendo parte do ordenamento jurídico como pena ou meio de obtenção de prova.

Só recentemente, a partir do século XVIII, é que ela passa a ser questionada e vai

paulatinamente sendo proibida.

O traço marcante que se demonstrou foi o caráter de classe da tortura. Não se tortura

qualquer um, mas o pobre, o despossuído de poder, os que estão à margem do padrão.

Percebe-se também que a sua proibição e criminalização não implicaram em sua

abolição, pois ela continuou sendo praticada de forma ilegal e clandestina. Assim, pode-se

afirmar que a tortura é um elemento cultural importante do mundo ocidental?

Para enfrentar esse fenômeno, ao longo dos anos foi sendo criado um sistema

internacional para combater e prevenir a tortura. Esse novo modelo, com ênfase na prevenção,

na cooperação de órgãos internacionais e nacionais, será inaugurado pela Convenção Contra a

Tortura da ONU e seu Comitê Contra a Tortura (1984), e consolidado com Protocolo

Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos

ou Degradantes e o Sub-Comitê de Prevenção à Tortura (2002).

O histórico, fundamentos legais, características, princípios instituidores e de

funcionamento, garantias e prerrogativas de seus membros e órgãos, experiências, e sua

implementação no Brasil serão os objetos de análise do próximo capítulo.

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CAPÍTULO 2 – O ARCABOUÇO NORMATIVO E O COMBATE E A PREVENÇÃO

À TORTURA NO BRASIL E NA PARAÍBA

Desde a proibição estabelecida no art. 5º da DUDH-ONU que se busca a erradicação

da tortura. Para tanto, órgãos, entidades, convenções, tratados, documentos, surgiram com o

objetivo de somar esforços na prevenção e no seu combate. Instituiu-se, pouco a pouco, uma

política de prevenção e combate à tortura na esfera internacional e, talvez, já a nível nacional.

São objetivos desse capítulo apresentar o processo de criação e implementação do

sistema de prevenção e combate à tortura, internacional e nacional, analisar o funcionamento

dos órgãos e seus principais instrumentos de trabalho, características, normatividade etc.

Para tanto, se inicia com a exposição da legislação do direito internacional de direitos

humanos sobre a tortura, com seus órgãos, objetivos, princípios, métodos e obrigações para os

Estados signatários, criando uma política de prevenção e combate à tortura. Em seguida,

tratar-se-á da ratificação pelo Brasil desses documentos internacionais e a conseqüente adesão

do Brasil a esta política. O que implicou na adoção de medidas legislativas e administrativas

para a sua implantação em nosso país.

Nessa caminhada alguns momentos foram marcantes, sendo que dois deles são

especialíssimos: a proibição da tortura na Constituição de 1988 e a visita do ex-Relator

Especial da ONU sobre a Tortura, Sir Nigel Rodley, devido às consequências políticas-

jurídicas e as medidas adotadas e a serem adotadas no âmbito interno pelo Governo do Brasil.

Seguindo esse roteiro serão abordadas a aprovação da Lei nº 9.455/97 que tipificou a

tortura como crime e da Lei nº 12.847/2013 que criou Sistema Nacional de Prevenção e

Combate à Tortura – SNPCT, do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura –

CNPCT e instituiu o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura- MNPCT, e

procedida uma análise dessas duas normas, buscando, sobretudo, verificar sua consonância

com as normas do direito internacional dos direitos humanos sobre a tortura.

2.1 – O sistema universal de combate e prevenção à tortura

A DUDH-ONU, como já exposto, marca a internacionalização dos Direitos

Humanos, com a incorporação pelos Estados-Membros do conteúdo das declarações de

direitos humanos em suas constituições e normas infraconstitucionais.

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A temática da proibição da tortura está contida em diversos tratados internacionais de

direitos humanos, conforme a seguir será individualmente apresentado.

Sua proibição ocupa uma posição especial no “Direito Internacional, o jus cogens¸

que é uma ‘norma imperativa’ do Direito Internacional Geral” (FOLEY, 2011, p.18). Deste

fato decorre uma importante consequência, posto que, ainda segundo Conor Foley, o “direito

Internacional Geral vincula todos os Estados, mesmo aqueles que não tenham ratificado um

tratado particular. Os preceitos do jus cogens não podem ser contrariados por tratados ou

outros preceitos do Direito Internacional (2011, p.18.)

A tortura é considerada crime de guerra13

, conforme previsão do art. 3º, comum às

quatro Convenções de Genebra de 1949, e também é crime contra a humanidade14

, conforme

art. 7º, 1, “f”, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional - TPI.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, adotado e aberto para assinatura,

ratificação e adesão pela Resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral, de 16 de dezembro de

1996 (FOLEY, 2011, p. 176), proibiu a tortura, em seu art. 7º, parte inicial: “Nenhuma pessoa

poderá ser submetida a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou

degradantes”.

Porém, como já exposto anteriormente, nem a adoção da DUDH, em 1948, nem do

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, foram capazes de por termo a tortura.

Assim, era preciso continuar avançando e tornar o combate à tortura mais explícito e

específico. Isso vai acontecer com a adoção da Convenção contra a Tortura e outros

Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes pela Assembleia Geral da ONU.

Em 1973 a Amnesty International (Anistia Internacional ou simplesmente Anistia)

lançou seu primeiro Relatório sobre a Tortura, com “informações sobre torturas e maus tratos

em mais de 70 países e territórios no período entre 1970 e meados de 1973” (2003, p. 7).

A Assembleia Geral da ONU partiu para a ação e, em 1975, adotou a Declaração

sobre a Proteção de todas as Pessoas contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis,

Desumanos e Degradantes, que estabeleceu “medidas detalhadas que os governos deveriam

tomar para impedir a tortura (ANMESTY INTERNATIONAL, 2003, p. 7).

Vieram os anos 80 e, em 1984, a Anistia lança sua segunda Campanha contra a

Tortura, com a publicação do relatório “Tortura nos Anos 80”, com “relatos de tortura e maus

13

Crimes de guerra são aqueles cometidos, com graves infrações, durante conflitos armados internacional contra

pessoas ou bens protegidos pelas Convenções de Genebra (art. 8º, 1, a, (ii) do Estatuto de Roma). 14

São atos cometidos como parte de um ataque generalizado e sistemático contra uma população civil, quer

tenham sidos cometidos durante conflitos armado ou não (art. 7º, 1, f, do Estatuto de Roma.

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tratos em 98 países no período de 1980 a meados de 1983” (ANMESTY INTERNATIONAL,

2003, p. 8).

Esse quadro contribui para que, em 10 de dezembro de 1984, fosse votada a

Resolução 39/46 da Assembleia Geral da ONU, aprovando a Convenção das Nações Unidas

contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, doravante

Convenção contra a Tortura.

A Convenção contra a Tortura já no seu Preâmbulo reconhece a necessidade de

“tornar mais eficaz a luta contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos e

degradantes” (CEPCT-PB, 2013, p. 27).

Dentre as inovações trazidas pela Convenção contra a Tortura está a definição

internacional de tortura (art. 1º) e o sistema de relatórios periódicos sobre as medidas adotadas

no cumprimento das obrigações assumidas em virtude da Convenção (art. 19, 1). O primeiro

seria apresentado no prazo de um ano, a contar da vigência da Convenção, e relatórios

suplementares seriam apresentados a cada quatro anos (art. 19, 1).

Além disso, a Convenção contra a Tortura vai estabelecer uma série de outras

obrigações para os Estados signatários, merecendo destaque as de: a) adotar medidas eficazes

de caráter legislativo, administrativo, judicial ou de outra natureza, a fim de impedir a prática

de atos de tortura (art. 2º. 1); b) assegurar que todos os atos de tortura sejam considerados

crimes segundo a sua legislação penal (art. 4º, 1); c) assegurar que o ensino e a informação

sobre a proibição de tortura sejam plenamente incorporados no treinamento do pessoal do

sistema de segurança, incluindo o pessoal médico e os encarregados do interrogatórios (art.

10, 1); d) manter sistematicamente sob exame as normas, instruções, métodos e práticas de

interrogatório (art. 11); e) assegurar que nenhuma declaração que se demonstre ter sido

prestada como resultado de tortura possa ser invocada como prova em processo, salvo contra

uma pessoa acusada de tortura como prova de que a declaração foi prestada (art. 15).

A Convenção contra a Tortura criou um Comitê contra a Tortura15

, conforme art. 17.

Este Comitê, doravante CAT (sua sigla em inglês), é o órgão para monitorar a observância das

obrigações contidas na Convenção contra a Tortura. O CAT é formado por dez peritos de

elevada reputação moral e reconhecida competência em matéria de direitos humanos, eleitos

pelos Estados partes, levando em conta uma distribuição geográfica eqüitativa e a utilidade da

participação de algumas pessoas com experiência jurídicas.

15

Segundo Naumovic e Long (2004, p. 24), no “Sistema de direitos humanos das Nações Unidas, todo tratado

cria um órgão composto de peritos independentes para supervisionar o cumprimento das obrigações

internacionais contraídas pelos Estados Partes”.

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56

Ao CAT compete, dentre outras coisas: a) receber informações e convidar o Estado

Parte em questão a cooperar no exame dessas informações e, nesse sentido, a transmitir as

observações que julgar pertinentes (art. 20, 1); b) receber e examinar as comunicações em que

um Estado Parte alegue que outro Estado Parte não vem cumprindo as obrigações que lhe

impõe a Convenção (art. 21, 1); e c) receber e examinar as comunicações enviadas por

pessoas sob sua jurisdição, ou em nome delas, que aleguem ser vítimas de violação, por um

Estado Parte, das disposições da Convenção (art. 22, 1).

A Convenção contra a Tortura da ONU já contava, em julho de 2011, com 149

Estados signatários, por assinatura, ratificação ou adesão (FOLEY, 2011, p. 29), sendo que o

Brasil ratificou-a em 15 de fevereiro de 1991, pelo Decreto Legislativo nº 40.

Por fim, registre-se que a Convenção contra a Tortura é o “único instrumento

universal juridicamente vinculante consagrado exclusivamente à erradicação da tortura”

(NAUMOVIC e LONG, 2004, p. 23).

A Anistia Internacional (2003, p. 1-2) relata que um levantamento feito em seus

arquivos, no período entre 1997 e meados de 2000, constatou-se que essa entidade

[...] havia recebido denúncias de tortura ou maus tratos por agentes do Estado em

mais de 150 países. Em mais de 70 países as vítimas incluíam prisioneiros políticos,

porém criminosos comuns e suspeitos de terem cometidos crimes, segundo relatos,

haviam sido vítimas de torturas e maus tratos em mais de 130 países. Pessoas teriam

morrido em consequências de torturas em mais de 80 países.

Os dados da Anistia demonstram que nem esse caráter vinculante da Convenção não

foi capaz de evitar a prática da tortura pelo mundo, incluindo vários países dentro os 149

Estados signatários.

Acontece que, apesar da comunidade internacional considerar a tortura como uma

das “afrontas mais terríveis e abomináveis à dignidade da pessoa humana”, sendo a sua

prática vedada expressamente por “vários tratados internacionais de caráter universal ou

regional”, a tortura continua ocorrendo por toda parte (LANG e NAUMOVIC, 2004, p. 19).

Nem as medidas estabelecidas na Convenção contra a Tortura de forma específica, nem o

trabalho do CAT foram capazes de estancar o flagelo da tortura.

O Comitê dos Direitos Humanos no Comentário Geral 20 sobre o Pacto Internacional

sobre os Direitos Civis e Políticos, na 44ª sessão, em 1992, externou no item 8 sua

preocupação com as declarações apenas formais e a não efetivação da prevenção e combate à

tortura (FOLEY, 2011, p. 183):

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8. O Comitê observa que, para os fins de implementação do artigo 7º, não basta

proibir tais tratamentos ou penas, ou tipificá-los como crime. Os Estados Partes

devem informar ao Comitê as medidas legislativas, administrativas, judiciais e

outras tomadas para prevenir e punir atos de tortura e outros tratamentos cruéis,

desumanos ou degradantes nos territórios sob sua jurisdição.

Ainda nos anos setenta, algumas entidades internacionais e militantes da luta contra a

tortura já procuravam encontrar fórmulas novas e mais realistas para prevenir a tortura

(LANG e NAUMOVIC, 2004, p. 19):

Inspirado nos resultados das visitas a prisões realizadas pelo Comitê Internacional da

Cruz Vermelha (CICV) durante os conflitos armados, o filantropo Jean-Jacques

Gautier defendeu a adoção de um mecanismo preventivo contra a tortura baseado

em um sistema de visitas regulares aos centros de detenção em todo o mundo.

Dentre esses militantes está Jean-Jacques Gautier, que passou a divulgar a ideia da

criação de um novo modelo com base no sistema de visitas a locais de detenção. Para tanto,

fundou em 1977 o Comitê Suíço contra a Tortura (hoje denominado Associação para a

Prevenção da Tortura – APT). Niall MacDermont, Secretário-Geral da Comissão

Internacional de Juristas, elaborou uma proposta do mecanismo universal de visitas e a

entregou a Gautier em 1978.

Porém, MacDermont, sugeriu que “esse mecanismo não fosse incluído na minuta da

convenção, mas tomasse a forma de um protocolo facultativo”, “diante das prováveis reservas

que os Estados fariam a esse mecanismo e da resistência já externada à própria adoção de um

instrumento juridicamente vinculante para erradicar a tortura” (NAUMOVIC e LANG, 2004,

p. 43-44).

Assim, após muito trabalho e muita negociação16

, foi adotado o Protocolo

Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos

ou Degradantes, daqui por diante Protocolo Facultativo ou OPCAT, pela Resolução 57/199 de

18 de dezembro de 2002. O OPCAT entrou em vigor em junho de 2006.

Mas o que é um Protocolo e porque ele é facultativo?

Um protocolo é, neste caso, um texto aditivo a Convenção contra a Tortura, adotado

após essa, e que vai introduzir “disposições não contempladas no tratado original,

complementando-o” e ele se diz facultativo “porque seu conteúdo não é automaticamente

obrigatório para os Estados ratificadores do tratado original” (NAUMOVIC e LONG, 2004, p.

26). E, por ser um instrumento complementar à Convenção contra a Tortura, apenas os

16

O processo de criação desse sistema universal de inspeção aos locais de detenção com o objetivo de prevenir a

tortura, culminando com a aprovação do OPCAT, levou mais de 30 anos (NAUMOVIC e LONG, 2004, p. 39-

69).

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Estados que já assinaram, ratificaram ou aderiram à Convenção podem assinar, ratificar ou

aderir ao Protocolo, conforme previsão do seu art. 27, 1, 2 e 3.

O sistema de visitas regulares adotado pelo Protocolo Facultativo funda-se na idéia

de que, quanto mais abertos e transparentes forem os locais de detenção, menores são as

chances de ocorram abusos. Portanto, a “abertura dos locais de detenção para um sistema de

controle externo constitui um dos meios mais eficazes para prevenir práticas abusivas e

melhorar as condições de detenção” (NAUMOVIC e LONG, 2004, p. 28).

As grandes novidades do Protocolo Facultativo já estão estampadas no seu art. 1º, ao

adotar o monitoramento preventivo, com base no sistema de visitas, se fundamentar na

premissa da colaboração com os Estados Partes e por combinar esforços nacionais e

internacionais, com a criação do Sub-Comitê e a previsão de criação dos Mecanismos

Nacionais de Prevenção - MNP, órgãos independentes.

Para Conor Foley (2011, p. 31) o caráter inovador do Protocolo Facultativo decorre

de quatro razões principais: a ênfase na prevenção; a combinação de esforços nacionais e

internacionais; enfatiza a cooperação e não a condenação; e por estabelecer uma relação

triangular entre os órgãos do Protocolo Facultativo (SPT e MNP) e os Estados Partes.

Ainda segundo Foley (2011, p. 31) a maioria dos “mecanismos de Direitos Humanos

monitora as denúncias de violações depois que elas tenham ocorrido”, mas o mecanismo de

visitas preventiva permite “identificar fatores de risco, analisar tanto as falhas sistemáticas

como os padrões de falhas e propor recomendações que atuem nas causas originárias da

tortura” e, assim, a longo prazo, “mitigar os riscos de maus tratos e construir um ambiente

onde a tortura raramente ocorra”.

Para conduzir esse novo modelo de política o OPCAT criou o Sub-Comitê de

Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes

(SPT). O SPT é um organismo especializado e vinculado ao Comitê contra a Tortura e que

atua de forma complementar e coordenada com os Mecanismos Nacionais (art. 2º do

Protocolo).

A atuação do SPT se guia pelos princípios da confidencialidade, imparcialidade, não-

seletividade, universalidade, objetividade e cooperação. Como o SPT tem como objetivo a

cooperação com os Estados Partes e não a condenação, a confidencialidade das visitas visa

criar um ambiente de trabalho fundado no diálogo, evitando criar constrangimentos com a

publicidade, exceto se o Estado Parte aceitar a publicação ou deixe de cooperar com o SPT,

conforme artigo 16, 2 e 4.

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O SPT começou a atuar em fevereiro de 2007, com dez membros. Mas, já em 2010,

aumentou sua composição para vinte e cinco membros, após a qüinquagésima ratificação ou

adesão ao Protocolo Facultativo, em conformidade com o artigo 5, 1.

O Brasil ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros

Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes em 17 de abril de 2007, por meio

do Decreto Legislativo nº 6.085. Em decorrência da ratificação o Brasil assumiu a obrigação

de manter, designar ou estabelecer um ou mais mecanismos preventivos nacionais

independentes, no prazo de um ano a partir da ratificação (artigo 17).

Esse prazo inicial venceu em 18 de abril de 2008. Porém, só em 2 de agosto de 2013

foi promulgada a Lei nº 12.847/2013 que criou Sistema - SNPCT, o Comitê - CNPCT e

instituiu o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - MNPCT. Uma análise

específica do Sistema - SNPCT, do Comitê - CNPCT e do Mecanismo Nacional de Prevenção

e Combate à Tortura – MNPCT, será procedida em tópico próprio.

Por fim, merece registro que o SPT, na condução de suas atividades, poderá recorrer

a todas as normas internacionais pertinentes a matéria, não se limitando “às disposições da

Convenção da ONU contra a Tortura ao examinar as medidas mais apropriadas para prevenir

a tortura e outras formas de maus tratos” (NAUMOVIC e LONG, 2004, p. 81-82).

Esses instrumentos a disposição do SPT podem ser resumidos pelo quadro abaixo:

Ano Instrumento Órgão

1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos Assembleia Geral da ONU

1957/1977 Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros Conselho Econômico e Social da

ONU

1966 Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos Assembleia Geral da ONU

1969 Convenção Americana de Direitos Humanos OEA

1975 Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a

Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos

ou Degradantes

Assembleia Geral da ONU

1979 Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela

Aplicação da Lei.

Assembleia Geral da ONU

1982 Princípios de Ética Médica Aplicáveis à Função do Pessoal

de Saúde, especialmente aos Médicos, na Proteção de

Prisioneiros e Detidos conta a Tortura e Outros Tratamentos

ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes

Assembleia Geral da ONU

1984 Garantias para a Proteção dos Direitos das Pessoas Sujeitas a

Pena de Morte

Conselho Econômico e Social da

ONU

1985 Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às

Vítimas da Criminalidade e do Abuso do Poder

Assembleia Geral da ONU

1985 Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da

Justiça da Infância e da Juventude (“Regras de Beijing”)

Assembleia Geral da ONU

1985 Princípios Básicos Relativos à Independência da

Magistratura

Assembleia Geral da ONU

1988 Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas

Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão

Assembleia Geral da ONU

1990 Princípios Básicos Relativos ao Tratamento de Reclusos Assembleia Geral da ONU

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1990 Regras das Nações Unidas para a Proteção de Jovens

Privados de Liberdade

Assembleia Geral da ONU

1990 Princípios Relativos à Eficaz Prevenção e Investigação das

Execuções Extrajudiciais, Arbitrárias ou Sumárias

Conselho Econômico e Social da

ONU

1990 Princípios Básicos Relativos à Função dos Advogados VIII Congresso da ONU sobre a

Prevenção do Crime e o

Tratamento dos Delinquentes

1990 Princípios Básicos sobre o Uso da Força e de Armas de Fogo

pelos Funcionários Responsáveis pela a Aplicação da Lei

VIII Congresso da ONU sobre a

Prevenção do Crime e o

Tratamento dos Delinquentes

1990 Princípios Orientadores Relativos à Função dos Membros do

Ministério Público

VIII Congresso da ONU sobre a

Prevenção do Crime e o

Tratamento dos Delinquentes

1990 Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da

Delinquência Juvenil (“Diretrizes de Riad”)

Assembleia Geral da ONU

1991 Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de

Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde

Mental

Assembleia Geral da ONU

1992 Declaração sobre a Proteção de todas as Pessoas contra os

Desaparecimentos Forçados

Assembleia Geral da ONU

1997 Diretrizes para Ação Relativa a Crianças no Sistema de

Justiça Criminal

Conselho Econômico e Social da

ONU

2000 Princípios sobre Investigação e Documentação Eficaz de

Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos

ou Degradantes(“Protocolo de Istambul”)

Assembleia Geral da ONU

Como já exposto, o Brasil ao ratificar a Convenção das Nações Unidas contra a

Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes em 15 de fevereiro

de 1991, e o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou

Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes em 19 de abril de 2007, assumiu compromissos

internacionais, dentre eles o de criar no ordenamento interno norma para tipificar do ato de

tortura. Assumiu também o compromisso de designar ou estabelecer um ou mais de um

mecanismo preventivo nacional.

Antes de tratarmos desses dois temas, vamos tratar, em passant¸ pela

constitucionalização da proibição da tortura.

2.2 – O arcabouço normativo nacional

A Constituição Federal de 1988 vai constitucionalizar a proibição da tortura ao

incluir o inciso III no art. 5º, com status de direito fundamental, por está inserido no Título II

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– Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I - Dos direitos e deveres individuais e

coletivos e, por isso, ser uma cláusula pétrea17

.

Já a Lei nº 9.455/97, apesar da conquista da tipificação da tortura como crime, trouxe

em seu corpo algumas questões que geram dificuldades para o combate e punição da tortura.

A Lei nº 12.847/2013 que criou Sistema e o Comitê e instituiu o Mecanismo

Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, segue os comandos do direito internacional dos

direitos humanos para criação e funcionamento dos mecanismos nacionais, com pequenas

particularidades.

A Constituição Federal de 1988 é fruto da luta da sociedade brasileira contra o

autoritarismo do regime militar, marcado pela violação dos direitos e garantias mais

elementares, e, nesse contexto, buscou constitucionalizar direitos fundamentais individuais e

coletivos.

Na esteira do constitucionalismo contemporâneo, incorporou ao seu texto,

expressamente, o princípio da dignidade da pessoa humana, colocando-a como princípio

fundante da República e do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III).

Sobre o acerto e a importância da inclusão do princípio da Dignidade Humana na

Constituição, assim se posicionou Ingo Wolfgang Sarlet (2002, p. 68):

a exemplo do que ocorreu, entre outros países, na Alemanha -, além de ter tomado

uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do

exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o

Estado que existe em função da pessoa, e não o contrário, já que o ser humano

constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.

Vamos buscar também em Ingo Sarlet o conceito mais abrangente para dignidade da

pessoa humana (2002, p.60):

A dignidade da pessoa humana corresponde à qualidade intrínseca e distintiva de

cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte

do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e

deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de

cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais

mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação

ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão

com os demais seres humanos.

O conceito acima pode ser explicitado pelo seguinte ensinamento de Ernst Bloch

(apud PÉREZ LUÑO, 1992, p. 318) ao destacar que a dignidade da pessoa humana possui

17

São dispositivos constitucionais que não podem ser alterados por emendas constitucionais, conforme art. 60,

§4º, inciso IV da Constituição Federal.

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duas dimensões que lhe são constitutivas: a) a negativa, que significa que a pessoa não pode

ser objeto de ofensas ou humilhações; b) a positiva, que presume o pleno desenvolvimento e

autodeterminação de cada pessoa.

É exatamente nessa dimensão negativa que a dignidade da pessoa humana vai ser

violada pela tortura, conforme já registrado diversas vezes ao longo desse trabalho.

A Constituição Federal além de vedar a prática da tortura no art. 5º, inciso III, ao

estatuir que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”,

inseriu a prática da tortura na categoria dos crimes considerados “inafiançáveis e insuscetíveis

de graça ou anistia”, conforme estatuído no art. 5º, inciso XLIII:

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a

prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os

definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os

executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Estabeleceu também a nossa Carta Magna que respondem pela conduta, como

sujeitos ativos, “os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem” (CF,

art. 5º, inciso XLIII, parte final).

E ainda, de forma implícita, trata da questão da tortura, no art. 5º, inciso XLVII,

alínea “e”, quando estabelece que “não haverá penas cruéis” e no inciso XLIX quando

assegura “aos presos a integridade física e moral”.

Porém, a Constituição delegou para a legislação infraconstitucional a tarefa de

definir e tipificar o delito de tortura (CF, art. 5º, inciso XLIII).

O doutor muito invocado

Gritou o coro vai comer

Tira a roupa do malandro

E bate até o cavalo correr

(Bezerra da Silva em Zé Fofinho de Ogum)

Além da previsão na Constituição acima exposta, o Brasil ao ratificar a Convenção

contra a Tortura da ONU em 1991 assumiu a obrigação de assegurar que todos os atos de

tortura sejam considerados crimes segundo a sua legislação penal, art. 4º, 1 da Convenção.

Apenas em 30 de agosto de 1994, portanto quase seis anos após a promulgação da

Constituição e mais de três anos após a ratificação da Convenção contra a Tortura da ONU, é

que aportou na Mesa da Câmara dos Deputados a MSC nº 664 do Executivo Federal,

tornando-se o PL 4716/1994 que “Define os crimes de tortura e dá outras providências”

(CÂMARA, 1996, p. 1).

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O PL 4716/1994 tramitou de forma ordinária na Câmara dos Deputados até 15 de

maio de 1996, quando a Presidência da República solicitou que fosse atribuído regime de

urgência ao projeto, tendo sido deferido o pedido (CÂMARA, 1996, p. 2).

Em 3 de julho de 1996 o PL 4716/1994 foi a discussão e votação em turno único no

Plenário da Câmara dos Deputados, tendo a Mesa feito o seguinte registro (CÂMARA, 1996,

p. 2-3):

DISCUSSÃO EM TURNO UNICO. DISCUSSÃO DO PROJETO PELOS DEP

JOSE GENOINO, GERSON PERES, ARNALDO FARIA DE SA, ALDO

ARANTES, AGNALDO TIMOTEO, ALMINO AFFONSO E VICENTE

CASCIONE. ENCERRADA A DISCUSSÃO. APRESENTAÇÃO DE EMENDA

AGLUTINATIVA, PELOS DEP VICENTE CASCIONE, HELIO BICUDO E

ZULAIE COBRA. DESIGNAÇÃO DO RELATOR, DEP REGIS DE OLIVEIRA,

PARA PROFERIR PARECER A EMENDA AGLUTINATIVA, EM

SUBSTITUIÇÃO A CCJR, QUE CONCLUI PELA CONSTITUCIONALIDADE,

JURIDICIDADE E TECNICA LEGISLATIVA. ENCAMINHAMENTO DA

VOTAÇÃO PELOS DEP PEDRO WILSON E GILNEY VIANA. APROVAÇÃO

DA EMENDA AGLUTINATIVA, RESSALVADOS OS DESTAQUES.

PREJUDICADAS AS DEMAIS PROPOSIÇÕES. PREJUDICADO O DESTAQUE

DO DEP JAIR BOLSONARO. REJEIÇÃO DAS ESPRESSÕES ' OU GRAVE

AMEAÇA' E 'OU MENTAL', CONSTANTE DO ARTIGO PRIMEIRO DA

EMENDA AGLUTINATIVA. VERIFICAÇÃO DE VOTAÇÃO SOLICITADA

PELO DEP JAIR BOLSONARO, NA QUALIDADE DE LIDER DO BLOCO

PPB/PL: SIM 83; NÃO 272; ABST 06; TOTAL361. REJEIÇÃO DO

REQUERIMENTO. REJEIÇÃO DO REQUERIMENTO DO DEP JAIR

BOLSONARO, DE DESTAQUE PARA AS EXPRESSÕES: 'GRAVE AMEAÇA'

E 'OU MENTAL', CONSTANTE DO ARTIGO PRIMEIRO DO INCISO II DA

EMENDA AGLUTINATIVA. RETIRADOS OS DEMAIS DESTAQUES.

APROVAÇÃO DA REDAÇÃO FINAL, OFERECIDA PELO RELATOR, DEP

NILSON GIBSON.

É possível constatar do extrato acima que alguns parlamentares envolvidos da

tramitação, discussão e votação do PL 4716/1994 têm um histórico na luta democrática e com

bom conhecimento sobre a matéria: JOSE GENOINO, ALDO ARANTES, ALMINO

AFFONSO, VICENTE CASCIONE, HELIO BICUDO, PEDRO WILSON E GILNEY

VIANA. Por outro lado, também está presente nesse contexto, o deputado Jair Bossanaro, de

tradição anti-democrática e contrária a efetivação dos direitos humanos, que tenta retirar da

Lei as expressões “grave ameaça” e “sofrimento mental”, tendo conseguido a adesão de 83

parlamentares ao seu destaque, que foi rejeitado com 272 votos contrários (CÂMARA, 1996,

p. 2-3).

Em 10 de julho de 1996, a movimentação do PL 4716/1994 registra o seu envio ao

Senado (CÂMARA, 1996, p. 3).

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Nos dias 3, 5 e 7 de março de 1996, um cinegrafista amador filmou um grupo de

policiais militares de São Paulo que, sob o pretexto de fazerem uma blitz, extorquiam,

humilhavam e espancavam cidadãos indefesos da Favela Naval, em Diadema, São Paulo.

Na madrugada do dia 7 de março, os policiais militares abordaram um veículo gol e

tentaram roubar os ocupantes do carro. Como esses não possuíam dinheiro, foram submetidos

a uma sessão de espaçamento com cassetetes, chutes, socos e pontapés. Após a sessão de

espancamento os ocupantes do veículo gol foram liberados. Porém, um dos policiais militares,

posteriormente identificado como sendo o soldado Otávio Lourenço Gambra, conhecido como

Rambo, efetuou dois disparos contra o automóvel, sendo que um dos tiros atingiu a nuca de

Mario José Josino que estava no banco traseiro do veículo. Mario José faleceu algumas horas

depois num hospital público de Diadema18.

No dia 31 de março de 1997 o Jornal Nacional da Rede Globo exibiu uma

reportagem com imagens gravadas pelo cinegrafista amador desses abusos na Favela Naval.

As imagens exibidas em horário nobre na televisão brasileira geraram um clima de indignação

e com grande repercussão nacional e internacional, pois a Rede Globo “repassou” as imagens

para redes de tvs no exterior.

Três dias após a exibição da reportagem sobre o Caso da Favela Naval, no dia 3 de

abril de 1997, a movimentação do PL 4716/1994 registra o seu envio para sanção (CÂMARA,

1996, p. 3). E no dia 7 de abril ocorreu a publicação da Lei nº 9.455/97, com o seguinte

conteúdo:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe

sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira

pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de

violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de

aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de

segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não

previsto em lei ou não resultante de medida legal.

18

Em outubro de 1998 o ex-policial Otávio Gambra foi condenado a 65 anos de reclusão pela justiça comum.

Em maio de 1999, desembargadores do Tribunal de Justiça anularam o júri que condenou o ex-policial Otávio

Lourenço Gambra, determinando u novo julgamento, que aconteceu em 2000 e fixou uma sentença de 47 anos

de prisão. Em 2001, o Tribunal de Justiça acatou recuso da defesa de Otávio Lourenço Gambra e diminuiu a

pena de Gambra para 15 anos de reclusão. Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Favela_Naval>, e

acessado em 10 de janeiro de 2015.

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§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las

ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão

de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.

§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I - se o crime é cometido por agente público;

II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência;

III - se o crime é cometido mediante seqüestro.

§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a

interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

§ 6º O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

§ 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o

cumprimento da pena em regime fechado.

Art. 2º O disposto nesta Lei aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido

em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local

sob jurisdição brasileira.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4º Revoga-se o art. 233 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da

Criança e do Adolescente.

Como é possível constatar, a Lei nº 9.455/97, que ficou conhecida como a Lei de

Tortura, se resume basicamente ao seu artigo primeiro. A Lei apresenta vários problemas,

merecendo destaque; a não definição de tortura, construindo um tipo penal aberto, cuja

definição depende do intérprete da Lei; a tipificação do delito de tortura como crime comum;

e a quase total tolerância com a omissão das autoridades.

Porém, não se sabe o motivo desses deslizes, já que a alegada pressa na votação não

tem fundamento, pois a votação na Câmara ocorreu antes do Caso da Favela Naval.

Desconhecimento também não parece, posto que, como já foi referido acima, houve a

participação de parlamentares com conhecimento e compromisso com a temática. Por fim,

resta a especulação que talvez tenha ocorrido um famoso “acordo para votação”, muito

comum nos parlamentos, concretizando o dito popular de “ruim com tu, pior sem tu”.

A hipótese do “acordo para votação” parece bastante crível diante da fala do

deputado José Genuíno durante os debates na vigésima sétima reunião ordinária da Comissão

de Constituição e Justiça e Redação (CÂMARA, 1996, p. 152):

A não-regulamentação, a não-definição do crime de tortura se constitui uma lacuna.

Portanto, minha primeira opinião é no sentido de destacar a importância desse

projeto e do substitutivo de iniciativa do Poder Executivo, o trabalho ágil do

deputado Régis de Oliveira e a importância de aprová-lo, de preferência hoje.

Entretanto, essas opções do legislador brasileiro terá consequências na aplicação da

Lei nº 9.455/97, dificultando o combate à tortura e à cultura da impunidade, como será

demonstrado no momento da análise da tentativa de implementação de uma política de

prevenção à tortura.

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Ao contrário do estatuído no direito internacional dos direitos humanos sobre tortura,

principalmente nas Convenções sobre Tortura da ONU e OEA, a Lei nº 9.455/97 tipificou o

crime de tortura como crime comum, aquele que pode ser praticado por qualquer pessoa, e

não como crime próprio, aquele que somente pode ser praticado por uma determinada

categoria de pessoas, no caso da tortura o agente público lato senso.

Luís Fernando Camargo de Barros Vidal assim aborda a questão (2001, p. 23):

É indiscutível que a Lei n. 9.455/97 atropelou o que dispõe o Direito internacional

de direitos Humanos sobre a tortura ao ampliar seu conceito, sobretudo ao

caracterizar como comum o crime de tortura, pois tanto a Convenção contra a

Tortura ou outros Tratamentos ou Penas Cruéis de 1984, como a Convenção

Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura de 1985, adotam uma noção bem

mais restrita que podemos resumir no emprego da força bruta por agentes do estado.

Alberto Silva Franco chega ao extremo de alegar a inconstitucionalidade da Lei nº

9.455/97, posto que a “caracterização da tortura como crime comum implica

inconstitucionalidade, pois as normas internacionais, que gozam de status constitucional,

caracterizam-na como crime especial” (Apud VIDAL, 2001, 26).

Outro problema foi a ausência de definição da tortura, tipo penal fechado19, optando-

se pela construção de um tipo aberto. Sérgio Salomão Shecaira (1997, p. 1) argumentar que o

legislador poderia ter optado pelo tipo penal fechado, pois já existia uma conceituação de

tortura a disposição, a presente no artigo 186 do anteprojeto de Código Penal de 1994, como

sendo:

[...] ato doloroso ou produtor de sofrimentos físicos, como golpes com emprego ou

não de instrumentos, choques elétricos, queimaduras, posições forçadas, violação ou

agressão sexual, exposição ao frio, submersão em água para produção de asfixia

parcial, ataques para o rompimento do tímpano ou qualquer ato equivalente que

produza dor ou sofrimento físico. São descritos como atos de tortura, também,

aqueles que produzissem ‘sofrimento psíquico tais como simulacro de execução,

privação do sono, exposição contínua a ruídos, confinamento, ameaças, observação

de tortura alheia, submissão de parentes a violências ou agressões sexuais, ou outros

atos equivalentes idôneos a produzir seqüelas mentais’.

As consequências da tipificação do delito de tortura como tipo penal aberto será a

possibilidade de desclassificação, pelos juízes intérpretes, para outros tipos penais, cujas

penas são bem menores que as do crime de tortura.

19

Nesse ocorre a descrição completa das condutas, sem deixar para o intérprete, praticamente, “outra tarefa além

da constatação da correspondência entre a conduta concreta e a descrição típica”. No aberto, a descrição

incompleta do modelo da conduta proibida, transfere para o intérprete a responsabilidade de completar o tipo,

“dentro dos limites e das indicações nele próprio contido” (SHECAIRA, 1997, p. 1)

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Também não agiu bem o legislador ao fixar a pena de detenção de um a quatro anos

para a omissão frente à tortura. Esta pena, por suas consequências, é quase uma tolerância

com aqueles que se omitem, mesmo tendo o dever de evitá-la ou de apurá-la, conforme § 2º

do art. 1º da Lei nº 9.455/97. Esta penalidade pode possibilitar a concessão de sursis ou

suspensão condicional do processo devido a pena mínimo em abstrato ser de um ano, ou, não

ocorrendo, ter como regime inicial o aberto ou semi-aberto, mas nunca o regime fechado,

diante da vedação contida no § 7º do art. 1º da Lei nº 9.455/97.

Durante os debates na vigésima sétima reunião ordinária da Comissão de

Constituição e Justiça e Redação o deputado Aldo Arantes vai questionar a brandura das

penas:

(...) e, sinceramente, considero que as penas estão muito brandas pela gravidade do

crime.

Por exemplo, tortura seguida de morte tem pena de reclusão de dez a vinte anos.

Ora, para um crime de morte, a pena pode atingir até trinta anos. Estou entendendo

que esta pena é uma benevolência com o torturador que assassina. Considero que o

assassinato mais hediondo é aquele praticado sob tortura, e essa pena é pequena

Por fim e para aumentar a problemática, o art. 3º, inciso I da Lei nº 12.847/2013, fez

a seguinte definição de tortura:

Art. 3o Para os fins desta Lei, considera-se:

I - tortura: os tipos penais previstos na Lei no 9.455, de 7 de abril de 1997, respeitada

a definição constante do Artigo 1 da Convenção Contra a Tortura e Outros

Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, promulgada pelo Decreto

no 40, de 15 de fevereiro de 1991.

A Lei nº 9.455/97 tipificou o crime de tortura como crime comum, já a Convenção

contra a Tortura da ONU, como crime próprio praticado por agente público. Como se

resolverá este antagonismo normativo? Em princípio, prevalece o dispositivo da Convenção

contra a Tortura pelo seu caráter de norma constitucional. Mas será esse o entendimento de

nossos doutrinadores e do Judiciário?

Criou-se mais uma “lei para inglês ver”?

2.3 – A visita do Relator Especial Nigel Rodley

A Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 1985, criou o mandato de Relator

Especial sobre Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes,

pela Resolução 1985/33 (MAIA, 2006, p. 73). Cabendo ao Relator Especial “examinar

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práticas internacionais relativas à tortura em qualquer Estado, independentemente do tratado

ao qual esteja vinculado” (FOLEY, 2011, p. 38).

O Relator Especial anualmente e publicamente reporta-se à Comissão de Direitos

Humanos e à Assembléia Geral das Nações Unidas, mediante relatórios. Esses relatórios

podem “incluir observações gerais sobre o problema da tortura em países específicos” ou

ainda “tratar de questões específicas ou desdobramentos que influenciam ou favorecem a

tortura no mundo, além de oferecer conclusões e recomendações” (FOLEY, 2011, p. 39).

Ainda segundo Conor Foley (2011, p. 39) o Relator Especial “pode fazer visitas caso

o Estado o convide ou permita a sua visita. Os relatórios dessas missões geralmente são

publicados como adendo ao relatório principal do Relator Especial à Comissão de Direitos

Humanos”.

Assim, em novembro de 1998 o Relator Especial, Sir Nigel Rodley, solicitou uma

visita ao Brasil, posto que ao “longo dos últimos anos (ver E/CN. 4/1999/61, parágrafos 86 e

seguintes, E/CN.4/2000/9, parágrafos 134 e seguintes)” vinha “recebendo informações

segundo as quais a polícia rotineiramente espancava e torturava suspeitos de crimes para

extrair informações, confissões ou dinheiro”, bem como:

O problema da brutalidade policial quando da prisão ou durante o interrogatório,

segundo os relatos, seria endêmico. O fato de não se investigar, processar e punir

agentes policiais que cometem atos de tortura havia - segundo os relatos recebidos -

criado um clima de impunidade que estimulava contínuas violações dos direitos

humanos. (RODLEY, 2001, p. 2-3)

Em maio de 2000 o Governo do Brasil convidou o Relator Especial a “realizar

missão de levantamento de fatos ao País, como parte de seu mandato” (RODLEY, 2001, p. 1).

A visita ocorreu de 20 de agosto ao dia 12 de setembro de 2000 e teve como objetivo permitir

ao Relator a coleta de informações

em primeira mão a partir de uma ampla gama de contatos, a fim de melhor avaliar a

situação da tortura no Brasil, permitindo, assim, que o Relator Especial

recomendasse ao Governo um conjunto de medidas a serem adotadas no intuito de

assegurar o cumprimento de seu compromisso de pôr fim a atos de tortura e outras

formas de maus tratos.

O Relatório examinou 348 casos em que foram formuladas alegações de práticas de

tortura (MAIA, 2006, p. 73) e foi apresentado à Comissão de Direitos Humanos da ONU pelo

Relator Especial, em 11 de abril de 2001.

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O Relator Especial visitou o Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas

Gerais, Pernambuco e Pará. Quando da visita a Brasília reuniu-se com o Presidente da

República Federativa do Brasil, o Ministro da Justiça, o Secretário de Estado para Direitos

Humanos, a Secretária Nacional de Justiça, o Secretário Geral do Ministério das Relações

Exteriores, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Presidente do Superior Tribunal de

Justiça, o Procurador Geral da República, o Presidente da Comissão de Direitos Humanos da

Câmara dos Deputados, membros da Comissão e o Presidente da Subcomissão de Prevenção e

Punição da Tortura, e com a Procuradora Federal para Direitos do Cidadão.

Na visita aos Estados o Relator Especial reuniu-se com os Governadores, Secretários

de Segurança Pública, Secretários de Justiça (ou de Administração Penitenciária), Ouvidores

da Polícia, Presidentes dos Tribunais de Justiça Procuradores-Gerais de Justiça e com

membros da Comissão de Direitos Humanos das Assembleias Legislativas, dentre outras

autoridades.

Em todas as cidades, à exceção de Brasília, delegacias de polícia/carceragens

policiais, centros de detenção pré-julgamento, penitenciárias e centros de detenção para

menores infratores.

Nas visitas as cidades o Relator Especial também se avistou com pessoas que teriam

sido vítimas de tortura ou de outras formas de maus tratos, com pessoas cujos familiares

supostamente haviam sido vítimas de tortura ou de outras formas de maus tratos e recebeu

informação verbal e/ou por escrito da parte de organizações não-governamentais (ONGs), de

quem recebeu informações e um grande número de denúncias de tortura (RODLEY, 2001,

p.3):

– das quais uma seleção encontra-se reproduzida no Anexo ao presente Relatório –

que indicavam que a tortura é prática generalizada e, na maioria das vezes, envolve

pessoas das camadas mais baixas da sociedade e/ou de descendência africana ou que

pertencem a grupos minoritários.

Ainda com relação às vitimas mais comuns, o Relatório registra que “aos olhos dos

funcionários encarregados da execução da lei” o fato da pessoa ser de descendência africana

ou pertencer a um grupo minoritário ou marginalizado, “e, em particular, uma combinação

dessas características, tornam tais pessoas mais facilmente suspeitas de atos criminosos”

(RODLEY, 2001, p.3).

Saltam aos olhos o caráter seletivo e de classe do perfil das vítimas constante no

Relatório do Perito da ONU.

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Segundo o Relatório (RODLEY, 2001, p. 3), esses atos ocorriam por meio de

espancamentos com barras de ferro ou bastões de madeira ou palmatória (um pedaço

de madeira plano, porém espesso, com a aparência de uma esponja grande, que teria

sido usado para espancar a palma das mãos e a sola dos pés dos escravos no Brasil),

bem como técnicas descritas como "telefone", que consiste em bater, repetidas

vezes, contra os ouvidos da vítima, alternada ou simultaneamente, e "pau-de-arara",

que consiste em espancar uma vítima pendurada de cabeça para baixo e submetida a

choques elétricos em várias partes do corpo, inclusive os órgãos genitais, ou a

sufocamento com sacos plásticos, às vezes cheios de pimenta, colocados por sobre a

cabeça das vítimas.

Como se observa os métodos e técnicas mais utilizadas se perpetuam ao longo dos

séculos, alguns remontando ao Período Colonial, já outros foram aprimorados, lapidados,

inclusive com aulas práticas com vítimas reais, durante a ditadura militar.

E os motivos da tortura seriam “fazer com que as pessoas presas assinassem uma

confissão ou extrair um suborno, ou punir ou intimidar pessoas suspeitas de haverem

cometido um crime” e “usados para punir os presos que supostamente desobedeceram regras

disciplinares internas” ou ainda “como forma de indicar aos recém-chegados quem manda no

lugar” (RODLEY, 2001, p. 3-5).

E quem são os torturadores apontados pelo Relator Especial? Segundo a análise dos

dados constantes no Relatório de Nigel Rodley feita por Luciano Maia (2006, p. 89), a

“polícia militar é apontada como responsável pela tortura em 39,3% dos casos”, a “polícia

civil é apontada como responsável pela tortura em 36,3%”, e os “funcionários de prisões e

estabelecimentos de internação de menores são responsáveis por 17,7% dos casos de torturas”

Luciano Maia (2001, p. 51), indica que a tortura é um delito de oportunidade, sendo

necessário para prevenir a sua prática, remover essas oportunidades:

As medidas preventivas objetivam remover as oportunidades em que a tortura é

praticada. Quem quer que tenha estudado o problema sabe que a tortura tipicamente

tem lugar quando a vítima está à mercê dos seus captores ou interrogadores, sem

supervisão externa, sem acesso ao mundo exterior, notadamente familiares e

advogados.

O professor Luciano Maia (2006, p. 300-301), a partir da Teoria das Oportunidades

para a Prática de Delitos, formula a classificação das Recomendações do Relator Especial da

ONU para a Tortura em quatro grupos: a) o primeiro grupo inclui as recomendações que

objetivam ou resultam em aumento de dificuldade para a prática do crime; b) o segundo

abrangeria aquelas que objetivam ou resultam em aumento do risco para a prática do crime

(aumento do risco de punição e responsabilização, ou fatos ou eventos custosos e danosos); c)

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o terceiro enquadraria as que objetivam ou resultam em redução de possíveis recompensas; e

d) por fim, no quarto grupo estaria aquelas que objetivam ou resultam em remoção de

desculpas.

Essa classificação será importante quando da análise das medidas adotadas, ou não,

com o objetivo de combater e prevenir a tortura pelas autoridades brasileiras.

A repercussão da visita e do Relatório de Nigel Rodley foi muito grande, tanto no

Brasil, quanto no exterior, devido aos fatos relatados e a autoridade de quem o fazia, tendo

produzido “impacto diferenciado, pelo contato com fontes primárias de informação, pela

abrangência de articulação, pela profundidade de análise, e pela objetividade das conclusões e

recomendações” (MAIA, 2006, p. 286).

Para Luciano Mariz Maia (2006, p. 307-308) “é possível afirmar que o relatório de

Sir Nigel Rodley contém diretrizes para uma política criminal de combate à tortura”. Posto

que:

[...] o relatório examina os aspectos criminológicos da tortura – quem é vítima, quem

é agressor, em que contexto a tortura acontece. Identifica a legislação existente, não

apenas a que criminaliza a tortura, mas a que disciplina o funcionamento dos atores

do sistema justiça e segurança e de todas as instituições envolvidas com a prevenção

e repressão à conduta. Observa, em seu funcionamento, o que guarda e o que não

guarda compatibilidade com as obrigações internacionais assumidas pelo Estado

brasileiro. E formula proposições concretas, que podem vir a ser adotadas pelo

Estado, no sentido de assegurar a efetiva implementação das suas obrigações

internacionais. Sem sombra de dúvida, as recomendações são diretrizes para uma

política criminal de combate à tortura.

Inclusive, o Governo Brasileiro nos Comentários ao informe do Relator Especial

Nigel Rodley indica que as recomendações seriam uma “ferramenta útil que servirá de

orientação para a discussão, adoção e implementação de políticas públicas no campo de

promoção e proteção dos direitos humanos, especialmente no que tange ao combate a tortura”

(BRASIL, 2001, p.)

Essas medidas estão sendo adotas e as recomendações estão sendo consideradas? O

que registram os relatórios oficiais e de entidades não-governamentais sobre a prática da

tortura por agentes públicos nos últimos dez anos?

O Governo Brasileiro optou por criar organismos novos como mecanismos nacionais

para prevenir e combater a tortura e assim, com vários anos de atraso, foi publicada a Lei nº

12.847/2013.

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2.4 – O Sistema Nacional de Prevenção e Combate a Tortura

É o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou

Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 18 de dezembro de 2002, ratificado por meio do

Decreto Legislativo nº 6.085/2007, que vai criar a obrigação para o Governo Brasileiro de

instituir um mecanismo de prevenção e combate à tortura (artigo 3) e impor aos Estados

Partes a obrigação de criar e manter um mecanismo preventivo nacional (artigos 17 ao 23), no

prazo de um ano a partir da entrada em vigor do Protocolo.

Desta forma, o Brasil, ao ratificar o Protocolo Facultativo em 2007, assumiu a

obrigação de, no prazo de 1 ano, criar um ou mais mecanismos preventivos, conforme

previsão do artigo 17 (NAUMOVIC e LONG, 2004, p. 116):

Artigo 17 Cada Estado Parte deverá manter, designar ou estabelecer, dentro de um

ano da entrada em vigor do presente Protocolo ou de sua ratificação ou adesão, um

ou mais mecanismos preventivos nacionais independentes para a prevenção da

tortura em nível doméstico. Mecanismos estabelecidos através de unidades

descentralizadas poderão ser designados como mecanismos preventivos nacionais

para os fins do presente Protocolo se estiverem em conformidade com suas

disposições.

Porém, apenas em 2013, como a aprovação da Lei nº 12.847, de 2 de agosto de 2013,

é que foi instituído o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - SNPCT, que

inclui a criação do Comitê Nacional – CNPCT, e do Mecanismo Nacional de Prevenção e

Combate à Tortura - MNPCT, nos termos do Protocolo Facultativo à Convenção da ONU

contra a Tortura.

O Decreto nº 8.154/2013, de 16 de dezembro de 2013, regulamentou o

funcionamento do SNPCT, a composição e o funcionamento do CNPCT e dispõe sobre o

MNPCT.

O principal problema trazido pela Lei nº 12.847/2013 foi atribuir a escolha e

designação dos membros do CNPCT e a designação dos membros do Mecanismo como

prerrogativa da Presidência da República, art. 7º, §1º . Tal dispositivo viola recomendação do

OPCAT.

O SNPCT tem como objetivos, art. 1º: “fortalecer a prevenção e o combate à tortura,

por meio de articulação e atuação cooperativa de seus integrantes, dentre outras formas,

permitindo as trocas de informações e o intercâmbio de boas práticas”. A composição do

SNPCT prevista no art. 2º é que ele será

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[...] integrado por órgãos e entidades públicas e privadas com atribuições legais ou

estatutárias de realizar o monitoramento, a supervisão e o controle de

estabelecimentos e unidades onde se encontrem pessoas privadas de liberdade, ou de

promover a defesa dos direitos e interesses dessas pessoas. (CEPCT-PB, 2013, p.

91-92)

São princípios do SNPCT, previstos no art. 4º: “I - proteção da dignidade da pessoa

humana; II - universalidade; III - objetividade; IV - igualdade; V - imparcialidade; VI - não

seletividade; e VII - não discriminação” (CEPCT-PB, 2013, p. 94).

O CNPCT, art. 6º, tem como função prevenir e combater a tortura e outros

tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, e é composto por “por 23 (vinte e

três) membros, sendo 11 (onze) representantes de órgãos do Poder Executivo Federal e 12

(doze) de conselhos de classes profissionais e de organizações da sociedade civil, tais como

entidades representativas de trabalhadores, estudantes, empresários, instituições de ensino e

pesquisa, movimentos de direitos humanos e outras cuja atuação esteja relacionada com a

temática de que trata esta Lei” (art. 7º )(CEPCT-PB, 2013, p. 97).

A escolha e designação dos membros do Comitê é prerrogativa da Presidência da

República, conforme art. 7º da Lei 12.847/2013, sendo que o seu Presidente é o Ministro de

Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, art. 7º, §1º.

Em 30 de janeiro de 2014, o Edital n.º 1, do SNPCT, fez a convocação dos

“conselhos de classe profissionais de âmbito nacional e as organizações da sociedade civil

com atuação relacionada à prevenção e ao combate à tortura para participar do chamamento

público para a composição do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT)

referente ao biênio 2014-2015” (BRASIL, 2014).

Nesta mesma data foi publicada a Portaria nº 35, que instituiu o “Comitê

Organizador do Chamamento Público e a Mesa Diretora da Assembleia de Escolha com a

finalidade de coordenar as atividades referentes ao chamamento público para a escolha dos

conselhos de classe profissional e das organizações da sociedade civil visando à composição

de lista a ser encaminhada à Presidenta da República para compor o CNPCT referente ao

biênio 2014-2015” (BRASIL, 2014).

Finalmente, o resultado do chamamento público foi homologado pelo Edital nº 2, de

13 de Março de 2014 (BRASIL, 2014). Assim, no dia 24 de julho de 2014, após realização de

chamamento público, foi assinado pela Presidenta da República decreto designando os órgãos

que compõem o Comitê e seus os 46 (quarenta e seis) representantes, entre titulares e

suplentes (BRASIL, 2014).

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Os onze órgãos do Poder Executivo Federal no CNPCT são: Secretaria de Direitos

Humanos da Presidência da República; Casa Civil da Presidência da República; Ministério da

Justiça; Ministério da Defesa; Ministério das Relações Exteriores; Ministério da Educação;

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Ministério da Saúde; Secretaria

Geral da Presidência da República; Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

da Presidência da República; Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da

República (Brasil, 2014, p. 1).

Já os conselhos de classes profissionais e de organizações da sociedade civil

nomeados foram: Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude –

ASBRAD; Associação de Apoio e Acompanhamento - Pastoral Carcerária Nacional –

ASSAC; Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB; Associação Nacional dos Centros

de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED; Associação Redes de Desenvolvimento da

Maré; Central Única dos Trabalhadores – CUT; Conselho Federal da Ordem de Advogados

do Brasil – OAB; Conselho Federal de Psicologia – CFP; Grupo Tortura Nunca Mais da

Bahia - GTMN-BA; Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM; Movimento

Nacional de Direitos Humanos – MNDH; Rede Nacional Internúcleos da Luta

Antimanicomial – RENILA (Brasil, 2014, p. 1).

Mesmo não estando previsto na lei, mas apenas no decreto, o que foi objeto de crítica

de algumas entidades de direitos humanos, os órgãos do Poder Executivo Federal indicaram

cinco mulheres e cinco homens como seus representantes20

. Por sua vez, os conselhos de

classes profissionais e de organizações da sociedade civil indicaram cinco mulheres e sete

homens (BRASIL, 2014).

Por fim, completando o Sistema, temos o Mecanismo Nacional de Prevenção e

Combate à Tortura - MNPCT, que veio concretizar compromisso internacional assumido pelo

Estado brasileiro em 2007 com a ratificação do OPCAT, e está sendo instituído “nos termos

do Artigo 3 do Protocolo”, conforme referido no art. 8º da Lei nº 12.847/2013.

O MNPCT é o órgão integrante da estrutura da Secretaria de Direitos Humanos da

Presidência da República21

, responsável pela prevenção e combate à tortura e a outros

tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, nos termos do Artigo 3 do OPCAT.

20

Trata-se dos membros titulares e o no documento divulgado pela SEDH não consta a indicação do (a)

representante da Secretaria Geral da Presidência da República. 21

A Lei nº 12.857/2013 no art. 14, inciso I, alínea “a”, criou os cargos comissionados para os membros do

MNPCT dentro do quadro da SEDH.

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O Mecanismo Nacional é composto por 11 (onze) peritos, escolhidos pelo CNPCT

entre pessoas com notório conhecimento e formação de nível superior, atuação e experiência

na área, que são nomeados pela Presidenta da República, para mandato fixo de 3 (três) anos,

permitida uma recondução (CEPCT-PB, 2013, p. 98-99).

A principal função do MNPCT é a realização de visitas periódicas e regulares aos

locais de privação de liberdade, compreendendo centros de detenção, estabelecimento penal,

hospital psiquiátrico, abrigo de pessoa idosa, instituição socioeducativa ou centro militar de

detenção disciplinar, e constatadas violações, os peritos elaborarão relatórios com

recomendações às demais autoridades competentes, art. 9, incisos I, III e IV da Lei nº

12.847/2013 (CEPCT-PB, 2013, p. 100).

São também atribuições do MNPCT “articular-se com o Subcomitê de Prevenção da

Organização das Nações Unidas; elaborar, anualmente, relatório circunstanciado e

sistematizado sobre o conjunto de visitas realizadas e recomendações formuladas; fazer

recomendações e observações às autoridades públicas ou privadas, responsáveis pelas pessoas

em locais de privação de liberdade; sugerir propostas e observações a respeito da legislação

existente; e publicar os relatórios de visitas periódicas e regulares realizadas e o relatório

anual e promover a difusão deles”, todas previstas no art. 9º da Lei nº 12.847/2013 (CEPCT-

PB, 2013, p. 100-102).

Por sua vez, as garantias asseguradas aos peritos do MNPCT estão em consonância

com as previstas no OPCAT, pois estabelece o art. 10 da Lei 12847/2013:

Art. 10. São assegurados ao MNPCT e aos seus membros:

I - a autonomia das posições e opiniões adotadas no exercício de suas funções;

II - o acesso, independentemente de autorização, a todas as informações e registros

relativos ao número, à identidade, às condições de detenção e ao tratamento

conferido às pessoas privadas de liberdade;

III - o acesso ao número de unidades de detenção ou execução de pena privativa de

liberdade e a respectiva lotação e localização de cada uma;

IV - o acesso a todos os locais arrolados no inciso II do caput do art. 3o, públicos e

privados, de privação de liberdade e a todas as instalações e equipamentos do local;

V - a possibilidade de entrevistar pessoas privadas de liberdade ou qualquer outra

pessoa que possa fornecer informações relevantes, reservadamente e sem

testemunhas, em local que garanta a segurança e o sigilo necessários;

VI - a escolha dos locais a visitar e das pessoas a serem entrevistadas, com a

possibilidade, inclusive, de fazer registros por meio da utilização de recursos

audiovisuais, respeitada a intimidade das pessoas envolvidas; e

VII - a possibilidade de solicitar a realização de perícias oficiais, em consonância

com as normas e diretrizes internacionais e com o art. 159 do Decreto-Lei no

3.689,

de 3 de outubro de 1941- Código de Processo Penal. (CEPCT-PB, 2013, p. 102-103)

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A Lei nº 12.847/2013 também assegura as garantias específicas para isentar o

MNPCT de possível interferência do Estado, conforme §§ 1o, 2

o e 3

o do art. 8º (CEPCT-PB,

2013, p. 99).

O MNPCT deverá atuar em parceria/cooperação com os Mecanismos Estaduais (§ 6o

do art. 8º), bem como de forma articulada com os demais órgãos que compõem o SNPCT.

Sendo que, anualmente, prestará contas das atividades realizadas ao CNPCT, art. 11 da Lei nº

12.847/2013 (CEPCT-PB, 2013, p. 100 e 104).

Por fim, o art. 12 da Lei nº 12.847/2013 prever que a “Secretaria de Direitos

Humanos da Presidência da República garantirá o apoio técnico, financeiro e administrativo

necessários ao funcionamento do SNPCT, do CNPCT e do MNPCT, em especial à realização

das visitas periódicas e regulares previstas no inciso I do caput do art. 9o por parte do

MNPCT, em todas as unidades da Federação” (CEPCT-PB, 2013, p. 104).

Logo em seguida, em 25 de setembro de 2014, o Comitê Nacional lançou o Edital nº

14, que dispunha sobre o “processo de seleção para membros do Mecanismo Nacional de

Prevenção e Combate à Tortura”, com prazo de inscrição entre “25 de setembro e dia 08 de

outubro de 2014” (BRASIL, 2014, p. 1).

Posteriormente, o Comitê Nacional publicou a Resolução nº 002 que instituiu a

Comissão de Seleção para escolha dos Membros do MCPCT, dispôs sobre sua competência e

designou seus membros, sendo três entidades da sociedade civil e três órgãos do Governo

Federal (BRASIL, 2014, p. 1):

I – Associação Redes de Desenvolvimento da Maré;

II – Conselho Federal de Psicologia;

III – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais;

IV – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República;

V – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da

República;

VI – Secretaria Geral da Presidência da República.

A Resolução nº 002/2014, em seu art. 4º, atribuiu à Mesa Diretora do Comitê

Nacional a competência para julgar os recursos interpostos no processo de seleção (BRASIL,

2014, p. 2).

O Resultado Final da fase classificatória foi divulgado em 29 de outubro de 2014,

tendo a “Lista Definitiva de Candidatos Classificados para a Fase de Entrevistas, divulgado

em 5 de novembro de 2014” (BRASIL, 2014, p.1).

A Comissão de Seleção concluiu a escolha, após as entrevistas, e encaminhou a lista

com os nomes dos 11 peritos para homologação do Comitê Nacional. Em reunião

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77

Extraordinária realizada no dia 19 de dezembro de 2014, o Comitê Nacional homologou o

resultado da seleção e no dia 20 de dezembro foi divulgada a lista com os nomes escolhidos

para MNPCT, composta por 8 mulheres e 3 homens ” (BRASIL, 2014, p.1).

Dos membros do MNPCT, 5 são da região Sudeste (3 de São Paulo, 1 de Minas

Gerais e 1 do Rio de Janeiro), 3 da Região Nordeste (2 do Maranhão e 1 de Pernambuco), 1

da região Norte (Tocantins), 1 da região Sul (Santa Catarina) e 1 da região Centro-Oeste

(Distrito Federal), conforme informações colhidas junto aos membros do MNPCT em visita

realizada no dia 17 de junho de 2015.

No dia 12 de março de 2015, a presidenta Dilma Rousseff nomeou os (11) os onze

peritos que irão compor o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

Para a então Ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Ideli Salvatti, a “formação

do MNPCT representa um passo importante no combate à tortura”, pois o “Estado brasileiro

assumiu em nível internacional o compromisso de erradicar essa prática do país, considerada

uma das violações mais graves dos direitos humanos”. Para a Ministra com a criação do

“Mecanismo, teremos peritos com acesso livre a qualquer instituição, verificando as

condições de fato e de direito em que se encontram pessoas privadas de liberdade e apurando

possíveis indícios de tortura” (BRASIL, 2014).

Quadro síntese do arcabouço normativo sobre tortura no Brasil

Ano Legislação Objeto - Dispositivo Observação

1988 Constituição Federal Introduz a temática da tortura na

legislação interna. Art. 5º, incisos

III e XLIII

A Constituição não tipificou a tortura,

previa a regulamentação por lei própria.

1990 Lei nº 8.069 Dispõe sobre o Estatuto da

Criança e do Adolescente e

tipificou a tortura contra criança e

adolescente com crime (Art. 233)

O art. 233 foi expressamente revogado

pela art. 4º da Lei nº 9.455/90

1991 Decreto Legislativo

nº 40

Ratifica a Convenção das Nações

Unidas contra a Tortura e outros

Tratamentos ou Penas Cruéis,

Desumanos e Degradantes – 1984

O art. 1º, 1, tipifica a tortura como

crime próprio, praticado por

funcionário público ou outra pessoa no

exercício de função pública

1992 Decreto nº 678 Ratifica a Convenção

Interamericana para Prevenir e

Punir a Tortura da Organização

dos Estados Americanos – 1986

Tipifica a tortura no art. 2º, como delito

próprio, praticado por empregados ou

funcionários públicos ou por pessoas

por instigação daqueles (art. 3, letras a e

b)

1997 Lei nº 9.455 Define os crimes de tortura: art.

1º, inciso I e II

Lei com apenas quatro artigos, que

tipificou a tortura com crime comum,

sendo qualificado quando praticado por

agente público (art. 1º, § 4º, inciso I).

2002 Decreto nº 4.388 Promulgou o Estatuto de Roma

do Tribunal Penal Internacional –

TPI (Art. 5º, 1, b, e art. 7º, 1, f.)

O TPI pode processar alguns crimes de

tortura quando os tribunais nacionais

são incapazes ou não querem fazê-lo

2007 Decreto nº 6.085 Promulga o Protocolo Facultativo

à Convenção contra a Tortura e

outros Tratamentos ou Penas

O Protocolo estabeleceu um sistema de

visitas regulares efetuadas por órgãos

nacionais e internacionais

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Cruéis, Desumanos ou

Degradantes – 2002

independentes a lugares onde pessoas

são privadas de sua liberdade, com a

intenção de prevenir a tortura (art. 1º).

2013 Lei nº 12.847 Institui o Sistema Nacional de

Prevenção e Combate à Tortura,

que inclui a criação de Comitê

Nacional e de Mecanismo

Nacional de Prevenção e Combate

à Tortura

Desconformidade com os princípios de

Paris – Relatório do SPT de 2012.

Escolha e designação dos membros do

Comitê é prerrogativa do Presidente da

República (art. 7º da Lei 12.847/2013)

2013 Decreto nº

8.154/2013

Regulamentou o funcionamento

do SNPCT, a composição e o

funcionamento do CNPCT e

dispõe sobre o MNPCT.

A Lei nº 12.847/2013, no art. 13, atribuiu a Secretaria de Direitos Humanos da

Presidência da República a tarefa de fomentar “a criação de mecanismos preventivos de

combate à tortura no âmbito dos Estados ou do Distrito Federal, em consonância com o

Protocolo Facultativo” (CEPCT-PB, 2013, P. 105), também denominados de Mecanismos

Locais de Prevenção – MLN.

Atualmente há sete Mecanismos Locais de Prevenção: Alagoas (2009), Rio de

Janeiro (2010), Paraíba (2011), Pernambuco (2012), Espírito Santo (2013), Rondônia (2013) e

Minas Gerais (2014). Porém, apenas os MLP do Rio de Janeiro e Pernambuco foram

instalados e estão em funcionamento (APT, 2014) (disponível em

http://www.apt.ch/content/files/region/americas/Brasil_OPCAT.pdf) e acessado em 10 de

janeiro de 2015).

Na Paraíba apenas o Comitê de Prevenção e Combate a Tortura foi instalado em

2011, mas suspendeu suas atividades em 2013. Assim, não ausência de um órgão específico é

o Desde??? a sua criação que Conselho Estadual de Direitos Humanos, em 1992, vem

desempenhando um papel de alta relevância na defesa, promoção e educação em direitos

humanos, sendo sua atuação marcada pela independência, autonomia e transversalidade,

trabalhando com as mais diversas temáticas, com destaque para criança e adolescente, gênero,

indígena, agrária, racial, mídia, segurança pública, moradia, acesso a justiça, saúde, transporte

público, educação, questão penitenciária, tortura, etc., sendo sua atuação indispensável para a

realização da Política Nacional de Direitos Humanos na Paraíba.

No tocante ao tema da tortura, o Conselho Estadual de Direitos Humanos vem

trabalhando essa temática de forma corajosa, coerente e independente, realizando visitas

periódicas, elaborando relatórios, formulando denúncias e recomendações.

Como já exposto, a situação da tortura na Paraíba não é diferente do restante do País,

pois diversos relatórios, sobretudo, do Conselho Estadual de Direitos Humanos, narram e

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apresentam indícios de prática de tortura em todas as visitas a locais de detenção ou

internação, merecendo destaque os seguintes relatórios:

Relatório Presídio do Róger - 20 de maio de 2009; Relatório Presídio do Róger - 02

de dezembro de 2010; Relatório Penitenciária Silvio Porto - 12 de abril de 2011;

Relatório Centro Educacional do Adolescente de João Pessoa (CEA) - 03 de outubro

de 2011; Relatório Centro Educacional de Jovens - 23 de março de 2012; Relatório

Centro Educacional de Jovens - 23 de março de 2012; Relatório Centro de

Reeducação Feminina Maria Júlia Maranhão - 31 de agosto de 2012; Relatório de

visita ao Presídio do Serrotão em Campina Grande - CEDH – 3 de junho de 2013;

Relatório de visita ao Presídio do Roger - 15 de novembro de 2014. (Disponível em

http://www.prpb.mpf.mp.br/menu-esquerdo/atuacao/direitos-do-cidadao/relatorios.

Acesso em: 05 abr. 2015.

Durante todo o período de sua atuação, o Conselho vem suprindo a ausência de um

mecanismo local de prevenção e combate a tortura no Estado, sendo uma das entidades

componentes do Comitê Estadual de Prevenção e Combate a Tortura.

2.5 - A tortura na Paraíba e Conselho Estadual de Direitos Humanos

Ainda durante o período da ditadura militar, já pelos anos de mil novecentos e

setenta foram sendo criadas várias entidades de direitos humanos no Estado da Paraíba com

atuação nas mais diversas áreas temáticas, boa parte delas influenciadas pela ação da Igreja

Católica, “sob a liderança do Arcebispo Dom José Maria Pires, na Capital e de seu auxiliar

Dom Marcelo Carvalheira, instalado em Guarabira em 1976” (DIAS, p. 208-209).

Segundo Maria de Nazaré Tavares Zenaide (apud DIAS, p. 208-209), nos anos de

mil novecentos e oitenta foram criadas, em Guarabira, o Serviço de Educação Popular –

SEDUP, o Centro de Direitos Humanos e a Comissão Pastoral da Terra – CPT, e na Capital, o

Centro de Defesa de Direitos Humanos, a Assessoria e Educação Popular e a Sociedade de

Assessoria aos Movimentos Populares e Sindical –SAMOPS, dentre outras entidades.

Faltava, entretanto, o órgão para fazer a articulação de todas essas entidades. Durante

o processo de elaboração da Constituição Estadual, ainda no final dos anos oitenta, uma

articulação levou a criação do Conselho Estadual dos Direitos do Homem e do Cidadão -

CEDDHC, com a inclusão do art. 75, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,

assim redigido:

Art. 75- É criado o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, ao

qual incumbe articular as ações da sociedade civil organizada, defensora dos direitos

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80

fundamentais do homem e do cidadão, com as ações desenvolvidas nessa área pelo Poder

Público Estadual.

§ 1º- O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, órgão

vinculado aos três Poderes do Estado, terá sua organização, composição, competência e

funcionamento definidos em lei, garantida a participação, em igual número, de

representantes do Ministério Público estadual, da Ordem dos Advogados do Brasil, da

Corregedoria de Justiça e dos órgãos públicos incumbidos da execução da política estadual

de promoção e defesa dos direitos do homem e do cidadão, assim como de representantes

de entidades privadas de defesa destes direitos, legalmente constituídas.

§ 2º A lei a que se refere o parágrafo anterior será de iniciativa da Assembléia Legislativa,

devendo ser publicada até um ano após a promulgação desta Constituição.

§ 3º - Enquanto não estiver em vigor a lei a que alude o parágrafo 1º deste artigo, o

Conselho Estadual dos Direitos do Homem e do Cidadão funcionará com as regras

definidas neste artigo. (ALEPB, 2009, p. 147)

Como é possível constatar no §1º do art. 75, a organização, composição, competência

e funcionamento do CEDDHC foi delegada a regulamentação de lei ordinária. Porém, já

ficando assegurada a sua paridade na composição.

Segundo Rubens Pinto Lyra o CEDDHC funciona de forma independente do

Governo, “tendo na sua composição a presença hegemônica de órgãos e entidades, públicos e

privados, independentes do Poder Público Estadual, e Diretorias eleitas pelos Conselheiros”

(1996, 176).

A Diretoria, composta por um presidente, um vice-presidente, um primeiro

secretário, um segundo-secretário e um tesoureiro, com mandato de dois anos, será eleita

pelos conselheiros, conforme previsão do art. 1º, §2º e inciso I da Lei Estadual nº 5.551/92

(Paraíba, 1992). Note-se que o Presidente não é um dos representantes do dos órgãos do Poder

Executivo, como acontece com outros Conselhos e Comitês, como é o caso do CNPCT, cuja

presidência é privativa do Ministro da Secretaria de Direitos Humanos, art. 7º, §1º da Lei

12.847/2013 (CEPT, 2013, p. 97).

Apesar da previsão do § 3º do art. 75, o CEDDHC teve dificuldade para começar a

funcionar, pois segundo LYRA (1996, 176) “membros do Poder Judiciário, demonstram total

incapacidade de aceitar, na prática, os princípios da democracia participativa”, não admitindo

que “a gestão governamental possa ser fiscalizada e politicamente monitorada por um órgão

independente”, tendo sido “necessário "recriá-lo", através da Lei Estadual nº 5.551, de 15 de

janeiro de 1992, e finalmente instalá-lo, em 26 de março do mesmo ano” (LYRA, 1996, 177).

Uma peculiaridade marcante trazida pela Lei Estadual nº 5.551/92 foi a de atribuir ao

próprio CEDDHC, art. 3º, a competência para “estabelecer, pelo voto da maioria absoluta de

seus membros, as condições para ingresso de órgãos públicos e entidades privadas não

mencionadas na presente Lei” (Paraíba, 1992).

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De igual modo, em seu art. 4º, a Lei Estadual nº 5.551/92 prever que CEDDHC,

“estabelecerá, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, as normas para desligamento

de órgãos e entidades privadas que dele façam parte”.

Assim, segundo Lyra, “diante da relevância da participação dos órgãos públicos

nesse Conselho, a Polícia Militar do Estado foi convidada a integrá-lo” e desta forma, “as

duas instituições públicas de caráter coercitivo, responsáveis pela implementação da política

de Segurança Pública no Estado, Polícia Militar e Polícia Civil, passaram a ter assento no

órgão” (apud DIAS, 2010, p. 211).

Ao longo dos vinte e dois anos de atuação, sua atual diretoria foi composta em 2 de

outubro de 2014 (DOE, 2014, p. 1-2), a composição do conselho foi alterada algumas vezes,

conforme quadro abaixo: REESCREVER

1992 2004 2014

1 Secretaria de Cidadania e

Justiça (atual SEDP)

Secretaria de Cidadania e

Justiça

Secretaria de Administração

Penitenciária - SEAP

2 Secretária da Segurança

Pública (atual SESDS)

Secretária da Segurança

Pública

Secretaria de Segurança e Defesa

Social - SESDS

3 Assembléia Legislativa -

ALEPB

ALEPB ALEPB

4 Corregedoria do TJ Corregedoria do TJ Corregedoria do TJ

5 Procuradoria da República Procuradoria da República Ministério Público Federal

6 Procuradoria Geral de Justiça Procuradoria Geral de Justiça Ministério Público Estadual

7 Defensoria Pública Estadual Defensoria Pública Estadual CDH-UFPB

8 CDH-UFPB CDH-UFPB OAB-PB

9 OAB-PB OAB-PB Movimento do Espírito Lilás

10 SAMOPS SAMOPS DIGNITATIS

11 CDDH - Arquidiocese API Centro de Direitos Humanos Dom

Oscar Romero - CEDHOR

12 CDDH - AEP Polícia Militar da Paraíba Pastoral Carcerária do Estado da

Paraíba

13 API Fundação de Defesa dos

Direitos Humanos Margarida

Maria Alves

Fundação Margarida Maria Alves

14 CDH João Pedro Teixeira Movimento do Espírito Lilás

15 Fundação Universo e Vida

(UNIVIDA)

Associação Paraibana dos

Amigos da Natureza - APAN

16 Arquidiocese da Paraíba

17 Centro de Direitos Humanos

João Pedro Teixeira

Nos termos do art. 8º da Lei 5551/92, o CEDH não poderá ter mais de vinte e um e

menos de quinze membros titulares. Porém, a atual composição, conforme publicação no

DOE de 2 de outubro de 2014, tem apenas treze membros titulares.

A Lei Estadual nº 5.551/92 assegurava no § 1º do seu art. 1º que o CEDDHC teria

sede própria, bem como que o “Poder Executivo Estadual assegurará as condições de

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funcionamento do Conselho, garantindo dotação orçamentária, e proporcionará as garantias

necessárias para o pleno exercício de suas funções”, conforme seu art. 10 (PARAÍBA, 1992).

A independência do CEDDHC dos poderes públicos gerou e ainda gera um boicote

para inviabilizar o seu funcionamento, já que “meses após a instalação do CEDDHC, a sua

direção nada havia obtido junto à Secretaria de Justiça e Cidadania e ao Governo, faltando-lhe

sede, móveis, telefone e recursos financeiros” (LYRA, 1996, 177).

Quando a Direção na qual fui eleito presidente do CEDDHC tomou posse em 2 de

agosto de 2004, o CEDDHC estava para ser despejado de sua sede no antigo hotel Tropicana,

segundo o por falta de pagamento da locação das salas, não tinha servidores, nem telefone.

Esta situação perdurou por meses, como bem colocado por Lyra “graças a "teimosia" de seus

dirigentes, foi possível obter condições materiais que tornaram viável as suas atividades”

(1996, 177), quando foram disponibilizadas uma servidora, um motorista, uma linha

telefônica e duas salas no edifício Empresarial Bonfim, onde o Conselho funciona até os dias

atuais22

.

Essa questão da falta de condições materiais para a realização das atividades do

CEDH é uma constante desde a sua criação, tendo várias variantes nas motivações, que vão

desde a tentativa de controle por parte do Executivo a atritos pessoais entre representantes do

CEDH e o Executivo.

Não limitando sua atuação as esferas da fiscalização e controle, o CEDH, marcando

o seu pioneirismo, ao lançar a campanha “contra a violência policial e pela tipificação da

tortura” (LYRA, 1996a, p. 47), mesmo sabendo da dificuldade da empreitada “por causa da

relativa indiferença de entidades da sociedade face ao tema, pelo desinteresse e falta de

responsabilidade da maioria dos membros do Congresso Nacional” (LYRA, 1996a, p. 47-48).

O CEDDHC, atual Conselho Estadual de Direitos Humanos do Estado da Paraíba-

CEDH-PB23

, tem uma larga experiência com monitoramento de locais de detenção,

utilizando-se do sistema de visitas periódicas, com relatórios e recomendações, pois a art. 6º,

inciso IV da Lei nº 5.551/96, atribui-lhe competência para “ter acesso a qualquer unidade ou

instalação pública estadual para acompanhamento de diligências ou a realização de vistorias,

exames e inspeções” (PARAÍBA, 1992).

Mas a fiscalização e monitoramento dos locais de detenção, definitiva ou provisória,

e internação nunca ocorreu de forma tranquila, pois o trabalho de visitas dos (as) Conselheiros

(as) nesses locais sempre sofreu tentativas de obstaculização por parte do Juízo da Vara de

22 Recomendação nº 06/2005 – PRPB ao Governador da Paraíba em 12 de maio de 2005. 23

Denominação atual feita pelo art. 1º da Lei nº 9.503/2011.

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Execução Penais da Capital, pela Secretária de Cidadania e Justiça (atual Secretaria de

Administração Penitenciária), pelos diretores de presídios, penitenciárias, cadeias.

Três episódios ao longo dos vinte e três anos de atuação do CEDH-PB são bem

ilustrativos: a Portaria nº 1/93 de autoria do Juiz das Execuções Penais de João Pessoa; a

tentativa de provação de Resolução, no âmbito do Comitê Executivo do Plano de Ações

Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil no Estado da Paraíba, do qual o

CEDH-PB era um dos membros, visando disciplinar “o acesso de entidades de direitos

humanos no sistema penitenciário, cadeias e delegacias de polícias do Estado da Paraíba”

(PARAÍBA, 2006, mimeo); e, o caso da detenção ilegal e arbitrária dos Conselheiros do

CEDH-PB durante visita a Penitenciária de Segurança Máxima Dr. Romeu Gonçalves de

Abrantes – PB1/PB2, em 28 de agosto de 2012. O segundo e terceiro episódios serão

relatados dentro de tópico específico no terceiro capítulo.

Superadas as dificuldades de ordem material, o CEDDHC se deparou no ano de 1993

com a edição da Portaria nº 1/93 de autoria do Juiz das Execuções Penais de João Pessoa que

“pretendeu condicionar o acesso de seus integrantes às dependências do sistema penitenciário

à sua autorização prévia” (LYRA, 1996, p. 177).

Ainda em conformidade com LYRA “esta pretensão arbitrária” só veio a ser

superada “por meio de despacho administrativo do Corregedor-Geral do Tribunal de Justiça

do Estado da Paraíba”, que reconheceu em 20 de agosto de 1993 “ser direito incontrastável

dos Conselheiros do CEDDHC ter livre acesso a qualquer unidade ou instalação pública

estadual para a realização de vistorias, exames ou inspeções” (1996, p. 177).

O CEDH também tem sua atuação comprometida devido ao não envio dos nomes

dos Representantes pelas entidades e órgãos que o compõe, retardando ou fazendo com que o

Conselho fique sem gestão, como ocorreu entre 2006 e 2008(MPF-PB, 2008).

O descompromisso de alguns órgãos públicos, inclusive com atuação essencial sobre

a temática da tortura, com o CEDH também compromete a sua atuação, pois seus

representantes devidamente indicados e nomeados, não comparecem nas reuniões nem

participam de nenhuma atividade do Conselho.

O Relatório de Atividades de 2011 do CEDH é bastante esclarecedor sobre a falta de

compromisso de órgãos públicos com a atuação do Conselho e, conseqüentemente, com a

situação dos Direitos Humanos na Paraíba. Registra o Relatório: “O próprio Estado da Paraíba

nunca se preocupou de enviar seus representantes às reuniões. Desinteresse que foi seguido

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por outros órgãos, como a Defensoria Pública Estadual, Assembleia Legislativa e o Ministério

Público do Estado da Paraíba” (CEDH-PB, 2012).

Com relação à participação do Ministério Público Estadual nas atividades do CEDH,

o relatório faz um registro específico, pois este órgão “ostenta a marca do órgão mais omisso,

nunca tendo seus representantes designados comparecido a sequer uma reunião nos últimos

sete anos. Fato que desafia até mesmo a exclusão desta entidade do Conselho” (CEDH-PB,

2012).

Em 2013, o CEDH lançou relatório com o mapeamento de suas atividades no

período de 2010-2012, construído “a partir análise dos documentos componentes do arquivo

dessa instituição: ofícios, atas de reuniões ordinárias, extraordinárias e audiências públicas,

relatórios de atividades realizadas, clipping noticias”. Nesse período o CEDH registrou

noventa demandas “relacionadas a situações de vulnerabilidade e violações de direitos

humanos”. Dessas noventa demandas, vinte e quatro originavam-se do sistema penitenciário e

trinta e oito sobre segurança pública (CEDH-PB, 2013).

O mencionado relatório de atividades registra a tortura tem tido uma “dimensão

relevante”, pois a tortura não ocorreria em uma instituição específica e teria uma recorrência

especial em “delegacias de polícia, unidades prisionais, carros das Polícias, mas também em

residências invadidas durante atividades policiais” e que esses atos seriam praticados, “em sua

maior parte, os atos são praticados por agentes públicos” (CEDH-PB, 2013).

A partir do ano de 2010, o Conselho, diante da ratificação da Convenção e do

Protocolo Facultativo pelo Brasil, iniciou campanha visando a criação de “de uma estrutura

estadual própria para combate e prevenção à tortura considerando a peculiaridade da

demanda”. Tendo encaminhado “minuta do projeto de lei para o Governo do Estado da

Paraíba” que resultou, em julho de 2011, na promulgação da Lei Estadual nº 9.413/2011”,

instituidora do Comitê e Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura (CEDH-PB, 2013).

Desde a criação do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do

Cidadão em 1992 que se tenta institucionalizar uma política de prevenção e combate à tortura

na Paraíba.

Por sua vez, o Estado da Paraíba foi o primeiro estado a aderir ao “Plano de Ações

Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil”, mediante a assinatura do “Termo

de Adesão” do referido plano, em 13 de fevereiro de 2006.

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E, por fim, o Governo do Estado da Paraíba, através da Lei nº 9.413/2011, criou o

Comitê Estadual para a Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Estadual de

Prevenção e Combate à Tortura, com a finalidade “erradicar e prevenir a tortura e outros

tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes”.

Porém, como ocorreu esse processo e como anda o funcionamento do Comitê e do

Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura?

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86

CAPÍTULO 3 – A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DA INDIFERENÇA

Em 2005 foi criada a Comissão Permanente de Combate à Tortura e à Violência

Institucional, conforme Portaria nº 102/2005, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da

Presidência da República. A comissão é composta por servidores lotados na Ouvidoria-Geral

da Cidadania e na Coordenação-Geral de Combate à Tortura.

Assim, a mencionada Comissão convidou especialistas para elaboração de um texto

básico para um “Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil”

e, desta forma, ter os elementos necessários ao cumprimento de sua missão institucional. O

eixo central do texto são as 30 recomendações feitas pelo relator da ONU para tortura em sua

última visita ao Brasil.

Como resultado do trabalho desses especialistas foi lançado em dezembro de 2005, o

“Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil” e dois outros

importantes instrumentos na área da prevenção e combate à tortura: o “Manual de Combate à

Tortura para Magistrados e Promotores” e o “Protocolo Brasileiro de Perícia Forense no

Crime de Tortura”.

O Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil buscava

(BRASIL, 2005):

Aprofundar o enfrentamento da tortura com vistas à sua erradicação, uma das mais

graves formas de violência e aviltamento humanos, decorre não apenas de vocação

política, mas da necessidade de garantir cumprimento a recomendação da

comunidade internacional, já incorporada ao ordenamento jurídico, em sua essência,

desde a promulgação da Constituição de 1988, que alçou a tortura à condição de

crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (art. 5º, inc. XLIII).

O Plano de Ações Integradas seria uma experiência piloto e visava ser

implementado, inicialmente, em oito estados brasileiros: Paraíba, Pernambuco, Espírito Santo,

Distrito Federal, Acre, Pará, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

O Estado da Paraíba foi o primeiro estado a aderir ao “Plano de Ações Integradas

para Prevenção e Controle da Tortura no Brasil”, mediante a assinatura do “Termo de

Adesão” do referido plano, em 13 de fevereiro de 2006.

O mencionado Termo de Adesão foi assinado pelo Ministro da Secretaria Especial de

Direitos Humanos, pelo Governador da Paraíba, Tribunal de Justiça da Paraíba, Procurador

Geral do MPE, Conselho Estadual de Direitos Humanos, Ordem dos Advogados da Paraíba e

Arquidiocese da Paraíba.

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Foi criado um Comitê Executivo composto pelo CEDH-PB, pelo Tribunal de Justiça

do Estado da Paraíba, Procuradoria Geral de Justiça, Secretaria de Estado de Segurança e

Defesa Social, Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, Ordem dos Advogados

do Brasil (Secção Paraíba), Comissão Pastoral Carcerária e Conselho Regional de Psicologia.

Este Comitê Executivo fez algumas reuniões, mas não avançou na temática, nem

produziu nada de concreto. Na reunião ocorrida em 28 de julho de 2006, no Fórum Criminal,

o representante do CEDH-PB apresentou minuta de Resolução ao Comitê Executivo

objetivando facilitar o acesso aos locais de detenção, com as seguintes ponderações iniciais

(PARAÍBA, 2006, mimeo):

CONSIDERANDO o estabelecido no item 2 (DAS OBRIGAÇÕES), do Termo de

Adesão ao Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura no

Brasil que estabelece que os “poderes, órgãos e instituições aqui representadas, no

exercício de suas atribuições e prerrogativas institucionais, obrigam-se a efetivar a

implementação do Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura

no Brasil no âmbito do Estado da Paraíba;

CONSIDERANDO o estabelecido no art. 1º, inciso III da Constituição Federal;

CONSIDERANDO o estabelecido no art. 5º, §2º da Constituição Federal;

CONSIDERANDO o estabelecido no art. 5º, inciso III da Constituição Federal;

CONSIDERANDO o estabelecido no art. 5º, inciso VII da Lei Estadual nº 5.551/92

que atribui competência ao Conselho Estadual de Direitos Humanos para “denunciar

e investigar violações dos direitos humanos ocorridas no Estado da Paraíba”;

CONSIDERANDO o estabelecido no art. 6º, inciso IV da Lei Estadual nº 5.551/92

que atribui competência ao Conselho Estadual de Direitos Humanos de “ter acesso a

qualquer unidade ou instalação pública estadual para o acompanhamento de

diligências ou a realização de vistorias, exames e inspeções”;

CONSIDERANDO o estabelecido na Convenção das Nações Unidas contra a

Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, adotada

10 de dezembro de 1984 e ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989;

CONSIDERANDO o estabelecido na Convenção Interamericana para Prevenir e

Punir a Tortura adotada em 1985 pela Organização dos Estados Americanos (OEA)

e ratificada pelo Brasil em 20 de julho de1989;

CONSIDERANDO as recomendações do Relator Especial da ONU sobre a Tortura,

Sir Nigel Rodley, principalmente as recomendações de número 1, 18 e 24;

CONSIDERANDO o disposto no § 1º do art. 1º da Lei n. 9.455/97 (Lei de Combate

à Tortura), que estabelece que “Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa

ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental por intermédio da

prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal”;

CONSIDERANDO o disposto § 2º do art. 1º da Lei n. 9.455/97 que estabelece que

responde pelo crime de tortura “aquele que se omite em face dessas condutas,

quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las”.

A citada Resolução possibilitava o acesso livre e irrestrito “a todos os

estabelecimentos de detenção do Estado da Paraíba (Penitenciárias, Presídios, Cadeias

Públicas, Delegacias de Polícia e Centro de Internamento de Adolescentes)”, para os

membros das entidades componentes do Comitê Executivo, “bem como as demais entidades

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de direitos humanos, principalmente o Conselho Estadual de Direitos Humanos, a Comissão

Pastoral Carcerária, as Comissões de Direitos Humanos das Universidades” (PARAÍBA,

2006, mimeo).

E o que buscava a mencionada Resolução? Na verdade, tentar da o mínimo de

transparência aos locais de detenção. O art. 1º tinha a seguinte redação:

Art. 1º É livre e irrestrito o acesso a todos os estabelecimentos de detenção do

Estado da Paraíba (Penitenciárias, Presídios, Cadeias Públicas, Delegacias de Polícia

e Centro de Internamento de Adolescentes) para os membros de órgãos, instituições

e entidades que compõem este Comitê Executivo, bem como as demais entidades de

direitos humanos, principalmente o Conselho Estadual de Direitos Humanos, a

Comissão Pastoral Carcerária, as Comissões de Direitos Humanos das

Universidades

A apresentação desta minuta de resolução gerou tanta polêmica que o Comitê

Executivo foi murchando como uma margarida exposto ao sol escaldante.

3.1 – A Lei Estadual nº 9.413/2011 e o Comitê Estadual – CEPCT-PB

Em 26 de maio de 2011, o Governador da Paraíba, após provocação do CEDH-PB

que havia lhe entregue minuta de projeto de lei, como já relatado, encaminhou para a

Assembleia Legislativa a Mensagem nº 28/2011 que “Cria o Comitê Estadual para a

Prevenção e Combate à tortura na Paraíba e dá outras providências” (ALEPB, 2011).

Em 31 de maio de 2011, a Mensagem nº 28/2011 foi registrada na Secretaria

Legislativa da ALEPB, tornando-se o projeto de lei nº 248/2011 e constou no “Expediente da

Sessão Ordinária” do dia primeiro de junho de 2011, tendo sido designado relator o deputado

Lindolfo Pires, em 3 de junho de 2011 (ALEPB, 2011).

O relator apresentou seu voto em 7 de julho de 2011, registrando que o CEPCT-PB

será composto por catorze membros e que “adotará a linha de atuação e as recomendações do

mecanismo Preventivo Nacional”, e se posicionou pela “constitucionalidade e juridicidade, do

Projeto de Lei nº 248/2011”. A Comissão de Constituição, Justiça e Redação votou e aprovou

o parecer apresentado pelo relator em 14 de junho de 2011 (ALEPB, 2011).

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O deputado Raniery Paulino apresentou Emenda Aditiva para alterar a composição

do CEPCT-PB para acrescentar representação da Assembleia Legislativa, pois entende que a

iniciativa do Poder Executivo é “absolutamente valioso e importante” e, assim, ser

“necessário que esta Casa Legislativa participe desse Comitê”. (ALEPB, 2011).

O Projeto de Lei nº 248/2011 foi votado e aprovado em turno único no 15 de junho

de 2011, inclusive com a emendar apresentada pelo deputado Raniery, pois na minuta do

Autógrafo nº 85/2011 do Projeto de Lei nº 248/2011 encaminhada pelo Presidente da

Assembleia ao Governador da Paraíba, já constava um inciso XIII ao art. 3º com a

representação da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa (ALEPB, 2011).

O Projeto foi sancionado pelo Governador e publicado no DOE no dia 13 de julho de

2011, vindo a ser a Lei nº 9.413/2011 (Paraíba, 2011).

Assim, em menos de dois meses e cinco anos após a primeira tentativa de se criar um

mecanismo estadual específico para monitorar, prevenir e combater a tortura, foi criado o

Comitê Estadual para a Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Estadual de

Prevenção e Combate à Tortura, que tem como finalidade “erradicar e prevenir a tortura e

outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes” (Paraíba, 2011).

O Comitê, nos termos do artigo 3º da Lei nº 9.413/2011, é composto por 14

membros, de forma paritária, entre diversos órgãos públicos e entidades e representantes da

sociedade civil, com mandato de dois anos. Porém, com a inclusão da representação da

Assembleia legislativa, o CEPCT-PB passou a ter quinze membros (Paraíba, 2011):

Art. 3º O Comitê Estadual para a Prevenção e o Combate à Tortura na Paraíba -

CEPCT IPB será composto de 14 (catorze) membros, representando os seguintes

Órgãos:

I - Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social;

II Secretaria de Estado da Administração Penitenciária;

III Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano;

IV - Defensoria Pública Geral do Estado;

V - Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão -

CEDDHCIPB;

VI - Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Paraíba;

VII - Conselho Regional de Psicologia da Paraíba;

VIII - Ministério Público Estadual da Paraíba;

IX - Ministério Público Federal na Paraíba;

X - Pastoral Carcerária;

XI - 2 (dois) professores com atuação na área de direitos humanos vinculados a

instituições de ensino superior, com notório conhecimento na temática, indicados

por instituição de ensino superior, designados pelo Secretário de Estado da

Segurança e da Defesa Social;

XII - 2 (dois) representantes de entidades representativas da sociedade civil com

reconhecida atuação no combate à tortura no Estado da Paraíba;

XIII - 2 (dois) representantes da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia

Legislativa da Paraíba, sendo 01 (um) Titular e 01 (um) Suplente.

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O art. 4º da mencionada Lei fixa as competências do Comitê, destacando-se a de

coordenar o sistema estadual de prevenção à tortura, avaliar e acompanhar as ações, os

programas, os projetos e os planos relacionados ao enfretamento à tortura no Estado,

propondo as adaptações que se fizerem necessárias (CEPCT 2013, p. 109).

Compete ainda ao Comitê Estadual como acompanhar a atuação dos mecanismos

preventivos da tortura no Estado, avaliar seu desempenho e colaborar para o aprimoramento

de suas funções, zelando pelo cumprimento e celeridade dos procedimentos de apuração e

sanção administrativa e judicial de agentes envolvidos na prática de tortura (CEPCT 2013, p.

109).

No tocante ao Mecanismo Estadual, o artigo 7º da Lei nº 9.413/2011, prever que será

composto por 3 membros, para mandato de três anos, escolhidos entre pessoas com notório

conhecimento, ilibada reputação, atuação e experiência na área objeto de atuação, cujo

processo de escolha dos membros do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à tortura

da Paraíba – MEPCT/PB será deflagrado pelo Comitê Estadual de Prevenção à Tortura,

abrindo-se edital para a apresentação de candidaturas de diversas categorias profissionais, art.

7º, § 1º (CEPCT 2013, p. 113).

Haverá chamada pública para impugnar as candidaturas, em caráter confidencial, no

tocante a atuação dos postulantes que possa comprometer a independência, a imparcialidade e

atuação universal do MEPCT-PB, art. 7º, §2º. Concluída a escolha pelo Comitê Estadual, a

lista será encaminhada ao Governador para nomeação, art. 7º, §3º (CEPCT 2013, p. 114).

Formalmente, estão asseguradas aos membros do Mecanismo Estadual as

prerrogativas previstas no artigo 8º e seus parágrafos da Lei nº 9.413/2011, dotando o

Mecanismo Estadual de autonomia política, administrativa, financeira e orçamentária,

implicando na disponibilidade de estrutura física e logística, de pessoal qualificado, bem

como de recursos financeiros para a consecução de seus objetivos (CEPCT 2013, p. 114-115).

Assim as garantias previstas no OPCAT e na Lei nº 12.847/2013 para o exercício do

mandato dos membros do Mecanismo Estadual estão assegurados na Lei. Porém, passados

mais de quatro anos após a aprovação da Lei nº 9.413/2011, não foram criados os cargos

previstos no parágrafo único do art. 10 e, via de consequência, não foi instalado o Mecanismo

Estadual. (CEPCT 2013, p. 117).

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Podemos citar como imperfeição da Lei nº 9413/2011 o fato da escolha dos

professores, art. 3º, inciso XI, recair sobre a competência do Secretário de Estado da

Segurança e da Defesa Social.

Mas, já em dezenove de fevereiro de 2013, o CEPCT-PB em reunião realizada na

sede do CEDH-PB abordou esse e outros problemas, erros da Lei nº 9.413/2011, elaborando

minuta de projeto de lei com as alterações, correções, merecendo destaque a mudança de

vinculação administrativa do CEPCT-PT e do MEPCT-PB da Secretaria de Segurança e

Defesa Social para a Secretaria de Desenvolvimento Humano, a criação e símbolo dos cargos

dos membros do MEPCT-PB (CEPCT-PB, 2013).

Órgão novo, velhos problemas.

O CEPCT-PB iniciou oficialmente suas atividades em abril de 2012, tendo em

reunião ocorrida em 2 de outubro de 2012 aprovado o seu Regimento Interno (CEPCT-PB,

2012). O Regimento Interno foi aprovado pelo Decreto nº 33.558/2012, publicado no DOE

em 5 de dezembro de 2012 (PARAÍBA, 2012).

O Regimento Interno criou uma direção colegiada para o CEPCT-PB formada por

Coordenação Geral, Vice-Coordenação Geral e Secretária Executiva, art. 5º, sendo que a

Coordenação Geral e a Vice-Coordenação Geral serão eleitos entre seus membros para

mandato de 1 ano, podendo ocorrer uma recondução, conforme artigos 7º, 12 e 14 do

RICEPCT-PB (PARAÍBA, 2012).

Já a Secretária Executiva ficou a cargo de servidor público cedido pela administração

estadual e “com o aval e aceitação da maioria dos membros do CEPCT-PB”, nos termos do

art. 15 do RICEPCT-PB (PARAÍBA, 2012). Ainda pelo RICEPCT-PB, o CEPCT-PB terá

reuniões ordinárias mensais (PARAÍBA, 2012).

O RICEPCT-PB fixou as normas para escolha dos membros do MEPCT-PB, art. 22:

Art. 22. O CEPCT/PB lançará edital público para o processo de seleção dos

membros do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à tortura da Paraíba –

MEPCT/PB, consoante preconiza o inciso XIII do art. 3º da Lei Estadual nº

9.413/2011.

I – no edital para o processo de seleção dos membros do MEPCT/PB deverá constar

o convite para a apresentação de candidaturas nas várias categorias profissionais

referidas no inciso II, do artigo 6° da Lei Estadual nº 9.413/2011.

II – serão adotados como critérios mínimos para a seleção dos membros que irão

compor o MEPCT/PB: comprovada experiência de atuação no sistema de justiça

criminal e/ou no monitoramento de locais de privação de liberdade, formação

profissional especialmente relevante à matéria, como direito, psicologia, assistência

social, engenharia, arquitetura, medicina,

e outras áreas afins.

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III – as candidaturas serão tornadas públicas, abrindo-se prazo de cinco dias úteis

para impugnação, em caráter confidencial, acerca de atuações dos postulantes que

possam comprometer a atuação independente, imparcial e universal do MEPCT/PB.

IV – do procedimento para seleção das candidaturas apresentadas para compor o

MEPCT/PB constarão: avaliação dos currículos apresentados, prova escrita e

entrevista individual.

V – o procedimento de seleção das candidaturas apresentadas para compor o

MEPCT/PB será presidido por uma banca composta por três membros do

CEPCT/PB, escolhidos em reunião específica e designados através do edital

específico.

VI – para a seleção e composição do MEPCT/PB, o CEPCT/PB deverá buscar o

equilíbrio de gênero e representação adequada de grupos étnicos e minoritários do

país.

VII – cada membro do CEPCT/PB expressará, fundamentadamente, a sua escolha,

sendo a lista votada e encaminhada ao Governador do Estado para respectiva

nomeação.

Como se constata, o CEPCT-PB primou pela transparência no processo de escolha

dos peritos do MEPCT-PB, estabelecendo critérios objetivos, bem como a busca de equilíbrio

entre gênero e grupos éticos e minoritários.

Na reunião de dezenove de fevereiro de 2013, o CEPCT-PB aprovou um cronograma

de reuniões para o ano, com modelo de convocatória, bem como deu início a uma mobilização

com o objetivo de sensibilizar alguns órgãos públicos, como a SEAP e SESDS, a fazerem a

indicação de seus representantes, e outros para o não comparecimento dos representantes

indicados, como o MPE, Assembleia Legislativa, UEPB (CEPCT-PB, 2013a).

Durante a reunião ordinária do dia nove de abril de 2013, o CEPCT-PB voltou a

discutir a ausência de “representações institucionais, destacando-se a ausência do Ministério

Público do Estado”, tendo sido encaminhado se agendar reunião “com o Procurador-Geral de

Justiça para discutir a ausência e nova indicação de representantes” (CEPCT-PB, 2013b).

Outro velho problema foi a falta de estrutura material e de pessoal. Na reunião

ordinária de dezenove de fevereiro de 2013 foi debatido “questão estrutural do Comitê,

relatando-se falta de sede, dentre outros elementos importantes ao seu funcionamento”

(CEPCT-PB, 2013a). A péssima redação do art. 9º da Lei 9.413/2011, devido, provavelmente

a cópia e inserção de texto. Gerou, por parte dos representantes do Executivo, a compreensão

de que o Comitê “teria assistência apenas quanto aos recursos humanos da Secretaria de

Administração do Estado, sem uma fonte efetiva de custeio” (CEPCT-PB, 2013a). Nesta

reunião o CEPCT-PB discutiu a possibilidade de sua vinculação administrativa mudar para a

Secretaria Estadual de Desenvolvimento Humano (CEPCT-PB, 2013a).

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Posteriormente, quando o CEPCT-PB redigiu minuta de projeto de lei para fazer

correções e alterações na Lei nº 9.413/2011, foi proposta a alteração do art. 9º (CEPCT-PB,

2013, p. 116).

Redação original do art. 9º da Lei 9.413/2011 Nova redação sugerida art. 9º da Lei 9.413/2011

Art. 9º O custeio e a manutenção do Comitê

Estadual para a Prevenção e Combate à Tortura na

Paraíba – CEPCT/PB e do Mecanismo Estadual de

Prevenção e Combate à Tortura da Paraíba –

MEPCT/PB serão exercidas por 3 (três)

integrantes do CEPCT/PB, por estes indicados,

auxiliados por servidores requisitos do quadro de

pessoal do Estado, através da Secretaria de Estado

da Administração, até que sejam criados os cargos

necessários ao funcionamento do CEPCT/PB e do

MEPCT/PB,

“Art. 9º O custeio e a manutenção do Comitê

Estadual para a Prevenção e Combate à Tortura na

Paraíba – CEPCT/PB e do Mecanismo Estadual de

Prevenção e Combate à Tortura da Paraíba –

MEPCT/PB é da competência da Secretaria de

Estado do Desenvolvimento Humano.

Parágrafo único. Caberá ao Poder Executivo do

Estado da Paraíba prover na respectiva Lei

Orçamentária Anual, dotação orçamentária

específica, atendendo ao disposto no inciso I do

artigo 167 da Constituição Federal.”

Buscando resolver essa questão da estrutura a Vice-Coordenadora do CEPCT-PB se

reuniu, em 05 de março, com a Secretária de Estado do Desenvolvimento Humano (SEDH),

que sugeriu uma conversa “com Mayara, responsável pela Casa dos Conselhos, a fim de

discutir a instalação do CEPCT ali, com sala de uso exclusivo, material de escritório,

computador, bem como armário para arquivar documentos” (CEPCT-PB, 2013c).

Assim, após reunião responsável pela Casa dos Conselhos, o CEPCT-PB passou a

utilizar as dependências disponibilizadas que incluía “possibilidade de utilização de uma das

salas para reuniões do CEPCT, bem como, de compartilhar uma das salas, que é utilizada pelo

Centro de Referência LGBT, para possíveis atendimentos individuais, em casos de denúncias

encaminhadas ao CEPCT”, bem como “a disponibilidade de uma das funcionárias para

algumas atividades do CEPCT (envio e recebimento de documentos)” (CEPCT-PB, 2013d).

Porém, a questão não foi solucionada, pois observamos na ata da reunião ordinária

do CEPCT-PB realizada em 16 de fevereiro de 2014 (CEPCT-PB, 2014):

Foi discutida a falta de apoio do governo estadual ao CPCT, e a situação de

abandono da política de direitos humanos no Estado. Foi discutido final do mandato

dos membros do comitê, em Abril próximo, sendo manifestado por todos

desinteresse em recondução, à míngua de qualquer apoio ao CPCT ou iniciativa do

Estado para implantar o MPCT. Foi proposto pelo Coordenador Geral que caso a

situação permaneça inalterada até abril, será convocada uma audiência pública para

apresentação de relatório final e denúncia da situação de descaso com a prevenção à

tortura. Também foi aprovada deliberação para expedição de dois ofícios, um ao

PGJ, e outro à Ministra da SDH, expondo as preocupações do comitê e solicitando

reunião.

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O CEPCT-PB encaminhou ofício para a Ministra da Secretaria de Direitos Humanos

e para o Procurador-Geral de Justiça do Estado da Paraíba enfatizando as dificuldades

enfrentadas pelo Comitê e as várias tratativas feitas, por ofício ou pessoalmente, para

solucionar a falta de condições mínimas de funcionamento, posto que “recebeu precário e

mesmo quase insignificante apoio do governo do Estado, estando hoje em situação de quase

abandono”, por dispor “apenas de uma sala de reuniões, onde quase não se pode reunir porque

disputada com inúmeras outras entidades, e de uma secretária sem maiores qualificações”

(CEPCT-PB, 2014a).

De igual modo o Governo do Estado se mantém inerte com relação às medidas

necessárias para a instalação e funcionamento do MEPCT-PB, sobretudo “criar ou

redirecionar funções gratificadas” para os peritos do Mecanismo Estadual, pois “por força da

citada legislação, devem ser remunerados” (CEPCT-PB, 2014a).

O documento indica que há uma “paralisação da política de direitos humanos do

Estado” e que “fatos apontam para uma situação preocupante de descaso para com a

prevenção da tortura e violência policial no Estado, e desrespeito à própria legislação

promulgada recentemente” (CEPCT-PB, 2014a).

Por fim, o CEPTC-PB, faz um apelo, tanto à Ministra quanto ao Procurador-Geral,

para que, “por meios consensuais e suasórios”, busque “sensibilizar o governo do Estado da

Paraíba a firmar um compromisso que assegure o integral funcionamento do Sistema Estadual

de Prevenção à Tortura o mais breve possível” (CEPCT-PB, 2014a).

Parece que, ou o apelo não ocorreu, ou não conseguiu sensibilizar o Governo do

Estado da Paraíba, pois desde o término do mandato dos membros do Comitê, ocorrido em

abril de 2014, que o CEPCT-PB suspendeu suas atividades, como já havia indicado o

documento encaminhado à Ministra e ao Procurador-Geral, posto que “não há disposição de

ninguém em pleitear recondução ou preparar sucessores, nesse cenário em que a prevenção à

tortura vai sendo relegada ao esquecimento, e a legislação correspondente, a letra morta”

(CEPCT-PB, 2014a).

Durante o curto espaço de tempo em que o CEPCT-PB funcionou, mesmo com todas

as limitações acima já abordadas, é possível destacar algumas de suas realizações, atuações e

iniciativas, como: a sistematização dos documentos e relatórios sobre o tema da tortura;

distribuição das denúncias recebidas no CEPCT-PB para análise e apresentação de parecer

pelos seus membros; recomendações sobre a situação do presídio do Róger; realização do I

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Seminário Estadual de Prevenção e Combate à Tortura na Paraíba; e a publicação, em

conjunto com o mandato do deputado federal Luiz Couto, de coletânea Sistema Nacional de

Prevenção e Combate à Tortura e legislação correlata.

Como já exposto o CEPCT-PB é o órgão articulador e orientador da política estadual

de combate à tortura, cabendo-lhe estabelecer diretrizes para o trabalho de fiscalização dos

espaços de privação da liberdade (estabelecimentos penitenciários, hospitalares, de

reeducação de menores, etc.). Desta forma, algumas das atividades acima destacadas fogem às

competências do CEPCT-PB previstas no art. 4º da Lei 9.413/2011.

Porém, como o MEPCT-PB não foi instalado, o CEPCT-PB, inclusive por previsão

legal do art. 10, caput, exerceu as atribuições do Mecanismo Estadual.

Assim, na reunião ocorrida no dia 19 de fevereiro de 2013, o CEPCT-PB analisou o

Relatório da visita realizada em 14 de fevereiro de 2013, à Penitenciária Modelo

Desembargador Flósculo da Nóbrega, pelo Conselho Estadual dos Direitos Humanos (CEDH-

PB), tendo elaborado Recomendações (CEPCT-PB, 2013a), dentre as quais a “imediata

suspensão do ingresso de presos nessa unidade prisional, tendo em vista que a taxa de

ocupação supera em quase 200% o número de vaga” e o “o fechamento da unidade prisional,

que se encontra inadequada para as funções de custódia, apresentando riscos para as pessoas

presas e para os agentes penitenciários que ali exercem suas atividades profissionais”

(CEPCT-PB, 2013e).

O CEPCT-PB encaminhou as recomendações, requerendo que fossem adotadas as

providências legais cabíveis, a diversas autoridades estaduais, dentre elas: Juiz das Execuções

Penais, Promotor de Justiça da Execução Penal, Secretário de Estado da Administração

Penitenciária, Secretário de Estado da Segurança e Defesa Social, Governador do Estado da

Paraíba, Presidente do TJ-PB, Procurador-Geral de Justiça do Estado da Paraíba, Defensoria

Pública da União na Paraíba, Defensoria Pública do Estado da Paraíba, Procurador-Chefe do

MPF-PB.

Dentre as atribuições do CEPCT-PB previstas no art. 4º da Lei 9.413/2011 estão

(CEPCT-PB, 2013, p. 109-110):

VI – articular com organizações e organismos nacionais e internacionais que atuem

no combate à tortura e a outros tratamentos e práticas cruéis, desumanas ou

degradantes e, em especial, com a Secretaria Especial dos Diretos Humanos da

Presidência da República;

X – difundir as boas práticas e as experiências exitosas dos órgãos e entidades

integrantes do sistema nacional de prevenção à tortura;

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XI – fortalecer, junto aos atores locais, a atuação dos órgãos e entidades integrantes

do sistema estadual de prevenção à tortura, de modo a inibir represálias e retaliações

contra a sua atuação;

Nesse sentido o Comitê Estadual, em parceria com a Associação para Prevenção da

Tortura (APT) e com o apoio da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República,

Foreign & Commonwealth Office, Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB e

Ministério Público da Paraíba, realizou, nos dias 21, 22 e 23 de outubro de 2013, o I

Seminário Estadual de Prevenção e Combate à Tortura na Paraíba, com atividades de caráter

técnico e político com a intenção de discutir e chamar a atenção pública para a importância da

prevenção à tortura no Estado e a urgência da viabilização do Mecanismo Estadual, além da

ampliação do apoio de instituições estatais ao trabalho do Comitê Estadual.

O I Seminário se desenrolou durante três dias com pautas específicas e distintas:

21/10/2013 22/10/2013 23/10/2013

Agenda política, incluindo

reuniões com o Governador, pela

manhã, com deputados estaduais,

Secretária da SEDH, com o MP e

outros órgãos, à tarde.

Momento interno de

diálogo/capacitação dos

membros do Comitê - temas:

perícia no delito de tortura e

independência dos órgãos de

perícia (manhã); monitoramento

do espaço de privação da

liberdade (tarde).

Seminário aberto a diversos

segmentos (Comitê, movimentos

sociais, agentes do Estado,

organizações de defesa dos

direitos humanos, estudantes,

professores).

A reunião com o Governador acabou acontecendo apenas no dia 24 de outubro de

2013, estando presentes o Governador, o Coordenador-Geral do CEPCT-PB, Sylvia Dias,

representante da APT para a América Latina, Waldir Porfírio e Lúcio Flávio, representantes

da Casa Civil do Governo do Estado, tendo a pauta os problemas enfrentados pelo CEPCT-PB

e a instalação do Mecanismo (CEPCT-PB, 2014).

No dia 22 de outubro, pela manhã, no auditório do Ministério Público Estadual,

ocorreu atividade de formação destinada aos membros do CEPCT-PB e de suas entidades

componentes, tendo sido proferida, pela manhã, palestra pelo médico legista Genival Veloso

de França e, a tarde, a palestra 'Monitoramento de espaço de privação da liberdade', tendo

como expositoras Sylvia Diniz Dias, diretora do escritório da APT na América Latina e Vera

Lúcia Alves, representante do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio

de Janeiro – MEPCT-RJ.

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97

O professor Genival Veloso de França abordou o tema da 'Morte sob custódia

judicial', definido-a “como sendo toda a morte sobre a qual se pode aventar uma situação

violenta e que ocorre em pessoas que estão em estabelecimentos penais, manicômios

judiciários, instituições de recuperação de infratores, sob a proteção do Estado” (FRANÇA,

2013).

Genival Veloso ressaltou que “é preciso estimular os órgãos de direitos humanos,

governamentais ou não, para incluírem em seus programas e projetos o tema morte sob

custódia”, a “capacitação de médicos legistas e peritos criminais para aperfeiçoarem seus

conhecimentos diante desse tipo de óbito” e destacou pontos relevantes para a realização de

perícia forense em casos de tortura (FRANÇA, 2013).

No dia 23 de outubro de 2013, ocorreu a parte do Seminário aberta ao público, e

contou com a participação de mais de duzentas e cinquenta pessoas. A mesa de abertura

contou com a participação do coordenador-geral do Comitê, procurador da República Duciran

Farena, do procurador-geral de Justiça, Bertrand de Araújo Asfora, procurador-chefe do

Ministério Público Federal na Paraíba, Rodolfo Alves, da secretária de Desenvolvimento

Humano do Estado, Cida Ramos, da coordenadora-geral de Combate à Tortura da Secretaria

de Direitos Humanos da Presidência da República, Ana Paula Diniz, da diretora do escritório

da APT na América Latina, Sílvia Dias, do presidente do Conselho Estadual de Direitos

Humanos, Padre Bosco, do corregedor-geral da Secretaria de Segurança Pública, Aristóteles

Moura, e do representante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PB, Alexandre Guedes

(CEPCT-PB, 2013a).

Em seguida veio a palestra “A proibição à tortura nos sistemas interamericano e

internacional de proteção dos direitos humanos” proferida por Luciano Mariz Maia,

Subprocurador-geral da República e Professor da UFPB. Ainda na parte da manhã foi

proferida a palestra “O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura” por Ana Paula

Diniz de Mello Moreira, Coordenadora-Geral de Combate à Tortura da Secretaria de Direitos

Humanos da Presidência da República (CEPCT-PB, 2013a).

O evento teve continuidade a tarde com a palestra “Mercantilização do Sistema

Penitenciário e Tortura”, proferida por Gustavo Batista, Professor da UFPB e membro do

CEPCT/PB, e “Os Sistemas Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura” por Maria das

Graças Bezerra - Representante do CEPCT/AL; Roberto Gevaerd - Representante do

CEPCT/RJ; Vera Lucia Alves – Representante do MEPCT/RJ; Ludmila Cerqueira Correia -

Representante do CEPCT/PB.

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98

Ainda como parte da programação do I Seminário ocorreram o lançamento do

relatório final de pesquisa do Projeto: “Prisão: para quê e para quem? Diagnóstico do Sistema

Carcerário e Perfil do Preso”, com apresentação de Tatyane Guimarães Oliveira da Dignitatis

- Assessoria Técnica Popular, tendo como debatedor Patrick Mariano Gomes, Consultor da

Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.

A atividade foi concluída com o lançamento da publicação “Coletânea da Legislação

Internacional, Nacional e Estadual sobre Tortura”, do CEPCT/PB em parceria com o mandato

do Deputado Federal Luiz Couto.

A Coletânea da Legislação Internacional, Nacional e Estadual sobre Tortura tem

introdução do Deputado Federal Luiz Couto, apresentação do Coordenador-Geral do Comitê

Duciran Farena e contém:

Análise do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (Lei nº 12.847/13);

Decreto Nº 40, de 15 de fevereiro de 1991; Convenção contra a Tortura e outros

tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; Decreto nº 6.085, de 19 de

abril de 2007; Protocolo Facultativo à Convenção contra tortura e outros tratamentos

ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; Decreto 98.386 de 9 de dezembro de

1989; Convenção Interamericana para prevenir e punir a Tortura (1985); Lei nº

12.847 de 2 de agosto de 2013; Lei Estadual nº 9.413, de 12 de julho de 2011;

Regimento Interno Comitê Estadual para a Prevenção e o Combate à Tortura na

Paraíba (Decreto Estadual nº 33.558 de 04 de dezembro de 2012)

Analisando 13 atas de reuniões do CEPCT-PB, sendo 11 ordinárias e 2

extraordinárias, percebe-se que quatro temas dominam os debates na entidade: a situação do

Comitê, a situação do Mecanismo, a apreciação de casos isolados de tortura e a necessidade

de formação/capacitação para os membros. Recomendações e políticas públicas relacionadas

a atuação do Comitê foram objeto de debates em duas e três reuniões, respectivamente:

Quadro das temáticas abordadas nas reuniões do CEPCT-PB

Data/Tema CEPCT MECPT Tortura Formação Recomendação Visitas Política pública

17/12/12 1 1

19/02/13 1 1 1 1 1

12/03/13 2 2 1 2

09/04/13 3 3 1 1 1

22/04/13 2 1 1

07/05/13 1 2 3 1

04/06/13 1 1 1 1

02/07/13 2 2 2

07/08/13 2 1 5 1

27/08/13 1 1 2 2

10/09/13 5 4 1

05/11/13 1 1 1 1 1

16/02/14 2 1

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Merece registro o debate ocorrido na reunião do dia nove de abril de 2013 sobre a

possibilidade do CEPCT-PB fazer visitas, sem nenhum preparação, tendo a Vice-

Coordenadora Ludmila ponderado sobre a “importância de um planejamento prévio”. Porém,

após debater o tema, “a maioria dos membros do CEPCT opinaram no sentido de que a visita

fosse realizada mesmo sem planejamento” (CEPCT-PB, 2013b).

Mas, na reunião do dia cinco de novembro de 2013, ao ser sugerida uma visita in

loco, foi comunicado que o CEPCT-PB havia decidido que “não poderia acumular as funções

do mecanismo” e que a “visita teria que ser feita pelo CEDH” (CEPCT-PB, 2013e).

Percebemos que as autoridades paraibanas não têm a prevenção e o combate à tortura

como prioridade, não a colocando na agenda política. Quando pressionadas, quer por

entidades, órgãos, militantes de direitos humanos, ou pelo governo federal, aprovam leis

criando os órgãos exigidos, mas em seguida tentam “esvaziar” a sua atuação quer não

dotando-os com a estrutura mínima, ou pela não participação de seus representantes nas

atividades. Chegando em alguns casos a nem tomarem posse ou a não irem a nenhuma

reunião.

Quando o Estado da Paraíba aderiu ao Plano de Ações Integradas para Prevenção e

Combate à Tortura em 2006, sendo inclusive o primeiro Estado a fazê-lo como já exposto, a

cerimônia de assinatura ocorreu com todas as pompas, contando com a presença do Ministro

da Secretaria de Direitos Humanos, do Governador da Paraíba, do Presidente do Tribunal de

Justiça, do Representante do PNUD no Brasil e dezenas de outras autoridades. Não faltaram

discursos emocionados em condenação à tortura.

Não faltaram fotos e mais fotos. Bem como dezenas de matérias nas tv’s, nos rádios,

jornais impressos, tendo a notícia se espalhado mundo a fora pela rede mundial de

computadores24

. Como dizia o personagem Juca Pirama: eu vi! E vi e vivi as expectativas

criadas, os olhares cheios de esperança acreditando-se está em curso uma mudança do

paradigma da igualdade formal, que pudesse representar o início do combate à tortura.

Vi também que as palavras não se transformaram em atos e sucumbiram rapidamente

ao esquecimento levadas pelo tempo.

Em 2011, quando o Governador da Paraíba sancionou a Lei nº 9.413/2011, este ato

ocorreu em cerimônia que em tudo lembra a ocorrida em 2006. E novamente os olhares se

24

http://www.famup.com.br/index.php?run=conteudo/conteudo-ler&id=11706&pesq=;

http://www.fundacaomargaridaalves.org.br/2006/01/17/pb-sera-primeiro-estado-a-implantar-plano-nacional-de-

combate-a-tortura/

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acenderam, os corações se aqueceram no meio de tantos flashes. E a notícia também correu o

mundo25

.

Porém, como acima exposto, o CEPCT-PB está sem mandato e o MEPCT-PB não

chegou nem a ser instalado.

Parece que estamos, exatamente diante da assertiva de Damião Trindade, para quem

“se o direito positivo fosse o retrato fiel do mundo, estaríamos no melhor dos mundos” (2002,

p. 194).

Nesse mesmo sentido, Norberto Bobbio (1992, p. 64) vai afirmar que a “amplitude

dos direitos humanos é um sinal do progresso moral da humanidade, mas o crescimento moral

não se mensura pelas palavras, mas pelos fatos”.

Para Trindade tal realidade “configura-se uma situação em que, entre dispor

formalmente de instrumentos jurídicos para a proteção dos direitos humanos e efetivamente

levá-los à prática, medeia um abismo que se alarga” (2002, p. 194).

A concepção instrumental do Direito Positivo, no sentido de que as leis constituem

meios insuperáveis para se alcançar determinados fins “desejados” pelo legislador,

especialmente a mudança social, implica um modelo funcional simplista e ilusório, como tem

demonstrado os seus críticos. Em primeiro lugar, observa-se que há um grande número de leis

que servem apenas para codificar juridicamente “normas sociais” reconhecidas. Por outro

lado, a complexidade do meio ambiente social dos sistemas jurídico e político é muito

acentuada, para que a atuação do Estado através de legislação possa ser apresentada como

instrumento seguro de controle social (NEVES, 1994, p. 31).

Mas a questão dos limites de uma concepção instrumental da legislação interessa-

nos, aqui, em outra perspectiva: o fracasso da função instrumental da lei é apenas um

problema das normas jurídicas? A resposta negativa a essa questão põe-nos diante do debate

em torno da função simbólica de determinadas leis (NEVES, 1994, p. 31).

Considerando-se que a atividade legiferante constitui um momento de confluência

concentrada entre sistemas político e jurídico, pode-se definir a legislação simbólica como

produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve,

25

http://paraiba.pb.gov.br/governador-sanciona-lei-que-cria-comite-estadual-para-prevencao-e-combate-a-

tortura/; http://noticiasdeconde.blogspot.com.br/2011/09/governo-do-estado-inicia-instalacao-do.html;

http://marcosalfredo.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2463:ricardocomitetortura;

http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2011/07/paraiba-tera-mecanismo-de-prevencao-e-combate-a-

tortura;

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primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente

normativo-jurídico (NEVES, 1994, p. 32).

É evidente que, quando o legislador se restringe a formular uma pretensão de

produzir normas, sem tomar qualquer providência no sentido de criar os pressupostos para a

eficácia, apesar de estar em condições de criá-los, há indícios de legislação simbólica

(NEVES, 1994, p. 32).

Kindermann (apud NEVES, 1994, P. 34) propõe um modelo tricotônico para a

tipologia da legislação simbólica, cuja sistematicidade o torna teoricamente frutífero:

“Conteúdo de legislação simbólica pode ser: a) confirmar valores sociais. b) demonstrar a

capacidade de ação do Estado e c) adiar a solução de conflitos sociais através de

compromissos dilatórios” (NEVES, 1994, p. 34).

A legislação-álibi, a que interessa ao presente trabalho, “decorre da tentativa de dar a

aparência de uma solução dos respectivos problemas sociais” ou ainda segundo NEVES, “da

pretensão de convencer o público das boas intenções do legislador” (1994, p. 39).

Para esse autor, a discussão em torno de uma legislação penal mais rigorosa, devido

ao aumento da criminalidade no Brasil nas últimas duas décadas, “apresenta-se como um

álibi, eis que o problema não decorre da falta de legislação tipificado, mas sim,

fundamentalmente, da inexistência dos pressupostos sócio-econômicos e políticos para a

efetivação da legislação penal em vigor” (NEVES, 1994, p. 38).

Ora, esse parece também ser o caso do combate a tortura! A conduta é proibida pela

Constituição, criminalizada por lei específica, existindo órgãos encarregados do seu combate

e prevenção, mas uma série de fatores histórico-culturais, sócio-econômicos e políticos

impede a efetividade desta legislação.

No entanto, talvez a situação seja ainda mais grave. Da desfaçatez ao cinismo da

indiferença total.

A Lei 12.034/2009 introduziu o inciso IX ao § 1º do art. 11 da Lei Geral das Eleições

(Lei 9.504/97) e tornou obrigatório a apresentação das propostas defendidas pelos candidatos

a Prefeito, a Governador de Estado e a Presidenta da República junto ao pedido de registro de

candidatura:

Art. 11. Os partidos e coligações solicitarão à Justiça Eleitoral o registro de seus

candidatos até as dezenove horas do dia 5 de julho do ano em que se realizarem as

eleições.

§ 1º O pedido de registro deve ser instruído com os seguintes documentos:

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IX - propostas defendidas pelo candidato a Prefeito, a Governador de Estado e a

Presidente da República.

Pois bem, analisando as propostas de governo que foram inseridas no sistema

“divulgacand” ??? do TSE, constatamos que nenhum dos seis candidatos ao governo da

Paraíba apresentou proposta concernente à prevenção e ao combate à tortura. E mais,

nenhuma das propostas traz sequer a palavra tortura (Antonio Radical, 2014; Cunha Lima,

2014;Major Fábio, 2014; Ricardo Coutinho, 2014; Tárcio Teixeira, 2014; Vital do Rego

Filho, 2014).

A prevenção e o combate à tortura nem ao menos entraram no vocabulário dos

candidatos ao governo do Estado da Paraíba. Não estão entre as metas, não são prioridades.

Houve, desde a proibição da tortura na Constituição Federal de 1988, um avanço na

institucionalização do combate a tortura no Brasil, merecendo destaque uma série de

iniciativas governamentais, incluindo a criação de órgãos nacionais e estaduais nos moldes

das recomendações do OPCAT. Em termos de institucionalidade e normatividade temos um

quadro que se aproxima muito do desejado.

Por outro lado, a realidade estampada nos relatórios demonstra que a

institucionalização e normatização não são suficientes nem para prevenir nem para combater a

tortura. Não tem sido eficaz nem ao menos para reduzir a sua prática.

E o que falta? Falta muito pouco e falta tudo, pois falta vontade política! Falta passar

das palavras aos atos. Falta colocar a gigantesco problema da tortura na agenda política

nacional. Falta encarar a questão de frente e dimensionando-a ao seu real tamanho, o que

inclui o seu enraizamento cultural nas instituições, sendo parte importante do setor de

investigação do aparelho de segurança que, em atitude medieval continua buscando a

confissão a qualquer preço como rainha das provas; a introjeção e tolerância da tortura no

meio da população, inclusive e sobretudo, no meio dos torturáveis.

Da mesma forma, o não combate aos mitos da eficácia da tortura e de que sua prática

é exceção a regra, de períodos de ditaduras, e constituindo desvios de conduta; a

desconsideração de que a tortura é delito de oportunidade e que para combatê-lo é preciso

facilitar o acesso às pessoas detidas e dessas com o exterior dos locais de detenção; assegurar

assistência jurídica qualificada às pessoas detidas; concretizar a autonomia da perícia médica

do aparelho de segurança; condenar publicamente a tortura e não aceitar a sua prática, criando

mecanismos de punição administrativa que responsabilize não apenas o acusado, mas todos os

servidores do local onde a tortura ocorreu, sobretudo os superiores hierárquicos

(responsabilidade objetiva administrativa); desmilitarizar os presídios, principalmente as suas

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direções; considerar a grande extensão territorial do Brasil e o princípio federativo, pois a

tortura acontece, quase em cem por cento dos casos, na esfera estadual.

3.3 – Tentando encarar a tortura com olhos nos olhos

Município Dias D'Ávila, Bahia, 14 de junho de 2015. Um morador de 62 anos tem

sua casa invadida por quatro policiais, durante a madrugada, e é torturado por mais

de uma hora e meia. A tortura é dolorosa: socos que deixaram feridas nos ombros,

mandíbula, joelhos e uma perfuração no ânus causada por um cabo de vassoura. A

sessão de violência foi motivada pela suspeita de que o idoso, que não possui

antecedentes criminais, seria um narcotraficante. Os policiais, porém, não visavam

sua prisão: queriam dinheiro (CARTA CAPITAL, 2015).

Uma das grandes dificuldades para se enfrentar a tortura e implementar uma política

eficaz para seu combate e prevenção é sua não admissão pelas autoridades brasileiras na sua

real dimensão. Em raríssimos casos, como no caso do ex-Ministro Paulo Vanucchi, as

autoridades brasileiras se negam a assumir o óbvio: a tortura é uma prática disseminada,

enraizada, sem controle no meio do aparelho de segurança e parte essencial para o “bom”

funcionamento deste aparelho.

Por vez, quando admitem a tortura, diante de casos que acabam se tornando

“visíveis”, como no já citado caso da Favela Naval ou no recente caso do pedreiro Amarildo,

nossas autoridades tentam justificá-la como sendo exceção à regra, como atos de desvios de

condutas ou descontrole momentâneo dos agentes de segurança.

Henry Shue (apud GONÇALVES, 2009, p. 139) vai apresentar essa questão como

um dos mitos da tortura no mundo contemporâneo. “o primeiro é considerar a tortura como

exceção, portanto provisória, episódica, transitória”.

Já para Martha Huggins (apud GONÇALVES, 2009, p. 139) “considerar a prática da

tortura como um problema da natureza humana perversa e desviante”, como sendo “um

problema de indivíduos considerados “maçãs podres”” é uma armadilha que precisa ser

superada.

Outra armadilha ou mito para SHUE é o de considerar que “a tortura é própria dos

regimes autoritários e totalitários” (apud GONÇALVES, 2009, p. 139).

O Primeiro Relatório Relativo à Implementação da Convenção Contra a Tortura vai

apontar como um dos fatores que “explicam as dificuldades de erradicação da tortura no

Brasil” como sendo a “herança de práticas do regime autoritário e a permanência e

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continuidade de boa parte dos funcionários subalternos nas policias civil e militar,

acostumadas com a impunidade de outrora” (BRASIL. Ministério da Justiça, 2000, p. 23).

Porém, já se passaram trinta anos do fim do período militar e, dificilmente, vai ser

encontrado ainda na ativa “funcionários subalternos nas policias civil e militar”.

A tortura durante a ditadura militar, é verdade, foi agravada pela desnecessidade dos

torturadores darem satisfação a quem quer que seja, o que possibilitou o “seu aperfeiçoamento

técnico” e utilização contra os “inimigos” do regime, sendo estes qualquer pessoa que se

opusesse, divergisse, criticasse, não aceitasse ao regime ou qualquer pessoa que pudesse ter

informações que fosse do interesse do regime (CARDIA e SALLA, 2014).

Relata Marcelo Barros Correia que (2015):

Durante a ditadura, a liberdade de torturar e o poder de não precisar dar resposta às

demais instituições eram muito maiores e permitiram a aplicação de uma tortura

mais sofisticada. A supressão dos direitos individuais e das garantias legais fizeram

com que a tortura fosse praticada de forma mais intensa e com mais requinte.

Neste mesmo sentido é a opinião de Adriana Dias Vieira (2007):

Com o golpe militar de 1964, instaura-se uma nova ditadura no Brasil (1964-1985).

Refina-se a prática de tortura, desta vez utilizada contra os opositores do regime

militar. Estudantes e intelectuais foram presos, torturados, mortos e exilados do país.

Oliveira afirma que durante essa ditadura militar a classe média e a alta conheceram

os cárceres e a brutalidade policial brasileira.

No entanto, o fim da ditadura e o retorno ao regime democrático brasileiro não

significou nem de longe o fim do uso da tortura (MAIA, 2010; OLIVEIRA, 2009; JESUS,

2009). Na verdade, a tortura vai permanecer “como prática corriqueira em delegacias como

modus operanti do trabalho policial. A rotina de violações, principalmente dos segmentos

mais vulneráveis, continua sendo um dado da realidade” (JESUS, 2009, p. 89).

O Primeiro Relatório Relativo à Implementação da Convenção Contra a Tortura

afirma que a “tortura dos criminosos comuns, relacionada à corrupção e abuso de autoridade

policial, pelo contrário, é combatida pelos atuais governos democráticos e repudiada pela

população” (BRASIL. Ministério da Justiça, 2000, p. 22).

Cardia e Salla (2014, p. 316) argumentam que houve um “acordo” para se

“esquecer”, não apenas a tortura que vitimou as elites e a classe média durante o período da

ditadura, mas também a tortura rotineira “que continuar a vitimar os suspeitos de crimes

comuns pertencentes às camadas mais pobres”. Para os autores, a “Anistia pactuada garantiu

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aos torturadores que não fossem processados e punidos em troca do não processo de

opositores do antigo regime” (2014, p. 317).

A ausência de punição aos torturares do período da ditadura militar-civil teve como

consequência que não foi “dado um sinal claro à sociedade de que essas práticas não só eram

moralmente condenáveis, mas configuravam graves crimes que deveriam ser severamente

punidos” (CARDIA e SALLA, 2014, p. 317).

Assim, este fato contribui para que não houvesse uma “ruptura de mentalidade das

elites brasileiras, que, portanto, subsistem acreditando serem eficazes as antigas formas de

repressão, não mais contidas nas leis brasileiras” (VIEIRA, 2009) e que poderia sem bem

exemplificada pela

continuidade existente entre os castigos físicos que qualquer capitão-do-mato

aplicava antigamente aos negros fujões e as torturas (às vezes chamadas

eufemisticamente de "maus-tratos") que qualquer policial pode aplicar ainda hoje,

sem maiores conseqüências, a qualquer pequeno marginal" (OLIVEIRA, 2009,

p. 18).

Neste sentido, vai se posicionar o juiz Luís Fernando Camargo de Barros Vidal, ex-

presidente da Associação Juízes para a Democracia:

“Admitindo que a tortura é usual no sistema punitivo, e sabido que o

sistema normativo repudia a sua prática, é fácil concluir que há uma

profunda contradição entre o que se passa e o que se espera, entre o

ser e o dever-ser, entre o mundo das coisas e o mundo ideal. ” (2001,

p. 24).

E vai concluir que: “Ao mesmo tempo em que o sistema normativo caracteriza a

tortura como anormalidade do sistema, a prática a erige à verdadeira instituição desse

sistema” (2001, p. 24).

3.4 - Ausência de condenação pública da tortura pelas autoridades

Para sair das palavras e passar aos atos é preciso que as autoridades brasileiras façam

de forma categórica e inequívoca a condenação pública da tortura. E essa condenação até que

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fora feita nos últimos anos, tanto pelos ex-presidentes Fernando Henrique e Lula, quanto pela

atual Presidenta Dilma.

Essa condenação pública deve vir acompanhada de atos, em ações para dar

concretude e não ficar apenas no mero discurso.

Em 12 de dezembro de 2013, quando da cerimônia de entrega da 19ª Edição do

Prêmio de Direitos Humanos a Presidenta Dilma fiz pronunciamento condenando a tortura:

É necessário reconhecer que a tortura continua existindo em nosso país. Eu que

experimentei a tortura, sei o que ela significa. Desrespeito mais elementar da

condição de uma pessoa. O Estado brasileiro não aceita nem aceitará práticas de

tortura contra qualquer cidadão.

Nesta mesma data, a presidenta Dilma assinou o decreto que regulamenta a Lei

12.847/12, que instituiu o SNPCT. Os dois atos juntos representam o bom exemplo.

No entanto, não podemos esquecer que nos termos do art. 1º da Constituição Federal,

o Brasil é uma República Federativa, formado pela união indissolúvel dos Estados e

Municípios e do Distrito Federal. O que implica em repartição de competência entre a União e

os Estados-membros (SILVA, 2014).

No caso da segurança pública essa competência é partilhada entre órgãos federais e

estaduais (CF, art. 144), cabendo às policias civil e militar a responsabilidade de manutenção

da ordem pública interna (SILVA, 2014, p. 789).

Acontece que, como já exposto, os agentes das polícias civil e militar são os grandes

perpetradores de tortura, sendo apontados como responsáveis por mais de 70% dos casos

constantes no Relatório de Nigel Rodley (apud MAIA, 2006, p. 89).

Portanto, é preciso que essa condenação pública da tortura, acompanhada de atos e

ações sejam feitas pelas autoridades estaduais. Inclusive, essa foi a recomendação 1 do

Relatório de Nigel Rodley às autoridades brasileiras (2001, p. 47):

1. Em primeiro lugar, as mais altas lideranças políticas federais e estaduais precisam

declarar inequivocamente que não tolerarão a tortura ou outras formas de maus

tratos por parte de funcionário públicos, principalmente as polícias militar e civil,

pessoal penitenciário e pessoal de instituições destinadas a menores infratores. É

preciso que os líderes políticos tomem medidas vigorosas para agregar credibilidade

a tais declarações e deixar claro que a cultura de impunidade precisa acabar. Além

de efetivar as recomendações que se apresentam a seguir, essas medidas deveriam

incluir visitas sem aviso prévio por parte dos líderes políticos a delegacias de

polícia, centros de detenção pré-julgamento e penitenciárias conhecidas pela

prevalência desse tipo de tratamento.

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Além de não considerarem as recomendações acima expostas, as autoridades

estaduais agem em sentido contrário quase que autorizando o uso da tortura pelas forças de

segurança. Três episódios recentes ocorridos nos Estados da Paraíba, Bahia e Alagoas são

bem ilustrativos.

Na Paraíba, a Polícia Militar fez um desfile em carro aberto com os acusados de

assassinarem um sargento da PM no de 6 de junho de 2015. Alguns tinham sinais visíveis de

agressão física, sendo que um ainda sagrava pela boca, além de dois suspeitos terem sido

mortos (Portal G1, 2015). Após as críticas ao episódio do desfile, o governador Ricardo

Coutinho (PSB) fez a defesa da ação policial afirmando que “Bandido tem que compreende

que não pode fazer o que bem entende” e, em seguida, tentou amenizar dizendo que “Não

estou incentivando a violência, a polícia foi extremamente profissional e quero agradecer a

ação da PM pois o crime não compensa” (Portal G1, 2015).

Na Bahia, no dia 6 de fevereiro de 2015, a polícia Militar matou doze suspeitos de

planejarem um assalto e feriu outros três em episódio que ficou conhecido com a Chacina do

Cabula. O governador Rui Costa (PT) afirmou que “até o momento não há indícios de

necessidade de afastamento dos policiais militares que participaram da ação”. O Secretário de

Segurança Pública, Maurício Barbosa, afirmou que a “resposta da polícia tem que ser dura e

energética no combate ao crime organizado” e que não “vamos tolerar a participação de elementos

armados na prática desse tipo de delito que a gente tem combatido tanto” (BAHIA, 2015),

Em 24 de junho de 2015 a Juíza da 2ª Vara do Júri de Salvador-BA absolveu

sumariamente os nove policiais militares denunciados pelo Ministério Público, acatando a

tese de que os PM’s agiram em legítima defesa (BAHIA, 2015).

Em Alagoas, em entrevista concedida no dia 6 de abril, o secretário de Defesa Social

e Ressocialização, promotor de Justiça Alfredo Gaspar de Mendonça afirmou que: “bandido

em Alagoas na minha gestão só tem dois caminhos a seguir: ou se entrega indo para cadeia ou

morre.” O Secretário ainda afirmou que prefere “um milhão de bandidos mortos que um

policial em Alagoas assassinado”. E que conta “com o aval do governador Renan Filho”

(PMDB) (ALAGOAS, 2015).

Outro exemplo dessa autorização indireta de tortura feita pelas autoridades aos

torturadores de plantão nas delegacias, viaturas, presídios e cadeias públicas, podemos

observar objetivamente das declarações do ex-Secretário da SEAP, Delegado Walber

Virgulino. Em entrevista concedida ao Programa Rádio Verdade, da Arapuan FM, o ex-

Secretário da SEAP afirmou que: “Não estou preso e não tenho parente preso. Não dói nada

em mim conter uma rebelião. Se eles se matarem, são eles que estão morrendo” (2014).

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O Conselho Estadual de Direitos Humanos na Paraíba (CEDH/PB) emitiu em 26 de

novembro, nota de repúdio às declarações do ex-Secretário da SEAP, pois entendeu,

corretamente que:

Tais declarações por parte de um representante do Governo do Estado da Paraíba

mostram o descaso do Estado em cumprir sua responsabilidade constitucional de

proteção à integridade das pessoas detidas sob sua custódia, além de evidenciarem a

falta de interesse do Governo em melhorar o sistema prisional, pois demonstram que

pouco lhe importa o resultado das tragédias anunciadas nos presídios paraibanos

(CEDH-PB, 2014).

Ao invés de condenarem publicamente a tortura ou qualquer ação ilegal dos agentes

de segurança, essas falas das autoridades soam como uma autorização para fazerem o que

bem entender, desde que a ação seja “eficaz” para combater o crime.

Essa postura de conivência, tolerância das autoridades brasileiras, sobretudo das

estaduais, representa uma violação à recomendação nº 1 do Relator Especial da ONU.

As que objetivam ou resultam em aumento de dificuldade para a prática do crime: R2 Cessar abuso prisão; R3 Só 24 h nas delegacias; R5 Informação sobre direitos do preso; R6 Registro detalhado da custódia; R7 Prisão provisória não em delegacia; R11 Proteção a vítimas e testemunhas; R15 Penas alternativas à prisão; R16 Penas menores; R17 Defensores públicos desde momento da prisão; R18 Visitas regulares de conselhos ao sistema prisional; R21 Exame por um médico; R22 Independência da perícia médica; R23 Redução da superpopulação carcerária.

????? As que objetivam ou resultam em aumento do risco para a prática do crime (aumento do risco de punição e responsabilização, ou fatos ou eventos custosos e danosos): R1 Visitas surpresa, suspensão funções; R4 Acesso dos familiares;

3.5 – Dificultando o acesso aos detidos e presos

Segundo Luciano Maia, os “dados, identificados tanto pelo Relatório de Nigel

Rodley, quanto pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos, apontam para a conclusão de

que a tortura é um crime de oportunidade”, desempenhando, as oportunidades, “papel

relevante para que a tortura ocorra (2006, p. 87).

Relata Luciano Maia que o “suspeito, quando detido e em mão da polícia, está numa

situação de extrema fragilidade e vulnerabilidade” e é neste momento que a tortura ocorre

“como meio utilizado pelas forças de segurança para obtenção de informações ou confissões”

(MAIA, 2006, p. 11). Assim, nesses momentos a assistência de advogado e o

acompanhamento de familiares é essencial para evitar a prática da tortura.

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Esses direitos estão consagrados na Constituição como direito fundamento, art. 5º,

inciso LXIII: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado,

sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.

Ensina Luciano Maia que (2006, p. 308):

Aplicando a metodologia oferecida pelas Teorias da Oportunidade para a Prática do

Delito para a problemática do crime de tortura, foi possível classificar as 30

Recomendações do Relator Especial Contra a Tortura de acordo com os 4 objetivos

básicos perseguidos por uma política criminal: 1. Aumentar a dificuldade para a

prática do crime; 2. Aumentar os riscos decorrentes do crime; 3. Reduzir as

recompensas do crime; e 4. Remover as desculpar para a prática do crime.

De acordo com a classificação das Recomendações de Nigel Rodley, à luz da teoria

das oportunidades, feita por Luciano Maia, a assistência de advogado estaria entre as

recomendações que resultam em aumento das dificuldades para a prática do delito de tortura.

A assistência familiar se classificaria entre as recomendações que resultam em aumento do

risco para a prática do crime (2006, p. 300).

Nigel Rodley, dentre as várias recomendações que fez às autoridades brasileiras,

incluiu (2001, p. 48):

4. Os familiares próximos das pessoas detidas deveriam ser imediatamente

informados da detenção de seus parentes e deveriam poder ter acesso a eles. (...)

5. Qualquer pessoa presa deveria ser informada de seu direito contínuo de consultar-

se em particular com um advogado a qualquer momento e de receber

assessoramento legal independente e gratuito, nos casos em que a pessoa não possa

pagar um advogado particular.

Nadando na direção contrária à efetivação das recomendações 4 e 5 do Relatório de

Nigel Rodley, as autoridades brasileiras tentam dificultar o acesso ao detido, quer por

advogado, quer pelos familiares.

Na Paraíba a dificuldade de acesso ao preso nos primeiros dias de sua detenção

decorre, inicialmente, da implementação de recomendação do Relator Nigel Rodley, a de

número 3, cuja parte inicial tem a seguinte redação: “As pessoas legitimamente presas em

flagrante delito não deveriam ser mantidas em delegacias de polícia por um período além das

24 horas necessárias para a obtenção de um mandado judicial de prisão provisória” (2001, p.

46).

Na grande João Pessoa, lavrado o flagrante e não sendo caso de crime afiançável ou

de competência de juizado especial, o detido é encaminhado para um presídio. Em João

Pessoa, para o presídio do Róger.

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Para um familiar visitar um parente detido é necessário fazer uma carteira de

identificação. Dentre os documentos exigidos para a confecção da carteira está a apresentação

de Certidão Negativa da Justiça Estadual (GESIPE, 2015).

A Resolução nº 17/2010 do TJPB, instituiu e disciplinou a emissão eletrônica e

gratuita de certidões de antecedentes criminais (TJPB, 2000). O problema é o sistema leva em

média quinze dias para emitir uma certidão negativa

Em 29 de julho de 2015, solicitei uma certidão em meu nome, sendo que a resposta

seria disponibilizada até o dia 12 de agosto de 2015 (TJPB, 2015):

Sua solicitação foi enviada com sucesso. Abaixo, relação de número(s) de protocolo:

Certidão

Criminal: 201507290001602.

A resposta à sua solicitação será disponibilizada até 12/08/2015.

Atenção: é imprescindível guardar a relação de número(s) de protocolo de

solicitação. Se preferir, utilize o botão abaixo para imprimir.

Sem a certidão de antecedentes não é possível confeccionar a carteira e sem a

carteira não é possível ter acesso ao familiar detido.

Na Justiça Federal da Paraíba, bem como no TJPE, a emissão de certidão eletrônica

em imediata, em caso dela ser negativa.

Por sua vez, o Conselho Estadual de Coordenação Penitenciária editou a Resolução

nº 003/CECP/1 que “Normatiza o acesso de advogados, defensores públicos, oficiais de

Justiça e outros servidores que militam na área de atividades afins aos estabelecimentos

penais do Estado” (PARAÍBA, CECP, 2013).

Pelo art. 1º da mencionada Resolução o “o acesso de advogados e/ou defensores

públicos aos seus assistidos, bem como de oficiais de Justiça, obedecerá, rigorosamente, o

horário forense, de segunda a sexta, preferencialmente, das 8:00 às 18:00 horas, salvo em

casos excepcionais, à critério da Vara de Execução Penal” (PARAÍBA, CECP, 2013).

O objetivo de impossibilitar, de dificultar o acesso do advogado ao cliente detido fica

ainda mais evidente com o disposto no parágrafo único do art. 1º, que tem a seguinte redação:

“Parágrafo único – No caso de detentos que ingressarem nos estabelecimentos

penais após às 18:00 horas das sextas-feiras, sábados, domingos e feriados, será

possibilitada a visita pelo advogado, sempre resguardada a segurança interna da

Unidade, quando se revestir de excepcionalidade, devidamente autorizada pela Vara

de Execução Penal, sob protocolo ao Diretor da Unidade”.

Exigir autorização da Vara de Execução Penal, nesses dias e horários, é

impossibilitar o acesso do advogado à Unidade Prisional, e cerceia o exercício da profissão.

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Ainda segundo Luciano Maia (2006, p. 308) algumas recomendações do Relator

Especial, de acordo com “os objetivos básicos perseguidos por uma política criminal”, se

classificariam como as que resultam em reduzir as recompensas para a prática do crime de

tortura:

Objetivo Meio Recomendação

Reduzir as recompensas do crime

reduzir a tentação

Possibilidade de realização de

investigação pronta e imparcial por

órgão independente

Possibilidade de afastamento das

funções

Riscos para promoção na carreira

negar os benefícios

Possibilidade de afastamento das

funções

Riscos para promoção na carreira

No dia seis de junho de 2010 o Conselho Estadual de Direitos Humanos realizou

visita de inspeção no Presídio Modelo Des. Flósculo da Nóbrega, conhecido como Presídio do

Róger. A equipe era formada pelos conselheiros : Daniela de Queiroz Fernandes Farias -

(CEDDHC -PB- CEAV- JP); Guiany Campos Coutinho - (CEDDHC -PB- Pastoral

Carcerária); Padre Bosco Francisco do Nascimento - (Vice Pres.CEDDHC -PB- Pastoral

Carcerária); Renato Lanfranchi - (CEDDHC -PB- CEDHOR-Santa Rita); Marcos José

Oliveira Lima Filho - (CEDDHC -PB- Dignitatis); Priscílla da Fonseca - (Estagiária CRDH).

O objetivo da visita de inspeção era averiguar denúncias de torturas e maus tratos formuladas

por familiares de detentos. As torturas e maus tratos teriam ocorrido durante operação feita

pela tropa do Choque comandada pelo Capitão Sérgio (CEDH-PB, 2010).

Segunda narra o Relatório os (CEDH-PB, 2010):

Os membros do Conselho adentraram o presídio e colheram os relatos sobre uma

operação com policiais do choque comandada pelo capitão Sergio que aconteceu no

dia vinte e nove de novembro do ano em curso, que resultou na tortura dos internos

dos pavilhões II, III e IV. Segundo os relatos comprovados pelas fotos tiradas no

local, vários presos foram mordidos por cachorros, outros sofreram tiros de bala de

borracha, outros tiveram jatos de spray de pimenta contra o rosto, além várias

marcas de espaçamento provocadas por botas, cassetetes e até, tacos de baseball.

Havia ainda cartuchos de balas de borracha, muitas balas de borracha e estilhaços de

balas letais que foram achados no presídio.

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Ainda segundo consta no Relatório, a “operação foi comandada pelo Capitão Sérgio

e pelo Vice Diretor Wendel da unidade prisional” (CEDH-PB, 2010).

Segundo o histórico do Laudo Tanatoscópico nº 07520512, Erinaldo Soares da Silva

foi “vítima de disparos de arma de fogo durante rebelião ocorrida no Presídio PB1/PB2, nos

dias 29/05/2012 e 30/05/2012, tendo sido o mesmo socorrido pelo SAMU”, levando para o

Hospital de Trauma, “onde recebeu atendimento médico, vindo a falecer por volta das 18:30

horas do dia 30/05/2012 (PARAÍBA, GEMOL, 2012)

Narra o Laudo Tanatoscópico nº 07520512 que o “couro cabeludo dá implantação a

cabelos castanhos e apresenta em região temporo-pariental esquerda uma ferida de bordas

irregulares invertidas com orla de escoriação e halo de enxugo caracterizando entrada de

projétil de arma de fogo", registra também que "a face apresenta ferida de 0,5 cm em região

frontal" (PARAÍBA, GEMOL, 2012).

Por fim, o Laudo Tanatoscópico nº 07520512 registras que (PARAÍBA, GEMOL,

2012):

"Retirada a calota craniana, verifica-se hemorragia subaracnóidea intensa e um

trajeto em túnel no tecido encefálico partindo da região temporo-parietal esquerda

até a região frontal à direita onde foi retirado um projétil de arma de fogo que segue

em envelope anexo".

Durante a ocorrência do episódio era diretor da Penitenciária de Segurança Máxima

Dr. Romeu Gonçalves de Abrantes – PB1/PB2 o Major Sérgio Fonseca de Souza.

No dia vinte e oito de agosto de 2012 o Conselho Estadual de Direitos Humanos

realizou visita de inspeção na Penitenciária de Segurança Máxima Dr. Romeu Gonçalves de

Abrantes – PB1/PB2, cuja delegação era formada por padre João Bosco (presidente do

CEDH-PB), Guiany Campos Coutinho (membro da Pastoral Carcerária), Socorro Praxedes

(advogada da Fundação Margarida Maria Alves), a professora Maria de Nazaré T. Zenaide

(Coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB), Valdênia Paulino

Lanfranchi (advogada e Ouvidora de Polícia da Paraíba), Lidia Nóbrega (Defensora Pública

da União) (CEDH-PB, 2012).

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Segundo narra o Relatório a visita teve início às 17h30, quando os membros do

Conselho chegaram e foram anunciados ao coordenador do plantão, o agente penitenciário

Zanaldo, responsável pelo estabelecimento penitenciário na ausência do diretor, Major PM

Sérgio Fonseca de Souza. Nesta ocasião repetiu-se a praxe que tem sido vista nas demais

visitas do Conselho, que é retardar em até uma hora o ingresso dos conselheiros, sob pretexto

de aguardo de ordens superiores para a admissão da visita (CEDH-PB, 2012).

A equipe do conselho esperou cerca de 1 hora e meia para ter acesso aos pavilhões,

ocorrendo esta após autorização concedida através de telefonema por parte do Cel. Arnaldo

Sobrinho. Os conselheiros deixaram seus telefones celulares nos seus veículos ou em bolsas

na sala da secretaria do PB1 e só adentraram no presídio com uma máquina fotográfica para

registrar a situação prisional, o que é de praxe, pois o órgão elabora relatório de

monitoramento (CEDH-PB, 2012).

Durante a fiscalização, os conselheiros fotografaram as condições deprimentes,

desumanas e contrárias à lei de execução penal das celas coletivas do PB1. Nesse momento,

alguns membros da PM e da Administração Penitenciária do PB1, que antes haviam se

negado a acompanhar os conselheiros ao segundo pavilhão, deram voz de prisão aos membros

do CEDH-PB conduzindo-os para uma sala da penitenciária e mantendo-os detidos (CEDH-

PB, 2012).

Então, chegou à unidade prisional reforço policial para transferir os conselheiros

detidos para a Delegacia. Os conselheiros comunicaram a ilegalidade que estava sendo

cometida, ao Procurador Federal do Cidadão, Dr. Duciran Farena, ao Chefe de Gabinete do

governador, Waldir Porfírio da Silva e à Defensoria Pública da União (CEDH-PB, 2012).

Após aproximadamente três horas (de 18 às 21 horas) de cárcere privado, chegaram

ao Presídio o Tenente-Coronel Arnaldo Sobrinho, gerente executivo do sistema Penitenciário

da Paraíba, que levou uma parte dos Conselheiros para uma sala com diversos outros agentes

penitenciários e policiais e militares para tomar esclarecimentos, mantendo durante todo o

tempo em que esteve na Unidade a prisão ilegal em que se encontravam os Conselheiros

(CEDH-PB, 2012).

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Durante a ‘acareação’ com o referido agente público, chegou o diretor do presídio,

Sérgio Fonseca de Souza, que estava de licença e afirmou textualmente que era ele quem

havia mandado PRENDER os conselheiros de direitos humanos (CEDH-PB, 2012).

Somente após a chegada dos representantes do Ministério Público Estadual, Dr.

Marinho Mendes e da Ordem dos Advogados do Brasil, Laura Berquó é que os membros do

CEDH foram liberados, sob a contestação do diretor do presídio e de membros da PMPB

(CEDH-PB, 2012).

Foi criada uma Comissão Intersetorial designada pelo Governo do Estado, para

apurar os fatos ocorridos no Presídio Dr. Romeu Gonçalves de Abrantes (PB1), no dia 28 de

agosto de 2012. A Comissão Intersetorial foi composta pelo promotor de Justiça Bertrand

Asfora (Ministério Público da Paraíba e presidente da comissão), procurador do Estado

Venâncio Viana de Medeiros Filho; pelo chefe de gabinete do Governador, Waldir Porfírio da

Silva; pelo advogado Ednilson Siqueira de Paiva (OAB-PB) e pelo representante do Conselho

Estadual de Direitos Humanos da Paraíba, Rubens Pinto Lira (PORTALCORREIO, 2012).

No dia 16 de novembro de 2012 a Comissão entregou ao governador Ricardo

Coutinho relatório que recomenda a exoneração do diretor do presídio, Major Sérgio Fonseca

de Souza, por abuso de autoridade ao ter ordenado a prisão de membros do Conselho Estadual

de Direitos Humanos, bem como a instauração de sindicância por parte da Polícia Militar para

apurar as condutas dos militares Sérgio Fonseca, Julliermerson Guedes Morais e Arnaldo

Sobrinho Morais, gerente executivo do Sistema Penitenciário, e abertura de procedimento

administrativo disciplinar por parte da Secretaria de Administração Penitenciária para

averiguar a conduta do agente penitenciário Zanal Alves da Silva (PORTALCORREIO,

2012).

Por fim, a Comissão também recomendou que o Poder Executivo regulamente os

artigos 5º e 6º da Lei Estadual 5551/92, em relação ao livre acesso dos membros do CEDH no

interior das unidades prisionais em todo o estado, aplicação de sanções administrativas para

quem negar ou impedir a realização de inspeções em presídios, garantia da segurança

necessária aos membros do conselho, entre outros pontos (PORTALCORREIO, 2012).

Porém, transcorrido quase dois meses da entrega do relatório ao Governador não

houve retorno. Segundo o procurador Bertrand Asfora o relatório fora entregue “pessoalmente

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ao governador e encaminhamos por ofício ao procurador-geral de Justiça, que já encaminhou

para ser distribuído a um dos promotores criminais para o andamento criminal, e para o

presidente da Ordem dos Advogados do Brasil” (CONGRESSO EM FOGO, 2013).

Acontece que, no dia10 de junho de 2015, o Major Sérgio Fonseca de Souza é

nomeado Diretor da Gerência Executiva do Sistema Penitenciário (JORNAL DA PARAÍBA,

2015).

Durante a solenidade de posse do Major Sérgio, o Secretário da Seap, Wagner Dorta,

discursou e disse que era “uma grande satisfação estar nesta solenidade de posse” e que a

vinda do Major era “um marco para o Sistema Penitenciário” (HUMBERTO DE ALMEIDA,

2015).

Em sua saudação, o novo gerente agradeceu “a Deus, ao excelentíssimo governador

Ricardo Coutinho”, posto que se sentia “muito honrado pela escolha” (HUMBERTO DE

ALMEIDA, 2015).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alguns dados são importantes para vislumbramos o tamanho do problema. Pesquisa

divulgada em 2012 pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo

(NEVUSP) indicou que em 2010 52,5% dos entrevistados são totalmente contrários ao uso da

tortura para obter provas. Já 47,5% são totalmente favoráveis. A pesquisa indica que em 1999,

71,2% dos entrevistados eram totalmente contrários e 28,8% eram totalmente favoráveis

(NUVESP, 2012).

Em 2008, segundo dados do jornal O Globo a tortura no combate ao crime é apoiada

por 26% dos brasileiros. Esse índice aumenta para 42% entre aqueles com renda superior a

cinco salários mínimos. Entre os que ganham menos esse índice é de 19%. Entre as pessoas

que têm curso superior o índice é de 40% dos entrevistados.

Paralelamente os índices de violência e de encarceramento aumentam a cada ano. Em

2012 foram mais de 50 mil homicídios (UOL, 2014). Em 2013 mais de 53 mil (Revista

Exame, 2014).

Por sua vez, o número de pessoas presas chegou a 607.731 e, podendo ultrapassar 1

milhão de pessoas em 2022. Das pessoas encarceradas em 2014, 67% eram negras.

Dados da Rede Brasil Atual (2013) revelam o aumento assustador mortes entre os

jovens entre 16 e 17 anos no período de 1980 a 2013, conforme quadro abaixo:

1980 1990 2000 2010 2013

5.09 1.583 2.719 3.033 3.749

Dos homicídios cometidos em 2013, 73% foram de jovens negros e 87% das vítimas

não tinham o ensino fundamental completo. Entre os jovens internados 66% são negros,

59,9% têm ensino fundamental incompleto e 60% são extremamente pobres.

Segundo Pinheiro (2001, p. 2) as “elites se lixam para a tortura pela simples razão

que, na democracia, elas estão a salvo dos torturadores”. E enfatiza que, enquanto esse estado

de coisas não for rompido e “governantes não assumirem a luta contra a tortura, um Estado de

não-Direito para a maioria não-branca, pobre e miserável irá prevalecer no terceiro milênio”

(PINHEIRO, 2001, p. 2).

Constatamos da análise do documento para consulta do Segundo Relatório do Brasil

à Convenção Contra a Tortura da ONU (2013), decorridos mais de dez anos da apresentação

do Primeiro (2000), que o Governo não tem dados confiáveis sobre o tema e que o documento

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foi construído a partir de informações coletadas junto à órgãos, organismos, associações e

outras entidades que responderam correspondência enviadas pela Secretaria de Direitos

Humanos da Presidência da República - SDH/PR.

No que concerne ao respeito do cumprimento dos artigos 12 e 13 da Convenção

contra a Tortura, referentes à investigação de tortura e à proteção de vítimas que denunciaram

terem sofrido tortura e de testemunhas, o Segundo Relatório tem menos de duas páginas sobre o

tema e traz informações repassadas pelos Estados da Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Santa

Catarina e pelo Distrito Federal (BRASIL, SDH/PR, 2013, p. 47-48).

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