a historia da tortura

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Uma visão sistemática do fenômeno da tortura em diferentes sociedades e momentos históricos.

“A tortura cessou de existir”, afirmou vitor hugo em 1874. Mais de um século depois, porém, um em cada três países continua usando a tortura rotineiramente como método de investigação policial e coerção política. Este livro aborda o problema de uma perspectiva histórica e jurídica, analisando as implicações do uso da tortura no mundo ocidental desde a antiguidade até os dias de hoje. Baseado em fontes originais, relatórios e pesquisas realizadas em numerosos países, tortura é um documento valioso sobre um dos aspectos mais pertubadores e persistentes de nossa civilização. Edward Peters é Profº da Univ. da Pensilvania, nos EUA, autor de obras sobre Hist. Européia Medieval.

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INTRODUÇÃO:

ATortura–PassadoePresente–eoHistoriador

O que é a tortura? Desde os juristas romanos dos séculos II e III até aoshistoriadoreseadvogadosdaatualidade,aquelesquemais sedebruçaramsobreesta questão obtiveram respostas extraordinariamente semelhantes. Assim,Ulpiano,juristadoséculoIII,declarou:

Porquaestio[tortura]devemosentenderosuplícioeosofrimentodocorpocomoobjetivodesedescobriraverdade.

Nem o simples interrogatório nem a intimidação fácil se incluem corretamentenesta edição. Dado que quaestio se deve entender, portanto, como violência esuplício,sãoestasascircunstânciasquedeterminamoseusignificado.

NoséculoXIII,oadvogadoromanoAzoapresentouestadefinição:Atorturaéaaveriguaçãodaverdadepormeiodosuplício.

E,noséculoXVII,Bocer,advogadodedireitocivil,disseque:A torturaéuminterrogatóriofeitopormeiodosuplíciodocorpo,arespeitodeumcrimequesesabe que ocorreu, legitimamente ordenado por um juiz com a finalidade de sedescobriraverdadesobreoreferidocrime.

Já no nosso século, o historiador jurídico John Langbein escreveu: Quandofalamosde tortura judiciária, estamosa referir-nosaoempregodecoação físicapor parte de funcionários do estado tendo em vista a obtenção de provas paraações judiciais…Emassuntosdeestado, a tortura tambémfoiutilizadaparaaobtenção de informações em circunstâncias não diretamente relacionadas comaçõesjudiciais.

O artigo 1 daDeclaração contra a Tortura adotada pelaAssembleiaGeral dasNaçõesUnidasem9deDezembrode1975diz:ParaaplicaçãodestaDeclaração,tortura significa todo o ato pelo qual dor ou sofrimento intensos, tanto físicoscomo mentais, sejam intencionalmente infligidos a uma pessoa por umfuncionáriopúblicoouperanteainstigaçãodestecomaintençãodeobterdelaoudeumaterceirapessoainformaçõesouumaconfissão,deapunirporumatoque

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tenhacometido,oudeaintimidaraelaouaoutraspessoas.Nãoincluiadorouosofrimento exclusivamente resultantes de, inerentes a ou relacionados comsançõeslegaisdesdequerespeitemasNormasMínimasLegaisparaoTratamentodePrisioneiros.

Finalmente, existeumadefiniçãoumpoucomais elaboradada autoriadeoutrohistoriadorjurídicodoséculoXX,JohnHeath:

Comotermotorturarefiro-meàpuniçãodesofrimentofísicoouàameaçadeoinfligirimediatamente,desdequetalpuniçãoouameaçatenhamporfimobter,ouquetalpuniçãoestejarelacionadacommeiosadotadosparaobter,informaçõesouprovaslegaisecujomotivosejadeinteressemilitar,civiloueclesiástico.

As três primeiras definições aplicavam-se à tortura como incidente judicial,primeiro no sistema civil romano e depois nos sistemas europeus até ao séculoXIX.A quarta, de um historiador jurídico contemporâneo, é uma definição datorturaduranteesselongoperíodo.

Aquintaéadefiniçãodiplomáticamaisrecente.Aúltimapretendeaplicar-seàscircunstânciashistóricas,mastendoemmenteorecentereaparecimentodatorturae a preocupação que tal fenómeno gerou desde o fim da Segunda GuerraMundial,criandoumadefiniçãoaplicáveltantoaopresentecomoaopassado.

É,contudo,provávelqueaspessoasqueutilizamotermonasegundametadedoséculoXXconsideremestasdefiniçõesdemasiado limitadas.Nãoseráa torturasimplesmente o sofrimento físico oumental deliberadamente infligido a um serhumanoporoutroserhumanosqualquer?Emmuitosaspectos,osignificadodotermo no emprego vulgar da maior parte das línguas ocidentais podiaperfeitamente justificar tal pergunta. A partir do século XVII, a definiçãopuramentejurídicadetorturafoisendolentamentesubstituídaporumadefiniçãomoral; a partir do século XIX, a definição moral de tortura foi largamentesuplantadaporumadefiniçãosentimental,atéque«tortura»passoufinalmenteasignificar aquilo que cada um pretender, um termo moral e sentimental quedesignaapuniçãodesofrimento,sejaqualforasuadefinição,aalguém,comumdeterminadoobjetivo–ousemobjetivoalgum.

Acapacidadeporpartedossereshumanosdeinfligiremsofrimentoaoutrossereshumanos,emnomedalei,doestado,ousimplesmenteparasatisfaçãopessoal,éalgo tão generalizado e persistente que escolher um dos seus aspectos paradiscussão (e, ainda por cima, discussão histórica) pode parecer injusto ou

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pretensioso. Contudo, apesar da afronta moral e sentimental que a palavraprovocanosfinaisdoséculoXX,asuadefiniçãomaiscompletaeexataéumadefinição jurídicaou,pelomenos,pública.Todosos advogados ehistoriadoresacimamencionados encontraramna tortura um elemento comum: é o tormentoinfligidoporumaautoridadepúblicacomfinsostensivamentepúblicos.Ahistóriasemânticadotermotorturapossuiinvariavelmenteumadimensãopública,deummodomuitosemelhanteaostermosexecuçãoeassassínio.Poranalogia,poderiadizer-se que a tortura está para ofensas pessoais tais como a violação depropriedade, a agressão ou o assalto agravado namesma relação em que umaexecução judiciária está para o assassínio.A tortura é, portanto, algo que umaautoridade pública leva a cabo ou perdoa. Desde Ulpiano a Heath, é a suadimensãopúblicaquedistingueatorturadeoutrostiposdecoaçãooubrutalidade.Partedotemadestelivroconsistiránumadescriçãodosváriostiposdesignificadoqueotermo«tortura»possuieprocurar-se-árelacionarestessignificadoscomarealidadedatorturanosfinaisdoséculoXX.Umadasfunçõesmenosconhecidasdainjustiçaepretensiosismoaparentespoderáserasuainsistênciaemdefiniçõesmais claras. Comomeio de objetivar e tornar mais compreensíveis alguns dosnossostermoseideiasmaisimportantesmasmenosconsiderados,talvezmereçamumpoucodeinvestimentocognitivoalgumasanálisesque,deoutromodo,seriaminjustasepretensiosas.Esta abordagem da tortura é um pouco contrária ao espírito de diversasconsiderações atuais. Uma recente compilação de ensaios publicados na sérieConcilium:ReligionintheSeventiesintitulava-seTheDeathPenaltyandTorture.Ambasasinstituiçõeseramdiscutidaspeloscolaboradoresàluzdaspolíticasderecentes práticas estatais e é à luz das preocupações sobre o poder do estadomoderno que a tortura tem sido geralmente discutida. Embora esta seja umaabordagem válida, não é a abordagem deste livro. Tentei individualizar oproblemadatorturaapenasparatratamentoanalítico,perfeitamenteconscientedeque irão ser negligenciadas algumas ideias e práticas muito intimamenterelacionadas com ela. Tal como este livro não trata da pena demorte nem deoutras formasde coaçãoestatal, não irá tratardeoutrasmanifestaçõesde terrorpúblico; não há aqui qualquer palavra acerca das guerras religiosas ou doholocaustoemuitopoucasacercadasváriasinquisições.Aoisolarofenómenodatortura,tenteidescreverahistóriadeumaúnicaprática;ofactodenãomencionaroutrasépropositado,masnãoreflete indiferençaperanteelas.Escreviahistóriade um assunto que exige uma história pormenorizada. Limitar o foco podeigualmente intensificá-lo; e a tortura necessita de uma atenção o mais intensapossível.

Talcomoestelivronãoiráconsideraratorturaemrelaçãoàpenademorte,nãoirátambémconsiderá-la,excetoesporadicamente,emrelaçãoaformasagravadas

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depunição,querse trateounãodapenacapital.Aparte introdutóriadoúltimocapítuloocupar-se-ádarecentepreocupaçãointernacionalcomatorturaecomos«tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes», incluindo amutilaçãopunitiva,masapráticadoslegisladoresmodernospreocupadoscomosdireitos humanos estabelece uma distinção entre as duas coisas e este livro irárespeitar essa distinção. É verdade que se pode tomar uma posição moralrelativamenteàtortura,àpenademorteeaváriasoutrasformasdepuniçãolegalconsideradas em conjunto e que se pode tomar igualmente uma posiçãosentimental.Contudo,anossapreocupaçãoéapenascomatortura.Emboraestelivro vá considerar as relações históricas entre procedimento judicial e juízomoral,fá-loáemrelaçãoàtorturaenãoàquelesaspectosdecoaçãopúblicaquelheestãofrequentementeassociados.

Estas restrições não foram adotadas para servir unicamente a conveniência doautor.Atorturacomeçoucomoumapráticajurídicaetevesemprenasuaessênciao seu carácter público, quer como um incidente no procedimento judicial quercomoumapráticadefuncionáriosdoestadoàmargemdopoderjudiciário.Nosmundos judaico-cristão e islâmico, o termo possui intermitentemente umadimensãomorale,apartirdoséculoXVIII,passouatertambémumadimensãosentimental.Assim, no século XX, os seus significados podem variar desde oempregotécnicoejurídico(casodediversosdocumentosdedireitointernacional)até ao sentimental (caso de muita linguagem popular, incluindo a jornalística).Este livro irá fazer referência à história destes diferentes significados, mas atorturasignificarásempreumincidentepúblico,pormuitogeralquepossaserainterpretaçãodapalavra«público».

Outros tipos de pessoas que utilizamo termo poderiam levantar outra objeção.DeveráomodernoressurgimentodatorturanoséculoXXserencaradocomooressurgimentodeumaantiga tradição interrompidaoucomoo frutodeum tipoespecialdeestadomoderno?A abolição oficial da tortura no direito criminal acabou por se estenderpraticamenteatodaaEuropaduranteoséculoXVIIIeprincípiosdoséculoXIX,até ao ponto deVítorHugopoder anunciar em1874que «a tortura cessou deexistir». Não será então a tortura do século XX algo de novo, sem qualquerrelaçãocomaantigahistóriajudicialdatortura?Todososhistoriadoreseleitoresde história têm de fazer constantes distinções entre aquilo que é particular edescontínua e aquilo que é geral e contínuo; cada técnica é adequada a finsdiversos.Consideremosprimeiroahistórianumâmbitomaislato.

Embora muitas sociedades antigas experimentassem a transição de sistemasjurídicosprimitivosedomésticosparasistemassofisticadosepúblicos,nemtodas

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chegaramautilizaratorturadeummodotãodistintocomoofizeramosEgípcios,os Persas, os Gregos e os Romanos. Algumas sociedades, especialmente ababilónica,ahindueahebraica,parecemterdesenvolvidoumsistemadeordáliosque nunca deu ocasião a que a tortura fosse introduzida. Estes consistiam emprovasfísicasaquesesujeitavaumadasparteslitigantes,partindo-sedoprincípiode que o êxito ou o insucesso dependiam da intervenção divina.NoNorte daEuropa,antesdoséculoXII,oprimitivodireitogermânicopermitiatambémumalargavariedadedeordálios,masnãodesenvolveuautonomamenteumadoutrinadetortura;nem,aoqueparece,asleisceltasohaviamfeitoanteriormente.Maistarde,apesardaintroduçãodatorturanaspráticasjudiciaisdaEuropaOcidentalapósoséculoXII,aEuropaOrientalmanteve-sefielaoordálioatéaoiníciodaépocamoderna.

Desta forma, a história da tortura na Europa Ocidental pode ser reconstituídadesdeosGregos,passandopelosRomanosepelaIdadeMédia,atéàsreformasjurídicas do século XVIII e à abolição da tortura no processo penal judicialpraticamente por toda a EuropaOcidental no primeiro quartel do séculoXIX.Retirada do direito penal ordinário, a tortura foi, no entanto, restabelecida emmuitas regiões da Europa e nos seus impérios coloniais a partir dos finais doséculoXIX,eoseucursofoigrandementeaceleradoporconceitosvariáveisdecrime político durante o século XX. O testemunho mais recente indica que atorturaéutilizada,formalouinformalmente,numemcadatrêspaíses.

Umatalhistóriapodeparecerconfusaaprincípio,maséumahistória.ApartirdoséculoXIX,ocrimepolíticopassouaserconcebidodeummodomuitoanálogoàquelecomoosimplesdireitopenaloforaanteriormente,eosfuncionárioseosjuristas dos estados do século XX que empregam ou permitem a tortura sãoatormentadosporumanecessidadedeconfissõessemelhanteàqueperturbavaosjuristas da Idade Média ou do Antigo Regime quando confrontados com anecessidadeprocessualoutáticadeumaconfissãodoréu.

Numerosasdescriçõessuperficiaisdahistóriada torturaaceitamsimplesmenteaideiadequeatorturaocorreemciclosdelegalizaçãoedeabolição;naverdade,umatalopiniãopressupõefacilmenteaexistênciadatorturacomoalgocomumahistórianatural,tornandoassimahistóriadatorturanumrelatodestesciclos.Masa noção de entidades abstratas que ocorrem ciclicamente não nos faz chegar agrandes conclusões. Além disso, sugere uma certa inevitabilidade de todo oprocessoqueconduzimplicitamenteàresignaçãoperantealgocomparávelaumaforçadanatureza.Ahistóriadatorturapodeserdefactomuitoespecífica.Nãoé,porexemplo,claroatéquepontoéqueosGregos ficaramadeveros seusmétodosde tortura aos

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Egípcios e aos Persas, pelo que é possível e plausível começar por aquilo queconhecemos dos Gregos porque parte do seu direito parece ter realmenteinfluenciadoodeRoma,eodireitodeRomainfluenciadoodaEuropamedievale do início da época moderna.A explosão de movimentos abolicionistas bemsucedidos durante o séculoXVIII e princípios do séculoXIX aboliu a torturasobretudo comoumaparte do processo penal, e essesmovimentos abrangeramnão só governantes e legislaturas, mas também a própria classe jurídica, quecontinuou a agir de ummodo liberal, ainda que semantivesse frequentementeconservadorasobopontodevistasocial.Todavia,nosfinaisdoséculoXIX,osjuízes e advogadosdeixaramde ser os únicos a deter todoopoder jurídicodoestado.Nessaaltura,especialmenteondeopoderdosagentesdoestadoescapavaao controlo e inspeção judiciais de rotina, e em áreas que eram relativamentenovas, taiscomoas informaçõesmilitares,aespionagem,o trabalhopolicialeavigilânciapolítica,desenvolveramsenovospoderesdeestado,particularmentenaquelas áreas em que os estados europeus foram sempre especialmentesensíveis–asquetinhamquevercomaproteçãoesegurançadopróprioestado.

ApartirdoséculoXIII,osadvogadoseuropeusdesenvolveramumacategoriadocrime excepcional – o crimen exceptum – tão perigoso para a sociedade eofensivo aDeus que era concedida uma enorme liberdade à sua ação judicial.Umavezqueatorturaforaabolidadodireitopenalordinário,apossibilidadedeuma nova espécie de crimen exceptum permitiu a reintrodução da tortura paratratar de «situações extraordinárias».Grande parte da história políticamodernaconsiste na diversidade de situações extraordinárias que os governos do séculoXX imaginaram enfrentar e nas medidas extraordinárias que tomaram para seproteger.Paradoxalmente,numaépocadeenormepoderestatal,decapacidadedemobilizarrecursosedepossedemeiosdecoaçãopraticamenteinfinitos,grandepartedapolíticaestataltem-sebaseadonoconceitodeextremavulnerabilidadedoestado perante os inimigos, tanto externos como internos. Esta inquietantecombinaçãodepoderimensoeinfinitavulnerabilidadetornoumuitosestadosdoséculoXX,senãoneuróticos,entãopelomenosextremamenteambíguosnasuaabordagemdeassuntos tais comoosdireitosdohomemena suaprontidão (osestadoscostumamchamar lhe«necessidade»)emutilizarprocessoscomosquais,deoutromodo,nuncasonhariam.Énestesentidoqueatorturapodeconsiderar-secomotendoumahistória,easuahistóriafazpartedoprocessojurídicoetambémdas mais recentes práticas governamentais do poder, quer oficial queroficiosamente. O objetivo de uma história alargada da tortura é realçar a suadimensãopúblicaepermitirqueoleitorvejanãosóoséculoXXnumcontextomaisvasto,mas tambémahistóriamaisantigadaEuropadeumpontodevistapoucousual.

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Concentrando-nos no carácter público da tortura – quer no estrito processojurídico quer nas mãos de agentes sub-jurídicos ou para-jurídicas – talvezpossamosconsideraratorturadoséculoXXjánãodeumaformasimplista,comouma perturbação da personalidade, uma brutalidade étnica ou racial, umprimitivismo residual ou a secularizaçãode teorias eclesiásticas de coação,mascomoumincidenteprópriodealgumasformasdavidapúblicadoséculoXX,jánãocomonopassado, restringidoaoprocesso judicialpenalconvencional,masocorrendonoutrasáreassubordinadasàautoridadeestatalmenoscontroladasdoqueoprocessojudicial,menosvigiadas,masigualmenteessenciaisparaanoçãoqueoestadotemdeordem.EstelivrotratarádadimensãohistóricadaquiloaqueUlpiano,Bocer,LangbeineHeath, implícita ou explicitamente, chamam tortura judiciária,masnãoutilizaráesse adjetivo. Demonstrará, pelo contrário, que a tortura judiciária é a únicaespéciedetortura,sejaelaaplicadaporumagentejudiciáriooficialouporoutrosagentes do estado. Demonstrará também que outros atos sentimentalmenteconsiderados«tortura»deviamserdesignadosdeoutromodo.Ajustaposiçãodetermosfamiliaresdeumaáreadesignificadoparaoutracomofimdeumefeitodramático é um artifício de retórica e não de análise histórica ou social. E aentropiasemânticanãoclarificaasuainterpretação.Emboraeunãotenhailusõesquantoàcapacidadedeumlivropoderefetuarumarevoluçãosemântica,esperosinceramentequea tesedoscapítulosqueseseguemdefendaomaispossívelaexatidãoverbal,especialmenteemquestõestãoprementescomoaqueestáaserconsiderada. A ofensa moral e a compaixão não necessitam interpretaçãohistórica, mas a interpretação histórica pode ajudar a defini-las. E ambasnecessitamserdefinidas.

E começamos, desta forma, pela história. O primeiro capítulo descreve oaparecimento da tortura na cultura ocidental naGrécia e emRoma; o segundotratadalongaépocadatorturanoprimitivoprocessojurídicoeuropeuatéaofimdo século XVIII. O capítulo 3 analisa a abolição oficial da tortura e oaparecimentodeumadimensãomoraldotermonaspolémicasdosreformadoresdo Iluminismo; o capítulo 4 investiga as circunstâncias em que a torturareapareceu nos séculos XIX e XX, tal como diziaWilliam Blackstone, juristainglês do século XVIII, como um «instrumento do estado e não da lei»(Commentaries on the Laws of England, 4 vols,Oxford, 1765-9, IV: 321).Ocapítulofinalconsideraopassadorecenteeaatualidade,desdeaDeclaraçãodosDireitosdoHomemdasNaçõesUnidas,em1948,atéàpublicaçãodorelatóriodaAmnistiaInternacional,TortureintheEighties,emMarçode1984.

Paraefeitosdeexatidãoereferência,mantivenalínguaoriginalmuitaspalavrasefrases,masapresenteisistematicamenteequivalentesingleses.Dadoqueumdos

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objetivos deste livro é indicar as diferenças entre um vocabulário técnico-profissional, como é o caso do vocabulário jurídico, e vocabulários morais esentimentaismaisalargados,aexatidãoverbalmantém-seimportanteaolongodetodootrabalho,eistoincluiaexatidãonadescriçãodosfrequenteseufemismosdeliberadamente enganadores tantas vezes utilizados para designar a tortura noséculoXX.

AlgunsestudosrecentessobreatorturanoséculoXXreferemaspectosacidentaisda sua história na Europa primitiva, mas porque estes são vagos e parecemocorrer em circunstâncias diferentes das da tortura no século XX, taisconsiderações históricas são muitas vezes demasiado breves, demasiadosuperficiais, ou mesmo erradas.As considerações mais fidedignas, as de JohnLangbein,TortureandtheLawofProof(Chicago,1977),edePieroFiorelli,LaTorturaGiudiziarianelDirittoComune(Milão,1953-4),conseguemmuitadasuaeficáciadevidoaoseupormenorespecíficoe técnico.Noseuexcelenteestudo,Langbeinrefereesteaspectodoseutrabalho.E,emseguida,observaque«deixeia outros a tarefa dededuzir as implicaçõesnahistória política, administrativa eintelectual europeia».O presente livro é uma tentativa de retomar a história datortura nessemomento. Se acaso for bem sucedido, isso ficar-se-á a dever emgrandeparteaotrabalhodeestudiososcomoLangbeineFiorelli,assimcomoaoscolegasreferidosnosagradecimentos.Osestudiososquetêmdeescreversemnotasderodapésãocomooperáriosquetêmdetrabalharsemomaterialnecessário.Oensaiobibliográficonofinaldestelivroreúneindicaçõesdomaisútilsabereumconjuntoessencialdereferênciasapassos citados no texto. Embora haja poucas referências individuais, todos ospassoscitadosnoscapítulosqueseseguempoderãoserencontradosnumaobraindicadanopróprio textoounabibliografia. Incluíumconsiderávelnúmerodereferências, muitas delas traduzidas para o inglês, porque constituem umaimportante prova documental e crítica que não deveria ser totalmenteparafraseada.

Doisdosprincipais temasdeste livrosãoocarácterpúblicoda tortura tantonassuas formas primitivas como nas mais recentes e as diferenças entre as suasconcepções jurídicas, morais e sentimentais em diferentes períodos da suahistória.Existeumterceiro:olugardaprópriahistóriajurídicanumtalrelato.Éextraordinárioque,salvoalgumasexceçõessurpreendentes,ahistóriajurídicasejao género de história menos integrado noutros géneros e, por conseguinte,geralmente o menos conhecido. No entanto, na história da tortura, é crucialentendercertosaspectostécnicosprocessuaisrelativosàantigahistóriadatorturacomo um incidente no direito penal europeu, e é igualmente importantecompreender o lugar do direito nos estados modernos que deliberada e

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filosoficamentesubordinamodireitoaoutrosinteresseseinstituiçõespúblicas.Osdoisúltimoscapítulosdestelivroretomamasimplicaçõesdestetema,mas,logoàpartida, é conveniente não se considerar o direito nem como uma instituiçãoindependente de beneficência nem, de um modo estruturalista-reducionista,simplesmente como mais um instrumento de uma classe dirigente. E. P.Thompson, num destes surpreendentes estudos, Whigs and Hunters (NovaIorque,1979,p.266),fazumaobservaçãoquesubscrevototalmente:Existeumadiferença entre o poder arbitrário e a norma jurídica. Devíamos revelar ashipocrisiaseasinjustiçasquepodemestardissimuladasatrásdestanorma.Masapróprianormajurídica,aimposiçãoderestriçõesefetivasaopodereaproteçãodecidadãos contra todas as exigências abusivas do poder, parece-me umincondicional benefício humano. Negar ou minimizar este benefício é, nesteperigososéculoemqueosmeioseasambiçõesdopodercontinuamaaumentar,um terrível erro de abstração intelectual.Mais do que isso, é um erro que nosencorajaaabandonaralutacontraleisperversasemedidastomadascontraumaclasseeadeporasarmasperanteopoder.Édeitarforatodaumaherançadelutapela justiça, e dentro das normas da justiça, cuja continuidade nunca pode serquebradasemcolocaroshomenseasmulheresnumperigoimediato.

Neste século extremamente perigoso, qualquer nova perspectiva sobre os seusprincipais instrumentos, até mesmo uma perspectiva histórica, pode não sertotalmentedesprovidadeinteresse–ouutilidade.

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UMASSUNTODELICADOEPERIGOSO

Oaparecimentodatorturanodireitogrego

AspessoasdoséculoXX,aindaquepossamreconhecerfacilmenteaexistênciade diferenças de privilégios ou de situações em instituições que afirmam agirdemocrática e imparcialmente, sabem muitas vezes pouco a respeito dassociedades–oudasépocasmaisantigasdanossahistória–emqueoprivilégioeoestatutoeramosúnicoselementosquedeterminavamaidentidadesocial,ouarespeitodosprocessosque transformaramasprimitivassociedadeseuropeiasdecomunidadesbaseadasnasdiferençasdeestatutoemcomunidadesbaseadasnosdireitoscomuns.Todavia,unicamentequantoàhistória jurídica,estesprocessosforam fundamentais para o aparecimentodaprópria ideia de«direito» e para opapel do direito e suas repercussões na história social, cultural e política desdeentão.

Assim,tendoosGregoslogradoinventaraideiadeum«direito»abstrato(nomos)e os Romanos inventado posteriormente a primeira ciência jurídica, foiintroduzido um elemento inteiramente novo na história das relações sociaishumanas.Tantooscidadãoscomooshistoriadores têmdiscutidodesdeentãoasua importância e características. As circunstâncias individuais do processojurídico – não só a tortura, mas também o conceito de prova, o carácter dastestemunhas e as funçõesdos advogados emagistrados– surgiramdesta formadosprimeiroscostumesdesarticulados,emíntimaharmoniacomasnecessidadesdasnovasculturas,masorientandotambémessasculturasemdireçõesdistintas.Éneste contexto que devemos procurar a origem da tortura como um fenómenodistinto.

No início da história da tortura entre os primitivos Gregos, encontramos, pelaprimeira vez na história ocidental, a transição de um sistema jurídico arcaico eessencialmente comunal para um sistema complexo no qual os problemas daprova e da distinção entre homem livre e escravo são particularmenteimpressionantes.Oproblemadaprovasurgiradocostumegregoarcaico,emqueo«direito»consistiana lutaentredois litigantesqueempregavamoseuesforçopessoal numa competição, um agon, rodeados pela família, amigos e criados,

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guiados apenas por themis, costume, e epikeia, comportamento adequado.Themiseepikeia,as«regras»daslutasjurídicasparticulares,começaramporserpronunciadasporárbitrosvoluntários,cujasdecisõesafavordeumaoudeoutrapartesechamavamdakai,«declarações».Comodecorrerdotempo,estasforam-sereunindonumconjuntoaceitedepareceresatéqueapercepçãopopulardasuaqualidademoralabstratafezcomqueotermodikepassasseasignificaraprópriaJustiça.Estasprimitivaslutasjurídicasfaziamprovavelmentepoucousodaprova,domesmomodo que refletiam pouca ou nenhuma noção de crime como algodistintodaofensapessoal.Oseuresultadodependiamaisdaposiçãosocialdoslitigantesedaopiniãodosmembrosmaisimportantesdacomunidade.Aprincipalofensapessoaleraodano(delito de natureza civil contra umapessoa, propriedade ou reputação) e não ocrime, e a ambição da parte ofendida era que essa ofensa fosse confirmada ereparada.

A transformação da sociedade grega entre os séculos VIII e V a. C. Inclui asubstituiçãodacontenda,ouagon,pelojulgamento.OpoetaHesíodo,elepróprioumlitigantemelindrado,argumentavaque,parabemdajustiça,asleisdeviamserescritas,oscritériosdedecisãoclaramentedefinidoseascausasmaisfrequentesdedesacordo rodeadasde testemunhasquemais tarde atestassemaverdade.Aimportânciadaassociaçãonumapolis,umacidade-estado,eraquecolocavacadacidadãonumcontextojurídicomuitomaisvastoemquea«lei»eraabstraídadaprimitiva teia de acontecimentos, relações e experiências particulares e tornadaautónoma.«Alei»nãoerajáaconsequênciadeumasériederixasfamiliares.Aleidacidadeprincipiouasubstituirasleisdafamíliaaomesmotempoqueaéticaprivada era conceptualmente separada do comportamento público.A lei escritasurgiu quase simultaneamente com as primeiras cidades-estado reconhecíveis edefiniuacondutaecaracterizouaquelesquetinhamdiferentesacessosaela.

Por volta do século VI a. C., os cidadãos livres das cidades-estado gregassujeitavam-sedebomgradoamuitasrestriçõesdosseusatospessoaisqueteriamofendidoosguerreirosaristocráticosdeHomero.

Massujeitavam-sedebomgradoporqueconheciamasleis,respeitavamaquelesqueasaplicavameaceitavamqueatéoprocessojudicialeradeummodogeralmais benéfico do que coercivo para aqueles que eram livres – e cidadãos.Aqueles que não possuíam uma reputação averiguável nem condições decidadania – estrangeiros, escravos, aqueles que tinham ocupações indignas ouaqueles cuja desonra (atimia) era publicamente reconhecida – não possuíamdireitos,nemodireitodenãoseremcoagidosnemodireitodepleitear.

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Conceitos de reputação e de categoria estratificam assim a sociedade urbanagrega.NoséculoIVa.C.,Aristótelesresumiuodesenvolvimentoqueobservouao longodosdoisséculosanterioresemmatériadeproteção jurídica.Observouque,nasreformasdeSólonnoiníciodoséculoVIa.C.,nenhumcidadãopodiaser feito escravo por dívidas pessoais; certos atos podiam ser devidamentedenunciados pelo público; os cidadãos podiam recorrer das decisões demagistrados junto dos tribunais populares. Estas proteções reforçaramgrandemente a condição de cidadania. Realçavam o excepcional acesso docidadãoà justiça,a importânciadoseuconhecimentodelaedassuasnormas,asuaobrigaçãodeadvogarpessoalmenteasuacausaeanecessáriaexperiênciadeele próprio se sentar na assembleia como jurado. Um tal cidadão possuíaevidentementereputação(time)ehavialimitesparaograudecoaçãoaquepodiaser sujeito, assimcomoparaanaturezadaprovaquepodia serutilizadacontraele,ouporelecontraoutrocidadãolivre.

A reputação do cidadão conferia grande importância ao seu juramento. Podedizer-se que a própria doutrina da prova foi definida pela importância dotestemunhodeumcidadão.Porconseguinte,quemnãopossuíssetalcondiçãodecidadania não podia apresentar qualquer «prova» do modo como os Gregosentendiamessetermo.A proteção dada pelo processo jurídico ao cidadão livre e a acentuadadiferenciação deste relativamente a outras classes de pessoas muito menosprivilegiadas levou os Gregos à conclusão de que aqueles que não possuíamprivilégiosjurídicostinhamdesercompelidosaumasituaçãoespecialemqueoseutestemunhosetornasseaceitável.

Otestemunhodestepassouaserigualaodoscidadãospormeiodacoaçãofísica.Asorigensdestanoçãosãoobscuras,emborapossamencontrar-senaautoridadede um chefe de família sobre escravos e criados. A princípio, portanto, aimportância da reputação de um cidadão criou uma classificação de prova quefaziaadistinçãoentreumaespécie«natural»deprovaquepodiaser facilmenteobtidapormeiodapalavradeumcidadãoeumaespécieforçadadeprovaquetinhadeserextraídadetodososoutrospelaviolência.

Estatesedareputaçãodocidadãopodeserexemplificadacomumcasoquetevelugar em 415 a. C. Nesse ano foram profanadas diversas estátuas do deusHermes,ofendendoaopiniãopopularatenienseelançandoumgrandenúmerodeacusações contra cidadãos. Um dos cidadãos acusados,Andocides, acusou osseus próprios acusadores de quererem «revogar o decreto votado durante oarcontadodeSkamandriose torturaraquelesqueDióclidesacusou[deprofanarHerrnes]».

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Emboranadamaissesaibado«decretodeSkamandrios»,estepareceterservidode alvará de isenção do cidadão relativamente a incapacidades jurídicas gerais,emparticularatortura,suficientementerespeitadoparasermencionadonumcasoem que existia uma grande pressão para se descobrirem os culpados e,evidentemente, uma sugestão explícita de que devia ser revogada a isenção dealgunscidadãosrelativamenteàtortura.

No décimo quinto capítulo da sua Retórica,Aristóteles apresenta uma lista decincoprovas«extrínsecas»quepodemserutilizadasnumprocessojurídico,alémdasfigurasderetóricaquetambémsepodemutilizar:asleis,astestemunhas,oscostumes,atorturaeosjuramentos.OtermoqueAristótelesutilizaparatortura,que é também o termo corrente grego, é basanos, que está filologicamenteassociado à ideia depassar qualquer coisametálica por umapedra-de-toquedemodoadeterminar-seoseuteor.Tucídidesutilizaumapalavramuitosemelhantepara descrever o trabalho do historiador: o historiador deve trabalhar com umespíritocríticoenãoacumularsimplesmentetodasasespéciesderegistossemumprincípio crítico, devendo, pelo contrário, analisá-los com uma pedra-de-toqueparasecertificardasuaveracidade;deveinformar-secriticamenteaseurespeito.«Julgando a partir da prova em que posso confiar após a mais cuidadosainvestigação …» (A Guerra do Peloponeso, I.1) é a descrição formulista deTucídides da tarefa do historiador. Basanos, tortura, implicava evidentementeuma espécie de investigação crítica necessária, mas não era o género deinvestigação que pudesse utilizar-se com um homem livre. Posto em termosligeiramente diferentes, o basanos deAristóteles é um género de investigaçãocujosresultadospodemservirdeprovanumsub-processodentrodeumprocessojurídico mais amplo que é essencialmente contraditório, mas cujos cidadãos-litigantespodemnãosersujeitosaosub-processodebasanos.

As nossas fontes acerca da história da prova e do processo na Grécia sãounânimesquantoàquestãodequeméquepodesersujeitoabasanos:éoescravoe, em determinadas circunstâncias, o estrangeiro. Os Gregos, contudo, nãodeixaramquaisquerobrassobreoprocessociviloupenal,easnossasprincipaisfontesacercada torturadeescravos sãoosoradores jurídicoseosdramaturgoscómicos. Os primeiros, numa série de discursos escritos para serem proferidospelosseusclientesouparaserviremdemodelosderetóricalegal,eossegundos,em dramas que focam a vida quotidiana, não são as fontes ideais nem doadvogado nemdo historiador e tem havidomuita controvérsia entre estudiososquanto às atitudes atenienses relativamente à provaobtida através da tortura deescravos e à frequência com que a utilizavam. Uma célebre compilação dediscursosdeAntífono,oradordoséculoVa.C., ilustraconcisamenteaopiniãogeral; um corego (que era responsável pelo dever cívico de pagar ao coro nos

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festivais religiosos e, mais tarde, também nos festivais de teatro), acusado deassassinarumdosrapazesqueestavaafazerumaaudiçãoparaumlugarnocoro,descreveostermosdainvestigação:

[O meu acusador] pode apresentar quantas testemunhas quiser, interrogá-las,interrogar testemunhas que sejam homens livres, como acontece com asinvestigações,dehomenslivres,eque,porumaquestãodedignidadeedejustiça,estejamnaturalmentedispostosadizeraverdadearespeitodosfactos.

No que se refere aos escravos, pode interrogá-los se as declarações deles lhepareceremdeconfiança.Seasdeclaraçõesdelesnãobastarem,estoudispostoaentregar-lhetodososmeusescravosparaquepossamandá-lostorturar.Seexigirotestemunhodeescravosquenãomepertençam,comprometo-me,apósobteraautorização do dono deles, a entregar-lhos também para que possa igualmentetorturá-losdomodoquelheaprouver.

Existem diversos problemas jurídicos relativamente a este excerto, sendo umdelesqueocoregopareceestarareferir-seaumainvestigaçãoinformaldestinadaa evitar um julgamento. Seja como for, o direito de um cidadão exigir, numprocessopenal (ouatécivil), a torturadeescravosparece ter sidoaceitedeummodo geral, quer numa troca informal de investigações quer num julgamentopropriamente dito. Noutro discurso, Antífono apresenta uma razão para ocostume de se torturarem escravos: um escravo perjurado não pode sofrer assanções de um homem livre perjurado, isto é não pode ser declaradojuridicamente infame (atimos), com as concomitantes incapacidades dessacondição, nem pode ser multado. Que os escravos podiam ser torturados étambémevidente atravésdo testemunhode algunspapirosdoEgitogrego,quereferemque,seosjuízesnãoconseguiremformarumaopiniãodepoisdetodasasprovasteremsidoapresentadas,podemaplicartorturacorporalaosescravosapósestes terem prestado o seu testemunho na presença de ambas as partes emquestão.Queestaeraumapráticagregacorrenteédemonstradopelofactodeoimperador romano Adriano a mencionar num rescrito (Digesto 48.8.1.1)claramentebaseadonoutrocostumegrego.

Osmétodosde torturasãodesenvoltamentedescritosnumacenadeAsRãs,deAristófanes.Dionísio, tendo trocadode lugaredevestuáriocomoseuescravoXanthias, esqueceu-se do direito que umpatrão temde provar a sua inocênciaoferecendoos seus escravospara que sejam torturados.Poucodepois de teremtrocadodelugar,Xanthiaséacusadoderouboearranjaumestratagema;dizaoacusador:

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Voufazer-teumapropostahonesta;Prendeomeuescravoetortura-oe,seobtiveresatuaprova,mata-me.

Aiacos.Queespéciedetortura?

Xanthias.Aquelaqueteapetecer.

Amarra-oaumescadote,pendura-oouchicoteia-o.

Põe-lhepedrasemcima,deita-lhevinagrenonariz.

Açoita-ocomcerdas:masnãocomalhos-porrosoucebolas.

MasétambémpossívelqueestediscursoreflitaumconsiderávelgraudeexageroequeosprópriospormenoresdopantatropondeXanthiassugiramqueumataldiversidadedetorturastenhasidotalvezmaisenciclopédicanosentidocómicodoqueumadescriçãodapráticareal.

É tambémnecessário salientarqueopoderqueospatrões tinhampara castigarcorporalmenteosescravoseradeummodogeralaceitepelosGregos,sendoosescravosporvezesdesignadosporandrapoda–«gadocompéshumanos»–poroposiçãoatetrapoda–«gadoquadrúpede».AindaqueasatitudesdosGregosemrelaçãoao tratamentodosescravossemodificassementreosséculosVIe IIIa.C., um tal poder por parte dos seus donos sugere que a tortura judiciária deescravosnãoestaria longede serpermitida, vistoqueestes eramhabitualmentesujeitosàmaiscruelcoaçãofísicamesmoforadaesferadalei.

Emborapelomenosumintelectualtenhaafirmadoqueatorturadosescravoseraa sobrevivência de um tipo de ordálio que sómais tarde seria introduzido nasregrasateniensesdaprova,asnossasfontesmaisantigas,osoradoresgregosdoséculoVa.C.,referem-seaointerrogatóriodosescravosacompanhadodetorturacomo se este fosse um lugar-comum.Um exemplo célebre desta literatura é oseguintepassodooradorIsaios:

Quer pessoal quer oficialmente, vós considerais a tortura como a prova maissegura. Sempre que aparecem homens livres e escravos como testemunhas e énecessário que se descubra a verdade do caso, não utilizais o testemunho doshomens livres, mas procurais apurar a verdade dos factos por intermédio datorturadosescravos.Eistoénatural,homensdojúri,poissabeisquealgumasdastestemunhasapareceramparaprestardeclaraçõesfalsas,masnuncaseprovouque

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algumdosescravosprestassedeclaraçõesfalsasemconsequênciadatortura.

Tal afirmação implica uma opinião ateniense sobre a eficácia da tortura quecontrastaprofundamentecomoutrosaspectosdaculturadeAtenas.Naverdade,esta e afirmações semelhantes de outros oradores têm sido rejeitadas como setratandodeficção,principalmenteporquetambémnãoexistenenhumaprovanodireito ateniense quanto à generalização oumesmo ao hábito de se torturaremescravos. Os mesmos oradores em cujo testemunho a respeito da tortura deescravos somos forçados a confiar sugerem ainda que as ameaças de torturarescravos faziam parte da exibição retórica do tribunal e que alguns oradorespodiam também apresentar argumentos perfeitamente plausíveis contra acredibilidade do testemunhode escravos.Em resumo, os séculosV e IV a.C.Fornecemalgumasprovas ambíguasdeque a tortura judiciária de escravos erateoricamente aceite. Mas muito poucas provas quer de que fossem torturadosgrandesnúmerosdeescravosquerdequeosAteniensesvalorizassemmuito taltestemunho.

Contudo,odireitogrego tinhaduas facetas:porum lado, foi-sedesenvolvendolentamenteumcódigocivilpossuindoassuasprópriasnormaseprocedimentos;poroutro,aleicorriamuitasvezesoriscodeserexploradaporrazõespolíticaseexistemmuitomaisprovasdequea torturadevia sermuitomais frequentenosprocessospolíticosdoquenashabituaisaçõescivisoucriminais.

ApósaderrotadeAtenasemSiracusaem413a.C.,osSiracusanoscondenaramà morte o chefe ateniense Nícias porque, segundo diz Tucídides, «certossiracusanos… tiveram medo… que, havendo alguma desconfiança da culpadeles, este pudesse ser mandado torturar e causar-lhes problemas naquelemomentodeprosperidade» (AGuerradoPeloponeso,VII.86).ApossibilidadedeNíciastersidotorturadopelosLacedemóniospareceumaesperançajustificadados Siracusanos, talvez porque o interrogatório acompanhado de tortura emcircunstâncias atenuantes de batalha ou de captura por uma força inimiga nãofaziapartedodireitohabitualdosGregoseproporcionavamaioresoportunidadesdetorturaedesançõesmaisseveras.

Ocarácterexcepcionaldavidapolítica,quernasmãosdoinimigoquernasdosadversários políticos dentro do país, sugere que, quaisquer que fossem ascircunstâncias da tortura de escravos, a tortura de homens livres revelava-seinvulgarmente difícil, mesmo num período de agitação social como aquele emqueocorreraaprofanaçãodeHermes.MasoreceiodosSiracusanosquantoaopossível testemunho incriminatório de Nícias não era infundado na atmosferapolítica do séculoV a. C. Em 411 foi assassinado Frinicus, um dosmembros

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mais importantes da oligarquia do Conselho dos Quatrocentos de Atenas, e,embora o assassino, um soldado, tivesse fugido, foi capturado um cúmplice e,comodizTucídides(AGuerradoPeloponeso,VIII.92),foitorturadoporordemdoConselho dosQuatrocentos, ainda que revelassemuito poucas informaçõescom a tortura. Tal tortura irregular de homens livres (embora a vítima doConselhodosQuatrocentosnãofosseumateniense,massimumargivo)parecetersidoraranaGrécia, tendo talvezocasomaisconhecidoocorridoumséculoantescomatorturadeAristogíton,em514,portertomadopartenoassassíniodePisístratoHiparco.

Atorturanodireitoromano

Dadoqueodireitoromano,modeladoporalgumasinfluênciasgregas,constituiuo mais importante código de jurisprudência erudita conhecida pela tradiçãoocidental, a sua doutrina da tortura influenciou profundamente os doisressurgimentosdatorturaexperimentadospelomundoocidental–osdosséculosXIIIeXX.

Em resumo, no primitivo direito romano, tal como no direito grego, só osescravos podiam ser torturados e apenas quando eram acusados de um crime.Mais tarde passaram a poder ser torturados como testemunhas, embora comseverasrestrições.Aprincípio,apenasumaacusaçãocriminalcontraumescravopodia exigir o testemunho de escravos, mas, por volta do século II a. C., osescravos podiam ser igualmente torturados em casos pecuniários. Os homenslivres, inicialmente salvaguardados da tortura (e das formas de pena capitalreservadas aos escravos), passaram a ficar sujeitos a ela em caso de traiçãodurante o Império e, mais tarde, num espectro cada vez mais largo de casosdeterminadosporordemimperial.Adivisãodasociedaderomananasclassesdehonestiores e humiliores a partir do século II a. C. Fez com que a classe doshumiliores ficasse sujeita aos processos de interrogatório e de sanção outroraaplicáveis apenas aos escravos. E até os honestiores podiam ser torturados emcasosdetraiçãoedeoutroscrimesespecificadosnaqualidadedearguidosedetestemunhas.

TalcomonaGrécia,osromanosdonosdeescravostinham,duranteaRepública,todo o direito de castigar e torturar os seus escravos quando suspeitavam queestesostinhamofendidodentrodasuaprópriapropriedade.Estaprerrogativanão

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foiabolidadodireitoromanosenãoem240d.C.,porumrescritodoimperadorGordiano(Code9.41.6).NoseudiscursoProCluentio,CícerorelataumcasoemqueSassia,sogradeCluentiusAvitus,mandoutorturarumdosseusescravosnasua própria casa. O escravo confessou, foi torturado uma segunda vez e, emseguida, foi morto, argumenta Cícero, porque Sassia receava que ele pudesseretratar-sedoseutestemunhoobtidoporintermédiodatortura.EstetratamentodeescravosparecetersidocomumemRomaelevouograndehistoriadorTheodorMommsen a afirmar que a disciplina doméstica romana foi a base do posteriorprocessopenalromanonodireitocivilepenal,opiniãoestamuitoaceitável.

Dado que o direito romano fez parte do padrão da tortura no posterior direitoeuropeu até ao século XIX, devem ser tecidas aqui algumas considerações arespeitodoseucarácterepormenores.NãoexistemelhorpontodepartidadoqueatesedadomesticidadedeMommsen.

Em qualquer cultura, a passagem do direito de uma luta entre indivíduos efamílias para um julgamento público é sempre uma questão complexa.Grandeparte do processo judicial daRepúblicaRomana apenas se pode interpretar dopontodevistada«justiça»privada.

Darixa,incluindoarixacomderramamentodesangue,edavingançapessoal,opasso seguinte conduziu facilmente à arbitragem voluntária por um terceiro, aarbitragemvoluntáriaoucomunalconduziuàarbitragem impostahabitualmentepeloestadonas legisactiones(modelosdeação judicial),depoisaumprocessoformalmais alargadoe,por fim, aoprocessocognitioextraordinem,emqueoestadocontrolavatotalmenteasaçõesjudiciais.ComoafirmouAlanWatson(TheLawoftheAncientRomans,Dallas,1970,p.10),algumasdestasmodificaçõesocorrerammuitocedoentreosRomanos.Nacognitioextraordinem,aspartesemlitígio deixamde controlar o processo e o simples cidadão que desempenha asfunções de árbitro é substituído por um funcionário público nomeado peloimperadorouporumfuncionáriocomumaltocargonaadministraçãoimperial.Duranteesta transição,opoderdoestadoaumentou relativamenteao seupapelinicial de repressão da vingança e de organização da arbitragem nas legisactiones.Alémdisso,certasaçõespassaramaserconsideradascrimina,atosquepunhamemperigoasegurançadasociedadeequeameaçavamaperdadapaxdeorum, abenevolênciapacíficadosdeuses, e estes conflitosdistinguiam-sededisputaspuramenteprivadasconhecidasporiudiciaprivata.

Estebreveresumomostraasdivisõesgeralmentereconhecidasdahistóriajurídicaromana:operíodododireitoantigo (atéaoséculo IIIa.C.);operíodoclássico(do século II a.C.Até ao início do século III d.C.); e o direito dos finais do

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Império(doséculoIIId.C.AtéaoséculoVId.C.).Oshistoriadoresdodireitoromano, ao contrário dos do direito grego, chegam a considerar o primitivoprocesso jurídico romano mais como um processo coletivo do queexclusivamentedeiniciativapessoal;aopiniãodacomunidadeerasempreouvidaantecipadaeinsistentementeaolongodeumlitígio,quernapessoadeumárbitroquernadeummagistradopúblico.

Afirmou-sequeumadasgrandesforçasquefizerampassarodireitoromanodoseu estado primitivo e ritualista para um estado racionalista e secular foi ainfluênciadopensamentogregoapartirdoséculoVa.C.Duranteestelongoemoroso processo, o juramento e o depoimento das testemunhas adquiriu umamaioraceitação,omesmoacontecendoaocarácterformaldasacusaçõeseaoseumétododearbitragem.Oprocessoformalrepresentavaumamaiorsofisticaçãonaclassificação e análise das provas, especialmente das provas documentais. Oposterior aperfeiçoamento da primitiva cognitio extra ordinem fez dela a formanormal do julgamento romano, totalmente conduzido por um únicomagistradoque, não pertencendo geralmente à classe mais elevada da sociedade romana,tinhaumconhecimentoprofissionaldeassuntos jurídicos.Nosistemadoantigodireito clássico, era rigorosamente respeitado o princípio da inviolabilidade docidadão nascido livre. Theodor Mommsen salientou que nunca na história daRepúblicaexistiuqualquerindíciodequeesseprincípiotivessesidoviolado.Atéosescravosromanosquenãopertenciamaumacasaparecemtersidovulneráveisàtorturaapenasemprocessosdecausa-crimeenão,comoosseuscongéneresdaGrécia, indiscriminadamente em processos civis. No seuDe partitione oratória(34.117-8),escritoporvoltade45a.C.,Cícerodebateuaabordagemfeitapeloadvogadoàsprovasobtidaspormeiodatortura:

Seointerrogatóriodetestemunhasacompanhadodetorturaouanecessidadedefazer tal interrogatório for suscetível de ajudar o processo, deve primeirodefender-se essa instituição e falar da eficácia da dor e da opinião dos nossosantepassados, que a teriam indubitavelmente rejeitado se não tivessemconcordadocomela;edasinstituiçõesdosAteniensesedosRódios,povosmuitocultos,entreosquaisatéoshomenslivreseoscidadãos–pormuitochocantequeisto pareça são mandados torturar; e também das instituições dos nossoscompatriotas,pessoasdeextremasabedoria,queemboranãopermitissemqueosescravos fossem torturados para deporem contra os seus donos, aprovaramtodaviaoempregodatorturaemcasosdeincestoenocasodeconspiraçãoqueocorreuduranteomeuconsulado.Tambémadisputavulgarmenteutilizadaparainvalidar as provas obtidas por intermédio da tortura deverá ser consideradaridículaedeclaradavisionáriaepueril.Deve,pois,confiar-senaprofundidadeeimparcialidade da investigação e analisar as declarações feitas sob tortura por

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meiodo raciocínio edadedução.São,portanto,maisoumenos estas aspartesconstituintesdeumacausaparaaacusação.

Cíceroparecenãoterrazão,pelomenosquantoaodireitotradicionalateniense,eéestranhaasuaafirmaçãoquantoaocasodosRódios.AsuareferênciaàtorturanocasodeconspiraçãodeCatilinaé aúnicaprovadequea torturapoderá tersidoutilizadaoutidaemconsideraçãoem64a.C.,masaproibiçãodatorturadeescravosparadeporemcontraoseuprópriodonoédemodogeral reconhecidacomoumprincípiojurídicoromano,emboratalvezmaisemconsequênciadeumdecretosenatorialdoquedocostume imemorial.Cíceroestáaquiobviamenteadefenderousojudicialdatorturaeapresentaapenasargumentosaseufavor–oumelhor, descreve os tipos de argumentos que um advogado deveria empregarpara a tornar dignade crédito se necessitasse solicitar a sua aplicação.Os seusargumentosnãosãodiferentesdaquelesqueAristótelesapresentoucomofazendoparte do repertório de um orador. Aristóteles é explicitamente referido naInstitutiooratória(5.4.1)deQuintiliano,noséculoIId.C.:

Uma situação semelhante surge no caso dos testemunhos obtidos pormeio datortura:unsconsideramatorturaummétodoinfalívelparasedescobriraverdade,enquantoqueoutrosalegamquemuitasvezes tem tambémcomoconsequênciaconfissõesfalsas,porqueacapacidadederesistênciadealgunsfá-losmentircomfacilidade, enquanto que a fraqueza de outros o torna uma necessidade.Quasenão me vale a pena falar mais a este respeito, pois os discursos dos oradoresantigos e modernos estão repletos de referências a este tema. Certos casosparticularespodemcontudoimplicarconsideraçõesespeciaisaesterespeito.Poisse o ponto em questão é se a tortura deverá ser aplicada, a diferença resideprecisamenteemqueméqueaexigeoupropõe,queméqueasprovasqueassimseprocuramobterirãodenunciarequaléomotivodessaexigência.Se,poroutrolado,atorturafoijáaplicada,adiferençaresideprecisamenteemqueméqueseencarregoudoprocesso,queméquefoiavítimaequalanaturezadatortura,seaconfissãofoicredívelouconsistente,seatestemunhamanteveoseudepoimentoinicialouseoalterousoba influênciadadoreseofezno inícioda torturaouapenasdepoisdeestaseterprolongadodurantealgumtempo.

Adiversidadedetaisquestõesétãoinfinitacomoadiversidadedecasosreais.

O testemunho dos oradores romanos, tal como o dos gregos, é limitado eesclarece apenas parte do problema. As fontes jurídicas propriamente ditasapresentam outros dois tipos de informação importante: a transformação dasociedaderomanaeo reflexodessa transformaçãonodireitopenal.Adistinçãorepublicana entre cidadão livre e escravo tornou-semenos importante sob dois

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aspectos após a fundação do Império: o aparecimento de constituições e depráticasimperiaisnosséculosIeIId.C.Eoseureflexonodireito,emparticularnaleidatraição;eascrescentesdivisõessociaisdoImpérioquederamorigemàsduasclassesgeraisconhecidasporhonestioresebumiliores.Aprimeiraexerceugrandeinfluêncianoprópriodireitoeasegundacriounovascategoriasderelativasujeiçãoàlei.

Henry C. Lea, no seu ensaio sobre a tortura (Superstition and Force, 1866,reeditadoseparadamentecomoTortureem1973),citaumexcertodeSuetónio(Augusto.XXII)queinsinuaocarácterominosodoprivilégioimperial.DuranteosegundoTriunvirato,sucedeuqueumpretorchamadoZ.GalliussaudouOctávioquandolevavaumatabuinhadebaixodatoga.Octávio,julgandoqueatabuinhafosse uma espada e Gallius o agente de uma conspiração, mandou prender etorturarGalliusantesdeocondenaràmorte.Anoçãodemajestadequeoutroraresidia coletivamente no povo romano passara então a residir na pessoa doimperador.Oimperadorpodianãosóditaralei,mastambémfazerexceçõesàleique não reconheciam necessariamente os antigos privilégios republicanos dohomemlivre,especialmentequandoasegurançaimperialestava(ouseimaginavaqueestivesse)emperigo.

As fontes da história jurídica daRepública – asDozeTábuas, os oradores, osdecretos senatoriais e os comentários ocasionais de juristas, como os que seencontram nos Institutes de Gaius – desaparecem durante o Império e sãosubstituídos pelo editos e constituições de alguns imperadores, comentários aestesfeitosporjuristasmaisrecentes,taiscomoPauluseUlpiano,eoutromaterialliterário. O culminar deste processo no Corpus Iuris Civilis de justiniano,compilado no século VI, apresenta um código extraordinário, racionalmenteexpostoeexplicado,quedesdeentãoteminfluenciadoosjuristas.

Mas a partir do séculoXVI e até à atualidade, o problema da relação entre acompilação de justiniano e a história jurídica do período compreendido entre oséculo I e o princípio do século VI d.C. tem ocupado tanto estudiosos comojuristas.NãosepodedesenrolarsimplesmenteoCorpusdeJustinianoeesperar-seque ele revele a evolução jurídica que o originou. Todavia, estão contidos noCorpustantostextosfundamentaisdahistóriajurídicaromana,queéessencialeconvenientefazer-se-lhereferência.

Dado que a figura do imperador – embora normalmente aconselhado porjuristas–seencontraàcabeçadodireitoromano, temosdeconsiderarnãosóodesenvolvimento da política imperial relativamente aos crimes de estado, mastambémasalteraçõessociaisquecriaramduasclassesdecidadanianasociedade

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romanaeduasclassesdesujeiçãonodireitoromano.

AtorturadeGalliusporOctáviofoioprimeiro,masnãoopior,exemplodeaçõesimperiaisexcepcionaisemrelaçãoapresumíveis traidores.Suetónio (Tib.61-2)pormenoriza com grande malícia os passos por meio dos quais Tibérioinvestigava conspirações verdadeiras e imaginárias, de modo que «todos oscrimeseramtratadoscomosendocapitais»,apontodeumamigodoimperador,convidado a vir de Rodes, ter sido mandado torturar por engano porque oimperador supôs que ele não passava de um novo informador. «EnquantoCalígula almoçava ou se divertia, eram frequentemente levados a cabo na suapresença interrogatórios capitais acompanhados de tortura» (Cali. 32), Cláudio«exigia sempre interrogatórios acompanhados de tortura» (Claud. 34) eDomiciano, «para descobrir conspiradores que andavam escondidos, torturavamuitos da facção contrária por meio de uma nova forma de inquirição,introduzindo-lhesfogonaspartesprivadasedecepandoasmãosaalgunsdeles»(Dom.10).

Atéaqui,temo-nosconcentradonasatividadesdosimperadoresapenasnocampoda tortura durante os interrogatórios, mas devemos reparar que as páginas deSuetónioedeTácitoestãocheiasdeextravagânciasdecrueldade,desconfiançaefúria assassina e psicopática que caracterizam a dinastia Júlio-Claudiana. Porvezes é difícil encontrar um fio condutor por entre o sangue que mancha aprimitiva história imperial romana. Por vezes a ira imperial redundava numaparódia deliberada do processo judicial: Tácito descreve uma cena em queTibério investiga a descoberta de uns sinais misteriosos junto dos nomes dafamíliaimperialnospapéisdeumtalLibão:

Comooacusadonegasseaalegação,decidiu-seinterrogarosescravosque,sobtortura,identificaramacaligrafia;e,dadoqueumantigodecretoproibiaqueestesfossem interrogados numa acusação que afetasse a vida do seu dono, Tibério,aplicando os seus talentos na descoberta de uma nova jurisprudência, ordenouque todos eles fossemvendidos separadamente ao agente do tesouro: tudo istopara conseguir dos escravos testemunhos contra Libão sem ultrapassar umdecretosenatorial!(Ann.II.30).

O comentário de Tácito a respeito de Tibério aplicar «os seus talentos nadescobertadeumanovajurisprudência»émaisdoqueamargaironia,vistoqueaposição e a autoridade dos imperadores lhes permitiam tomar medidasextraordináriasrelativamenteaoantigocrimeromanodemaiestas,ouperduellio,aofensadopovoromano.

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TácitonarratambémahistóriadeEpícaris,umaescravalibertada:

Entretanto,Nero lembrou-se queEpícaris se encontrava presa por denúncia deVolusius Proculus; e, partindo do princípio de que a carne e o sangue dasmulheres não conseguiam suportar a dor, ordenou que a torturassem no potro.Mas nem o chicote nem o fogo, nem mesmo a cólera dos carrascos, queredobraramosseusesforçosaoverem-sedesafiadosporumamulher,a fizeramdeixardenegarasalegações.

O primeiro dia de suplício fora frustrado. No dia seguinte, quando estavam aarrastá-la numa liteira para uma repetição da agonia – os seus membrosdeslocadosnãoconseguiamsustê-la–prendeuafaixaquelheenvolveraopeitoauma perna da liteira, formando uma espécie de laço, enfiou nele o pescoço e,fazendo um terrível esforço, cortou a débil respiração que lhe restava. Escravaemancipada e mulher, ao proteger, sob esta terrível coação, homens que nãotinhamcomelaqualquerparentescoequequasedesconhecia,deraumexemploque pareceu ainda mais extraordinário numa época em que homens nascidoslivres, cavaleiros e senadores romanos, que não podiam ser torturados, traíamaqueles que lhes eram queridos. Porque nem mesmo Lucano, Senecião eQuincianodeixaramde revelar todosos seus cúmplices; entretanto, o pavor deNero ia aumentando cada vezmais, embora tivessemultiplicado o número deguardasquerodeavamasuapessoa.(Ann.Xv.57)

É à luz de medidas como estas que se deveria, por exemplo, considerar aperseguição dos cristãos. Inicialmente, os cristãos estavam protegidos pela suacondiçãodejudeus,vistoqueojudaísmoerareconhecidonoImpériocomoumareligião legal, ainda que não satisfizesse os requisitos normais romanos parareligiõesautorizadas.NoúltimoquarteldoséculoId.C.,osmagistradosromanosconseguiram distinguir do judaísmo a identidade individual cristã e os cristãospassaramassimapertenceràcategoriadeseguidoresdereligiõesilegaiseficaramsujeitos às consequências legais que tal condição implicava. Embora existagrande discordância quanto às razões técnicas que levaram à perseguição doscristãos, os estudiosos concordam geralmente que a tortura e as sentençasagravadas em caso de pena demorte no tempo deNero, a partir de 64 d. C.,constituíram um precedente para que os cristãos fossem considerados ímpios esubversivose,porconseguinte,sujeitosainterrogatórioacompanhadodetorturaesubsequentescastigosvergonhososedegradantes.Leaapreendecomperspicáciaa combinação entre uma circunstância psicológicaúnica e o poder jurídicodosimperadoresnasuaobservaçãodeque«soboestímulodeapetitestãohediondos,acrueldadecaprichosaeirresponsávelconseguiudarumagrandeamplitudeàleida traição» (Torture, p. 10), pois a lei da traição, o crimen laesae maiestatis,

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constituía a base racional para que os imperadores se arrogassem tais poderesjurídicosextraordinários.Asconsequênciasdodesenvolvimentodaleidatraiçãoinfluenciarammaistardeoprocessopenalemgeral.

FazendoecodeMommsen,FloydLear(TreasoninRomanandGermanicLaw,1965) sugeriu que a doutrina romana da traição, o crimen laesae maiestatis, ainjúriaouorebaixamentodamajestade,resultoudasprimitivassançõesreligiosasromanascontraoassassinodeumpai,parricidum,edasaçõesdeumromanoquesetornainimigodasuaprópriacomunidadeeajudaosinimigosdela,perduellio.

Incluídas emperduellio estão a deserção do exército, a rendição ao inimigo dequalquer território romano, a prestação de auxílio e de conforto ao inimigo, oincitamentoaumaguerracontraRomaouuma revoltadentrodelaea fugadoexílio com o regresso ilegal à Península Itálica. Perduellio incluía também asofensascorporaisamagistradoseaviolaçãodasobrigaçõesdoclienteparacomopatrono.

Fazendo novamente eco de Mommsen, Lear investiga a história do termomaiestas e associa-o à dignidade dos representantes (ou tribunos) dos plebeus,que não estavam protegidos pela noção patrícia de perduellio. Nos finais daRepública,osimplestermomaiestas,majestade,passaraasignificaradignidadedopovoedoestadoromanos,tendoabsorvidoanteriorestermosealargando-seaoinsultoetambémàinjúria.Umditadortransitóriopodiaporvezesarrogar-seodireito de considerar as ofensas contra si próprio como sendo tecnicamenteumcrime contra amaiestas do povo romano, tal como fezOctávio no caso deQ.Gallius,antesdesetornarimperador.Tendo seochefedeestadotransformadoemAugusto,pôderodear-sedasantigassançõescontraoparricídio,contraaviolaçãodosdireitosdeumpatrício,contraainjúriaouinsultoaotribunodopovoecontraaviolaçãodesançõesreligiosas,demodoqueocrimenlaesaemaiestatispassouaser um crime de heresia e também de insulto e injúria e, portanto, não apenascontraumindivíduoparticular,mascontraalguémqueencarnavaadignidade,ocaráctersagradoeamajestadedoestadoromanonasuaprópriapessoa.

Um tal espectro de autoridade explica a liberdade que os imperadores júlio-claudianospossuíamde seprotegercontraameaças reaisou imagináriasque seencontratãosinistramenteregistadaemSuetónioeTácito.Estedesenvolvimentoprecocedaleiromanadatraiçãosobreviveuàcasajúlio-claudianaelevounãosóà incidência da tortura no Império Romano, mas também a uma noçãoextraordinariamenteelevadadeestado.

Alémdatransformaçãodadoutrinademaiestas,devemosigualmenteconsiderar

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algumas das consequências jurídicas da mudança social verificada no ImpérioentreosséculosIeIV.Asantigasdistinçõesrepublicanasromanasentrepatríciose plebeus terminaram efetivamente com as guerras sociais e com a queda daRepública.Asnovasdistinções,quesurgemnodireitoporvoltadoséculoIIId.C.,referem-seaduasespéciesdecidadão:honestioresehumiliores.Osprimeiroseram privilegiados e constituíam a verdadeira classe dirigente do Império; ossegundoseramorestodopovo,osquetinhamprofissõesinferiores,ospobreseosdesenraizados.Omodocomoestasdistinçõessetraduziramnodireitopodemver-senopassoseguintedeDigestodeJustiniano:A credibilidade das testemunhas devia ser cuidadosamente verificada. Porconseguinte,aoseexaminaremassuaspessoas,deveria,emprimeirolugar,ter-seematençãoaclassedecadauma,sesetratadeumdecurião[umfuncionáriocivilcomacategoriadehonestioris]oudeumplebeu[humilioris]ouseasuavidaéhonrada e irrepreensível ou se, pelo contrário, é umhomemestigmatizadopeladesonrapública[infâmia:veradiante]ecensurável…(22.5)

Adiretivade Justinianonão se limitava a aconselharosmagistradosquanto aomododeavaliarocarácterdastestemunhas.Naverdade,porvoltadoséculoVI,a diferenciação jurídica entre honestiores e humiliores e a recente crueldadedodireitopenalduranteaépocadosimperadoresfizeramdoshumilioresasprimeirasvítimas livresromanasda tortura judiciária,paraalémdaquelesque tinhamsidotorturadossegundoostermosdocrimenlaesaemaiestatis.Atorturatambémnãoera o único fardo que a condição de humiliores implicava. Certos tipos depunição, como os castigos corporais pelo lançamento às feras ou pelacrucificação, eramodestinodohumilioris condenado.Aclassemaisbaixadoscidadãos livres do Império, sujeita a um interrogatório e a punições outroraaplicáveisapenasaosescravoseaoscidadãoslivresemcasosdetraição,desceraagorajuridicamenteaessenível.Acidadaniajánãoofereciaatodososcidadãosaproteçãoantenor.

NoperíodoinicialdoImpério,diversascaracterísticasdahistóriajurídicaromanacontribuírampara tornara leida traiçãoessencialparaaquestãoda tortura.Porumlado,certascategoriasdepessoaseramconsideradastãobaixase,poroutro,certos tipos de crime eram considerados tão perversos, que justificavam olevantamento das restrições de outro modo presentes no sistema. Oestabelecimentodaposiçãodo imperador comopersonificaçãodamajestadedopovo romano e o aparecimento da traição como um crime particularmenteperverso e pessoal ajudaram a definir o contexto em que a tortura de homenslivressedesenvolveunodireitopenalromano.Masumcasoclássicodar-nos-àaperceber a enorme proteção que a lei concedia normalmente aos cidadãosromanosporvoltadosmeadosdoséculoId.C.

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Umdosjulgamentosmaisconhecidosdahistóriadodireitoromano,emboranãopormotivos jurídicos, éodeSãoPauloperanteos tribunaisde JerusalémedaCesareia,narradonosAtos,22-26.Paulo,acusadodevárioscrimes,foilevadoàpresença de um centurião que propôs o seu interrogatório acompanhado detorturaparaapuraraverdadedasacusaçõescontraele.Quandooamarraramparaserchicoteado,Pauloperguntouaocenturião:«Tendesautoridadeparavergastarum cidadão romano, que nem sequer foi julgado?»Após analisar com o seusuperiorareivindicaçãodePaulo,ocenturiãonãosóosoltou,masficoutambémpreocupado por «saber que tinha mandado prender e agrilhoar um cidadãoromano». Ainda que o resto do julgamento ilustre outros aspectos doprocedimentoromano,areivindicaçãodePaulodequeacidadaniaoisentavadoshabituaismétodosdeinvestigaçãocriminaléumexemplodocaráctersagradodacidadaniaromananumcentroadministrativoprovincial.

ÉtambémdenotarquebastouPauloproclamaroseudireitodecidadaniaparaatorturasersuspensa.Talreivindicaçãotinhadesermeticulosamenteinvestigada.Quase dois séculos mais tarde, Ulpiano (Digesto, 48.18.12) citou um rescritoimperialafirmando:«Quandoalguém,paraevitarsertorturado,alegaqueélivre,oDivinoAdrianodeclarounumrescritoquenãodevesertorturadoantesdeseterdadoo julgamentoacercadasua imunidade.»Assim,emcasoscomoodeSãoPaulo, a reivindicação da liberdade funcionava como uma espécie deinterlocutória que tinha de ser analisada antes de o processo inicial poderprosseguir. E, de acordo com os Atos dos Apóstolos, parece que o próprioAdrianoestavaapenasareiterarumanteriorprincípiojurídico.

Os Romanos utilizavam diversos termos para descrever aquilo a que nós, umtanto indiscriminadamente, chamámos «tortura». No procedimento criminalromano, a inquirição chamava-se quaestio, que se referia também ao própriotribunal.Tormentumreferia-seinicialmenteaumaformadepunição,incluindoapenademorteagravada,àqual,duranteaRepública,apenasestavamsujeitosaela por certos crimes. Quando se aplicava o tormentum como um método deinterrogatório, o termo técnico era quaestio per tormenta ou quaestiotormentorum,ouseja,umainquiriçãofeitapormeiosquetinhamsidoaprincípioestritamente uma forma de punição e apenas de escravos.Ulpiano foi tambémexplícitoarespeitodarelaçãoentreestestermos:

Por«tortura»devemosentenderosuplícioeosofrimentoedorfísicaempreguesparaarrancaraverdade.Porisso,umsimplesinterrogatóriodeumgraumoderadode intimidaçãonão justificaaaplicaçãodesteedicto.No termo«suplício»estãoincluídas todas aquelas coisas que se relacionam com a aplicação da tortura.Assim, quando se recorre à força e ao suplício, isso deve entender-se como

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tortura.(Digesto47.10.15.41)

Ulpiano comentava noutro passo (Digesto 29.5.1.25): «Nós, contudo,entendemosqueotermotorturasignificanãosóser-setorturadoparafazerumaconfissão,mas também todos os interrogatórios que se possam fazer durante ainvestigaçãodamortedodono.»

E evidente que, na época de Ulpiano, quaestio e tormentum/tortura se tinhamtornadopraticamentesinónimos.Estaidentificaçãomantém-senalínguafrancesa,emqueotermolaquestion,noprocedimentocriminal,foidurantemuitotemposinónimodelatorture.

A terminologia da tortura romana explica assim por que é que esta se limitouinicialmenteaosescravos,vistoqueteveorigemempuniçõesaplicáveisapenasaescravos.

Naverdade,oenormevolumedematerialcontidonoDigestosobotítulode«DaTortura» (48.8) refere-se geralmente à tortura de escravos. A única exceçãoconsistenumaafirmaçãodeArcádioCarísio(Digesto48.18.10.1):«Masquandoa acusação é a traição, que diz respeito às vidas dos imperadores, todos semexceção devem ser torturados se forem chamados a prestar declarações e se ocasooexigir.»

Carísio, escrevendo por volta de 300 d. C., é uma testemunha recente, masconfirmaapráticaqueeraclaramenteaceitedeummodoinformalnoséculoIeoficialmenteduranteoséculoII.

Habitualmente,talcomofoisalientado,osescravospodiamsertorturadosapenasemaçõespenais.NoséculoII,contudo,oimperadorAntoninoPioalargouessapossibilidadeàsquestõespecuniárias:ODivinoPiodeclarounumrescritoquea torturapodiaser infligidaaescravosemcasosqueenvolvessemdinheiroseaverdadenãopudesseseraveriguadadeoutromodo,oqueestáestipuladotambémnoutrosrescritos.Averdade,todavia,é que não se deve recorrer a este expediente numa questão pecuniária, masapenasondeaverdadenãopossaseraveriguada,anãoserquepelautilizaçãodatortura seja legítimo fazer-seusodele, tal comooDivinoSeverodeclarounumrescrito.(Digesto48.18.9)

Assim,aáreadodireitoemqueosescravospodiamserlegitimamentetorturadosalargou-se,noséculo II, acertasáreascivis.Noprincípiodo Império,Augusto

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prevenira contra a utilização da tortura (Digesto 48.18.8): «Não creio que atorturadevaserinfligidaemtodososcasosnematodaagente;masquandooscrimes capitais e atrozes [capitalia et atrociora maleticia] não podem serdetectadoseprovadosexcetopormeiodatorturadeescravos,consideroqueestaémuitoeficazparaaveriguaraverdadeequedeveserempregue.»

Falaremos adiante das dúvidas dos juristas e dos imperadores relativamente àeficáciadasprovasobtidaspormeiodatortura.Pororabastareferirqueoraiodeação da tortura se expandiu dramaticamente entre a época deAugusto e a dosimperadores antoninos, no século II.A restrição «se a verdade não puder seraveriguada de outromodo» caracteriza as reflexões tanto deAugusto comodeAntonino Pio, mas parece ter perdido cada vez mais significado durante osséculosIIelII.

À medida que os motivos para torturar escravos foram aumentando, estescomeçaramtambémaalargar-seàclassemaisbaixadecidadãos.Calístrato,porvolta de 200 d.C., registou uma evolução semelhante quanto à pena demorte(Digesto48.19.28.11):«Osescravosqueconspiramcontraavidadosseusdonossão geralmente condenados à morte pela fogueira; os homens livres tambémsofrempor vezes esta pena, caso sejamplebeus e pessoas de baixa condição.»Um rescrito do princípio do século IV, dos imperadores Diocleciano eMaximiano(Código9.41.8),declara:

Nãopermitimosqueossoldadossejamsujeitosatorturaouàspenasimpostasaosplebeus em ações penais, mesmo que pareça que foram demitidos sem osprivilégios dosveteranos, à exceçãodaqueles que tenham sidodesonrosamentedestituídos. Esta norma deverá ser observada também nos casos de filhos desoldados e de veteranos. Nas ações por crimes públicos, os juízes não deveminiciarointerrogatóriorecorrendoàtortura,masdevemprimeiroutilizar-setodasas provas disponíveis e verosímeis. Se, após teremobtido informações sobre ocrime, consideraremquedeve ser aplicada tortura como fimde se averiguar averdade, devem apenas recorrer a ela se o estatuto das pessoas implicadasjustificartalvia;porque,nostermosdestalei,todososhabitantesdasprovínciastêmdireitoabeneficiardanossanaturalbenevolênciaparacomeles.

A desonra pública e a «baixa condição» tornaram-se assim duas dascircunstânciaspelasquaisoshomenspodiamsersujeitosatortura.Consideremo-lasporordem.

Aprimitivadistinçãoentreescravosehomenslivres,bemcomoentrepatrícioseplebeus, incluía, para os Romanos, a noção de dignidade pessoal, honra,

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consideração e veneração. Ao definir dignitas, Cícero (De lnventione 2.166)afirmou:«Adignidadeéprestígiohonroso.Merecerespeito,honraeveneração.»OsRomanos,sempreprofundamentesensíveisaqualquersinaldediminuiçãodasuadignidadeou reputação, reconhecerame indicaramascircunstânciasdasuaperda – infâmia [infâmia] e ignomínia [ignominia] – muito antes de asconverteremnumadoutrinajurídicaconvencional.Paraumromano,querdentroquer fora do tribunal, por meios formais ou informais, perder o respeito dasociedadeeraumrudegolpepsicológicoesocial.OsRomanoseramcapazesdefazer tudo, e faziam-no de facto, para evitar que a sua honra se perdesse ouficassediminuída.

J. M. Kelly sugeriu recentemente que o receio que os Romanos tinham davergonhafuncionavacomoumfatorinibidordolitígio,mesmoemcasosemqueumapessoatinhaarazãoealeidoseulado.

Comoojulgamentoromanoeraumdospoucoslocaisondeoreprehensiovitae,vituperatio–insultoartísticodescaradoemuitoeloquente–eraoargumentodosadvogadoscontrários,eondeashabituaisleisdedifamaçãonãoseaplicavam,oprocesso de julgamento era acompanhado de ataques à honra e dignidadepessoais. Os Romanos reconheciam também vilitas – o exercício de certasocupações ou profissões desonrosas.Ocasionalmente, o edicto do pretor ditavaquecertasespéciesdeindivíduosnãopodiamintentarprocessosnoseutribunal.Entre aqueles que eram excluídos do tribunal do pretor contavam-se oshomossexuais,osproxenetas,osgladiadores,aquelesquelutavamcontraasferasna arena, os atores cómicos e satíricos, aqueles que tivessem sofrido umdespedimentodesonroso(missioignominiosus)doexércitoecertosindivíduosaquemtivessemsidoaplicadasmedidaslegaisaviltantes.DuranteoséculoIId.C.,acondiçãodeinfâmiafoireconhecidacomoenglobandoamaiorpartedoscasos.A partir desta altura, as fontes jurídicas concentram-se muito maispormenorizadamente na natureza jurídica da infâmia, nas normas queregulamentavamasuaaplicaçãopelosmagistradosenasconsequênciasjurídicasqueimplicava.

Durante os séculos v e VI desenvolveu-se uma verdadeira jurisprudência dainfâmia. Este desenvolvimento ocorreu simultaneamente com o aumento donúmerodeocasiõesemqueosescravospodiamsertorturados,emqueoshomenslivrespodiamserinterrogadosepunidospormétodosinicialmentereservadosaosescravos e em que o baixo estatuto expunha cada vez mais homens livres àtortura.Estasmudançasnãosãodesconexas.Comentando,noséculoII,aantigalei das Doze Tábuas, o jurista Gaio caracteriza a plebe como incluindo todosaquelesqueestavamabaixodaclassesenatorial.NosséculosIeII,aclassemais

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elevadadasociedaderomanaalargara-se,passandoaincluirmaisrepresentantesdopovodoquesenadores,especialmentedaordemequestreou«doscavaleiros».Esta classe superior adquiriu os antigos privilégios de patrícios e senadores.Aquelesquenãopertenciamàclassemaiselevada(ouseja,aquelesquenoséculoII se chamavam honestiores) passaram a ser os humiliores, e à medida que adistinçãoentrehonestioresehumilioressefoitornandomaisclara,especialmentequantoàdignidadepessoaleaosprivilégios jurídicos, foi-se tornandocadavezmaisimprecisaadistinçãoentreoshumilioreseosescravos,eohumilioris,quenãopossuíaadignidadedaclassemaiselevada,adquiriupartedaindignidadedaclassemaisbaixa.

Arcádio Carísio refere o seguinte (Digesto 22.5.21.2): «Nas circunstâncias emquesomoscompelidosaaceitarumgladiadorououtrapessoadessegénerocomotestemunha,nãodevemosacreditarnoseudepoimento,anãoserquesejasujeitoa tortura.»A pessoa infame, tal comoo escravo de outrora, carece de dignitasparaprestarumtestemunhovoluntáriopormeiodeumsimplesinterrogatório;atorturatemdevalidaroseutestemunho.

O desenvolvimento da doutrina de dignitas e de infâmia constitui ummeio deimpor,acidadãosatéagoralivres,restriçõesqueoutroraseaplicavamapenasaosescravos. Que, entre os séculos I e IV, a classe humilioris de cidadãos livres(tornadosigualmentevulneráveispeloalargamentodacidadaniaromanauniversalpor Caracala, em 212) estava a adquirir novas responsabilidades inicialmentereservadasaosescravosemmatériadeprocedimentolegaléamplamenteilustradopormedidastomadasemrescritosimperiaisparaprotegeroshonestioresdesortesemelhante.Numtextojácitado,DioclecianoeMaximianoprotegiamacondiçãodossoldados.OsmesmosimperadoresrepetiramumrescritodeMarcoAurélio,doséculoII,relativoàpreservaçãodadignidadedoshonestiores:

Ficou decidido pelo Divino Marco que os descendentes de homens que sãodesignadospor«EminentíssimosePerfeitíssimos»,atéaograudebisnetos,nãoserão sujeitos nem às penas nem às torturas infligidas aos plebeus, desde quenenhumestigmadehonravioladamarcaraquelesdeumgraumaispróximo,porintermédio dos quais este privilégio foi transmitido aos seus descendentes.(Código9.41.11)

Existem muitos outros exemplos destes esforços para proteger os honestiores.Ulpiano reivindicara os mesmos privilégios para decuriões, membros dosconselhosdascidades,eseusfilhos(Código9.41.11),direitoessequetevedeserrenovado no século IV pelo imperador Valentiniano (Código 9.41.16), e queexcluíadoseuâmbitodefensivoapenasocasodatraição.Em385,Teodósio,o

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Grande, insistiu na dispensa dos padres cristãos da tortura (Código 1.3.8),sugerindoassimainclusãodoclerocristãonaclassedoshonestiores.QueestasinclusõeseramnecessáriaséindicadoporumrescritodoimperadorValentiniano,em 369, que referia (Código 9.8.4) que, embora a tortura pudesse serhabitualmenteaplicadaemcasodetraiçãoeexcepcionalmenteporordempessoaldo imperador, esta era, no entanto, larga e indiscriminadamente aplicada ahomenslivrespordelitosmuitomenores.

EntreosséculosIIeIV,oprivilégiodenãosersujeitoatorturaestavaclaramenteadesaparecer,nãosóapartirdabasedapirâmidesocial,mas,começandocomatraição e passando lentamente a abranger outros crimes, incluindo os casosestabelecidospelavontadedoimperador,tambémapartirdasclassesmaisaltas.Atorturaocasionale irregulardehomenslivrespelosjúlio-claudianoscriouumprecedentepráticoqueosimperadoresejuristasposteriorestalveztenhamtentadoregulamentaremteoria,masqueaumentaramnaprática.Eosmagistradosabaixoda posição do imperador foram rápidos, ou indiferentes, a proceder damesmamaneira.

Tambémnãofoiatraição,nemmesmoumadefiniçãoextremamentealargadadetraição,oúnicomotivoa levaros imperadoresa legitimaroempregoda torturacontra homens livres.Em217,Caracala (Código9.41.7) autorizou-anos casosemqueumamulherfosseacusadadeenvenenamento.NoséculoIV,Constantino(Código 9.41.7) tornou os feiticeiros, os mágicos, os adivinhos e os áuguressujeitostantoaointerrogatórioacompanhadodetorturacomoaformasagravadasde pena capital. Constantino e Justiniano (Código 9.9.31; Novelas 117.15.1)autorizaramasuautilizaçãoemcasosderelaçõessexuaisperversasedeadultério,respectivamente. Diocleciano publicou um edicto determinando que todos oscristãos fossem privados dos privilégios da sua posição e ficassem sujeitos àaplicação da tortura, edicto esse naturalmente não conservado no Corpus doimperadorcristãojustiniano.

NoséculoIV,aantigaseparaçãorígidaentreosprivilégiosdehomenslivresedeescravosdesaparecerahámuitoeumadiversidadededelitoscolocaraoshomenslivressobaameaçadatortura.Notopodasociedaderomana,primeiroatraiçãoedepoisasdefiniçõesalargadasdetraiçãoeaadiçãodeoutrasofensasexpunhamtambémoshonestioresà tortura.Oaparecimentodeumaclassedemagistradosburocráticos, que não eram já os juristas eruditos dos séculos II e III, tornouprovavelmenteaaplicaçãodatorturamaishabitualemenosconsiderada.Asériede editos imperiais atrás citados, que tentavam recordar aos funcionários asrestriçõesàtortura,refletiamprovavelmenteumproblemarealeaspreocupaçõesreaisdosimperadoresedohonestioris.

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Ocarácterdatorturaromana

Asprincipaisfontesjurídicasdaleiromanadatorturaencontram-senoCódigodeJustiniano (9.41) e no Digesto (48.18). O primeiro consiste em constituiçõesimperiaiseosegundonasopiniõesdejuristas.Noseuconjunto,asfontesatéaquidiscutidas apresentamumadescrição exaustiva dosmotivos para a tortura,masdizem pouco a respeito de métodos de tortura. Contêm também umajurisprudênciadatorturaeumlevantamentodeopiniõessobreaconsistênciadasprovasobtidas pormeiode tortura.Os comentários deCícero e deQuintilianoatráscitadossugeremqueosoradoresestavamperfeitamenteconscientesdequeos resultados do testemunho obtido por meio de tortura tinham de sermanipuladosduranteojulgamento,conformeooradordefendiaoucontestavaaprova em questão. Estes pontos de vista puramente práticos que eles advogamnão implicamumaaprovaçãooudesaprovaçãooratóriada tortura,mas tambémnãosugeremumaabsolutacondenaçãodaconsistênciadasprovasassimobtidas.O Digesto, embora apresente o ponto de vista dos juristas, é simultaneamentemenosambivalenteemaiscauteloso.UmdostextosmaisimportantesdoDigesto(48.18) consiste em vinte e sete extratos do desaparecido Tratado sobre osDeveres de Um Procônsul, de Ulpiano. O primeiro comentário de UlpianoobservaqueAugustodeclararaque«nãosedeveconfiartotalmentenatortura»equea torturanãodeveprincipiarduranteo interrogatório.Na realidade,aparteinicialdadiscussãodeUlpiano tratade informaçõesadmonitóriassobreo lugardatorturanoprocessojudicial,danecessidadedeoutrasprovas,daexistênciadefortes suspeitas, das proibições da tortura de escravos para obtenção de provascontra os seus próprios donos e dos tipos de perguntas que deviam ser feitasduranteatortura.

ODigesto(48.18.123)contémumareservasingularrelativamenteaestaquestão:

Foi declarado pelasConstituições Imperiais que, embora não se deva depositarsempre confiança na tortura, esta não deve ser rejeitada como absolutamenteindigna de crédito, ainda que as provas obtidas sejam pouco convincentes eperigosas e inimigas da verdade; porquanto muitas pessoas, quer pela suacapacidade de resistência quer pela severidade do suplício, desprezam tanto osofrimento que a verdade não lhes consegue ser arrancada de forma alguma.Outrastêmtãopoucacapacidadedesofrimentoquepreferemmentirasuportarointerrogatório, acontecendo assim fazerem confissões muito diversas que as

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implicamnãosóaelasmesmas,mastambémaoutros.

Por conseguinte, os imperadores, oradores e juristas, todos eles reconheciam oproblema das provas extraídas por meio da tortura, embora tais preocupaçõespareçam ter sido o único interesse que tiveram pela sua prática. Tal como osGregos, os Romanos reconheciam na traição, no baixo estatuto social e nosescravos motivos suficientes para a continuação de práticas que eles própriossabiamsermuitodiscutíveis.As salvaguardas jurisprudenciaisqueosRomanoscriaram não se baseavam num humanitarismo anacrónico, mas sim na suaconvicçãodequeaprovaporela introduzidaeraumares fragilisetpericulosa,«algoprecárioeperigoso»,epodiaser facilmenteenganadoraoufalsa.ValérioMáximoreferiuvárioscasosemqueatorturaproduziuprovasqueserevelaramdiscutíveis. Quinto Cúrcio Rufo (História, vr.xi) narra a história da tortura deFilotasparaprestardeclaraçõesarespeitodeumaconspiraçãocontraAlexandre,oGrande.

Após prolongada tortura, Filotas prometeu confessar se o tormento fossesuspenso. Quando a tortura acabou, Filotas virou-se para o inquiridor eperguntou: «Que queres tu que eu diga?» Cúrcio Rufo comenta que ninguémsoube se devia acreditar em Filotas, «pois a dor provoca não só confissõesverdadeiras,mastambémdeclaraçõesfalsas».Emborativessemalgumasdúvidasquanto à legitimidade da tortura, os Romanos tinham também poucas dúvidassobre o seu efeito nos seres humanos. Entre os séculos II e V, difundiram edesenvolveramummétodode investigaçãoa respeitodecujasegurança tinhampoucas ilusões. Em lugar de contestarem esse método, rodearam-no de umajurisprudência que se destinava a conferir-lhe maior segurança, umajurisprudênciaqueéadmirávelpeloseuceticismoeperturbadorapelasualógica.

Paraapreciarnãosóoceticismo,mastambémalógica,énecessárioconsiderarosmétodosromanosdetortura,arespeitodosquaistantooCódigocomooDigestoprimampelosilêncio.Estesmétodosfazem-noslembrarosmúltiplossignificadosde termos tais como tormentum, visto que os processos do interrogatórioacompanhado de tortura resultavam por vezes de castigos físicos agravados eoutrasvezesofereciamnovosmodelosparaessescastigos,incluindoprocessosdepenacapital.

Oprocessonormaldetortura(aoqueparece,adotadomaistardecomomeiodepenacapitalagravada)eraopotro,umaarmaçãodemadeiraapoiadaemcavaletesnaqualavítimaeracolocadacomasmãoseospéspresosdemodo talqueasarticulaçõespodiamserdistendidaspelaaçãodeumcomplexosistemadepesosecordas.

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A distensão das articulações e dos músculos era o objetivo de torturassemelhantestaiscomoolignum,duaspeçasdemadeiraqueafastavamaspernas.Umatorturaquepareceterderivadodapenacapitaleraadasungulae,ganchosquedilaceravamacarne.A torturacommetalao rubro,oaçoitamento,aquasecompressão do corpo na prisão (amalamansio ou «casamaldita») – algumasdestas técnicascopiadasdosGregos–constituíamformasadicionaisde tortura.Uma fonte jurídica acerca de outros métodos pode ser encontrada no Digesto(48.19), no capítulo «Das Punições», dado que diversas formas de castigocorporal se adaptavam também à utilização no interrogatório acompanhado detortura. O jurista Calístrato (Digesto 48.19.7) enumera, entre estas, «o castigocomvaras,ochicoteamentoeoaçoitamentocomcorrentes».Osmétodosgregosdepenacapitalincluíamadecapitação,oenvenenamento,acrucificação,amorteàpaulada,oestrangulamento,oapedrejamento,olançamentodeumprecipícioeo enterramento em vida. Os Romanos proibiam o envenenamento e oestrangulamento e reservavam a crucificação para escravos e para criminososparticularmente desprezíveis. Ulpiano refere outra proibição romana (Digesto48.19.8.3): «Ninguém pode ser condenado à morte por espancamento ou amorrercom[golpesde]bastõesouduranteatortura,aindaqueamaiorpartedaspessoas, ao serem torturadas, percam a vida.» Ou seja, embora a tortura combastões resulte frequentemente em morte, a morte da pessoa que está a serinterrogadanãopodeseroobjetivodetaltortura.OsRomanosparecemnãoterusadoatorturanaroda,ummétodoqueforaempreguepelosGregos.

AlémdosdocumentosincluídosnoDigesto,oshistoriadoresedefensorescristãosfornecemosmaispormenorizadosrelatosdaspráticaspenaisromanas,incluindoa tortura. De mortibus persecutorum de Lactâncio e A História da Igreja deEusébioapresentampormenoressurpreendentesdesuplíciosformaiseirregularesinfligidos aos cristãos, incluindo todos aqueles atrás mencionados, quer eminterrogatóriosacompanhadosdetorturaquercomosentençasagravadasemcasodepenademorte.Peranteasobrevivênciadesentençasdemorteagravadaseograuderessentimentopopularcontraoscristãoseoutrosinimigosespecialmentedesprezados, o ceticismoquanto à consistência das provasobtidas pormeiodetorturaperdeasua importânciacomoelementomoderadornumasociedadequenão conhecia qualquer processo de evitar a tortura e que, por conseguinte, seencontravafatalmentesujeitaaosseusexcessos.

Odireitoromanoeassociedadesgermânicas

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Na história das instituições jurídicas e damentalidade dos invasores e colonosgermânicosdo ImpérioRomano apóso século IV, podemosobservar umavezmaisatransformaçãodepráticasjurídicasarcaicasemoutrasmaiscomplexas,emparteem resultadodemudanças internasnas sociedadesgermânicaseemparteemresultadodapossibilidadedeutilizaçãodeumdireitodesenvolvidoeerudito,neste casoodeRoma.Tal comonodireito arcaicogrego e talveznoprimeirodireitoromano,oconceitodeofensapessoaledeaçãodiretaantecedeodecrime,oconceitodecontendaantecedeodejulgamento,eacondiçãodehomemlivredistinguenãosóoguerreirogermânicodoescravoedoforasteiro,masatribui-lhetambémmuitasqualidadessemelhantesàquelasquetinhamoutroraprotegidooscidadãosatenienseseoscidadãosromanospertencentesàclassedoshonestiores.Mas,nasuagrandemaioria,associedadesgermânicasdoiníciodaIdadeMédiaeuropeia não desenvolveram nem adaptaram imediatamente as suas práticas evaloresaosdodireitoromano.Namaiorpartedoscasos,odireitoromanosósetornoumuitoconhecidoeestudadonaEuropaSetentrionalnos finaisdoséculoXl.SónoséculoXIIcomeçouainfluenciarasinstituiçõesjurídicasdaEuropa.Masparaaquelesquenãoeramhomenslivresouqueeramhomenslivrescaídosemdesgraça, o direito germânicopermitia a aplicaçãoda tortura e puniçõesdeumanaturezaquediminuíaadignidadepessoal.Osescravosacusadosdecrimes,asmulheresdeumhomemdeposiçãoassassinadoeohomemlivrepublicamentedeclarado traidor, desertor ou cobarde, podiam ser tratados deste modo. AGermania de Tácito, escrita nos finais do século I, reconhece claramente estascaracterísticasdaculturajurídicagermânica.

Noscódigosjurídicosgermânicos(quenãocompreendemcertamenteosomatóriodaefetivapráticajurídicagermânica),háemmuitoscasosumreflexodoprimitivocostume romano de torturar escravos. Mas mesmo neste caso, tal como Leaobservou (Torture, p. 26), «as normas jurídicas para a tortura de escravosdestinam-se a proteger apenas os interesses do dono». Mesmo os escravosacusadosdecrimes(aqui,talcomonoprimitivodireitoromano,apenasoescravoacusado podia ser torturado) continuavam a ser um património valioso e oinveterado respeito germânico pelo património de um homem livre moderouigualmente a adaptação daquelas partes da prática jurídica romana que nãoviolavam a sua premissa fundamental da condição de homem livre entrelitigantes.

Os comentários deTácito a respeito do carácter quase intocável dos guerreirosgermânicospodem,contudo,entender-semelhorcomonossoprópriosentido

Recém-adquiridodadiferençaentreculturasdehumilhaçãoeculturasdeculpa.Semhonra, ninguém conseguia viver pormuito tempo nem semproblemas no

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mundodescritoporTácito.MasoprópriomundogermânicodescritoporTácitotambém não durou muito. Entre os séculos IV e VI, esse mundo transpôs afronteiraromana,estabeleceupovosereinosnasantigasprovínciasdoImpérioe,por fim, suplantou o próprio Império no Ocidente.As rápidas transformaçõessociaisqueresultaramdestasaventurasreorganizaramdrasticamenteasociedadegermânica, processo esse que pode ser reconstituído desde a transformação dadignidade real até ao aparecimento de códigos jurídicos escritos. De início, oprincípioda individualidadedas leis separavao indivíduogermanodo romano;cadaumrecorriaaostribunaissegundoasleisdopovoentreoqualnascera.Aspráticasjurídicasgermânicaseaspráticasjurídicasromanascoexistiamemmuitasregiões e talvez tenha sido assimque a tortura romanade escravos foi adotadapelos Germanos, embora nos séculos V e VI, no direito romano, a tortura setivessehámuitoalargadoatodosmenosaoshonestiores.OsGermanosparecemter-se considerado equivalentes aos honestiores e, excetuando ocasionais açõesdosseusreisnãosancionadas,parecemterpreservadosistematicamentedatorturaohomemlivreaolongodamaiorpartedasuainicialhistóriajurídica.

Todavia,alémdasdivisõesdasociedadegermânicanascategoriasdeescravosede guerreiros livres, a partir do século IV surgiramoutras distinções sociais.Apoucoepouco,oestatutoindependentedosRomanoseavantagemdepoderemrecorrer às suas próprias leis foram-se extinguindo lentamente àmedida que asinstituições jurídicas romanas foram desaparecendo e a população romanadominadasefundiucomapopulaçãogermânicadosdoisreinos.NoséculoVII,por exemplo, o código dos Visigodos já não reconhecia as normas jurídicasgóticaseromanas;odireitovisigótico,pelomenos,estavaacaminhodesetornarsobretudo territorial. Além disso, a diferenciação entre guerreiros germânicoslivres continuava a fazer-se rapidamente e, no mesmo código visigótico,encontramos referências à tortura de «homens livres da classe mais baixa»,possivelmenteumainfluênciadelegislaçãoromanarecente,massemdúvidaumfenómeno sociológico que teve um certo significado na própria sociedadevisigótica.Emdiversospaíses,«homenslivresdaclassemaisbaixa»fundiram-secomescravosemascensão,constituindoassimumanovaclassedeservosmeiolivres, mas, por essa altura, estes e a sua personalidade jurídica tinham-sepraticamenteafastadoporcompletodapráticajurídicagermânica.

Nocasododireitovisigótico,vemosumverdadeirocódigodoutrináriorelativoàtorturadeescravosedehomenslivres.Embora,talcomoatrásobservado,fossereconhecidoo carácter depropriedadedos servos e o testemunhodos escravosfosse consideravelmente restringido, a tortura parece ter sido habitualmentepraticada entre os Visigodos. No Livro VI, título 1 do Código Visigótico,descreve-se as circunstâncias em que a tortura é permitida e ordenada. Esta

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prática,mesmo quando se trata de homens livres da classemais baixa, apenaspodeterlugaremcasosdecrimecapitalouqueenvolvamumaquantiasuperioracinquenta(maistardeduzentosecinquenta)solidi.

Apenashomenslivrespodemacusarhomenslivresenenhumhomemlivrepodeacusar alguém de uma posição superior à sua.A tortura tem de se realizar napresençado juizoudosseus representantesnomeadosenãoépermitidanemamortenema inutilizaçãodequalquermembro.Homicídio,adultério,ofensasaoreieaopovoemgeral,falsificaçãoefeitiçariasãooscrimesparaosquais,desdequeseverifiquemosrequisitosdeposiçãosocialdoacusadoredoréu,atorturapodeseraplicada,inclusivamentenapessoadeumnobre.

Mas ainda que se notem características especificamente visigóticas, é evidentequeodireitodoCódigoVisigóticoédecalcadododireitoimperialromanotardio,emborasuavizandoassuassançõesmaisseveras.

Os Visigodos foram os únicos a introduzirem tantas regulamentações sobre atortura nas suas leis, leis onde essa prática permaneceu ao longo dos primeirostemposdahistóriamedievaldaPenínsulaIbérica,sendorestabelecidanoperíododareconquista,depoisdoséculoXI.Emboraalgunsoutroscódigosgermânicosconservemvestígios da lei romana da tortura, o processo acusatório e o poucodesenvolvimentodasregrasdotestemunhoimpediramasobrevivênciadapráticadatortura-atéque,duranteoséculoXII,seiniciouverdadeiramenteoprocessodeadaptaçãododireitoromanoàculturajurídicadaEuropaSetentrional.

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ARAINHADASPROVASEARAINHADOSSUPLÍCIOS

ArevoluçãojurídicadoséculoXlI

No século XII teve lugar no direito e na cultura jurídica uma revolução quemodelouajurisprudênciacriminal–bemcomooutrasdaEuropaatéaofimdoséculoXVIII.TalrevoluçãoresultounãosódeumatransformaçãododireitotalcomoexistiraentreosséculosVIeXII,mastambémdeumacrescentetomadadeconsciência da necessidade de se criarem leis universalmente obrigatórias eaplicáveisatodaaEuropacristã,edapossibilidadedeofazer.Porconseguinte,o«ressurgimento»dodireito romanoea formação imediatamentesubsequentedeum direito canónico universal opuseram-se àquilo que os governantes eestudiosos anteriores entendiam por natureza rústica, «irracional», amadora earcaica do direito antes do séculoXII.De umamaneira geral, os historiadoresjurídicostêmconcordadocomaopiniãodosjuristasdoséculoXIIarespeitodacultura jurídica que os antecedeu. Essa cultura tem sido classificada comoirracional,ritualistaeprimitiva–e,emcírculosmenoscaridososecompreensivos,como supersticiosa e selvagem. A investigação atual está a reconsiderar talopinião.Oprimitivodireitoeuropeu,contudo,funcionavadeacordocomcertaspremissasculturaiseseriaquaseimpossívelmodificá-loenquantoessaspremissasobrigassem a uma concordância. No universo jurídico da primitiva Europa, odireito não era uma parte isoladamente reformável de uma cultura segmentada;noções de natureza, de razão, de Deus e de sociedade tiveram igualmente demudar–naverdade,antesdeoprópriodireitopodermudar.

Sãomuitasasrazõesparaessarevoluçãojurídicaeintelectual.

Prendem-senãosócompressupostosculturaisfundamentais,mastambémcomosmaisimportantesvínculossociais;com,segundoaexpressãodeJuliusGoebel,«aenorme pressão da mudança social sobre a estrutura antiquada de direitos erecursos».Apesar da intensidade dessa pressão, a arcaica estrutura europeia dedireitos e recursos teve de ser, antes de mais, entendida como antiquada paradepoissepoderiniciarumamudançaconsiderável.

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Entre as consequências da revolução jurídica contou-se a recuperação eadaptação do código do direito romano escrito, a criação de uma educaçãoespecificamente jurídica, o aparecimento de uma carreira jurídica de novoscódigos de direito aplicado na Europa Ocidental. Estas mudanças foramadaptações às condições sociais alteradas da Europa do século XII. Forampreservadas até aos finais do séculoXVIII, não só por intermédio do contínuoestudoepráticadodireitoromanooudodireitoporeleinfluenciado,mastambémpormeio da imprensa, das escolas de direito, dos tribunais e da jurisprudênciafilosófica; e circularam por toda a Europa até ao fim do Antigo Regime. Atradição que criaram sobreviveu até ao presente. Uma das mais importantesconsequências desta revolução foi a substituição do antigo processo acusatóriopelo processo inquisitório. Em vez do juramento confirmado e verificado dohomem livre, a confissão foi elevadapara o topodahierarquia das provas, tãoelevada,naverdade,queosjuristaschamavamàconfissão«arainhadasprovas».Ao contrário do que se passava no direito grego e romano, é principalmente olugardaconfissãonoprocessojurídicoenãoaposiçãodoacusadoouanaturezado crime que explica o reaparecimento da tortura no direitomedieval e no doiníciodaidademoderna.

AtéaoséculoXII,o«direitopenal»daEuropaerapredominantementeprivado.Osfuncionáriospúblicosnãoprocuravamneminvestigavamcrimes.Asofensaseram levadas ao conhecimento dos funcionários da justiça por aqueles que ashaviam sofrido e era da responsabilidade do acusador fazer com que osfuncionáriosjudiciaisatuassem.Aacusaçãodeumindivíduoporoutroera,comodiziam os juristas, o «recurso habitual» para aquilo a que, desde o séculoXII,designamospor«crime».Comoambasaspartespossuíamacondiçãodehomenslivres,olitígioentreelaseraestritamentelimitadodeacordocomainviolabilidadedapessoadeumhomemlivre.Oacusadorescolhiaotribunalapropriado(umquetivessejurisdiçãosobreambasaspartes),faziaasuaacusação,juravaqueestavaadizeraverdadeechamavaaoutrapartepararesponderemtribunal.Oréu,apóstomarconhecimentodaacusação,necessitavanormalmenteapenasdejurarqueaacusação era falsa. Podia então acontecer que o tribunal considerasse que ojuramentodoréunãoeraemsisuficienteparasepodertomarumadecisãoeque,paraalémdojuramentodoréu,exigisseapoiantesdejuramento,compurgadores.Estes não eram testemunhas do acontecimento, mas apenas pessoas que seprontificavamaapoiaroréu,afirmandoasuaaceitaçãodojuramentodaquele.

Se o número de compurgadores fosse suficiente, a acusação era consideradaimprocedente e o caso ficava encerrado.O juramento era a «prova»mais fortequeumréupodiaapresentare,namaiorpartedasacusações,eramotivomaisdoquesuficienteparafazerterminarumlitígio.

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Emalgunscasos,especialmentecontrahomenscuja reputaçãoeramá,algumasacusações, principalmente as de crimes capitais, podiam implicar a sujeição doréu ao ordálio, processo em que era invocado o julgamento de Deus parasolucionar um problema em que as restrições do processo jurídico humanotornavamirresolúvel.Porfim,emcertoscasos,asduaspartes,oupartesporelasdesignadas, podiam envolver-se num combate judiciário, que era tambémconsiderado uma forma de ordálio, com a justificação de que Deus permitiriaapenasavitóriadapartequeestivessedentrodarazão.Ojuramento,oordálioeocombate judiciário constituíram os métodos de prova «irracionais, primitivos,bárbaros» até meados do século XII. Por muito arcaicos e insuficientes queviessem a parecer mais tarde, satisfaziam adequadamente as premissasfundamentais da condiçãodohomem livre e as restrições deprocessoque estaimpunha aos tribunais. Refletiam também a consciência daquilo a que algunshistoriadoreschamaram«justiçaimanente»duranteesseperíodo:asuposiçãodeque a intervençãodivinanomundomaterial era de talmodo contínuaquenãopermitiaqueos crimes ficassem impunes, chegandoaté aopontodeos atribuirautomaticamenteapresumíveistransgressores.As pessoas aceitavam as decisões do ordálio, do julgamento e do combatejudiciário porque acreditavamque eram sentençasdeDeus, bemcomopráticasantigasereconhecidas.

A partir do século IX, estes métodos tornaram-se igualmente parte da vidalitúrgica da sociedade europeia. Os rituais eclesiásticos para a aplicação dojuramento e do ordálio surgiam com regularidade e o clero participava neles –provavelmentemaispornãopodernegaraideiadejustiçaimanentedoquepelaantiguidade e utilização generalizada dessas práticas.Mesmo nas regiões ondesobreviveramalgunsvestígiosdométodoromano,especialmentenaLombardia,poucafrenteselhesfezantesdoséculoXII,emboraaresponsabilidadedoréudefornecer provas fosse por vezes modificada para permitir ao queixoso fazer omesmo, e os ordálios parecem ter sido utilizados com menor frequência; noentanto,osistemadosjulgamentosdeDeusmanteve-seemusouniversalportodaaEuropa.

Emcertostribunais,principalmentenoseclesiásticos,eramaindavisíveisalgunsvestígios do antigo procedimento romano.A forma de processo conhecida porinquisito–oiníciodeumaaçãoporumfuncionário,arecolhadeprovasdofactoededepoimentosdetestemunhaseasentençaproferidapelojuizencarreguedainvestigação erautilizadanumnúmerolimitadodecasos.CarlosMagnoutilizoueste processo, mas não em larga escala, e o sistema de procedimento e dejurisdiçãofoi-seafastandodainquisitoentreosséculosIXeXII.

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Paraqueoantigosistemapudessesersubstituído,foinecessárioqueocorressemmuitasmudançasdistintas:todoumsistemadeantigoserespeitadosmétodosdeprocedimento e os pressupostos culturais que estes refletiam tiveram de sereliminadose substituídos;anoçãode justiça imanente,ou julgamentodeDeus,teve de dar lugar a uma noção de competência e autoridade jurídica humanaefetiva;etantooclerocomoosleigostiveramdecontribuirparaestasmudanças.Ao longo do século XII, exceto numa reduzida e especializada categoria decasos,estastrêsmudançasocorreramrealmente.Oantigosistemadeprovasdeulugar a doismétodos distintosmas igualmente revolucionários, os do processoinquisitórioedojúri;oidealdeumajustiçaaoalcancedadeterminaçãohumanaacabouporterumalargaaceitação,emparticularcomacriaçãodeumacarreirajurídicaecomauniformizaçãodosnovosmétodos;tantooseclesiásticoscomoosleigoseruditosafirmavamacharrepugnanteaideiadejustiçaimanente,retiraramaosmétodosanterioresasuadimensãolitúrgicae,emseguida,desenvolveramumassombrosodesmentidoteológicodasuaeficácia.

A revolução não teve lugar apenas numa área da vida social ou por umúnicomotivo.NãofoiapenasoressurgirdoestudoedaaplicaçãododireitoromanonoséculoXIInemumabandonodeprimitivaspráticasbárbarasqueprovocouestasmudanças,mastambémumacomplexacombinaçãodemudançasnasociedadeena autoridade política que influenciou de diversos modos o novo processojurídico. Alargaram-se os círculos onde se aplicavam as práticas jurídicashomogéneas, àmedidaquepapas, reis e príncipes territoriais iamcentralizandomuita da sua autoridade; durante este processo centralizador, a aplicação dodireito foi passando cada vezmais para asmãos de especialistas e, a partir doséculo XII, de especialistas instruídos que descobriram inconsistências eprincípios contraditórios e impuseramumdeterminado tipo de racionalidade aoprocessojurídico.Osespecialistastambémescreviam.Ainfluênciadaliteratura,desdeosdocumentosescritosatéaostratadosespecializadossobreoprocesso,foienormeapartirdemeadosdoséculoXIIeparece terdesempenhadoumpapelessencialnamudançanãosódanaturezaedaformadopensamentosocial,mastambém de pormenores específicos do processo. A escrita traz consigo aracionalidade.AsescolaseostribunaisdoséculoXIIestavamrepletosdaquelesquetinhamestudadológicaformaleaaplicavamaproblemaspráticosdefontesantagónicas e insistiam que ela devia guiar a legislação e o funcionamento dodireito.

Ahistóriadestastransformaçõestemsidocontadacomfrequênciaecomrigor;àmedida que foram ocorrendo, um novo sistema de processo jurídico canónicoromanoveio substituirosantigos julgamentosdeDeus.Oprocesso inquisitóriosuplantouoprocessoacusatório.Queroprocessoseencontrasse totalmentenas

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mãosdeumúnico juiz,comonosistema inquisitório,oudivididoentreumjúriquedecidiaumveredictoeumjuizqueimpunhaumapena,comonosistemadejurados,omundodaexperiênciahumanaexigiaqueseprocurasseobterprovaseque estas fossem apresentadas e examinadas, que as testemunhas fossemclassificadas e interrogadas sob juramento e que os réus dispusessemde certosmeiosracionaisdedefesacontraasacusações.

Àmedida que cada um dos antigos processos ia sendo abandonado, subsistia,evidentemente,umagrandeincertezaquantoaosnovos.

À medida que novos processos iam substituindo outros mais antigos, elesprópriosagoratambémsobsuspeita,aúnicaespéciedecertezaquesemantinhaintacta era o valor da confissão. Na verdade, e muito resumidamente, pode-sedizer que o valor atribuído à confissão oferecia um certo apoio aos novosprocessosemdesenvolvimento.

A confissão ascendeu ao topo da hierarquia das provas e aí se conservou atémuito depois do processo inquisitório canónico romano e o processo dejulgamentocomjuradosse teremimplantadofirmemente.Tantoparaos juradoscomoparaosleigos,aconfissãoeraareginaprobationum:arainhadasprovas.Apesarde todas as ambiguidadesqueacompanhavamaobtençãoe análisedasprovas, odepoimentodas testemunhas e a imprevisibilidadede juízes e júris, aconfissão proporcionava um recurso que, em certos casos, principalmente nosmais graves, chegava a ser exigido. É da importância da confissão que vaidepender, se não o ressurgimento, certamente a propagação e a integração datorturanossistemasjurídicosdoséculoXIII.

Oregressodatortura

Com uma reduzida implantação no século IX, o processo de quaestio(investigação)continuouaserraramenteutilizadoatéaoséculoXIInostribunaisseculares,emboraoseuusopareçater-segeneralizadonostribunaiseclesiásticosduranteomesmoperíodo.Umadas razõespara isto era amaior aceitação, porpartedostribunaiseclesiásticos,dadoutrinadamalafama,ou«máreputação»,oque permitia que um juiz eclesiástico chamasse perante si um suspeito sem apresença ou a existência de um acusador. Os tribunais eclesiásticosdesenvolveram igualmente a doutrina da notoriedade dos crimes, que permitia

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tambémao juiz eclesiástico iniciar o processo semumacusador.Noções comoestas começaram a estabelecer distinções jurídicas entre homens livres, e aassociaçãoeclesiásticadanoçãodemalafamadosFrancosedepovosposteriorescom a antiga doutrina jurídica romana de infâmia fez enfraquecerconsideravelmenteanoçãodeinviolabilidadedoréu.Estasforampreservadas,apartir de meados do século IX, na influente compilação canónica atribuída aSantoIsidoro.Nostribunaiseclesiásticos,pelomenos,ohomemdemáreputação,o anglo-saxónico tihtbysig ou ungetreowe, o escandinavo nithing, tinha muitadificuldadeemintentarumprocessoouemprestardeclarações,especialmentenostribunaiseclesiásticos.Talhomemnãopodiaentrarparaumaordemreligiosaesabia que os tribunais eclesiásticos conseguiam diminuir ou destruir a sua boareputação com maior eficácia do que os tribunais seculares. PrecocementedesenvolvidaentreosséculosIXeXIInodireitoeclesiástico,anoçãodainfâmiafoi tambémrealçadapelo recomeçodoestudododireito romanoapóso séculoXI.A infâmia romana implicava severas restrições sociais; omesmoaconteceucomaposteriordoutrinamedieval, incluindooestabelecimentodeumaespéciedehierarquiaderéusemsubstituiçãodopressupostohomogéneodacondiçãodehomemlivre.

DasmudançasjurídicasocorridasentreosséculosIXeXIII,odesenvolvimentode uma doutrina da infâmia, mais elaborada do que a dos Romanos, foiparticularmente útil e versátil. Perante ela, um acusado encontrava-se menosprotegidodoqueoutroraporpressupostosconvencionaiseatépelo julgamentode Deus. Em 1166, nas Constituições de Clarendon, o rei inglês Henrique IIdeclarou que mesmo se aqueles que tivessem má reputação, maldosamentedifamadospelodepoimentodemuitas testemunhas,conseguissemsobreviveraoresultado favorável do ordálio, deviam, no entanto, abandonar para sempre oreino. Juntamentecomoprocesso inquisitório, adoutrinada infâmiacontribuiuparaasubstituiçãodeumuniversojurídicoporoutro.

Arevoluçãojurídicademoroumaisdeumséculoarealizar-se.

Pareceque,deumamaneirageral,oseunovoprocessoseimplantouantesdeatorturasetornarpartedele.Doisoutrosaspectosnecessitamserconsideradosemprimeirolugar:opapeldaconfissãoeoproblemadaprova.

Apesardetodasassuasimperfeições,maisclaramentedenunciadasaolongodoséculoXII,osmétodosarcaicos– juramentos,ordáliasecombates judiciários–conduziam a decisões definitivas. Chegar a decisões igualmente definitivas apartirdodepoimento,dainvestigaçãodetestemunhas,júrisemagistradosparecia,pelomenosatémeadosdoséculoXIII,de longemenosseguroemaisperigoso

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paraoréu.Porconseguinte,emalgunscasos,ainvestigaçãosópodiaserutilizadacomométodoquandooréuconcordava, talcomo,aprincípio,aconteciacomojúri(outribunal)ordinárioemInglaterra.

Alémdisso, nos crimes capitais, era segundo estas novasnormasquepassou adecidir-se a vida e amorte, e levoumuito tempo a desenvolver-se um sistemaconvincentedeprovas.Alguns juristasargumentavamqueasdecisõesbaseadasna investigação deviam conduzir apenas a punições menores. Durante muitotempo,ascompetênciastécnicasnecessáriasparaefetuarumainvestigaçãoforamdifíceisdeadquiriredeaplicar.Talcomoapareciamtantoréusinfamescomodeboafama,tambémapareciamtestemunhasdeconfiançaetestemunhasduvidosas,eosjuízes,demandantesejúrissabiam-no.Paradoxalmente, embora as várias formas de investigação produzissem tiposinteiramente novos de réus, de casos e de testemunhas, uma informaçãomuitomais vasta do que alguma vez surgira no julgamento habitual, faziam tambémaumentaroreceiodoerro.Aconfissão,outroraapenasumdosváriosmeiosparacorroborar uma acusação segundo os antigos métodos, era agora mais do quenunca um meio de vencer essa incerteza. Os funcionários judiciais e astestemunhas só nomomento do crime conseguiam surpreender alguém com asmãosmanchadasdesangue.Masumapessoapodiaconfessaremqualqueraltura.E,aolongodoséculoXII,aconfissãosacramentaleasdoutrinasdapenitênciavoluntária desenvolveram-se rápida e elaboradamente. Com a confissãosacramental (tornadaobrigaçãoanualpara todososcristãosnoQuartoConcíliode Latrão em 1215) já desenvolvida como uma das duas principais arenas dodireito canónico (sendo a outra o próprio processo do direito canónico), aconfissãopassouadesempenharumpapelessencialemmuitasáreasdavidadoséculo XII. Não tardou muito que se tornasse também essencial em casos decrimesgraves.

Postosperante aperspectivado testemunhopúblico contestadopelo réu, oudotestemunhosecretopostoemdúvidapelojuiz,eperanteumasériedeprovasquetinhamdeseraindaselecionadasquantoàconfiançaecredibilidade,osjuristaseosmestresdedireitodosfinaisdoséculoXIIedoséculoXIIIdavamàconfissãodo réu o máximo valor. Abaixo dela ordenava-se, entre 1150 e 1250, umahierarquia de provas. Em particular para os crimes capitais, esta hierarquia deprovasdeviafornecerasinformaçõesessenciaisparaautilizaçãodatortura.

Na doutrina das provas desenvolvida durante o século XIII, apenas duas sedestacaram.O réupodia ser condenadopor intermédiododepoimentodeduastestemunhasocularesoupormeiodaconfissão.

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Casoaconfissãonãosurgisseeseexistisseapenasumaounenhumatestemunha,podia-serecorreraumasériedeindicia,provascircunstanciaisqueconstituíssemumaprovaparcial.Mas, semumaprovacompleta,nãosepodia fazerqualquercondenação e nenhuma combinação de provas parciais podia constituir umaprova completa. Assim sendo, sem uma confissão e sem duas testemunhasoculares, o juiz dispunha apenas de uma combinação classificada de provasparciaise,porconseguinte,nãoerapossívelqualquercondenação.Pararesolveroproblemadafaltadeumasegundatestemunhaocularedaexistênciademuitosmas sempre insuficientes indicia, os tribunais tinham de recorrer ao únicoelementoquepossibilitava totalmenteacondenaçãoeapunição:aconfissão.Epara se obter a confissão utilizava-se uma vezmais a tortura,mas pormotivosmuitodiferentesdosdoantigodireitoromano.

Mas isto tem sido antecipar um pouco a história. Estes acontecimentosabrangerammaisdeumséculoeesseséculoviunasceroutraspreocupaçõesquediziamtambémrespeitoaquestõesligadasaoprocessojurídico.Primeirosurgiudenovooestudododireitoromano,comotrabalhodeIrnérioemBolonha,porvolta de 1100. A princípio, na verdade durante meio século, os estudiosostrabalharamsimplesmentenareconstruçãoeexplicaçãodoCorpusIurisCivilis.OdireitoromanoeraaindaconsideradocomoestandoemvigoremalgumasregiõesdaItáliaedoSuldeFrança,emboraamaiorpartedassuascláusulastivessehámuito caído em desuso. E os juristas eruditos continuavam a considerá-lo umaexpressãodesupremadialéticajurídica,querestivesseounãoexplicitamenteemvigoremdeterminadaregião.Naverdade,emmuitosdosprimeiroscomentáriosdoséculoXII,oscapítulos relevantesdoDigestoedoCódigoque tratavamdatortura não eram simplesmente comentados e, provavelmente, não eram sequerensinados.MasàmedidaqueoséculoXIIfoiavançandoeasmudançasacimadescritas foram tendo lugar, o direito romano começou a influenciar todos osdireitos da Europa e não apenas o de França e Itália. Em primeiro lugar,influenciou o direito da Igreja, dado que o direito romano acabou por ser umaintrodução ao direito canónico; em segundo lugar, influenciou todas asautoridadesjurídicascentralizadoras,querestasoadotasseminteiramenteounão,mesmonaquelespaísesemque, talcomoemInglaterra,acabariaporprevaleceroutrosistemageraldedireito.Asdoutrinasrelativasà torturanodireitoromanoestavam à disposição dos europeus quando estes precisaram delas, mas taisdoutrinas não se impunham aos reformadores jurídicos, nem ninguém eraobrigado a começar a torturar os réus só porque o direito romano continhadiversascláusulasnessesentido.

AsprimeirasreferênciasàtorturanasfontesdosfinaisdoséculoXIeprincípiodoséculoXIIsãoexplícitas:estáreservadaaoscriminososdeclaradoseaos«homens

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desprezíveis»,vilissimihomines:«Oshomensquevivemhonestamenteequenãosedeixamcorromperporhonrarias,favoresoudinheiropodemseraceitescomotestemunhas com base apenas no seu juramento. Contudo, os homensdesprezíveis, os facilmente corruptíveis, não podem ser aceites [comotestemunhas] com base apenas no seu juramento, mas devem ser sujeitos atorturas,istoé,aojulgamentodofogooudaáguaaferver.»NestepassodoLivrodeTbigen,decercade1100,osvulgaresordáliossãoreferidoscomo«tortura»ereservadosaumaclasseespecíficadetestemunhas.Omesmotextoafirmanoutrolocal:«Umescravonãodeveseraceiteportestemunha,massimsujeitoaprisãoouasuplícioparaqueaverdadepossaserapurada,talcomonocasodosladrõese

Dos salteadores e de outrosmalfeitores da pior espécie.»Outras circunstânciasdeste ordálio-tortura encontram-se nas leis do Reino Latino de Jerusalém. TalcomoFiorelli eoutros salientaram,aconcepçãodoordálio judiciárioparece tercomeçadoamudarapartirdos finaisdoséculoXl.Mas isto teveantecedentes.UmadiamentoaodireitodosVisigodosdeterminaqueumhomemlivreacusadodeumcrimetinhadesersubmetidoaoordáliodaáguaaferverparasedecidirseos seus interrogadores deviam proceder à tortura. Mas a torrente de literaturajurídica que começou a emanar das escolas emestres deBolonha no início doséculo XII começou a caracterizar estes aspectos confusos do procedimentocriminaleseparoudosantigosordáliosadefiniçãojurídicadetortura,utilizando,para as suas definições, os textos recentemente lidos noCódigo e noDigesto.AindaquenemtodososcomentadorestratassemdoscapítulosDequaestionobus,eemborasejaporvezesdifícilestabeleceradiferençaentrematériadeensinoedescriçõesouprescriçõesefetivasdepráticajudicial,oensinoeapráticaparecemter-seaproximadomuitonoiníciodoséculoXIII.

OtextomaisimportanteaesterespeitoéaSummadograndeadvogadoromanoAzo,umaobraescritaporvoltade1210.Otextoéimportante,talcomosalientaFiorelli (LaTortura, I,123-4),«nãosópela suaenormequantidadededadosecitações, nempelaprofunda influênciaque aspáginasdestaobra exerceramnaposterior doutrina, uma vez que foi reeditada, meditada e citada ao longo dosquatrocentosanosqueseseguiramàmortedoseuautor,comoseestecontinuasseaindavivo,masporqueéaúnicaobraquerestoudoperíodoanterioràconclusãodos comentários». O domínio que Azo tinha desta matéria, o modo como aapresentoueoseuconhecimentodapráticajudicialdasuaprópriaépocafazemda sua Summa omais antigo tratado existente que discute a tortura como umincidente jurídico na história da Europa. Outros advogados romanos, desdeRoffredodeBeneventoeAcúrcioatéTomásdePiperataeAlbertoGardinomaispara o fim do século, alargaram e desenvolveram consideravelmente a obra de

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Azo.

A este respeito, os advogados romanos foram muito mais longe do que osestudiososdodireitoeclesiásticodoséculoXII.Omaisnotáveldestes,Graciano,cujaConcordiadiscordantiumcanonum,ouDecretum,obraescritaporvoltade1140,setornounomanualbásicodedireitocanónicodurantequaseoitoséculos,afirmouclaramenteque«aconfissãonãodeveserarrancadapormeiodatortura»,fazendoassimecodeséculosdeproibiçãoeclesiásticada tortura.Noentanto,apartirdemeadosdoséculoXII,oscanonistaspassaramaconsiderarasdoutrinasdetorturadodireitoromanoe,naprimeirametadedoséculoXIII,aprovaramasuautilizaçãonoprocessodedireitocivil.

Asprimeirasreferênciasàpráticadatorturaocorrem,contudo,inteiramenteforadasestruturasjurídicaseclesiásticaseacadémicas.

Em1228,oLiber iuriscivilisdacomunadeVeronaconferiaaogovernadordacidade poderes para, em casos duvidosos, procurar obter provas por meio doduelo,dequalqueroutrojulgamentodeDeusoupormeiodatortura.NoiníciodoséculoXIII,éevidenteque,emcertoscasos,atorturadeviaassemelhar-semuitoaoordálio:Deusfortaleceriaosqueeramjustosparaqueconseguissemresistir-lhe.Parecenãohaverdúvidadequeaquelesquesãoreferidoscomoosprimeirosautilizar a tortura sãoosmagistrados locais, como, por exemplo, o podestà deVerona em 1228, ou os oficiais do conde da Flandres por volta de 1260.Algumas das referênciasmais antigas à utilização da tortura indicam, portanto,queestafoiintroduzidacomoummétodopolicial, talvezmesmoantesdehaverqualquer julgamento, e por funcionários laicos. Certas restrições das leis deVeronaedeoutrascidades-repúblicaitalianasedaFlandresduranteoséculoXIIIsugeremoutras atitudes para com ela. EmGante, em 1297, o conde e os seusoficiaisestavamproibidosdetorturarumcidadãodacidadesemoconsentimentodo conselhomunicipal.EmVercelli, em1241, ninguémpodia ser torturado«anão ser que seja um criminoso, ladrão ou um homem de má reputação». Àmedidaqueospoderespoliciais foramaumentando,a tortura informalpassouaserutilizadaapartirdoiníciodoséculoXIII,masaprincípiocomoumméthodepolicire e tendo só muito mais tarde sido assimilada no processo jurídico. Oscidadãos contestavam o seu emprego, pelo menos contra concidadãos de boareputação,masaprovavam-nanocasodaquelesque,deummodogeral,gozavamde má reputação. Os magistrados necessitavam de confissões e, tal comodescobriram ao longo do século XIII, a tortura conseguia arrancá-las comfrequência.NascidadespopulosasecadavezmaisdesenvolvidasdaFlandresedaItáliadoséculoXIII,aaplicaçãodeumdireitopenalcentralizadoeramuitasvezesda responsabilidadede funcionários judiciaisque tinhammuitoque fazer

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atéumcasoirajulgamento.

Nestasprimeirasaçõesdostribunaisseculares,atorturaeraprovavelmenteusadacomo um método policial para que, no caso de não existirem suficientestestemunhasocularesououtrosindicia,oprocessopudesseiniciar-seapartirdeumaconfissão.Noentanto,umavezqueaconfissãosetornaraessencialparaoprópriojulgamento,osmétodosutilizadosparaaobtertinhamdeserconsideradoscomofazendopartedoprocessojurídicoe,porconseguinte,foradocontrolodosoficiaisdocondeoudopodestà.Nestascircunstâncias,aolongodoséculoXIII,desaparecemostiposdeprivilégiosexigidospeloscidadãosdeGanteedeoutrascidades.Umavezqueatorturasetornoupartedoprocessojurídico,passaramaser reconhecidos menos privilégios devidos à classe ou à posição social. Umhomempodia, a princípio, estar isento emvirtudeda sua reputaçãode cidadãoíntegro e de pessoa de confiança, mas nem mesmo este estatuto conseguiusobreviver durante muito tempo à generalização da tortura nos julgamentos.Duranteesseprocessohouve,defacto,restriçõesàtortura,masnãodestegénero.

Aoserintroduzidanocorpodoprocessojurídico,atorturatevedeocuparoseulugar dentro da estrutura da confissão e da lei das provas. Tanto o direitoeclesiástico como o direito secular defendiam, por exemplo, que nenhumaconfissãopodiaserobtidapelaviolência.

Atorturanãoera,porconseguinte,ummeioparaobterprovas,massimummeioparaobterumaconfissão.Oseuobjetivonãoeraobterumaconfissãoforçadadeculpa,masumdepoimentoexplícitoquecontivessepormenoresque«talvezmaisninguém conhecesse para além do criminoso». Era natural que estes objetivosfossematingidosdevidoàscircunstânciasquedeterminavamasuautilização.Emprimeirolugar,tinhadeexistirpelomenosumatestemunhaocularouumacausasuficientemente provável para que o réu tivesse cometido o crime; a causaprovável era determinada pelo número de indicia específicos classificados eexaminadosdeacordocomométodoaceite.

Emsegundo lugar,quandosedecidiaaplicara tortura,o tribunal tinhadeestarrazoavelmente convencido de que iria ser obtida uma confissão. Em terceirolugar,eracostumeaconselharesuplicaraoréuquefizesseumaconfissãoe,paraisso,erafrequentemostrarem-selheosinstrumentosdetorturaantesdeestaseraplicada.

R.C.VanCaenegem(LaPreuve,p.740) resumiuoprocessoquetemosestadoadescrever:

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Em última análise, foram as necessidades da prática criminal e os novosprincípios para a perseguição de criminosos que foram responsáveis peloreaparecimentodatorturanaEuropaenãooreatardoestudododireitoromano.Parece que o ressurgir do direito romano e a aceitação da tortura na práticaeclesiásticaresultaramdadifusãodoprocessoinquisitórionaEuropa.

Comparadocomasformasmaisantigas,onovoprocessoinquisitóriopareciadelongemenos repugnante ao seus contemporâneos do que a princípio nos podeparecer.Eracertamentemaisprofissional.

O processo inquisitório apresentava muitos aspectos que poderiam parecerfamiliareseaceitáveisaumlitigantemoderno:arevogaçãodeacusaçõesrígidaseexcessivamenteconvencionaisqueerampronunciadasecontestadasdeummodoritual;aapresentaçãopúblicadedepoimentoseaanálisedasprovasdeambasaspartes;apresençadeumjuizexperientequepodiatambématuarequitativamenteao examinar provas irrelevantes. Pelo menos no seu início, no século XII, oprocesso inquisitorial parecia refletir precisamente a confiança na razão e oconceitomaisalargadodaordemsocialqueoshistoriadoresenalteceramnoutrosaspectosdavidaduranteesteperíodo.Alémdonovocriminoso,donovomagistradoedonovoprocesso,oséculoXIIassistiu tambémaoaparecimentodenovas (ouaparentementenovas) formasdedissidência religiosa. Em certas áreas específicas, particularmente nas escolas enas universidades, havia uma enorme liberdade de discussão e de debate,masentre aqueles que eram considerados como não possuindo qualificaçõesprofissionaisparaodebate,principalmenteosqueseopunhamaouniversalmenteconhecido ensino magisterium dos bispos e pastores, o aparecimento dadissidência religiosa, quer dirigida à estrutura e aos poderes da Igreja ou aopróprio dogma, era entendido pelo laicado e pelo clero ortodoxo como muitomaisperigosodoquequalquercrimeordinário,pormaisdesprezívelquefosse.Aaparenteintensidadedadissidêncianasociedade,arecém-estabelecidaautoridadeda Igreja e do clero e os enormes problemas relativos à descoberta do crimeintelectualgeraramumaenormepreocupaçãoeclesiásticae laicae,pordiversasrazões,onovoprocessoinquisitório(especialmentenoscasosemqueeradifícilencontrar acusadores ou em que estes tinham relutância em testemunhar)proporcionavaumaatraenteabordagemdoproblema.

O próprio processo, ou-melhor, a sua forma primitiva, tinha evidentementeexistido durante séculos, nos tribunais eclesiásticos, como ummétodo habitual.Em muitos casos quase não havia necessidade de processo, visto que muitosdissidentessedispunhamaproclamarespontaneamenteassuasconvicções.Nosprincípios do século XI e no século XII, excetuando casos esporádicos de

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violênciademassas,osbisposutilizavamgeralmenteaexpulsãodadioceseouaexcomunhãocomotratamentodosheregesconfessosoudequalqueroutromododescobertos.AlegislaçãopapaleconciliardoséculoXIIencorajavaváriasoutrasformas de disciplina eclesiástica, mas nenhuma era mais drástica do que aexcomunhão. Mesmo o primeiro decreto papal contra os hereges de toda aEuropa, o Ad abolendam de Lúcio III, em 1184, limitou-se a estabelecer acategoria de contumácia para os hereges praticantes. A disciplina eclesiásticavariava,emsuma,deépocaparaépoca,delugarparalugaredebispoparabispo.

As missões predicantes e de conversão, as visitas episcopais e a criação dasordensmendicantes representamuma resposta de ummodo geral desprezada eprovavelmente eficaz durante o século XII. Representam a via da persuasio,«persuasão».

Asmedidastomadascontraosheregespelasautoridadeseclesiásticascentraiseapartir da segunda metade do século XII baseavam-se largamente nosconhecimentoscadavezmaissofisticadosdodireitocanónicouniversal.Odireitocanónico,deummodogeraldifundidoeaplicadonamaiorpartedasregiõesdaEuropaOcidentalentreosséculosVIeXII,começouaserconsideradocomoumúnico direito universalmente aplicável durante os conflitos entre papas eimperadoresnosfinaisdoséculoXIeiníciodoséculoXII.Porvoltade1140,umestudioso bolonhês, Graciano, compilou um vasto número de textos de fontesmais antigas, organizou-os analiticamente e comentou-os como se fossem umcódigo. O Decretum de Graciano, como acabou por ser designada a suacompilação, apontava as deficiências do direito tradicional e também as suasvantagens, e os seus sucessores, incluindo legisladores papais e concílios daIgreja, aperfeiçoaram o direito e desenvolveram uma jurisprudência eclesiásticacomparável–eemalgunscasossuperior–àdodireitoromanodoséculoXII.

Gracianoeosseussucessoresreconheceramnaturalmenteodireitoromano,emespecial porque muitas das suas partes tratavam de questões eclesiásticas,incluindo a legislação imperial contra a heresia e as definições do estatutoeclesiástico.Emcertosaspectos,oscomentárioseostextosdeGracianosobreatorturacontinuaramumalongatradiçãoderejeiçãoeclesiásticadasuapráticaemquestõesdaIgreja.Gracianoinsistiaqueosclérigosnãopodiamaplicaratortura(Decretum D.86 c.25) e fazia eco da antiga prescrição papal de que taisconfissões não deviam ser arrancadas à força, mas sim espontâneas (C.15 p.6d.1). Mas Graciano reconhecia algumas excepções a esta regra, igualmentetradicionais.Aceitava que os acusadores de um bispo pudessem ser torturados(C.5 q.5 c.4), que, em certos casos, as pessoas de classes mais baixas dasociedade pudessem ser também torturadas (C.4 qq.2-3), e que os escravos

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pudessemsertambémtorturados(C.12q.2c.59).Gracianoregistouigualmenteaprática no direito romano; os seus sucessores, tanto estudiosos como prelados,reconciliaramigualmenteodireitoeclesiásticocomaspráticascontemporâneasdodireitoromano.Agrandecompilaçãodedireitoqueseseguiu,oLiberExtradeGregório IX, de 1234, continha diversas bulas papais do século XII que oratificavam(X.3.16.1;X.5.41.60).

Nos meados do século XII, o direito canónico passou, por conseguinte, a seruniversalmente conhecido, estudado e aplicado, aproximando-se mais dospreceitosdodireitoromano,especialmenteemáreasdeinteressecomumcomoassançõescriminaiseoprocessojurídico.

Énestecontextoquedevemosconsiderarahistóriada legislaçãoedoprocessoeclesiástico contra os hereges. Foi jámencionada a decretalAd abolendum deLúcio III, de 1184,mas deve referir-se agora que a bula papal não estabeleciaapenas a categoria de contumácia para os hereges, mas insistia também noestabelecimento de tribunais inquisitoriais episcopais em todo omundo cristão.NalegislaçãodoQuartoConcíliodeLatrão,em1215,foramreiteradasasantigascondenaçõesdeheresiae,naépocadoconcílio,adoutrinajurídicadeinfâmiafoiinfligidaaosheregestantonodireitocanónicocomonosecular.Em1190,opapaInocêncio III, baseando-se nas leis relativamente recentes da traição do séculoXII,anunciou,nasuadecretalVergentisinsenium,queosheregeseramtraidoresa Deus, perfeitamente comparáveis aos traidores a César no direito romano,abrindoassimcaminhoanovassançõeslegais.Duranteasprimeirasdécadasdoséculo XIII, a Cruzada Albigense contra os hereges do Languedoc e asConstituições do imperador Frederico I continuaram a insistir neste ponto. AdecretalIllehumanigenerisdopapaGregórioIX,em1231,quepelaprimeiravezconferiu a um convento da ordem dominicana poderes para estabelecer umtribunalinquisitorialcujaautoridadedependiadiretamentedopapa,prosseguiualutacontraadissidênciaedesenvolveunovosprocessosparaacombater.

Em certo sentido, foi a incapacidade dos tribunais episcopais ordinários queintensificoualegislaçãoapartirde1184elevouàcriaçãodoinquisidoroficial.No segundo quartel do séculoXIII, o crime de heresia fora já equiparado aoscrimes de traição e contumácia na sociedade laica, o herege fora declarado«infame»e,porconseguinte,acategoriadeheresiapassaraaseridênticaàquelescrimes que, no direito secular, conduziam a graves sanções criminais e queexigiam a aplicação da hierarquia completa de provas e necessitavam daconfissão para se efetuar o julgamento. A inquisição eclesiástica não criou oprocesso inquisitório, com o recurso à tortura para assegurar a confissão, masadotou-o posteriormente para a heresia e para desenvolver vários métodos

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diferentesdeacombater.Apartirde1230,oprocessocanónicoromanopassouaserutilizadoindiferentementenostribunaiseclesiásticoseseculares.

Ajurisprudênciadatortura

EntreasegundametadedoséculoXIIIeosfinaisdoséculoXVIII,atorturafezpartedoprocessocriminalhabitualdaIgrejalatinaedamaiorpartedosestadosdaEuropa.Apósassuasmanifestações

IrregularesnoséculoXIIedoseuaparentepapelinicialcomométodopolicial,foiincluídanosprocedimentoslegaisregularesdodireitocontinental,adquiriuasuaprópria jurisprudência e tornou-se realmente numa matéria erudita entre osjuristas.Umadasmaissurpreendentescaracterísticasdatortura,paraalémdoseupróprio aparecimento e emprego, é o fascínio que desperta, como objeto deestudoedeexposiçãoacadémica,ageraçõesdeadvogadosede juristas,desdeAzo e do autor anónimo do Tractatus de tormentis, por volta de 1263-83, aojuristaconservadorfrancêsPierreFrançoisMuyartdeVouglans,nasvésperasdaRevoluçãoFrancesa.Os arquivos dos estados europeus referemos primeiros eumaextensaemuitopormenorizadaliteraturaaludeaosegundo.Consideremos,emprimeirolugar,anaturezadasleisdatorturae,seguidamente,ajurisprudênciadatortura.

Porquaestiodeveentender-seo suplícioeo sofrimentodo [infligidoao] corpocom o fim de se descobrir a verdade. Por conseguinte, nem o simplesinterrogatório nemas ameaças fortuitas se incluemneste edicto…Dadoque aviolência e o suplício são, portanto, as características da quaestio, é assim quequaestiodeveserentendida.

Em todos os sistemas jurídicos existe sempre um maior ou menor grau dedivergência entre estas duas áreas; no caso da prática e da teoria da tortura, adivergência é um pouco mais profunda. Por um lado, alguns eruditos queestudamprincipalmenteateoriavêem-natãodiferentedapráticaapresentadaquea consideram uma hipocrisia judicial; outros consideram a teoria um modeloelevado que nunca chegou a ser posto em prática pelos tribunais. No caso daprática,oshistoriadoressociaispoucomaisvêemnelaparaalémdebrutalidadeesadismoincontidos,aopassoqueoshistoriadoresjurídicosutilizamumpadrãodemedida e julgamento que tem frequentemente pouca ou nenhuma consideração

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pelasquestõessociaismaisvastasenvolvidas.

Nas fontes latinas e vernáculas, os termos utilizados são tortura, quaestio,tormentum e, ocasionalmente, martyrium, cuestion, questione, questiono. Emalemão, a forma latina Tortur era utilizada com menor frequência do que apalavra indígena alemã Folter, e outros termos designavamMarter e peinlicheFrage (dequaestio); em francês, alémde laquestion, eramutilizadosos termosgehineougene(deGehenna).Alémdisso,amaiorpartedosvernáculoseuropeusdesenvolveram idiomas especializados para descrever formas particulares detortura,muitos deles eufemismos.No séculoXIII, quando adquiriu forma umadoutrinajurídicaespecíficadatortura,osespecialistaspuderamenunciarafamosadefiniçãodequaestiodeUlpianocomosefossemtãoeruditoscomoele:Os capítulos seguintes do Código e doDigesto foram interpretados de acordocomeste excerto, e asdefiniçõesde torturaque se seguiram fizeramecodadeUlpiano.Azochamava-lhe«ainvestigaçãodaverdadepormeiodosuplício»;eoTractatus de tormentis, dos finais do séculoXIII, alterou apenas ligeiramente aafirmaçãodeUlpiano:«umainvestigaçãoqueéfeitaparaseobteraverdadepormeio do suplício e do sofrimento do corpo». Alguns juristas, seguindo aetimologiapeculiardeIsidorodeSevilha,enciclopedistadoséculoVII,referiramtambém as consequências mentais da tortura, baseados na suposição de quetormentum teriaderivadode torquensmentem,«a torçãodoespírito:dadoque,atravésdosofrimentodocorpo,oespíritoficaperturbado».

OsjuristasdoséculoXIII,umavezdefinidaquaestio,debruçaram-sesobreasuanatureza e alguns consideraram-na ummétodo de prova.Mas não se deve dardemasiadaimportânciaàimprecisãodestetermo,dadoqueatorturaeradefactoummeio,ouumincidente,paraseobterumaconfissãoque,porsuavez,era,semdúvida, um método de prova. A literatura sobre a tortura revela que osmagistrados sabiamagora exatamenteoque era a tortura e por quemotivo erautilizada.

ApesardaconfusãoexistentenoséculoXIIentretortura,ordáliosepunições,ainfluência de juristas comoAzo, Tancredo, Inocência IV eHostiense, desde oinício atémeados do séculoXIII, originou o aparecimento de umadoutrina deprocesso canónico romano nas ações penais, que semanteve até aos finais doséculoXVIII.Oprofissionalismocadavezmaiordeadvogadosejuízes,opapeldas escolas e a proliferação de oportunidades profissionais nas cidadesautorizadasaelegeros seuspróprios juízeseaestabeleceras suaspróprias leismunicipais,contribuíramparaatransparência,generalizaçãoecarácterdefinitivodoprocesso.

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Dado que os desenvolvimentos posteriores obscurecem por vezes a formaprimitiva do processo, desde as modificações da Inquisição até às práticasrotineiras do período que se seguiu a 1450, talvez seja conveniente apresentarprimeiroasdoutrinasqueinformavamojuizdeumcrimeeque,aolongodeumprocessocomplexo,conduziamaumadeclaraçãofinaldeinocênciaoudeculpae,nosegundocaso,àpuniçãodapuniçãoprescrita.Dadaagrandevariedadedeaplicações específicas do direito na Europa Mediterrânea e Transalpina e asdiferentesépocasemqueasdiferentes regiões (incluindoaszonasque,comoaInglaterra, o rejeitaram em grande parte) adotaram na íntegra o processo, adescriçãoqueseseguetemdesergeral,baseadasimultaneamenteemdiferenteslegislaçõeseemdiferentesopiniõesacadémicas.Constituiapenasumaorientaçãoparaaanálisedatorturaemlugareseépocasespecíficas.

Um juiz podia descobrir a perpetração de um crime apenas de uma de trêsmaneiras:podiaser-lhecomunicadopelosseusprópriosfuncionários,quetinhamjuradoinvestigarcrimeseaquemojuramentoprofissionalprotegiadeposterioresacusaçõesdecalúnia;podiasabê-lopormeiodamáfamadeumindivíduo,pelosjuramentosdecidadãosrespeitáveisquetivessempresenciadoououvidocontarocrime;oupodiaterconhecimentodocasoparticularmentecomoindivíduo.Nestaúltimahipótese, emboraexistissealgumacontrovérsiaaeste respeito,o juizerageralmente considerado um cidadão conhecedor da reputação do réu e, porconseguinte,estavaincluídonasegundacategoria.Apósserinformadodequeocorreraumdelito,ojuiztinhadeindagarseissoerarealmenteverdade.Asuajustificaçãoparaofazereraorelatóriodosfuncionáriosouareputaçãodoréu.«Primeirotemdeseprovar»,diziaojuristaBártolo,«quefoirealmenteumcrime.»Ocrimetinhadeserpunível.Ojuizpodiaentãocitartestemunhas,ouvirdepoimentos everificar se surgiraumcasoprima facieparapossível incriminação de alguém. Esta parte era frequentemente chamadainquisitio generalis ou «interrogatório geral», seguia-se às denúncias iniciais epodiacomparar-seaumainvestigaçãomoderna.

Uma vez identificado o réu, iniciava-se a inquisitio specialis: o «interrogatórioespecial», ou «circunstanciado», que iria determinar a culpa ou a inocência doréu–ojulgamentopropriamentedito.Eraprecisoentregaraoréuumanotificaçãona qual estavam registados os pontos essenciais da acusação. A notificaçãolevava-o a tribunal e, numa semelhança residual com o antigo processoacusatório,ouareputaçãodoréuouoprópriojuizfaziamasvezesdoacusador.NoséculoXIV,todavia,surgiuopromotordejustiça,quepassouadesempenharestepapeletambémaconduzirocasocontraoréu.

(Como a tortura apenas podia ser invocada em casos cuja punição implicasse

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morte oumutilação, partimosdoprincípioqueo crimepassível depunição eraconsideravelmentegrave.)

Uma vez iniciada a inquisitio specialis, exigia-se que o juiz utilizasse todos osmeios possíveis para descobrir a verdade antes da aplicação da tortura. Estadoutrina,dequeatorturasópodiaserutilizada«quandoaverdadenãopudesseser esclarecida por meio de qualquer das outras provas», e a doutrina dahierarquiadasprovasregulares,desdeasduastestemunhasoculareseaconfissãoaté às «meias provas» e aos indicia, regiam qualquer decisão de aplicação datorturae,apartirdoséculoXIV,retiraramliteralmenteessadecisãodasmãosdojuiz. Dado que a tortura passara a ser considerada como um possívelmeio deação,tinhadeexistirumgrande,aindaqueincompleto,númerodeprovascontraoréu,algumasdelastalvezcircunstanciais,mastodaspresumíveis.Estasprovastinhamigualmentedeserconfirmadas:ainformaçãoacercadareputaçãodoréutinhadevir depessoas conceituadas; os depoimentosdas testemunhasocularestinhamdecoincidiremtodosospormenores;asprovastinhamdeseranalisadassegundoumconjuntoconhecidodecritérios.

Alémdisso,tinhadeserentregueaoréuumalistaescritadosindiciacontraele;este podia contra-interrogar as testemunhas de acusação; se o juiz decretasse atortura,oréupodiarecorreralegandoqueosindiciaeraminsuficientesouqueeleera uma pessoa isenta. As pessoas isentas, uma categoria extraída do direitoromano mas grandemente modificada na Idade Média, incluíam crianças commenosdeumadeterminadaidade,mulheresgrávidas,pessoascommaisdeumadeterminadaidade,cavaleiros,barões,aristocratas,reis,professorese,deacordocom algumas, mas não todas as opiniões, o clero. O recurso constituía umainterlocutóriaetinhadeserjulgadoantesdesepoderdarinícioàtortura.

A própria tortura era rodeada de protocolos: não podia ser cruel nem causar amorteoulesõespermanentes;deviaserdotipovulgar,desaprovando-seousodetorturasnovas;tinhadeestarpresenteumespecialistaemmedicinaeumnotáriotinhadefazerumrelatóriooficialdoprocesso.

Mesmonestascondições,aconfissãofeitasobtorturanãoeraválidaemsi.Tinhadeserrepetidaforadolocaldetortura.Seoréuseretratasse,podiaserrepetidaatortura,poisaconfissão inicialconstituiriaoutro indiciumcontraele.A reuniãodaspresumíveisprovasedaconfissãoratificadapermitiaqueojuizpronunciasseoveredictoequeocastigo fosse levadoacabo.Casoo juiz tivessevioladoasnormasdatortura,podiaserprocessadomaistardesegundooprocessosindicatus(uma análise formal dos atos de um juiz) quando terminasse o seu mandatojudicial.

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Esta breve descrição do procedimento criminal europeu tal como existiu porquasetodaaparteentre1250e1750baseia-senalegislaçãoenasopiniõesdosmais influentes estudiosos jurídicos e constitui um modelo segundo o qual sepodemcompararasatuaispráticas.

Tal comoos críticos têmhámuito referido, o processo inquisitório possui umatendência acusatória.Pormais restrições que sejam impostas à atuaçãodo juiz,questões como a sua análise dos indicia, o carácter sugestivo do interrogatórioacompanhadode tortura, a sua prontidão em aceitar uma confissão semdepoisconfirmar os seus pormenores e a tendência para torturar com crueldade paraobterumadeclaraçãodeculpaemvezdeumaconfissãocolocamosistemacontraoréu.Asprópriasadvertênciasexpressasnosmilharesdepáginasdedissertaçãosobreajurisprudênciadatortura,entreosséculosXIIIeXVIII, indicamqueosjuristas medievais e do início da época moderna estavam perfeitamenteconscientesdosperigosdosistema.

TambémelesfalavamdaresfragilisetpericulosadeUlpianoeconheciamaquilodeque falavam,mas trabalhavamnumsistemaemqueaconfissãoeraa rainhadas provas e, das duas, a confissão e o seu papel-chave no processo canónicoromanoparecemterexercidoamaiorinfluência.

É interessante comparar a atuação dos tribunais continentais com os de outrasregiõeseuropeiasquepassarampelamesmarevoluçãojurídica,masquesurgiramsemoprocessocanónicoromanoesemtortura.NaInglaterradoséculoXII,asConstituições de Clarendon determinaram que o rei e os seus funcionáriosreprimissemportodooreinocertascategoriasdecrimegrave.AInglaterrasaíradeumaguerracivildemaisdeumadécadaeossúbditosdeHenriquelI,nobresehumildes, pareciam estar mais do que ansiosos por ver reprimidas asconsequências criminosasda anarquia.O julgamento eo castigodo rei deviamrecair sobre todos aqueles que fossem acusados por um júri local de cidadãosrespeitáveis.Este,oantecessordojúrideacusação,acusavaréus,queeramentãodetidos para serem julgados por um juiz real itinerante. O ordálio da água foiutilizadonopróprio julgamentoatéà suaaboliçãoem1215.Nessaaltura,apósmuitasincertezaseespeculações,oreiHenriqueIIIpropôsojúriordináriocomoummeiointencionaldesedeterminaraculpaouainocência.

Estesacontecimentossãoantecedidospormaisdeumséculodenotávelhistóriainglesa: no reinado de Henrique I (1100-1135), poderosos funcionários reaistinham, sozinhos, levado a cabo algumas ações judiciais. Entre 1135 e 1166,manifestou-seemInglaterraumprofundodesagradopeloexercícioindependentede poderes judiciais por funcionários reais. Nos tribunais da Igreja, nos quais,

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historicamente, um grupo de clérigos legítimos, os testes synodales, outestemunhas sinodais, podiam acusar alguém de ummodo prescrito por certostextosbíblicos,verificara-seumaumento semelhantede acusaçõesporpartedefuncionários. Quando, em 1166, Henrique II publicou as Constituições deClarendon,nãorestabeleceuaaçãojudicial independentenemaacusaçãopelosfuncionáriosreais,mascriouumaespéciedeversãolaicadatestemunhasinodalno júrideapresentação,ou júrideacusação.O júrideacusaçãoapresentavaassuasacusações,nãoaumpoderosofuncionáriolocal,masajuízesitinerantes,quepodiam ir depois a tribunal por meio de um júri ordinário. O tipo de provasaceitável nestas circunstâncias era muito mais amplo do que aquele que eraaceitável noprocesso canónico romano.Asprovas circunstanciais podiam ir-seacumulando até um júri as considerar suficientemente convincentes para umacondenação–coisaqueumjuizdodireitocanónicoromanonãopodiafazer.Nãoexistiaumacusadorpúblicocontroladoporumsistemarígidodelimitaçõesqueexigiaa torturaquando levadoatéàs suasúltimasconsequências.O juiz inglêsnãodecidiadaculpaoudainocência–issocompetiaaojúridedeliberação.Comaliberalidadedasnormasinglesasdaprova,aausênciadeumacusadorpúblico,opapel diferente do juiz e a responsabilidade dos júris de acusação e dedeliberação, o lugar da confissão no direito inglês diminuiu de importânciarelativamenteaodireitodaEuropaContinentaleoproblemadatorturatornou-se,de ummodo geral, irrelevante.A tortura deixou de ocupar lugar no direito deInglaterraapartirde1166.Assim,apesardacrescenteacomodaçãoàtorturaporparte dos canonistas no séculoXIII (e o direito canónico vigorou de facto emInglaterra como por toda a parte) e apesar da discussão da tortura no LiberPauperum,deVacarius,umestudiosododireitoromanoemOxford,porvoltade1140, as reformas deHenrique II introduziram no direito de Inglaterra normasqueeliminaramousodatorturanosmesmosséculosemqueasreformasjurídicasdaEuropaContinentalcadavezmaisseaproximavamdela.

Emmuitasjurisdições,éclaro,sobreviveuoprocessoacusatório,aindaquesemordálios,omesmoacontecendoem relaçãoadelitosmenoresemzonasondeoprocesso canónico romano existia igualmente para crimes mais graves. Oschamados tribunais «feudais» mostraram-se relutantes em abandonar a suajurisdiçãotradicionaleassuasformastradicionaisdeatuaçãoesobreviveramemmuitasregiõesdaEuropaatéaofimdoséculoXVIII.Noutrasregiões,talcomonospaíseseslavosenaRússia,osprocessos racionaisdeprovasurgiram tarde,por vezes sob influência italiana, e coexistiam frequentemente com processosirracionaisdeprova,masdemodosdiferentesdorestodaEuropa.Porexemplo,nodireitolituanodoséculoXVII,atorturasópodiaserutilizadanaacusaçãodefurtoeapenasporinsistênciadoindivíduolesado.Sópodiaserutilizadaumavezeapenasdentrodoprazodeumanoaseguiraofurtoemquestãoedemodoa

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nãomutilarocorpodoréu.Seatorturanãoconseguisseprovocarumaconfissão,o queixoso tinha de compensar a vítima torturada com um pagamento emdinheiro.

Noutras regiões da Europa, o restabelecimento da tortura ocorreu durante umaépocaemque,tecnicamente,atorturanuncadeixaradeserutilizadanodireitodecertas regiões de Espanha, especialmente em Castela. Embora o Corpus IurisCivilis pareça não ter influenciado a Espanha visigótica, o antigo CodexTheodosianus fê-loeas suascausas relativamenteà torturaeramnumerosas.Atortura sobreviveu no direito castelhano, apareceu de ummodo bemvisível noFuero Juzgo de 1241 e ocupou um lugar proeminente na sétima partida doCódigodelasSietePartidas,deAfonsoX,em1265.EmAragão,pelocontrário,foiabolidaem1325.

EmFrança,umaordenancedeLuísIX,em1254,permitiaatortura,masproibiaque se torturassem «pessoas honestas de boa reputação, mesmo que sejampobres» com base no depoimento de uma única testemunha, a «meia prova»formaldoprocessocanónicoromanogeral.

NaAlemanha, a tortura émencionada nos estatutos deViena, nosmeados doséculoXIII,massobaformadeumaproibição:éproibidotorturaroréupormeiode fome, sede, correntes, calor ou frio, bem como forçar uma confissão deacusaçõesespecíficaspormeiodoespancamento.Qualquerconfissãotemdeserfeitaespontaneamente,natotalpossedasfaculdadesmentais,peranteumjuiz.Porvolta do século XIV, os códigos jurídicos regionais tinham desenvolvido umajurisprudênciamaiscompletadatortura,talcomofizeramosdireitosregionaisdaEuropa Central e Oriental, geralmente sob a influência do renascido direitoromano.AtorturaparecenãoterfeitopartedequalquerdireitoescandinavoatéaoséculoXVI,alturaemquefoiintroduzidasobainfluênciadenovoscódigosjurídicospenaisalemãesmaisambiciososeinfluentes.

O sistema até aqui descrito, quer no campo das provas irracionais quer dasracionais,possuitambémumadimensãosocial.Nomundodasprovasirracionais,as do combate judiciário e do juramento compurgatório parecem ter sidoespecialmente reservadas aoshomens livres, visto que apenasos homens livrespodiamandar armados e apenas a palavra de umhomem livre era consideradadignadecrédito.

Os homens que se defrontavam tinham tendência a considerar o combatejudiciárioumaformaadequadaàsuacondiçãosocialemuitostribunaisaceitaramistoao longode todaa IdadeMédia.Na realidade,ocombate judiciário, soba

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formadoduelo, tornou-senumdos sinais estáveis denobrezamuitodepois dofimdaépocadasprovasirracionaisemuitostribunaisproibiamaosservoseaoshomenslivresmuitopobresestemétododeilibação.Paraeles,estavareservadooordálio unilateral. Este rateio social dos processos de prova irracional, comovimos, estendeu-se ao sistema das provas racionais. As pessoas que eramconsideradas«honestas»,deboareputação,etalvezsuficientementeimportantespara o merecerem, eram as testemunhas ideais e, até certo ponto, réusprivilegiados. Emmuitas jurisdições, eram necessáriasmuitasmais provas paratorturarumcidadãoconsideradodoqueparafazeromesmoaumconhecido,oupresumível,patife.

Contudo, emmuitos casos, nemmesmo estas divisões conseguiram resistir aosefeitos niveladores da adoção do processo canónico romano. Uma vez que atortura fora admitida como parte habitual do processo, o privilégio tendeu aenfraquecer. Isto ocorreu provavelmente em primeiro lugar no caso de crimesparticularmentehediondosoudecrimesconsideradoscriminaexcepta–aquelescrimes cuja importância era tão grande que permitiam a dispensa do processojudicial normal para se conseguir uma condenação. A história do crimenexceptum não foi ainda escrita, mas é provável que também ele seja umdesenvolvimento do processo judicial do século XIII e que tenha surgido emtorno de delitos como a heresia, práticasmágicas, falsificação e certos tipos dehomicídioedetraição.Aquelesqueeramacusadospassaramaestarmuitomenosprotegidospela suaposição social.Nocasodepessoas isentas, por exemplo, alegislação posterior relativa à feitiçaria e à magia manteve a maior parte dascategorias excepcionais de pessoas que não estavam sujeitas a tortura, masexcluíaespecificamenteavelhicecomoummotivodeisenção.

Emresumo,opróprioprocessocanónicoromanocontinhatendênciasniveladorasque não existiam no antigo sistema das provas irracionais; além disso, oaparecimento de um conceito de infâmia, ou o de «crimes excepcionais»,contribuiu para acelerar esse processo nivelador. Esta é uma característicamarcantedahistóriajurídicadosséculosxveXVI.Umdosparadoxosdahistóriasocial do direito criminal do início da épocamoderna é que, embora tivessemdesaparecido algumas antigas distinções sociais e privilégios, este processonivelador sujeitou também muitas pessoas a métodos que inicialmente sedestinavamapenasàsclassesmaisbaixasemaisvergonhosasdasociedade.Porvolta do século xv, qualquer pessoa podia ser torturada, pois estavam firme eprofissionalmenteimplantadasasbasesdodireitocriminalmoderno.

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Ainquisição

Aparteanteriordestecapítuloocupa-sedadescriçãodatorturanosdireitosenajurisprudênciadoperíodoqueseseguiuaoséculoXIII.Talinteresselevoualgunshistoriadores jurídicos a enaltecer a sensatez e a sobriedade dos séculosXIII eXIV e a condenar as épocas posteriores pela perversão daquilo que fora umsistemajurídicoracionaleprotetor.WalterUllmanafirmou:

Estahumanizaçãoda torturadurouenquantoo saber jurídicodesempenhouumpapeldecisivonaefetivaaplicaçãododireito.Odeclínioprogressivodosestudosjurídicosnasuniversidadesnosséculosseguintesoriginouumamenorqualidadedos advogados que eram chamados a servir a causa da justiça. Diminuiuigualmente a autoridadedos eruditos e a sua influência na aplicaçãoprática dodireito foi gradualmente enfraquecendo. O próprio direito deixou de serconsideradocomorespeitocaracterísticodosséculosanteriores:odesregramentodavidasocialeaimprecisãodaaplicaçãododireitoandavamdemãosdadas.

Uma talopiniãoparecenegligenciar injustamente algumascondiçõesdapráticareal dos séculos XIII e XIV e atribuir talvez um papel demasiado prático aoselevadospadrõesdateoriaacadémicadosséculosXIIIeXIV,aomesmotempoque atribui um papel demasiado insignificante às academias dos séculosXV eXVI.

Desdeas suasorigenscomoestratégiapolicialpráticaatéà suacondiçãocomoparteaceitedoprocessojurídicocanónicoromano,atorturafoisistematicamenteempregue em tribunais cujos funcionários nem sempre eram especialistas comformação académica, e é discutível que os consilia e tratados académicoscuidadosamenteconservadostivessemalgumavezexercidooutrainfluênciaanãoserrepresentaremumidealjurídicoparaosverdadeirosmagistradosecarrascos.Oelementoessencialdosistemacanónicoromanoeraasuarígidahierarquiadeprovas, o lugar da confissão nessa hierarquia e a frequente dificuldade que ostribunaistinhamqueremencontrarasduastestemunhasocularesnecessáriasqueremobterdo réuumaconfissãoespontânea.Doisoutros elementos surgiramnoséculo XIV: o acusador público e o costume de ocultar ao réu os nomes e odepoimentodastestemunhasdeacusação.Anomeaçãodeumacusadorpúblicosurgiucomoumvestígiodaantiganoçãodoprocessoacusatóriodequetinhadeexistir um acusador interessado para alguém poder ser levado a tribunal. NosséculosXIIeXIII,comvimos,alguns juristasdisseramquea reputaçãodoréudesempenhavaopapeldeacusador,ouqueopróprio juizo fazia.Nosegundo

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caso,todavia,levantava-seaobjeçãodequeojuiznãopodiasersimultaneamenteacusadorejuiz,masistofoisolucionadocomopapeldosfuncionáriosdotribunaloucomapráticadadenúnciaanónima,adotadadodireitoeclesiástico.PorvoltadoséculoXIV,emFrança,encontramosoprocuradordoreiatomarolugardoantigo acusador ou da reputação do réu, juiz ou denunciatio mais recentes.Apartir do século XIV, exceto em Inglaterra, o acusador público vaidesempenhando um papel cada vez mais proeminente na jurisdição e noprocedimentocriminal.

Istoéoresultadonãodeumacorrupçãodosjuízesoudasescolasdedireito,masdo aparecimento histórico de um funcionário com um interesse especial noprocesso, não só de acusação, mas de ação efetiva contra o réu.A tendênciaacusatóriainerenteaosistemacanónicoromanoforasensivelmentereforçada.

Simultaneamente, o antigo direito que o réu tinha de conhecer os nomes dastestemunhas de acusação e de examinar o depoimento destas deixou de serreconhecido.Ascausasdestanegaçãodaquiloqueforaumdireitotradicionaldoréusãoobscuras.Talcomoadianteveremos,podemresidirempartenaspráticasdos inquisidores eclesiásticos,mas podem existir igualmente outras razões. Emprimeirolugar,eparadarumexemplo,ajustiçacriminalfrancesadistinguiaentreprocessoordinárioeextraordinárionajurisprudênciacriminal.

Oprocessoordinárioassemelhava-seaoantigoprocessoacusatórioeincluíaumaespéciede inquérito,aindaqueestenãopermitissea torturadoréu.Oprocessoextraordinárioerainquisitórioepermitiaatortura.Inicialmente,estesópodiaserinvocado para crimes extraordinariamente graves, mas era tentador utilizá-lotambémnos casos emque não se conseguia chegar a conclusões definitivas, eparece ter ido lentamente abrangendo cada vez mais categorias de crime. Acategoriaeruditadahierarquiadasprovaseraespecialmentesentidanoprocessoextraordinárioefoiatraindocadavezmaisosjuízeseosacusadores.NosfinaisdoséculoXIV,emFrança,eraoprocessovulgarmenteutilizadoparaoscrimesgraves.Devidoànaturezadocrimeeaoreceiodequeastestemunhascorressemperigoouqueoréufugisseaoserinformadodaextensãodasprovascontrasi,opasso seguinte do desenvolvimento do procedimento criminal era ocultar osnomesdastestemunhaseanaturezadoseudepoimento.

Outroaspectodacrescenteseveridadedoprocedimentocriminalfoiainfluênciarecíprocaentreainquisiçãoeclesiásticaeostribunaiscriminaisseculares.Apartirda cristianização do Império Romano, no século IV,muitos crimesmais tardeconsiderados puramente eclesiásticos passaram a ser entendidos como ofensaspúblicas.Entreestescontavam-secertosatoscometidoscontraigrejasecontrao

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clero, a maior parte das formas de reincidência religiosa e, acima de tudo, aheresia. A heresia era, por conseguinte, um crime «condenado» pelo direitoromanoeoimperadoreosseusjuízeseramobrigadosaagircontraela.Comoostribunais seculares tinham um poder que durante muito tempo foi negado aostribunais eclesiásticos, o poder de fazer derramar sangue, a Igreja recorriainvariavelmenteaosdefensores, administradorese tribunais laicosnoscasosemqueosfuncionárioseclesiásticosestavamcanonicamenteproibidosdeatuar.

QuandoacrisededissidênciareligiosadoséculoXIIseagudizou,muitospapasinsistiram para que os tribunais laicos se encarregassem da investigação daheresia.A cooperaçãomais ambiciosa que receberam foi a de Frederico II daSicília, cujasConstituiçõesde1213 contra os hereges representaramummarcoimportantedodireitosecularinstituído.EstasinfluenciaramodireitodeInglaterra,deFrançaedaAlemanha,eaperfeiçoaramaquiloqueaesserespeitoexistianodireitoromano.

Noentanto,noiníciodoséculoXIII,ospapaseoutroseclesiásticosacharamquetantoosvulgarestribunaisepiscopaiscomoostribunaislaicosestavamafalharnasua missão. Com as instruções de Gregório IX ao convento dominicano deRegensburgo,em1231,ospapascriaramumanovaespéciedefuncionário,uminvestigador cuja autoridade dependia apenas diretamente do papa, de cujadecisãonãohaviarecurso,equeatuavasegundootradicionalmétodoeclesiásticodo processo inquisitório. Além disso, como vimos, papas como Lúcio III eInocêncioIIIequipararamaheresiaaoutrostiposdecrime:contumácia,traiçãoeaté roubo, e proclamaram os hereges infames e prescreveram outros castigoscomunsaodomíniosecular,taiscomoaconfiscaçãodebensedepatrimónio,oexíliopenitencialeasmultas.

Além disso, as formasmais espetaculares de heresia, a dosValdenses e a dosCátaros, foramdescobertasnas regiõesondea influênciadodireito romanoeraparticularmente forte e onde os magistrados tinham já difundido largamente autilizaçãodoprocessoinquisitório–nascidadesdaItáliadoNorteedoCentroenoCentroeSuldeFrança.Oestabelecimentodeanalogiasentreheregeseoutrostiposdecriminososfoicontinuadopordiversospapascomformaçãojurídica,atéque o pontificado domais competente dos papas-advogados, Inocêncio IV, osaproximou ainda mais. Na sua famosa decretal Ad extirpanda, de 1252,Inocêncio afirmou que os hereges eram ladrões e assassinos de almas e quedeviam ser tratados exatamente como os verdadeiros ladrões e assassinos. UmcomentadordoséculoXVI,FranciscoPea,fazumaacertadaintroduçãoaotextodeInocêncio:

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Aprincípio,quandofoicriadaaInquisição,parecequenãoerapermitidoqueosinquisidores torturassemos criminosos sobpena (creio eu)de incorreremnumairregularidade e, por conseguinte, a tortura era utilizada contra os hereges oucontra aqueles que eram suspeitos de heresia pelos juízes laicos; contudo, naConstituiçãodeInocêncioIV,quecomeçaporAdextirpanda,estáescrito:«Alémdisso, o funcionário ou o reitor deverão obter de todos os hereges que tenhamcapturado uma confissão por meio de tortura sem ferir o corpo nem provocarperigodemorte,poiselessãodefactoladrõeseassassinosdealmaseapóstatasdossacramentosdeDeusedafécristã.Devemconfessarosseuspróprioserroseacusar outros hereges que conheçam, assim como os seus cúmplices,companheirosde crença, simpatizantes edefensores, domesmomodocomoosmalandros e os ladrões de bens materiais são obrigados a acusar os seuscúmpliceseaconfessarasperversidadesquecometeram.»(Lea,Torture,p.188)

EmboraadecretaldeInocênciopermitisseaintroduçãodatorturanoprocessodeinterrogatóriodoshereges,nãopermitiaaindaquefossemosprópriosclérigosainfligiratortura.Masduranteopontificadoqueseseguiu,odeAlexandreIV,adecretalUtnegotium,em1256,permitiuqueosinquisidoresseabsolvessemunsaosoutroscasotivessemincorridoemquaisquerirregularidadescanónicasnasuaimportante tarefa.NasegundametadedoséculoXIII,a torturaocupava jáumaposiçãofirmenoprocessoinquisitórioeclesiástico.

Noentanto,apesardasanalogiaspapais,ocrimedaheresianãoseassemelhavaaoscrimesgravesvulgaresdemodoapermitirsequeraaplicaçãonormaldeumprocessoextraordinário.Eraumcrimedifícildeprovar;emboraconstassequeoshereges apresentavam determinados comportamentos, tratava-se essencialmentedeumcrimeintelectualevoluntário;estavaradicadoemzonasondeosvizinhoseas famílias se conheciam mutuamente e onde as pessoas podiam mostrarrelutância em testemunhar, ou podiam testemunhar por outras razões que nadatinham a ver com o respeito desinteressado pela verdade; as testemunhas daheresia podiampertencer a camadas sociais ou ter reputaçõesquepoderiam terexcluídooseudepoimentonumaaçãopenalvulgar;finalmente,aheresiaeraumcrime compartilhado: os hereges não existiam individualmente e, para além dasalvaçãodaalmadoherege,os inquisidoresnecessitavamdosnomesdeoutrosheregescompanheirosdaquele.Aparte finaldoexcertoatráscitadodadecretalAdextirpandadeInocêncioIVsugerequeatorturaparaobtençãodosnomesdoscúmplices era uma prática usual nos tribunais seculares. No século XIV, ajurisprudência francesa distinguia entre a question préparatoire, tortura aplicadapara se obter uma confissão, e a question préalable, tortura aplicada após acondenaçãoparaseobterosnomesdoscúmplices.Nessecaso,Inocênciopodiaestarareferirseaumafaseanteriordesteprocesso,adaptandoumavezmaisum

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elementodoprocedimentodostribunaissecularesnacaçaaoshereges.

Estas circunstâncias, associadas ao fato de os primeiros inquisidores nãopareceremtersidoparticularmenteespecialistasemprocessojurídico(oinquisidor«profissional», com alguns conhecimentos pelo menos dos processos jurídicosdaspróprias inquisições e talvezuma certa formação jurídica formal emdireitocanónico,apareceapenasnosfinaisdoséculoXIIIeprincípiodoséculoXIV),parecem ter levado os novos juízes da heresia a empregar os aspectos maisdrásticos do método inquisitório, muitas vezes sem compreenderem nemconsideraremasconvencionais salvaguardasemrelaçãoao tratamentodo réu–na verdade, talvez com receio de que aqueles que eram acusados de heresiafossemmuitomaisperigososparaasociedadecristãdoqueosvulgaresladrões,assassinosoutraidores.

Os primeiros funcionários das inquisições estabelecem assim uma diferença noprocesso inquisitório eclesiástico.A segunda é a sua prontidão em ocultar osnomeseodepoimentocompletodastestemunhas.Umaterceiraéasuahabitualrestrição ao apoio do réu por um advogado. A quarta foi a aceitação dodepoimentodetestemunhasquenoutrocasoseriamconsideradasincompetentes:partes interessadas, aqueles declarados infames, aqueles já condenados porperjúrio e outros. Uma quinta foi o abrandamento das normas das provas e omaior peso dado a certos indicia, particularmente no campo das expressõesfaciais,comportamento,aparentenervosismo,etc.Umasextaconsistiunapolíticade enganar os réus introduzindo espiões nas suas celas, fazendo promessas declemênciaeemdesenvolverumsistemadeformascuidadosamenteelaboradasdeinterrogatório que erammuitomais completas doque as prescritas noprocessoinquisitório habitual.Uma sétima foi a categoria dos graus de suspeita em queeram incluídos aqueles que eram acusados de heresia; estes determinavam aintensidade das medidas tomadas contra eles. Em suma, os inquisidoreseclesiásticosalteraramprofundamenteocarácterdoprocessoinquisitórioqueerautilizadoemItáliaeemFrançanosmeadosdoséculoXIII.

Por sua vez, os tribunais seculares viram-se influenciados pelo processoinquisitório nos séculos XIV e xv. É à luz destas relações recíprocas entre osprocessos inquisitórios eclesiásticos e laicos, do desenvolvimento histórico deformasdeprocedimentocriminaledaalteraçãodacondiçãosocialepolíticadoindivíduoedocidadãonosséculosXVeXVIquedeveserconsideradoolugardatorturanodireitoeuropeudoAntigoRegime.

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AtorturanoAntigoRegime

ArespostadeUlpianoàpergunta«oqueéquaestio?»eassuasvariantesentreosjuristasdosséculosXIIIeXIVrevelamodesenvolvimentodeumajurisprudênciadatortura.Emqueconsistiaatortura?

EcomosobreviveuelanoprocedimentocriminaldoAntigoRegime?

Estas questões irão encerrar a nossa discussão a respeito da torturamedieval eanterior.

Suponhamosqueestáemcursoumcasoemcujodepoimentosurgiuumameiaprova,talcomoumatestemunhaocularediversosindicia.Oréufoiinterrogadoenãoconfessou.Ojuizordenaentãoatortura.Oréurecorredessadeterminaçãoeorecursoéescutadoerecusado.

Ojuiz tementãodeacompanharoréuao localda torturaedeo interrogarsobtortura.Estarápresenteumnotárioe,especialmentenoscasosdetorturaviolenta,ummédico.Estãopresentesocarrascoeosseusajudantes,masnenhumdefensordoréu.Deumamaneirageral,podiamsermostradosaoréuos instrumentosdetortura,demodoaseobterrapidamenteumaconfissão,emespecialdosreceososou dos mais débeis. O objetivo da tortura é a confissão do réu e a linha deinterrogatóriodeveserorientadademodoaqueemmomentoalgumo réusejainfluenciadoporperguntassugestivas.

O tipo de tortura normalmente mais utilizado era a estrapada, corda ou cola,consideradapelosjuristasa«rainhadossuplícios».Asmãosdoréueramatadasatrásdascostasepresasaumacordaquepassavaporumatravedoteto.Erguiamoréunoaremantinham-nosuspensoduranteumcertotempoe,emseguida,Faziam-no descer para depois o içarem novamente. Por vezes eram colocadospesosnospésdoréu,aumentandoassimatensãonosmúsculosdosbraçosedascostas uma vez iniciado o processo. Talvez a outra forma de tortura maiscomummente utilizada, em particular nos séculos XVII e XVIII, fosse a dacompressão das pernas e, mais tarde, a do torno das pernas.As barrigas daspernas do réu eram colocadas entre duas peças côncavas de metal que eramdepois apertadas uma contra a outra, mais tarde com um torno, e a perna eraesmagada.Posterioresvariantesincluíamumtornometálicoquegiravaemvoltada perna e era apertado por meio de um mecanismo de rosca e cujas arestasinterioreseramserrilhadasparaumamaioreficácia.

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Um terceiro tipo,utilizadona sua formamenos severa emespecial paradelitosmenoresequandose tratavadecriançasemulheres,eraamarrar firmementeasmãos;quandoo crimeeramaisgrave, as cordas eramextremamente apertadas,aliviadasenovamenteapertadas.Emcasosmuitograves,ospésdos réuseramcobertos com uma substância inflamável e deitava-se fogo às plantas dos pés.Outra tortura era a da insónia. O réu era mantido acordado durante longosperíodos de tempo (quarenta horas era a duração habitual). Outras torturasincluíamadistensãodosmembros(porvezesacompanhadadequeimaduras)nopotro, a tortura da água fria e diversas torturas destinadas a distender asarticulaçõeseosmúsculos.NoséculoXVII, foiacrescentadoao repertóriodosinstrumentosdetorturaotornodospolegares.

Competiaaojuizaescolhadeumdeterminadogénerodetortura,deacordocoma gravidade das acusações contra o réu e os costumes da região onde ojulgamentoserealizava.Amaiorpartedosjuristasinsistiaemqueosjuízesnãodeviamexperimentarnovosmétodosdetorturaeosacimareferidoseramosmaisvulgarmenteutilizados.

Embora o objetivo da tortura não fosse estropiar nem matar, muitos destesmétodos,emespecialosmaisseveros,tinhamdefactocomoconsequêncialesõesedeformaçõespermanentes.

O juiz e a lei estabeleciam também a duração da tortura. Vários textosdeterminam, por exemplo, que determinados suplícios deviam ser aplicadosduranteotempoqueojuizdemorassearezarumaoraçãoouocredo.Alémdaduração,ojuizestabeleciaograudeseveridadedatorturaaplicada.Umavezfeitaumaconfissão,oréueralevadodolocaldetorturae,duranteumdiainteiro,nãoeranormalmenteinterrogado.Aconfissãotinhadeserdepoisrepetidanotribunalparaseroficializada.Seoréuseretratasse,atorturapodiaserdenovoaplicada,vistoqueaconfissão,retratadaounão,constituíaoutroindicium.

Foi este, então, o processo que levou à regularização da tortura entre 1250 e1800,determinadaporlegisladoresejuristas,aplicadaporjuízesecarrascosaumcírculo cada vez mais alargado, primeiro de réus, mas mais tarde também detestemunhas.Eraumincidentedoprocedimentocanónicoromanoe,talcomofoisalientadopormaisdeumhistoriador,emborafossepossíveltorturarsemutilizaro procedimento canónico romano, era impossível utilizar o procedimentocanónicoromanosemutilizarobrigatoriamenteatortura.Aconfissão,ouarainhadas provas, exigia a tortura, ou a rainha dos suplícios. Exata, restrita eescrupulosamenteregulamentadanaleienateoriajurídica,atorturadepressasetornoubrutalnomundoinsensíveldodireitoaplicadoentreopessoalendurecido

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dos tribunais.Desdeo iníciodo séculoXVIatémeadosdo séculoXVIII, tevesimultaneamentecríticosedefensorese,duranteomesmoperíodo,foiobjetodeumaimensalegislaçãoedeumconjuntoaindamaisvastodeestudos

Técnico-jurídicos.Ainvençãodaimprensapermitiuadivulgaçãonãosódanovalegislaçãoeestudos,mastambémdetratadosmaisantigos,desdeodeAzoatéàsdecisõesdoTractatusdetormentis.

A imprensa ajudou também a divulgar a crítica da tortura. É à luz destesdesenvolvimentosposterioresa1500quedevemosconsideraraliteraturasobreatorturaduranteoAntigoRegime.

Oprocessoinquisitórioeajurisprudênciacriminalqueestegeroudesenvolveram-seemprimeirolugarnaItáliaSetentrional,emcertasregiõesdoSuldeFrançae,dentrodovastocírculodasuajurisdição,nostribunaisdaIgreja.Éevidenteque,em certas circunstâncias, especialmente no caso da heresia, havia crimes quediziam respeito não só à jurisdição eclesiástica, mas também à laica, e eraprovável que o processo circulasse livremente entre ambas.A experiência dascidades e dos tribunais eclesiásticos influenciou a jurisprudência dasuniversidades,emespecialadeBolonha,easobrasdosjuristascircularamaindamaisamplamenteportodaaEuropa.Porconseguinte,emmuitoslocaisquenãoreconheciam formalmente o direito romano e que preservavam géneros maisantigosdeprocedimentoemeiosdeprovamaisantigosevagos,registou-se,noentanto,ainfluênciadosistemacanónicoromano.Talcomovimos,aHungria,aLituânia,aPolónia,aRússiaeospaísesescandinavosadotaramalgunselementosdesteprocedimentonosséculosXIVexv,emboraquasetodooseuprocessoseconservasse tradicional e acusatório. Tal como o historiador jurídico EberhardSchmidtrevelouem1940,vigoravanaAlemanhaumprocessosemelhante.

Nem toda esta influência indireta implicava a total aceitação do procedimentocanónicoromano.Em1310,porexemplo,nos julgamentosdosTemplários,emInglaterra,osinquisidorespapaisinsistiamnoseudireitodetorturaroréu.OreiEduardoIIparecetê-losautorizadoafazê-loocasionalmente,aindaque,defacto,nãopareçaterocorridoqualquertortura,empartedevidotalvezàresistênciadosfuncionários reais e à relutância daqueles que conheciam o direito tradicionalinglêsemencarregar-sedelaouemapoiarosqueofaziam,pormaiorquefosseasuaautoridade.

Outrascircunstânciassugeriam,noentanto,outrasviasdeinfluência.Acrescentetendência dos tribunais laicos e eclesiásticos dos séculos XIII e XIV paraprocessaremnãosóhereges,mastambémmágicose,maistarde,feiticeiros,deu

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origemaprocedimentossemelhantesaosutilizadosna inquiriçãodosheregese,emgrandemedida,baseadosnaqueles.NaAlemanhadoséculoXIV,aenormeperseguição movida aos judeus por crimes encobertos contra os cristãos,especialmenteemrelaçãoàPesteNegrade1348,desempenhouomesmopapel.Não era necessária uma aceitação formal e completa do processo canónicoromanonumaépocaemquetantasinfluênciasapontavamparaanecessidadedaconfissão e demeiosmais seguros e rápidos de a obter. Para além do sistemacanónico romano, outros havia que tinham conhecimento do crimen exceptumou, pelomenos, de algo que se aproximava dele, emuitos utilizavam o únicométodoquegarantiaasuadescoberta.Apenas a vasta, ainda que muitas vezes indireta, influência do procedimentocanónico romano consegue explicar a grande quantidade de legislação ejurisprudência dedicada ao problema da tortura nos séculos XVI e XVII. Aliteratura apresenta duas características que se podem considerar historicamenteexatas:primeiro,queaquelesqueensinam,escrevemelegislamtêmconsciênciadas irregularidadespermitidaspelouso indiscriminadoda torturaeescrevemouatuam em grande medida para as reprimir; em segundo lugar, que aextraordinariamentepormenorizadajurisprudênciadatorturanãoprevêdemodoalgumoseufim,apenasofimdosseusabusos.

Alguns desses abusos foram referidos no próprio direito romano e eram bemconhecidosdosjuristasdosséculosXIIIeXIVquecomentaramajurisprudênciadatortura.Todossabiamqueaaplicaçãodatorturadependiaemgrandemedidadamaneiradeserdojuiz,emuitosdosmaisfervorososcrentesnatorturarelatam,no entanto, histórias pavorosas de juízes que torturam as suas vítimas porvingança.

Em Itália, esses juízes erammesmo designados pela expressão generalizada deiudicesmalitiosi,oequivalentemedievaldonossoatual«juizenforcador».Alémdisso,emboranoprocessoinquisitóriofossemimpostasaojuizrestriçõesquantoàutilizaçãodoseuprópriojulgamento,erapraticamenteimpossívelestenãoofazerquandotantascoisas,incluindoaanálisedasprovasedosindicia,apresentavamuma dimensão subjetiva-. Finalmente, os mesmos juízes que julgavam casosgraves julgavam também delicta levia, delitos menores, em que a própriaconvicçãodojuizdecidiadaculpaoudainocênciadoréu.Devetersidodifícilparaumjuizpassardeumjulgamentoemqueassuasprópriasconvicçõestinhamumtãograndepesoparaumjulgamentoemquenãotinhamsupostamentepesonenhum.

Todososjuristasconcordavamqueatorturaavaliavatambémaresistênciadoréuaosofrimento físico.Amaiorpartedos juristasaconselhavaquea torturadevia

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ser cuidadosamente administrada para que as pessoas confessassem apenas averdade. Muitos juristas queixavam-se de confissões de assassínios que narealidade nunca tinhamacontecido ou de crimes que era impossível terem sidocometidos pelo réu. Bártolo, jurista dos princípios do século XIV, foiespecialmentecategóricoquantoànecessidadedeseprovarqueumcrimeforanarealidade cometido. Um dos processos para ultrapassar este problema era oargumento, relacionadocoma antigamagiadosordálios, dequeos criminososque suportavam a tortura podiam fazê-lo com a ajuda do demónio e que, poroutrolado,aspessoasfracasqueeramtorturadasinjustamentepodiamreceberdeDeusenergiasuplementar.Talcomoosjuristasobservaram,aprimeirahipóteseeramaisaceitáveldoqueasegunda.

Além disso, era necessário um interrogatório hábil para se conseguir distinguirentreumréuquesabiaalgoarespeitodeumcrimeeoréuqueotinharealmenteperpetrado. O problema da confirmação da confissão era amplamentereconhecido, embora muitos juristas achassem que não era considerado comfrequência.

Estas e outras deficiências doprocedimento inquisitório canónico romano eramespontaneamenteadmitidasatépelosseusmaisfiéisdefensores.Nenhumdessesdefensores, e poucos dos seus primeiros críticos, pensarampô-lo totalmente delado. Tal como John Langbein sucintamente exprimiu: «A lei da torturasobreviveu até ao século XVIII, não porque os seus defeitos tivessem sidodissimulados,masantesapesardeteremhámuitosidorevelados.Oprocedimentocriminaleuropeunãotinhaalternativa:aleidasprovasdependiainteiramentedeconfissõesforçadas»(TortureandtheLawofProof,p.9).

Por conseguinte,muita da legislação e da literatura jurídica entre 1500 e 1750tinha por objetivo corrigir os abusos conhecidos do sistema, e rara e apenasexcepcionalmenteaboliroprópriosistema.Nenhumdosargumentosconhecidose utilizados pelos posteriores reformadores do Iluminismo era novo no séculoXVIII.

Assim, os extensos códigos penais do século XVI – a Constitutio criminaliscarolinade1532 (explicitamentepara o Império,masde enorme influência emtoda aEuropa), aOrdonnance royale francesade1539 e os códigos revistos ereeditados dos séculosXVI, XVII e XVIII procuraram aperfeiçoar o processoque resultou do importante encontro entre as necessidades e o pensamentojurídico medieval e o código do direito romano. A vasta literatura sobre oprocedimentocriminaletortura,queadquiriuaindamaiorimportânciadevidoaouso da imprensa, consistia em enormes compêndios que regulamentavam

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minuciosamenteoprocedimentoeestabeleciamerestabeleciamregrasdedireito,edosquaisosdeMarsili(1526-9),Faranaccius(1588)eCarpzov(1636)sãoosmaisconhecidos.

Apesardacríticadaépocaaosabusosdatorturaedoiníciodacríticaàtorturaemsi, o procedimento criminal do Antigo Regime aperfeiçoou e professou asdoutrinasdatortura.Em1780,PierreFrançoisMuyartdeVouglans,conseilleuraugrand-conseildeFrança,dedicouaLuísXVoseuvolumosotratadoDasLeisCriminais de França na SuaOrdemNatural. Nesta obra, na Parte II, Livro II,TítuloV,CapítuloII,étratadaaquestãodaconfissãoforçadapormeiodatortura.Muyartcomeçouporreferirquemuitoscontemporâneosseusargumentamcontraatortura,masqueelenãosedeixainfluenciarporessesargumentos:

Chego à conclusão de que, pormais rigoroso que possa ser estemétodo paraconseguirem descobrir-se crimes, não há dúvida que a experiência demonstrouqueestepodeutilizar secomêxitonoscasosespeciaisemqueestaleioautoriza,sempre emconformidade comas sensatas precauçõesque a lei prescrevenestecaso.

Continua depois a reiterar a jurisprudência da tortura rigorosamente de acordocomatradiçãodesenvolvidaapartirdoséculoXIII.

Talveznãosatisfeitocomasuabreverefutaçãodosseusopositoresrelativamenteàquestãodatortura,Muyartanexouaoseuvolumosotratadouma«RefutaçãodoTratadosobreCrimeseCastigos»queCesareBeccariapublicaraem1764equefoi talvez o mais conhecido ataque ao emprego da tortura em ações penais.Muyart escrevera inicialmente a sua «Refutação» em 1766. Após descreverpavorosos relatos de Beccaria, Muyart segue outra via, esperando que o rei«tenhavistoosuficientepara lhepermitiravaliarestaobrae terconsciênciadogrande perigo que ela representa e das suas consequências nos campos dogoverno,damoraledareligião».Asvintepáginasda«Refutação»constituemaderradeiradefesaeruditada tortura judiciáriadahistória europeiae retomamosargumentos apresentados ao longo dos cinco séculos anteriores.Mas o tratadonãosurtiuefeito.Nomesmoanoda suapublicação,LuísXVI aboliu a questionpréparatoire doprocedimento judicial francêse,em1788,aquestionpréalable.Na realidade,oséculoXVIII assistiu não só a uma torrente de literatura relativa à abolição datortura, mas também a uma onda de legislação reformadora que levouamplamenteacaboesteprograma.

Ascausasdessaaboliçãoeasensaçãodesegurançaqueinculcounosjuristase

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governanteseuropeussãootemadopróximocapítulo.

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OADORMECERDARAZÃO

Abolição,leiesensibilidademoral

OmesmoperíododosséculosXVIeXVIIqueviuostrabalhosdejurisprudênciade Faranaccius, Damhouder e Carpzov viu também a compilação dos grandescódigospenaissistemáticosdoAntigoRegime.OConstitutiocriminaliscarolinade 1532 para o Império, aOrdonnanceRoyale de 1537 para França, aNuevarecopilacion de 1567 para Espanha, o decreto de Filipe II em 1570 para aHolanda espanhola e a Grande ordonnance criminelle de 1670 para Françaformaram omaior corpus de legislação relativo à tortura que omundo já vira,feitocumprirpelasmaiorespotênciasdessemundo.

Noentanto,umséculodepoisdaGrandeordonnancecriminelle,atorturaestavaaser atacada por toda a parte, e no final do séculoXVIII esse ataque fora bemsucedido emquase toda a parte.Nasvárias revisões feitas a partir de1750, osartigos referentesà torturanoscódigospenaisdaEuropa foramrevogados.Até1800quase pareceram inexistentes.Apar de revisões da legislação, surgiu umconsiderável número de escritos condenando a tortura tanto com justificaçõeslegaiscomomorais,escritosessesquecontaramcomumacirculaçãonotável.Oexemplo mais conhecido é o do tratado imensamente influente de CesareBeccaria, On Crimes and Punishments de 1764, a obra que tanto enfureceraMuyartdeVouglans.Atorturatevedesuportarofardo–eporvezestornar-senoalvo principal da crítica do Iluminismo ao Antigo Regime, e também àbarbaridadelegalemoraldeumprimeiromundoeuropeu.

Emboraestasmudançasnãosetenhamdadodeumdiaparaooutro,aforçacomque se impuseram foi suficienteparaperturbarumcertonúmerodepessoasnofinaldoséculoXVIIIeparaganharaaprovaçãodemuitasmais,nemtodaselasrevolucionárias. A rapidez destas mudanças, tanto da mentalidade como dasinstituições,deixouperplexososcontemporâneos,bemcomooshistoriadoresquedesde então procuraram explicá-la. A interpretação mais comummente aceitepartedaligaçãodaafrontamoralàsreformasjudiciais.DepoisdofinaldoséculoXVIII,atorturaadquiriuumaconotaçãouniversalmentepejorativaepassouaserconsideradaaantítese institucionaldosdireitoshumanos,o inimigosupremoda

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jurisprudênciahumanitáriaedoliberalismo,eamaiorameaçaàleieàrazãoqueo séculoXIX podia imaginar. Quando o historiador americanoHenry CharlesLeadescreveuahistóriadatorturanoseuestudoSuperstitionandforceem1866,oseuparágrafofinalresumiatodaalinhadainterpretaçãohumanitária:

NoesclarecimentogeralquecausoueacompanhouaReformaforamaospoucosperecendoaspaixõesquetinhamcriadoasrígidasinstituiçõesdaIdadeMédia…Pelaprimeiraveznahistóriadohomem,oamoreacaridadeuniversaisqueestãonabaseda fundaçãodacristandadesão reconhecidoscomoelementossobreosquais a sociedade se deve apoiar. Embora fracos e falíveis, e sempre bemdistantesdoidealdoSalvador,estamosacaminharparaesseideal,aindaqueosnossos passos sejam dolorosos e hesitantes. Na lenta evolução dos séculos,podemosapenasverificaronossoprogressocomparandoépocasdistantes;masoprogresso existe semdúvida e as gerações futuras poderão talvez emancipar-setotalmentedadominaçãocruelearbitráriadasuperstiçãoedaforça.

Comoépocade«superstiçãoeforça»,operíodoquecompreendeuaIdadeMédiaeoAntigoRegimefoicomparadopeloscríticosmaisesclarecidosehumanitárioscoma lei doprogressoquepareceugovernar aEuropa e aAméricadoNorte,pelomenos a partir dos finais do séculoXVIII.A abolição da tortura foi vistacomoumdosgrandesmarcosdestamudança.

No entanto, várias das «gerações futuras» de Lea assistiram, não à aboliçãopermanentedatorturanemaoconstanteaperfeiçoamentodahumanidade,masamanifestaçõesdesuperstiçãoeforçamaisassustadorasdoqueasqueoestudodeLea já revelara.Recordando o otimismo do final do séculoXVIII e do séculoXIX,vêmo-lomenoscomoumaqualidadedepreverofuturodoquecomo,notítulodeumdosCaprichosdeGoyade1799,um«adormecerdarazão»emqueajurisprudênciaeosgovernoshumanitáriosacreditavamqueconseguiamevitaroregresso da superstição e da força. Como Goya afirmou, «quando a razãoadormece,produzmonstros».

AaboliçãodatorturanoséculoXVIIIestevesemdúvidaligadaaopensamentoiluminista, pelo menos aos aspectos que insistiam na manifestação najurisprudência penal de um crescente sentimento moral de dignidade humana.Masessesentimentonãosetornounaconstantequeosprimeiroshistoriadoresdatortura julgavam ter surgido. O argumento da sensibilidade moral deve, porconseguinte, ser considerado a par de outras explicações para a abolição datortura.Entreasexplicaçõesmaisimportantesestãoosargumentoslegaistécnicosrespeitantes à prova e à situação jurídica do indivíduo e questões mais geraisrelativasaopoderepráticasdoestadoeàrelaçãodoindivíduocomoestado.

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Contudo,oargumentodasensibilidademoralteveumpapelmuitoimportantenasopiniões acerca do estado e da lei no final do séculoXVIII e no séculoXIX.Alémdisso, influenciou,como jávimos,um tipodehistoriografiada tortura.EcontribuiusubtilmenteparadeterminarasatitudesdoséculoXX,nãosónoquerespeitaàhistóriadatortura,mastambémquantoaoregressodatorturanonossoséculo.

Estesfenómenosexigemserdiscutidosantesdeumaanálisedetalhadadopróprioprocessodaabolição.

DealgumasvozesqueselevantaramnosfinaisdaIdadeMédiaenoséculoXVIaté aos escritos de Christian Thomasius (1708), Montesquieu, Voltaire eBeccaria, a condenação da tortura ganhou um tom moral que justificavaexigências de reformas jurídicas e políticas radicais oumesmo revolucionárias.Noutras áreas de estudo, os historiadores do Iluminismo tornaram-se cada vezmais relutantes em aceitar a aparente atitude quer de reformadores quer dosinimigos destes. Os estudiosos mais recentes perceberam commaior clareza anaturezadaquiloqueseperdeueovalordaquiloquesevoltouaganharcomagrande revolução cultural dos finais do século XVIII. No caso do processocriminal, os juízos iniciais dos reformadores mantiveram-se por muito tempo.Satisfizerama tendênciados juristas, legisladoresehistoriadoresdoséculoXIXdeverememsimesmosenastradiçõesrecentesumtriunfodohumanitarismoeda razão sobre aquilo a que Lea eloquente e apaixonadamente chamarasuperstiçãoeforça.

Este modelo servia o temperamento do século XIX, tal como servira otemperamentodos finaisdoséculoXVIII,edeuàhistoriografiada torturaumaformacuriosa.Satisfeitoscomofactodeomodelo

Humanitário-progressista justificar os acontecimentos do período entre 1670 e1789,oshistoriadoresdatorturadoséculoXIX(comoalgunsdaIdadeMédiaedoiníciodaIdadeModerna)puderamescrevercomsentimentosdeliberdade(emrelaçãoàsinstituiçõeseàculturadopassado)edeesperançanofuturoqueforamdesaparecendodesdeentãodahistoriografiamoderna.Tendoidentificadodeumavez por todas os inimigos da razão e da humanidade, tendo-os descrito edenunciado,oshistoriadores–easociedadeparaquemescreviam–achavam-sefinalmente livres deles. Nas obras de Lea,W. E. H. Lecky,AndrewDicksonWhite e outros, a tortura, juntamente com o «barbarismo», a «superstição», odespotismoeateologia,écomoumalápidequesecolocasobreasinstituiçõese

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crençasqueo estudo escrupuloso e a hostilidade filosófica tinhampara semprecondenadoaosepultadodestroçodeumpassadoprofundamenteirracional.

Estimulados pelo modelo humanitário-progressista que Langbein rejeitaconsiderando-o um conto de fadas, Lea e outros puderam escrever comesperançosaconfiançaquea tortura, talcomoodueloeoordálio,desaparecerafinalmente do mundo racional da Europa e daAmérica. Essa certeza conduznecessariamente ao otimismo jurídico do final do século XIX e do início doséculo XX.A verdade é que, no final da Primeira Guerra Mundial, a torturaregressara e desde então aumentou em frequência e intensidade. A únicaexplicaçãoqueomodelohumanitário-progressista podeoferecer é a dequenoséculo XX o mundo se tornou claramente menos humanitário e menosprogressista, menos racional e mais supersticioso, ainda que a sua superstiçãotenha finalidades diferentes e os excessos da sua força sejam muitas vezescometidosemnomedahumanidaddeedoprogresso.Arazãoeohumanitarismosão,contudo,difíceisdequantificar,eummodelodehistóriaqueosvêaumentarediminuirdeintensidadeéummodelodifícildecompreendereutilizarecomoqualéaindamaisdifícilconcordar.

QuandoalgunshistoriadoresmodernossedeparamcomaquestãodoregressodatorturanoséculoXX,tendem,porconseguinte,ainterpretá-locomooresultadode novas «religiões», as dos estados seculares autoritários e totalitários, queexigemumacidadaniatotal–istoé,umatotalsujeição–porpartedapopulação,análogaàdisciplinaespiritualalegadamenteexigidaaoscristãospelasigrejasdaIdade Média e do início da Idade Moderna. Considerados novos, seculares,infinitamente mais fortes, mas sem deixarem de ser «religiões» poderosas, osestadosmodernosquerecorremàtorturaassumemolugarquenovelhomodelohumanitário-reformista fora ocupado pelas inquisições medieval e espanhola eoutros tribunais seculares. Quando a tortura aparece em países que não foramaindamodernizados,omesmomodeloexplicao«primitivismo»destespaísesepermite desse modo que se estabeleçam analogias entre a velha noção desuperstiçãoeforçadeLeaeasituaçãoatualdaquiloqueaoseuropeuspareceseruma tradição antiga e primitiva. O estado «religioso» moderno e o estado«primitivo» ainda por modernizar tomam simplesmente o lugar que no velhomodelo humanitárioprimitivo pertencera aos poderes doAntigo Regime e aochamadocarácterprimitivodosprimórdiosdaculturaeuropeia.

Observandoaquestãoporumprismafilosófico,estavisãodecertosaspectosdomundomodernofoiapoiadaporumalongatradiçãodacríticadasociedadepós-século XVIII de todos os pontos de um largo espectro filosófico.Meaning inHistory (1949), de Karl Lowith, uma das obras mais eloquentes acerca desta

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polémica,atacouo termo«progresso»comosendoumamerasecularizaçãomalcompreendida de ideias religiosas judaico-cristãsmedievais. Com este apoio, avisão que considera a tortura como a renovação de práticas e valores antigos,substituindoapenascertostiposdeestadoeumprimitivismogeográficodiferenteporigrejasmaisvelhaseumprimitivismoeuropeuanterior,écapazdeestenderomodelo da tortura por linhas estabelecidas pelos seus próprios críticos desde oséculoXVIIaoXIX.Mesmoaideiadoprogressopodeseradaptadaaestavisão,comoLeahámuitosugeriu,sendosimplesmenteestendidaaolongodotempoetornando-seperceptívelapenasnacomparaçãoentreperíodosmuitodistantesnotempo.O argumento afirma que o progresso é de facto feito,mas não de umaformaigualenãocomamesmarapidezemtodoolado.Esta,aoqueparece,éapremissanas históriasmaismodernasdaprimeira tortura europeia e namaioriadosestudosmodernosacercadatorturanoséculoXX.

Com este conceito tão lato, tanto que pode ser irrelevante na explicação demudançasespecíficas,épossívelchegartantoànegaçãodoprogressocomoàsuainfinitaextensão.Emqualquerdoscasos,omodelohumanitário-progressista,aodar apenas explicações gerais para mudanças específicas, não pode satisfazeraqueles cujo interesse reside em períodos de tempo mais curtos e locais maisparticulares.

A história jurídica pode, de facto, sermais bem sucedida quando aplicada aoscasosparticulares.

Abolição:oshistoriadoresemação

Graças ao enorme prestígio e grande influência da literatura reformistahumanitáriadoséculoXVIII,oshistoriadoresdatorturareferiramporvezesum«movimento abolicionista» no caso da tortura que surge em paralelo commovimentos abolicionistas na história da escravatura ou com movimentossufragistasváriosdosdoisúltimos

Séculos. De facto, a história de qualquer instituição influenciada pela teoria eprática jurídicas é a história de um conjunto de forças diferentes, algumastecnicamente jurídicas, outras de sentido mais social, operando por vezessimultaneamente, mas o mais das vezes de forma independente. Uma dasabordagens ao problema da tortura é identificar as diferentes componentes do

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processo, ver nela não tanto ummovimento conjunto,mas antes uma série deacontecimentoscoincidentes,porvezesinfluentesunsnosoutros.Paraapreciarotrabalhodoshistoriadores,poderáserútilchamaraatençãoparaosaspectoscentraisdapráticadatorturanoperíodoentreofinaldoséculoXVIeosmeadosdoséculoXVIII.Atorturadeviaserempregueapenasnoscasosemquefaltavaumaprovaconcludenteparaacondenaçãodoréuporumcrimecujapenafosseamorteouamutilação;oscrimesmenores,delictalevia,nãoestavamincluídos.Paracrimesgraves,nãohaviaoutrocastigoparaalémdamorteoudamutilação:atéaofinaldoséculoXVI,oaprisionamentoeramuitoraroe foisócomapropagaçãodoaprisionamentoecomainstituiçãodenovassançõescomoas galés e as casas de correção que surgiram alternativas à pena de morte.Acategoriade«crimegrave»variavadelocalparalocal,incluindofrequentementecrimesquetinhamjádeixadodeserconsideradosgraves.MaiscomummentenoséculoXVI, desde a publicação doMalleusmaleficarum em1484 às obras deJeanBodin,NicholasRemyeMartindelRio,apráticademagiaefeitiçariaeratambémincluídaentreoscrimesmaisgraves,emuitadacríticaàtorturaerapartedacríticaaosjulgamentosfeitosaestesdelitosocultos,maisdoqueumacríticaàtorturaemsi.Comovimos,houveumaliteraturavastasobreosabusosdatortura,muitas vezes partes integrantes dos códigos penais, conhecidos e usados poraquelesquefaziamrotinadacondenaçãodepessoasatortura.

Mesmoemzonasondeatorturanãofaziapartedoprocessocriminal,comonoscasosdaInglaterraedaEscandinávia,atorturasurgiunosséculosXVIeXVII,emparteporinfluênciadajurisprudênciadaEuropaOcidentaleempartedevidoàs necessidades do poder executivo. Em Inglaterra, por exemplo, apesar de atortura parecer ter tido poucos progressos nas leis tradicionais não escritas,progrediuconsideravelmenteduranteoséculoXVInasordensreaisenasordensdoConselhoPrivado,sobretudonocasodoscrimespolíticos.Asreivindicaçõesde Sir John Fortescue no séculoXV, Sir Thomas Smith no séculoXVI e SirEdwardCokenoséculoXVIIdequeatorturaeradesconhecidanodireitoinglêsforamdesmentidaspelosmandadosdetorturadosséculosXVIeXVII,emboraquase sempre em casos de traição, rebelião e delitos semelhantes, dadosapresentadosmuitoclaramenteemestudosrecentes.Oquepareceterevitadoquea torturase regularizassenodireito inglês foioapertadocontroloexercidopeloConselho Privado e o uso que se fizera da tortura como um instrumento paradescobrir informação e não para obter uma prova, como acontecia na EuropaContinental.

Porfim,regressamosàpremissafundamentaldoprocessocanónicoromano:semumaprovaconcludente,aconfissãoeraoúnicomeiodecondenaçãonumcasodecrime grave.Até a necessidade de obter uma confissão ter diminuído, grande

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parte do discurso humanitário na Europa não teve o seu efeito. À luz destascaracterísticasdoperíodode1550-1750,épossívelconsiderarodesaparecimentogradualdatorturanãotantocomoresultadodeummovimentoabolicionista,masantescomoopontodeconvergênciadeváriasmudançasdistintasqueocorreramindependentementeumasdasoutrasnosséculosXVIIeXVIII.AsobrasdePieroFiorellieJohnLangbeinesclarecemestasmudanças.

Fiorelli sugere em La Tortura Giudiziaria nel Diritto Comune (1953-4) que oprocesso da abolição deve ser considerado tendo em conta quatro aspectos dahistóriadatortura:ológico,omoral,osocialeopolítico.Comestaenumeração,oautor refere-seaosargumentos retóricoscéticoscontraa torturaqueexistiramdesde os dias do direito grego; os argumentos judaico-cristãos (e mais tardehumanitários) contra a imoralidade da tortura; a justificação da tortura numuniverso que afastava os princípios da sua própria existência social e deautoridadesqueseriamrepudiadasseatorturafosserepudiada;earelutânciaemouadisposiçãoparadebaterapossibilidadedeumareformapolíticanumaescalamaior. O caso de Calas em França (1763-5) teve repercussões que afetaram aestruturapolíticaejudicialdeFrança.

A categoria de crítica lógica de Fiorelli é amais antiga nos estudos sobre esteassunto.DospensadoresgregoseromanosaosjuristasdoséculoXVII,asfalhaslógicas de um sistema que fazia uso da tortura eram sobejamente conhecidas.Cícero,QuintilianoeUlpianofalavamdosproblemasquesurgiramaquemquerqueestudasseo fenómeno,desdea linguagempersuasivaàcapacidadedeumapessoaresistiràdor.Masnãosetratavaaquidecríticasemotivoshumanitários:«Seria inútilprocurarentreosescritoresgregoseromanosporumacondenaçãodatorturaporserdesumanaecruel.»AcategoriamoraldeFiorellicentra-senaausênciadetorturanatradiçãojudaicaenoiníciodacivilizaçãocristã,dequeéum exemplo notável a carta do papa Nicolau I de 865 ao chefe dos búlgarosproibindoousodetorturanoscasosdecrime,emboraistosedevesseaoprincípiodequeasconfissõesnãodeviamserobtidaspormeiodecoação,razãoporqueatorturaeraproibidaaosleigoscristãoseaoshomensdaIgreja.

Noentanto,alémdasrestrições impostasporNicolauI,haviaaindaaproibiçãodeoshomensdaIgrejafazeremusodetorturaeprovocaremoderramamentodesangue. De todas as correntes resistentes à tortura, a corrente moral éprovavelmenteamaisapelativaemenosmensuráveleminfluência.Estacorrentesó começa a ser um bom ponto de partida para a investigação do declínio datorturaapartirdosmeadosdoséculoXVIII.

AcategoriasocialdeFiorelli (LaTortura, lI,218)colocaa torturanumamatriz

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culturalesocialdaqualseriadifícilretirá-la:

Numa era em que toda a filosofia provinha de Aristóteles, a astronomia dePtolemeu,amedicinadeHipócrateseGaleno,eemqueodireitoestavacontidonos textos de sabedoria romana preservados na compilação de Justiniano,argumentoscontraa tortura, sancionadaporestes textos, teriaequivalidoaumatentativadedestruirasbasescomunsdorespeito,daautoridadeinquestionável,edealgoevidenteequenãoprecisavadejustificação,asbasesquenaquelaépocasustentavamtodaaordem,nãosóasleis,nãosóasabedoriahumana,mastodaumaestruturasocialhumana.

Esta posição da tortura num contexto sociocultural era reforçada,mais do queverificada,pelacategorialógicadacríticadatortura.

Nem mesmo as excepcionais críticas perspicazes de um Vives ou umMontesquieu,baseadasemprincípiosmoraiselógicos,poderiamtertidograndeimpacte na instituição da tortura sem esta ser simultaneamente afastada do seulugarnaordemsocial.

ÉtalvezàluzdestasobservaçõesquepodesermaisfacilmentecompreendidaacríticacrescenteaousodetorturaemcasosdemagiaefeitiçarianosséculosXVIeXVII.DesdeaargumentaçãodeCorneliusLoos(1546-95)àsdeAdamTanner(1572-1632) e Friedrick von Spee (1591-1635), sendo o último um jesuítaconfessordebruxasCondenadas,acríticaàcaçaàsbruxas levantouprotestosamargoscontraousocomum de tortura, que procurava obter confissões de pessoas que, assimacreditava um crescente número de europeus, jamais poderiam ter cometido osatos que confessavam. A isto pode-se acrescentar uma observação de JohnLangbein quanto à total ausência demenções à tortura naPetição dosDireitosinglesade1628:

OsparlamentaresquepromoveramaPetiçãodosDireitos tinhampoucasrazõespararecearaaplicaçãoaelesmesmoseaosseus.Mesmonomomentodemaioruso, a tortura [em Inglaterra] estava reservada a dois tipos de vítimas, nenhumdeles compartidáriosnaCâmaradosComuns: suspeitosde rebelião, sobretudojesuítas;ealgunscriminosos,especialmentedasclassesmaisbaixas.(TortureandtheLawofProof,p.139)

Na Europa Ocidental, a tortura nos casos de feitiçaria e, de forma menosequívoca ainda, dissensão religiosa, fez aumentar a cólera daqueles que, em

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condições normais, nunca teriam levantadomais do que umprotesto de ordemlógica ou moral, tal como os parlamentares de Langbein. Um dos primeiroscríticos quemais eloquentemente basearamo seu ataque na sua experiência deperseguidores religiosos foi Johannes Grevius, um arménio da Holanda, cujoTribunalreformatumde1624,emboramanifestandogranderespeitopelodireitoromano, condenava inequivocamente o uso de tortura por parte de cristãosquaisquerquefossemascircunstâncias,asrazõesouasvítimas.AsabedoriadeGrevius, a forma profissional e sistemática com que lidava com fontes eargumentos jurídicos e adefesaque faziadeumacaridade cristã comoaúnicaregraqueosmagistradoscristãospodiamseguirsugeremquenoiníciodoséculoXVIIalgunsdosargumentosmaisantigoscontraatorturacomeçavamajuntar-sede forma coerente. Sozinha, esta nova atitude poderá não ter feitomuito,mas,quandoa torturapassoua ser aplicadaaordens sociaisnãoconvencionalmentecompreendidasnateiadoprocedimentocriminal,estanovacríticafoiescutadaecirculou fora dos restritos círculos profissionais e moralizantes. A categoriapolítica,emquesurgiuumcrescentevolumedeprotestostécnicosemoraisparainformar epressionar as assembleiasdegovernantes eosprópriosgovernantes,poderáseranalisadamaiscuidadamentenasecçãoseguinte.

As categorias lógica,moral e social de Fiorelli permitem uma abordagem bemmaisampladahistóriadaaboliçãodatorturadoqueanoçãoconvencionaldeum«movimento abolicionista». Mesmo o conjunto indiscriminado de críticos queAlecMellordescreve(LaTorture,1949)apontanãotantoparaummovimento,mas antes para uma série difusa de críticas com fundamentos amplamentediferentes nos finais do século XVI e no século XVII. Mas o retrato maisperspicaz do declínio da tortura é o de JohnLangbein.Rejeitando a influênciahumanitária no declínio da tortura, Langbein coloca a ênfase em duas forçaspuramente jurídicas em funcionamento no início do século XVII: odesenvolvimentodenovassançõescriminaisearevoluçãodaleidaprova.

AodelinearosurgimentodassançõesqueapareceramnosséculosXVIeXVII,deinícioporrazõesváriasecompletamenteindependentesumasdasoutras,equevieramaospoucosalargaro lequede sançõesparacrimesgravesparaalémdamorteedadesfiguração,Langbeinapontaparaoutradimensãodainfluênciadamudançasocialnoprocessojurídico.Asgalés,ascasasdecorreçãoeapráticadadeportação ofereceram alternativas úteis e apelativas à pena de morte.Preencheram tambémoabismocronológicoquehaviaentre,porum lado,umaépocadeaprisionamentoextremamentelimitadoedepenademortee,poroutrolado,ummundodeaprisionamentodisciplinadorereformador.Algunsaspectosdeste mundo e da transformação que sofreu foram comentados por MichelFoucault (1975; trad. Inglesa 1977) no seu fascinante estudo Discipline and

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Punisheaindaporoutrosestudiosos.Aoutilizarsançõesmenoresdoqueamortecomopenasparacrimesgraves,asociedadeeuropeiadosséculosXVIIeXVIIIpôsfimaumdossuportesdatortura,bemlongedolimitemoralconvencionalegrandementeindiferenteaessetipodecrítica.

Quantoaoseusegundoargumento,arevoluçãodaleidaprova,Langbeindestacaaconsiderávelprudênciaqueosjuízesdemonstravamaodecidiremsançõesparaoscondenados,emcontrastecomapoucaounenhumaprudênciaentãomostradapelos juízes quanto ao procedimento preliminar, nomeadamente a tortura. Odesenvolvimento de novas sanções criminais no século XVII aumentougrandemente a prudência judicial na questão das sentenças. A prudência naproclamaçãodassentençaseumamaiorvariedadedepenaspossíveistornaramopassoseguintepossível:emcasosemquehaviaindiciasuficientesparasemandartorturarumsuspeito,masemqueosuspeitoresistiacomsucesso,eemcasosemquenãohaviaprovasfortescontraumsuspeito,masosuficienteparaosubmetera tortura, a existência de penasmenos severas do que aquelas que seguiriam acondenação permitiam que os tribunais condenassem os suspeitos, não só semprovas concludentes, mas também sem meias provas. Tal como Langbeinsalienta,estaprática, tecnicamenteconhecidacomoVerdachtstrafe,«castigoporsuspeita»,significavanaverdadeocastigoporcrençaprópriadotribunalnaculpadoréu,massemaprovacanónicaromanaconcludente:«surgiuumnovosistemade prova que não requeria confissão para punir o crime». Pode-se estabeleceraquiumaanalogiacomalgumaspráticasanglo-americanasmodernas, taiscomonegociar o delito. Esta prática ocorre frequentemente em casos em que ocalendáriodotribunalseencontrademasiadopreenchido,emqueasprovassãoincertasouestãoincompletas,masemquehárazõesparaseestarconvencidodaculpa do réu. O réu declara-se culpado de um delito menor (e pode, porconseguinte,esperarsançõesmenores),aindaquenoutrascircunstânciaspudesseserformalmenteacusado,julgadoecondenadoporumdelitomaisgrave(eestar,porisso,sujeitoasançõesmaisgraves).Asnovassançõeseaaplicaçãodetiposdeprova anteriormente reservadas aosdelicta levia ofereceramaosmagistradosdo século XVII e aos seus sucessores do século XVIII algo comparável ànegociaçãododelito.Pelomenosatécertoponto,estarevoluçãorecorda-nosque,emteoria,eramsemprenecessáriasindicaçõesmuitosubstanciaisdaculpadoréuparalevaraousodatorturanummundoemqueaúnicaescolhaquantoàpenaeraentreamorteealiberdade.EsterequerimentoformalestápordetrásdateoriadoVerdachtstrafe,talcomoamodernanegociaçãododelito:tratava-se,defacto,de «suspeita», mas, como lhe chamavam os juristas franceses, suspicion trêsviolent,umasuspeitamuitoforteebemfundada,fundadaemprovassubstanciais,senãoconcludentes.

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NomundojurídicodoAntigoRegime,eranecessáriaaprovatantoparaabsolvercomo para condenar, e quando faltava a prova, o novo processo e as novassançõesavançavampararesolverodilema.Comanovavariedadedesanções,arevoluçãonodireitodoprocessoeaconsequentediminuiçãodaimportânciadopapel da confissão para uma condenação, os juristas do século XVIII, agoraprofissionaisqualificadosesujeitosaumcontrolocentral,deixaramdeprecisardatorturacomoumaparteintegranteeinevitáveldoprocessocriminal.

Comos seus suportes técnicos e legaisdesfeitos, a tortura tornou-se finalmentevulnerável às críticas lógicas, morais e sociais a que fora praticamente imunedurante tanto tempo. Foi inclusivamente vítima da mais trivial destas críticas,anunciadaprimeiroporGrevius,masrepetidadepoispelosmentoresdaGrandeordonnace criminellede1670,que afirmavaque a tortura eraunusage ancien,«umapráticaarcaica»,idênticaaosantigosordálioseoutraspráticasirracionaisdeumpassadoremotoedesagradável.Quandocríticascomoestapuderamtervoz,umaspectodahistóriadatorturatevedeacabar.

OutrosaspectosdaculturaedopensamentojurídicodosfinaisdoséculoXVIIIpodemtambémiluminaroprocessodaaboliçãodatortura.Estessão:ocasodeInglaterra, a doutrina da infâmia, omovimento com o fim de separar e definirmais cuidadamente os poderes legislativo e judicial, sobretudo na EuropaContinental,eacrescenteverbalizaçãoeimportânciadasteoriasdaleinatural.

Comovimosnocasode Inglaterra, aposição relativamentebaixanahierarquiadas provas ocupada pela confissão, a quase ausência de instituições deinvestigaçãoanterioraojulgamentoadequadaseaextraordinárialiberdadedojúripara condenar com base em provas que podiam não chegar a constituir umindiciumnoprocessocanónicoromano,bemcomoodesenvolvimentomorosoeretardadodocargodopromotordejustiça,ajudaramamanteratorturalongedoprocessopenalinglês.Contudo,nãosepodeafirmarqueestesaspectosdodireitoinglês reflitamumhumanitarismoeumracionalismosuperioresnemqueoutrosaspectosdoprocessopenalnão representemverdadeirasdificuldadesnapráticalegal,comparadacomoprocedimentonorestodaEuropa.

Outroaspectodaaboliçãoéaestranhahistóriadainfâmia.ComovimosnoscasosdeGrécia eRoma, atimia e infâmia eram duas condições que colidiam com oestatutonormaldoshomenslivresperantealei.ApartirdoséculoXII,tantonodireitocanónicocomonoromano,adoutrinamedievaldainfâmiaconstituiuumasançãoquepodiacontradizeros resultadosdoordálioeconstituirumdeváriosindiciaquelevassemàtortura.Tratava-sedeumacondiçãotãogravequeasuaimputação indevida constituiu uma das bases para as posteriores leis de

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difamação,calúniaelibelo.Noentanto,aaviltantedoutrinadainfâmiaparecetertambémsidoútilnarevoluçãodoprocessopenalquelevouàaboliçãodatortura.As sanções tornaram-semais numerosas emenos uniformemente fatais,muitosdosindiciadoprocessocanónicoromanoadquirirammaiorpesonascondenaçõese tornaram-se dessa formanoutras alternativas à necessidade da confissão e docastigo. As desvantagens impostas pela infâmia jurídica sobreviveram váriasdécadasàtortura,oquepodetersidoumaindicaçãodequeaimposiçãodetaisdesvantagens se mantinha apelativa muito depois de a reforma jurídica e arevoluçãopolíticateremtidoosseusefeitosnoprocessopenal.OCódigoPenalFrancêsde1971continhaumaprovisãoparaoaviltamentocivil,segundooqualocriminosocondenadotinhadeouvirpublicamenteasseguintespalavras:

«Oteupaísconsiderou-teculpadodeumatoinfame:aleieotribunalretiram-teaqualidade de cidadão francês.» Em 1842AlessandroManzoni publicou a suaacusação ao processo penal doAntigo Regime, The Story of the Column oflnfamy,umrelatodeum julgamento famosoemMilão,em1630,cujo títulosereferiaàedificaçãodeumacolunanolocaldacasademolidadocriminosocomofim de para sempre recordar aos milaneses a vergonha do criminoso. EmboraenfraquecidapelasreformaspenaisdofimdoséculoXVIIIedoiníciodoséculoXIX, a doutrina jurídica da infâmia sobreviveu à da tortura e a sua merasobrevivênciapoderáterpermitidoqueaaboliçãodatorturasetenhadadomaisrapidamente.

Ahistóriadaaboliçãodatortura,comoahistóriadoseusurgimento,deveserlidacomooencadeamentodeumasériedemudançasdiversasemáreasdiversasdodireito e da vida. A questão é mais complexa do que aquilo que a simplessatisfação moral gostaria que fosse, e mais complexa também do que oshistoriadores do Iluminismo e os seus sucessores, com e sem conhecimento decausa,admitiamquefosse.Umasériedeaspectosdaaboliçãoforamcriadospordoutrinas e reformas que noutras circunstâncias teriam sido e têm sidocondenadascomtantaveemênciacomoaprópriatortura.

Paraalémdograndeesforçodecoadunarodireitoexistentecomosprincípiosdarevolução,osgovernosrevolucionáriosepósrevolucionáriosdeFrançae,maistarde,deoutrospaíses,tambémadotaramduasnoçõesdoiníciodoséculoXVIII:a da separação dos poderes e a da lei natural. Na obra deMontesquieu e deautores posteriores, o receio da arbitrariedade do poder judiciário do AntigoRegimeconduziuaoargumentodequeospoderes judiciale legislativodeviamser separados, indoa supremaciaparaopoder legislativo, reduzindo-seassimaautoridadeindividualdojuizàdeumsimplesaplicadordedecretosparlamentarese privando o poder judiciário da capacidade de rever a legalidade ou a

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exequibilidadedosdecretos.Natradiçãododireitocivil,estareparação,quetevedefactolugarnoiníciodoséculoXIX,teveatendênciaparadiminuiroestatutodojuizeaumentarodolegislador.OhistoriadorjurídicoJohnMerrymanexpôsasituaçãodaseguinteforma:

Quando,comaascensãodanação-estadomoderna,aadministraçãodajustiçafoiretirada de mãos eclesiásticas, locais e privadas, e foi tornada nacional, ostribunais passaram a ser o principal instrumento do monopólio do estado naadministraçãodajustiça.A[legislatura]ganhouummonopóliononovoprocessonacional da elaboração das leis. O poder judiciário ganhou ummonopólio nonovoprocessonacionaldaadjudicação.(TheCivilLawTradition,1969,p.93)

Desta forma, tanto o procedimento como os poderes individuais do juiz foramconsideravelmente limitados e, dadas as intenções dos corpos legislativos,severamente controlados quanto à capacidade de infligir sanções nãoestabelecidas.

Para lá da posição que ocupavamnas estruturas constitucionais revolucionáriasoureformadas,aslegislaturastambémrefletiamaoutranoçãodoséculoXVIIIdovaloruniversaleincontornáveldaleinatural.AsteoriasdaleinaturaldosséculosXVIIeXVIIIreferiram-secomfrequênciaàtorturacomoumaviolaçãodosseusprincípiosmaisessenciais,odadignidadenaturaldossereshumanosedodireitonaturalindividualdossereshumanosdedecidiremquantoàsformasdepreservarasuadignidade.PaulForierslevantouestaquestãorelacionando-acomteoriasepráticasdeprova:Atorturaviolaodireitodoindivíduodenãoseacusaredesedefender.Esteéumdireitonaturalquenenhumtratadooucontratosocialpoderetiraraoindivíduoeque consiste numa prerrogativa essencial para o indivíduo, como explicavaThomas Hobbes: «Quaisquer que sejam as respostas do criminoso [perante osefeitosdatortura],sejamelasverdadeirasoufalsas,oumesmoqueelepermaneçacalado,éseudireitoagirnessescasosdaformaquelheparecerlegítima.»Contraaleinatural,atorturafoicondenadapelosteóricosdaleinaturalemnomedasuainutilidadeeineficácia.(LaPreuve,1965,Pt.2,p.188).

Comasteoriasdaleinatural,grandepartedacríticafeitaàtorturabaseadanasuafalta de lógica ganhou força e uniu-se a outras críticas de ordem moral. DeMontaigne,ThomasiuseBayle,a leinatural influenciouMontesquieueosseussucessores que deram forma às reformas jurídicas dos finais do século XVIII,dentroeforademovimentospolíticosrevolucionários.

Esteestudodotrabalhodealgunshistoriadoresfocouatéagoraumasequênciade

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acontecimentoseoproblemadacomplexidadedascausasdessesacontecimentos.Noentanto,umaformadeabordagembastantediferenteemaisambiciosaéadeMichel Foucault, cujo estudo Discipline and Punish trata não diretamente datortura,masdatransformaçãodasformasdecastigodoAntigoRegime,brutaisefisicamentedestrutivas,nareformapsicológicadaprisãodoséculoXIX.TambémFoucaultdápoucocréditoaohumanitarismodoIluminismo,emboraveja,entreos dois extremos acima mencionados, um período temporário de dissuasãohumanitária do crime pela participação forçada dos criminosos em trabalhospúblicos. Contudo, em vez de falar na sensibilidade moral humana doIluminismo, Foucault afirma que a grande transformação se deveu à reduzidanecessidade dos que estavam no poder de controlar o corpo do criminoso.Segundoasuavisão,opoderdosséculosXIXeXXfoiexercidomuitomenospormeiodacoaçãofísicadoquecominstituiçõesquefuncionamcomocárceres,que incluem não só a prisão, mas também a fábrica, a escola e a disciplinapsicológica da vida militar. Foucault vê este processo não como libertador ehumano,mascomocriadordeumtipodeserhumanocompletamentediferente:

Estelivrotemaintençãodeserumahistóriacorrelativadaalmahumanaedeumnovopoderde julgar;umagenealogiadocomplexocientífico-jurídicoatual,noqualopoderdecastigarencontraassuasbases,justificaçõeseregras,apartirdoqual amplia a sua influência e com o qual mascara a sua singularidadeexorbitante.

AquiloaqueFoucaultchama«razãopunitiva»e«tecnologiadisciplinar»moldasereshumanospassivosemobjetosdopoder.Atecnologiadisciplinareaciênciasocialnormativaunem-senomundodeFoucaultparacriaro«homemaceitável»,o cidadão manipulado do mundo moderno. A teoria de Foucault não estádesprovidadealgumaverdade,masquasenãotemesperança.

AsobrasdehistoriadoresjurídicoscomoFiorellieLangbein,historiadoressociaiscomo E. P. Thompson e arqueólogos da cultura como Foucault oferecem umlequebemmaioremaisambíguodeexplicaçõesparaaaboliçãodatorturadoquea paixão moral de Beccaria e o progressismo humano de Lea. Contudo, éaconselhável que se vejam estas diferentes abordagens não como mutuamenteexclusivas,mascomoumreflexodasváriasfacetasdeumsófenómenohistórico.A abordagem de Foucault contém sugestões para a análise tanto do mundoarcaico como do moderno; cético e hostil em relação ao segundo, Foucaultobriga-nos a ver o primeiro com uma invulgar compreensão. Os outroshistoriadores avisam-nos que não devemos dar um peso demasiado grande ouexclusivo aos novos movimentos moralistas, mas antes considerar pormenorescomo as mudanças técnicas na natureza das sanções jurídicas e nas regras da

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prova, procurar outrasmudanças importantes noutras áreas do pensamento quenão unicamente a da sensibilidade moral. Estes tipos de análise evitam aarmadilha para a qual os argumentos deMellor o atiram, o seu insucesso emexplicarporquerazão,nummomentoespecíficodopassado,umalongaevariadalinha de críticas à tortura conseguiu finalmente levar sociedades complexas àação.

Aomesmo tempo, devemos também reconhecer o contributodadopor paixõesmanifestadasnopassadoecanalizadaspelaobradeBeccariaeregistadasnadeLea.Aidentificaçãodatorturacomtodaumavisãodomundorejeitadafoifeita,noséculoXIX,porrazõesmoraisbemcomojurídicas.Aliás,têmsidobaseadossobretudoemrazõesmoraisosataquesfeitosàtorturadesdeentão.Todavia,nosséculosXIXeXX,temparecidohaverigualmenteumadivergênciafatalentreasensibilidademoralporumladoea leieaspolíticasgovernamentaisporoutro.Nassecçõesfinaisdestecapítulo,consideraremosobreveperíododahistóriaemqueasduasfacçõessejuntaram,aparentementeparasempre.

Aaboliçãoformal

TendoemcontaocenáriotraçadoporLangbein,ahistóriadaaboliçãolegislativada tortura na maioria dos estados europeus do final do século XIX pode sercompreendidadeumaformahistoricamentemaisrealista.Comumaessespaíses,o processo da abolição da tortura foi, em primeiro lugar, parte de uma revisãogeraldossistemasdedireitopenale,emsegundolugar,umprocessoqueocorreudurante períodos de tempo assinaláveis, normalmente várias décadas, nunca deforma instantâneaecategórica.Aparentemente,osestadoseuropeusdofinaldoséculoXIX,comoos seusantecessoresdos séculosXIIeXIII, esperaramparaverqueresultadospoderiaterareformalegislativaantesdecompletaroprocessodeaboliçãodatorturaedarevisãogeraldodireitopenal.

ASuécia,tecnicamenteoprimeiropaísaaboliratortura,éumbomexemplo.Amaiorpartedasformasdetortura,quetinhamchegadoàSuéciaapenasnosfinaisdo século XVI como resultado da influência dos códigos imperiais alemães,especialmenteoCarolina,foiabolidaem1734,masatorturanocasodealgunscrimes excepcionais já havia sido abolida em 1722. O caso da Prússia foisemelhante, emboramais breve. Em 1721, Frederico I insistia que a tortura sópodia ser aplicada depois de o monarca dar o seu consentimento a cada caso

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individual. Em 1740, quando Frederico II subiu ao trono, o monarca reviuligeiramenteestedecreto,estabelecendocategoriasdecasosemqueatorturanãopodiaseraplicada.Em1754,todaatorturafoiabolidanaPrússia,aprimeiradatadeumacompletaaboliçãodatorturanahistóriadaEuropa.Entre1738e1789,oReinodasDuasSicíliasconcluiuumprocessosemelhante,talcomooducadodeBadenentre1767e1831,aHolandaaustríacaentre1787e1794,Venezaentre1787 e 1800 e a Áustria entre 1769 e 1776. Numa série de outros casos,monarcas,legisladoreseperitosemdireitotrabalharamemconjunto.NaPrússia,FredericoIIcontoucomosconselhosdeCoccejius,umdosestudiososdedireitomais proeminentes do século. Maria Theresa e José II da Áustria tiveram osserviços do grande jurista Joseph von Sonnenfels. Também por detrás dosargumentos de Beccaria estava o profundo conhecimento jurídico dos irmãosVerridaLombardia.

TemáticanoúltimoquarteldoséculoXVIIIenoprimeiroquarteldoséculoXIX.O ducado de Brunswick, a Saxónia e a Dinamarca aboliram-na em 1770;Meckenburgo em 1769; a Polónia em 1776; França em 1780 e (no caso daquestion préalable) em 1788, sendo ambas as medidas confirmadas pelaAssembleiaNacionalRevolucionáriaem1789;aToscanaem1786;aLombardiaem1789;aHolandaem1798.

Duranteaépocanapoleónica,ainfluênciafrancesalevourapidamenteareformado direito penal a zonas conquistadas ou influenciadas por França e os seusprincípios revolucionários ou imperiais. No entanto, houve um caso em que aexportaçãodareformajurídicaencontrouoposição.ASuíçaaboliuatorturaem1798,masrestabeleceu-aem1815comaquedadeNapoleão.Foisócomumarevisão feita de forma parcelar, cantão por cantão, que se eliminoudefinitivamente a tortura da lei suíça: Zurique em 1831, Freiburgo em 1848,Basileia em 1850 e Glarus em 1851. A Baviera aboliu a tortura em 1806,Wurttemburgoem1809.AtorturafoiabolidanaNoruegaem1819,emHanôverem 1822, em Portugal em 1826, na Grécia em 1827, em Gotha em 1828.Aconquista napoleónica de Espanha em 1808 pôs fim à prática da tortura nessepaís, tal como pôs um fim temporário à Inquisição espanhola. Mas embora aInquisição tenha sido restabelecidacoma subidaao tronodeFernandoVII em1813,atorturapermaneceuabolida.Estaondadereformajurídicaimpressionouos seus contemporâneos tal como impressionou o leitor moderno. Mas a suavelocidade e extensão lembram necessariamente as complexas explicações deFiorelli e Langbein; estas descrevem as mais variadas razões dos opositores àtortura, incluindo razões técnicase sociais.TambémasdeclaraçõesdosdireitosuniversaisdohomemenunciadosporTomPlaineeaDeclaraçãodosDireitosdoHomem e do Cidadão de 1789 em França não foram universalmente aceites

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comoajustificaçãomoralejurídicadasreformaslegais.EdmundBurke,nasuaobraReflectiansontheRevalutionofFrance,de1790,denunciouaspretensõesdos revolucionários franceses à correção moral. Em Inglaterra, salienta Burke,«os ateus não são os nossos pregadores; os doidos não são os nossoslegisladores».Era verdade que os Ingleses gozavamdasmaiores liberdades domundo,masessasliberdadesvinham«dointeriordanação»enãodealgocomoaleinatural.JeremyBentham,umadmiradordaleipositivamaisexplícitodoqueBurke,nãofoimenosenfático:«Osdireitosnaturaissãoumsimplesdisparate,osdireitosnaturaiseimprescritíveisumdisparateretórico.»MasBenthamconfiavamenos nas tradições inglesas e bemmais no poder do raciocínio utilitário paracriarumaleipositivaqueservisseosfinsdahumanidade.

Nestesenoutroscasos,osprincípiosenunciadosem1789eosseusimperativosmorais encontraram resistência substancial, embora o mesmo não tenhaacontecidocomaoposiçãoquelevantaramcontraatortura.Robespierre,BurkeeBentham teriamconcordadoneste aspecto.E esta concordância poderia sugerirqueumprocessodereformaslegislativasuniversaiscomoasacimadescritastemdeser consideradocomoumacomplexidade socioculturalquepreparapara–eprovoca – amudança.Apesar de a união entre a operação jurídica e os juízosmoraisassinalarumfeitoextraordinário,nãochegaparadefinirtodooprocesso.Ofervormoralnãocrialeis,emborapossadarumcoloridoaessasleisaosolhosdosqueolhamparaopassadoeasvêemcomasuaproezasimbólica.

Algumascomparações

Nocasodatortura,comosetemfeitoporvezescomocasodo«feudalismo»,étentador comparar a experiência da Europa Ocidental com as culturas quervizinhas daEuropa quer completamente fora da órbita europeia.Contudo, estapráticaencorajaumacertareduçãodaquestãoetendeanegligenciarasprofundas(e, no dizer de Burke, normalmente cruciais) diferenças de costumes eexperiências das várias culturas. A comparação aqui apresentada énecessariamente superficial, pois uma história verdadeiramente comparativa datorturaterádeesperarporumahistóriaverdadeiramentecomparativadasculturasjurídicas,oqueseencontraaindalongedeseconcretizar.

ApesardagrandetradiçãodesdeMaxWeberatéhoje,umestudocomparativodopapeldodireitoedasinstituiçõesjurídicaséaindadedifícilconcepção.Poresta

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razão,oiníciodestelivroevitaqualquerdiscussãodepráticasegípciasepersas,tal como o final deste livro se abstém de especular acerca de assuntos como afalada componente biofísica na agressividade da natureza humana. Para fazersentidocomohistória,ahistóriatemdesesituaralguresentreomerorecontodeepisódioscoloridoseaespeculaçãodafilosofiaedapsicobiologia.

Umcampodecomparaçãopossível,aindaquelimitada,desociedadeseculturasmuitodiferenteséodecódigosdeleispublicamentereconhecidos,normalmenteleis escritas. Isto porque o uso de instrumentos escritos na lei, onde quer quesurjam, distancia a lei, mesmo que apenas até um certo ponto, da matrizimpenetrável de cultura ritual e oral em que primeiramente apareceu. Acomparação de práticas documentadas não é certamente o melhor ou o únicométodo,maspodeservir-onossoobjetivo.

AtorturanoImpérioOtomanoapresentaextraordináriasdiferençasesemelhançascom o caso da Europa, pelo menos no que respeita à experiência europeiaanterioràsreformasjurídicasdoséculoXVIII.

Odireito islâmico,o sharia, não reconhece avalidadedeumaconfissãoobtidapormeiodacoaçãooudaameaçadecoação,eapesardousofrequentedetorturaedoseureconhecimentoporpartedasautoridadesimperiaisotomanas,osmuftisopunham-se a esta prática e chegavam ao ponto de insistir que, no caso de otorturadormataravítima,deviaserobrigadoapagarumaindemnizaçãoàfamíliadesta,mesmoquea leinãooobrigassea isso.Masa leido impérioprotegiaatortura.A sua doutrina decretava que os suspeitos com registo criminal, fortesprovascircunstanciaiscontraeleoucujocomportamentoerespostasnotribunalfossem contraditórios podiam ser torturados, embora a mera acusação nãobastasseparasefazerusodatortura.Osmuftistambémcondenavamapessoaqueacusava alguém falsamente de forma a que se recorresse à tortura.Na prática,entreosOtomanoseemqualqueroutraparte,adoutrinanãodescreviaoquedefactoacontecia.Para ládadoutrinaoficialháprovasdeumusomaisamplodetortura, por vezes mesmo antes de se iniciar um processo, de forma a que opromotor de justiça entrava no tribunal já com uma confissão namão que eraentãoreconhecidacomoprovaequelevavaàcondenação.

Aclaradiferençanomundootomanoentreavontadedogovernoearesistênciados muftis em nada contradiz a história e a cultura islâmicas e apresenta umcontrasteóbviocomaposiçãodaIgrejalatinanosprimórdiosdahistóriajurídicaeuropeia.

As primeiras provas de aprovação legal da tortura no Japão são do sistema de

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Ritsuryo,descendentedodireitochinêsdeT’ang.DeacordocomoDangoku,oequivalente japonês ao Ritsu chinês, um processo especificamente penal, aconfissãoeraexigidae,nocasodeseverqueumaconfissãotardavaemaparecer,ojuiztinhaopoderdemandaraçoitaroréunascostasenasnádegas.DuranteoperíodoentreosséculosXeXVI,estasantigas leisda torturaparecemtersidoalteradas de forma a incluir processos arcaicos, inclusive o doYuGhisho, umaformadeordáliocomáguaaferver,usadoagoracomoformade interrogatório.NoJapãodeTokugawa,eramnecessáriasconfissõesemcasosdecrimeeestavaprevisto o processo do gomon, um equivalente do quaestio ou da tortura. Noentanto,ogomon,asuspensãodocorpopelasmãosatadasatrásdascostas,erapermitidoapenasemcasosdehomicídio,fogoposto,rouboeassalto,passagemnãoautorizadaporumabarreiraeafalsificaçãodeumdocumentoouselo.Aleijaponesa também permitiu a instituição do romon, uma espécie de «quase-tortura»,queparecetertidoumusomaisfrequentequeogomon,talvezporqueorecurso ao gomon denunciava a falta de perícia do interrogador, podendo aaplicaçãodogomonserumafontedeembaraçoparaotribunal.Oromonincluíaochicoteamentodascostas,ajoelharsobrepedaçostriangularesdemadeiracompesosdepedracomcinquentaquilosnos joelhoseestarsentadocomaspernascruzadasecomumacordaatadaacadatornozelopassandoportrásdopescoço,cordaessaque,quandoapertada,faziacomqueascostassecurvassemdeformadolorosa. Pode não valer a pena distinguir o romon do gomon, mas ajurisprudência japonesa distinguiaos claramente e o romon foi usado maisfrequentementeatéàrevisãode1876eàproibiçãodefinitivade1879.

NaConstituição dos EstadosUnidos, em vigor desde 1789, aQuinta Emendaproíbe a auto-acusação e este direito tem sido interpretado pelos historiadoreseuropeuscomoumaprovisãoprotetoranaleidosEstadosUnidoscontraatortura.Emprimeirolugar,fazecodasleistradicionaisinglesasnãoescritasqueduranteváriosséculosproibiramtodoequalquertestemunhodeumréu,oqueconsistianuma das salvaguardas inglesas contra a instituição da tortura – se nenhumdepoimentodoréueraadmissível,atorturaparaobterumaconfissão,ouqualquertipodeprova,deixavadefazersentido.

A Quinta Emenda, algo antes da lei inglesa, permitiu que o réu fizesse umdepoimento voluntário, mas proibia que fizesse alguma afirmação relacionadacomoseupossívelenvolvimentonocrimedequeeraacusado.NaGrã-Bretanha,foisócomoCriminalEvidenceActde1898(S.I[b],61&62Vic.C.36)queoréu passou a ter a opção de depor no seu interesse. No entanto, o valor daconfissãocomoprovaforadoatodedepoimentosobjuramentoteveumalongahistória no direito dos EUA e, como veremos no próximo capítulo, pode terconstituídoumadasportas traseirasporondea torturafoireadmitidanomundo

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jurídicodosséculosXIXeXX.

Talvezumadascomparaçõesmaisinteressantesseja,noentanto,entreaEuropaOcidentaleaRússia.Asprimeirasleisrussasrevelammuitassemelhançascomaspráticas jurídicas arcaicas que observámos na Grécia, Roma e na EuropaOcidentaldoiníciodaIdadeMédia.

Damediação e do conflito horizontal entre duas partes em litígio, o crescentepapel da autoridade pública, normalmente o príncipe, e o desenvolvimento desanções elaboradas marcam os primórdios do direito russo como o fazem osprimórdiosdodireitoemqualquerparte.

OprimeiroexemplodetorturanodireitorussoconstadoShortPravda,decercade1100,ondeumartigoreferequeumcamponês,torturadosemaautorizaçãodopríncipe, pode receber uma multa de compensação. A versão aumentada deRusskaia Pravda, do séculoXIII, repete este artigo,mas poucomais se diz nodireitorussoacercadisto.OforaldacidadedePskov,juntamentecomoscódigosdeoutrascidades, trataextensivamentedemultase acordoscomosançõesparacrimes,permiteodueloeojuramento,masnãofazqualquermençãoaoordálionemàtortura.ApartirdoséculoXIII,noentanto,odireitorussoémarcadoporumaimportânciacrescentedadaaopríncipeeaosseusservidoreseàsnumerosascategorias dos funcionários dos tribunais. O historiador jurídico Daniel Kaiserresumiuoprocessodaseguinteforma:

Assim, as relações jurídicas laterais e a consideração que revelavam peloslitigantes ficou essencialmente condenada. As preocupações do queixosotornaram-se secundárias para a sociedade em geral, cujos interesses eramassumidospeloestado.Estaatitudeaumentouopapeleaconcepçãodasançãoeaomesmotempodiminuiuosdireitosdavítimaàcompensação.(TheGrowthoftheLawinMedievalRussia,1980,p.91)

A emergência do príncipe e o seu aparato judiciário é sobretudo evidente emMoscovo, eo códigode Ivan Il l, oSudebnikde1497, refere casosde torturainfligida a suspeitos de má reputação por funcionários do príncipe. O ordálioaparece também no Sudebnik, tal como práticas mais elaboradas deinterrogatório.Atorturaestátambémemdocumentosdessaaltura,sobretudonaRússialituana.NofinaldoséculoXVI,IvanIVcriouaOprichnina,umaordemqueduroupoucotempoequesededicavaàproteçãodomonarcaeàeliminaçãodosseusinimigos.Estaordempareceterfeitoumusoindiscriminadodatortura,masforadateoriaepráticajurídicasconvencionaisdaRússia.

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A fraqueza da monarquia durante a primeira metade do século XVII e acaracterística (que a Rússia partilhava com outros estados) de centros deautoridadejudiciáriadiversificadoseeficazmenteautónomosapenassignificavamqueorecursoàtorturaporpartedosgovernantesdasprovíncias(voyevody)erahabitual.Defacto,agrandediversidadedefuncionáriosjudiciáriossobreviveunaRússia até 1880 e poucos deles têm a sua atividade registada com pormenorsuficiente que permita generalizações seguras acerca do uso de tortura na suajurisdição.OcódigopenaldeAlexisIem1649distinguiucrimepolíticodeoutrostiposdecrime e exigia a denúncia de crimes políticos.O Serviço Secreto do czar, quefuncionoude1653a1676,eoServiçoPreobrazhensky(1695-1729)parecemterfeito rotina do uso da tortura. Entre as técnicas conhecidas estavam o polé, ocnute para açoitar e o fogo, embora pareça ter havido um notório declínio naaplicaçãodetorturadepoisde1718.

Todavia,aRússianãoficouimperturbávelàsreformasjurídicasoperadasnorestodaEuropaeAlexandreIdeclarouformalmenteaaboliçãodatorturacomoseuucassede27deSetembrode1801.SobainfluênciadaComissãoparaaRevisãodoscasosdeCrime,AlexandreIaboliraoServiçoSecreto.Em1801,recebeuanotíciadeumcasodetorturacujavítimafizeraumaconfissão,masquemaistardeprovaraestarinocente;depoisdeinvestigarocaso,Alexandreemitiuoucassede27deSetembro.OSenadodevia:

AssegurarcomtodaaseveridadeportodooImpérioqueemnenhumaparteesobnenhumaforma…alguémseatrevaapermitiroufazerusodequalquertortura,oque conduzirá a um castigo inevitável e severo… que os acusados declarempessoalmenteperanteotribunalquenãoforamsujeitosaqualquerinterrogatórioinjusto … que a palavra «tortura», vergonhosa para a humanidade, seja parasempreapagadadamemóriadopovo.

Três anosmais tarde,Alexandre teve de emitir um documento a recordar estedecreto.P.S.SquiresugerequeoQuartoDepartamentodoSenado«setinhahámuitoacostumadoàestabelecidapráticada torturanãosódoServiçoSecretoedos seus antecessores,mas tambémporpartedaspolícias locais, epor isso erauma coisa que os perturbava menos do que o jovemAlexandre» (The ThirdDepartment,1968,p.22).Squirereferetambémocasodeumhomemtorturadoatéàmorteem1827nocontextoda«instrução»dogeneralBeckendorHnaqueleano, que reclamava uma considerável independência judiciária por todo oImpério,«doBogavysoko,doTsaryadalyoko»–«DeusestánoaltoeoCzarbem distante». Embora os czares do início do século XIX se mantivessempreparadosparatomarmedidasextraordináriascomofimdeprotegerasegurança

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doestado,hápoucasprovasdequetenhamqueridorecuperartécnicasantigasdetortura.AcriaçãodaTerceiraSecçãodoSupremoTribunaldeJustiçadoCzarem1825porNicolauIeogeneralBeckendorffconstituiuoprincipalpoderpolíticodasegurançadogovernoemquasetodooséculo,emborahajapoucasprovasdouso de tortura durante a existência deste organismo. No entanto, há tambémpoucas provas da sua eficácia e em 1880 o ucasse de 6 deAgosto aboliu aTerceira Secção, centrando todas as funções da polícia russa num únicoDepartamentodePolíciasobocontrolodoMinistériodoInterior.Contudo,umano depois, foram estabelecidos vários ramos da polícia secreta emSampetersburgoeMoscovoencarreguesdeprocedercontracriminosospolíticos.Esteseram,parausarotermoimprecisoquemaishabitualmenteosdesignava,aOkhrana,a«proteção»doestadoedoczar.

EmboraasreformasdoiníciodoséculoXIXpareçamterreduzidoaprática–etecnicamente abolido o uso – da tortura, com o aproximar do fim do século,sobretudonoclimade terrorismoquerodeavaasautoridadescentraisdoestadorusso,aOkhranaparecetervoltadoausaratortura.Pelomenosalgumasprovasde revolucionários que viriam a ser bem sucedidos após 1917 indicam que naáreadocrimepolíticoenasuarepressãoatorturaregressaraàRússianofinaldoséculoXIX.OlugarqueocupounoséculoXXserádiscutidoaseguir.OcasodaRússia é particularmente interessante, mas, num esboço leve, não totalmentedíspardorestodaEuropa.Jurisdiçõesconfusasesobrepostas,umgrandeabismoentrea jurisprudênciaeaprática,autoridades locaisautónomas,apercepçãodocrimeporpartedoczaredopovoeodesenvolvimentoprecocedeumadoutrinada traição sugerem como é difícil encontrar provas seguras que confirmem oudesmintamousodatorturaemáreasouníveisespecíficosdapráticajurídica.

Alibertaçãodalei

NoseguimentodasrevoluçõesculturaisepolíticasqueterminaramoséculoXIXe ameaçaram a paz dos séculos anteriores, é difícil ver o lugar ocupado pelodireito penal e pelos direitos dos cidadãos como tendo a importância que naverdadepossuíam.Apesardaspaixõescivisemilitares suscitadaspelasguerrasrevolucionáriasenapoleónicasepelosbanhosdesangue intermitentesdo terrorrevolucionário, tantoopensamento iluministacomoareformapolítico-socialdofinaldoséculoXVIIIviramnodireitoumdosseusinstrumentosprincipais.Livredeacréscimosinúteisfeitosaolongodeséculosdeprivilégiosetiranias,purgado

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dosarcaísmosedabarbaridaderitualeseguindooquehádemelhor,maisnobreecompassivonarazãoenosentimentohumanos,odireitodosestadosdoiníciodo século XIX pretendia regular e dar expressão às vidas dos cidadãos emharmoniacomosdireitoseliberdadesqueassucessivasconstituiçõesafirmavamcategoricamenteseremodireitonaturaldetodosossereshumanos.NemmesmoossentimentosnacionalistasdoiníciodoséculoXIX,queempartedavamgrandeimportância à história jurídica étnica, conseguiram renegar a harmonia reinanteentreosdireitosuniversaisdohomemeosváriossistemasjurídicosnacionais.Achaveeraosistema.ÀexceçãodeInglaterra,quecriara–ouparaquemoutrostinham criado – o mito das liberdades constitucionais do direito comumassistemático, a maioria dos estados europeus do início do século XIX teriamconcordadocomaimagemusadapelorevolucionáriofrancêsSieys–queachavedaleieraaigualdade,quealeieracomoocentrodeumgloboimensodoqualtodososcidadãoseramequidistantes,eessaequidistânciasignificavaquealeierao garante da razão, da justiça e da igualdade. O estado deixara de concederdireitos; protegia direitos já existentes. E o seu papel era tanto moral comopolítico.

Masograndesonhodarazãofirmou-se,pelomenosduranteumbreveperíodo,em sólidas reformas institucionais com grande aceitação social e política. AInglaterra de Blackstone e Bentham, a França de Nicholas, Dupaty e Périer(apesardeMuyartdeVouglans),aÁustriadeSonnenfelseaLombardiadeVerriconstituemumaprovadequeodireitopenalestavanocaminhodareformamuitoantesdaagitaçãopolíticadofinaldoséculo.

EpordetrásdestesdoistiposdemovimentoestavamosdoisgrandesproblemasdodireitopenaldoséculoXVIII:areformadassançõeseoproblemadaprova.O exemplo de Inglaterra, certamente divulgado de forma seletiva, mostrara hámuitoqueaconfissãonãoeranecessáriaparaacondenaçãoequeumsistemadedireitopenalquenãofaziausodaconfissão–equenãopermitiasequerqualquertipodedepoimentodapartedoréu–podia,noentanto,servirparaadornarumasociedade civilizada e relativamente cumpridora da lei. Em 1657, FrederichKellerreferiraexemplosnãosódaAntiguidade,casodeIsrael,mas tambémdaIdade Moderna, casos de Aragão e Inglaterra, estados que não aplicaram atortura. No final do século XVIII, outros reformadores usaram o exemplo daPrússiadeformasemelhante.OdesenvolvimentonaEuropaContinentaldeumsistemaalternativodesançõeseprovaseaemergênciadeteoriaspsicológicasesociaisquepreferiramoaprisionamentoeapenitência

À execução e à condenação deram explicação, no campo judicial, paramuitosdosvaloresproclamadospelosfilósofosehomensdeletrasnocampomoral.

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Se a era da revolução nadamais fez, pelomenos juntou na classe profissionaljurídica o sentimento geral e a reforma técnica, das quais a própria classeprofissional se orgulhava em ser a guardiã. Numa época em que a mudançaconstitucional epolíticaocupouocentrodamaioriados relatoshistóricos, logoseguida pela mudança económica e social, é impressionante a quantidade deimagensdedireitopenalqueparecemdominarosacontecimentos.AtomadadaBastilha,aguilhotina,aênfasedadaàtorturacomoalgodesumanoeirracional,aimportânciadadaaoprópriodireitopenalcomoformade repressãosocial, tudoimagensmemoráveis, não sódaRevoluçãoFrancesa emparticular,masda erarevolucionária em geral. Quaisquer que tivessem sido as forças a pôr emmovimentoareformadoprocessopenalumséculoantesdarevolução,aobradosfilósofos e dos homens de letras deu o selo da aprovação revolucionária e dohumanitarismo iluminado a essas reformas e à classe profissional que asmantinha,osjuízeseosadvogados.

No seguimento da reforma que aboliu a tortura no final do século XVIII,surgiramnovoscódigospenaise,aindaqueaobradeBeccariaOnCrimesandPunishments, de 1764, tenha contribuído pouco para a abolição legislativa datortura, deu um enorme contributo à filosofia da reforma do direito penal e aopensamentodaquelesqueageriam.Nãosóaprisãosetornouumadasprincipaissançõespenais,mastambémareformaprisionalfoiumtemaemqueosvaloresdoiluminismosepuderamexpressar.TheStateandthePrison,deJohnHoward,obra publicada em 1777, comparou as condições prisionais em Inglaterra eFrançaeteveumenormeimpacte.Osurgimentodoutilitarismo,quetrouxeumagrandepreocupaçãosobreodireitopenaleocastigo,foimaisumacontribuiçãoparaaatençãoprestadaàscondiçõesprisionais.JeremyBentham,umadvogadoerudito, estava particularmente preocupado com a relação entre a filosofiautilitáriaeasinstituiçõesjurídicas.Porfim,areformaprisionaltornou-seumdosprincipaisobjetosdafilantropiadoiníciodoséculoXIX,inspiradanormalmentepelohumanitarismoiluminado.

Do outro lado do processo, o mesmo período assistiu ao desenvolvimento deforçaspoliciaisregularizadaseaumaigualpreocupaçãopelotreinodessasforçasepelasuaconsideraçãopelosdireitosdocidadão.Amaioreficácianaapreensãodecriminososnum ladodoprocessoe ahumanidadeda suacorreçãonooutroconstituíram um ideal que, comparado com o velho mundo da tortura e dasformas brutais de execução, o fazia parecer ainda mais hediondo do que narealidade fora. Estas práticas antigas constituíram ummundo não só derrotado,mastambémtotalmentedestruído.Àluzdarazãoedahumanidade,nãopoderiamvoltaraexistir.Esta repulsa em relação à tortura como símbolo das enormidades do Antigo

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Regime foi tão violenta que nem mesmo as paixões morais da revolução e areação que se seguiu inspiraramo regresso da tortura.Nema revolução inicialnem o terror deixaram registos do uso de tortura; nem os emigrantes políticosnem, depois de 1814, o jornalismo realista se lhe referiram. Isto sugere averdadeira influência que tiveram escritores comoVoltaire e Beccaria: as suasobras simplesmente tornaram a tortura impensável e confiavam na reformajurídicaenaclasseprofissionaljurídicaparafazeremdelaalgoimpraticável.

A importância da reforma jurídica, quer como representação dos princípiosuniversaisdarazãohumanaquercomomanifestaçãodeumaexperiêncianacionalcoletiva,deuumanovaimagemaoconceitodelegalidade,àsuarelaçãocomosdireitosdoscidadãoseàsresponsabilidadesdaclasseprofissional jurídica.Seoestadonãoexistiaparagarantireprotegerdireitos–querdepropriedadequerdeliberdade-, então esses direitos eramanteriores a – e pelomenos tão soberanoscomo – o próprio estado. Em toda a história francesa do século XIX, porexemplo, nenhum governante ou assembleia governante parece ter propostointerferirnasoperaçõesdalei.NaspalavrasdeAlecMellor:

A tradição de Fouché [ministro da Polícia de Napoleão, que recorreufrequentementeaespiõesmasnuncaàtorturaequefoiomodeloparaoVautrinde Balzac] continuou [ao longo do século XIX] e o seu estilo espalhou-se,inclusivamente(esobretudo)nassalasderecepçãofrancesas,masnuncahouvenaimprensadaoposiçãoounaliteraturaqualquermençãoatorturadores.

Nem Vodocq, na vida real, nem Javert na ficção romanesca prefigurarampersonagens verdadeiramente sinistras. Os ministros mais autoritários, como opróprio Casimir Périer, permaneceram liberais em princípio, inflexivelmenteligadosàideiadelegalidade.

Amagistratura, recrutadaquaseexclusivamenteentreaaltaburguesia,educada,endinheirada,aliouaumacircunspecçãonaturalumapreocupaçãoconstanteemmanterocargo.

Duverger, um juiz de instrução em Niort, escreveu no seu Manuel du juged’instructionem1839que«omagistradonuncadeve instaurarumprocessoatéser devidamente informado por meios estritamente legais; o seu envolvimentoprematuro num caso degenerará em espionagem e inquisição e não deixará demancharaJustiça».(LaTorture,1949,p.173)

Em grande parte da Europa, magistrados como Duverger podem ter sido

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conservadores política e socialmente, impiedosos e ferozes em questões depenologia,masparecemterpermanecidouniformementeliberaisemquestõesdeprocedimento e legalidade. Os governantes políticos parecem, no geral, tê-losapoiadonassuasatitudese,duranteumséculo,odireitopareciater-setornadonamaiorproezadosnovosestados,protegido,isolado,capazdeprotegerliberdadesbemcomodefazer,nãosójustiça,masJustiça.

ComonosdizoexpressivotextodePierre–HenriSimon:OséculoXIXestevelongedeserpuro:nassuasguerrascivis,naslutassociais,narepressãodasrevoluçõesnacionalistas,estevecobertodesangue:osanguedosfiandeiros de seda de Lyons e dos trabalhadores de Paris; o sangue doscommunards;osanguedospolacoschacinadospelosexércitosdoczar;osanguedositalianosliberaisfuziladosouenforcadospelosseusprópriosprincipelhos;osanguedoscabilasedosboers.Contudo,oséculoXIXtevepelomenosumtipode modéstia que o nosso século já não possui: mesmo quando os tribunaiscondenavam inocentes,mesmo quando julgavam com base na classe social doréu, preservavam o suficiente do espírito cristão implícito na Declaração dosDireitos doHomem e no código penal por ela inspirado de forma a poupar àtorturaoscondenados…Pormuitoinsensíveisquepossamtersido,nemVautrinnemJavertalgumavezimaginaramquetinhamodireitodetorturarumsuspeito.

Os primeiros historiadores da tortura,HenryCharlesLea e os seus sucessores,cresceram precisamente nesta atmosfera, quer tenha sido nos Estados Unidos,Inglaterra ou na Europa Continental. Para eles, como para os seuscontemporâneos, o final do séculoXVIII pusera um fim a uma história longa,cruel e arcaica; os mais moralistas dos homens de letras tinham dado força edireção a esta proeza e o século XIX ficara finalmente livre das suasconsequências.Foiummarconahistóriadahumanidade,ummarcoqueficariaparasempresemmácula,ummarcocujahistória,naversãoaceiteporpensadoreseescritoresdoséculoXIX,permaneceuumadasmaioresliçõesdemoralparaahumanidade,umverdadeiropassonadireçãoopostaaoreinodasuperstiçãoedaforça.

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«INSTRUMENTOSDOESTADOENÃODALEI»

Àmargemdalei

QuandoWilliamBlackstoneconsideroubrevementeoassuntoda torturanasuaobraCommentarieson theLawso[England,cercade1769,pô-lodepartepornãopertenceraodomíniodaleiinglesa;arodadentadaera,segundoBlackstone,«uminstrumentodoestadoenãodalei».Queriacomistodizer–eaquifazecodaliteraturajurídica,senãomesmodapráticaefetivaemInglaterradesdeotempodeFortescue–queatorturanãofaziapartedodireitoconsuetudinárioequeosusosdispersosdesta tinhamsidopraticadosapenasporautoridadespolíticaspormotivospolíticos.Nogeral,o juízodeBlackstoneera respeitávele rigoroso,sebemque,deacordocomasinvestigaçõesdeLangbeineHeath,atorturanãoerainteiramentedesconhecidadoprocessocriminalinglêsnosséculosXVIeXVII.Porém,adistinçãofeitaporBlackstoneservetambémparailustraroséculoXIX,durante o qual a tortura, algo já repulsivo para praticamente todos os direitospenais e sistemas criminais da Europa Continental, permanecia um potencialinstrumentodoestado.IlustraaindaoséculoXX,épocaemqueatortura,aindaque repulsivapara amaioria dos códigospenais, reapareceuprimeiropormeiodasautoridadespolíticasedepoisentreasautoridadesjurídicastambém.

Para Blackstone o termo «estado» significava o monarca de Inglaterra, osfuncionáriosreaiseoConselhoPrivadodoRei,significadoesseconstruídoquaseum centenário depois da Gloriosa Revolução e do moderado absolutismo damonarquia hanoveriana. O «estado» de Blackstone era ainda um conceitomarcadamentepessoaleparticulareoconceitodetraiçãonoAntigoRegimeerageralmenteconsideradoedescritocomoumaofensapessoalàfiguradomonarca,àsuafamíliaouaosseussúbditos.Aesterespeito,asideiasdetraiçãodoséculoXVIIInãodivergiamgrandementedasdoImpérioRomano,refletidasnodireitoromano,que,porsuavez,influenciaraamaioriadossistemasjurídicosdaEuropaapósoséculoXII.

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No direito romano, tal como vimos, a traição era um delito excepcional. Umaacusação deste tipo abria caminho ao envolvimento num processo judicialconsuetudinário,arrastandoconsigoassalvaguardas,baseadasnaposiçãosocial,contra a tortura.Mesmo nos casos dos cidadãos livres e súbditos que de outraformaestariamimunesàsmaisdrásticassançõescriminais,quandoaacusaçãoeradetraiçãoimplicavatortura,eousodestaemcasosdetraiçãodavatambémlugaraoseuusonoutrotipodesituações,algumasdelasàmargemdaleireformada.

Tal comono casodeprocesso criminal e deguerra, o séculoXVIII parece tertestemunhadooatenuardaintensidadequeoconceitodetraiçãoreunianapessoado governante, mas o final do século presenciou igualmente o emergir de umconceitodetraiçãocontraoestado,entidadeabstrata,eopovo.Aoinvésdelêse-majesté, os revolucionários franceses falavam de lêse-nation, uma maiorpreocupaçãocomodanofeitoàaçãodoqueexclusivamenteaogovernantequerepresentavapessoalmenteanação.

Duranteamaiorpartedo séculoXIX,osestadosdaEuropa tornaram-semuitomaisarticuladosepoderososdoquetinhamsidonotempodeBalckstone.Oseupoderprovinhadacapacidadedemobilizarvastosrecursosedeumconceitomaisalargado de legitimidade governamental. A racionalidade instrumental e umasólida solidariedade regional e nacional fizeram do estado o veículo do povo,ethne.

O profissional da lei e os legisladores do estado, seguros do seu liberalismoprofissionalejurisprudênciaesclarecida,puderam,durantegrandepartedoséculoXIX,dar-seaoluxodeacreditarqueocrescentepoderdoestadodestacava,naverdade, a segurança dos cidadãos, que o estado, apesar de poderoso, erasimplesmenteocãodeguardaeoguardiãodosdireitoshumanoslatenteseagorapublicamentereconhecidos,talvezumguardiãomaioremaisfortedoquejamaisfora.

Esses direitos foram reconhecidos como pertencendo a um número cada vezmaiordemembrosdasociedade.

Nem Blackstone nem ninguém – exceto alguns pensadores que encaravam osextremosdaRevoluçãoFrancesacomopresságiodeumtipodeestadomaisnovoemaisferoz–podiaimaginaraextensãodopoderestatalnofinaldoséculoXIXe no século XX. Mas no início do nosso século, alguns estados eramsuficientemente fortes para praticamente abolirem os tribunais convencionais eignoraremassuasleisestatutárias,ajudadosporumcertonúmerodejustificaçõesfilosóficasparacorrigirouignoraraleipornecessidadeouvontade.

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Blackstonenãopodiatambémterprevistoomomentoemqueopróprioestado,ecomeletambémalei,estariasujeitoaumpapelmeramenteinstrumentalemnomeouao serviçodeumethneouuma ideologia.Tal transformaçãodoestadonãofora prevista nem por Blackstone nem pelos primeiros estudiosos da torturaduranteoAntigoRegime,nemporHenryCharlesLeaouosseussucessores.IstoporqueosgrandesreceiosdeLea,comosugeremassuasobras primas–históriasdas inquisições medievais espanholas – vão para uma religião civilreinstitucionalizada e não uma direcionada para os excessos do estado secular.Aosolhosdoshistoriadores liberaisdoprocedimento judicialdoséculoXIX,oestadoracionalmodernoeraagrandeforçaprotetoraqueimpediaoregressodeum poder eclesiástico autónomo, indiscriminado, e que tinha a lei como a suamelhorarma.QuandonoséculoXXumconjuntodeestadoscomeçouaignoraropapel preventivoda lei, primeironumcontextopolítico e extrajudicial e depoisem contextos judiciais normais, tanto o grande poder como a nova ideia devulnerabilidade dos estados modernos sobressaíram marcadamente. Sob asretrógradasideiasdetraição,afiguradomonarcapodiacorreralgumperigoeosanterioresconceitosdetraição,decarácterinvulgar,podiamserentendidoscomoataques a um determinado tipo de indivíduo. No século XX, contudo, e paraconter a destruição de umpovoou de umestado, a traição era umdelitomaisdifuso e menos específico. Destruir todo um povo ou um estado era maismonstruosodoqueintrigarcontraumindivíduosó,mesmoquefossealguémdedestaque.Mascomoeraquealguémdestruíaumpovoouumestado?Àmedidaque a intensidade e o grau de abstração da traição ou atividade contra-revolucionária recrudesciam, houve um alargamento quanto à natureza dosdelitos,aqualsetornoumaisvaga.

Naatuaçãodascomissões revolucionáriasdaURSSentre1917e1922e,maistarde,alturaemquereinavaofascismoemEspanhaeItália,eaAlemanhaviviasob o poder do Terceiro Reich, a tortura ressurgiu por meio da autoridaderevolucionária, partidária ou estatal, e, mais tarde, em determinadascircunstâncias,pormeiodaautoridade judicial.Paraesteprocesso,osprimeiroshistoriadoresdocampojurídico,desdeBlackstoneaLea,nãoteriamencontradoqualquerexplicação.Ahistóriadatorturatemdeserretomadadesdeoperíodode1817-45.UmadastentativasmaisapaixonadaspararealizarestetrabalhofoiadojuristafrancêsAlecMellor,cujonotávelestudoLaTortureteveaprimeiraediçãoem1949,edepois, comas revelaçõesde torturanaArgélia francesa, teveumasegundaediçãoem1961.Oquefoinaverdadeumaterceiraediçãoapareceusobo título de Je dénonce la torture, em 1972, seguindo-se à agitação gerada pelapublicaçãodasmemóriasdogeneralJacquesMassuem1971(tratadoaseguir,nocapítulo5).Empoucomaisdeumadécada,ahistóriadeMellor,queaprincípio

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secentravanaChekaenaGestaponoséculoXX,tevequeserrevista,umavezqueatorturasetinhaestendidotambémaFrançae,aparentemente,nadécadaqueseseguiua1961,apraticamentetodoomundo.

OrelatodeMellorquantoaosséculosXIXeXXpodeserbreveecriticamentedelineadoporque,narealidade,eleapontaasáreasdeatuaçãodoestadoquesedesenrolaram fora da jurisprudência e onde a tortura primeiramente reapareceu,aoabrigodaautoridadepública.

Mellordefendequeexistem três causas fundamentaisparao reaparecimentodatortura: o surgimento do estado totalitário, do qual a URSS era o produtoacabado; a necessidade imposta pelas modernas condições de guerra, anecessidade de «procurar a todo o custo, a toda a hora, sempre com a maiorurgência,daqualresultouacriaçãodeserviçossecretosedemétodosespeciaisde interrogação»; e uma terceira causa, a que Mellor chamou «asianismo»,vagamentedefinidacomopráticaestatalqueexaltavaaatividadedoespiãoenãoimpunha qualquer restrição quanto ao tratamento dos prisioneiros.Mellor situaestaúltimacausanaEuropaeatribui-lheadatadaguerrarusso japonesade1905,umfenómenotrazidoparaoOcidentepelo«canalsoviético».AobradeMellornuncafoitraduzidaparainglêse,alémdisso,conheceuseverasefrequentementemerecidas críticas históricas por parte dos especialistas jurídicos devido aosanacronismos apaixonados e muitas vezes indiscriminados do autor, à suacondenaçãoarrebatadoraeetnocêntricado«asianismo»,à sua inflexívelatitudeantimarxista e ao seu tom moralizador. Apesar de Mellor ser um juristaprofissional, a suapaixãovenceuacapacidadecrítica tal comoa sua sabedoriaadmirável e exaustiva, sobretudoporque assistira pessoalmente aodesgaste dosprincípios da jurisprudência e do humanitarismo que tinham sido forjados noIluminismo do princípio do século XIX. Durante a vida de Mellor, estesprincípios pareciam definhar da formamais selvagem e grotesca que se possaimaginar, isto,pensouele,devidoao reflorescimentodaquelemundoquedeviater desaparecido para sempre em meados do século XIX. Para Mellor, osgovernosdeestadosapologistasdatorturanoséculoXXemnadadivergiamdosimperadoresromanosedosinquisidoresmedievais.Nasuavisão,osestadosdoséculoXX eram ummero restabelecimento, embora tecnicamente superior, dototalitarismo dos primeiros impérios e das igrejas coercivas e blasfemas, e porconsequênciaaindamaisterrivelmenteeficazdoqueosseusantecessores.Alémdisso,estesestadosmodernosnãoimpõemavontadedaelitequegovernasobreumapopulaçãorelutante,masrefletemantesavontadedoscidadãos,empregamuma linguagem igual para governantes e governados, uma linguagem quedenunciaosinimigosdopovo,doestado,dopartidoourevoluçãocomoculpadosdesacrilégiocontraoestado-Deusdaeratotalitária.Aexperiênciadosfranceses

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naArgélia depois de 1954 em pouco alterou os receios deMellor, e aqui umvastocorode intelectuais franceses fez-lheeco,desde Jean-PaulSartreaPierreVidal Naquet.Defacto,grandepartedaliteraturasobreatorturaefetuadadepoisde1945refleteumtomsemelhante.

Todavia,por todoocuidadoqueéexigido, énecessário recapitular algunsdosargumentosdeMelloracercadosséculosXIXeXX,umavezquemuitosdelesse revelam exatos.No tratamento que é dado à primeira causa, o novo estadototalitário, Mellor esboça a transformação do estado-cão-de-guarda da teoriapolíticadoséculoXIXnumestadoinstrumental,concisamentedescritoporAdolfHitleremMeinKampf(II.2):

A ideia fundamentaléqueoestadonãoéumobjetivo,masummeio.Estaéacondição preliminar para a formação de uma civilização humana superior,masnão é a sua causa direta. Esta reside apenas e exclusivamente na Raça que épreparadaparaacivilização.

A presença de uma raça superior, usando o estado como seu instrumento paracriaruma«civilização»superior,serve-seporconseguintedodireitopenalcomoum«meiodelutacontraosvestígiosdopassadoquenuncadeverenascerecomouma arma que assegurará, um dia, a chegada de um tipo de humanidadelargamentesuperior».

Mellor argumenta depois que aURSS se tornou precisamente nesse género deestado instrumental, o seu representante mais perfeito. Na sua análise, Mellorestabelece analogias com o final do Império Romano, os seus imperadoresdivinizados, o autocrático mecanismo administrativo, a rigorosa repressão dedissidenteseoseuconceitodocrimedesacrilégio.

Naexplicaçãodasegundacausa,anecessidadeesmagadoraeurgentedeserviçossecretospolíticos-militares,Mellordácomoexemploanecessidadeporpartedosexércitosmodernosde informaçãorápida,detalhadaecomplexaque temdeserextraídadosprisioneirosapesardasmedidasrestritivasquantoaotratamentodosprisioneirosdeguerra,asquaisforampostasdeladoporumgeneralalemãoqueasviacomoumarelíquiadenoçõesdecavalheirismodeguerra.

Datandoosmétodosmodernosderecrutamentoparaosserviçossecretosmilitaresdaguerra russo-japonesade1905,Mellorpassaadescreverodesenvolvimentodas técnicas de espionagem e contraespionagem, o aparecimento de quadrosespeciais para levarema cabo esta tarefa e amudançadepercepçãoquanto ao

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lugardoespiãonosassuntosinternacionais.Mellornotaque,particularmentenoperíododasguerrasrusso-turcasde1877-78edaguerrarusso-japonesade1905,aprofissãodeespiãocomeçouaperderoseuestatutodedescréditoeaadquiriralgumdofascínioquepossuiuatémuitorecentemente.Em1914,atéumfilhodokaiserGuilhermeIIsetornouespiãocomaaprovaçãodopai.Mellordátambémalguma ênfase às dimensões económica, industrial e cultural que a espionagemadquiriu,juntamentecomassuasocupaçõesconvencionaisdeordemdiplomáticaemilitar.Passadepoisaconsiderararespostaqueosgovernos,nofinaldoséculoXIX,dãoaonovofenómenodaespionagem,talcomoaoterrorismo,culminandoemFrançacomosurgimento,nofinaldoséculoXIX,daDST(DirectiondelaSurveillance duTerritoire), que tivera origem noDeuxiêrneBureau domundomilitardoSegundoImpério.

De seguida, Mellor estuda o desenvolvimento da tortura perante estas novascondiçõesdepoderevulnerabilidadedoestadonaURSS,naItáliafascistaenaAlemanha nazi, o surgimento da «tortura da polícia» nos EUA,Argentina eFrança, eodesenvolvimentodos serviços secretos com técnicas«especiais»deinterrogaçãonorestodomundoemmeadosdoséculoXX.Osúltimoscapítulosdo seu estudo tratam de problemas sociais,médico-legais emorais provocadospeloressurgimentodatorturaperanteestasnovascondições.

QualquerdescriçãodoreflorescimentodatorturanosséculosXIXeXXtemdetomar em consideração alguns dos argumentos deMellor, uma vez que algunsdelessãoirrefutáveis.Noentanto,depoisdeMellor,muitainvestigaçãohistóricatemsidofeitaemgrandenúmerodestasáreaseverificou-sequealgunsdosseusargumentosnecessitamserrevistosereconsiderados.Háargumentostradicionaisa fazer, anacronismos a suprimir e, no interesse da exatidão, a perspectivaapaixonadatemdeserpostadelado.Porém,ahistóriadeMellormantém-seumaobraimportante.IstoporqueéumrelatodecomoaspráticasquecomeçaramnoséculoXIXcomosendoilegaisseforamtornandomenosrepulsivasparaalgunssectores da autoridade estatal; e de quando a lei, que iniciou o século comoantecedentedoestadoeprotegidaporeste,setornou,deumaformamuitomaisperfeitadoqueBlackstonealgumavezimaginara,num«instrumentodoestado»,econsequentementeatorturasetornounuminstrumentodalei.

Ainda que qualquer descrição do contributo do século XIX para oreaparecimento da tortura tenha que considerar os argumentos de Mellor, omesmonãodeveacontecerquantoàordemeàênfasequeesteautoremprega.Háuma certa lógica em considerar primeiro as práticas policiais, uma vez queestavammais próximas do alcance das instituições jurídicas comuns. Podemosconsiderar seguidamente os serviços secretos militares e a espionagem e

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subsequentemente, em áreas pouco exploradas por Mellor, o aparecimento deuma doutrina que propunha novas classificações para o crime político, asubordinaçãodaleiaosentidodeintegridadedefendidapelo«povo»,designadoemalemãoporVolksgewissen,eefetuadapelatransformaçãodaleiestatutáriaedo procedimento tradicional em lei administrativa e procedimento ad hoc, e osurgimentoparalelodeumadoutrinasemelhantequecolocouemcontrastea leiestatutária e as exigências de uma ideologia e ummovimento revolucionários.Concluímos finalmente com o aparecimento inicial da tortura em estadosrevolucionáriosefascistas,comochoquequefoiparaosestadosdemocráticoseliberaisquando,comonaArgéliadepoisde1954,sedescobriuquetalpráticaeramuitomais utilizada do que o conhecimento do que se passara naURSS, emItália,EspanhaeAlemanhadeixaraantever.

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Apolíciaeoestado

ComareformadoprocessocriminalnofimdoséculoXVIIIeoaparecimentodecódigos legais reformulados no início do século XIX, surge uma terceiracaracterística do direito criminalmoderno: a polícia.A reformada polícia e dosistemaprisionalnãosóandaramdemãosdadasduranteoiníciodoséculoXIXcomoforamambasmotivodegrandetrocainternacionaldemétodoseideias.Avisita deAlexis de Tocqueville aos EUA e a de John Howard a França sãoapenasduasdeumalistaconsiderável.Conceitoscomocrime,prisão,criminosose polícia estavam presentes no pensamento do começo do século XIX e odiferentedesenvolvimentodereaçõesaessasquestõesmarcaahistóriamodernadajustiçacriminal.OhistoriadorSamuelWalkerresumiudeformaconcisaessedesenvolvimento:

Desenvolveram-setrêsnovasinstituiçõesentre1820e1870apolícia,aprisãoeasprimeirasinstituiçõesjuvenis.Cadaumafoidesignadapararegular,controlaremoldarocomportamentohumano.Noqueserefereàpolícia,AlanSilverassinalaqueestarepresentouumacontecimentosocialepolíticoinaudito:«aintervençãoepresença contínua da autoridade política central no dia-a-dia». A vida estavasujeitaaumavigilânciaconstanteeocomportamento«inaceitável»erapunido.Damesmaforma,aprisãosubmetiaavidadecadaprisioneiroaumaobservaçãoecontroloconstantes.Ohistoriador francêsMichelFoucault,na suahistóriadaprisão[DisciplinaeCastigo],defendequeafábrica,aescola,apolíciaeaprisãotinham um objetivo comum: controlar o comportamento ou «disciplinar ecastigar».(PopularJustice,1980,p.56)

Emboraalgumasdestasobservaçõessejamclaramenteexageradasetenhamtido,namelhordashipóteses,umefeitointermitenteeirregularduranteoséculoXIX,o surgimentodaprisão e dapolíciamarcaumpontodeviragemnahistória dajustiçacriminal,aindaquenapráticanãofossemuitocompatívelcomareformadeideaisdofinaldoséculoXVIIIeprincípiodoXIX.

Alémdisso,sociedadesdiferentesdesenvolveramdiferentestiposdepolícia.EmInglaterra, onde a polícia foi o produto de décadas de pesquisa e demanobraspolíticas, desde Enquiry into the Causes of the Late Increase of Robbers, deHenryFielding,em1754,atéàcriaçãodeumaforçapolicial londrinaem1829porSirRobertPeel,o resultado foiumaorganizaçãoqueseassemelhavaaindamenos ao sistema voluntário e desordenado do exército inglês do passado (umtipodepolíciadealdeia)doqueaodopresente.DesdeosmotinsdeGordonem

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1780atéaomassacredePeterlooem1818,ospolíticosinglesesficaramcadavezmais insatisfeitos com o velho esquema do polícia de aldeia enquantopermaneciamapreensivosquantoàutilizaçãodoexércitoparaacalmardistúrbiosdaordempública.Estaduplapreocupaçãocontribuiubastanteparaacriaçãodeuma força policial que em nada merecia tal designação. O esforço de Peel eoutros oficiais da polícia ultrapassou os receios das autoridades locais, queestavam descontentes com o desaparecimento dos polícias de aldeia, e dospolíticos liberais, que temiam que uma força policial demasiado forte –especialmente do tipo gendarmerie que tinha aparecido em França durante aRevolução – pudesse aumentar o poder do governo e perturbar a políticadoméstica.A solução inglesa foi o desenvolvimento de, nas palavras de EricMonkonnen:Umnovo tipo de burocracia, situado num espaço social ameio caminho entreuma forçamilitar eogrupodepessoasa controlar.Ouniforme semi-militardapolíciametropolitanasimbolizavaestaposiçãodanovapolícia–nemcivilnemmilitar … O uniforme simbolizava a posição inerentemente ambígua da novapolícia, uma vez que pelo seu aspecto era impossível dizer de que lado seencontrava,sedoladodoestadosedodacomunidade.(PoliceinUrbanAmerica1860-1920,1981,p.39)

Responsável perante o parlamento por intermédio do ministro do Interior, apolícialondrinapermaneceusobrigorosocontrolojudicialeparlamentar,atuavacomorepresentantedaConstituiçãoeagiadeformadelicadamasdistanciadaemrelaçãoàpopulaçãocujasatividadestinhadecontrolar.

Teoricamente seguindo o modelo da polícia metropolitana inglesa, as forçaspoliciaisamericanasdesenvolveram-senumasociedadediferentee surgiram,noinício do século XIX, como uma instituição bastante diferente. Determinadascircunstânciaseopções levaramàcriaçãodeváriosmilharesde forçaspoliciaisindependentesnosEUA,cadaumaestreitamenteligadaàsforçaspolíticaslocaise,porconseguinte,servindoapenasumapartedapopulaçãolocal.Asubsequentefraqueza na execução das leis e nosmecanismos de investigação devia-se, naspalavras de Charles Reith, «ao facto de, como escolha do povo, a polícia terpodido tornar-se,corruptamente,em instrumentoe servidoranãoda lei,masdapolítica e dos manipuladores da política local corruptos.» Além da polícia,tambémosadvogadosdeacusaçãolocaissedeixaramenredarpelosinteresseseforçaspolíticaslocais.

OdesleixoaqueseassistiunaAméricanoiníciodoséculoXIXrelativamenteaatividadescriminosas,agrandeamplitudedadiscriçãoadministrativaejudicial,aextraordinária liberdade do júri americano, mesmo se comparado com o júri

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inglês, a aceitação por parte dos tribunais dos Estados Unidos de provasadquiridasilegalmenteeaexcentricidadeeincoerênciadassentençasedaspenasderamàpolíciaamericanaliberdadeparaatuarconformedesejasse,muitasvezescontidamaisporpressãopolíticadoqueporprincípiosousupervisõesjudiciais.Como consequência, houve uma reclamação pública crescente para que seoperasseuma reformadapolícia.Estemovimento,marcadodediversas formasporTheodoreRooseveltcomocomissáriodepolíciadacidadedeNovaIorqueeporprofissionaiscomoRichardSylvestereAugustVollmernaviragemdoséculoXX,resultounumareformafragmentáriadecadadepartamentoaté1931.

Nesse ano, contudo, o extremamente influente «Relatório Wickersham»tecnicamente denominado o Relatório da Comissão Nacional para oCumprimento e Execução da Lei, relatou com pormenores sinistros o carácterarbitrário e coercivo das práticas policiais nos EUA. Este relato veio reavivarrelatosanterioreseasescritasespecíficasque tinhamsurgidoalgunsanosantesem jornais especializados como o Harvard Law Review, o University ofPennsylvaniaLawRevieweoUniversityofMichiganLawReviewefoiseguidode duas popularizações das suas descobertas: Our Lawless Police (1931), deErnestJeromeHopkins,eTheThirdDegree:americanpolicemethods(1933),deEmmanuelH.Lavine.A lenta reformadapolícia foientão retomadadepoisdorelato do «RelatórioWickersham» e o procedimento da força policial passou aestar mais próximo do judicial e da Constituição. As revelações de tortura àmargemdeumsistemajudicialinconsistente,isoladoesemqualquerinteresseoucontrolo sobre a polícia, ilustram um aspecto clássico da moderna história dapolícia relativamente à tortura e outras violações dos direitos civis. Quando ainformaçãodetestemunhas,ouasprópriasconfissões,eramobtidascomcoação,fora do alcance do poder judicial, e eram depois aceites como provas peranteeste–semquehouvessequalquerconhecimentooficialdessesatosdetortura-,atorturanãotinhadesernecessariamenteumincidenteoficialdejurisprudênciaaapresentaraopoderjurídico.

EmInglaterraapolíciaforanacionalizada,afastadadapopulaçãoeinspecionadapelopoderjudicialeoparlamento.NosEUAapolíciaestavaafastadaapenasdeumapartedapopulação, tinhaumcarácter localeera inspecionadaunicamentepor autoridades políticas locais com poucos conhecimentos jurídicos ou, porvezes, por alguns juízes e advogados. Mas outros países ocidentaisdesenvolveramaindaoutrostiposdeforçaseprocedimentospoliciais.Agrandeeficiência e presença universal da Polícia Revolucionária em França que tantoassustaraosopositoresinglesesdaforçapolicialdePeelparecemtersetornadomaismoderadasnaépocadeNapoleãoenos regimesposteriores.AlecMellor,porexemplo,nãoencontrouqualquerregistodetorturapolicialemFrançaantes

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da Primeira GuerraMundial. Segundo este autor, a tortura terá começado porvoltade1929,tendoaumentadoatéaofimdaSegundaGuerraMundial.Parecedatardesteperíodoovergonhosopassageàtabac,expressãofrancesaequivalenteao «Terceiro Grau» americano, traduzível por «tratamento rude» ouespancamento. Mas a relativa moderação das práticas policiais francesas noséculo XIX pode ser resultante da formidável rede de serviços secretosdesenvolvidapelapolíciafrancesaantesaindadarevoluçãode1789,melhoradapor Fouché sob o regime de Napoleão I e mantida da durante a SegundaRepúblicaeoSegundoImpériopelossucessoresdeFouché.Osamplossistemasdeinformaçãopolicial,adetençãopreventiva,ainexistênciadecaução,ousodedoismagistradosnoprocessocriminalfrancês,aexigênciadeprovassubstanciaisparaconsolidarumaacusaçãoeodireitoconferidoaojuizdeprimeirainstânciade chegar a um veredicto baseando-se na condenação pessoal são fatores queparecemter resultadoemFrança,antesdaPrimeiraGuerraMundial,nosentidode evitar o uso da tortura pela polícia, quer na velha acepção normal quer naacepçãodanovapolícia,comonosEUA.

Desde modo, vemos que não existe qualquer indício de uma relação entre asforças policiais e a tortura no séculoXIX,mas há provas suficientes de que apolíciacontribuiu,nosEUAeemqualqueroutraparte,aindaqueindiretamente,paraoressurgimentodatortura.

Oproblemaagravou-sequandoasforçaspoliciaisforamutilizadasparalidarcomdelitostantodenaturezacriminalcomopolítica,quandoapolíciaeravigiadacommaior oumenor rigor por outros sectores governamentais ou quando a políciacomeçou a ser controlada pelos governos e não por um poder judicialindependente.Ahistória recentedapolícianaRússia ilustraeficazmentealgunsdestes aspectos.Apesar das reformas administrativas dos czaresAlexandre I eNicolauInoiníciodoséculoXIX,que,comojávimos,aboliramformalmenteatorturanaRússia,até1880aRússiapossuíadiferentesforçaspoliciais,cadaumacomoseupodereresponsabilidade,algumasdasquais,segundoestudosrecentessugerem,fizeramusodatorturanasdécadasde1860e70.OrganismoscomooCorpo de Gendarmes, as forças policiais regionais do governador geral, aTerceiraSecçãodoSupremoTribunaldeJustiçaeasforçaspoliciaisurbanassobcomando do Ministério daAdministração Interna (MVD) foram fundidos, em1880, no Departamento de Polícia Estatal, sob o comando do Ministério doInterioreainfluênciadeM.T.LorisMelikov.Apesardasuagrandeamplitude,estasreformasnãoparecemtersatisfeitoosobjetivosdosseusmentores,poisem1881houveorganizaçõesdepolíciasecretaqueseinstalaramseparadamenteemSampetersburgo eMoscovo. Pensa-se que foi sobretudo após 1881, quando oOkhrana se tornou no principal instrumento deAlexandre III para detecção e

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repressão do terrorismo, que o uso de tortura por parte da polícia se espalhounovamentenaRússiaczarista.

O aumento da burocracia administrativa na maioria dos estados da Europa eAméricadoNortenofinaldoséculoXIX,conjugadocomasforçaspoliciaisquersob o controlo político independente quer com forças policiais especificamenteencarregues de funções políticas, abriu caminho ao reaparecimento da torturainclusivamente em países em que esta era proibida nos campos jurídico eestatutário.

O estado criara outros cargos, funcionários para além dos juízes aos quais atortura podia ser confiada, e a proibição estatutária pouco significava secontrolasseapenasosjuízeseosadvogadosenãoosfuncionáriosdoestadoforadoseualcance.

O crescimento de uma polícia de segurança do estado, uma polícia política, étalvezacausaderradeiradoressurgimentodatorturanoséculoXX,masatítulocronológicoe institucional foiprecedidapelo segundodosórgãosextrajudiciaisdoestadomoderno:asforçasarmadas.

Guerra,prisioneiroseserviçossecretosmilitares

ApesardaspaixõesdespertadaspelasguerrasreligiosasdosséculosXVIeXVIIepelasguerrasdinásticasdoiníciodoséculoXVIII,asantigasnoçõesdeleisdeguerra, pelo menos aquelas respeitantes à soldadesca, continuaram a serreconhecidasnoséculoXIXeacatadas.

O período de alguns conflitos bélicos do segundo quartel do século XVIIIcoincidiu com asmudanças de ordem política emoral já apontadas. Tal comoaconteceu com a aplicação da lei, também a prática da guerra esteve sob ainquirição pormenorizada do Iluminismo e, mais uma vez, as regras quenorteavam tanto os combatentes como os não-combatentes foram discutidas,reformuladase,porvezes,cumpridas.Noentanto,depoisde1792,novasideiasforam infundidas na prática da guerra, transformando, entre outras coisas, otratamentodosprisioneiroseaaquisiçãodeinformaçõesmilitaressecretas.

Emprimeirolugar,auniformizaçãodaseveradisciplinamilitarcriouumtipode

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vida no meio militar que brutalizava mesmo quando procurava controlar ehomogeneizaracondutadossoldados.Oapeloaoscidadãos-soldadosporpartedos revolucionários franceses iniciou o processo de identificação da causa doestado e do soldado como uma só.Os exércitos deNapoleão tornaram-se nospercursoresdosgrandesexércitosdecidadãos.Talcomoatraição,aguerranãoeramaisumaquestãopuramentedereisoudosseusministros,massimdepovosinteiros,dosseusprincípiosmorais,bemcomodosseussentimentos.Estesnovose vastos exércitos de cidadãos, de organização complexa e tecnologicamentesuperiores,requeriamregrasecomandantespróprios.Estesdetinhamaautoridadejudicialinternabemcomooconhecimentotecnológicoquelhespossibilitavaummelhor armamento e equipamento das tropas. Qualquer que fosse o tipo deinformaçãodadapelosprisioneirosouextraídapelosespiõespodiasercrucialeeraprocuradacomalgumaansiedade.Ointerrogatóriodeprisioneirosdeguerra,levado a cabo sob os ânimos exaltados pelo combate, norteado apenas pelomínimo de regras obrigatórias, contra um inimigo sem a proteção de uma leicomum,marcaotipodecondutadeguerracaracterísticadomundomoderno.Atémesmo a realização de uma série de convenções internacionais, os acordosdiplomáticos e a considerável literatura sobre os direitos dos prisioneiros nãoparecemterimpedidoquealgunsmilitarestenhamdesenvolvidoassuasprópriasregras para lidar com os prisioneiros potencialmente capazes de fornecerinformação. Relativamente aos espiões capturados, é óbvio que havia aindamenosconsideraçãopelosseusdireitos.AtéàPrimeiraGuerraMundial,oespiãodesempenhouummétiervil,umaocupaçãoinfamequenãolhegarantiaqualquertipo demisericórdia em caso de captura.No terceiro quartel do séculoXIX, aespionagem era uma ocupação com muitos representantes. Estima-se que em1870 a Prússia tivesse trintamil agentes comvárias funções ao seu serviço.ApartirdemeadosdoséculoXIX,cresceuonúmerodepaísesquereconheceramaimportânciadosserviçossecretosmilitareseque,simultaneamente,maltratavamosespiõesdoinimigoquecaíamnassuasmãos.

Tanto o caso do prisioneiro de guerra como o do espião capturado refletem aautonomiamilitareagrandenecessidadedeserviçossecretosmilitares.Estestêm,emparte,origemnacrescentevulnerabilidadedassociedadesindustrializadas.Aconstituição das forças militares e a nova necessidade de serviços secretosmilitaresprovocaramalguma tensão relativamente aosvelhos enovos ideaisdeguerra,desdeoantigocavalheirismoatéaosmecanismosdiplomáticosdoséculoXIX.Emboramuitosestados tenhamdeclaradoreconhecerasresponsabilidadeshumanitárias de estar em guerra com inimigos, foram muito poucos os queconseguiram controlar minuciosamente a conduta de tais intervenientes. Acrescente independência dos chefes militares e o aumento das capacidadesdestrutivasdosexércitosmodernosexerceramgrandeameaçaquantoàsdoutrinas

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que defendiam o respeito pelos direitos dos prisioneiros e não-combatentes, epoucocontribuíramparamelhorarasituaçãodosespiõescapturados.

Talcomooscidadãossetornaramsoldadosealvosmilitares,algunstornaram-setambémcombatentes,comoresistentesourevolucionários,forçasdeguerrilhaemambos os casos. E, tal como RaymondAron observou, «a disputa da guerraclandestina requer mais brutalidade e terror do que a do exército normal». Omesmo se passa com o tipo de guerra industrializada que exige o controlo edisciplinadoscivisinimigos,umexércitodeocupação.

Tal comoMellor defende, talvez não tenha sido, de facto, senão no início doséculoXXquetodosestesnovosaspectosdaatividademilitarforamusadosemconjuntodeformasuficientementesistemáticapararevelarasforçasmilitaresdosestadosmodernoscomo«capazesdeescondersobasleisdeguerraumapoderosaQuasi-jurisprudênciaquepossuíanãosópróprias,mas tambémassuas regras».Mesmo antes da guerra russo-japonesa e da Primeira GuerraMundial o poderilimitado dos militares constituiu uma segunda área relativamente poucocontroladapelopoderjudicial.

Antes destas datas, particularmente durante o século XIX, surgiu o terrorismocivil, que foi amplamente difundido pela imprensa e mais tarde deu origem aromances,livrosdememóriasefilmes.Oterrorista,talcomooespião,tornara-seumheróidaficção–edarealidade.Osexcessoscometidospelapolíciaepelasforçasmilitaresforadoalcancedajurisprudênciacivilnãoraramenteencontrarameco entre os populares, que possuíam agora mais informações, emborapossivelmentepoucoprecisas,acercadosperigosqueoestadocorria,bemcomoda necessidade de tomarmedidas extraordinárias para o defender e destruir osseus inimigos.A vulnerabilidade do estado pode ser medida, pelo menos emparte,pelasuamudançadeatitudefaceaocrimepolítico.

Ocrimepolítico

Tal como sucedera com o conceito de traição de Blackstone, as primeirasdesignaçõesdecrimepolíticonaEuropaestavamligadasàpessoadomonarcaeaos seus funcionários imediatos. Como Pierre Padadatos salientou (Le délitpolitique,1955),umadasmudançasmaisdignasdenotadocódigopenalfrancês,em1791,consistiunumanovadefiniçãodecrimepolíticocomosendoumdelito

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contra o estado; não propriamente a ofensa personalizada de lèse-majesté,massim a ideia de lèse-nation,A partir desta data, nalguns países da Europamaislentamentedoquenoutros,afiguramaisabstratadoestado,danaçãooudopovopassouaserapontadacomooalvodocrimepolítico,emvezde,oupelomenosemvezdeexclusivamente,omonarca,asuafamíliaeservidores.Aprincípio,ograndehorizontedocrimepolíticotornou-semaisamploemuitasdascategoriasanterioresforaminseridasnanovalegislação,queresultoudanovateoriapolítica.Noentanto,apesardoTerrorde1793edasdécadasdeimperialismoereaçãoqueseseguiramaté1830emFrança,ohorizontepermaneceuestreito.Osprimeiroscapítulos da históriamoderna do crime político foram, de facto,marcados pelaseveridade,masmaisaindaporprincípiosliberaise,tantoquantosesabe,práticasliberais.

ComoMellormostrou,nemosGirondinosnemosJacobinos,NapoleãoouLuísXVIII,aMonarquiadeJulhoouaSegundaRepúblicaparecemterreintegradoatorturanasleisenapráticadapolíciafrancesa,quernocampocriminalquernodomínio político. Considerando os outros passos do controlo político praticadopor estes regimes e tendo em conta a má fama da Segunda República e doSegundoImpériocomo«estados-polícia»,énotávelqueanaçãoeuropeia,tendoassistidoaostormentosdamodernapráticapolítica,tendopassadoporoscilaçõesbem mais dramáticas entre revolução e reação do que qualquer outra nação,nunca tenha retomadoousoda torturaduranteesseperíodo.AOrdennancedeLuísXVde1778sobreviveuaoCódigoRevolucionáriode1791,aoCódigodosDelitosePenasde1795,aoCódigodeInstruçãoCriminalde1808eaoCódigoPenalde1810,mantendo-senaleifrancesaatéhoje.Algunsaspectosdocrimepolíticoalteraram-sedramaticamente,desdeapolíticapenalatéàdeportaçãoeexílio.Noentanto,estenãoéo lugarmaisapropriadoparatraçarumahistória,aindaquebreve,sobreumaquestãotãovasta.Deformaigualmenteocasional,algunsdelitosforamreintegradoseredefinidosnoscódigosdoestadoduranteosséculosXIXeXX.Aconivênciaemcrimedealtatraiçãoporomissão,ouseja,ofactodenãoapresentarinformaçõesàsautoridadessobreconspiraçõesoucrimespolíticos,foiinstituídanoCodefrancêsde1810,abolidaem1832,masreintegradaem1939.FoiinstituídanaRússiaem1649,emHesseem1795enaPrússiaem1798.

Foi, no entanto, abolida no novo Código alemão de 1871. Em Inglaterra foiincluídanumdecretode1797.É tambémverdadeque,àmedidaqueosdelitosconsiderados políticos aumentavam, as respectivas penas tornavam-se maissuaves.Ahistóriadocrimepolíticoéumassuntodemasiadovastoparaquepossaaquisertratadodeformaconveniente.

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Contudo,algunsaspectosdocrimepolíticotêmumpapelcrucialnaavaliaçãodotemperamento judicial dos estados do séculoXIX e começo do séculoXX.Aconclusão que um grupo de funcionários do governo e pensadores do campojurídicotiroudaexperiênciaeuropeiaentre1789e1830,comojávimosalgures,foi a de que seria ideal e necessário um poder judicial independente. FrançoisGuizot, por exemplo, defendia que os delitos políticos estavam para além dacompetênciados sistemas jurídicose representavamumcertoperigoparaestes,poisforçavamasdefiniçõeslegaisparaalémdoslimitesprevistospelosjuristaselegisladores que as tinham criado, tendiam a forçar as leis de acordo com osacusados,eramumconviteaojulgamentomaisbaseadoemintençõesdoqueemfactos, permitiam que as suspeitas se sobrepusessem às provas; os tribunaispossuíamdemasiada informaçãosobreosarguidos,em julgamentospolíticososindivíduos eram julgados de acordo com ideias políticas gerais e não segundodelitos particulares, frequentemente os depoimentos eram feitos por espiões,delatores e agents provocateurs, muitas vezes se via o procurador-geral comoacusador, e a imprensa era não raramente expulsa das salas de audiência. Estacríticaaoproblemadopoder jurídicocomoscrimespolíticos teveeco tambémnoutras áreas.A influênciadasdoutrinasde JeremyBentham, emparticularnoCodefrancêsde1810,fezcomqueosequilibradosprincípiosdajurisprudênciautilitária se coadunassem com o humanitarismo. Em resumo, em França,Inglaterrae,comojávimos,tambémnaRússia,operíodoentre1830eoiníciodoséculoXX foi o queBartonL. Ingraham apelidou (PoliticalCrime inEurope,1979)dePrimaveraeVerãode«clemência»noqueserefereaocrimepolítico.

Apesardemuitosgovernospreconizaremalgumasnovaspenasparaosacusadosdecrimepolíticoefazeremumarevisãocontínuadadefiniçãodecrimepolítico,eembora um certo número de governos se tenha especializado em infiltrarinformadores,espiõeseagentsprovocateursemgrupossuspeitos,nãopraticavama tortura. Também a tendência após 1848 para distinguir anarquistas decriminosospolíticosda«oposição» tevecomoprincipal resultadoaexclusãodealgumas categorias de anarquistas criminosos da proteção das novas e maisliberaisleisrelacionadascomocrimepolítico.Estapráticapareceter-setornadomais comum depois de 1886, particularmente em casos de espionagem e emjulgamentosdeanarquistas.Aprincipalliçãoatirardestaexperiênciaéadequeprovavelmenteaaboliçãoefetivaeteóricadatorturanãobaniunecessariamenteatendênciadealgunsestadosserem,naprática,maisautoritáriosdoqueosliberaisgostariam.

Todavia, o tratamento que os liberais deramno geral ao crimepolítico durantequase todo o século XIX e começo do século XX levou a duas situaçõesimportantes para a história da tortura. Levou a uma detalhada e prolongada

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consideraçãodanaturezaeautoridadedoestado,vistasdeváriosângulos.Levoutambém ao começo de uma história sobre o leniente tratamento dado ao crimepolítico,contraoqualpoderiahaverreaçõesmedianteamudançadeatitudesfaceaalgunsgénerosdecriminosospolíticosnofinaldoséculo.Osprimeirosaseremafetados foram os anarquistas, mas para além de anarquia e terror houve umatransformaçãodeatitudesrelativamenteaocrimepolíticoeaopróprioestado.

Tal como os historiadores do crime político têm frequentemente apontado, Ospensadores que no séculoXIX se dedicaram a este assunto consideraram doistipos: o interno e o externo. Foi o primeiro que, praticado por pessoasreconhecidascomomagnânimas,denobresprincípios,ereformadoresidealistas,recebeuotratamentomaissuavedurantequasetodooséculoXIX.Quando,após1870, bastantes estados europeus se voltaram uma vez mais para as ameaçasexternas, particularmente depois de uma primeira propagação de fortessentimentosdenacionalismoeamanipulaçãodestespelaconcessãodeprivilégiosepelapropaganda,ocriminosopolíticocorreuoriscodeserapresentadocomoum traidor da unidade nacional, de um povo (do qual o estado era meraexpressão) e não como um reformador idealista. A mais dramática destasmudanças foram provavelmente as lois scélerates, as «leis infames» da últimadécadadoséculopassado.

AInglaterra,semprereceptivaaosrefugiadoseexiladospolíticosdurantegrandepartedoséculo,tornou-seelaprópriaanti-anarquistadepoisde1894.

Agrande transformaçãodasatitudeseda legislação faceaocrimepolíticodatados anos imediatamente anteriores e posteriores à Primeira Guerra Mundial.Como Ingraham sucintamente mostrou em Polítical Crime in Europe, o crimepolítico tornou-se mais condenável e o crime político interno veio a serequiparado ao externo. Uma causa para tal mudança foi certamente a novaerupçãodastensõesdiplomáticaseasguerrasaseguira1870,anunciadaspelosconflitosrusso-turcoerusso-japonêsde1878e1905,epeloespectrodaPrimeiraGuerraMundial ao longodasduasprimeirasdécadasdonosso século.Estadosque pareciam satisfazer as exigências daqueles com maior relevo políticopareciam agora satisfazer menos gente. Criticados por estados rivais, pormovimentosinternacionaiseforteoposiçãointerna,osestadosdoiníciodoséculoXXaperceberam-sedequeerammuitomaisvulneráveisàhostilidadepolíticadoque tinham sido durante quase todo o século XIX. Para além desta novahostilidade e vulnerabilidade, o estado adquirira outras características nos finaisdo século.Aspectos relacionadoscoma comunidadenacionalquenoprincípiodo século pareciam tão abstratos, segundo o pensamento de Hegel, e tãoapolíticos, segundo Herder, no final do século tinham-se tornado muito mais

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concretosepolíticos.Defacto,onacionalismoorgânicofoiumprodutodofimdoséculo quando, para usar as palavras de Eugen Weber, os camponeses setransformaramem franceses, tal comoaconteceucomospequenosburgueses eoutros,eemoutrospaísesosnacionalismostornaramopovoinglêsmaisinglês,erenanos, saxões, prussianos e bávaros tornaram-se alemães.A identificação doestado com a etnia da comunidade nacional, apoiada pela propaganda e pelalegislação, constitui para um estado do início do século XX um organismobastante diferente do abstrato estado do Iluminismo e dos seus sucessores doséculoXIX:osecléticos,classicistas,utilitáriosepositivistas.Agora,oestado,talcomoalei,representavaepersonificavadefactoumpovo,operandodeacordocom a vontade deste. Aqueles que se lhe opunham, quer fossem criminososcomunsoucriminosospolíticos,opunham-seàvontadedopovoegradualmenteos criminosos políticos eram encarados como mais perigosos – e maisrepulsivos – do que os outros criminosos. Para o estado-povo, a espionagemtornou-se uma ocupação honrosa, tal como se tornaram outras leis até entãosuspeitasemenosprezadas.

Juntamentecomanovaconcepçãodoestadonacionalsurgiu,depoisde1917,onovo marxismo revolucionário que utilizava alguns estados como merasorganizações políticas interinas, destinadas a promover os objetivos de umafilosofiainternacional.Adefesadoestadonacionalimplicavanãosóadefesadopovo, mas também a sua defesa face a estados inimigos e a movimentosrevolucionáriosinternacionaisquedesprezavamosestadosétnicosporseremantioucontra-revolucionários.Destaforma,oprópriocrimepolíticosofreualteraçõesna viragem para o século XX. As condições em que era cometido tambémmudarameaanteriorconcepçãolenientedecriminosopolítico,legisladanoiníciodoséculopormuitosgovernoscujosmembrostinhamsidoemtemposcriminosospolíticos, desapareceu perante poderes como a nação-estado e a filosofiarevolucionária.Emseulugarsurgiuumelevadoconceitodecrimepolíticoeumaextensão da própria palavra «político». No que diz respeito à lei e a outrosmecanismosdoestado,anovaimagemdocrimepolíticorefletiaavulnerabilidadeconceptualeefetivadanação-estadodoséculoXX.

Isto porque ao lado do novo conceito de crime político apareceram tambémgrupos aindamaiores deverdadeiros criminosospolíticos, tal comooutros que,por razões afastadas das definições convencionais, se tornaram criminosospolíticospordefiniçãoarbitráriadoestado.

Em grande parte, as posições mais radicais do anarquismo do século XIXcorrespondemàvulnerabilidadedoestado.Comefeito,].L.Talmonparafraseoumuitadiscussãoanarquistasobreosdireitosdosrevolucionários:

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Asuamissãoerarebelar-se,agircontraalei,contraumalegalidadequeeracomoo demónio em pessoa. Isto convidava, exigia e justificava ações nãoconvencionais e desobedientes à lei, fraude, engano e violência. Como só adeterminação fanática e a ação implacável podiam surtir efeito e ser bemsucedidas, a capacidade para as comandar tornou-se num teste não só daeficiência,mastambémdaforçaeprofundezadaconvicçãoedevoção.Aaversãoaummundoperversoeacoragemdenãoretrocedernemumpouconoprocessoparadestruirexigia,porsuavez,umaprofundaeapaixonadacrençanabondadeabsoluta, na pureza e na capacidade salvacionista do mundo que osrevolucionários estavam destinados a despertar. (The Origins ofTotalitarianDemocracy,1970,p.315)

Nas suas posiçõesmais radicais, o anarquismo do séculoXIX em nada ficavaatrásdequalquerretóricasemelhantedoséculoXX.Nasuaépoca,foimuitomaiseficaz do que é agora, porque era mais original, porque não entrara ainda narotina.Destaforma,estadossemrevoluçõesdesenvolveramcategoriasdecrimepolíticopormeiodasuafortedissidênciapolíticainternaeintensaoposiçãoexterna,querpor parte de potências rivais quer por movimentos revolucionários. Por outrolado, os estados revolucionários tinhamas suas bases lógicas para rever a lei eredefinircrimepolítico.Foramestesosprimeirosestadosausaratorturadeformamaisvisívelerotineira.

Aleieoestadonassociedadesrevolucionárias

DuranteosprimeirosanosdoséculoXXhouveumnúmerodepaísesemqueatradicionalseparaçãoentrealeieapolíticaeraporvezesabolida,tendoemvistaacriaçãoderegimesmaisforteseimplacáveiseemnomedeumaideiaampliadaoudiminuídadoestado.

A primeira nação-estado europeia em que tais regimes e ideias vingaram foi aRússia depois de Outubro de 1917. Porém, há um grupo de estadoshabitualmente rotulados de fascistas que oferecem uma maior variedade deexemplos.Quandoem1929umgovernorevolucionáriosubiuaopoderemItália,foilideradoporBenitoMussolini,elepróprioumrevolucionáriosocialistarecém-convertido. Alec Mellor cita a definição do novo estado fascista com queMussolini contribuiu para a Nova Enciclopédia Italiana de 1932 (La Torture,

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1949): «O homem não é nada. O fascismo insurge-se contra a abstraçãoindividual, baseada em fundaçõesmaterialistas e utopias. Para além do estado,nada há de humano ou espiritual que tenha qualquer espécie de valor.» Nofascismoitaliano,oestadoerarepresentanteeagentedeumaentidademuitomaisvasta, a nação do povo. Nada fora dela – e nada mais dentro dela – tinhaautoridadelegítima.Apesardaresistênciadealgunssectoresdoexércitoitalianoede algumdopoder jurídico a estas pretensões e àsmudanças do procedimentojudicial que se lhe seguiram, o governo italiano e os funcionários públicos dopartido detinham uma autoridade extraordinária na sua reivindicação emanutençãodopoder.Depoisde1929aOVRA OrganizaçãoVoluntáriaparaaRepressão doAntifascismo-, a polícia secreta, usou regularmente a tortura emsuspeitos inimigos do estado, do partido e do povo (Finer, Mussolini’s Italy,1969).

Depois de 1932, doutrinas semelhantes deram alguns passos em frente naAlemanha.Opróprioestadoalemãotornou-seumsimplesveículoadministrativodoPartidoNacionalSocialista.Olíderdopartido,AdolfHitler,personificava–segundoapropagandadopartido–avontadeeacomunidadedopovo,oVolk;eeste Volk, como comunidade nacional histórica, era concebido comoradicalmente exclusivo. Neste caso, até o partido se tornou em algo bastantediferentedospartidosconvencionais,talcomoHitlermordazmenteobservou:

«Ospartidospolíticosestãoinclinadosparaoacordo,masasdoutrinasfilosóficasnunca.Ospartidospolíticoschegamaacordoatécomosinimigos,asdoutrinasfilosóficasautoproclamam-seinfalíveis.»(Mellor, La Torture, p. 207). O Partido Nacional Socialista não era, porconseguinte,umpartidonasuaacepçãonormal,masantesapersonificaçãoativada infalível «filosofia»deumpovo,oVolk, aoqual tantoo estado comoa leiestavam forçosamente subordinados. Neste universo, as velhas doutrinas doIluminismo do estado abstrato, tal como o pensamento a princípio bastantediferentedeHerder,HegeleFichte,encontraramumapoderosaforçapopularemquesepudessemexpressar.

O partido usava o estado em nome da nova e exclusiva definição deVolk.ÀcomunidadedoVolk,doVolkgemeinschaftouVolkgenosse, eramdesta formaimputados o discernimento e a vontade individuais. Isto era o elemento daostensiva validação tanto do estado comodo partido. Fazer parte integrante dopovo,Volkstum,representavaomaisaltoeexclusivodosvalores,asalvaguardadetodaahonraeosignificadoderradeiroparaoserindividual.OindivíduonãopossuíaqualqueridentidadeouvalorforadotodoqueconstituíaoVolk.

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Talcomoosvelhosconceitosdepartidoeestadoestiveramsubordinadosàmaisampla visão e dedicada atuação do Partido Nacional Socialista, o mesmoaconteceuàvelhanoçãodelei.ComoOttoKirch heimerobservou.

A separação entre lei e moralidade, um axioma do período do capitalismocompetitivo, foi substituído [em 1939] por uma convicção moral diretamentederivada da «consciência racial», Volkgewissen…A «consciência racial» foiintroduzidanodireitopenalpormeiodaelevaçãodeconceitoscomo«bem-estardo povo» e «saudável sentimento nacional» a padrões oficiais e normativos.(PunishmentandSocialStructure,1939,pp.179-80)

As consequências jurídicas da teoria e pratica do nacional-socialismocompreendiam a criação de tribunais especiais, o alargamento da definição decrimespolíticoseaintensificaçãodosmétodosdeinterrogaçãoepunição.Depoisde1933,umasériedetribunaisespeciais,Sondergerichte,trataramdecasosqueopartido julgava demasiado importantes para seremdeixados a cargo do sistemajudicial sobrevivente, cujos juízes não eram suficientemente de confiança parachegar a um veredicto politicamente aceitável. Em 1934 foi criado oVolksgerichtshof, tribunal encarregue de casos de traição e só parcialmentecomposto por juristas profissionais. Os seus restantes membros provinham deorganizaçõesdopartidoenãopossuíamqualquertreinoouexperiênciajurídica.O Volksgerichtshof era um tribunal de última instância, donde não se podiarecorrer e que raramente prestava proteção aos acusados. Como Kirchheimercruamentedeclaroualgures:

O sistema da racionalidade técnica como fundação da lei e prática judicialsuplantou [em 1941] qualquer outro sistema pela sua preservação dos direitosindividuais e, desta forma, fez da lei e da prática judicial um instrumento dedomínio e opressão implacáveis no interesse daqueles que controlavam asprincipaisalavancaseconómicasepolíticasdopodersocial.

Oprocessodealienaçãoentrealeieamoralidadenuncafoitãolongecomonasociedadequealegadamenteaperfeiçoouaintegraçãodestasmesmasconcepções.(Politics,LawandSocialChange,1969,p.109)Tal comoo estado, a lei ficou ao serviço do partido e doFührer emnomedoVolk.O«sãosentidodejustiçadopovo»,ogesundesVolksempfindung,tornou-senaúnicanormacontraaqualosdireitosindividuaiseoprocedimentojudicialdeviamsermedidos–masessesentidofaltousempre.Mellor(LaTorture,p.211)citaadefiniçãodeFriedrichFrick,oministrodoInterioralemão,em1933:«Aleiserveopovoalemão.Éainjustiçaqueoprejudica.»

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Os historiadores têm frequentemente observado que as sociedadesrevolucionárias,medievaisoumodernas,sãogeralmenteconduzidaspor«novoshomens» – indivíduos de estatuto social incerto, sem laços com as estruturassociais tradicionais e por conseguinte não controlados pelas restriçõesmorais einstitucionais que operam nas sociedades tradicionais. Apesar de as elitestradicionais teremaprincípiocooperadocomeles,adivergênciaentreasvisõesrevolucionária e tradicional cedo desencorajou estes apoiantes, e osrevolucionários ficaram sós na redefinição de objetivos e na eliminação derestrições.

Durante o período do Terceiro Reich não foram só as estruturas do sistemajudicialaseremmodificadasoueliminadasemnomedoestadoedoVolk,mastambémoutrasleistradicionais,incluindoasquegeralmentereconheciamcrimespolíticoscomoatraiçãoeaespionagem.MellorcitaarespostadogeneralKeitel,em1941,aumprotestodoalmiranteCanariscontraotratamentoinconvenientedadoaosprisioneirossoviéticos(LaTorture,p.212):«Levantamestasobjeçõesinspiradasnumaconcepçãocavalheirescadeguerra,masoquenóstemosaquiéumaideologiae,porconseguinte,aprovoecontinuareiausarestesmétodos.»Oestado,ajustiçaeatéasregrasdaguerratinham-setornadorelíquiasanacrónicasdeoutraépoca.

Em Junho de 1942, ano em que a criação e autorização de serviços especiaisatingiuníveisinvulgares,HeinrichHimmleremitiuumaordememqueautorizavaousodoqueelechamavao«TerceiroGrau»eminterrogatórios,expressãoqueera claramente sinónimo de tortura. O Terceiro Grau era usado para extrairconfissões dos prisioneiros que na investigação preliminar tinham reveladoconhecimentodeinformaçõesúteis,particularmentereferentesàResistência:

Neste caso, o Terceiro Grau podia ser usado apenas contra os comunistas,marxistas, testemunhas de Jeová, sabotadores, terroristas, membros demovimentos de resistência, elementos anti-sociais ou rebeldes, ou vagabundospolacosousoviéticos.Emtodososoutroscasoseranecessáriaumaautorizaçãopreliminar.

OTerceiroGrau consistia numadieta de pão e água, prisão celular, exercíciosrigorosos,celasisoladas,privaçãodesonoeespancamentos.Emboraosmédicosfossemchamadosapósmaisdevintegolpes,Mellortemcertamenterazãoquandovêesteprocedimentocomoumaformadeevitarqueosprisioneirosmorressemsobtortura,ouseja,paraospouparaténovointerrogatório.ElemencionaalguresonotávelpapeldesempenhadopelosmédicosnoTerceiroReich,especialmentenos campos de concentração e morte. Como se verá no capítulo seguinte, o

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Terceiro Reich não só fez ressurgir a tortura como a transformou numaespecialidade médica, transformação essa que teve grandes consequências nasegundametadedoséculoXX.Anação-estadoeoVolkconstituemumadasviaspelasquaissedeuoregressoda tortura ao universo do séculoXX.A outra via prende-se com a história daideologia revolucionária.QuandoHitler falavade«doutrinas filosóficas»estavaapenas ausarumaexpressãopretensiosamente intelectualparadesignarVolk esangue.Assuasideiasnãoforamnempoderiamirparaalémdisto.Mas,querpormeio da Revolução Russa de 1917 quer pelas mais remotas sementes dosatrativos políticos do Iluminismo, emergiu um conjunto genuíno de doutrinasfilosóficasqueefetivamente,adadaaltura, levouapráticasqueos seusautoresnãoimaginariamnemreconheceriam.

A atitude dos regimes revolucionários modernos quanto à jurisprudência, aodireitoestatutárioeàprofissão jurídica temsidodedois tipos.Porvezes,comonoscasosdosEstadosUnidosedaFrançarevolucionária,asleisexistentesantesda revolução foram mantidas com alterações relativamente pequenas. Noutrasocasiões, os regimes revolucionários preservaram realmente muito mais dajurisprudênciadopassadodoque,noardorefúriadasuagestação,algumavezteriamdesejado.Noutroscasosainda,surgiuumsistemaduplodejurisprudênciano qual, pelo menos no século XX, os delitos «normais» e o litígio rotineirofuncionaramde forma tradicional, embora tenha havidomodificações na formadevidoaosnovosprincípios filosóficose ideológicosde justiça;contudo,certascategoriasde crime,dequeos revolucionários se aperceberamseremsensíveis,foramtratadasportribunaisdeacordocomprocedimentosinovadores.

Umsegundotipodeatitudesencarageralmenteasleisdoregimeanteriorcomoumexemplodos erros e corrupçãodeste, umdefeito basilar queprecisa de sercompletamente eliminado para que se crie uma sociedade totalmente nova.Robespierre realçou que num perfeito estado revolucionário não havianecessidade de leis, pois a concórdia entre a vontade popular e a do governoadministravaasociedade.

Até 1794, as doutrinas de Robespierre foram bem recebidas pela Françarevolucionária.ClaudedeSaint-Simon,sucessordeRobespierre,previutambémumasociedaderevolucionárianaqual,novamentealinhadasestruturaspolíticasevontadepopular,haveriaomínimo,seéquehaveriaalgum,demecanismosdeobediênciaàlei.

Mesmomaistarde,outrospensadoresrevolucionáriosinsistiramnaaboliçãodaleiem vigor a favor de uma «lei viva» criada por um artista revolucionário,

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rejeitandoopesoinertedaleiantigaafavordaleiprogressistaquerefletiaumasociedade progressista e, consequentemente, não podia ser codificada deantemão.

Detodasasfilosofiaspolíticasmodernas,osocialismotemsidotalvezamaisduraquantoaossistemasjurídicosexistentes,nãosóporqueestesrepresentavamumaestrutura do poder que era odiada, mas também porque representavam errosbásicos – os erros da burguesia que cria as leis como uma superstrutura paraesconderaconservaçãodopoderburguês,privilégioseriqueza.Muitadaforçadas ideias de Marx e Engels acerca da lei e do crime reside na sua apuradapercepçãodasinconsistênciasentreasdeclaraçõesdosburguesessobrealeieoscriminosos e a aplicação efetiva da lei, mesmo por parte dos estados liberaisdemocratas.

Assim,poderáser traçadauma linhadecríticautópicaàs tradicionaisestruturasjurídicaspassandoporRobespierre,MarxeEngelseemdireçãoaumgrupodeestadosrevolucionáriosdoséculoXX.Lenine,apósumalongacarreiraentreasvicissitudes das teorias socialistas acerca do sistema judicial, chegou a umaposiçãosemelhante:

Numa sociedade sem classes em que todos servem na milícia do povo, anecessidadedeumapolíciaespecialéquaseinexistente,poisopovoemconjuntoencarrega-sedavigilância,julgamentosepunições.Todososcidadãosparticipamativamente na legislação, segundo um sistema rotativo, como na administraçãodosassuntosdacomunidade.Logo,aburocracia imposta tornar-se-iasupérflua.(Talmon,OriginsofTotalitarianDemocracy,1970,pp424-5)

A lei, tal como o estado burguês a tinha conhecido, deixaria praticamente deexistir, e no seu lugar ficaria a versão comunista do Volksgewissen, o alertaconstanteevoluntáriodopovoeaaplicaçãodosprincípiosrevolucionários.Umageração antes de Lenine, o revolucionário socialista Lavrov idealizara algosemelhante:«justiçasumáriafeitapelopovo».

Comoassociedades revolucionáriasseevidenciaramduranteaprimeirametadedeste século, muita da crítica à sua jurisprudência centra-se na segunda destasreações, a que reavalia os delitos sob uma perspectiva (ideológica) filosófica.Assim sendo, grande parte dessa jurisprudência foi negligenciada e sistemasrevolucionáriosinteirosforammarcadoscomoestigmadeumapráticajudicialeadministrativaparcial.Nadiscussãoquesesegue,importarealçaragoraelembrardepoisque,excetuandoosdelitos«políticos»,qualquerquesejaasuadefinição,grande parte da jurisprudência e prática jurídica destes sistemas proveio de

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anterioresregimesenãovaiseraquiconsiderada.

Por muito que os revolucionários modernos tenham proclamado a morte dosanterioressistemasjudiciais,epormuitoquesistemascomoodoTerceiroReichtenhamtransformadotodaajurisprudênciaàsuaimagem,foisócomaRevoluçãoRussa de 1917 que surgiu uma doutrina que insistia no direito de umgovernorevolucionário tomarmedidas para se proteger a si e à revolução em geral, talcomojásetinhamtomadomedidasparaprotegeranação,oestadoouoVolk.

Mesmonocasomaisconhecido,atransformaçãodaRússiaczaristanaUniãodasRepúblicasSocialistasSoviéticas,adefesadarevoluçãonãofoiimediatamente–apenas alguns meses depois de Outubro de 1917 – convertida num princípioreguladorquantoàdeterminaçãodocrimepolíticoeàvontadedeinfligiratorturaentre outras sanções excepcionais por motivos políticos.Apesar do amargo equase universal despeito pelo sistema de jurisprudência czarista entre osorganismos revolucionários de 1917, muitos dos princípios reformadores dajustiça, em 1881, foram mantidos pelo novo governo, tal como muitas dasrecentes reformas jurisprudenciais do Antigo Regime foram mantidas pelogovernorevolucionáriodeFrançadepoisde1789.

Emboranãosejapossíveltraçaraquiastransformaçõesdasteoriassocialistasdejustiça e jurisprudência, há um conjunto de características que devem serenfatizadas,nemquesejaapenasporserelacionaremcomosacontecimentosnaUniãoSoviéticaentre1917e1922edesde1936a1938.Odesaparecimentodopoderjurídicopermaneceucomoumprincípiodateoriasoviética,masmaistardeviriaasereliminado.O conjunto de circunstâncias que tornaram Lenine primeiro proponente daditaduradosectorrevolucionáriodoproletariadoedepoislíderdaRevoluçãode1917 levouamudanças impressionantesdasestruturas jurídicas russas.Emborainicialmente se tivessem mantido alguns aspectos da jurisprudência anterior,houve naUnião Soviética dois acontecimentos quemarcaram e profetizaram aextinção daqueles: o uso de tribunais revolucionários especiais, a formação daChekaapartirde1917e1922earejeiçãodasideiasdePashukanisdeextinguiraleiem1936e1937enoseulugarimplantarváriossubsequentescódigosdeleisoviética,desdeaConstituiçãode1936atéaoCódigoCriminaleoCódigodoProcessoCriminalde1965.

NajustiçarevolucionáriadefinidaepraticadapelaChekasobocomandodoseuprimeiro diretor, Feliks Edmundovitch Dzerzhinsky, a tortura parece ter sidousadadeformarotineira,pelomenosnaamplavariedadedecasossupostamenteligadosàatividadecontrarevolucionária.SobachefiadeDzerzhinsky,aCheka

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tornou-seoinstrumentodedefesadaRevolução,instrumentoaquenãosepunhaqualquer restrição,mesmo em teoria: «Nada temos em comum com o tribunalmilitar-revolucionário…Representamosoterrororganizado–eistodeveserditoclaramente – o terror é absolutamente indispensável nas atuais condiçõesrevolucionárias.Anossamissãoélutarcontraosinimigosdogovernosoviéticoedanovaordemdevida.» (Legget,TheCheka,1981,p.68.)Talmissãopoucocrédito concedia às convencionais salvaguardas judiciais,muitomenos quandotentavam descobrir suspeitos, reduzindo o nível de condições das prisões, semfalar nas severas formas de interrogatório. Os suspeitos podiam ser presos aqualquerhoradanoite,maltratadosverbalefisicamente,levadosdeimediatoparaa prisão, ameaçados demorte (frequentemente eram levados para um local deexecução,sóparadepoisregressaremàprisão),eeramjulgadosforadostrâmiteslegais,semdireitoadefesa.

Paraalémdascondiçõesdasprisõesedashorríveiscondiçõesfísicasemqueospresoseramnormalmentemantidos,oprópriointerrogatórioeraacompanhadodeespancamentos, mas as diferentes Chekas desenvolveram tipos de torturaparticulares.Uma«tratavadeescalparetirarapeledasmãos;algumasvítimasdaCheka de Voronezh eram atiradas nuas para dentro de um barril cravado depregosquedepoiserapostoarolar;outraserammarcadasnatestacomumferroquenteemformadeestreladecincobicos,enquantoosmembrosdocleroeram«coroados»comaramefarpado(ibid.).AlexanderSoljenitsyne(ArquipélagodeGulag) refere que, na década de 1920, o modelo de tortura para osaçambarcadoresdeouroeraseremforçadosacomerarenquesalgado.

Dizia-se que a Cheka de Kiev tinha inventado um método de interrogar queconsistiaemcolocarumdostoposabertosdeumcilindrodemetalcontraopeitodopreso,enquantoooutrotopoeraseladocomumateladearamedepoisdetersidocolocadoumratonointeriordotubo.Quandoesteeraaquecido,orato,naânsiadeescapar,tinhadecomeracarnedoprisioneiroparaencontrarumasaída.

EmboraalgumasdeclaraçõesoficiaisdocomandodaChekanegassemousodetortura,houvedeterminadosescritóriosepublicaçõesdaChekaqueparecemtê-loadmitido livremente.ÀluzdasuperiormoralidadededefenderaRevolução,aspreocupações morais menores (ou melhor, outras preocupações morais queautomaticamente pareciam menores) não garantiam qualquer direito, o mesmoacontecendocomosrotineirosprocessosjudiciaisdoestadosoviético.

OCódigodoProcessoCriminalde1923-24deuumpassoemfrentenaaboliçãodasdistinções entre o interrogatório dapolícia e a investigaçãopré-julgamento,colocando ambos, tal como grande parte do julgamento, sob vigilância dos

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procuradores.Embora oCódigo (Secção 136) declare que «o investigador nãotem o direito de procurar obter depoimentos ou confissões com o uso daviolência, ameaças ou outrosmétodos semelhantes», tais restrições parecem tersido historicamente aplicadas a casos sem dimensão política, se é que estesexistiam.Noutroscasos,asprovassãoabundantes,mesmodepoisdeaChekaterabdicadodousoalargadodetortura,particularmentedepoisde1936.OpróprioNikita Khruchtchev citou um telegrama de Estaline para o Comissariado doInterioremJaneirode1939quediziaque:

É sabido que todos os serviços secretos burgueses usam métodos de carácterfísicocontraosrepresentantesdoproletariadosocialistaeusam-nossobasformasmaisescandalosas.

Aquestãoquesepõeéporquerazãodeveriamosserviçossecretossocialistassermais humanitários em relação aos loucos agentes da burguesia … O comitécentraldaLigadosPartidosComunistasconsideraqueapressãofísicadeveserusada obrigatoriamente, como uma exceção aplicável aos conhecidos eobstinadosinimigosdopovo,comoummétodojustoeapropriado.

Éclaroqueoutras fontes testemunhama suapraticacrescente,dandoorigemaqueprocessosqueeramconsideradosextraordináriosentre1917e1922fossemconsiderados de rotina após 1936-37. Nos países que ficaram sob o domíniosoviético depois da Segunda GuerraMundial houve exemplos semelhantes detortura,particularmentenaPolónia, em1956,graçasàPolíciadeSegurançadoEstado.

OinteresseemdiscutirestasmudançasnaURSSapós1917nãoésugerirqueatorturaeraaplicadadeformarotineiraeindiscriminada,mesmonoconjuntodoscasospolíticos,naEuropadeLeste.O interesse reside,sim,emsugeriropapelparticularmentebemsucedidodeumaideologiarevolucionáriaaocriarcategoriasdaautoridadedoestadoemqueatorturapodiasereerausada.OatualCódigoPenal soviético da RFSFR vê a necessidade de recorrer à tortura como umagravamentodedelitodocriminoso,causandoumalongamentodapenanormal(Arts.108.2,109.2).

Apesar de terem posições muito diferentes em relação a outras questões, asexperiênciasdoTerceiroReichedaUniãoSoviéticarelativamenteàlegitimaçãoda tortura, uma deliberação tecnicamente extrajudicial, constituíram a primeiraviolação dos princípios edificados no século XVIII e guardados como umarelíquia pelas primeiras constituições revolucionárias modernas, ou seja, a

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Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão nos EUA e França. Osacontecimentose ideiasdoperíodoquedecorreuentreaquelasduas revoluçõestiveram grande peso nas divergências que surgiram entre elas. Por outro lado,paraalémdomodocomoosnacional-socialistaseosbolcheviquesviramoséculoXIX e o início do século XX, as consequências da justiça revolucionária doséculo XX refletem também a situação precária do poder jurídico face a umestado muito mais enérgico, cujos poderes administrativos ensombram alegislatura e o sistema jurídico.A observação de Blackstone, reportando-se aInglaterra,quantoàtorturaseruminstrumentodoestadoenãodaleieradefactoverdadeiraparaasuaépoca.MasoestadorevolucionáriodoséculoXXfoialgoqueBlackstonenuncapoderiaterimaginado.Infinitamentemaisricoepoderoso,movido por ideologias que sensibilizavam cada vez mais os seus cidadãos,possuidor de organismos e serviços secretos que dispensavam as tradicionaisdivisões de autoridade, o coercivo estado revolucionário do século XX pôdereintroduzir a tortura em quase todos ou todos os seus domínios, poisdesenvolveranãosónovospoderes,mastambémumanovaantropologia.Emvezdos direitos do homem e do cidadão, havia o direito exclusivo doVolk ou daRevolução. Contra estes, as frágeis barreiras em que pensadores e juristas nosfinais do século XVIII e no século XIX tinham, em vão, depositado tanta fécomeçaram a desmoronar-se muito mais depressa do que eles sonhavam serpossível.

Os acontecimentos até aqui relatados neste capítulo dão-nos uma descrição dadivisóriaexistenteentreosrelatosdahistóriadatorturanoséculoXIXeiníciodoséculoXXeosproduzidosdepoisde1945.

Mesmo os capítulos finais da grande história de Piero Fiorelli, La TorturaGiudiziarianelDirittoCommune(1953-54),falhamnaabordagemdaexperiênciado século XX. Ajudam, no entanto, a explicar algumas das afirmaçõesapaixonadaseincorreçõesdaobradeMellor.Melloréumhumanistacristãoeumjuristaqueviuoqueaconteceuaoselementosliberaisedeideaisnobresdopoderjurídicoquandofatoresnão-judiciaisouextrajudiciaistomaramocontrolodaleieconsequentementeodestinodossereshumanos.ÉóbvioqueMellornãoestavasó.Numa notável dissertação sobre a vida na prisão russa publicada emNovaIorqueem1951,dois antigosprisioneiros,F.BeckeW.Godin,dedicaramumcapítulobemobservadoesinistramenteespirituosoàs«teorias»elaboradaspelosseus companheiros de cárcere, sendo amaioria delesmarxistas ortodoxos, paraexplicar as circunstâncias aterradoras em que se encontravam num estadomarxistaeaformahorrívelcomoeramtratados.As«teorias»percorriamtodaaextensãodaparanóiapolíticadoséculoXX.Algunsdefendiamqueos«fascistas»setinhaminfiltradonogovernocomunistaenaadministraçãojurídicadaURSSe

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que, por isso, a tortura era uma importação «fascista». Outros optavam pelaversão da teoria «asiática» de Mellor – a Rússia possuía um carácterfundamentalmente «asiático» e, por conseguinte, era naturalmente violenta ebárbara,eaestacaracterísticasedeviaousodatorturaenãoàadministraçãodosistema comunista. Beck e Godin descrevem muitas outras «teorias», masnenhumadelasdecarácterdiferentedestasduas.

ParaalémdeMellor,BeckeGodin,outrosescritoresepensadoreshouvequesedebruçaramsobreatorturanoséculoXX.TantoArthurKoestlernoseuromanceOZeroeoInfinito(1941)comoGeorgeOrwellem1984(1949)fizeramecodainformação sobre a tortura nos estados fascista e comunista durante a SegundaGuerraMundial.TambémHansvonHentig,umtalentosoeprolíficohistoriadorjurídico,mostrou que o otimismo dos anteriores historiadores jurídicos não erapartilhadopelosseuscongéneresdasegundametadedoséculoXX.Porvoltade1950, estudiosos e jornalistas admitiram que a história da tortura permaneciaaberta e inacabada e que as anteriores narrativas dessa história tinham de serrevistas.

A última parte de La Tortura Giudiziaria de Fiorelli intitulava-se «Senza unafine?» – «Sem um fim?». Nessa parte, após uma longa listagem da proibiçãoestatutáriadasmuitasediversasformasdetorturapelosestadosdosséculosXIXe XX, Fiorelli observou brevemente o regresso desta ou os sinais da suacontinuaçãonãodocumentada.

Esteautormencionaasformasmaisrecentesdetortura,asuanovatecnologiaeasuadimensãopsicológica,tendoesteúltimotópicojásidotemadocapítulofinal,revelador de uma capacidade de observação notável, do estudo de RudolphQuanter, Torture in German Costumary Law (1900). O título do capítulo deQuanter,«DieSeelenfolterimhentigemStrafprozess»–«Atorturadoespíritonoprocesso criminal contemporâneo» – foi uma singular antecipação da tese deFoucaultmuitasdécadasmaistarde.Quanterperguntava seseseriamoimpessoalprocessojurídicoeasformasdeencarceramentodostemposmodernosumaforçaausarsobreoespíritohumanomaislegítimadoqueosantigoscastigoscorporais.

Todavia, estas preocupações pressupunham que o ressurgimento da tortura noséculo XX se restringia a certas sociedades «aberrantes» em circunstânciasinvulgares,ouseja,àAlemanhanazieàsincertasfasesiniciaisdosgovernosdeLenineeEstalinenaUniãoSoviética.

Porém,acontecimentosnaArgéliaapós1954levantaramumaquestãoaindamaisinquietante:atorturadoséculoXXnãoeraafinalexclusivadoTerceiroReichou

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dos primórdios da União Soviética e dos países que dela dependiameconomicamente.EntreaprimeiraediçãodeLaTorturedeMellorem1949easegundaem1961,ocorreuadescobertadocasodaArgélia.

AdescobertadocasodaArgélia

Grandepartedosestadosdemocrático-liberaislevoubastantetempoparaavaliaropoder inventivo do sistema jurídico, quer do Terceiro Reich quer da UniãoSoviética.Ao notarem, entre outras coisas, o reaparecimento e justificação datortura, a sua primeira reação foi a rejeição desta como uma aberração degovernos psicóticos ou degenerados, carentes do apoio popular, e como umaclara violação dos princípios de justiça e direito público universalmentereconhecidos. Contudo, em 1957 e 1958, começou a circular em França, deformalentaehesitante,aprincípioorumoredepoisanotíciadequeoexércitofrancêseapolíciacolonial tinhamcomeçadoausara torturacontraosrebeldesargelinos,pelomenosdesdeocomeçoda revoltaargelinade1954.Apartirde1951, a completa divulgação da notícia acabou por contribuir para o fim daQuartaRepública,acriaçãodaQuintaRepúblicaea independênciadaArgéliaem1962.Nadanajustiçafrancesatinhamudado,oexércitofrancêsnãoreceberaqualquerpoderexcepcionaleopovosentia,seéquesentiaalgumacoisa,orgulhona humanidade das suas instituições,mesmonas colónias, sobretudo devido àstãorecentesexperiênciasdaocupaçãoalemãedogovernodeVichy.ComoJean-PaulSartreafirmou:Em1943,naRuaLauriston[quartel-generaldaGestapoemParis],osfrancesesgritavamdeagoniaedor,podiamserouvidosportodaaFrança.Naqueletempo,o resultado da guerra era incerto e não queríamos pensar no futuro.Mas umacoisapareciaimpossível,quaisquerquefossemascircunstâncias–queumdiaoshomens fossem obrigados a gritar por aqueles que atuavam em nosso nome.(Alleg,LaQuestion,1958,p.3)

Tal como no caso de Beck e Godin, apareceu uma vezmais um conjunto de«teorias»queprocuravamracionalizaraquestão:umadiziaqueatorturaeraumaaberração praticada pelaLegiãoEstrangeira e, por isso, não envolvia franceses(umavariantemodernadateoriadainfiltração«fascista»);outradefendiaquesetinhaexagerado,que,segundoorelatóriodeWuillaumeem1955,existiadefactoalgumacoação,masnãoera«propriamentetortura».

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Nosanosseguintes,todasestas«teorias»sucumbiramexcetoasdostorturadores,queforamrepudiadospelagrandemaioriadosfranceses.Comadispersãodessas«teorias»,omundotevedeencararaquestãocolocadaporSartre–comopôdeaFrança fazer isto, tão pouco tempo depois da sua agonia política e como umatradição judicial que, mais do que qualquer outra, respeitava as doutrinas dadignidade humana e da proteção civil? Por volta de 1957, todos percebiamperfeitamenteporquerazãotinhaatorturasidousadanoTerceiroReichemesmonaUniãoSoviética (Khruchtchev fizeraoseudiscursoaoVigésimoCongressodo Partido em 1956) durante a Revolução e no período de consolidação dogovernodeEstaline.Masqueoficiaisfrancesesusassematorturacontracidadãosargelinosefranceses,quenãooexércitomastambémapolíciaofizesse(HenryAlleg em La Question, 1958, refere as primeiras perguntas feitas aos recém-detidospeloscompanheirosdecárcere:«Fostetorturado?Pelos“páras”oupelosdetetives?») e que, comoSartre relatou em 1957, o uso desta fosse negado naAssembleiaNacionalquandosimultaneamenteseespalhavamrumoresdeque«atortura era aplicada em certas prisões civis da metrópole» espantou não só aFrançamas omundo inteiro.A publicidade que acompanhou as revelações de1957edoperíodoqueseseguiufezcomqueaquestãodatorturapassasseparaláda terra vizinhados inimigosdesprezados e de condição inferior e chegasse àsruasdePariseàsprisõesdeArgel.AtémesmooocidentedemocráticodeixaradeestarimuneaoqueSartrechamouapragadoséculoXX.

As notícias da tortura na Argélia, levadas para França primeiro pelos queregressavamdoserviçomilitar–especialmente,comoSartrerelata,padres,emaistardeporestudiososepolíticoscomoGermaineTillioneFrançoisMitterrand–tiveram grande divulgação em vários livros essenciais, com destaque para LaQuestion,deHenryAlleg,comumangustiadoensaiodeSartre,em1958.EstaobrafoirapidamentepublicadanosEstadosUnidos,tambémem1958.Oimpacteda obra deAlleg, oumelhor, o seu depoimento juntamente com os de Pierre-Henri Simon, Pierre Vidal-Naquet, Mellor e outros após 1957, centrou-sefinalmente no regresso da tortura sob condições que muito poucos estavamintelectual e emocionalmentepreparadospara aceitar.ComoSartre escreveunoprefáciodeLaQuestion,«atorturanãoécivilnemmilitar,neméespecificamentefrancesa,éumapragaqueestáacontaminartodaanossaépoca».

A observação de Sartre levantou outra questão importante – até que ponto asexperiências nazi e soviética, seguidas da argelina, poderão ter sido merasindicações iniciais de um fenómenomundial do séculoXX, segundo Sartre, a«praga que está a contaminar toda a nossa época»? O caso daArgélia tocouclaramente a consciência daqueles que se consideravam imunes à tortura. Aobservação de Sartre levantou ainda outra questão, indiretamente sugerida por

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Mellor entre outros – até que ponto eram as práticas registadas naArgélia oresultado, não das experiências alemã e soviética,mas do aparecimento de umterceiroespaçonoqual,emcircunstânciasespeciais,atorturapodiasermaisumavezpraticada?Maisespecificamente,atéquepontoahistóriadarelaçãoentreaspotências europeias e os povos das colónias (como naArgélia) constituiu umaterceira alteração das tradicionais restrições do governo relativamente à tortura,depoisdaexaltaçãonazidoVolksgewissenedaexaltaçãosoviéticadadefesadaRevolução?

OcasodaArgéliateveimediatamenteumimportantepapelnaquestãocolonial.AsprimeirasvítimasdetorturanaArgéliaforamárabes,nãocriaturas inferioresqueseencontrassemno territóriodanação (comoaconteceracomos judeusnaAlemanha),masindígenasdoterritóriocolonizado.GrandepartedocontingentemilitarnaArgélia epartedapolícia já tinham tidoexperiêncianoutras colóniasfrancesas,deformamaisclaraenumpassadobemrecentenaIndochina.Pierre–HenriSimoneHenriAllegmencionamcasosanterioresdetorturanalndochinafrancesa.Eranecessário,porconseguinte,ponderaroproblemadaspolíticasdecolonizaçãoeuropeias,umavezquesalvaguardasjudiciaisqueeramrespeitadasnametrópole não o eram nas colónias, e isto não acontecia só na lndochina eArgélia,nemexclusivamenteentreosfranceses.

Osprimeiroscolonoseuropeustrouxeramconsigo,nosséculosXVIeXVII,ostiposdeprocedimento legal oriundosdas terras que tinhamdeixado.Entre elesencontrava-seatorturaenamaioriadoscasosestaparecetersidohabitualmenteusada nas colónias de países que já a utilizavam na metrópole, não só contraeuropeusbrancos,mastambémcontraosnativos,ouexclusivamentecontraestes.NaÁfricadoSulholandesa,porexemplo,a torturaerahabitualmenteusada, jádesde 1652, quer contra negros quer contra brancos, «não essencialmente paraconseguirinformaçõesoucastigaroprisioneiro,masparalhearrancaraconfissãodasuaprópriaboca»,ouseja,eraummétodocompatívelcomosistemajudicialholandês, que só aboliu a tortura depois de 1798.Emmeados do séculoXVIIhouve uma lei que fixou uma multa de um xelim e quatro dinheiros para otorturador.AtorturanaÁfricadoSulfoiprimeiramenteabolidacomaconquistainglesaem1795.

Mesmo depois da independência daÁfrica do Sul em relação à Inglaterra, em1961, há provas consideráveis de que os métodos de tortura não foramimediatamente reintroduzidos e dequeo sistema judicialmanteve, pelomenos,uma atitude algo tolerante para com os negros acusados de crime, mesmo decrime político. No entanto, em 1964, no julgamento de três polícias e de umescriturário do tribunal da comunidade de Bloemfontein, um dos polícias

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confessouqueduranteointerrogatórioforausadatorturacontraumdosacusados,Isak Magaise, que morreu vítima desses maus tratos. Os outros três arguidostambémforamtorturados,massobreviveram.Tinhamsidoespancados,sujeitosachoques elétricos, atacados com um sjambok (um temível cavalo-marinho) eparcialmentesufocadoscomsacosdeplástico.Opolíciacujaconfissãofoimaisextensa, Jacob BarendMaree, comentou gratuitamente que em quase todas asesquadrasdepolíciadaÁfricadoSuleramusadasasmesmaspráticas.Mareeeosoutrosréusforamsentenciadoscompenasque iamdos trêsaosnoveanosefizeram com que se descobrisse mais dados, confirmando muitas dasgeneralizaçõesdeMaree.Ocomissariadodapolíciaemitiuumaordemparaquese pusesse um fim à tortura durante os interrogatórios. A data do caso deBloemfonteiné importante,pois,segundoohistoriador jurídicoAlbieSachs,osanossessentasãovistos,nahistóriadaÁfricadoSul,comooperíodoemque«ajustiça começou a perder grandeparte das suas característicasmais tolerantes eliberais» ijustice in SouthA/rica, 1973).Houve contestações ao terrorismo e àtortura entre revolucionários africanos e brancos e desde os anos sessenta osrelatórios de tortura tornaram-se rotina. Mas no caso da África do Sulindependente, chegou-se ao extremo do colonialismo um estado colonialindependenteemquedominavaumapopulaçãodecolonizadoresqueintroduziraumapráticaque,segundooplanojurídicoeaopiniãogerais,acabaraduranteafaseinicialdacolonização.

Desde os primeiros ataques às políticas coloniais europeias por JohnAtkinsonHobson, em 1902, até às críticas dos revolucionários dos anos sessenta,ocorreramfrequentesacusações,duranteoséculoXX,àsautoridadeseuropeiaspor usarem e permitiremo uso da tortura, principalmente contra as populaçõesnativas. Porém,mesmo antes deHobson, havia provas de tortura nas colóniasusadacontraosnativospelaprópriapolícianativa.FitzjamesStephenobservouque durante a preparação do Código do Processo Criminal indiano em 1872,houve alguma discussão quanto ao hábito de torturar prisioneiros por parte dapolíciaindiana.Duranteadiscussão,umfuncionáriopúblico,umcolono,referiu:«Oqueháémuitapreguiça.

É muito melhor ficar confortavelmente sentado à sombra e esfregar pimentavermelha nos olhos dos pobres diabos do que ir por aí, ao sol, à procura deprovas.»

Maso funcionáriopúblicodeStephen tivera jáoutrasprovasparaalémda suaapreciaçãodaenergiadosfuncionáriosdapolíciaindiana.

Dezesseteanosantes,em1855,surgiraemMadrasoReportofCommissioners

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for the Investigation ofAllegedCases ofTorture in theMadras Presidency.Ovolumosorelatóriomencionavaque:

Entre as principais torturas em voga nos casos de polícia encontramos osseguintes:torcerumacordaàvoltadeumbraçooupernadeformatãoapertadaquepareacirculação;levantarumapessoapelobigode;suspensãopelosbraços,com estes atados atrás das costas; queimar a pele com ferros quentes; colocarinsetos que arranham, como o bicho-carpinteiro, no umbigo, escroto e outraspartessensíveis;imersãoempoçoseriosatéapessoaficarsemi-sufocada;apertaros testículos; bater com bastões; não deixar dormir; beliscar com pinças; pôrpimenta ou malaguetas nos olhos ou introduzi-las nas partes pudendas doshomensedasmulheres; estas crueldades, porvezes, continuavamatéquemaiscedooumaistardeamorteacontecia.

Os agentes policiais aqui descritos pertenciam à polícia nativa, como dizia orelatório,eatuavamdestaformaemoposiçãoàsordensemitidaspelossuperioreseuropeus.Masseriaapenasa«preguiça»dapolícianativaquepermitiataisatos?Seriaumexemplodabrutalidade«asiática»queparamuitosocidentaisdoséculoXX servia como explicação universal para tudo o que fosse não-europeu oudesagradável?Emmuitoscasos,aexperiênciacolonialpareceteroriginadonovasrelaçõesdepodernãosóentrecolonizadoresecolonizados,mastambémentreosprópriospovoscolonizados.Algumasdasformastradicionaisdeautoridadelocalforam abolidas e outras foram transformadas ao serem postas ao serviço dasautoridadescoloniais.

Novas formas de autoridade, como as forças policiais nativas, foram tambémintroduzidasepoderátersidoacriaçãodenovasformasdepoderentreospovosnativos a permitir que práticas como as relatadas emMadras acontecessem.Apolícia, normalmente sob as habituais restrições em Inglaterra, não cumpria tãoestritamente essas restrições quando fazia parte de uma sociedade cujastradicionais relações de poder tinham sido transformadas pela experiênciacolonial. Não terão sido forçosamente os colonizadores europeus, mas sim asinstituiçõesdepoderporelescriadasentreospovoscolonizados,quepoderãoterestado por detrás das descobertas de Madras em 1855 e na preocupação emprepararoCódigodeProcessoCriminalindianoem1872.UmadasexplicaçõesapontadasparaoressurgimentodatorturanoséculoXX,comovimosnocasodeBeckeGodine,maistarde,naobradeMellor,éadequeumapeculiarforma,não-europeia,detratamentoviolentodeoutrossereshumanosfoiimportadapelaEuropa, segundoMellor, depois da guerra russo-japonesa de 1905 pelo «canalsoviético»,e,segundooutrosautores,pormeiodarededeadministraçãocolonial.Assim sendo, levanta-se a questão: será que as práticas usadas pelos não-

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europeus,entresi,foramadaptadaspelosadministradorescoloniaisquedepoisastrouxeramparaosseuspaíses?SeráqueistoexplicaocasodaArgélia?

Desde muito cedo, a África do Sul usou a tortura levada, sem dúvida, pelosholandeses,sendoaplicadasegundoosmodeloseprocessoseuropeus.Asprovascontraosadministradorescoloniaisdeoutrasáreaspareciamsersuperficiais,masficouclaroquequaisquerquefossemaspráticasusadaspelosnão-europeusentresinadanosrepertórioslocaiscondiziacomotipodeautoridadeeomenosprezoque os administradores coloniais, especialmente os de baixa ou médiaescolaridade,seachavamautorizadoseinclinadosausarparacomaspopulaçõesnão-europeias.A tese do «asianismo», em poucas palavras, não se conseguiumanter. Tal como revelaram as obras de George Orwell, havia uma grandedivergência na relação entre o administrador colonial e os nativos, da mesmaforma que divergia a relação entre as autoridades judiciais e os criminosos naEuropa. Contudo, as circunstâncias coloniais não ofereciam o controlo que ateoria e a prática jurídicas ofereciam nos países da Europa. De facto, aexperiênciacolonialparece ter contribuídoparao ressurgimentoda tortura,nãoporqueos administradores coloniais e a polícia tivessemaprendido tais práticascom as populações que governavam, populações que se mostravam cada vezmais rebeldes no século XX, mas sim as próprias circunstâncias em quegovernavamconduziramaoabusodeautoridade,incluindoousodetortura,que,mais tarde,veio a serhabitual em locais comoaArgélia.Outras circunstânciascomo as diferenças raciais, o etnocentrismo, a violência dos movimentosrevolucionários e a impotência jurídica das populações colonizadas ajudaram acolorireintensificarumproblemacujaraizestavanasinvulgarescircunstânciasenosfuncionáriosdogovernocolonial.

Muitosdos«páras–daArgéliatinhamjáprestadoserviçonaIndochinaemuitosdosprimeirospolíciasemilitarescoloniaisvoltaramaservirnoutrascolónias,emFrançaemesmonoutrospaíseseuropeus.Otratamentoseveroaplicadoaosqueestavam sob o seu poder era difícil de controlar, principalmente pelodesconhecimento do poder judicial de tais factos e pela dificuldade que eraconvenceropúblicoeoslegisladores.NocasodaArgélia,osprimeirosrelatosdetorturalevaramalgumtempoasurgirnaimprensafrancesaeaserdiscutidosnaAssembleiaNacional.OprópriogovernoimpediuaimpressãodeLaQuestiondeAllegeaediçãoamericanadestaobratevecomoapêndiceumacartadirigidaaopresidente da República assinada porAndréMalraux, RogerMartin du Gard,FrançoisMauriaceJean-PaulSartre,pedindoaogovernoparainvestigarocasodeAIlegecondenarpublicamenteousodetortura,«emnomedaDeclaraçãodoHomemedoCidadão».

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AsnotíciasdaArgélialevarammuitotempoachegaraFrança.

Em 1949, o governador-geral proibira explicitamente a tortura. Em 1955,Mendês-France reiterou a proibição e o mesmo aconteceu com o novogovernador-geral JacquesSoustelle.Entreosconselheirosde JacquesSoustelle,em 1955, estavamGermaine Tillion, o sociólogo daArgélia que sobreviveu àtortura da Gestapo e trabalhou numa comissão de crimes de guerra em NovaIorque, e Vincent Monteil, que protestou violentamente contra as severasrepresáliaslevadasacabopeloexércitofrancêsnaArgéliaapós1954.Em1955,Monteildemitiu-seaoverasuaimpotênciaemimpediracontinuadaperseguiçãoe tortura de vários rebeldes argelinos de Ighil-Ilef. Nessemesmo ano surgiu oRelatório Wuillaume, que admitia ter havido alguma violência contra osprisioneiros, suspeitosde terem ligaçõescomaFrontLibérationNationale,mastal não era «propriamente tortura» e alguma da violência podia ser mesmoinstitucionalizadadadasasexcepcionaiscircunstânciasdaaltura:

Osmétodos da água e eletricidade, desde que usados comcuidado, diz-se queprovocam um choque mais psicológico que físico e, por conseguinte, nãoconstituem uma crueldade excessiva … De acordo com algumas opiniõesmedidasquerecebi,ométododotubodeágua,seusadocomosedelineouacima,nãoenvolvequalquerriscoparaasaúdedavítima.

EmboraSoustelletivesserejeitadooRelatóriodeWuillaume,atorturacontinuounaArgélia e no começo de 1957 tinham já chegado bastantes informações aFrançadeformaaqueosmaisvariadosescritoresseocupassemdoassunto.

OescritorcatólicoPierre-HenriSimonpublicouasuaprópriadiatribeContre laTortureem1957.Em1958,paraalémdoefeitodevastadordolivrodeAllegcomoensaiodeSartre,ohumanistaPierreVidal-NaquetpublicouL’AffaireAudin,ahistória de um professor deMatemática daUniversidade deArgel quemorreudurante um interrogatório do exército. Vidal-Naquet, entre outros intelectuaisfranceses,prosseguiu inexoravelmenteassuas investigações.Em1962publicouRaisond’état,resultadodeumapesquisacuidadosadousosistemáticodetorturaporpartedoexército.Em1963,publicouem inglês a importanteobraTorture:CancerofDemocracy, livroque investigoupelaprimeiravez as consequênciascivisdasprovasdescobertasnaArgélia.Ocancronãoeraatorturaemsi,masaindiferença pública em relação a ela, fazendo com que as mais explícitas dasproteções estabeleci das pelos direitos civis e direito público se desgastassem eperdessemoseusignificado.Em1972,estaobrafoipublicadapelaprimeiravezem francês, a que se seguiu, em 1977, Les Crimes de l’Armée Française, umdocumentáriodoshorroresdarepressãofrancesaaquandodarevoluçãoargelina.

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AdescobertadocasodaArgéliacompletouumaliçãoquefinalmentetinhadeseraprendidapelomundonofinaldoséculoXX–atorturanãotinhamorridocomasreformaslegislativasejudiciaisdoIluminismoeasuaperspectivaotimistadanatureza humana. Também não foi exclusivamente uma prática excêntrica degovernostranstornadosepsicóticos.Jánãoerapossívelquesurgisseapenasnasprecárias circunstâncias das revoluções marxistas e sabia-se que não era umacaracterísticaimportadadospovosbárbaros,não-europeus.

Era usada pelos europeus tanto contra europeus comonão-europeus, apesar deserproibidaporleiedaintençãodosreformadoresdetornarpúblicososcasosatéentão abafados. Chegara o momento em que já não podia ser reparada ouignorada. A lição trouxe muita sensatez e as respostas para as questões quelevantou não foram ainda encontradas. Entre as questões mais prementesencontra-seadopróprioSartre,noprefáciodeLaQuestion:

Subitamenteainsensibilidadetransformou-seemdesespero:seopatriotismotemdenosprecipitarnadesonra;senãoexisteprecipíciodedesumanidadeemqueasnaçõeseoshomensnãoseatirem,entãoporquesedáomundoatantotrabalhoparasetornar,oupermanecer,humano?

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«TORNAR-SE,OUPERMANECER,HUMANO…»

UmnovoIluminismo?

No intervalobreve e plenode esperançaquedecorreu entre o fimdaSegundaGuerraMundialeasrevelaçõesocorridasnoVigésimoCongressodoPartidoemMoscovo, em1956, e os acontecimentos de 1954-64 naArgélia, uma série deorganizações e congressos internacionais empenhou-se com toda a seriedade eumgenuínootimismoemassegurarqueoshorroresdasduasdécadasanterioresnão se repetissem nunca mais. Ao fazê-lo invocaram as pretensões maisinspiradas e universais das revoluções políticas de 1776 e 1789 que, emboratenhamestadonaorigemda legislaçãodepaíses singulares, reclamarampara asualegislaçãoumfundamentouniversalválido.

A influência subsequentedestaspretensõesuniversalistas tinha sidodemontaeelas nunca se afiguraram tão importantes como nos anos imediatamenteposterioresa1945quandoopensamentointernacionalista,caídonaobscuridadedesdeofracassodaLigadasNaçõesedoTribunalInternacional,reivindicoudenovooseulugaraosol.

ApesardogelocrescentedaGuerraFria,talotimismorecolheuextensoapoio.Ahistória da proteção universal para os direitos humanos não tinha conhecidotriunfosirremissíveis,masforneceufundamentos,especialmentenasequênciadosjulgamentosdeNurembergaedareaçãodomundoàhistória internadospaísesdoEixoduranteaSegundaGuerraMundial,paraaexistênciadeumaesperançaefetiva de que os acordos internacionais, alcançados e ratificadosdemocraticamente,pudessemevitarumarepetiçãodaqueleshorrores.

Em1864,oanoseguinteàfundaçãodaCruzVermelhaInternacional,aprimeiraConvenção de Genebra tinha tentado delimitar uma pequena esfera de acordouniversal relativamente a determinados direitos do seu pessoal em tempo deguerra – mais precisamente, que os direitos dos membros do pessoal médicofossem considerados neutrais para poderem tratar dos feridos. Esta convenção,

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revistaem1906eincorporadanumnovotratadoem1924,quefoiporseuladorevistoeimplementadoem1949e1977,dependiadeorganizaçõesinformaissemo poder de imporem sanções.A Cruz Vermelha Internacional, a OrganizaçãoInternacionaldoTrabalho,aComissãoparaosMandatosdasLigaseaLigaAnti-escravatura representamas tentativasdosprincípiosdoséculoXXdecriarumaconvençãouniversaldosdireitoshumanoselementaresquepudessesercolocadapelos próprios países acima da política de cada país individual. Tais ambições,promovidas,quandooeramde todo,poroqueumhistoriadordenominouuma«diplomaciahumanitária»,forampostasemacentuadorelevopelasrevelaçõesdahistória interna do Terceiro Reich e de outras potências do Eixo quando aSegundaGuerraMundial chegouao fim.ACartadasNaçõesUnidasde1945procurourelançarapreocupaçãocomosdireitosuniversaisparaaprimeiralinhado mundo do pós-guerra. O artigo 55 da Carta das Nações Unidas de 1945contém a primeira pretensão do pós-guerra de «um respeito universal pelosdireitoshumanoseliberdadesfundamentais,eoseucumprimento,paratodossemdistinção de raça, língua ou religião». Em 1948 a Declaração Universal dosDireitosdoHomemdesenvolveuoartigo55daCartaeproduziu trintaartigos,dosquaisoartigo5declaravaque:

«Ninguém será sujeito a tortura, tratamento ou punição cruéis, desumanos oudegradantes.»TalcomoaCarta,aDeclaraçãoUniversal foicriticadaporqueé,nomáximo, uma recomendação dasNaçõesUnidas sem força vinculativa nospaísesindividuais;alinguagemutilizadapermanecegeraleaDeclaraçãodependedaboavontadedospaísesindividuaisparaasuaimplementação,seestaexistir.Mas, excetuando as oito nações que se abstiveram de assinar aDeclaração, asquarenta e oito que o fizeram tencionavam claramente, a 10 de Dezembro de1948,noDocumentoA/811dasNaçõesUnidas,reconhecerumasériededireitoshumanosuniversais,entreosquaisse incluíaenfaticamenteodireitodenãosersubmetido a tortura. Quase precisamente vinte e sete anos mais tarde, a 9 deSetembrode1975,aAssembleiaGeraldasNaçõesUnidasadotouaResolução3452 (XXX), a «Declaração da Proteção de Todas as Pessoas de SeremSubmetidasaTorturaeoutrosTratamentosouPuniçõesCruéis,DesumanosouDegradantes», baseada na suposição de que o «reconhecimento da dignidadeintrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da famíliahumanaéofundamentodaliberdade,justiçaepaznomundo».

Num anexo à nova Declaração, doze artigos discriminavam detalhadamente anaturezadatorturaedapuniçãocrueledesumana.Deacordocomoartigo1doAnexo,atorturaé:

Todooatopormeiodoqualextremadorousofrimento,físicosoupsíquicos,são

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infligidospor, oupor instigaçãode, umagente público a umapessoapara finscomoaobtençãodelaoudeumaterceirapessoadeinformaçõesouconfissão,asua punição por um ato que cometeu ou é suspeito de ter cometido, ou a suaintimidaçãoouadeoutraspessoas.

OAnexodeclaravaqueatorturaconstituíaumaformaagravadaedeliberadadetratamento ou punição cruéis, desumanos ou degradantes (artigo 2). OAnexotambémnegavaaospaísesodireitodealegarcircunstânciasexcepcionais,mesmoasituaçãodeguerra,comojustificaçãoparaatortura(artigo3);exigiaaospaísesindividuaisquetomassemmedidasapropriadasparaprevenirqueosseusagentespraticassemoupermitissematortura(artigo4);especificavaqueospaísesdeviamtreinarapolíciaeoutrosagentespúblicosparanãoempregarematortura(artigo5); exigia que todos os países inspecionassem sistematicamente osmétodos deinterrogatório(artigo6);exigiaquetodosospaísesincorporassemnoseuDireitoPenalascláusulasdoartigo1(artigo7);garantiaatodososquepretendessemservítimas de tortura que as autoridades competentes dos seus próprios paísesexaminariamtaisacusações(artigo8);declaravaqueosagentesdoestado,combase em informações apresentadas sem ocorrência de queixa formal, seriamobrigados a investigar alegadas violações das cláusulas do artigo 1 (artigo 9);exigia que, combasenas investigações comoas referidas nos artigos8 e 9, aspessoasconsideradasculpadas fossemadequadamentepunidasà luzdoCódigoCriminaldopaísemcausa(artigo10);garantiareparaçãoecompensaçãoàvítimadesse agente público, devidamente condenado (artigo 11); e negava o valorprobatórioeletodasasinformaçõesoudeclaraçõesobtidassobtortura(artigo12).

Alémdisso,a16deDezembrode1966,aAssembleiaGeraldasNaçõesUnidasadotoupararatificaçãoaResolução2200A(XXI),AcordoInternacionalsobreDireitosCivisePolíticos,queentrouemvigora26deMarçode1976.Oartigo7afirma: «Ninguém será submetido a tortura ou a tratamento ou punição cruéis,desumanos ou degradantes. Especificamente, ninguém será submetido aexperimentaçãomédicaoucientíficasemoseulivreconsentimento.»Porfim,a1de Agosto de 1975, trinta e cinco países assinaram o acordo diplomáticoconhecidocomooDecretoFinaldaConferênciasobreSegurançaeCooperaçãonaEuropa,vulgarmentedesignadocomoo«AcordodeHelsínquia»,queincluíaas«QuestõesRelativasàSegurançanaEuropa».ASecçãoVIIdas«Questões»declaraque:«Nocampodosdireitoshumanosedasliberdadesfundamentais,ospaíses participantes agirão em conformidade com os objetivos e princípios daCartadasNaçõesUnidasecomaDeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanos.»

Esteeraoalcancedaambiciosa,otimistae invulgarmenteexplícitacondenaçãodatorturanastrêsdécadasqueseseguiramaofimdaSegundaGuerraMundial.

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Atécertoponto,estasdeclaraçõesrepresentavamoqueseesperavaquefosseumnovo Iluminismo, um Iluminismo com consequências civis e políticas (assimcomo sociais e económicas) universais para todos os povos, não só para osquarentaeoitosignatários iniciaisdaDeclaraçãode1948,mas tambémparaoscentoetalpaísesquetinhamaderidoàsNaçõesUnidasdesdeentão.

ParaalémdasdiversasdeclaraçõesdasNaçõesUnidassobreosdireitoshumanos,especialmente as referentes à tortura, diversas assembleias regionais, maiscabalmenteoConselhodaEuropa,forneceramtambémgarantiasedefiniçõesdosdireitoshumanos,emparticularnaConvençãoEuropeiadosDireitosHumanos,criada a partir da sua primeira versão de 1949, e assinada em Roma a 4 deNovembrode1950.Oseuterceiroartigoproíbeatorturaeapuniçãodesumanasoudegradantes.Apublicaçãoem1973dosTravauxpréparatoiresdaComissãoPreparatóriadoConselhodaEuropa,ComitéMinisterial,AssembleiaConsultiva,forneceumesclarecimentoconsiderável sobreas ideiaseposiçõespúblicasdosparticipantes enquanto criaram a Convenção, ao longo de um ano e meio detrabalho.

Os esforços do Conselho da Europa fizeram parte da grande onda depreocupaçãocomosdireitoshumanosquefoirepresentadapelasNaçõesUnidasà escala internacional, global, e por um número de movimentos regionais,especificamenteoMovimentoEuropeu,nãooficial,cujo«CongressodaEuropa»adotou em Haia ern Maio de 1948 uma «Mensagem aos FnropeuG”. Amensagemincluíaaexigênciadeuma«CartadosDireitosHumanosquegarantaaliberdadedepensamento,reuniãoeexpressão,assimcomoodireitodeformaruma oposição política». Para além disso, a mensagem exigia a criação de umtribunal judicial armado de sanções adequadas para implementar a Carta. EmFevereiro de 1949, o Conselho Internacional doMovimento Europeu aprovouuma Declaração de Princípios de União Europeia e estabeleceu uma SecçãoJurídica Internacional, sobapresidênciadePierre-HenryTeitgen,que iniciouaelaboração de umprojeto deConvençãoEuropeia sobre osDireitosHumanos.Os resultados do trabalho da Comissão Teitgen foram submetidos ao ComitéMinisterialdoConselhodaEuropa,umórgãooficial,a12deJulhode1949.EsteúltimoórgãotinhasidocriadoemMaiode1949,comprometendo-seeaospaísesquedeleerammembros,comoconstavadoartigo3dosseusestatutos,aaceitaros«princípiosdaautoridadedodireitoedafruição,porpartedetodasaspessoassobasuajurisdição,dosdireitoshumanoseliberdadesfundamentais».UmanovacomissãosobapresidênciadeSirDavidMaxwell-FyfefoiindigitadaemAgosto,comTeitgencomorapporteur,eorelatóriodeTeitgenfoisubmetidoadiscussãoa5deSetembrode1949.O tratamentoquededicaà torturaestá registadonosdois primeiros volumes dos Travaux préparatoires, abrangendo discussões que

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tiveramlugarentre5e8deSetembrode1949.AhistóriaposteriordaConvençãoEuropeiapodeser seguidaao longodosvolumes III–VII, inclusivenaversãofinaldoprópriodocumento.

Mais do que a Declaração das Nações Unidas, as discussões preliminares daAssembleia Consultiva refletem as posições dos europeus em relação à torturanestearrebatadoeotimistaperíodo.Noseuprimeirorelatório,Teitgenexpôs,deummodo tão eloquente como nunca ninguém o fizera antes nem o fez desdeentão,anecessidadedetalconvençãoeasdiversasdificuldadescomqueseteriade defrontar qualquer organismo que se propusesse legislá-la. Citou comoprecedentes a declaração das Nações Unidas de 1948, os testemunhos dosjulgamentosdeNurembergaeoTribunalPermanentedeJustiçaInternacional,eassinalou,entreosdireitoseliberdadesagarantir:

A garantia coletiva, não só da liberdade de expressar as suas convicções,mastambém de pensamento, consciência, religião e opinião [.] A Comissão quisproteger todososcidadãosdequalquerestadomembro,nãosóde«confissões»impostas por razões de estado,mas também daqueles abomináveismétodos deinterrogatóriopolicialqueprivamapessoasuspeitaouacusadadodomíniodassuasfaculdadesintelectuaisedasuaconsciência.

No documento, Secção I, os artigos 1 e 2.1 repercutem especificamente aDeclaração dasNaçõesUnidas sobre osDireitosHumanos, e um apêndice aodocumento aponta especificamente os textos relevantes dos artigos dasNaçõesUnidas, inclusive o artigo 5. Em Setembro, o delegado F. S. Cocks propôs aseguinteemendaàSecçãoI,Artigo2.1:

Emespecial,nenhumapessoapodesersubmetidaaqualquerformademutilaçãoou esterilização, nem a qualquer forma de tortura ou espancamento. Nem seráforçada a ingerir medicamentos nem estes lhe serão administrados sem o seuconhecimentoeautorização.Nemserásujeitaaprisãocomumtalexcessodeluz,escuridão,ruídoousilêncioquelheprovoquesofrimentopsíquico.

ECockssugeriuacrescentaraoartigo1:

AAssembleiaConsultivaaproveitaestaoportunidadeparadeclararquetodasasformas de tortura física, sejam infligidas pela polícia, por autoridadesmilitares,por membros de organizações privadas ou por quaisquer outras pessoas, sãoincompatíveis com a sociedade civilizada, constituem afrontas aos céus e àhumanidadeetêmdeserproibidas.Declaraqueaproibiçãotemdeserabsolutae

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queatorturanãopodeseradmitidaquaisquerquesejamosseusobjetivos,nemparaobterprovasparasalvarumavida,nemmesmoparaasegurançadoestado.Acredita que,mesmo para a sociedade, seriamelhor perecer do que permitir amanutençãodestarelíquiadabarbárie.

Nasuaextensarespostaaestaeaumasériedeoutrasemendaspropostas,Teitgenfez eco dos sentimentos de Cocks e de outros, e instigou a Assembleia aconsiderartambémoperigorealdarecorrênciadeacontecimentosrecentes:

Muitosdosnossoscolegasobservaramqueosnossospaísessãodemocráticoseestão profundamente impregnados de um sentido de liberdade; acreditam namoralidadeenodireitonatural.Estamosprotegidosdetaisatentadoseprovações.

Porque é necessário construir um tal sistema? Outros países, grandes, belos enobrespaíses,tambémestiveramsubmetidosaumsentidodeéticaemoralidadeecivilização.Eumdiaomalabateu-sesobreeles.Sofreramessaprovação.Todosos nossos países podem ser sujeitos um dia a sofrer severas construções porrazõesdeestado.Talvezonossosistemadegarantianosprotejadesseperigo.

Há ironia nestas palavras.Quase uma décadamais tarde, outro Teitgen,MatrePaulTeitgen,erasecretário-geraldaprefeituradeAlgiersem1956-57.Heróidaresistência e sobrevivente de Dachau, Teitgen submeteu à «Comissão deSalvaguarda»umrelatórioquecontinhaasobservaçõesseguintes:

Mesmo uma ação legítima… pode, não obstante, conduzir a improvisações eexcessos. Muito rapidamente, se isto não é solucionado, a eficácia torna-se aúnicajustificação.Naausênciadeumabaselegal,estaprocuraauto-justificar-seaqualquer preço e, com uma certa má consciência, reivindica o privilégio dalegitimidadeexcepcional.Emnomedaeficáciaailegalidadetornou-sejustificada.

OrelatóriodosegundoTeitgenprovouexatamentequãoproféticastinhamsidoaspalavras do primeiroTeitgen. Falando de ironia ainda emmaior grau, refira-sequeaFrançanãoratificouaConvençãodosDireitosHumanosaté1973.

Pierre-HenriTeitgenobservou tambémqueoseu relatórioeversãonão tinhamtentadodefinirosprincípiosdodireitonatural,porque:

Tem uma história tão velha como o mundo e a nossa civilização; é o direitonaturaldeAntígona;étambémodeCícero:retaratio,diffusainomnes,constans,sempiterna,seaminhamemórianãomefalha.Depoistemosodireitonaturaldo

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Cristianismo e doHumanismo. Estes são os princípios e ideais sobre os quaisassentamosnossosestatutos.Éumaquestãodesaberse,acimadasleishumanas,não há princípios imutáveis que o estado não pode ignorar, e nos quais sebaseiamasleishumanas.

Na discussão daAssembleia da emenda de Cocks, a generosa eloquência deTeitgen obtevemúltipla repercussão, em parte pelo próprio Cocks, que estavaobcecado com a tortura e os acontecimentos das duas décadas anteriores: «Oacontecimentomais terrível durante aminha vida neste século foi o facto de atortura e a violência terem regressado – fortalecidas pormuitas descobertas daciênciamoderna – e de em alguns países as pessoas até se terem começado ahabituaraelas.»ConcluiuCocks:Afirmoquetomaroscorpossãosebelosdehomensemulhereseestropiá-losemutilá-lospormeiodetorturaéumcrimecontraoscéuseoespíritosagradodohomem.Afirmo que é um pecado contra o Espírito Santo para o qual não háperdão.Declaroqueéincompatívelcomacivilização.

Por razões de eficácia e de existir linguagem adequada, Maxwell-Fyfe instouCocksaretirarasuaemenda,lembrandoàAssembleiaque,nãoobstante,Cocks«salientouaverdadeeternaquetodostemosquerecordar:queabarbárienãoestánunca para trás das nossas costas e sim sob os nossos pés. É nossa tarefaassegurarquenãotorneàsuperfície».Naversãofinal,oartigo3nãocontinhaaemendadeCocks,masostextosdosTravauxpréparatoirestornamclaroscomoágua o estado de espírito e as preocupações dos delegados. Não obstante, emdeferênciaparacomosaberlegaldeTeitgenedeMaxwell Fyfe,estesfizeramecodossentimentosdeCocks,easualinguagem,talcomoalinguagemdosfilósofosdodireitodoprimeiroIluminismo,esteveàalturadosmaiselevadossentimentosdohomem.Lerasuadiscussãoumquartodeséculodepoiséadmiraraesperançae compreender, quase contra vontade, a ironia presente no seu enganadorotimismo.

AlinguagemdoÉden

UmadasimportantesproezasdospensadorespolíticoselegaisdoséculoXVIIIfoitereminfluenciadoalegislaçãodetalmodoqueinstituíramumquadrolegalàvolta das aplicaçõesdas leis e das açõesdos estados, avaliando todoodecretolegal ou governamental pelos padrões morais do humanitarismo europeu

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tradicional e do Iluminismo. Em grande medida, os governos e os poderesjudiciais estiveram de acordo com esta política bem até meados do séculoseguinte.ApesardoceticismodecríticoscomoBurkeeBenthamporumlado,edo cinismo de Robespierre e Saint-Simon por outro, a maioria dos países doséculoXIXprofessarama sua adesão a uma concepção de direitos humanos edignidade intrínsecos, pela qual se podiam avaliar as ações de estados e dospoderes judiciais. Mesmo historiadores como Henry Charles Lea partilharamessessentimentos,eLeaescreveuasuahistóriadatorturanumaperspectivacomumaforteorientaçãoparaaprevençãodasuarecorrência.

Contudo, os historiadores discerniram uma certa ambivalência nesse respeitopelos direitos humanos, mesmo no próprio século que o professava commaiseloquência. Num devastador e apaixonado trecho do seu extenso e importanteestudo The Origins of Totalitarianism (1951), Hannah Arendt delineousucintamenteahistóriada ideiadedireitos inalienáveisnosséculosXIXeXX.Após ter salientado o fracasso – de todos os organismos, nacionais ouinternacionais,noassegurardosdireitosdepessoasapátridasnoséculoXIX,eopreferir,mesmoporpartedosapátridas,buscarsegurançaentreas leispositivasdeumestado-naçãoemdetrimentodoapeloaumorganismoouconjuntodeleisinternacionais,Arendtcontinuasalientandoque:

Ainda pior era o facto de todas as sociedades constituídas para a proteção dosDireitosdoHomem,todasastentativasdealcançarumanovaCartadosDireitosHumanos teremsidopatrocinadasporpersonagensmarginais–porunspoucosjuristas internacionais sem experiência política ou filantropos profissionaisapoiadospelos sentimentos insegurosde idealistasprofissionais.Osgruposqueformaram,asdeclaraçõesqueemitiram,apresentavamumaestranhasemelhança,nalinguagemenacomposição,comassociedadesparaaprevençãodacrueldadepara com os animais…As vítimas partilhavam o desdém e a indiferença dospoderes que apoiavam qualquer tentativa das sociedades marginais para fazercumprirosdireitoshumanosnumqualquersentidoelementarougeral.

Ooriginaleperturbador livrodeArendtsurgiuem1951e lançouumasériedeideiassobreapolíticamoderna,muitasdasquaisnaaltura,ealgumasapartirdeentão, se afiguraram intragáveis para muitos leitores.Mas não é provável quealgum leitor daDeclaração dasNaçõesUnidas de 1949 se tenha surpreendidocom as posições de Arendt. De facto, tais documentos foram fortementecriticados por não possuírem autoridade de fazer valer a lei e por terem sidocriadosporpersonagens«marginais»,alheadasdasrealidadesdavidapolíticadasegundametadedoséculoXX.

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UmacausadoproblemadiscernidoporArendteporoutroscríticosfoi,comoasobras de Ernest Gellner e de outros salientaram, a força e a influênciaextraordinárias da nação-estado nas áreas do direito, da moralidade e dosentimento,umfactoquenãoteriasurpreendidototalmenteBurkeeBentham.ArepúblicamoraldaEuropaduroupoucotempo,eoselementosqueaconstituíramreclamaramumahegemoniacadavezmaiortantosobreamoralidadecomosobreosentimento,assimcomoumapretensãocadavezmaisexclusivadedefinirosdireitosdoestado,deestabelecera identidadedocidadãoedoestadode formacada vez mais restritiva. Este processo, como indicou o capítulo anterior,conduziuaodesenvolvimentodeprocedimentosextrajudiciaisporpartedoestadoque em última instância enfraqueceram o poder judicial e contribuíram paradevolverasmedidasextraordináriasaovocabuláriocorrentedavidapolítica.

Mas também houve outras causas, e algumas delas assentam na questão datortura.A associação da tortura com osmales morais doAntigo Regime, nãointeiramente justa, deslocaram os fundamentos para condenação da tortura domais especificamente legal para o mais geralmente moral.A tortura foi entãocondenada–porVoltaire,Beccariaeoutros–porqueeraincompatívelcomumanova concepção de dignidade humana. Todo o governo que quisesse serassociado a essa perspectiva de dignidade humana tinha de se dissociar,constitucionaleinstitucionalmente,detodasasmanifestaçõesdaantiga.

AobradospensadoresdoIluminismoedosseussucessores,mesmonão tendotido um papel instrumental na abolição da tortura na sua própria época,desacreditou de tal modo o vocabulário doAntigo Regime que este nãomaispôde ser revivido no uso direto, e assim raramente foi revividomesmono usopolémico. A expressão «tortura» deslizou de um vocabulário especificamentelegal–noqualtinhapossuídosignificadosespecíficos-paraumvocabuláriogeraldeinvetivamoral.

Simultaneamente, a palavra «tortura» deslizou também para o vocabulário dosentimento. Desde as primeiras denúncias dos procedimentos eclesiásticosduranteaReforma,aolongodacrescente–ecadavezmaispitoresca–literaturadepolémicareligiosadosséculosXVIeXVII,apráticadatorturapelainquisiçãomedieval, e mais tarde espanhola, constituiu um dos focos da polémica daReformaedaContra-Reforma.Numasériedepolémicascomgrandedifusão,doBookofMartyrsdeFoxàdescriçãodastorturasdainquisiçãoespanholafeitaporMontanus,em1587,osrelatospolémicossobreaspráticasdaIgrejamedievalemodernanoseuinícioraramentedeixaramderetratarlúgubreedemoradamenteaincidênciada tortura.Esta literatura,muitadaqualdeixandomuitoadesejarnoqueserefereàexatidão,apelavaparaosentimentoassimcomoparaamoralidade

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(oumelhor,paraosentimentocomoumaintensificaçãodojuízomoral),etornou-seumlegadoàdisposiçãonãoapenasdereformadores legaiscomotambémderomancistasepintores.DesdeofimdoséculoXVIII,romances,relatosfictíciosde memórias pessoais, literatura de viagem e histórias idóneas da inquisiçãomedievaleespanholautilizaramregularmente incidentesecenasde torturaparaaguçarointeressedosseusleitores.UmavistadeolhosàscaracterísticasefontesdoconhecidocontodePoeThePitandthePendulumsugereoapelobaseadonosentimentoesómarginalmenteassociadoàafrontalegaloumoral.Naverdade,ocontoinspirou-separcialmentenumahistóriapopulardainquisiçãoespanholalidapor Poe – embora o estranhomecanismomencionado por Poe não pareça teralgumavezsidousado,oumesmo imaginado,pelos inquisidoresespanhóis–eem muitas outras obras de ficção, especialmente as que versavam formasespeciaisdeerotismoealgunstiposderomancegótico,queforamtambémbeberfortemente,etambémporrazõesdesentimento,aessafonteanteriordedescriçãolúgubre.

Esta terceira dimensão da tortura, a dimensão do sentimento, ajustava-se àpreocupaçãonovecentistacomacrueldadehumanaemgeral.ParaalémdacríticapenetrantedeArendt, reformadores, filantropose idealistas sentiramnãomenosintensamente a seriedade das suas causas porque revestiam de sentimento osobjetos da sua preocupação. Retirando a tortura de uma posição específica novocabulário legal e acusando-a de ser uma afronta moral geral, os pensadoresnovecentistasalargaramaindamaisasuadefiniçãoaoincluí-lanumvocabuláriodosentimento.Aprópriamoralidadehumanistaquetinharelegadoatorturaparaovocabuláriogeraldavergonhaaplicou-adepoisatodasasoutrasmanifestaçõesdesse tipo particular de vergonha que ela tinha representado. E, para além dassuas associações legais e morais, o termo tortura acabou por adquirir tambémassociaçõescomosentimentoquealargaramasuaaplicabilidade,emboratenhamdiminuídoasuaprecisão.Passouadesignar,nãoumapráticaespecífica,massim,como o designouMalise Ruthven, «o limiar de afronta» de uma determinadasociedade.

Alinguagemnovecentistadamoralidadeedosentimentoexpandiu-seeaplicou-seacadavezmaisespéciesesériesderelaçõeshumanas,alargouaaplicabilidadedo termo a todas as áreas da brutalidade humana, do local de trabalho ao lar.Agoraospatrõestorturavamostrabalhadores,osmaridosasmulheres,ospaisosfilhos, os criminosos as suas vítimas. Todos os opressores torturavam osoprimidos.

E deste modo a tortura passou a fazer parte de um vocabulário geral comsignificadosentimentalemoral.

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Umexemplodamutaçãosemânticapodeserdocumentado.

O ProcedureAct doDireitoCriminal Britânico de 1853 (16 e 17Vic. C. 30)tinha em parte sido concebido para lidar com o problema amplamentereconhecido do espancamento das mulheres por parte dos maridos e, poucodepoisdasuapromulgação,foiconsideradonãotersidoparticularmenteeficaz.Oultrajemoralgeradoporestaquestãoao longodosvinteecincoanosseguintesconduziuaoalgomaiseficazMatrimonialCausesActde1878(41e42Vic.C.19)que conferiaproteçãomais substancial àsmulheresmaltratadas, tal comoofezefetivamentea legislaçãosubsequente.UmdoselementosdepersuasãoqueinfluenciouapromulgaçãodoDecretode1878foiopanfletodeFrancesPowerCobbe,WifeTorture,tambémpublicadoem1878.

O título fala por si. A palavra tortura prendia a atenção e não continhaambiguidade.Foiastutamenteescolhidaecriouumaperspectivadoproblemaquedeve ter concentrado uma grande parte da até então difusa atenção no aspectocentraldoproblemaaovinculá-loaumtermoque,nosfinsdoséculoXIX,eraobjetodeopróbriouniversaledessemodopotencialmenteeficazparaajaezaroque, até então, tinha sido uma oposição dispersa. A tortura adquiria a suaexpansãosemântica,comosempre,pormeiodeumacausalouváveleimportante.

A entrada tortura noOxfordEnglishDictionary sugere que, no seu sentido de«sofrimento ou dor extremos ou insuportáveis (corporais oumentais); angústia,agonia, suplício; punição do atrás mencionado», o termo se tornara figurativologo no século XVII, referindo-se a emoção e sofrimento generalizados dequalquertipoextremo,originadosporquaisquercausas.Esteempregofigurativoegeneralizadoparece terocorridona língua inglesaalgomaiscedodoquenasoutras línguaseuropeias, talvezporquea torturanãoeraumaspecto tão técniconaleiemInglaterracomoacontecianaEuropaContinental.

WifeTorturedeCobbefazentãopartedeumaimportantehistóriasemântica.

Mas«tortura»nãofoioúnicotermoasofrerumatalmetamorfose.Numbrilhanteensaiode1946denominadoPoliticsand theEnglishLanguage,GeorgeOrwellidentificou o processo pelo qual as manipulações políticas da linguagem setornaram uma das maiores forças da vida do século XX, produzindo umalinguagem de massas e em grande parte sem sentido – ao serviço dasentimentalidade política. Embora não tenha assinalado especificamente oesbatimentodecertostermosprovocadopelaadoçãofortuitadestesemcontextosmorais e sentimentais anteriores, Orwell estava preocupado com adescaracterizaçãoda linguageme coma sua restriçãoao acirrarde sentimentos

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políticosemvezdeserusadacomoveículoparaideiasediscussões.Apartirdomomentoemquealinguagempolíticasedefineporumaideologia,sóépassívelde aplicação a essa ideologia e aos seus inimigos segundo certos termos. E alinguagem da moralidade, sendo universal, pode ser aplicada a coisas e casosparticulares arbitrariamente, e por conseguinte tornar-se um nada em especial.Todas as pessoas podem agora ser acusadas de torturar todas as outras, porconseguinteninguémtorturaninguém.

O termo tortura subsiste hoje inserido quase completamente num vocabuláriogeneralizado.Eporqueissoacontecetorna-sefácilparaostorturadoresnegarqueo que efetuam é tortura (atente-se na genuína ambivalência do RelatórioWuillaume); por outro lado, torna-se difícil para as pessoas que empregam otermoparatudooqueseafiguresinónimodecrueldadegranjearmuitaconvicçãoquandoo utilizampara descrever algo que está na proximidade do seu sentidooriginal.UmbomexemplododilemapodeserencontradonorelatodeV.S.NaipauldeumaentrevistaqueefetuouaumsindicalistaargentinonavésperadoregressodeJuanPeróndoexílio:

«Não há inimigos internos», afirmou o líder sindical com um sorriso.Mas aomesmotempopensouquea torturacontinuarianaArgentina.«Ummundosemtortura é ummundo ideal.» E havia tortura e tortura. «Depende de quien seatorturado.»Dependedequemétorturado.Comumbandido,estábem.Mascomumhomemqueestáatentarsalvaropaís,issoéalgocompletamentediferente.Équeatorturanãosãosóoschoqueselétricos;apobrezaétortura,afrustraçãoétortura.

Defacto,nosuniversosdamoraledosentimento,nadapodesertorturae,comumaligeiramudançadeperspectiva,tudopodesertortura:oschoqueselétricos,apobreza, a frustração, talvez mesmo o enfado ou uma vaga insatisfação. Aentropiasemânticanãoservemuitobemparamanterasdistinçõesnítidas.Outrobomexemploencontra-senumadasrecensõesdolivrodeJohnLangbeinTortureandtheLawofProof(1977).OpróprioLangbein tinhaadmitidoque«deixavaparaosoutrosaextraçãodasimplicaçõesparaahistóriapolítica,administrativaeintelectualeuropéia».Oqueécorreto,eLangbeinprestouumgrandeserviçoàhistória da tortura com esta atitude. Mas um crítico apelidou a abordagem daLangbein«estritamente legal»,porque«definir a tortura com termos jurídicos étalvezdemasiadolimitado,poisacoaçãodeprisioneirospodepercorreraescalaquevaidosmaustratosàlavagemaocérebro».Acoaçãodeprisioneirospode,defacto, percorrer essa escala (e muitas outras), mas a tortura, se definidaespecificamente,nãopode.Talvezsejademasiadofortesugerirqueosdelitosque

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podem ser definidos combase em fundamentos específicos sejam efetivamenteassimdefinidos.

Umataldefiniçãopodeprivá-losdevalormoral,mastorna-osmaisidentificáveisetornamaisdifíceisasevasivasdeprecisãoparaosqueaspretendemalegar.OshistoriadoresdoDireitoidentificaramconsistentementeomomentodacriaçãodoDireito como uma ciência específica com omomento em que o juízo legal seapartou da moralidade. Embora uma tal posição deponha grande peso najurisprudência e nas instituições legais, ela sugere o contexto especificamentelegal em que a tortura pode ser identificada. Quando os jornalistas, eocasionalmenteoslegisladores(assimcomojuristasinternacionaisefilósofosdodireito),empregamotermo«tortura»paradesignaratividadesquejápodemser(esãonormalmente)definidasadequadaetecnicamentecomoofensaeagressão,ouviolaçãodepropriedade,oprópriotermo«tortura»torna-semeramentepitoresco,asuadefiniçãolegaléamputadaeoseulugarésubstituídoporumaideiavagaouumsentimentomoral.Torna-seentãofácilnegaraexistênciadetorturainvocandosimplesmente um sentimento moral mais elevado do que os dos nossosadversáriosoucríticos.

O humanitarismo do Novo Iluminismo e a generalização da terminologia dosentimentomoralconstituíramduasdasinfluênciasdalinguagemdoÉdensobreas definições modernas de tortura. Uma terceira já foi mencionada: o carácterintrinsecamente impreciso da linguagem política no fim do século XX, umacaracterísticareconhecidaporOrwelleporoutrosescritorespolíticos.«Apolíticae a língua inglesa» é um dos primeiros exemplos, mas de modo algum o seuúnico, da sua preocupação com o discurso da política. Embora no fim da suavida, com a publicação de 1984 em 1949, Orwell tenha dado maior ênfase àfalsificaçãodeliberadadalinguagemeàsuarelaçãocomopensamento,assuascartas e ensaios revelam uma série de outras preocupações, inclusive com opotencialdalinguagempolíticaparaodesmazelodapuranegligência:«[Alínguainglesa]torna-sefeiaeimprecisaporqueosnossospensamentossãoidiotas,masodesmazelodanossalínguatornamaisfáciltermospensamentosidiotas.»MasàmedidaqueOrwellseinteressavacadavezmaispelousoincorretodeliberadodalinguagem,outrostrechosdePoliticsandtheEnglishLanguagetornavam-secadavez mais proféticos: «A palavra fascismo não tem hoje [1949] qualquersignificado exceto namedida emque significa algo não desejável.As palavrasdemocracia,socialismo,liberdade,patriótico,realista,justiça,têmcadaumaoseusignificadoquenãopodeserconciliadocomqualquerdosoutros.»

EmboraOrwell não inclua a tortura na sua lista, ela faz certamente parte dela.Neste aspecto, a sua grande contribuição foi a sua identificação dos efeitos de

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politizar e sentimentalizar a linguagem, das restrições que estes impõem à suacapacidadedeclarificaropensamentoedoseuprópriocarácter intrinsecamenteimprecisoeenganador.

AlinguagemdosmoralistasesentimentalistasdosséculosXVIIIeXIXeraumalinguagem do Éden, uma linguagem cujos significados eram fixos e postos aoserviçodeumagrandecausa.ÀluzdahistóriadalinguagemdoÉdennosfinsdoséculo XX, torna-se possível compreender a genuína incerteza presente naterminologia de um funcionário público como M. Wuillaume relativamente asaberseoquetinhavistonaArgéliaem1955tinhaounãosidoverdadeiramente«tortura». É também possível ver nas negações de muitos países face àsacusações de tortura algomais quemera hipocrisia ou uma evidente obsessãocomasrelaçõespúblicas.Por tersidodefinidademodotãovariado,a torturaéatualmente, sem uma linguagem extremamente precisa, virtualmente impossívelde definir. O jornalista que relata que o criminoso raptou e «torturou» a suavítima; a «tortura» de umamulher agredida por ummarido brutal; a probidadeambiciosadosindicalistaargentinodeNaipaul:«Apobrezaétortura,afrustraçãoé tortura»; todos eles esbateram a tal ponto o significado de tortura que, aoabrangertudo,nãoabrangenada.Eétãofácilevitaroreconhecimentodoseuusocomoacusaroutremdeaempregar.

Apesar dos heróicos sentimentosmorais dos delegados das Nações Unidas de1948,asincansáveistentativasdealcançaraprecisãoporpartedosdelegadosdaAssembleiaConstituintedoConselhodaEuropaem1950,eodetalhemeticulosoda Resolução 3452 das Nações Unidas em 1975, a história da linguagem doÉden constituiu uma barreira formidável, embora não intencional, não apenasparasealcançarumadefiniçãouniversalmenteaceitáveldetorturacomotambémparaamaioriadastentativasdeagircomeficáciacontraela.Nofimdecontas,opatologistamaisapuradododiscursopolíticomodernotalveztenhasidoOrwell;as suas censuras, intentadas como um comentário à Europa dos anos trinta equarenta,acabaramporseaplicar tãobem,senãoaindamelhor,aomundodosanossetentaeoitenta.

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DepoisdaArgélia

Atorturaeraumtermodeprimeiraordemeumfactodeprimeiraordemparaosarquitetos da legislação sobre os direitos humanos após a Segunda GuerraMundial.Asuahistóriasemânticadesdeentãoindicaquesetornouumtermoefactodesegundaordememmuitossítiosdomundo.Nalgunscasos,apráticadatortura foi deliberada e conscientemente difundida por áreas dominadas oufortementeinfluenciadaspeloTerceiroReichepelaUniãoSoviética;ouseja,pelaGréciaeHungriaemaistardepelaJugosláviaealgunspaísesdoBlocodeLeste.Noutrasregiões,comoaArgélia,aetiologiaémaisdifícildedelinear,eempaísesqueadquiriramaindependênciamuitorecentemente,quesofreramrevoluções,oupaíses controlados por governos fortes e autoritários, chegar a uma etiologia équaseimpossívelmesmodeformaconjetural.

Contudo, é possível delinear umageografia da tortura – e umcalendário.AlecMellor(LaTorture,1949e1961)ensaiouumatentativadessegéneronocasodaArgentina, como vimos antes,mas ele próprio desesperou de dar conta de ummodomaiscompletodaprópriaAméricaLatina.OqueeradifícilparaMellorem1949é-ohojeumpoucomenos,principalmentedevidoaofluxodeinformação,sobretudo por meio do jornalismo e de organizações privadas. O casoBloemfontein na África do Sul, em 1964, revelou de forma implacável ummundode torturapolicial,edesdeentãoaÁfricadoSulnuncamaisdeixoudeestar em foco. Memórias pessoais também forneceram informações sobredeterminadoslocaisealturas,talcomo,porexemplo,acomoventeautobiografiadeNicholasGageaorelataratorturaeexecuçãodasuamãenoseulivroEleni(1983), um relato de alguns acontecimentos obscuros ocorridos no Norte daGrécia em 1948 e da investigação pessoal desses acontecimentos por parte deGage.

Ummododeabordaraquestãoéconsiderarporuminstanteasdiferençasentreasediçõesde1949e1961deLaTorturedeMellor.

Esta obra, seguida em 1952 por Les Grands problêmes contemporains del’instructioncriminelle,domesmoautor,queMellorconsiderouum«completar»do seu estudo da tortura, parece ter originado consideráveis críticas, mas foipremiadacomoPrixdeJoestpelaAcademiaFrancesaelouvadopelopapaPioXII numa carta ao autor com a assinatura deGiovanniBattistaMontini, entãosecretáriodeEstadoemaistardepapaPauloVI.PioXIIefetuoumaistardeumaelaborada denúncia da tortura numa comunicação ao Sexto Congresso

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InternacionaldeDireitoPenalem1953,talcomoofezoSegundoConselhodoVaticanonoGaudiumet spes, 27.3, em1965.Como seria de esperar, amaiorpartedo livrodeMellor foi reimpressasemalteraçõessignificativasnasegundaedição.Osdoisacréscimosmaisimportantestinhamavercomasrevelaçõesdodiscurso deKhruchtchev noVigésimoCongresso do Partido em 1961.Mellorconsiderou que as suas acusações anteriores tinham sido confirmadas pelasrevelaçõesdeKhruchtchev.Osegundoacréscimoimportantefoi,tambémcomoseriadeesperar,umaabordagemdasrevelaçõesquetinhamemanadodaArgéliaentre 1954 e 1962.Ambos os acres centos pareceram a Mellor comprovar averdadedasuateseanterioresugerirquepoucotinhaacontecidoparamodificaro mundo que tinha descrito na primeira edição de 1949. No entanto, Mellortambémmanifestoualgumaesperançanaocorrênciademudançasefetivas.Sentiuorgulhopeladenúnciada torturanaArgéliaefetuadapelosbispos francesesem1960 e 1961 e referiu também o caso do jornalista paraguaio Eliseo SosaConstantini, preso e torturado no Paraguai pelo governo deAlfredoStroessnerem1960,masposteriormentelibertadoapósumprotestodosbisposparaguaios,da Associação da Imprensa e de jornalistas liberais. Estes pareciam serreconhecidamente pequenos triunfos, mas permitiram a Mellor concluir o seulivrocom,pelomenos,umapequenanotadeesperança.

ApesardasResoluçõesdasNaçõesUnidasde1975ede1966/67edaposteriorinclusãodepolíticasespecíficassobreosdireitoshumanosnasadministraçõesdeumasériedegovernos,emespecialnodosEstadosUnidosentre1976e1980,asfontesdeinformaçãomaiseficazesrelativamenteaoempregodatorturadepoisdaArgélia têm sido as organizações privadas, primeiro a Cruz VermelhaInternacionale,depoisde1961,tambémaAmnistiaInternacional.

Fundada pelo advogado londrino Peter Benenson em 1961 como umaorganizaçãoprivadadedicada a prestar assistência aos prisioneiros políticos, ou«prisioneiros de consciência», a Amnistia Internacional declarava que a suapolíticatinhacomofitomobilizarrápidaeextensamenteaopiniãopúblicaantesque um governo seja apanhado na perversa espiral causada pela sua própriarepressão…O poder da opinião pública, para ser eficaz deve ter uma amplabase, ser internacional, não sectário e constituído por membros de todos ospartidos. As campanhas a favor da liberdade empreendidas por um país, oupartido, contra outro frequentemente não conseguem nada mais senão umaintensificaçãodaperseguição.(Larson,AFlameinBarbedWire,1979)

Benenson tinha sido inspirado a tomar este tipo de iniciativa ao ler em1960 anotícia de que dois estudantes portugueses tinham sido detidos e presos pelogovernoporteremfeitoumbrindeàliberdade.

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Desesperandodaineficáciadoprotestonacionaleinternacional,Benenson,comos seuscolegasLouisBlorn-CoopereEricBaker, assimcomoosmembrosdogrupo de advogados Justice, que tinha sido fundado em 1957 para instigar aocumprimento da Declaração das Nações Unidas de 1948, decidiu formar umaorganizaçãocujosmembrosprocurassem,enquanto indivíduos, a libertaçãodosencarcerados pelas suas opiniões, assegurar que tivessem um julgamento justo,elaborarodireitoaoasilo,ajudarosrefugiadosaencontrartrabalhoeincentivarosurgimentodemecanismosinternacionaiseficazesquegarantissemaliberdadedeopiniãoedeexpressão.Benensoneos seusassociadosconcluíramqueomeiomaiseficazpararealizaremestesobjetivoseraapublicidade:

Amaneiramaisrápidadeajudarosprisioneirosdeconsciênciaéapublicidade,especialmenteentreosseusconcidadãos.

ComaspressõesdosnacionalismosemergenteseastensõesdaGuerraFria,édeesperar que se verifiquem situações em que os governos são levados a tomarmedidasdeemergênciaparasalvaguardarasuaexistência.Évitalqueaopiniãopública exerça pressão para que essas medidas não sejam excessivas nem seprolonguemdepoisdosmomentosdeperigo.Seseprevêqueaemergênciavaidurar muito tempo, o governo deve ser induzido a permitir que os seusadversáriossejamlibertadosparaprocuraremasilonoestrangeiro.(Ibid.)ApublicidadeestavadependentedasatuaçõesdosmembrosdaAmnistiaedoseuacessoàcoberturadaimprensa.Ambasaumentarammuitorapidamentee,apesardealgumadissensãointernaem1966,aAmnistiaInternacionalnãosóconseguiuumsucessoapreciávelnamelhoriadotratamentodemuitosprisioneirospolíticoscomotambémcriouumaredederecursosinformativostalvezmaiordoqueadequalqueroutraorganizaçãomundial.AssuasfontesdeinformaçãoinundavamassuasinstalaçõesemLondrescomhistóriasdecasosparticulares,verificavam-nosmeticulosamentepormeiodeumaequipade investigaçãoeatribuíam-nosaumdosmuitospequenosgruposdemembrosemdezenasdediferentespaíses.Estesgrupos «adotavam» então prisioneiros específicos e geriam a campanhapublicitáriaqueconduziriaeventualmenteàsualibertação.

Em1965aAmnistiapublicouoseuprimeirorelatórioformal,umadescriçãodascondiçõesdeprisãonaAfricadoSul.Surgindonoperíododeumanodepoisdocaso Bloemfontein, o relatório indignou a África do Sul, mas aumentou avisibilidade internacional da Amnistia. No mesmo ano, a Amnistia erareconhecida pelas próprias Nações Unidas, pelo Tribunal Europeu deEstrasburgo,pelaCruzVermelha Internacional,pelaComissão InternacionaldeJuristaseporoutrasassociaçõesdosdireitoshumanos,efoi-lheconferidoestatutoconsultivo no Conselho da Europa. Também em 1965, outros dois relatórios

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forampublicados,sobrePortugaleaRoménia,eem1966umrelatóriosobreaRodésia.AsrevelaçõesdaÁfricadoSuledePortugalemparticularrevelaramoextensoempregode torturaemprisioneirospolíticos, enosanos imediatamentesubsequentesatorturatornou-seumdosobjetivosmaisproeminentesdaAmnistiaInternacional.

Sob a presidência de Martin Ennals, aAssembleia Internacional daAmnistiaInternacional, que se reuniu em Estocolmo em 1968, adotou como um dosobjetivos principais da organização o artigo 5 da Declaração Universal dosDireitosdoHomemde1948:«Ninguémserásubmetidoa torturaoutratamentoou punição cruéis, desumanos ou degradantes.» Esta ação foi precipitada pelapreocupação da secção sueca da Amnistia relativa a relatórios de torturareferentes ao regime revolucionário na Grécia, que tinha tomado o poder em1967. Em 1968, aAmnistia publicou dois relatórios em primeiramão sobre oemprego da tortura pelo governo grego. Como consequência, a Grécia foiexpulsa do Conselho da Europa em 1968 por ter violado nove dos artigos daConvenção Europeia dos Direitos Humanos de 1950. Após a deposição doregime dos coronéis em 1975, a Amnistia publicou o seu estudoextraordinariamentepormenorizadoedocumentadoTorturanaGrécia,umadasobrasclássicassobreadocumentaçãoetécnicasdatorturadosfinsdoséculoXX.

OquetornaTorturanaGrécia:ojulgamentodoprimeirotorturador–1975umaobra importante, com implicações que se estendemmuito para alémdo regimedos coronéis gregos, é o facto de descrever uma investigação governamentallevada a cabo por um governo subsequente, dispondo de acesso a registos epessoalnãoassociadoàsaçõesdogovernoanterior.EstáisentodepartidarismoeprojetaumaluzimplacávelsobreoprocessodetorturanumpaísdoséculoXX.Poucos casos de tortura neste século foram tão minuciosa e publicamenteexaminados,documentadosedescritoscomoeste.

Após a amnistia de 1974, pessoas que tinham sido obrigadas a fugir do paíspuderam regressar e as provas contra os torturadores revelaram-se extensas econclusivas.Por outro lado, o regime dos coronéis não foi o primeiro regime moderno aempregaratortura.ApesardeumasériedeanálisespoucoisentasdahistóriadaGrécia,daditaduraMetaxasantesdaguerraatéaoderrubedoscoronéis,tambéméclaroqueaocupaçãoalemãdaGréciateveumpapelsalientenacriaçãodeumclimaedaspráticasde terrorequeasvirulentascontendasentreoscomunistas(ELAS) e os «nacionalistas» (EDES) de Napoleon Zervas entre 1941 e 1949tambémproduziram situações de tortura em ambos os lados.A importância doestudo Tortura na Grécia deve-se apenas às suas circunstâncias e à sua vasta

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documentação, mais do que ao lugar singular que ocupa na história. O que oprecedeu,devidoaestarmenosdocumentadoesujeitoaumahistoriografiamuitopoucoisenta,permaneceinacessível,comaexceçãodealgunscasosparticulares.Mas Tortura na Grécia é também um estudo exemplar para investigaçõesposteriores. À luz de testemunhos pessoais difíceis de comprovar, de relatospouco isentos,ausênciade registos,eumcansaço frequentecomo recordardopassado, só uma investigação tão minuciosa, suportada e empreendida pelogoverno temprobabilidadede serdotadadaconvicçãoedescriçõesnecessáriaspararevelarverdadeiramenteatorturamoderna.EmJunhode1984,porexemplo,a Associated Press realizou uma reportagem sobre o crescente número derevelaçõesrelativasaoempregodetorturapeloregimedeSekouTourénaGuiné.Neste e em casos semelhantes, poder-se-iam empreender outros relatóriossemelhantesaTorturanaGrécia.

Em1972 aAmnistia Internacional tinha iniciado oficialmente a suaCampanhapara aAboliçãodaTortura, que conduziu àpublicaçãoem1973da sondageminternacionalsobreatortura,quecobriaadécadaanterior.Umasegundaediçãosurgiuem1975.OproblemacomqueacampanhadaAmnistiasedeparoupodeserironicamenteilustradoporumareportagemdoNewYorkTimesdatadade4de Dezembro de 1973. O Times relatava que a UNESCO tinha recusadoconceder àAmnistia Internacional o uso das suas instalações em Paris para aconferência agendada sobre a tortura na sequência do relatório de 1973, istoporque muitos dos países representados na UNESCO eram mencionados deforma desfavorável no relatório, e a UNESCO possuía uma regra geral quedeterminava que «uma conferência exterior na UNESCO não utilize materialdesfavorável sobre qualquer estado membro». Com efeito, a Amnistia tinhanomeado mais de sessenta países, de democracias a estados policiais, queempregavamsistematicamenteatortura.

Em 1973 aAmnistia relatou o derrube do governo deAllende no Chile e oempregoda torturapelapolíciadonovogoverno.Em1972publicouumrelatosemelhante de emprego da tortura no Brasil, e o relatório de 1973 incluiu aTurquia.Em1976relatouaexistênciadetorturanoIrãoenaNicarágua,em1980na Argentina e em 1981 no Iraque. Em vinte anos, por meio de esforçosincessantes de indivíduos e de uma organização reduzida ao mínimoindispensável, a Amnistia Internacional tinha conseguido tornar público oempregogeneralizadodetorturamaiscompletamentedoquequalquerindivíduoou organização na história anterior. E a sua publicidade não desapareciafacilmente.Em1977recebeuoPrémioNobeldaPaz.

O procedimento seguido pela Amnistia de partir de relatos individuais,

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verificadoseinvestigadosporprofissionais,etornadosdepoispúblicospormeiode relatórios, era um procedimento muito mais elaborado que – mas nalgunsaspectos lembrando – as obras anteriores de escritores comoAlleg, Simon eVidal-NaquetemFrança.Adedicaçãodeindivíduosorganizadostinhaalcançadoumsucessoconsiderávelnummundoemqueamaiororganizaçãointernacionaleraimpedidadecumprirasua própria Declaração dos Direitos do Homem pelas suas própriasregulamentações. Na década passada desde o início da sua Campanha para aAbolição daTortura, aAmnistia Internacional tinha revelado ummundo aindamaisrepletode torturasistemáticadoquemesmoMellor tinha imaginado, tantoemestadosdemocráticoscomoemautoritários,etrouxeraodesconfortoamuitasregiõesdomundo,nãoapenasaosmembrosetorturadoresdaUNESCO.

UmexemplodestedesconfortopodeserapontadonocasodeJacopoTimerman,umjornalistaargentinoquefoipresoetorturadonaArgentinaentre1977e1979.Timerman, solto e levado para Israel, publicou em 1981 o relato das suasexperiências no seu extraordinário livro Prisioneiro sem Nome, Cela semNúmero. As revelações de Timerman tiveram uma recepção extremamentediversa. Como é óbvio, muitos críticos condenaram imediatamente e semrestrições o tratamento infligido a Timerman. No entanto, houve outros quecriticaramdeformamaisténueoregimequetorturaraTimermaneconcentrarama sua atenção no próprio Timerman, sugerindo que ele tinha de algum modoprocurado e mesmo merecido o que constituía, de qualquer maneira, umtratamento necessário, excepcional e não habitual – na verdade esseTimermantinhaprovocadoosseusproblemas,inclusiveasuatortura.Timermanrespondeuaofogodosseuscríticosdeformaeloquenteevigorosa,eumasériedeanalistas,emespecialMichaelWalzer, levantaramaquestãomaisglobaldosmotivosdoscríticosdeTimermanaoreagiremaacontecimentosparaosquaisumadécadaderelatosdaAmnistiaInternacionalhámuitoosdeviacertamenteterpreparado.

Então, entre 1956 e 1981, surgiram uma quantidade enorme de reportagens einvestigações referentes à natureza e dimensão da tortura moderna, tendo amaioria sido incontestada, algumas negadas, muitas ignoradas. Na sequênciadestasrevelações,aumentadaseatualizadaspelapublicaçãoem1984daAmnistiaInternacionalA Tortura nosAnos Oitenta, até os receios de Orwell,Mellor eArendtparecemhojeinadequados.EaArgéliaacabaporseafigurarhoje,comodeclarouSartreemrelaçãoaoTerceiroReicheàURSS,maiscomoalgorotineirodoqueexcepcional.Vistasà luzdoseuémulo,as torturasmedievalemodernasurgem muito mais restritas no que se refere às suas aplicações, objetivos etecnologia.Istoporqueatorturasurgiuemmuitosoutrosramosdaautoridadedoestado para além do judicial (e algumas vezes foi deliberadamente mantida

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separadadoâmbitodopoderjudicial).Oseuobjetivoeasuanaturezaalteraram-setambém.Eagoraalturadedarcontadeles.Oqueéqueestarevelaçãonosdizsobreatortura?OqueéatorturanosfinsdoséculoXX?

ASala101–eoutrassalas

QuandoWinstonSmith,oprotagonistade1984,deGeorgeOrwell,éfinalmentepreso pelos agentes públicos, é primeiro submetido ao isolamento e privaçãosensorial e depois torturado por um complexo dispositivo técnico que pareceproduzir uma série de agressões de tipo elétrico ao seu sistema nervoso. Ainformação que o dispositivo extrai invariavelmente de Smith já é, no entanto,conhecida dos seus interrogadores; de facto, as sessões de tortura parecem terapenasoobjetivodeverificaracooperaçãodeSmith.Apiorederradeiratorturavisatransformaracooperaçãoforçadanumadócilaquiescênciaaosprincípiosdopartido.NaSala101cadavítimaéameaçadacomatorturaqueconsistenaquiloqueeleouelamaisteme.NocasodeSmith,éumataquederatosaoseucorpo(um expediente que Orwell pode ter recolhido de relatos sobre as torturas daCheka);oúnicomododeevitaraefetivaaplicaçãodatorturaétraindoosúltimoslaçoshumanosquelherestamedaroseuassentimentoàsupremaciadopartidoedoestado.NomundodaSala101,estasequênciadetorturaresultasempreetemcomoobjetivoanularavontadeprópriadassuasvítimas,enãopreferencialmenteaobtençãodeinformações.

A discussão da tortura e experiência de Smith na Sala 101 faz eco de umaobservação proferida por outro torturador fictício, Gletkin, em O Zero e oInfinito, deArthurKoestler: «Não existem seres humanos capazes de resistir aqualquer quantidade de agressão física. Nunca vi nenhum. A experiênciaensinou-me que a resistência do sistema nervoso humano é limitada pornatureza.»Atolerânciatambémvariadeindivíduoparaindivíduo.

OrwellédeliberadamentevagoemrelaçãoàmáquinaqueprimeirotorturaSmith.Não existia nada do género em 1984, mas para Orwell era seguramente e demodo previsível parte integrante do futuro; já que a dor conseguia levar àconversão de indivíduos recalcitrantes, ao desmontar e recriar a suapersonalidade,umdispositivocapazdeproduzirquantidadededorparaestefimteriaqueserinventado.

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O’Brien, o torturador e professor de Smith, dispensa desde o início as formasanterioresdecoaçãofísicaepsicológicacriadasapenasparaobterinformaçõesouconfissões. A Inquisição, o Terceiro Reich e a União Soviética nos seusprimórdiosrepresentamparaeleinstituiçõesgrosseirascujastecnologiaslimitadaseprimitivaseramempreguesparaobjetivostriviais.HerbertRadke,ummembrohonoráriodoConselhoAlemãoFederaldaAmnistiaInternacional,observouumacaracterísticasemelhanteemmuitosusosdatorturanofimdoséculoXX:

Umdosmodosdedeterminaroobjetivorealda torturaéexaminarasáreasemqueémaisfrequentementeempregue.

Daísededuzclaramentequeofitoprincipaldotorturadorédifundirumclimadeterror.Aprocuradeobter informaçãoéapenasdeimportânciasecundária…Atorturaestáatornarsecadavezmaiscientífica.Apardabrutalidadefísicaedamutilação,oempregodeequipamentomecânicosofisticadoestáatornar-secadavezmais comum. Uma das causas para a nossa preocupação é o aumento daaplicação de métodos de tortura psicológicos e farmacológicos. Enquanto emtempososmédicospresentesnuminterrogatóriogeralmenteestavamláparaevitara morte da vítima, hoje a ciência médica desempenha um papel ativo nodesenvolvimentodastécnicasdetortura.(BõckleandPohier,TheDeathPenaltyandTorture,1979,p.10)

O carácter inventivo das criações de Orwell e Koestler parece terse tornadorotineiropara os torturadores de1984.Não só as instituições como tambémosmétodostradicionaisdetorturaforamemgeralpostosdeparte;opolé,aroda,otrituradordededoseofogopertencemhojeaumaeracujatecnologia,mesmoatecnologiausadaparainfligirdor,foisuperadapelamodernidade.

A questão da tecnologia empregue na tortura do fim do século XX e daparticipaçãoneladeperitosmédicosetécnicossuscitouumaenormequantidadede investigação e testemunhos, especialmente a partir de 1974. Alguns dosresultados dessas investigações permanecem vagos e não convincentes.Acusações da existência de técnicas de tortura «asiáticas» secretamentetransmitidasaolongodeumarededecomunicaçãodetorturaqueseestendedaÁsia à Europa Ocidental são difíceis de verificar; o mesmo acontece com aspretensões mais elaboradas de que existem «escolas» de tortura, do tipo dadescrita numa comunicação por rádio para Londres em 1943: «Os futurosespecialistasdaGestapoaprenderamaíoseuofício,geralmentenumperíododequatro semanas, frequentando cursos de fisiologia, tendo sessões práticas detreino e um exame final.» Embora o Terceiro Reich tenha certamentedesenvolvido novas técnicas de tortura e tenha permitido que elas fossem

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utilizadas pelos oficiais dos regimes colaboradores, há poucas provas daexistência de verdadeiras escolas de treino, e poucas mais que confirmem asacusações contemporâneas de existência de escolas semelhantes na AmericaLatina ou Africa do Norte. Também os EUA foram acusados de treinartorturadoresnodecursodotreinoministradoaagentesdepaísesdaAméricadoSulparamanteremaordempública.

Toda a ideologia pressupõeuma antropologia – uma concepçãodoque sãoosseres humanos e como devem ser tratados para se criar a sociedade que cadaideologia requer. A antropologia legal do Antigo Regime, por exemplo,pressupunhaumgrupode criminosos irredutíveis e intratáveis, capazesdeumaresistência à dor de um nível extraordinário, necessitando da dor para dizer averdade, mas dizendo-a invariavelmente quando torturados. O que Foucaultdenomina o «controlo do corpo» do criminoso implicava não apenas puniçõesdolorosas e destrutivas como também métodos indeterminados e dolorosos deinterrogação. A neurologia dos primórdios da tortura na Europa dependiaprincipalmente da dor resultante de músculos distendidos e articulaçõesdeslocadas,doprocessoimplacáveldepressionartecidosricamenteinervados,ouso de sistemas músculo-esqueléticos, da cauterização de extensas áreas determinaçãonervosaedosefeitossufocantesedistensoresdasvíscerasprovocadospelaágua.

O primeiro destes efeitos é a dor provocada pela isquemia.A deslocação dasarticulações produz uma atividade neurológica reflexa – a diminuição do ritmocardíaco,hipotensãoesíncope.Taismétodos,tendoemconsideraçãoostiposdedorcomque lidavam,sópodem terobtido resultadosaproximadose incertos–algoreconhecidopormuitosescritoressobreafidedignidadedasprovasextraídaspelatortura.

AtecnologiadatorturanosfinsdoséculoXXresultaparcialmentedeumanovaantropologia e da tecnologia concomitante. Não é primordialmente dainformação,massimdavítimaqueatorturanecessitadetomarposse–oureduziràimpotência.Aoaumentarostiposefrequênciadatortura,aoadquirireexplorarum conhecimento psicológico e neurológico mais exato, a tortura nos fins doséculo XX tornou-se capaz de infligir uma imensa variedade de níveis de dorrelativamentegraduadosaqualquerpessoa,durantequalquerperíodode tempo,com, como o tinham sugerido Orwell e Gletkin, invariável sucesso. A novaantropologia subordina os seres humanos individuais a um novo bemtranscendente.ComoobservouKoestler,acapacidadehumanaparaaviolênciaeassassínio intra-específicos parece derivar menos de uma hipotética pulsãobiofísica do que da capacidade humana de colocar valores supremos em ideias

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transcendentais e deduzir delas uma antropologia. As paixões da consciênciarevolucionárianosprimeirosanosdesteséculorevelaramanovaantropologianaviolênciadaChekaenasuajustificaçãorevolucionáriadoterroredatortura.Ostorturadores da OVRA de Mussolini contribuíram com a sua sinistraoriginalidade – a técnica de bombear óleo de rícino para o estômago das suasvítimas;osnazisparecemtersidoosprimeirosaempregardispositivoselétricos,embora os agentes da polícia argentina tenham orgulhosamente reclamado ainvençãodapicanaelétrica,afinavaretademetalligadaaumafontedeenergiaelétrica e aplicada a diferentes partes do corpo. Testemunho e investigaçãosubsequentes revelaramumamuitomaior variedade de técnicas de tortura paraalémdestas.Noentanto,antesdeasconsiderar,énecessáriotraçaroutralinhadeinvestigaçãorecente.Paracompreenderosefeitosdanovatecnologiadatorturaénecessárioconsideraralgunsaspectosdafisiologiaepsicologiahumanaseoqueosseusestudiososclínicosmaiseficientesdenominaram«opuzzledador».

Entre as muitas belezas e maravilhas do corpo humano, conta-se um sistemasensorialextremamentearticulado,partedoqualéagredidanoprocessodetorturacomaintençãodeliberadadedespoletarmecanismosdedor.Aagressãoinicialàpartenervosadosistemasensorialpor intermédiodequaisquermeiosde torturatem como fimproduzir dor intensa.Os primeiros estímulos excitam complexosconjuntos de receptores, geram um aumento da produção de suor e do fluxosanguíneoeiniciamoprocessodesintetizaçãodoscomponentesmaisimportantesda dor: pequenas quantidades de histamina e serotonina. Estas substânciasdesencadeiam o padrão codificado de impulsos nervosos, amensagem da dor,quepercorreumacadeiadefibrasnervosasatéalcançaraespinalmedula,apartirda qual a mensagem de dor envia a sua informação para o sistema aferente(sensorial)viajandoaolongodacolunavertebralatéaocérebro,primeiroparaotálamo,quereconheceaexperiênciasensória,efinalmenteparaocórtexcerebral,quereconheceaintensidadeelocalizaçãodador.

Desde a descoberta de substâncias químicas conhecidas como endorfinas em1975, sabe-se também que o corpo pode criar os seus próprios analgésicos,inibidoresdedor,eateoriagate-controldadordescreveaformacomoumfluxocomplexodedoredeoutrosestimulantespodeinteragircomosinibidoresdedornaturais do corpo– endorfinas, encefalinas e neurotransmissores – para reduzirinternamenteaestimulaçãodolorosadireta.

Namedidaemqueamaioriadainvestigaçãoclínicasobreafisiologiadadorfoiempreendidacomoobjetivodediminuirador,nãohá registosde investigaçãosobreapuniçãodedor,emboraexistaumrazoávelnúmerodeprovasdequeumasériedemédicosetécnicosrealizaramefetivamentetalinvestigação,pelomenos

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tãocedoquantoaexperimentaçãomédicasobacustódiadoTerceiroReich.Todaessa investigação teria necessariamente que laborar na fisiologia da dor acimadelineada.Masao tratardapuniçãodeliberadadador,háoutroselementosquetêmdesertomadosemconsideração.Adoragudaporsiprópriaprovocaoutrosefeitos: pode interferir na respiração, causar náuseas, obrigar o coração a umesforçoexageradoelevaraumataquecardíaco.Jáqueosmétodosdeinfligirdorvariam, muitos procedimentos de tortura agridem outras partes do sistemasensorial e também outros sistemas do corpo, em especial os sistemasmusculoesquelético,gastrintestinalecardiovascular,apeleeoprópriocérebro.

Alémdisso,avivênciadetorturapodetambémcausardorcrónicanavítima,umasíndroma diferente e independente marcada por malestar permanente que secaracteriza por depressão, perda de apetite, fadiga profunda e insónias, assimcomo hipotensão, vertigens e síncopes.A dor crónica pode também produziralterações a longo prazo no próprio sistema nervoso central de tal modo quemesmodepoisdeoestímulodolorosotercessado,ador(ououtrasformasdedorcom ela relacionadas) pode persistir ou renovar-se periodicamente. Por fim, apunição deliberada de dor em circunstâncias de tortura pode mesmo anular acapacidade natural do corpo para produzir os seus próprios analgésicos(substâncias anuladoras da dor) e o medo, ansiedade, stress (tanto no sentidoclínico como no da linguagem corrente), ausência de força e desesperoadvenientespodemmesmoaumentar apercepçãodadorporpartedavítimae,portanto,reduzirtambémoseumecanismonaturaldesuportarador.Emsuma,ador produzida pela tortura é muito provavelmente maior e percebida maisintensamente do que seria uma quantidade de dor clinicamente comparável seocorressefortuitamentenodecursodaetiologiadeumadoença.

A dor é uma estrutura complexa, percebida subjetivamente e condicionadapsicologicamente.Comoobservaramdoisclínicosdador,MelzackeWall:

As provas psicológicas apoiam fortemente a concepção da dor como umaexperiênciaperceptivacujaqualidadeeintensidadesãoinfluenciadaspelahistóriapassada singular do indivíduo, pelo significado que ele confere à situaçãocausadora da dor e pelo seu «estado de espírito» na altura. Cremos que todosesses fatoresdesempenhamumpapelnadeterminaçãodospadrõesefetivosdosimpulsos nervosos que ascendem do corpo ao cérebro e circulam dentro dopróprio cérebro. Destemodo, a dor torna-se uma função de todo o indivíduo,incluindoosseuspensamentosemedosatuais,assimcomoassuasexpectativasparaofuturo.(MelzackandWall,TheChalengeofPain,1983)

Apesardocaráctervagodalinguagemdadorhámuitoreconhecido,apesquisa

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de Wall, Melzack e outros indicou que a dor pode ser descrita, analisada ecomunicada com sucesso como uma categoria da experiência que possui tantoumadimensãosomático-sensorial(física)comoafetivanegativa(psicológica).

As técnicas de tortura mais utilizadas no início da história europeia agrediamprincipalmenteosistemamúsculo-esquelético,osreceptoressensíveisaocaloreotecidoricamenteinervado.Apolé suspensãoporintermédiodecordas–earodadistendiamemuitasvezesdeslocavamosmúsculoseasarticulações.Nocasodapolé, aoesticar traumaticamenteosmúsculosdosbraçoseoplexobraquial, aoprivar osmúsculos deumafluxode sangue adequado (isquemiamuscular) pormeio da constrição das artérias e ao deslocar as articulações nas mãos e nosombros, gerava-se uma dor intensa. No caso dos trituradores de dedos e dasprensasdaspernas,oslimiaresdedordasfibrasinervadaseramdiminuídospelapressãomecânica. No da roda, eram agredidos os tendões, as cartilagens e ascápsulas articulares. Para além destas, as técnicas de tortura nos primórdios daEuropa podem também ter envolvido dor indireta: dor em áreas sem ser asdiretamenteestimuladas,provocadapelaatividadede«zonasdesencadeadoras»,áreas extremamente sensíveis do tronco superior e das costas que, quandoestimuladas,produzemedemas,oque,porseuturno,libertahistaminaslivresnosistema nervoso. Histaminas, vaso-dilatadores, são dos mais fortes agentescausadoresdedorqueseconhecem.Évozcorrentequeastécnicasmodernasdetorturaincluemainjeçãodiretadehistaminasparaproduzirdorintensa.

Nas técnicas relativamente posteriores da prensa das pernas e do triturador dededos, os sistemas esqueletais e vasculares e o tecido circundante ricamenteinervadosãoagredidosporpressãomecânica.

Por conseguinte, as técnicas de tortura dos primórdios da Europa produziamquantidadessubstanciais,masumnúmerolimitadodetiposdedor.Atécnicadeencheroestômagodavítimadeágua(ouavariantedaItáliafascistadoóleoderícino)quaseatéàasfixiaproduzianãoapenasadordasufocação,mastambémador extraordinária a que as vísceras estão sujeitas. O estômago e os intestinosrespondem aos estímulos de cortar ou queimar, mas a dor visceral é tambémproduzidapeladistensão,dilataçãoouespasmos.A técnicadeencherà forçaoestômago com água ou outros líquidos inflige das dores mais intensas que ostecidosvisceraispodemsuportar.

Até meados dos anos setenta, existiam poucas informações verificáveis sobretécnicas de tortura ou torturadores. Muitas das provas eram anamnésicas – osrelatossubjetivosdeindivíduos.Existiapoucaliteraturaclínicasobreofenómenodadoremsi.Contudo,desdeofimdaSegundaGuerraMundial,tinhatidolugar

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numa série de países, incluindo a Dinamarca, uma ampla investigação sobrevítimasdecamposdeconcentraçãoesobreasexperiênciasdealgumasclassesdepessoal militar. Esta investigação produziu uma literatura substancial sobre a«síndrornadocampodeconcentração»ea«síndromadomarinheirodeguerra».Em1973,nasuaconferênciaanualemParis,aAmnistiaInternacional,quetinhaacabadodeempreenderasuacampanhacontraatortura,pediuajudaaosmédicospara providenciar documentação clínica da existência da tortura, informaçãosobre os efeitos somáticos e psicológicos imediatos, as suas sequelas (efeitosduradouros)eparaconsideraras implicaçõeséticoprofissionaisdecorrentesdaparticipação de pessoal médico em sessões de tortura e prevenir que talacontecesse.

Em1974,numencontrodoConselhoInternacionaldaAmnistiaInternacionalemCopenhaga,umconjuntodemédicosholandesesedinamarquesessobaliderançadoDr.IngeKempGenefkeformaramoprimeirogrupomédicoconstituídoparaestudar a tortura como um fenómeno independente. A equipa começou compequenos grupos de refugiados chilenos na Dinamarca, vítimas de tortura naGrécia depois da deposição do regime de Papadopoulos, e a literatura clínicaproduzidanasequênciadaSegundaGuerraMundial.Em1975,noseuencontroemTóquio,aAssociaçãoMédicaMundialadotouumaDeclaraçãoemRelaçãoàTortura e outros Tratamentos ou Punição Cruéis, Desumanos ou DegradantesRelativosàDetençãoeEncarceramento.Em1976,sobadireçãodeA.HeijdereH.VanGenus,aAmnistiaInternacionalpublicouumlivrointituladoCódigosdeÉtica Profisional. Em 1977, a primeira publicação do Grupo MédicoDinamarquês, Provas de Tortura, foi publicado pela Amnistia Internacional.Congressos médicos subsequentes em Estrasburgo, Atenas, Genebra,Copenhaga,Toronto,Lérida eLyon examinaramos resultados da investigaçãorecente, forneceram vasta documentação médica da tortura e criaram umaliteraturaclínicasobreatorturaeassuassequelasqueéextensaedeconfiança.Em 1978 a Amnistia Internacional e uma série de grupos de investigaçãoespecializadosdividiram-seemtermosorganizacionaisparapoderemrealizardemodomais eficaz os tipos respectivos de trabalho.Nesse ano foi fundada umasociedade biomédica internacional, a InvestigaçãoAnti-tortura (ATR Anti-Torture Research), e em 1980 foi concedida autorização ao Grupo MédicoDinamarquêsparaexaminare tratarvítimasde torturanoHospitalUniversitáriodeCopenhaga.

Estegrupo,o InternationaltRehabiliteringsogForksningscenter forTorturofre–Centro Internacional de Reabilitação e Investigação para Vítimas de Tortura(CRT) – sustentado pelo governo dimanarquês e por contribuições privadas,consiste em equipas de especialistas médicos, enfermeiras, fisioterapeutas e

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psicólogosquetrabalhamemconjuntoparaareabilitaçãosomáticaepsicológicadasvítimasdetorturadetodoomundo.Àluzdestahistóriadacrescentetomadade consciência, investigação e experiência de sectores significativosdomundo,de declarações médicas e da contínua investigação da ATR e da AmnistiaInternacional,épossívelanalisarmaiscompletamentedoquealgumavezfoifeitoantesasmanifestaçõesdatorturadoséculoXX,atecnologiaempregueeassuassequelas.

A obra daAmnistia Internacional e de outros grupos governamentais ou não-governamentaisdocumentouumvastonúmerodecasosindividuaiseregionaisedeavaliaçõesdepolíticasgovernamentaisemmaisdecempaísesdiferentes.Estamassadetestemunhoseinvestigaçõesjáestádisponívelenãoprecisadeseraquirepetida.Alistaseguintesintetizaosresultadosdaquelasinvestigaçõesqueforamdocumentadasecomprovadasemtermosmédicosaolongodaúltimadécada.Astécnicas da Amnistia Internacional e de outros grupos de investigação e ainvestigação médica daATR e do CRT forjaram hoje um instrumento que éexato e convincente.A torturapossui a suaprópriapatologia– edeixamarcasquesãoindubitavelmentesuas.

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MÉTODOSDETORTURANOSFINSDOSÉCULOXX

TORTURASOMÁTICA

Espancamento:esmurrar,pontapear,batercombastões,coronhasdeespingardas,saltarsobreoestômagoFalanga(falaka):vergastarasplantasdospéscomvaras.

Tortura dos dedos: lápis inserido entre os dedos da vítima que são depoisapertadosviolentamente.

Telefone:o torturadorbatenoouvidodavítimacomamãoaberta imitandoumreceptor telefônico, produzindo a ruptura damembrana do tímpano; o telefonetambém pode consistir em golpes desferidos contra um capacete usado pelavítima.

Eletricidade:sondacomelétrodos(picanaelétrica);aguilhõesdegado(bastõesdechoque);grelhasdemetal,camasdemetalaquesãoatadasasvítimas;a«cadeiradodragão»(Brasil),umacadeiraelétrica.

Queimadura: com pontas de cigarros, charutos, varas aquecidas eletricamente,óleoaferver,ácido,calviva;assarnumagrelhaaorubro(casoda«mesaquente»usada pelos agentes do SAVAK); esfregar pimenta ou outras substânciasquímicasemmembranasmucosas,ouácidosepicantediretamentenasferidas.

Submarino:submersãodacabeçadavítimaemágua(frequentementeimunda)atéaolimiardasufocação(denominadanaArgentina«atorturaasiática»;emoutroslocais,abanera).

Submarinoaseco:acabeçadavítimaéenvoltanumsacodeplásticooucobertor,ouabocaenarinassãoamordaçadasatéqueseatinjaopontodesufocação.

Suspensão: o «poleiro de papagaio» brasileiro – a vítima é suspensa com osjoelhosdobradosàvoltadeumavarademetaleatadosviolentamenteaospulsos.

Manterprolongadamenteposiçõesforçadasouemesforçodocorpo.

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Manterprolongadamentedepé.

Alopeciadetração:arrancarocabelo.

Extraçãoàforçadeunhas.

Violaçãoeagressõessexuais.

Inserçãodecorposestranhosnavaginaounoreto.«Mesadeoperações»:mesaàqualavítimaéatada,tantoparaserviolentamenteesticadacomoparaserpresaapenasnazonaabaixodascostas,detalmodoqueavítima é obrigada a suportar o seu peso que está fora da mesa; no Chile édenominadoelquirófano,

Exposiçãoaofrio:exposiçãoaargeladoousubmersãoemáguagelada,

Privaçãodeágua:fornecerapenaságuasuja,salgadaoucomsabão,

Consumoforçadodecomidaestragadaoudeliberadamentemuitopicante,

Torturadental:extraçãoàforçadedentes,

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TORTURAPSICOLÓGICA

Presenciarassessõesdetorturadeoutros:parentes,crianças.

Ameaçasdefazerpresenciaratorturadeoutros.

Execuçõessimuladas.

Privaçãodesono.

Exposiçãocontínuaàluz.

Prisãonasolitária.

Incomunicado(permanecerpresosemqualquercomunicaçãohumana).

Privaçãosensorialtotal.

Condiçõesdedetenção.

Ameaças.

Humilhação: arrancar roupas; forçar a participar em ou a presenciar atividadesexual.

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TORTURAFARMACOLÓGICA

Administraçãoforçadadesubstânciaspsicotrópicas.

Administração forçada de estimulantes nervosos (histaminas; aminazina;trifluoretoeperazina-cetalazina).

Injeçãoforçadadematériafecal.

Ingestãoforçadadeenxofreouveneno(tálio).

Háváriascaracterísticasdesta lista,emespecialasuadivisão,quemerecemserapontadas. Primeiro, existem sequelas psicológicas de todos os exemplos detortura somática citada, e há aspectos físicos envolvidos numa série de torturaspsicológicas,emespecialaprivaçãosensorial,aexaustãoeaprisãonasolitária.Porfim,astorturaspsiquiátrico-farmacológicastambématuamsobreascondiçõesfísicas.

Alémdisso,emboraamaioriadopessoalmédicoquetrabalhoucomvítimasdetortura normalmente assinale que uma combinação de torturas é empregue emgeral nomesmo indivíduo, nem todas estas torturas são empregues em todo olado; parecem existir formas de tortura preferidas culturalmente em diferentessociedades.NaAméricaLatina, por exemplo, emprega-sepouco as torturas dotipofalanga,eusam-sebastanteastorturascomeletricidade;naGrécia,contudo,predominoumuitomaisafalanga.

Outracaracterísticaateremconsideraçãosãoascircunstânciasemqueatorturaéaplicada.Amaioria das investigações sobre a naturezadador, como foi acimaassinalado,éorientadaparaadorintensaoucrónicaprovocadaacidentalmenteoupor doença, e essa investigação reconhece a capacidade do próprio corpo paraproduzir substâncias inibidoras da dor e concentra-se em criar as condiçõesótimas para a recuperação da dor. No entanto, no processo de tortura, ascondiçõessobasquaiselaéaplicadatêmoobjetivoespecíficodeintensificaraexperiênciadador,debloquearaaçãodosinibidoresnaturaisdador,deimpediraverificaçãodecondiçõesótimasparaarecuperaçãodadoredeaumentaradornomaiornúmerodemaneiraspossível.Paraestesfins,pessoaltécnicoemédicoéfrequentementerecrutadopelostorturadores;osseusserviçossãoorientados,porumlado,paraaumentaradoraomesmotempoqueimpedemosmeiosafetivosesensoriaisdeaabrandare,poroutro,paraconservarascondiçõesfísicasmínimas

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paraqueavítimasejacapazdesuportaraindamaisdordeacordocomavontadedostorturadores.

Conformeasociedadenaqualsepassaatortura, talpessoalespecializadopodetambémestarpresenteparaaconselharacercadatorturaquedeixamenosmarcasmacroscópicas e que deixará menos provas médicas certificadoras de que elaocorreuefetivamente.

Osdadospresentesnaslistasacimaapresentadasforamextraídosdemaisdeumadécadade investigaçãoe testemunhospelaAmnistia Internacional,pelaATRepeloCentrodeReabilitaçãodaTortura (CRT).Estes conduzem-nos a algumasconclusões imediatas. Primeiro, apesar do uso crescente de pessoal técnico emédico, a maior parte das formas de tortura hoje utilizadas deve ter sidoidealizada com base em princípios razoavelmente rudimentares, requerendoapenas um conhecimento aprofundado dos trajetos da dor ao longo do corpohumano.Éevidenteumabastantemaiorsofisticaçãopsicológicadoquemédicaou tecnológica, excetuandonocasodosmétodosde tortura farmacológicos.Asmisteriosasmáquinasde1984parecem,amaiorpartedelas,aindanãoestaremuso.Achaveparaaexistênciadatortura,excetuandoadapolíciaestadualoficialounãooficial,pareceseradisponibilidadede torturadores,um tema tratadonapróxima secção deste capítulo; na maior parte, os torturadores parecem sercapazesdetrabalharcomorudimentarespectrodeinstrumentos,etécnicasacimadescritos.Para recorrer à total assistência de especialistasmédicos e científicos,podesernecessáriorecrutartorturadoresemáreassociaisdiferentesdaquelasemquesefazhojeorecrutamento.Dosmétodosacimaassinalados,apenasousodeinstrumentos elétricos e a tortura dental requeremmais do que ummínimo deperíciae,noscasosatéagorarelatados,essaperíciaadquire-serapidamentecomum mínimo de treino policial ou militar. O facto de os torturadores estaremdispostosasertorturadorespareceaindadeterminarasofisticaçãodastécnicasdetorturae,namedidadainformaçãodisponível,comofoiocasonosjulgamentosgregos em 1975, aos que são recrutados é ministrado muito maiscondicionamentopsicológicodoquetreinotécnico.

Mesmoqueaextensãocomqueseempregamtécnicasmédicasecientíficasdetorturatenhasidoexagerada,osmétodosacimaassinaladosaindaproduzemumagamae intensidadededorqueexcedemlargamenteasdasformasanterioresdetortura. As variedades das técnicas de tortura do século XX são muito maiscapazesdeproduzir espécies equantidadesprecisasdedordoque asdos seuspredecessores, intensificandoadorpelousodediferentes técnicas, adicionandoumadimensãopsicológicaàexperiênciadatortura,queémuitomaiordoqueapresente na tortura moderna primordial, e reduzindo a capacidade natural do

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corpo para resistir ou suportar a dor.Além disso, hoje sabemos bastante maisacercadoqueatorturafazaocorpohumano,esabemosinfinitamentemaissobreosseusefeitossecundários.Osresultadosde investigaçãomédicamuitorecenterevelaram a existência da dor crónica produzida pela tortura, uma dimensãoigualmenteimportantenanaturezadadorintensaproduzidanaalturadatorturaeregistadanotestemunhoanamnésico.

A listaseguinteapresentadiferentes tiposdesequelasde tortura,modificandoeaumentando o quadro comparável presente em M. Kosteljantz e O. Aalund,«Torture:AChallengetoMedicalScience»,publicadonaobraInterdisciplinaryScienceReviews,8,1983.

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SEQUELASDATORTURA

SEQUELASSOMÁTICIAS

Perturbações gastrintestinais: gastrites, sintomas dispépticos do tipo da úlcera,doresderegurgitaçãonoepigastro,cólonespáticoirritável.

Lesõesretais,anomaliasnoesfíncter.

Lesõesnapele,lesõeshistológicas.

Perturbaçõesdermatológicas:dermatites,urticana.

Dificuldadeemandar,lesõesnostendões.

Doresnasarticulações.

Atrofiacerebral(paraleloàsíndromapós-concussão,determinadaportomografiaaxialcomputadorizadaaocérebro)edanosorgânicosdocérebro.

Problemasdentários.

Dortraumáticaresidual.

Sintomas ginecológicos: inflamação dos órgãos sexuais internos, doresmenstruais.

Diminuiçãodacapacidadeauditiva,lesõesdotímpano.

Abaixamentodolimiardador.

Stresscomosequelaindireta.

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SEQUELASPSICOLÓGICAS

Ansiedade,depressão,medo.

Psicoseouestadopróximodapsicose.

Instabilidade,irritabilidade,introversão.

Dificuldadesdeconcentração.

Letargia,cansaço.

Inquietação.

Controloreduzidodaexpressãodeemoção.

Dificuldadesdecomunicação.

Perdadememóriaedeconcentração.

Perdadosentidodelocalização.

Insónias,pesadelos.

Memóriadiminuída.

Doresdecabeça.

Alucinações.

Perturbaçõesvisuais.

Intolerânciaaoálcool.

Parestesia.

Vertigens.

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Perturbaçõessexuais.

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CONSEQUÊNCIASSOCIAISDASSEQUELASDASTORTURAS

Diminuiçãodapersonalidadesocial.

Incapacidadedetrabalhar.

Incapacidadedeparticiparematividadesrecreativas.

Destruiçãodaauto-estima.

Stresssofridopelafamília.

Incapacidadedesocializar.

Ainvestigaçãomédicareveloutambémquepoucasvitimasnãosãoafetadasporsequelas psicológicas, que poucas sofrem apenas de um sintoma e que osmétodos tradicionaisde terapianemsempresão indicadospara tratarvítimasdetortura.Doismétodoscaracterísticosdetorturapodemsugerirarazãoporqueissoacontece.O processo da falanga, o vergastar contínuo das plantas dos pés, foidescritoclinicamenteporNicholasGage:

Cada pancada do bastão não é sentida apenas nas plantas dos pés, que searqueiamdolorosamentequandoopauesmagaosdelicadosnervosexistentesnaplantadopé;adordisparaaolongodosmúsculoscontraídosdapernaeexplodenapartedetrásdocrânio.Todoocorposofreeavítimacontorce-secomoumalagarta.(Eleni,p.521)

Avítimasenteimediatamentedoreintumescimento,esteúltimoatébemacimadotornozelo.Omovimentodostornozelos,pésededoséreduzido.Emmetadedoscasos posteriormente examinados pelos peritos, sequelas crónicas da falangapermaneceramentredoiseseteanosapósaaplicaçãoda tortura.Numrelatórioclínico sobre as sequelas crónicas da tortura, ale Vedel Rasmussen e HenrikMarsussen («The Somatic Sequelae to Torture», GrupoMédico Dinamarquês,Amnistia Internacional, Manedsskrift for praktisk laegegerning, Março, 1982)aventaram que a falanga pode produzir uma síndroma de «cavidade fechada»:edemasehemorragiasemcavidadesquealojamvasosenervosquepassamda

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plantadopéparaopé,nestecasoindicadosporplantasdospésemtensão,ossosdo tarso imobilizados,dificuldadeemandar, incapacidadedeutilizar todoopé,manifestadacomoumasíndromadascruzes(asecçãodapernalocalizadaentreacoxa e o tornozelo). Sintomas semelhantes nas extremidades superiores sãoconhecidoscomocontraçãodeVolkman.

Entre os interesses particulares do grupoATR contam-se as consequências datortura com eletricidade. A dor provocada por queimaduras, contraçõesmusculares, convulsões e paralisia muscular são consequências de todas asformas desse tipo de tortura e o seu emprego deixou tradicionalmente poucasmarcas. No entanto, a investigação recente aventou que a aplicação de torturaelétricadeixadefactoalteraçõeshistológicasespecíficasnotecidoepidérmico,equeestaspodememúltimainstânciaserusadasparaprovaroempregodetorturaelétricamuitodepoisdeestaseterpassado,mesmoquandonãohámaisprovasqueacorroborem.Destemodo,nocasodedoistiposmuitodiferentesdetécnicasdetortura,ainvestigaçãomédicarecentepermitiuumacompreensãomaisprecisae clínica dos efeitos da dor intensa ou crónica e está simultaneamente aestabelecer umapatologia quepossa comprovar que a tortura ocorreude facto,empregandoessesmétodosnoscasosdevítimasindividuais.

Aquém do mundo de tortura imaginado por Orwell, mesmo a modestaproliferação de saber médico e tecnológico e o espectro extraordinariamenteamplo de técnicas de tortura podem ser investigados e documentados, legal eclinicamente. As vítimas da tortura do fim do século XX não foram todasdespersonalizadasnempereceramainda todas.Os regimes,mesmosos regimesqueempregamtortura,aindacaem,eosestadosrivaisougovernossubsequentesainda investigam e denunciam as técnicas que esses regimes tinham empregueparasemanteremnopoder.Eàsvezesasvítimasdetorturaescapameenfrentamanecessidadedesereabilitaremnummundoquenãocompreendeaprovaçãoporquepassaramefrequentementenãofornecequaisquermeiosparaoscurar.

Mesmoastécnicasterapêuticasnormaisfrequentementenãofuncionambememvítimas de tortura. Em muitos casos, sintomas tardios que se manifestam porcondições crónicas não são prontamente identificáveis como decorrentes deformasespecíficasdetortura;noutroscasos,asvítimaspuraesimplesmentenãoconseguem (ou são impedidas) de falar com pessoal médico sobre o que lhesaconteceu.

Mesmo os médicos e terapeutas dinamarqueses, que conhecem com maiorprofundidade as sequelas da tortura, descobriram que as formas de terapiavulgarmenteprescritaspodemnãoserasideaisparaasvítimasdetortura.

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Umadasdificuldadesmaisassinaláveisregistadapelosterapeutasquetrataramassuas vítimas de tortura é o extraordinário grau de tato que temde acompanhartodas as situações terapêuticas que apresentem amais leve semelhança com ascircunstâncias originais de tortura. O interrogatório das vítimas não deve serintensivo;osmétodosdeterapiafísicaedeexamemédiconãodevemserusadosseseassemelhamdemasiado(casodaterapiacomnataçãooudetraçãoouanáliseECG)aosmétodosoriginaisdetortura.Ointernamentotemporárioeminstalaçõeshospitalaresrelembraporvezesaospacientesoseuencarceramentooriginal.Umavezqueoúnicocontactoanteriorcompessoalmédicopode tersidonoprópriolocal de tortura, o pessoal médico envolvido na reabilitação trabalha sob estapressãoadicional.

Nãoésóaperversãodocomportamentoclínicopelascircunstânciasoriginaisdatorturaqueafetaosprocessosposterioresdereabilitação.Tambémofactodeasvítimasdetorturateremfrequentementedeprocuraressareabilitaçãoforadoseupaísasafeta–aDinamarca,porexemplo,éumpaísquepodecolocarproblemasde língua. Para aqueles que não podem abandonar o seu país, ou onde não severificou qualquer mudança governamental desde que foram torturados, areabilitaçãoépraticamenteimpossível.Este livro iniciou-se com uma série de definições de tortura; essas definiçõeslidavamprincipalmentecomasformaseobjetivosdatorturaecomasuafontenaautoridade.Osanosposteriores a1965 revelaramumaquantidadeavassaladorade provas documentais da proliferação de instâncias e formas de tortura, e adécadapassada revelouumapatologiada tortura inacessível aoshistoriadoreselegisladores anteriores. Mas apesar de todos os novos conhecimentos, a fontegeraldatorturanãosealterou:éaindaasociedadecivilquetorturaouautorizaatortura ou semantém indiferente perante aqueles que a empunham a favor dasociedadecivil.Ofuturodatorturaresidenasociedadecivil–enasantropologiasqueconcebeouimagina.

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Semfim?

Os historiadores não possuem competência profissional quando lidam com ofuturo, mas a história da tortura, assim como a presença da tortura nomundoatual, inspiroupelomenosmaisdoqueumhistoriadorapensar sobreo futuro.Quandoomaiordetodososhistoriadoresdatortura,PieroFiorelli,concluioseumonumentalestudoemdoisvolumes,LaTorturaGiudiziarianelDirittoComune,em1954,intitulouasuasecçãofinal«Senzaunafine?»–«Semumfim?»

Em 1953, no ano anterior à publicação da obra de Fiorelli, o filósofo políticomarxista italiano Lelio Basso tinha publicado uma obra intitulada La TorturaOggiinItalia(ATorturanaItáliadeHoje).AquestãocomqueFiorelliconcluiua sua obra acabou por se revelar mais oportuna do que ele pensava. Oshistoriadorespodemdefactonãopossuircompetênciaprofissionalnaquestãodofuturo, mas possuem curiosidade.A questão da tortura aguça necessariamenteessacuriosidade–enãoapenasaoshistoriadores.

Em1971,quaseduasdécadasapósas revelaçõesda torturanaArgéliaequaseumadécadaapósa instauraçãoda independêncianaArgélia,ogeneralJacquesMassu publicou as suasmemórias da guerra daArgélia com o título La vraieBattailled’Alger.Nesselivro,enasentrevistaseapariçõespúblicassubsequentes,MassudefendeuousodatorturanaArgéliacombasenosargumentosdequeascircunstânciasparticularesdaalturaexigiamoseuusoequeanecessidademilitaro ditou.O livro constitui um exemplo clássico de um argumento comummenteutilizadoafavordalegitimidadedatortura,umargumentoquenãofoiinventadoporMassuequeelenãofoioúnicoacitar.AdefesadasuapolíticaporpartedeMassulevouàcriaçãodeumanovapalavrafrancesa,massuisme:oargumentodeque os torturadores podem ser servidores responsáveis do estado em alturas deextremacrise.Arespostaaestaposiçãonãotardou.Em1972,AlecMellorvoltouà liça com o seu livro Je dénonce la torture, que submetia os argumentos deMassuaumaanálisecorrosiva.JulesRoypublicouj’accuselegénéralMassunomesmo ano e Pierre Vidal-Naquet publicou a tradução francesa de Torture:CancerofDemocracy.

A década seguinte a 1972 testemunhou a adoção da Convenção das NaçõesUnidas, a campanha anti-tortura da Amnistia Internacional, a constituição daATR e do CRT, e outra convenção das Nações Unidas, agora submetida arevisão, acompanhada por um Protocolo Opcional, apresentado em 1980 pelogoverno da República da Costa Rica, criado originalmente pela Comissão

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InternacionaldeJuristasepeloComitéSuíçocontraaTortura.Masháalgumasideiasqueserecusamadesaparecer,eomassuismepareceserumadelas.Numadata tão posterior como 1982, um filósofo universitário americano, semconhecimentodaliteraturaehistóriadotema,defendeu,combastantealarido,naimprensapública,ovalorseletivoda tortura,maisumaversãodomassuisme,oqualofilósofopareciaignorar.Ocenárioeraodaversãoidealizadaeasséptica:atorturadeinterrogatóriodeviaseraplicadanoâmbitodaleinocasodeexistireminformaçõesconhecidasapenaspelo interrogadoquepodemevitarasmortesdecentenasdepessoasinocentesprovocadaspelosseuscomparsas.SemtomaremconsideraçãoofactodeofilósofojurídicoCharlesBlackterlevantadoamesmaquestão vinte anos antes – e Alec Mellor uma década antes – – o filósofocontribuiu para a defesa do que se tornou o argumento clássico a favor damanutençãodatortura:apossibilidadedotorturadorheróico,nãoemocional,aoserviçodoestadoemproldevítimasinocentes.

EmJedénonce la torture,Mellor citaumdocumento imputadoaumoficialdoexércitonaArgéliaqueaparentementesepropunhaestabelecerregrasexatamenteparaessetipodetortura.Hácincopontos,declaraodocumento,quetêmdesermeticulosamenteobservados:

1. Énecessárioqueatorturasejaadequadamentedirigida.2. Nãopodeterlugaremfrentedecrianças.3. Nãopodeserrealizadaporsádicos.4. Temdeserefetuadaporumoficialououtrapessoaresponsável.5. Temdeserhumana,istoé,devecessarquandooindivíduoconfessa.

E,acimadetudo,nãopodedeixarmarcas.

Estas são as regras ideais para um torturador digno e é concebível que elasexistam nos protocolos ou na imaginação dos governos que praticamefetivamenteatortura.

Contudo,comoobservaMellor,existemdiversasfalhasnessasafirmações:«Nãosãoas frasesqueoqualificamque fazemdesteensaiodeumcódigoda torturauma obra criminosa, é a sua admissão do princípio da existência de tortura[legítima]dequalquertipo.»Noentanto,acríticamaisdevastadoradomassuismeque Mellor cita proveio de um antigo soldado de carreira francês, atualmentepadreGilbert.

Seja o que for que defendemo generalMassu e os justificadores da tortura, o«caso»consideradocomooclássicodese–o–terrorista–não–fala–morrerão-centenas–de-pessoas-inocentesestálongedeterconstituídooúnicomotivopara

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oempregoda torturanaArgélia.Aspessoas foramtorturadaspor razõesmuitoinferioresaessa,ecommétodosmuitopioresqueodaaplicaçãosuperficialdegégéne[torturaporaplicaçãodeelétrodos].Masadmitamosporummomentoqueseja possível justificar a tortura por «motivos nobres»: pensaram nalgummomentonoindivíduoqueaefetua,istoé,nohomemque,querdesejequernão,vai ser transformado num torturador? Fizeram-me confidências suficientes naArgélia e em França para saber que danos, talvez irreparáveis, a tortura podeprovocaraumaconsciênciahumana.Muitosjovenssuportaramessestormentosepassaramcomissodeumestadodesaúdementaleestabilidadeparaaterradoresestadosdedeterioração,dosquaisprovavelmentenuncarecuperarão.

OgeneralMassutemumaresponsabilidadeconsiderável:nãoteráelealgumavezpensadonosquefazemotrabalhosujo?

E em vez de nos tentar satisfazer com argumentos de uma inquietantesimplicidade e de justificar as suas ações perante si mesmo por meio das«memórias teológicas»deumcapelãomilitarcomumparafusoamenos, talveztivessefeitomelhorsesemantivessecaladoacercadetudoisto.Parabemdasuapazedanossa,senãoparabemdaverdade.Osefeitosdatorturasobreasvítimasforamtãofrequentementeopontocentraldadiscussãoquesenegligenciaramosseusefeitosnostorturadores.Ostorturadoresousãodescritoscomosádicosou,comonocasodomassuisme,sãoamenamenteimaginados como oficiais leais cumprindo apenas um dever desagradável. Aquestão da existência de sadismo entre os torturadores é complexa. Emboramuitos sádicos sejam atraídos pela função de torturador quando esta estádisponível, também se pode argumentar que a instituição da tortura cria tantossádicos comoosque atrai.Acriaçãoouencorajamentodo sadismonãoéumaação governamental correta ou segura. O pai deAlexander Lavranos, um dosadvogadosdedefesanosjulgamentosdatorturaem1975,levantouumapungenteerelevantequestão:«Somosumafamíliapobremashonrada…eagoravejo-onobancodos réusacusadodeserum torturador.Gostavadeperguntarao tribunalcomo é que um rapaz que toda a gente dizia que era uma jóia se tornou numtorturador.Queméquedestruiumoralmenteaminhacasaeaminhafamília?»Opróprio Lavranos acrescentou: «Agora todos os meus amigos e pessoas dasminhas relaçõesme encaram com suspeita e compaixão. Não consigo arranjaremprego…sintoanecessidadededizeraestetribunaleaopovogregoquesouum ser humano como você, como o filho do seu vizinho, como um amigo.QuandobatianãoeraamãodeLavranosesimadeSpanos,deHajizizis.»

Temos que adiar por algum tempo a questão de saber se Lavranos e outrostorturadores são ou não «um ser humano como você, como o filho do seu

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vizinho,comoumamigo»,parasalientarqueopaideLavranosnãofoiaúnicapessoa que levantou a questão. O próprio promotor público perguntou a dadaaltura:«Comoéqueosoficiaisgregospuderamdesceraesteníveldedegradaçãomoral?Nasceramcominstintoscriminososouhouvecircunstânciasexternasquedeformaram os seus caracteres?» Noutras discussões sobre a psicologia dostorturadores gregos, mesmo muitas das perversões sexuais referidas pareceramaosobservadoresconsequências,enãocausas,dapráticadatortura:

É importante compreenderque estasperversões individuaisnão sãoa causadosistemade tortura.Pelocontrário, logoqueumsistemade torturaécriadoparaapoiar as necessidades políticas dos que estão no poder, os agentes dosgovernantes exibirão padrões de comportamento que, de outro modo, nãoestariamemposiçãodeexibir.

Apesardosaspectosreconfortantesderotularatorturacomoumjogodesádicos,parecemaissensatoaplicarapenasaanálisepsicológicaaos torturadoresdepoisde se tornarem torturadores e assumir comohipótese de trabalho que a própriatorturapodefuncionarcomoumagentequetransformaasmentesdosindivíduos.Aplicar tal análise retrospectivamente é enfrentar o dilema de a classe dostorturadores poder ser constituída por pessoas que possuem uma predisposiçãopsicológica para a crueldade com uma dimensão sexual e por jovens que seafigurampreviamentecomo«jóiasdepessoa».Arestriçãodatorturaaossádicosnatoséentãodemasiadosimples;nãoconseguedarcontadas«jóiasdepessoa».

Masseránecessárioqueotorturadorsejaumsádiconatooufabricado?Serãoosdignos torturadores do massuisme uma ficção da imaginação do general? Em1974 o psicólogo americano StanleyMilgram publicou um controverso estudodenominado Obedience toAuthority. O estudo aplicava a seres humanos ummétodo experimental que consistia em persuadir pessoas comuns. (os sádicospotenciais foram explicitamente postos de parte) a infligir dor em outras comosinaldeestaremdispostasaobedeceraumaautoridadeque reconheciamcomolegítima.Os resultados da experiência deMilgram foram complexos,mas umadas suas conclusões foi que pessoas muito comuns, sem qualquer interessepsicológico ou pessoal, podiam ser induzidas com relativa facilidade atransformar-se em torturadores temporários. Um inteligente editor da Harper’sMagazine, que publicou um artigo baseado na investigação de Milgram emDezembrode1973,denominou-o«Otorturadoremcadahomem».

Existirá um torturador em cada homem?Em1963,HannahArendt publicou oseu estudo sobre o caso Eichmann, Eichmann in Jerusalem (Eichmann emJerusalém), que continha o provocador subtítulo de «Um relato sobre a

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banalidadedomal».UmadécadaantesdeMilgram,Arendttambémafirmouque,senãoexistepropriamenteumtorturadoremcadahomem,nasociedadeemqueEichmanntrabalhavaexistiapelomenosapossibilidadedeumfuncionáriopoderestar tão distanciado da realidade que no seu alheamento não reconhecesse asconsequênciasdoqueestavaafazer:«Queesseafastamentodarealidadeeessairreflexãopodemsemearmaisdestruiçãoquetodososinstintosmalignostomadosemconjunto,quesão,talvez,inerentesaohomem–essafoi,defacto,aliçãoquese pôde aprender em Jerusalém.» O torturador brutal – seja ele nato oufabricado– e o torturador alienado são duas figuras do fimdo séculoXXquepertencemaoladomaisnegrodasociedadecivil.

Emboraotorturadoralienadopareçaestarmaispróximodoidealdomassuisme,encontra-se uma descrição mais detalhada do torturador ideal numa série dehistóriasescritasporGeneWolfintituladasTheBookoftheNewSun.Oherói,um torturador profissional, criado como tal desde a infância numa abnegada eimpessoalcorporaçãodetorturadores,possuiumaarteextremamenteapuradaquemanejacomumafrieza total.Noentanto, foiafastadodacorporaçãoeganhaavida nas suas viagens prestando serviços de torturador e carrasco público nascapitais de província. Entre as ocasionais justificações para a sua ocupaçãoencontram-seas seguintesobservações:os torturadoresnão sãocruéis,mas simeficientesesótrabalhamsobasordensdejuízesquelegitimamasuaautoridade;tais instrumentos públicos formais são essenciais para evitar a anarquia; só osjuízes têmopoderdedecidirquemdeveser torturado;aalternativadotrabalhoforçadoseria impraticáveleaprisãoprolongadademasiadodispendiosa;apenademorte universal é democrática de ummododemasiadamente rigoroso e nãodistingueentredelitosdemaioremenorgravidade.

Neste discurso a ênfase é posta na ausência de emoção, na impessoalidade, naausência total de crueldade,na estrita legalidadee eficácia técnicadosprópriostorturadores. No romance de Wolf, é este o torturador ideal e necessário deMassu. Ora as obras de ficção obedecem às suas próprias leis, pois os seusautorespodemajustarfacilmenteoespaçoeotempo–eaantropologia–enãosedevefazermuitocasodelas,especialmentequandooqueseestáaconsideraréumaamostradeextravagânciaretóricacomoestediscurso.Portanto,excetonosromancesenaimaginaçãodoshomensemposiçõeselevadas,nãoexistem,atéàaltura,torturadoresdessetipo.

Poderão eles ser criados?Arendt e Milgram não são os únicos a conceber apossibilidadedeumasociedadequeconsideraatorturacomoumacontecimentorotineiro e solicita arrogantemente a assistência demédicos e cientistas às suassessões.Lavranoseoutrosforamsemdúvidacriados,masestiveramlongedeser

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ostorturadoresdesapaixonadosinvocadosporMassuepelofilósofoamericano.Eichmannfoicriadoe/épossívelquesejaotipodehomemqueestámaispertodecorresponder ao padrão idealizado do torturador moderno que alguma vez foicriado.Emsituaçõessemelhantes,algunsmédicospsiquiatras,técnicosdapolíciaedoexércitopodemserrecrutadoscontravontadeparaassistiraostorturadores,especialmente se o seu trabalho é solicitado com base em razões clínicas,terapêuticasouprofissionais.NadiscussãodeMellorsobreosaspectosmédicosda tortura moderna, por exemplo, ele concentra-se quase inteiramente nalegalidadedoempregodosorodaverdadenosinterrogatóriospoliciais;nalgunspaíses a esterilização forçada dos criminosos sexuais é aceite como legítima;apesardasobjeçõesprovenientesdetodoomundoquantoaoseuusonocampodamedicinalegal,diz-sequeexistenapsiquiatriasoviéticaumateoriaclínicadaneurose que justifica o emprego demedicamentos psicotrópicos; aAssociaçãoMédica Mundial proibiu a participação dos seus membros médicos naalimentaçãoforçadadeprisioneirosemgrevedefome.

Todas estas instâncias podem ser consideradas como existindo na fronteiraambíguaentre a tortura eo tratamento estatal legítimodosprisioneiros.OsquenelesparticiparamnãosãonecessariamenteLavranosouEichmann;naverdade,ocrescimentodoqueMellordesignoucomtorturenondouloureuse–torturasemsofrimento – é uma área vasta e de que ainda não foi feito um levantamentoadequado. Contudo, à exceção de tais pessoas, o treino dos torturadoresmodernosparecenãoteressefitosubtilehigiénico.

Apesar de um vasto conjunto de testemunhos não comprovados sobre aexistência de escolas especializadas para torturadores, as melhores provasdisponíveis provêm de registos oficiais de julgamentos, casos dos julgamentosgregosde1975eposterioresoudetorturadoresindividuaisqueabandonaramosseus países e falaram sobre as suas experiências. Estas provas sugerem que ostorturadorespotenciaissãorecrutadosentresoldadoscomantecedentesfamiliaresfavoráveisaoregimeatualouentreagentesdapolíciadenívelinferior.

Estesrecrutasrecebemdoutrinaçãopolítica intensivaquerealçaoperigoparaopaísqueconstituemos«comunistas»,«fascistas»,«terroristas»ou«imperialistas»e, depois de triagens preliminares, um grupo eleito é convidado a aderir a umcorpode elite, cuja funçãoexatanãoé especificada,mas a cujosmembros sãoconferidosprivilégios substanciais–posto evencimentomais elevados, carro àdisposiçãoebenefíciosparaafamília–quesãoespecialmenteatraentesparaosrecrutas rurais ou urbanos da classe inferior, a quem são também prometidoslugaresnofuncionalismopúblicoquandodeixaremoserviço.

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O treino especial por que passam consiste primeiro num violento programa detreinoespecialnoqualosrecrutassãoelesprópriosagredidoseforçadosaagredirosoutros,executamatosautohumilhantesemfrentedoscolegasesãoforçadosa aceitar como norma tanto a obediência cega aos seus superiores como abrutalidade excessiva entre os colegas. Depois do treino os recrutas sãodestacados para guardar prisioneiros, que vêem todos dias serem tratadosviolentamente, depois são destacados para brigadas que efetuam as prisões efinalmenteé-lhesatribuídaafunçãodeexecutaremelesprópriospartesdatortura.Seresistirem,sãoameaçadoscomaperdadeprivilégioseademissãoignóbildoserviço,compuniçõesdassuasfamíliasoupodemelesprópriosserespancadosesubmetidosanovotreinoatéqueobedeçam.Umavezhabituadosaoserviço,ostorturadores vêem o seu estatuto ser aumentado pelos nomes das suasorganizações,osprivilégiosdeumaelitemilitaroupolicial,asuaindependênciado exército regular ou das estruturas policiais ou de outras estruturasgovernamentais,eapossibilidadederecrutamentoparaorganizaçõesprivadasdetortura ou terroristas que existem sob a custódia do governo ou com apoiogovernamentalindireto.Oseuestatutodeeliteeindependênciaérealçadopeloselevadosdeveresdeprotegeroestado,pelorápidodesenvolvimentodeumcalãoespecializadoparadescreveroseutrabalho,peloreforçopsicológicodecolegasesuperioresepelanecessidadeconstantedeobteremresultadosdatortura.

À medida que as salvaguardas legais ou governamentais dos direitos civis seatenuam, a prática da tortura alastra geralmente das vítimas acusadas deterrorismo ativo ou conspiração política e outras classes de vítimas, até que aatividadedotorturador,eleprópriocondicionadoatorturarquemquerqueseja,pode ser aplicada a qualquer vítima suspeita de qualquer tipo de oposição aogoverno ou mesmo de quaisquer atividades que o governo desaprove, comoaçõessindicaisoudeterminadostiposdejornalismoouadvocacia.Porestaalturadasuacarreira,otorturadorestálongedeestaremposiçãodediscriminarentreassuasvítimas.

Neste estádio podemos levantar de novo a questão colocada antes: será otorturador, como afirmou Alexander Lavranos, «um ser humano como você,comoofilhodoseuvizinho,comoumamigo»?

Dopontodevistadosqueestãoemmelhorposiçãodejulgar,asvítimas,existeumconsensogeraldequeostorturadores,excetuandoumnúmeroprevisíveldesádicosinatos,erampessoasquetinhamsido«privadasdassuaspersonalidades»,«desumanizadas»,aoseremforçadasatorturarenquantoinseridasnumgrupodetorturadores na presença de superiores. Assim, de entre todas as provas deexistência de treino de tortura, continuamos sem encontrar os torturadores

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impessoaisdeMassu.Ostorturadoressãotreinadosdeliberadamentedemodoaalterarassuaspersonalidades,aaceitarumarealidadepolíticafabricadanaqualassuas vítimas foram colocadas fora do âmbito da humanidade e a manter estailusãopelacoaçãoepelarecompensa.

Amaior parte do futuro da tortura está dependente do futuro dos torturadores.Emborao torturador ideal deMassunão esteja ainda entre nós, viciandodessemodoumaparte substancialdo argumentodeMassu,não é impossívelque elesejacriadopelosmétodosatéagoraemuso.Enemostorturadoresatuaisnemotorturador idealdo futuropodemserdescritoscomosendoexatamente«umserhumanocomovocê,comoofilhodoseuvizinho,comoumamigo».

Outra parte do futuroda tortura residenapossibilidadede fazer algo contra ostorturadores, quer por meio de julgamentos públicos realizados pelo regimesubsequente,comonocasodaGrécia,quer,comoemmuitosoutroscasos,pormeio de processos criminais ou civis instaurados pelas vítimas ou pelas suasfamíliascontraostorturadoresacusados.Emregimesqueempregamatortura,éimprovável que tais ações produzam mais do que um efeito incómodo, istoembora algumas disposições legais, como o habeas corpus, ainda sobrevivammesmoemregimesquepraticamatortura.Umexemplomaisútiléfornecidopelouso relativamente recente, nos EUA, da «Alien Tort Statute – (United StatesCode,Título28,Secção1350), quegarante: «Os tribunais [deDistritoFederaldosEstadosUnidos]têmjurisdiçãooriginalsobretodaaaçãocivilinstauradaporum estrangeiro devida apenas a um tort [dano civil ou privado], realizado emviolaçãodaleidasnaçõesoudeumtratadodosEstadosUnidos.»Sucintamente,o estatuto permite a um estrangeiro iniciar uma ação civil contra outro nostribunais federais dosEstadosUnidospor umdelito realizado fora dosEstadosUnidosseessedelitoconstituirumaviolaçãodaleidasnaçõesoudeumtratadoespecífico de que os Estados Unidos são signatários. Entre 1979 e 1983 foiinstaurado um tal processo por uma vítima de tortura paraguaia contra otorturador paraguaio no Tribunal Distrital dos EUA e mais tarde no TribunalFederaldeApelação.Oqueixosoganhouaaçãonorecurso,criandodestemodoum precedente para o uso futuro do estatuto contra outros torturadores epossivelmenteapresentandoo«AlienTortStatute»comoummodeloparaoutrospaísescomdisposiçãosemelhanteparaprotegervítimasdetortura.

ApublicaçãodaAmnistiaInternacionalTorturanosAnosOitentaapresentaumalistadeumasériedeoutros tiposdeaçõesquepodemsere foramtomadasporgruposnacionais,internacionaiseoutroscontraatorturaecomprovouorelativosucessoquetaismovimentostiverameemalgunscasos–emespecialnaIrlandadoNorteenoBrasil–oseusucessosubstancial.Poroutrolado,podemuitobem

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haver,comooespecialistadedireitosuíçoWernerKaegireceou,«umaatividadequase excessiva no campo dos direitos humanos que conduz a uma perigosainflação de declarações, proclamações e convenções. Muitos advogados epolíticos acreditam que o mundo será mudado por tais documentos com umatendência para a universalidade». Kaegi e outros colaboradores na pequenacoleção de declarações sobre como realizar o Protocolo Opcional à atualConvenção contra a Tortura, a ser presentemente considerado pelas NaçõesUnidas, insistem na aplicação do Protocolo Opcional, que obriga os seussignatáriosapermitiravisitadeumacomissãointernacionalaosseuscentrosdedetenção.Kaegieoutrosargumentamque,começandocomumpequenogrupode países signatários, o número de países participantes aumentará devido aocarácter não político e não publicitado da comissão e dos seus agentes.Argumenta-sequecomacooperaçãodeumpequenonúmeroinicialdepaísesaexperiênciadessespaísesencorajaráoutrosaassinaroprotocolo.Estapropostatem a virtude de começar com o que é possível numa escala suficientementepequenaparaserrealista.

No que se refere à Convenção contra a Tortura, a Amnistia Internacionallevantoualgumasquestõesquetêmdeserrespondidasparaqueaconvençãosejade todo eficaz. Primeiro, nenhumas «sanções legais» internas de governosindividuais se podem sobrepor à definiçãode tortura ou tratamentooupuniçãocruéis,desumanosoudegradantescontidanaconvenção.Segundo,aconvençãodevia reconhecer jurisdição universal sobre alegados torturadores com validadeemqualquerpaísemquepossamestar,umaquestãosemelhanteàdaaplicaçãodo«Alien Tort Statute» dos EUA. Terceiro, que as vítimas tenham direito acompensação pelo seu sofrimento e que não se possa fazer qualquer usoprobatóriodasdeclaraçõesobtidassobtortura.

Quarto,têmqueexistirmecanismoseficazesdeimplementaçãodaconvenção.OProtocolo Opcional oferece justamente um tal conjunto de mecanismos deimplementação.O futuro da tortura é assim parcialmente determinável pela produção detorturadoresepelaaçãodeorganizaçõesdafamíliadasNaçõesUnidas,incluindomaterialcorrentepresentementeasersubmetidoàsNaçõesUnidas.Masháumaconsideração final sobre a qual assenta necessariamente muito do sucesso naeliminação de torturadores e da própria tortura.A linguagem que identifica atortura com práticas desumanas também pressupõe uma antropologia, umaantropologia moldada nos fins do século passado a partir dos velhos e novosprincípiosdopensamentoeuropeu.Aoqueparece,estaantropologiasobreviveu(comdificuldade,écerto)atéaosfinsdoséculoXX,masnãohágarantiadequesobreviverá necessariamente para sempre. Sobreviveu em parte porque estava

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incorporada na jurisprudência, nas políticas e instituições governamentais e emacordos internacionais, assim como na literatura da filosofiamoral, nas artes enum extenso consenso cultural, tanto no sentimento como no direito e namoralidade.Podeserpossívelfazerdesapareceratorturatornando-aefetivamenteilegal e perigosa para aqueles que a praticam, mas parece também necessáriopreservararazãoparaaconsiderarilegaleperigosa–parapreservarumanoçãodadignidadehumanaque,emboranemsempremeticulosamenteobservada,sejaassumidageralmentenalinguagempública,senãomesmonasaçõesnãopúblicas,damaioriadas sociedadesmodernase, alémdisso, assumidanumsentidogeraluniversal e democrático. Segundo esta antropologia, todos os seres humanosdevem possuir uma qualidade denominada dignidade humana.Como observoulmmanuel Kant, as punições ou outras formas de tratamento podem serconsideradas desumanas quando se tornam inconsistentes com a dignidadehumana.ÉimportantedistinguiresteconceitooperatóriodedignidadehumanadoqueMaliseRuthven incisivamenteapelidouo«limiardaafronta»–umanoçãoflutuantedotratamentoapropriadodosindivíduosdependentedoestatutosocial,antecedentesouclasse.Oconceitodedignidadenãopodesertornadovagoporlimiares de afronta temporários ou por designações gerais temporáriasprovenientesdodomíniodosentimento.Àsvezesémaisfácildesgastarumaideiageralcomoadedignidadehumanadoquearriscaraabruptaintroduçãodiretadatortura numa sociedade. É mais fácil transformar uma antropologia se atransformação for feita devagar, pois com esse tipo de transformação a torturapodeparecerumpassológicoeprevisível.

A partir desta suposição, podem tornar-semais claras as falácias presentes emvários tipos de argumentos modernos. É fácil – e no início tentador –correlacionaratorturacomumadisposiçãoparaabrutalidade,queéatribuídaaoutra raça, cultura, ideologia ou regime particular. É mais fiável observar aantropologia de casos particulares do que estabelecer amplas e incomparáveissuposições sobre as características de determinadas raças ou regimes.Historicamente, a tortura revelou-se adaptável a demasiadas culturas diferentespara poder ser atribuída exclusivamente a uma ou duas culturas especialmenteselvagens.Emsegundolugar,alinguagemdadignidadehumanatemdeveroseusentido restaurado.Observações como «pobreza é tortura, frustração é tortura»nãosignificamnadaanãoserna

Linguagem-espelho reversível da ideologia em que o significado édeliberadamente alheado das palavras e das coisas. Uma das declaraçõesmaiseloquentesemproldarestauraçãodessesentidonanoçãodedignidadehumanaéoargumentodeFrancescoCampagnoni:

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Atorturatendeparaadesintegraçãoeconsequenteaniquilaçãodapersonalidademoralepsíquica,paraadestruiçãonãopsíquica,em termospráticos,dapessoahumana, com resultados duradouros … Mas de um ponto de vista teológico,parece-me que se pode atribuir um pesomaior a outra consideração: a pessoahumana não pode, literalmente, ser sacrificada no que a constitui maispropriamente, a sua liberdade racional, em favordanecessidadedeumsistemasocial, cujo fito derradeiro é o bem-estar de todos os indivíduos …Afigura-semequeumadasdoutrinascentraisdaantropologiateológicaéapreeminênciaabsolutadadignidadedohomemenquantocriatura…Estadignidade,autónomaface a quaisquer instituições ou comunidades jurídicas, é a razão pela qual,mesmoapósospiores(ecomprovados)crimes,existesempreapossibilidadedoarrependimento.

Otorturadorviolaaconcepçãoantropológicacomoaviolaatorturadavítima;seavítimaéconsideradacomoprivadadedignidadehumanaeconsequentementevulnerávelà tortura,o torturadordespoja-sedadignidadehumana.Eumanovaantropologiasubstituiaantiga.

Preservarumconceitooperatóriodedignidadehumanapodevirasermaisdifícildoqueparece.Tal conceitopode ser atacadopordiferentesmorais, ideologias,limiaresdeafrontaousentimentalidade.Éprovavelmentemaissensatoconservaroconceitocomummenornúmerodesignificadosdoquetentarexpandi-loatéàssuasdimensõesmaisambiciosas.

Associedadesquenãoreconhecemadignidadedapessoahumana,ouprofessamreconhecê-laenãoofazemnaprática,ouareconhecemapenasemcircunstânciasextremamente restritas, tornam-senão só sociedades emque existe tortura,mastambémsociedadesnasquaisapresençadatorturatransformaaprópriadignidadehumanaeconsequentementetodaavidaindividualesocial.Eumasociedadequeincluivoluntáriaouindiferentementeentreosseusmembros tantovítimascomotorturadoresnãodeixaemúltimainstânciaqualquerespaçoconceptualoupráticoparaquemteimaemnãosernenhumdeles.

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UMESTUDOBIBLIOGRÁFICO

Ascompilaçõesdedocumentoseosestudosquerefironestecapítuloconstituíramumaenormeajudaparaaminhainvestigaçãoefoiminhaintençãofazerumalistadeobrasacessíveisparaosmaisdiligentesdosleitoresmodernos.Porvezes,tivedecitarlivrosnãopublicadoseminglês,sobretudo,quandoeramosmelhores–ou,maisfrequentemente,asúnicasfontescompetentes–emdeterminadoassuntoimportante.

Ao longo de todo este trabalho, estive em grande parte dependente damonumentalobradePieroFiorelli,LaTorturaGiudiziarianelDirittoComune(2vols.,Milão,1953-54),cujosegundovolumefazumbreverelatodatorturaatéàDeclaração das Nações Unidas de 1948. Existem muitos relatos históricos decarácter geral sobre a tortura, poucos deles de confiança e a maioria com umestilo,nomínimo,pitoresco.AtentativamaisbemsucedidadeumahistóriaúnicadatorturaéadeAlecMellor,LaTorture(Paris,1949;2ed.,Tours,1961),umestudo apaixonado e ambicioso, com falhas gravesmas impossível de ignorar,escritoporumjuristaquesesentiaultrajado,queviveraasdécadasdetrintaedequarenta do nosso século e escrevera com a determinação furiosa de evitaracontecimentoscomosdaqueleperíodo.DepoisdapublicaçãodeHenryCharlesLea, Superstition and Force (Filadélfia, 1866), o segundo estudo profundo datortura na língua inglesa foi o trabalho seletivomas, nogeral, astutodeMaliseRuthven,Torture:TheGrandConspiracy(Londres,1978).Umaterceiraobradeonde retirei muita informação foi o volume La Preuve, Recueils de la SociétéJean Bodin pour l’Histoire Comparative des Institutions, voI. XIX, Partes 1-4(Bruxelas, 1963), cujas várias contribuições são frequentemente citadas comindicações abreviadas mais adiante. De entre estes estudos técnicos, fui umutilizadoragradecidodotrabalhodeJohnH.Langbein,TortureandtheLawofProof(Chicago,1977),tambémcitadoecomentadomaisadiante.

Umapesquisainteressantedecarácterhistóricoegeralacercadasregraspúblicasdacoação,semparnalínguainglesa,éadeJeanImberteGeorgesLevasseur,LePouvoir, les Juges et les Bourreux (Paris, 1972).Há uma série de importantescomentários na publicação dirigida por Franz Bõckle e Jacques Pohier, TheDeath Penalty and Torture, Concilium: Religion in the Seventies, vol. CXX

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(NovaIorque,1979).

Várias enciclopédias especializadas contêm excelentes artigos sobre a tortura,emboraasenciclopédiasdecaráctergeraldevamserusadascommuitacautela.Vejam-se, por exemplo os seguintes artigos: L. Chevalier, «Torture» inDictionnaire de droit canonique, vol. VII (Paris, 1965), cols. 1293-1314; A.Erhardt,«Tormenta»inPauly Wissova,Real-Encyclopedia,II.xii,cols.1775-94.

O resto deste estudo bibliográfico trata dos assuntos abordados neste livrocapítulo a capítulo e, nos casosmais complicadosdos capítulosquinto e sexto,secçãoasecção.Váriostrabalhosacercadatortura,desdeosseusprimeirosusosnaEuropaatéaostemposmodernos,apresentamilustrações(e,nocasodosrelatosmaismodernos,fotografias).Masahistóriada ilustraçãoda torturanemsempreédeconfiança,nemtodasasimagens(sobretudoasproduzidasduranteosséculosXVIIIeXIX)podem ser consideradas graficamente autênticas. Há algumas ilustraçõesfidedignas e importantes nas obras de Fiorelli e Langbein e algumas outras noimportanteestudodeHansFehr,DasRechtimBilde(MuniqueeLeipzig,1923),tal como na outra obra de Fehr,DasRecht in derDichtung (Berna, s.d.).UmestudoexemplardarelaçãoentreahistóriadaarteeosassuntosjurídicoséodeSamuelY. Edgerton, Pictures and Punishment:Art and Criminal ProsecutionduringtheFlorentineRenaissance(Ithaca,N.L,1984).

Osfilmesquedescrevemformasdetorturasãotambémdepoucaconfiança.DuasexcepçõesrelativamenterecentessãoImJahrderFolter(NoAnodaTortura),deHerbert Radtke, e o filme dinamarquêsYourNeighbor’s Son, distribuído pelaAmnistiaInternacional,Frederiksborggade1,1360,CopenhagaK,Dinamarca.

Capítulo1–UmAssuntoDelicadoePerigoso

Não é certamente suficiente fazer o reconto do que várias fontes e estudiososanteriores tiverampara dizer acerca da tortura; é necessário examinar os váriosfenómenosjurídicosnoseucontextohistóricoecultural.Váriosestudosgeraisdaculturajurídicagregaconseguemhabilmentefazerambasascoisas.Umabreveeacessível introdução ao assunto é a de George M. Calhoum, Introduction toGreekLegalScience,ed.F.DeZulueta(Oxford,1944).TrabalhosmaislongosesofisticadossãoosdeJ.WalterJones,TheLawandLegalTheoryoftheGreeks(Oxford,1956),sobretudopp.141-3,eEricA.Havelock,TheGreekConceptofJustice(Cambridge,Mass.,1978).OestudorecentemaisaprofundadoéodeA.R.W.Harrison,TheLawofAthens(2vols.,Oxford,1968),sobretudovol.11,

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pp. 147-50. O estudo mais detalhado acerca da tortura é o de Gerhard Thur,BeweisfhrungvordenSchwurgerichtschofenAthens:DieProkleiszurBasanos(Viena,1977).NoprimeirovolumedeLaPreuve,vejam-sesobretudoosartigosde Gerard Sautel e Claire Preaux, que tratam da Grécia e do Egipto gregorespectivamente. Duas obras técnicas que tratam especificamente dos tribunaisgregosedasregrasdaprovasãoasdeRobertJ.Bonner,EvidenceinAthenianCourts (1905; reimp. Nova Iorque, 1979), e do mesmo autor com GertrudeSmith, TheAdministration of Justice from Homer toAristotle (2 vols., 1930;reimp.NovaIorque,1970).

Quanto à tortura no direito romano, omelhor estudo é de Fiorelli, La TorturaGiudiziaria, vol. L Há uma série de obras clássicas, casos deA. Esmein, AHistory of Continental Criminal Procedure, trad. J. Simpson (Boston, 1913), eTheodor Mommsen, Rmische Strafrecht (reimp. Graz, 1955), pp. 401-11.Encontra-se um bom resumo damatéria em Peter, Garnsey, Social Status andLegal Privilege in theRomanEmpire (Oxford, 1970).Tecem-se consideraçõesimportantes no artigo de Alan Watson, «Rornan Slave Law and RomanistIdeology»,Phoenix37(1983),pp.53-65.

Capítulo2–ARainhadasProvaseaRainhadosSuplícios

No que respeita à Europa medieval e do início da Idade Moderna, o estudomodelo e mais exaustivo é o de Fiorelli, La Tortura Giudiziaria. Há artigosinteressantesemLaPreuve,dosquaisumdosmaisimportantes,odeR.C.VanCaenegem,foirecentementetraduzidoparainglêsporJ.R.SweeneyeDavidA.Flanary com o título de «Methods of Proof in Western Medieval Law»,MededelingenvandeKoninklijkeAcademievoorWetenschappen,Letteren enSchoneKunstensvanBelgie,AcademieAnalecta, 45 (1983), pp.85-127, comumapêndice bibliográfico.Uma longa bibliografia encontra-se publicada comoapêndice do estudo da minha autoria, The Magician, the Witch and the Law(Filadélfia, 1978), Apêndice I, «Res Fragilis: Torture in the Early EuropeanLaw».Hásecçõesde interessenasobrasdeLangbein,Tortureand theLawofProof, Mellor, La Torture, e Esmein, A History of Continental CriminalProcedure. Uma fonte importantíssima para trabalhos posteriores, o TractatusMaleficiis,estáincluídanaobradeHermanKantorowicz,AlbertusGandinusunddas Strafrecht der Scholastik, voI. II (Berlim, 1926).Um comentário recente ecompletoàrevoluçãojurídicadoséculoXIIéodeHaroldJ.Berman,LawandRevolution(Cambridge,Mass.,1983).

Sobre a transformação do direito no século XII, vejam-se os dois importantesestudos de Stephen Kuttner e Knut Nôr publicados na obra organizada por

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RobertL.BensoneGilesConstable,Renaissance andRenewal in theTwelfthCentury(Cambridge,Mass.,1982).

Há uma longa bibliografia no meu estudo Heresy andAuthority in MedievalEurope(Filadélfia,1980).

Para o início da Idade Moderna, as mesmas fontes de carácter geral contêmreferências excelentes, o mesmo acontecendo com John H. Langbein,ProsecutingCrimeintheRenaissance(Cambridge,Mass.,1974),comtraduçõesinglesas de legislações importantes. Embora haja poucas traduções inglesas deliteratura dos séculos XVI e XVII sobre direito penal, muitos escritoresencontram-seresumidosemHenrye.Lea,MateriaisforaHistoryofWitchcraft,org.ArthurHowland(Filadélfia,1939;reimp.NovaIorque,1957),sobretudonosvols. II e III.Alguns comentários de Sebastian Guazzini estão traduzidos emJames C. Welling, The Law of Torture: A Study in the Evolution of Law(Washington,D.C.,1982).

Para alémdos estudos sobreprocessopenalmencionadosporLangbein eLea,têm surgido recentemente muitos trabalhos acerca do crime como fenómenosocialnaEuropadoiníciodaIdadeModerna.Veja-seacompilaçãodeV.A.e.Gatrell, Bruce Lenman e Geoffrey Parker, Crime and the Law: The SocialHistoryofCrimeinWesternEuropesince1500(Londres,1980).

Capítulo3–OAdormecerdaRazão

A maioria das histórias do Iluminismo comenta extensivamente o aspecto dateoria penal do Iluminismo que Langbein, em: Torture and the Law of Proof,rejeitacomosendo«umcontodefadas».UmestudoacessíveleconvincentedaperspectivaconvencionaléodeMarcelloT.Maestro,VoltaireandBeccariaasReformersofCriminalLaw(NovaIorque,1942).AscríticasdeLangbeinaestaperspectivaestãoeloquenternenteexpostasemTortureandtheLawofProof.

O estudo mais completo da abolição formal é o de Fiorelli, La TorturaGiudiziaria.Nestecaso,LaTorturedeMellorépoucoútileagrandepartedashistórias sobre este assunto remete o leitor para o trabalho pormenorizado deFiorelli.Existe um estudo de carácter geral bastante bom sobre o pensamento moraliluministaacercadesteassuntoemRuthven,Torture:

TheGrandConspiracy,pp.3-22,quetambémrefereoimportantetrabalhodeW.

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L.EP.E.Twining,«BentharnonTorture»,NorthernlrelandLegalQuarterly,24(1973),pp.305-56.

Sobre a tortura no Império Otomano e a lei tradicional islâmica, veja-se UrielHeyd,StudiesinOldOttomanCriminalLaw,org.V.L.Menage(Oxford,1973),pp.252-4.Sobreaprovanoshari’a,vejam-seRobertBrunschwig,«Lapreuveendroitmusulman»,LaPreuve,vol.HI,pp.170-86,eMuhammadHamidullah,«LagensedudroitdelapreuveenIslam»,ibid.,pp.187-200.Nomesmovolume,oestudo de Mario Grignaschi, «La valeur du témoignage des sujets non-Musulmans(dhimmi)dansl’empireottoman»,pp.211-323,indicaqueatorturanãoeraaúnicaquestãoemqueosmuftis seopunhamàpolítica imperial.Paraalémdasfontesacimamencionadas,oartigodeMohammedArkoun,«TheDeathPenaltyandTorture in IslamicThought», inBôckleePohier (org.),TheDeathPenalty and Torture, pp. 75-82, é uma interessante comparação entre a leiislâmicaantigaemoderna,comreferênciasaliteraturamaisextensa.Em1982,asassociações de advogados deMarrocos exigiram o fim da aplicação de penasextraordinárias,referindoatradiçãoislâmicacomojustificaçãodaexigência.Istoédescritono relatóriodaAmnistia Internacional,Torture in theEighties (NovaIorque,1984),pp.35-6.

No que respeita à tortura no direito judaico, veja-se o trabalho de ClemensThoma,«TheDeathPenaltyandTorture in the JewishTradition», inBõckleePohier(org.),TheDeathPenaltyandTorture.

Quanto à tortura no direito japonês, veja-se o artigo de Ryosuke Ishii, «TheHistoryofEvidenceinjapan»,LaPreuve,vol.III,pp.521-34,easfontesaquimencionadas.

EmboraocasodaChinanãoesteja incluídoneste livro,háalgumasdescriçõesesclarecedorasdo recurso à torturanaprática jurídica chinesanum romancedoséculo XVIII, traduzido para inglês por Robert van Gulik com o título deCelebrated Cases of Judge Dee (Dee GoongAn): AnAuthentic Eighteenth-CenturyChineseDetectiveNovel(reimp.NovaIorque,1976).OprefáciodevanGulikrefereocaráterfidedignodahistória,capazdeesclarecerapráticajurídicachinesadesdeaantiguidadeatéàinstauraçãodaRepúblicaChinesaem1911.

Quanto à tortura e aodesenvolvimentododireito naRússia, veja-seDanielH.Kaiser, The Growth of the Law in Medieval Russia (Princeton, 1980), umtrabalhocompleto,comindicaçãodebibliografiacomplementar.Operíodoentreos séculos XVI e XIX é tratado, com considerável hostilidade, em RonaldHingley, The Russian Secret Police: Muscovite, Imperial Russian and Soviet

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Political Security Operations, 1565-1970 (Londres, 1970). Quanto aodesenvolvimentodaTerceiraSecção,veja-seotrabalhoexemplardeP.S.Squire,The Third Department (Cambridge, 1968), que também trata de uma formasofisticada o início de século XIX. OS estudos soviéticos recentes sãocomentados na revista Kritika, 19 (1983), pp. 7-15. Quanto à história maisrecentedapolíciarussa,vejam-semaisabaixoasreferênciasaocapítulo4.OestudoclássicosobreatorturaemInglaterraéodeDavidJardine,AReadingon the Use of Torture in the Criminal Law of England Previously to theCommonwealth(Londres,1837).Veja-setambémotrabalhobastantecompletoemaisrecentedeJamesHeath,TortureandEnglishLaw:AnAdministrativeandLegalHistoryfromthePlantagenetstotheStewarts(Westport,1980),quedeveserlidojuntamentecomasobrasdeLangbein,TortureandtheLawofProof,pp.73-179, John Bellamy, The Tudor Law of Treason (Toronto, 1979), e G. R.Elton,PolicyandPolice(Cambridge,1972).

QuantoaFrança,veja-seotrabalho(noseugeral,comfaltadesentidocrítico)dePeterdePolnay,Napoleon’sPolice(Londres,1970),quecomeçaem1667.Bemmais úteis para o séculoXVIII sãoAlanWilliams, The Police of Paris, 1718-1789(BatonRouge,1979);JohnA.Carey,JudicialReforminFrancebeforetheRevolutionof1789(Cambridge,1981);AntoinetteWills,CrimeandPunishmentinRevolutionaryParis(Westport,1981).

UmaobraclássicasempredevalorsobreumtemaespecializadoéadeEugêneHubert,LaTortureauPays-BasautrichenspendantleXVI-Ilesiêcle(Bruxelas,1897).Veja-setambémP.Parfouru,LaTortureenBretagne(Rennes,1896).

Para a questão da polícia e da ordem social em França durante e depois daRevolução,vejam-seRichardCobb,ThePoliceandthePeople:FrenchPopularProtest, 1789-1820 (Oxford, 1970), e Howard C. Payne, The Police State ofLouis Napoleon Bonaparte, 1851-1860 (Seattle, 1966).Apesar das críticas dePayneàspráticasdapolíciadoSegundoImpério,oautornuncarefereatortura.Mellor, em La Torture, trata pormenorizadamente da França do século XIX,como acontece com o estudo mais recente e não menos brilhante de GordonWright, Between the Guillotine and Liberty: Two Centuries of the CrimeProblem in France (Nova Iorque, 1983), que infelizmente não trata compormenor a questão da polícia. O estudo dos casos de Inglaterra, França eAlemanha não deve dispensar um outro trabalho, o de Barton L. Ingraham,Political Crime in Europe: A Comparative Study of France, Germany andEngland(Califórnia,1979).

AtesedeMichelFoucaultestáexpostanasuaobraDisciplineandPunish:The

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BirthofthePrison(NovaIorque,1977),trad.AlanSheridan.Sheridan,porseulado,dedicoualgumaspáginasbastanteesclarecedorasaoestudodeFoucaultnoseutrabalhoMichelFoucault:

TheWill of Truth (Londres, 1980), pp. 135-63. Há ainda longos comentáriosacerca deste assunto emHubert L.Dreyfus e PaulRabinow,Michel Foucault:Beyond Structuralism and Hermeneutics (Chicago, 1982), pp. 143-67, e umdebate animado na compilação de Michelle Perrot, L’Impossible Prison.Recherches sur le systema pénitentiaire au xtxe siêcle. Débat avec MichelFoucault(Paris,1980).

Para os interessados nas formas de castigo no Antigo Regime, existe umaverdadeiraenciclopédiasobreoassuntoemHansvonHentig,DieStrafe(2vols.,Berlim,GettingeneHeidelberg,1954).

Sobrecâmarasdetorturaeprisões,veja-sevol.II,pp.178-83.DeVonHentigháainda um trabalho comuma extensa bibliografia sobre as formas de castigo naIdadeMédiaenoiníciodaIdadeModernanoseuartigo«ThePillory:amedievalpunishrnent»,inVonHentig,StudienzurKriminalgeschichte(Berna,1962),pp.112-30.

Capítulo4«InstrumentodoEstadoenãodaLei»

À margem da lei. Cada um dos assuntos tratados neste capítulo tem umabibliografia considerável. Refiro apenas algumas obras em cada categoria.Confiei muito nos capítulos que tratam este assunto em Mellor, La Torture,praticamente o único estudo da tortura que tenta uma abordagem, ainda quebreve,detodooperíododosséculosXIXeXX.Encontrei indicaçõesúteisemHannahArendt,TheOriginsofTotalitarism(1951,2ed.,NovaIorque,1973)enasobrasdeJ.L.Talmon,TheOriginsofTotalitarianDemocracy(reimp.NovaIorque,1970),PoliticalMessianism:TheRomanticPhase(NovaIorque1960)eTheMythoftheNationandtheVisionofRevolution(BerkeleyeLosAngeles,1980).LaPreuve,vol,IV,étambémimportante,bemcomoosestudosdeOttoKirchheimerreferidosmaisabaixonestabibliografia.

A polícia e o estado. Para o caso dos EUA, há uma extensa bibliografia.Particularmente úteis são os trabalhos deWilburR.Miller,Cops andBobbies:PoliceAuthorityinNewYorkandLondon,1830-1870(Chicago,1970),SamuelWalker, Popular Justice (Nova Iorque, 1980) e EricH.Monkonnen, Police inUrbanAmerica1860-1920(Cambridge,1981),esteúltimocombastantematerial

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inéditoeumaextensabibliografia.ErnestJeromeHopkins,OurLawlessPolice(1931) e Emmanuel H. Lavine, The Third Degree:American PoliceMethods(1933)sãoasduasmelhoresexposiçõesdoconteúdodoRelatórioWickersham,queé tecnicamenteoReportdaNationalCommissiononLawObservanceandEnforcement(Washington,D.C.:U.S.GovernmentPrintingOffice,1930-31)N1-14.ParaInglaterraeFrança,veja-seabibliografiaparaocapítulo3.

Quanto à sobrevivência da tortura emNápoles eÁustria durante este período,veja-seRuthven,Torture:TheGrandConspiracy,pp.159-82.

Guerra,prisioneiroseserviçossecretosmilitares.Omelhortrabalhosobreguerra,prisioneiroseserviçossecretosmilitaresàluzdotemadestelivroéodeMellor,LaTorture.

Ocrimepolítico.Háumabibliografiaimensasobreoproblemadocrimepolíticoedajustiçapolítica,nemtodafidedigna.ParaofinaldaIdadeMédia,vejam-seS.H. Cutler, The Law of Treason and Treason Trials in LaterMedieval France(Cambridge,1982),JohnBellamy,TheTudorLawo/Treason(Toronto,1979)ePierreA.Papadatos,LeDélitPolitique:contribuitional’étudedescrimescontrel’état (Genebra, 1955). Para o período moderno, veja-se Ingraham, PoliticalCrime in Europe. Para os fins deste estudo, vejam-se sobretudo OttoKirchheimer,Political Justice (Princeton,1961),domesmoautor,Politics,LawandSocialChange,org.FrederickS.BurtineKurtL.Shell(NovaIorque,1969)edomesmoautorcomGeorgeRusche,PunishmentandSocialStructure(NovaIorque,1939).

Doscrimespolíticos,osmaisimportantesforamatraiçãoeafeitiçaria,masnosséculos XIX e XX encontram-se nesta categoria o crime ideológico e oterrorismo. Para o terrorismo, vejam-se Walter Laqueur, Terrorism (Boston,1977), e os estudos compilados por Yonah Peter H. Solomon, SovietCriminologists and Criminal Policy (Nova lorque, 1978), e L. Fuller,«Pashukanis and Vyshinsky», Michigan Law Review, 47 (1949), p. 1159 eseguintes.

SobrecrimepolíticoeaCheka,vejam-seGeorgeLeggett,TheCheka:Lenin’sPolitical Police (Oxford, 1981), o estudo mais aprofundado e mais bemdocumentadode todososdedicados a este assunto, eLennardD.Gerson,TheSecretPoliceinLenin’sRussia(Filadélfia,1976),doistrabalhosquecontamcomextensasbibliografiasedocumentação.Ruthven,Torture:TheGrandConspiracy,pp.218-78,ofereceumestudodesenvolvidoeoriginalacercadestestemas.

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Sobre a relação entre o marxismo e a prática soviética atual, vejam-se R.W.Makepeace, Marxist ldeology and Soviet Criminal Law (Londres, 1980), lvoLapenna,SovietPenalPolicy(Toronto,1968).

Omelhordeentreosestudosrecentes,o.S.Joffe,RasvirietsvilisncheskoimyslivS.S.S.R.(Leninegrado,1975),aindanãofoitraduzidoparainglês.

A descoberta do caso da Argélia. Quanto à África do Sul, vejamse HildaBernstein,SouthAfrica: the terrorismof torture, lnternationalDefense andAidFund,ChristianAction Publications (Londres, 1972), eAlbie Sachs, Justice inSouthAfrica(Londres,1973);WilliamR.Frye,lnWhitestAfrica:thedynamicsof Apartheid (Eaglewood Cliffs, N. J., 1968). A obra clássica acerca desteassuntosobaperspectivadoscolonizadoséadeFranzFanon,TheWretchedoftheEarth(reimp.Novalorque,1968).

Uma das primeiras provas de preocupação europeia com as práticas coloniaiscomoasqueforamtratadasnestecapítuloéoReportoftheComissionersforthelnvestigation ofAlleged Cases of Torture in the Madras Presidency (Madras,1855);háumcomentárioprofundoàscircunstânciaseaocontextodesteprocessoemRuthven,Torture:

TheGrandConspiracy,pp183-217.

OmelhoremaisconcisodostrabalhosacercadatorturanaArgéliaéodeAlistairHorne,ASavageWar of Peace:Algeria, 1954-1962 (Nova lorque, 1977), umtrabalho a que devo muito. Uma das obras mais influentes acerca daArgéliaduranteesteperíodoéodeHenriAlleg,TheQuestion, trad. JohnCalder,comuma introdução de JeanPaul Sartre (Nova lorque, 1958). Há poucomais nalínguainglesa.

Entreasobrasindispensáveisemfrancês,vejam-sePierre–HenriSimon,ContrelaTorture(Paris,1957);PierreVidal-Naquet,L’AffaireAudin(Paris,1958);domesmo autor, La Raison d’État: textes publiés par le Comité MauriceAudin(Paris,1962),contendoestevolumeotextodoRelatórioWuillaumede1955,pp55-68,eoutrosdocumentospublicadosacercadesteassuntoentre1954e1961.Torture:

Cancer ofDemocracy, deVidal-Naquet, apareceu pela primeira vez em 1972,numatraduçãofrancesacomotítulodeLaTorturedanslaRépublique.Veja-seaindaFanon,TheWretchedoftheEarth.

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AquestãodatorturaemFrançaétratadaemP.Péju,LesHarkisàParis(Paris,1961).OtrabalhomaisrecentedeMellor,Jedénoncela torture(Tours,1972),ofereceumhistóriadatorturaanalítica,estruturadaportópicos,considerandoaconfissão,ainformaçãopolíticaemilitar,apolíticatotalitáriae,noquartocapítulo,aquiloaque os franceses agora chamam massuisme – a justificação da tortura emcircunstâncias extraordinárias, um tema importante nas memórias do Gen.Jacques Massu, La Vraie Bataille d’Alger (Paris, 1971). O capítulo está bemdesenvolvidoebemfundamentado.

Pelomenosnumaspecto, a experiência americananoVietname, sobretudonassuas consequências sociais e políticas, permitiu uma descoberta feita por umasociedade acerca de uma faceta de si mesma, algo semelhante à descobertafrancesa do caso da Argélia uma década antes. Embora haja uma extensaliteratura sobre o assunto, é particularmente representativo o trabalho de NevitSanford, Craig Cornstock et al., Sanctions for Evil (São Francisco, 1971).Encontra-seumbomcomentáriodecaráctergeralsobreocontextodoVietnameemTelfordTaylor,NurembergandVietnam:anamericantragedy(NovaIorque,1970),comextensasreferênciasbibliográficasnasnotas.

Capítulo5«Tornar-se,oupermanecer,humano…»

Um novo Iluminismo? Textos acessíveis dos documentos das Nações Unidas,bem como da Convenção Europeia para os Direitos do Homem, podem serencontrados em Ian Brownlie, Basic Documents on Human Rights (2 ed.,Oxford, 1981), e na parte VI da obra do mesmo autor, Basic Documents inlnternational Law (3 ed., Oxford, 1983), ambas com notas úteis. Uma outracompilaçãoéadeJamesAveryJoyce,HumanRights: lnternationalDocuments(3 vols., Alphen, 1978). Um estudo recente e competente de como o direitointernacionaloperanestamatériaéodePaulSieghart,ThelnternationalLawofHumanRights(Oxford,1983).

Veja-setambémacompilaçãodeB.G.Ramcharan,HumanRights:ThirtyYearsaftertheUniversalDeclaration(Haia,1979).

Sobreasdiferentesperspectivasdanaturezaeprioridadedosdireitosdohomem,veja-se FouadAjami, Human Rights and World Order Politics, World OrderModels Project,Working PapertN 4, Institute forWorldOrder (Nova Iorque,1978).

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HáumaediçãocompletadostrabalhospreparatóriosparaaConvençãoEuropeiapara os Direitos do Homem: Collected Edition of the «TravauxPréparatoires»IRecueildes«TravauxPréparatoires»quecobreosanosde1949e1950 (7 vols., Haia, 1957-79). Para anos posteriores, veja-se EuropeanConvention for Human Rights, Collected Texts/Convention européenne desdroitsdel’homme,Recueildetextes(8ed.,Estrasburgo,1972).Paraahistóriadaaplicação da convenção veja-se J. E. S. Fawcett, The Application of theEuropean Convention on Human Rights, org. Torkel Opsahl e ThomasOuchterlony (Leiden e Dobbs Ferry, 1974). O Conselho da Europa tambémpublicaumarevistaanual,AnnualReviewCompteRenduAnnuel(Estrasburgo,1973-).Háumaboa introduçãoao temaemDavidP.Forsythe,HumanRightsandWorldPolitics(LincolneLondres,1983),eumasofisticadatrocadevisõesmuitodiferentesdeváriosespecialistasnacompilaçãodeD.D.Raphael,PoliticalTheoryandtheRightsofMan(Bloomington,1967).Veja-setambémdoConselhodaEuropa,BibliographyRelatingtotheEuropeanConventiononHumanRights(Estrasburgo,1978)eHurstHannum(org.),CuidetoInternationalHumanRightsPractice(Filadélfia,1984).

HámuitadocumentaçãosobreatorturaeoutrasviolaçõesdosdireitosdohomememHumanRightsandthePhenomenonofDisappearance–HearingsbeforetheSubcommittee on International Organizations of the Committee on ForeignAffairs, House of Representatives, Ninety-Sixth Congress, First Session(Washington,D.C.,1980).Centrando-sesobretudonaAméricaLatina,ostextosoferecemumcontexto impressionanteparao temadeste livro.São tambémumtestemunhoeloquentedainformaçãoprocuradapelapolíticadedireitoshumanosdaadministraçãoCarterentre1976e1980.

AlinguagemdoÉden.Édifícilencontrarummelhorretratodomistodeconfusãointelectual,revoltaeviolênciadoséculoXXqueaquelequenosapresentaaobradeV.S.Naipaul,TheReturnofEvaPerón(NovaIorque,1981).

Sobre a linguagem política, para além das obras do próprio Orwell, sugiroprocurar o desenvolvimento do tema na biografia de Bernard Crick, GeorgeOrwell:ALife(Boston,1980),umguiamaisfidedignodoqueosquatrovolumesdeEssays andLetters, que não estão completos, emais preciso do que outrosestudosdeOrwell.

Veja-se também Doris Lessing, Documents to the Sentimental Agents in theVolyen Empire (Nova Iorque, 1983). Os estudos sobre Arendt estãocompetentemente descritos em Stephen J. Whitfield, lnto the Dark: HannahArendtandTotalitarianism(Filadélfia,1980).

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DepoisdaArgélia.DoisestudosdaAmnistiaInternacionalsão:

Egon Larson,A Flame in Barbed Wire: The Story ofAmnesty lnternational(Nova Iorque, 1979), e Jonathan Power, Amnesty lnternational: The HumanRights Story (Nova Iorque, 1981). Ambos comentam a campanha contra atortura,emboraasobservaçõeshistóricasdeLarsonnãosejamdeconfiançaeasdePower sebaseiemnasdeLarson.AspublicaçõesdaAmnistia Internacionalestãodisponíveisemváriassedesinternacionais,dasquaisháumalistanolivrodePower.

Paraalémdaspublicaçõesreferidasnotextodestelivro,háumrelatóriointituladoRepublicofKorea:ViolationsofHumanRights(1981),eemMarçode1984aAmnistia Internacional publicou o seu aprofundado relatório Torture in theEighties(LondreseNovaIorque).

ParaocasoTimerman,vejam-seJacopoTimerman,PrisionerWithoutaName,Cell Without a Number (Nova Iorque, 1981), trad. Toby Talbot, e a útilbibliografiade«TimerrnanCase»noartigodeMichaelWalzer,«TimermanandHisEnernies»,NewYorkReviewofBooks,24deSetembrode1981;asúltimasreflexões de Timerman estão descritas em Jacopo Timerman, «Return toArgentina», New York Times Magazine, 11 de Março de 1984, p. 36 eseguintes.É importante salientar que a investigação da Amnistia Internacional teminfluenciadoo trabalhodosestudiosos.O trabalhodePeterFlynn,Brasil:UmaAnálise Política (Londres e Boulder, Colo., 1978) faz grande uso do textoAmnesty lnternational Report on Allegations of Torture in Brazil (Londres,1977),e,comasuaajuda,oestudodeFlynnéexemplar.Aatençãoqueestetipode investigações pode atrair sobre um assunto muitas vezes obscurecido pelosseus perpetradores pode ser ilustrada com a comparação do trabalho de Flynncom os de dois investigadores independentes acerca da tortura naArgentina:RobertoEstrella,Tortura(ReportajealHorror)1943-1955(BuenosAires,1956),e Raul Lamas, Los Torturadores, Crimines y Tormentos en las CarcelesArgentinas(BuenosAires,1956).

Desde1970,a tortura temsidooassuntodeumgrandenúmerodepublicaçõesnemtodasacessíveisparamim.RefiroaquiC.DeGoustine,LaTorture (Paris,1976);A.Guindon,LaPédagogiedelaCrainte(MontrealeParis,1975;GustavKeller,DiePsychologiederFolter(1978).

ParaocasodaGrécia,paraalémdo textodaAmnistia InternacionalTorture inGreece:TheFirstTorturer’sTrial1975,vejam-seaseloquentesesurpreendentes

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memóriasdeNicholasGage,Eleni(NovaIorque,1983).

O testemunho de torturadores está registado em J. Victor, Confessiones de unTorturador(Barcelona,1981),sendoonomedoautoropseudónimodeumgrupodetorturadores.

ASala101–eoutrassalas.ConfieimuitonaobradeRonaldMelzackePatrickD.Wall,TheChallengeofPain (Nova Iorque,1983), uma revisãode trabalhopioneirodeMelzack,ThePuzzleofPain(NovaIorque,1973).

Sobre a psicologia da tortura, veja-se J. Corominas e J. M. Farré, Contra laTortura (Barcelona, 1978). Devo um vez mais agradecer a John T. Conroy,médico,pelosconselhosacercadestasecção.

Umabrevehistóriadapreocupaçãoprofissionalquerecentementedespertouentreos médicos é o artigo de Michael Kosteljanetz e Ole Aalund, «Torture: AChallengetoMedicalScience»,InterdisciplinaryScienceReviews,8(1983),comumaextensaliteraturadereferêncianasnotas.Estouagradecidopeloproveitoquepude tirar de uma série de estudos queme foram facultados pelo InternationaltRehabiliteringsog Forksningscenter for Torturofre (CRT), Centro Internacionalde Reabilitação e Investigação para Vítimas de Tortura, em Copenhaga,Dinamarca, cuja directora, a Dr. Inge KempGenefke, tem desempenhado umpapel notável na sensibilização da classe médica mundial para a tortura comoproblema terapêuticoeético.MuitosdosmeuscomentáriosacercadassequelassomáticasepsicológicasdatorturamodernaprovêmdasinvestigaçõesdoCRT.

ADeclarationof theWorldMedicalAssociationemTóquioem1975podeserencontrada em World Medical Journal, 22, (1975), pp 87-8. Outros textosencontram-se em Professional Codes of Ethics, Amnesty InternationalPublications (1976); para a declaração da Sociedade Espanhola deMedicina ePsicoterapiaPsicossomáticadeLéridaem1977,veja-sePsiquiatrikaI/78,vol.I,N1(1978),pp62-3.ÉumassuntotratadoemA.M.Ruiz-MateosjiminezdeTejada,«MedicalCareofPrisoners»,inBõckleePohier(org.),TheDeathPenaltyandTorture,pp114-8.

Semfim?Omelhordosestudosrecentesacercadopresenteedofuturoimediatoé uma publicação da Amnistia Internacional, Torture in the Eighties (NovaIorque,1984).Omelhortrabalhoacercadasideiasparaaalteraçãodofuturodatortura é o panfleto publicado pela Comissão Internacional de Juristas e pelo

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Comité Suíço contra a Tortura, Torture: How to Make the lnternationalConvention Effective, 2 ed. (Genebra, 1980). O debate – e a literatura –continuarãocertamenteasurgir.

EmAgostode1984,oDeutschePresse-Agentur,umserviçonoticiosoalemão,anunciouosplanosdaCruzVermelhasuecaemabrirumcentrodereabilitaçãoem Estocolmo para as vítimas de tortura, seguindo a linha do CRT deCopenhaga.Asnotíciasnãosãosempremás.EmNovembrode1984,aAmnistiaInternacionalanunciouquemetadedasnaçõesdaONUfazemusodatortura.Asnotíciasnãosãotambéminvariavelmenteboas.

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