109 dias de tortura

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74 ISTOÉ 2171 22/6/2011 Juliana Dal Piva E algozes giraram seu corpo várias vezes e só depois retiraram a venda. “Você sabe quem sou?”, perguntou o homem postado diante dela. Denise respondeu que não. “Sou o famoso Fleury”, res- pondeu o delegado Sérgio Paranhos Fleury, torturador obstinado e com um histórico de mor- te de prisioneiros sob seus ombros. Ele então apon- tou uma porta e deu uma ordem: “Seu marido está naquela sala”, disse. “Entra lá porque ele se recusa a comer e falar antes de te ver. Você tem um minuto.” Denise viu o marido, o militante de esquerda Eduar- do Leite, conhecido como Bacuri, sentado atrás de uma escrivaninha e com as mãos algemadas em cima da mesa. As lágrimas vieram de ime- diato. Bacuri tinha hema- tomas e queimaduras por toda a pele. Tocaram-se as mãos e, quando Denise se levantou para que ele sentisse o bebê na barriga, Fleury entrou: “O minuto acabou”, disse o delegado. Arrancada da sala, Denise pressentiu que aquela seria a última vez que veria o marido, prisioneiro que permaneceu mais tempo sob tortura ininterrupta da ditadura mili- tar – foram intermináveis 109 dias de sofrimento antes de sua execução. A história descrita acima jamais havia se tornado pública e poderá ser conhecida em detalhes com a leitura da biografia “Eduardo Leite Bacuri”, de autoria da jornalista Vanessa Gon- çalves, que será lançada oficialmente no sábado 18 pela Plena Editorial. O livro, antecipado com exclusividade à ISTOÉ, joga luz sobre a intensa vida do mineiro de Campo Belo, de ori- gem simples e que desapareceu nos porões do regime militar aos 25 anos de idade. Além de Denise, a autora entrevistou 40 ex-militantes que a ajudaram a construir a trajetória de um dos personagens mais instigantes dos anos de chumbo. Bacuri partici- pou dos sequestros do cônsul japonês Nobuo Okushi e do embaixador ale- mão Ehrenfried Von Holleben, que imediatamente o colocaram no topo da lista dos inimigos da repressão. Embora cubra toda a curta vida de Bacuri, a biografia destaca o período crucial de sua existência – os 109 dias de prisão e torturas. A via-crúcis co- meçou no dia 21 de agosto de 1970, na cidade do Rio de Janeiro. Desesperado para libertar sua mulher, que estava presa há um mês na Operação Ban- deirante (conhecida como Oban), ele viajou à capital carioca para organizar o sequestro de um diplomata. De acordo com o livro, Bacuri foi traído por Artur Paulo de Souza e Jorge Zuchowski, colaboradores dos militares infiltrados na Frente de Liber- tação Nacional que passaram informações sobre o seu paradeiro. Foi Fleury em m agosto de 1970, depois de um mês de prisão no De- partamento de Ordem Política e Social, o temido Dops, Denise Peres Crispim foi retirada às pressas da cela para dar uma volta. Ela tinha motivos para acreditar que, mesmo grávida de sete meses, aqueles poderiam ser seus últimos momentos de vida. “Todas as vezes que eu saía, achava que podia não voltar”, disse Denise à ISTOÉ, em sua primeira entrevista para um veículo de comunicação após mais de 40 anos de silêncio. Cercada por quatro policiais, de olhos vendados, foi empur- rada para dentro de um automóvel. Poucos minutos depois, o carro parou. Puxada com força para fora, Denise ouviu um portão abrindo, entrou na casa, passou por uma porta e subiu a escada. Em seguida, os Comportamento VÍTIMA Bacuri sequer conheceu a filha, Eduarda, fruto de sua relação com Denise Crispim (à esquerda) exClusivo A prisão Bacuri foi preso no dia 21 de agosto de 1970 enquanto planejava o sequestro do embaixador inglês à época. De acordo com a biografia, o delegado Sérgio Paranhos Fleury surpreendeu-o no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, com uma equipe do Centro de Informações da Marinha, o temido Cenimar O começo do martírio Uma vez preso, Bacuri foi levado imediatamente a um centro clandestino de torturas no bairro de São Conrado. Depois disso, ele nunca mais conseguiu caminhar sozinho O último encontro com Denise Entre 24 e 25 de agosto, foi trazido à delegacia de polícia do bairro da Vila Rica, em São Paulo, para nova sessão de tortura, dessa vez exclusivamente comandada por Fleury. Lá ocorreu o último encontro entre ele e sua companheira, Denise Crispim, grávida de sete meses De volta às mãos de Fleury Em outubro, Bacuri voltou ao Dops para ser torturado por Fleury. Ali, ficou sabendo do nascimento da filha, Eduarda A vez da Oban Em meados de setembro, Bacuri voltou a São Paulo com novo destino: a Operação Bandeirante. transformada em DOI- Codi no mesmo mês e sob o comando do major Ustra a partir de 29 de setembro A sentença de morte Como um preso bastante odiado pela repressão, ele jamais seria libertado com vida. O plano para executá-lo começou a ser posto em prática com a divulgação da falsa notícia de sua fuga, no dia 26 de outubro O sequestro do Dops Na madrugada do dia 27 de outubro, ele foi retirado do Dops e levado a um centro clandestino de tortura próximo ao Clube Atlético Juventus (SP), financiado pelo mesmo dono do “Sítio 31 de Março”, Joaquim Rodrigues Fagundes O assassinato A partir do relato do soldado Rinaldo de Carvalho, descobriu- se que Bacuri morreu no dia 8 de dezembro de 1970, no forte das Andradas, no Guarujá (SP). A foto inédita divulgada agora mostra a versão oficial da morte após tiroteio A passagem pelo DOI-Codi (RJ) Não há certeza do tempo total em que Bacuri esteve no DOI-Codi. Mas a presa política Cecília Coimbra garante que ele era constantemente seviciado O retorno ao Rio Bacuri retornou ao Rio de Janeiro. Preso na Ilha das Cobras, conhecido destino de presos políticos da ditadura, fez greve de fome e recusou tratamento médico, temendo a tortura do Cenimar. Sequer confirmou o próprio nome lO9 dias de tortura Biografia do militante Eduardo Leite, o Bacuri, revela a agonia do prisioneiro que permaneceu mais tempo sob violência ininterrupta da ditadura militar antes de ser morto fotos: arquivo do estado de são paulo; joão castellano/ag. istoé

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reportagem sobre o guerrilheiro Eduardo Leite, Bacuri, assassinado pela ditadura depois de 109 dias de toratura

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Page 1: 109 dias de tortura

74 ISTOÉ 2171 22/6/2011

Juliana Dal Piva

Ealgozes giraram seu corpo várias vezes e só depois retiraram a venda. “Você sabe quem sou?”, perguntou o homem postado diante dela. Denise respondeu que não. “Sou o famoso Fleury”, res-pondeu o delegado Sérgio Paranhos Fleury, torturador obstinado e com um

histórico de mor-te de prisioneiros sob seus ombros. Ele então apon-tou uma porta e deu uma ordem: “Seu marido está naquela sala”, disse. “Entra lá porque ele se recusa a comer e falar antes de te ver. Você tem um minuto.” Denise viu o marido, o militante de esquerda Eduar-do Leite, conhecido

como Bacuri, sentado atrás de uma escrivaninha e com as mãos algemadas em cima da mesa. As lágrimas vieram de ime-diato. Bacuri tinha hema-tomas e queimaduras por toda a pele. Tocaram-se as mãos e, quando Denise se levantou para que ele sentisse o bebê na barriga, Fleury entrou: “O minuto acabou”, disse o delegado. Arrancada da sala, Denise

pressentiu que aquela seria a última vez que veria o marido, prisioneiro que permaneceu mais tempo sob tortura ininterrupta da ditadura mili-tar – foram intermináveis 109 dias de sofrimento antes de sua execução.

A história descrita acima jamais

havia se tornado pública e poderá ser conhecida em detalhes com a leitura da biografia “Eduardo Leite Bacuri”, de autoria da jornalista Vanessa Gon-çalves, que será lançada oficialmente no sábado 18 pela Plena Editorial. O livro, antecipado com exclusividade à ISTOÉ, joga luz sobre a intensa vida do mineiro de Campo Belo, de ori-gem simples e que desapareceu nos porões do regime militar aos 25 anos de idade. Além de Denise, a autora entrevistou 40 ex-militantes que a ajudaram a construir a trajetória de um dos personagens mais instigantes dos anos de chumbo. Bacuri partici-pou dos sequestros do cônsul japonês Nobuo Okushi e do embaixador ale-mão Ehrenfried Von Holleben, que imediatamente o colocaram no topo da lista dos inimigos da repressão.

Embora cubra toda a curta vida de Bacuri, a biografia destaca o período crucial de sua existência – os 109 dias de prisão e torturas. A via-crúcis co-meçou no dia 21 de agosto de 1970, na cidade do Rio de Janeiro. Desesperado para libertar sua mulher, que estava presa há um mês na Operação Ban-deirante (conhecida como Oban), ele viajou à capital carioca para organizar o sequestro de um diplomata. De acordo com o livro, Bacuri foi traído por Artur Paulo de Souza e Jorge Zuchowski, colaboradores dos militares infiltrados na Frente de Liber-tação Nacional que passaram informações sobre o seu paradeiro. Foi Fleury em

m agosto de 1970, depois de um mês de prisão no De-partamento de Ordem Política e Social, o temido Dops, Denise Peres Crispim foi retirada às pressas da cela para dar uma volta. Ela tinha motivos para acreditar que, mesmo grávida de sete meses, aqueles poderiam ser seus últimos momentos de vida. “Todas as vezes que eu saía,

achava que podia não voltar”, disse Denise à ISTOÉ, em sua primeira entrevista para um veículo de comunicação após mais de 40 anos de silêncio. Cercada por quatro policiais, de olhos vendados, foi empur-rada para dentro de um automóvel. Poucos minutos depois, o carro parou. Puxada com força para fora, Denise ouviu um portão abrindo, entrou na casa, passou por uma porta e subiu a escada. Em seguida, os

Comportamento

VÍTIMA Bacuri sequer conheceu a filha, Eduarda, fruto de sua relação com Denise Crispim (à esquerda)

exClusivo

A prisãoBacuri foi preso no dia 21 de agosto de 1970 enquanto planejava o sequestro do embaixador inglês à época. De acordo com a biografia, o delegado Sérgio Paranhos Fleury surpreendeu-o no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, com uma equipe do Centro de Informações da Marinha, o temido Cenimar

O começo do martírio Uma vez preso, Bacuri foi levado imediatamente a um centro clandestino de torturas no bairro de São Conrado. Depois disso, ele nunca mais conseguiu caminhar sozinho

O último encontro com Denise

Entre 24 e 25 de agosto, foi trazido à delegacia de polícia do bairro da Vila Rica, em São Paulo, para nova sessão de tortura, dessa vez exclusivamente comandada por Fleury. Lá ocorreu o último encontro entre ele e sua companheira, Denise Crispim, grávida de sete meses

De volta às mãos de Fleury Em outubro, Bacuri voltou ao Dops para ser torturado por Fleury. Ali, ficou sabendo do nascimento da filha, Eduarda

A vez da Oban Em meados de setembro, Bacuri voltou a São Paulo com novo destino: a Operação Bandeirante. transformada em DOI-Codi no mesmo mês e sob o comando do major Ustra a partir de 29 de setembro

A sentença de morteComo um preso bastante odiado pela repressão, ele jamais seria libertado com vida. O plano para executá-lo começou a ser posto em prática com a divulgação da falsa notícia de sua fuga, no dia 26 de outubro

O sequestro do DopsNa madrugada do dia 27 de outubro, ele foi retirado do Dops e levado a um centro clandestino de tortura próximo ao Clube Atlético Juventus (SP), financiado pelo mesmo dono do “Sítio 31 de Março”, Joaquim Rodrigues Fagundes

O assassinatoA partir do relato do soldado Rinaldo de Carvalho, descobriu-se que Bacuri morreu no dia 8 de dezembro de 1970, no forte das Andradas, no Guarujá (SP). A foto inédita divulgada agora mostra a versão oficial da morte após tiroteio

A passagem pelo DOI-Codi (RJ) Não há certeza do tempo total em que Bacuri esteve no DOI-Codi. Mas a presa política Cecília Coimbra garante que ele era constantemente seviciado

O retorno ao Rio

Bacuri retornou ao Rio de Janeiro. Preso na Ilha das Cobras, conhecido destino de presos políticos da ditadura, fez greve de fome e recusou tratamento médico, temendo a tortura do Cenimar. Sequer confirmou o próprio nome

lO9 dias de torturaBiografia do militante Eduardo Leite, o Bacuri, revela a agonia do prisioneiro que permaneceu mais tempo sob violência ininterrupta da ditadura militar antes de ser morto

fotos: arquivo do estado de são paulo; joão castellano/ag. istoé

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Comportamento

pessoa que o algemou em uma rua do bairro da Gávea. Dali foi imediatamente levado para a primeira sessão de pan-cadaria em um centro clandestino de São Conrado. Depois, encaminhado à delegacia de Vila Rica, em São Paulo, para que Fleury pudesse continuar o serviço sujo. O militante ainda retornou ao Rio de Janeiro, passando pelo presí-dio da Ilha das Cobras. Mais tarde, foi transferido para São Paulo, dessa vez para a Oban, que se transformaria no famigerado DOI-Codi.

No Dops, Bacuri passou por uma ex-periência incomum – e macabra – mes-mo para os padrões da ditadura. Ali, depois de massacrado fisicamente, ele leu sua sentença de morte. No sábado 26 de outubro, os jornais noticiaram a morte de Joaquim Câmara Ferreira, mi-litante da Ação Libertadora Nacional, e

afirmaram que Bacuri havia sido levado da prisão para fazer o reconhecimento do corpo. Nessa operação, segundo as publicações da época, Bacuri tinha conseguido fugir e desapareceu. Ao ver a notícia impressa nos jornais, ele teve a certeza de que jamais sairia vivo da prisão – era o álibi que os militares precisavam para assegurar que Bacuri não estava sob jugo da ditadura e, sim, foragido. A triste ironia da história é que ele sequer andava. Graças à vio-lência dos policiais, apenas quatro dias depois de ser preso o militante perderia para sempre o movimento das pernas. Sua morte foi lenta. Segundo relato de um soldado, Bacuri foi executado no dia 8 de dezembro de 1970 (leia quadro à pág. 74), no forte dos Andradas, no Guarujá, em São Paulo.

Não é difícil entender por que a

prisão de Bacuri era como um troféu para os militares. Ele começou sua mi-litância política na Polop, depois este-ve entre os fundadores da Vanguarda Popular Revolucionária e, mais tarde, fundou a Rede Democrática (Rede), todos grupos que não poupavam meios para enfrentar a ditadura. Em seu currículo constam ações de extrema ousadia. Ao saber que a mulher grávida tinha sido presa, ameaçou sequestrar e matar o comandante do Segundo Exército de São Paulo. Em uma ligação para o DOI-Codi, diante da desconfiança da voz do outro lado da linha, mandou que um parceiro fizesse uma provoca-ção: “Pergunte ao comandante se ele sabe de um fusquinha vermelho no qual ele vai visitar a amante.”

Bacuri não conheceu a filha, Eduar-da, que tinha um mês e meio quando ele morreu. Assim que deu à luz, Denise ganhou liberdade condicional. Em 1972, diante das seguidas ameaças, ela fugiu com a criança para o Chile e depois se mudou para a Itália, onde as duas per-maneceram por mais de 30 anos. Hoje, aos 40 anos, Eduarda vive na Holanda e é restauradora de obras de arte. Denise Crispim retornou no início do ano para o Brasil, desta vez em definitivo. Mas o medo persiste – ela não revela em que cidade vai morar. “Eu fiquei marcada para o resto da minha vida”, diz.

FALSA FUGAInforme até

agora inédito distribuído

pelo Centro de Informações do

Exército com instruções para

divulgação da falsa fuga de Bacuri,

abrindo caminho para seu assassinato

TrAIção Artur de Souza foi o agente infiltrado que entregou Bacuri para Fleury. Em 2010, pediu indenização do Estado como perseguido político, que foi negada

fotos: arquivo do estado de são paulo; arquivo do estado do rio grande do sul; ilustração: stefano levi 1979