no limite das formas. a configuração do contemporâneo no

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI GUILHERME DE SOUZA CASTRO NETO NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no Estilo de Cinema de Jorge Furtado. SÃO PAULO 2015

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Page 1: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

GUILHERME DE SOUZA CASTRO NETO

NO LIMITE DAS FORMAS.

A Configuração do Contemporâneo no Estilo de Cinema de

Jorge Furtado.

SÃO PAULO

2015

Page 2: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

GUILHERME DE SOUZA CASTRO NETO

NO LIMITE DAS FORMAS.

A Configuração do Contemporâneo no Estilo de Cinema de

Jorge Furtado.

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca

Examinadora, como exigência parcial para a

obtenção do título de Mestre do Programa de

Mestrado em Comunicação, área de concentração

em Comunicação Contemporânea da Universidade

Anhembi Morumbi, sob a orientação da Prof. Dra.

Maria Bernadette Cunha de Lyra

SÃO PAULO

2015

Page 3: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

GUILHERME DE SOUZA CASTRO NETO

NO LIMITE DAS FORMAS.

A Configuração do Contemporâneo no Estilo de Cinema de

Jorge Furtado.

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca

Examinadora, como exigência parcial para a

obtenção do título de Mestre do Programa de

Mestrado em Comunicação, área de concentração

em Comunicação Contemporânea da Universidade

Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dra.

Maria Bernadette Cunha de Lyra

Aprovado em ----/-----/-----

___________________________________

Prof. Dra. Maria Bernadette Cunha de Lyra

___________________________________

Prof. Dra. Rosana de Lima Soares

___________________________________

Prof. Dr. Gelson Santana Penha

Page 4: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

Agradeço em especial, pela sábia e generosa orientação, à Dra Benadette Lyra, pelos

ensinamentos e convivência, aos professores e colegas de mestrado, e, pelo apoio

fundamental, aos meus amigos e familiares.

Page 5: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo estudar e analisar as formas fílmicas e as categorias expressivas que configuram estilos pertinentes à contemporaneidade nos filmes de Jorge Furtado (Porto Alegre, Brasil, 1959). Trata-se de uma produção premiada nos mais importantes festivais do Brasil e do mundo, obtendo sucesso de crítica e público, desde os primeiros curtas-metragens dos anos 80 (dentre os quais O temporal, de 1984, O Dia em que Dorival encarou a guarda, 1986 e Ilha das Flores,1989) à série de longas-metragens iniciados nos anos dois mil (como Houve uma vez dois verões, de 2002, O homem que copiava, 2003, Saneamento básico, 2007 e Mercado de notícias, 2013). Tais filmes, por um lado, dedicam-se a estabelecer uma alta comunicabilidade com o público, tratando de contar, de maneira atraente, histórias bastante evidentes e diretas, por outro, diferenciam-se pelas formas múltiplas, híbridas e autorreflexivas trabalhadas em roteiros e realizações ricos em detalhes narrativos, muitas vezes antinaturalistas. Essa duplicidade estrutural se constrói sobre certas características específicas, reiteradas de modo variado: o uso do texto em off(um hipertexto que compõe uma espécie de hiperaudiovisual, vinculado a pontos de vista variáveis e incertos que, inseridos na trama, tutelam o olhar para a construção das cenas); uma organização de tempo em que o presente se dilata; o espaço povoado por imagens desprovidas de lastro, representando a fragmentação do olhar e do pensamento. Além disso, os filmes também se caracterizam pelo “humor triste”: personagens e textos provocam o riso em sucessivas situações cômicas, porém, pelo uso recorrente da paródia e de outras estratégias críticas, reflexões sérias sobre a vida estão inseridas em todas as obras, evidenciando-se em situações dramáticas e em teses sobre o mundo. As estratégias, que sustentam a construção desses filmes, transitam pelos limites das formas;elas são fragmentárias, apresentando-se com mesclas e impurezas. No entanto, a essa fragmentação e miscigenação, os filmes contrapõem sólidas unidades narrativas, conceituais e também formais. Todos os pressupostos de base elencados neste trabalho decorrem da análise fílmica de um conjunto representativo da obra cinematográfica em questão e estão consolidados a partir de um diálogo com o pensamento dos cineastas Jorge Furtado e Giba Assis Brasil, materializado por textos e entrevistas, e da aplicação teórica das categorias de narrativa cinematográfica (especialmente em David Bordwell) e de contemporâneo (especialmente em Hans Ulrich Gumbrecht) às análises feitas, com a finalidade de compreender e descrever como se configura a expressão do tempo e espaço atuais no estilo do cinema de Jorge Furtado.

Palavras-chaves: Jorge Furtado, análises fílmicas, formas, categorias

expressivas, estilo cinematográfico contemporâneo.

Page 6: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

ABSTRACT

The objective of this research is to study and to analyze the filmic forms and the expressive categories that configure relevant styles to the present times in the movies by Jorge Furtado (Porto Alegre, Brazil, 1959). It is a production awarded in the most important festivals in Brazil and in the world, gaining acclaim from critics and audience, since the early short movies from the 1980s (among them: Storm, 1984; The Day Dorival faced the guard, 1986; and Island of Flowers, 1989) to the set of feature films started in the 2000s (such as Two Summers, 2002, The Man who copied, 2003, Basic Sanitation – The Movie, 2007, and The Staple of News, 2013). Such films, on the one hand, are dedicated to establish a high communicability with the public, trying to tell, attractively, quite clear and straightforward stories, on the other hand, they differ in the multiple, hybrid and self-reflective forms, developed through elaborate narrative details on the scripts and filming, often anti-naturalistic. This structural duplicity is created on certain specific characteristics, on repeated ways: the use of voice over (a hypertext that composes a sort of hyper-audiovisual, related to variable and uncertain points of view that, within the plot, guide the look for the construction of the scene); an organization of time in which the present stretches; the space is filled by images devoid of ballast, representing the fragmentation of the look and the thought. Besides, the films are also characterized by the sad humor: the characters and texts provoke laughter in successive comic situations, but, as a result of the recurrent use of the parody and other critical strategies, serious reflections about life are inserted in the works, demonstrated in dramatic situations and theories about the world. The strategies that support the construction of these films pass through the borders of the forms; they are fragmentary, presented with mixtures and impurities. However, to this fragmentation, the movies oppose solid narrative, conceptual and formal units. All the underlying assumptions listed in this work derive from the filmic analysis of a representative set of the given cinematographic work and are consolidated through a dialogue with the thought of the filmmakers Jorge Furtado and Giba Assis Brasil, made concrete using texts and interviews; moreover, the theoretical application of the categories of the cinematic storytelling (especially David Bordwell) and of the concept of contemporary (especially Hans Ulrich Gumbrecht) in regard to the analysis made are presented, in order to comprehend and to describe how the expression of present time and space are configured in the Jorge Furtado’s film style. Keywords: Jorge Furtado; filmic analysis; forms; expressive categories; contemporary film style.

Page 7: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 1. .................. 51

Figura 2 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 2. .................. 51

Figura 3 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 3 ................... 51

Figura 4 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 4 ................... 51

Figura 5 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 5. .................. 51

Figura 6 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 6. .................. 51

Figura 7 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 7. .................. 51

Figura 8 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 8. .................. 51

Figura 9 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 9. .................. 52

Figura 10 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 10. ............. 52

Figura 11 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 11. ............. 52

Figura 12 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 12. ............. 52

Figura 13 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame13................ 52

Figura 14 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 14. ............. 52

Figura 15 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 15. ............. 52

Figura 16 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 16. ............. 53

Figura 17 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 17. ............. 53

Figura 18 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 18. ............. 53

Figura 19 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 19. ............. 53

Figura 20 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 20. ............. 54

Figura 21 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 21. ............. 54

Figura 22 - Ilha das Flores. Frame 1. ........................................................... 55

Figura 23 - Ilha das Flores. Frame 2. .......................................................... 55

Figura 24 - Ilha das Flores. Frame 3. ........................................................... 55

Figura 25 - Ilha das Flores. Frame 4. ........................................................... 55

Figura 26 - Ilha das Flores. Frame 5. ........................................................... 55

Figura 27 - Ilha das Flores. Frame 6. ........................................................... 55

Figura 28 - Ilha das Flores. Frame 7. ........................................................... 56

Figura 29 - Ilha das Flores. Frame 8. ........................................................... 56

Figura 30 - Ilha das Flores. Frame 9. ........................................................... 56

Page 8: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

Figura 31 - Ilha das Flores. Frame 10. ......................................................... 56

Figura 32 - Ilha das Flores. Frame 11. ......................................................... 56

Figura 33 - Ilha das Flores. Frame 12. ......................................................... 56

Figura 34 - Ilha das Flores. Frame 13. ......................................................... 56

Figura 35 - Ilha das Flores. Frame 14. ......................................................... 56

Figura 36 - Ilha das Flores. Frame 15. ......................................................... 57

Figura 37 - Ilha das Flores. Frame 16. ......................................................... 57

Figura 38 - Ilha das Flores. Frame 17. ......................................................... 57

Figura 39 - Ilha das Flores. Frame 18. ......................................................... 57

Figura 40 - Ilha das Flores. Frame 19. ......................................................... 57

Figura 41 - Ilha das Flores. Frame 20. ......................................................... 57

Figura 42 - Ilha das Flores. Frame 21. ......................................................... 58

Figura 43 - Ilha das Flores. Frame 22. ......................................................... 58

Figura 44 - Ilha das Flores. Frame 23. ......................................................... 58

Figura 45 - Ilha das Flores. Frame 24. ......................................................... 59

Figura 46 - Ilha das Flores. Frame 25. ......................................................... 59

Figura 47 - Ilha das Flores. Frame 26. ......................................................... 59

Figura 48 - Ilha das Flores. Frame 27. ......................................................... 59

Figura 49 - Ilha das Flores. Frame 28. ......................................................... 59

Figura 50 - Ilha das Flores. Frame 29. ......................................................... 59

Figura 51 - Ilha das Flores. Frame 30. ......................................................... 59

Figura 52 - Ilha das Flores. Frame 31. ......................................................... 59

Figura 53 - Ilha das Flores. Frame 32. ......................................................... 59

Figura 54 - Ilha das Flores. Frame 33. ......................................................... 59

Figura 55 - O sanduíche. Frame 1. ............................................................... 61

Figura 56 - O sanduíche. Frame 2. ............................................................... 61

Figura 57 - O sanduíche. Frame 3. ............................................................... 61

Figura 58 - O sanduíche. Frame 4. ............................................................... 61

Figura 59 - O sanduíche. Frame 5. ............................................................... 61

Figura 60 - O sanduíche. Frame 6. ............................................................... 62

Figura 61 - O sanduíche. Frame 7. ............................................................... 62

Figura 62 - O sanduíche. Frame 8. ............................................................... 62

Figura 63 - O sanduíche. Frame 9. ............................................................... 62

Figura 64 - O sanduíche. Frame 10. ............................................................. 62

Page 9: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

Figura 65 - O sanduíche. Frame 11. ............................................................. 62

Figura 66 - O sanduíche. Frame 12. ............................................................. 63

Figura 67 - O sanduíche. Frame 13. ............................................................. 63

Figura 68 - O sanduíche. Frame 14. ............................................................. 63

Figura 69 - O sanduíche. Frame 15. ............................................................. 63

Figura 70 - O sanduíche. Frame 16. ............................................................. 63

Figura 71 - O sanduíche. Frame 17. ............................................................. 63

Figura 72 - O homem que copiava. Frame 1. ............................................. 64

Figura 73 - O homem que copiava. Frame 2. ............................................. 64

Figura 74 - O homem que copiava. Frame 3. ............................................. 64

Figura 75 - O homem que copiava. Frame 4. ............................................. 65

Figura 76 - O homem que copiava. Frame 5. ............................................. 65

Figura 77 - O homem que copiava. Frame 6. ............................................. 65

Figura 78 - O homem que copiava. Frame 7. ............................................. 65

Figura 79 - O homem que copiava. Frame 8. ............................................. 66

Figura 80 - O homem que copiava. Frame 9. ............................................. 66

Figura 81 - O homem que copiava. Frame 10. ........................................... 66

Figura 82 - O homem que copiava. Frame 11. ........................................... 66

Figura 83 - O homem que copiava. Frame 12. ........................................... 66

Figura 84 - O homem que copiava. Frame 13. ........................................... 66

Figura 85 - O homem que copiava. Frame 14. ........................................... 67

Figura 86 - O homem que copiava. Frame 15. ........................................... 67

Figura 87 - O homem que copiava. Frame 16. ........................................... 67

Figura 88 - O homem que copiava. Frame 17. ........................................... 67

Figura 89 - O homem que copiava. Frame 18. ........................................... 67

Figura 90 - O homem que copiava. Frame 19. ........................................... 67

Figura 91 - O homem que copiava. Frame 20. ........................................... 68

Figura 92 - O homem que copiava. Frame 21. ........................................... 68

Figura 93 - O homem que copiava. Frame 22. ........................................... 68

Figura 94 - O homem que copiava. Frame 23. ........................................... 68

Figura 95 - O homem que copiava. Frame 24. ........................................... 68

Figura 96 - O homem que copiava. Frame 25. ........................................... 69

Figura 97 - O homem que copiava. Frame 26. ........................................... 69

Figura 98 - O homem que copiava. Frame 27. ........................................... 69

Page 10: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

Figura 99 - O homem que copiava. Frame 28. ........................................... 69

Figura 100 - O homem que copiava. Frame 29. ......................................... 70

Figura 101 - O homem que copiava. Frame 30. ......................................... 70

Figura 102 - O homem que copiava. Frame 31. ......................................... 70

Figura 103 - O homem que copiava. Frame 32. ......................................... 70

Figura 104 - O homem que copiava. Frame 33. ......................................... 71

Figura 105 - O homem que copiava. Frame 34. ......................................... 71

Figura 106 - O homem que copiava. Frame 35. ......................................... 71

Figura 107 - O homem que copiava. Frame 36. ......................................... 71

Figura 108 - O homem que copiava. Frame 37. ......................................... 71

Figura 109 - O homem que copiava. Frame 38. ......................................... 71

Figura 110 - O homem que copiava. Frame 39. ......................................... 72

Figura 111 - O homem que copiava. Frame 40. ......................................... 72

Figura 112 - O homem que copiava. Frame 41. ......................................... 72

Figura 113 - O homem que copiava. Frame 42. ......................................... 72

Figura 114 - O homem que copiava. Frame 43. ......................................... 72

Figura 115 - O homem que copiava. Frame 44. ......................................... 72

Figura 116 – Saneamento básico, o filme. Frame 1. ................................ 73

Figura 117 – Saneamento básico, o filme. Frame 2. ................................. 73

Figura 118 – Saneamento básico, o filme. Frame 3. ................................. 74

Figura 119 – Saneamento básico, o filme. Frame 4. ................................. 74

Figura 120 – Saneamento básico, o filme. Frame 5. ................................. 74

Figura 121 – Saneamento básico, o filme. Frame 6. ................................. 74

Figura 122 – Saneamento básico, o filme. Frame 7. ................................. 74

Figura 123 – Saneamento básico, o filme. Frame 8. ................................. 75

Figura 124 – Saneamento básico, o filme. Frame 9. ................................. 75

Figura 125 – Saneamento básico, o filme. Frame 10. ............................... 75

Figura 126 – Saneamento básico, o filme. Frame 11. ............................... 75

Figura 127 – Saneamento básico, o filme. Frame 12. ............................... 75

Figura 128 – Saneamento básico, o filme. Frame 13. ............................... 75

Figura 129 – Saneamento básico, o filme. Frame 14. ............................... 76

Figura 130 – Saneamento básico, o filme. Frame 15. ............................... 76

Figura 131 – Saneamento básico, o filme. Frame 16. ............................... 76

Figura 132 – Saneamento básico, o filme. Frame 17. ............................... 77

Page 11: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

Figura 133 – Saneamento básico, o filme. Frame 18. ............................... 77

Figura 134 – Saneamento básico, o filme. Frame 19. ............................... 77

Figura 135 – Saneamento básico, o filme. Frame 20. ............................... 77

Figura 136 – Saneamento básico, o filme. Frame 21. ............................... 78

Figura 137 – Saneamento básico, o filme. Frame 22. ............................... 78

Figura 138 – Saneamento básico, o filme. Frame 23. ............................... 78

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO - NO LIMITE DAS FORMAS: A CONFIGURAÇÃO DO CONTEMPORÂNEO NO ESTILO DE CINEMA DE JORGE FURTADO ..................... 14

1 UMA ‘BOA HISTÓRIA’, IMPUREZAS E MULTIRREFERÊNCIAS ................. 18

1.1 O prazer do jogo dramático. O novo na repetição. Cinema em potencial. 19

1.2 Palavra, imagem, engano e fluxo de consciência .................................. 22

1.3 Um filme, um mar de filmes e o ar do tempo. .......................................... 25

2 A EXPERIÊNCIA COM OS LIMITES DAS FORMAS FÍLMICAS – A NARRATIVA E O CONTEMPORÂNEO ............................................................................. 31

2.1 Ilusionista e anti-ilusionista ............................................................................ 33

2.2 Os elementos da narrativa clássica ............................................................. 34

2.3 Foco narrativo: a narração de dentro ........................................................... 35

2.4 O preso Dorival e o sentido contingente ..................................................... 37

2.5 O hibridismo narrativo em Barbosa e A Matadeira .................................... 38

2.6 A paródia em Ilha das Flores e os enganos em O Sanduíche ................ 40

2.7 A citação do Cinema de Bordas em Saneamento básico, o filme .......... 43

2.8 Simulacros, autorreflexão, jogos narrativos e bricolagem em O homem que copiava ......................................................................................................................... 45

2.9 Os pressupostos de base para a análise .................................................... 49

3 A ANÁLISE DOS FILMES DE JORGE FURTADO ........................................... 50

3.1 Relação dos curtas e longas analisados ..................................................... 50

3.1.1 O dia em que Dorival encarou a guarda .............................................. 50

3.1.2 Ilha das Flores .......................................................................................... 54

3.1.3 O sanduíche .............................................................................................. 60

3.1.4 O homem que copiava ............................................................................ 64

3.1.5 Saneamento básico, o filme ................................................................... 73

3.2 Sob o crivo da análise fílmica ........................................................................ 78

3.2.1 O espectador nos pormenores das histórias e roteiros ..................... 78

3.2.2 O simulacro, o hiperaudiovisual, a paródia, o sério e a mente fragmentada dos personagens .................................................................................... 80

3.2.3 A representação representada e o fluxo de consciência .................. 83

3.2.4 Diverso e criativo: mistura de tudo ........................................................ 85

Page 13: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

CONCLUSÃO - UM OLHAR REUNIFICADOR NAS MESCLAS ....................... 86

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 89

Page 14: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

14

INTRODUÇÃO - NO LIMITE DAS FORMAS: A CONFIGURAÇÃO D O CONTEMPORÂNEO NO ESTILO DE CINEMA DE JORGE FURTADO

Os filmes do roteirista e diretor Jorge Furtado (Porto Alegre, Brasil, 1959), com

importância alcançada junto a festivais, crítica e público, vêm apresentando, em

profícua e exitosa produção, desde os primeiros curtas-metragens (CM) dos anos 80

do século XX, aos longas-metragens (LM) iniciados nos anos 2000, um estilo próprio

que enseja reflexões diversas sobre as formas do cinema no contexto da cultura

contemporânea.

O cinema tem por parâmetro a estrutura de representação consagrada, que

opera a construção de uma cena naturalizada, como se existisse por si mesma e não

houvesse instância de produção do sentido. As rupturas contemporâneas fazem a

quebra da parede de invisibilidade da construção do filme, mantendo, porém,

diferentemente das rupturas modernas, a intenção do diálogo com o público em obras

narrativas.

No ambiente contemporâneo com o qual os filmes de Furtado dialogam,

tomando a descrição de Gumbrecht (1998), o presente se dilata, as teorias capazes

de explicar todos os fenômenos são abandonadas e o espaço é povoado por

representações com tênues referências aomundo externo; é quando a ideia de

superioridade unificadora do espírito sobre a matéria e a centralidade da interpretação

sobre os sentidos profundos do que é expresso na superfície não mais prevalecem. A

ideia de sentido prévio e unificado é substituída pela contextualização das condições

da emissão e da recepção, e o sentido, assim, passa a ser contingente.

O estilo, em conceito trazido de Bordwell e Thompson (2013), relaciona-se aos

procedimentos reiterados no uso das formas do cinema na construção do filme e no

conjunto da obra do realizador. As principais técnicas do cinema disponíveis para os

arranjos formais expressivos que configuram estilos estão compreendidas na narrativa

e na mise-en-scène.

Os filmes em questão se apresentam de forma múltipla: são narrativos,

amparados na “suspensão provisória da incredulidade’’, quando voltados a contar

uma boa história para o interesse do espectador envolvido com a obra, conforme

Furtado e Assis Brasil (2014), mas, também, marcadamente híbridos, autoconscientes

e anti-ilusionistas nas estratégias narrativas que desenvolvem.

Page 15: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

15

Entre os curtas-metragens, já o filme de estreia, O temporal (CM, 1984),

inovador à época, narra com humor e hibridismo formal a história da noite em que falta

luz durante uma festa. Em O dia em que Dorival encarou a guarda (CM, 1986) - sobre

o preso que quer tomar um banho, um filme narrativo, mas híbrido nas formas e

gêneros-, a contingência é um fator relevante: cenas de clássicos do cinema ganham

novos sentidos e o espectador fica incluído. Em Ilha das Flores (CM, 1989), a trajetória

de um tomate podre na forma de uma paródia de documentário clássico; o filme lança

um estilo reconhecido e posteriormente muito reproduzido no uso do off e da

montagem. As formas expressivas recebem diferentes usos também no curta de

ficção, documentário e falso documentário A matadeira (CM, 1994), cuja ênfase está

na representação quando encena a tomada da histórica Canudos em um armazém no

centro de Porto Alegre. Estruturado num jogo narrativo e autoreflexivo, O

Sanduíche (CM, 2000) passa por diferentes camadas de enunciação a partir do

diálogo de um casal. O estilo aparece com força em Velásquez e a teoria quântica da

gravidade (CM, 2010): off, hibridismo, representações e edição aceleradas, humor e

autoreflexão, a partir do quadro As meninas (Diego Valazquez, 1656).

Os longas-metragens de estreia,Houve uma vez dois verões (LM, 2002) e Meu

tio matou um cara (LM, 2004), são dramas adolescentes, mesclados com comédia,

numa lógica similar ao ambiente de jogos que ilustra os planos, e têm na elaboração

dos roteiros os pontos fortes. O homem que copiava (LM, 2003) é uma história de

amor entre jovens urbanos em peripécias possíveis num mundo dominado por

imagens sem referências (simulacros), em fluxo, num filme que sublinha a

autoconsciência e alterna com engenhosidade os pontos de vista. A produção de

sentido ocupa lugar central na trama e na narrativa de Saneamento básico, o filme

(LM, 2007): sobre uma comunidade interiorana às voltas com um problema de esgoto

e com a produção de cinema de bordas.

Os filmes longas-metragens mais recentes são o documentário O Mercado de

notícias (LM, 2013), que, híbrido entre encenação teatral e intervenção do diretor, faz

uma reflexão séria através de entrevistas sobre o jornalismo brasileiro, e o primeiro

drama, Real beleza (LM, inédito), que se difere dos demais, pois não é híbrido e nem

autoconsciente, mas estrutura-se também pelo tema do olhar, de comparações dos

valores das coisas, entre o clássico e o transitório.

Nesses filmes, representativos da obra do diretor, há uma presença importante

de formas e categorias identificadas com o cinema contemporâneo, as quais se

Page 16: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

16

articulam em torno do eixo da visibilidade da enunciação, porém em narrativas

construídas com a intenção de provocar a participação do espectador, características

bastante visíveis no cinema de Furtado.

Partindo de um diálogo com o pensamento dos realizadores e da observação

dos filmes frente a teorias cinematográficas e do contemporâneo para a localização

dos pressupostos de base, a análise fílmica deste trabalho está voltada para a

localização das formas que sustentam as categorias expressivas responsáveis pela

configuração do estilo da contemporaneidade na obra de Jorge Furtado.

O material que compõe o capítulo primeiro da dissertação é elaborado a partir

de textos, e-mails trocados e entrevistas realizadas para este trabalho com Jorge

Furtado1, e com o montador dos filmes, Giba Assis Brasil2, na Casa de Cinema de

Porto Alegre3, produtora da qual são fundadores e sócios. Nesse diálogo com o

pensamento dos realizadores, aparecem como ideias centrais a ênfase nas histórias

de base e na narrativa, os conceitos formais que funcionam como estruturas dos

filmes, o humor, as impurezas, as múltiplas citações e referências, a variedade e a

diversidade no tipo de cinema que propõem.

No segundo capítulo, observando os filmes, é desenvolvido um quadro teórico

sobre as categorias expressivas do cinema, com subsídios de teoria da narrativa,

frente às características do tempo e das formas do contemporâneo, a fim de

estabelecer os pressupostos de base para a análise fílmica.

1Além da multi-premiada atuação no cinema, um autodidata que iniciou quatro cursos, mas não se graduou, Jorge Furtado também faz televisão, especialmente como colaborador de Guel Arraes na Rede Globo, é escritor, com 8 títulos lançados, articulista e pensador com textos e conferências publicados. A filmografia de Furtado está registrada em: http://www.imdb.com/name/nm0299134/. 2Giba Assis Brasil (Porto Alegre, Brasil, 1957), graduado em jornalismo pela UFRGS, é montador, roteirista, professor universitário, conferencista e militante do cinema com intensa atuação e expressão nacional. Também dirigiu, entre outros, Deu pra ti anos 70 (LM, super 8 mm, 1981) e Verdes anos (LM, 35 MM, 1984), dois filmes que são precursores do cinema que desenvolvem. Ao se falar em cinema de Jorge Furtado, fica intrínseca a participação intelectual dos colabores próximos, entre os quais, a contribuição reconhecida de Giba Assis Brasil. A filmografia de Assis Brasil está registrada em: http://www.imdb.com/name/nm0039856/.

3A Casa de Cinema de Porto Alegre é uma produtora criada em 1987, originalmente por 11 sócios que dividiam o mesmo espaço, no intuito de colaboração e produções conjuntas. Desde então, a produtora teve uma atuação ampla e intensa em cinema e televisão, angariando cerca de 300 prêmios em Festivais nacionais e internacionais. Hoje são quatro sócios: além de Furtado e Assis Brasil, a roteirista e diretora Ana Luiza Azevedo e a produtora Nora Goulart. Informações sobre a produtora podem ser encontradas em: http://www.casacinepoa.com.br/os-filmes/principal.

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17

O terceiro capítulo tem duas partes: primeiro, são indicados frames

representativos de cinco filmes que abrangem um período de 21 anos – oscurtas O

dia em que Dorival encarou a guarda (1986), Ilha das Flores (1989) e O sanduíche

(2000), e os longas O homem que copiava (2003) e Saneamento básico (2007); a

seguir, é apresentado o texto de análise dos filmes.

Nesse caminho, é possível estabelecer, na conclusão, quais são e como

funcionam as categorias formais do contemporâneo presentes nos filmes de Jorge

Furtado.

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18

1 UMA ‘BOA HISTÓRIA’, IMPUREZAS E MULTIRREFERÊNCIAS

Neste capítulo, procuro destacar e organizar algumas das ideias expressas em

textos publicados e inéditos de Jorge Furtado4 e nas entrevistas que fiz com ele e com

Giba Assis Brasil, que irei relacionar ao estudo teórico e análise fílmica nos capítulos

subsequentes no intuito de compreender o estilo formal do diretor.

Quais são as ideias norteadoras do estilo do cinema de Jorge Furtado?

Após a entrevista, na saída da Casa de Cinema de Porto Alegre, o Giba Assis

Brasil provoca: “o Jorge costuma dizer que estilo é preguiça do cineasta” (ASSIS

BRASIL, 2014). Eles afirmam não se preocuparem com a forma e não se deterem no

estilo e na interpretação do que fizeram, vindo a descobrir as possíveis leituras sobre

os filmes nos textos posteriores escritos por terceiros (de fato, guardam e citam vários

artigos sobre os filmes); porém, fazem reflexões importantes, não apenas sobre o

cinema e os filmes que realizam, mas também sobre a cultura e o tempo atuais, sobre

o que falam em momentos diferentes.

Os realizadores reiteram que partem sempre de uma boa história, para depois

pensarem na melhor forma narrativa: “A situação ficcional vem em primeiro lugar,

depois pensamos nas imagens, no modo de narrar” (ASSIS BRASIL, 2014). Partem

de boas histórias, sobre as quais há clareza, e também está presente sempre de modo

pronunciado o interesse na comunicabilidade da obra5, utilizando certas estratégias

características. Nesse sentido, num tom quase confessional, Assis Brasil explica que

se decidiram desde cedo a fazer algo que até pode ser autoral, sobre o que não

haveria interesse em sublinhar, mas “nunca para desprezar e excluir o espectador”

(ASSIS BRASIL, 2014). Desse modo, nos filmes, embora com um pronunciado sentido

4Procuro estabelecer um diálogo com o pensamento dos realizadores a partir de cinco textos de Furtado: “O Sujeito Extra-ordinário e a mimese camuflada” (em O cinema do real, 2005); “Quando sonhamos, sonhamos filmes” (em Os filmes da minha vida 4, O real e o imaginário, 2012); “Anotações sobre memória, cinema e psicanálise” (participação em curso de extensão em Cinema e Psicanálise, na PUC/RS, 2006) e “Onze ideias e meia” (publicado em A face escondida da criação, 2005), cujos originais foram-me enviados pelo autor, e “Adaptação literária para cinema e televisão” (palestra realizada na X Jornada de Literatura de Passo Fundo, 2003, disponível na internet); também a partir de e-mails trocados e entrevistas realizadas com Jorge Furtado (em 12/11/14 ) e com Giba Assis Brasil (em 16/10/2014), na produtora Casa de Cinema de Porto Alegre. Porém, é bom mencionar que, contemporâneo, conterrâneo e colega de profissão, acompanho o pensamento e a produção de ambos desde os anos 80.

5“Comunicabilidade’ conforme David Bordwell, O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos (2005), que é visto no capítulo seguinte.

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formal, a forma vem depois da história; porém, também é visível a importância da

busca do engajamento do público no trabalho detalhado das construções narrativas

que executam.

Assim, dizem que a análise caberia ao analista enão a eles, mas, nas falas

(bem como nos filmes) sempre repletas de citações diversas, oferecem pistas

importantes às análises possíveis.

Registrada o que parece ser uma ressalva dos realizadores, de que o cinema

que fazem não coloca o interesse formal acima da história e da comunicabilidade com

o espectador, é bastante possível apontar traços que marcam um estilo formal definido

desde os primeiros curtas, dos anos 1980, presente nos trabalhos de televisão6 e no

conjunto de longas iniciadonos anos dois mil, no qual aparecem, por um lado, fortes

marcas da narrativa clássica, e, por outro, características diversas de ruptura com

essa forma predominante. Nessas realizações, há uma articulação expressiva

inovadora em prol da narrativa.

1.1 O prazer do jogo dramático. O novo na repetição . Cinema em potencial.

No texto “O sujeito extra-ordinário e a mimese camuflada”7, Furtado diz que,

numa separação ideal, mas impossível, “porque documentário e ficção são ‘gêmeos

siameses”, entre Lumière e Méliès8, “sou Méliès de carteirinha, o realismo nunca me

enganou” (FURTADO, 2005a, p. 99). De fato, mesmo quando faz documentários,

esses são paródias, híbridos que misturam ficção e diversos tipos de expressões,

filmes de classificação dúbia9. No escopo da dissertação, atento para a expressa

6Para a televisão, podem ser destacadas as colaborações de Furtado como roteirista nas séries da Rede Globo Agosto (1993), Memorial de Maria Moura (1994), Os normais (2003), A cidade dos homens (2002/05), Antônia (2006), Ó paí, Ó (2008/09), a criação e direção de Cena aberta (2003), cuja proposta era baseada no estilo de autorreflexão que o realizador propõe, e Doce de mãe (2012). 7A partir de mesa que dividiu com Ismail Xavier e Eduardo Coutinho, nas Conferências da X edição do “É tudo verdade”, publicado em O cinema do real (2005a).

8Referência aos Irmãos Lumière e à Geoge Méliés, precursores do cinema, aos primeiros creditado o início do documentário, ao segundo, pouco depois, o da ficção.

9Como tema paralelo, também se refere à impossibilidade ou irrelevância da separação nítida entre documentários e ficções. Nesse sentido, embora Ilha das flores tenha se tornando mundialmente conhecido como tal não é, com acerto, considerado um filme documentário pelos realizadores. Além disso, e em aparente contradição, como marca de todos os trabalhos, em meio à comédia e jogo lúdico narrativo, piadas e ficção, há sempre um discurso sério, característica que também é arrolada como de estilo.

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vocação ficcionista do realizador, cuja ênfase costuma estar nas histórias básicas,

muitas vezes com arquétipos, nas formas do roteiro e da narrativa, articulando o

clássico e o contexto contemporâneo nos filmes que realiza.

Entre as citações, há uma passagem do psicanalista, médico e pensador Carl

Gustav Jung (1875/961) que observa estruturas arquetípicas comoparecendo “leitos

secos, cuja forma determina a característica do rio” (FURTADO, 2005a, p. 101). Esta

é uma imagem que se coaduna à visão de forma e de estilo de cinema trabalhados

na dissertação, que se refere a certos padrões consagrados. O realizador afirma que

segue os padrões narrativos da estrutura clássica10, em três atos [conforme Joseph

Campbell (O herói de mil faces) e Cristopher Vogler (A jornada do escritor)]: a jornada

do herói que recebe um chamado à aventura, que sai do seu mundo comum para ir a

outro especial, em busca de um objetivo (o amor da mocinha, o prêmio, vencer o

inimigo) - a estrutura clássica, que entrelaça amor e aventura. Os filmes em estudo,

voltados ao público, usam as estruturas arquetípicasda ficção, “cuja suspensão da

descrença permite usufruir com segurança o prazer do jogo dramático” (FURTADO,

2005a, p. 101),mas essa característica, embora sempre presente, não explica

suficientemente os filmes.

Desde logo, como aspecto central unido à narratividade, também fica

evidenciada a inserção consciente em um ambiente cultural que, em potência, mistura

tudo que já foi feito, presentifica e atualiza qualquer expressão pregressa. As

referências e elementos são de todo o tipo de arte e cultura: literatura, cinema, teatro,

histórias em quadrinhos, televisão, artes gráficas variadas, estatuária, colagens,

reflexões sobre a própria narrativa, filosofia, ironia, discurso sério, documentários,

história, etc.; apresentando, assim, um aspecto muito diversificado na composição do

hibridismo como marca e a serviço da narração da história base.

Sobre esse perfil muito destacado na obra, em Onze Ideias e Meia, é enfatizada

a raridade e mesmo virtual impossibilidade de uma ‘ideia nova’ no campo da cultura

10Em “O sujeito extra-ordinário e a mimese camuflada” (2005a, p. 98 e ss), Furtado discorre sobre o conceito de clássico: remete a janela do quadro de cinema (1/1,66) às proporções do Parthenon; pelo dicionário: diz respeito à artes dos gregos e romanos antigos, o sóbrio e simples, o modelo e exemplo; aquilo cujo valor é confirmado pelo tempo; “um bom filme antigo”. Quando o cinema clássico é o parâmetro, é pertinente aos cânones pré-estabelecidos, observados na “estrutura e nos procedimentos narrativos do cinema americano dos últimos 50 anos”, descritos por Campbell e Vogler. Uma abordagem sobre a estrutura narrativa clássica em cinema é mais detalhada no capítulo seguinte deste trabalho.

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(tudo que não é natureza)11. O autor manifesta-se contra a originalidade, e, na

ausência de ideias novas, diz: “o melhor a fazer é tentar conhecer e misturar ideias já

nascidas” (FURTADO, 2005b). É um princípio que cabe aos filmes, quando segue:

“de preferência uma mistura de forma e proporção incomum ou, melhor ainda, inédita,

a ponto desta mistura poder até ser chamada de nova” (FURTADO, 2005b). Na

repetição, da qual não há escape, é que está o novo da obra, mas complementa com

ironia: “embora provavelmente os gregos já tenham tido uma ideia igualzinha, e antes

deles os chineses e os hindus”. No mesmo texto, sublinha que, enquanto na ciência

novas ideias transformam as anteriores em ‘‘refugo’’, “na arte (...) criar e transformar

são sinônimos. A arte não é substitutiva, não se desinventa nem se perde”

(FURTADO, 2005b). Assim, o diretor sugere que é possível identificar um pouco de

tudo em tudo que o homem faz. Esse ambiente está no modo híbrido, nas múltiplas

citações, e justifica a liberdade formal, elementos com osquais os filmes são

estruturados, mesmo que perfeitamente amarrados às formas narrativas.

Nas bases percebidas do cinema de Furtado, é registrado que, enquanto

citação, autoreflexão, mas, sobretudo, como estrutura que constrói e segue, a

literatura e a dramaturgia clássicas12 estão presentes de modo destacado, desde as

adaptações, nos primeiros curtas, nos longas e também nos textos e falas aqui

apresentadas. Em Osujeito extra-ordinário e a mimese camuflada, Furtado enuncia

comparações entre os clássicos da literatura e modos de representar no cinema13.

O diretor refere que a maior formação que tem (como autor e realizador)

provém do cinema, mas, enquanto esse tem pouco mais de cem anos, a literatura é

11As citações de “Onze ideias e meia” foram obtidas do original, enviado pelo autor. Por essa razão, deixam de vir com página remissiva, embora, na bibliografia, esteja citada a posterior publicação do artigo no livro A face escondida da criação, de Clara Pechansky (Ver Furtado, 2005b, nas referências bibliográficas). 12Os autores são profícuos leitores e conhecedores de filmes, se percebe pelas citações nos trabalhos e falas. Furtado é especialista em Willian Shakespeare, cuja obra diz ter dedicado dez anos de exclusiva leitura, da qual é tradutor, e coloca nas falas e quase sempre nos filmes que faz; seus personagens parecem dizer: “quem está produzindo essas imagens que estão acontecendo? Quem possui estas imagens? "Who’s there?", "Quem está aí?", como na instigante fala inicial de Hamlet, uma peça que é a síntese extraordinariamente eloqüente da perplexidade do ser humano com as origens de sua condição". (FURTADO, “Anotações sobre memória, cinema e psicanálise”). 13Na participação no É tudo verdade (ver FURTADO, 2005a. P. 103 e ss), Furtado relaciona Homero, Petrônio, Dante, Santo Agostinho, Rabelais, Montaigne, Shakespeare, Cervantes, Molière, Voltaire, Saint-Simon, Goethe, Stendhal, Balzac, Flaubert, Brecht a Resnais, Godard, Welles, Allen, Tarantino, Herzog, Pereira dos Santos, Joaquim Pedro, Monty Python, Gutierrez Alea, Scorsese, Capra, Fellini, Buñel, Coutinho, Bergman, Kurosawa, Scola, Wilder, Altman, Janete Clair, Huston, Cunningham, Tarkovsky e Rocha, o que confirma a diversidade de referências ao estilo que desenvolve.

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milenar, mais sofisticada, porque entra no inconsciente do personagem, e fonte

principal de referência (FURTADO, 2005a, p.102).

Porém, o cinema do autor, híbrido, além de se estruturar em modelos narrativos

consagrados, é contemporâneo também na literatura em que se inspira. Na entrevista,

informa: “... quando eu apresentei para os meus colegas o Ilha das flores (em projeto

antes da produção) a minha referência principal era o (escritor norte americano Kurt)

Vonnegut” (FURTADO, 2014), que integra o grupo OuLiPo, Oficina de Literatura em

Potencial, cuja marca é o estabelecimento de comandos à narrativa, limites

autoimpostos, regras que balizam o texto, apenas por jogo, espécie de exercício

intelectual14. O autor afirma que articula “essa brincadeira de narrativa, uma

autoimposição, no caso do Ilha das Flores: um filme sem som direto, só com narração;

impõe que são dois fotógrafos, que nem se falarão, para criar a menor unidade

possível” (FURTADO, 2014).

Essa característica tem algo de mecânico, aleatório, padronizador, que Furtado

aponta em Ilha das Flores (CM, 1989) e que corresponderia a uma certa falta de lógica

do computador (ainda uma novidade à época do filme), comparada à hoje: “coloca no

Google a palavra Judeu, e vai aparecer desde o holocausto, até qualquer coisa”;nesse

sentido, antecipou a tecnologia: “o Ilha tem um pouco isso. Eu disse assim, qual é a

imagem que a gente tem de tomate? Isso, isso e isso” (FURTADO, 2014).

O sistema, espécie de jogo narrativo, também é lembrado por Assis Brasil, em

O Dia em que Dorival encarou a guarda (1986), no qual cada personagem queria estar

em outro lugar; sobre essa espécie de norma narrativa, o filme é construído.

1.2 Palavra, imagem, engano e fluxo de consciência

Também é notável, na visão de Furtado, mesmo fortemente herdeira das

formas narrativas consagradas, na relação com a literatura, a transposição para as

formas expressivas do cinema como um pressuposto. Isso é tratado de modo didático

e pontual na fala do autor sobre adaptações, na X Jornada Nacional de Literatura de

Passo Fundo, que enumera as diferenças: “na linguagem audiovisual toda a

informação deve ser visível ou audível” (FURTADO, 2003); a principal consequência

14Assis Brasil como referências, de Kurt Vonnegut, cita os livros Slaughterhouse-Five (Matadouro 5) de 1969, Breakfast of Champions (Café-da-Manhã dos Campeões) de 1973. Furtado ainda, do mesmo grupo, nomeia os escritores Georges Perec, Raymond Queneau, Italo Calvino e Umberto Eco.

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disso é a virtual impossibilidade do roteiro referir diretamente ao fluxo de consciência

do personagem, frequente na literatura, e a vedação ao uso de palavras abstratas:

“Palavras como pensa, lembra, esquece, sente, quer ou percebe, presentes em

qualquer romance, são proibidas para o roteirista, que só pode escrever o que é visível

(FURTADO, 2003)”. Outra diferença destacada é o fato de a literatura se basear mais

no conhecimento prévio e imaginação própria do leitor, que monta a cena lida em sua

mente, enquanto que no cinema cabe ao realizador determinar quase tudo que

aparece e se escuta no filme: o aspecto, o modo de enquadrar, a ordem em que as

informações são reveladas, as cores etc.. “Lendo, cada leitor cria suas próprias

imagens, sem custos de produção e limites de realidade. É natural que se decepcione

quando veja as imagens criadas pelo cineasta e diga: ‘gostei mais do livro’”

(FURTADO, 2003). O tempo previamente determinado do filme, o evento ritualístico

compartilhado em que implica, o trabalho coletivo na realização, a soma de diversas

artes numa articulação única, os elementos específicos do enquadramento,

movimentos de câmera etc. compõem, na fala de Furtado, o que é próprio do cinema.

O modo de expressão do cinema, por um lado, é naturalizado: no ensaio

Anotações sobre memória, cinema e psicanálise, cita António Damásio ao afirmar que

o cinema é o que mais se aproxima da narrativa que ocorre na mente: “O que acontece

em cada plano, o enquadramento diferente de um assunto que o movimento da

câmera pode mostrar, o que se passa na transição de planos” (FURTADO, 2006) têm

equivalência à espécie de produção de imagens e sons internos.

Porém, por outro lado, o autor refere às limitações das imagens frente à palavra:

“Se é verdade que a narrativa por imagens é natural, também é verdade que a palavra

representa com maior exatidão a complexidade do pensamento humano...”

(FURTADO, 2006). Destaca, entre as limitações, que “a imagem não pode afirmar a

inexistência da coisa representada”, mesmo que René Magritte brinque com esta

impossibilidade em Isto não é um cachimbo, diz Furtado (2006). A outra característica

é que a imagem tende a expressar sentidos diversos e incertos. De fato, isso justifica

que a palavra ocupe um lugar de destaque no cinema de Furtado, mas a articulação

desse elemento, enquanto narrativa, se ampara no jogo possível pelo engano e acerto

presentes nas imagens e textos em diferentes contextos. Nesse jogo, imagens e

palavras não se confirmam nem se repetem e são elementos expressivos da narrativa.

As limitações fazem parte da forma expressiva.

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O engano da imagem é explicado em O sujeito extra-ordinário e a mimese

camuflada, no qual Furtado diz que o cinema (e a fotografia) cria uma maior ilusão de

realidade frente às outras artes porque se percebe que a imagem é feita na presença

de uma coisa corpórea; fica indicada a materialidade referencial. Mesmo com as

mudanças da produção em digital, que se intensificaram desde a fala de Furtado, essa

ligação ainda é bastante forte. “Na fotografia, e ainda mais no cinema, a imagem de

uma cama sempre leva a crer a existência de uma cama real e possível de ser

fotografada.” O dispositivo tecnológico cria a sensação de objetividade, Furtado se

posiciona: “Todos nós sabemos que essa não subjetividade é falsa. E quanto mais

elaborada se torna a linguagem cinematográfica mais aumenta a subjetividade”

(FURTADO, 2005a, p.107).

É na dubiedade dos sentidos que textos e imagens são articulados enquanto

elementos expressivos. A obra e o pensamento do realizador remetem a um estilo de

narrativa próprio do audiovisual contemporâneo, no qual o texto literário, mesmo tão

presente, não se sobrepõe. O texto, de par em par com a imagem, é transformado em

narrativa cinematográfica. O estilo no uso da palavra é outra marca da obra.

Em Anotações para um debate sobre cinema, memória e psicanálise, Furtado

cita o crítico Hélio Nascimento, que aponta Alain Resnais (cujas referências são

notáveis nos filmes de Furtado) como modelo no uso da palavra enquanto mais um

elemento do filme, com um papel na composição do plano (o que difere de um ainda

muito comum cinema de tipo literário).

Não obstantea frequência com que surge a comparação com a estrutura de

televisão15, as maiores influências do estilo de Furtado vêm do cinema.

15As maiores influências vêm do cinema, mas é preciso mencionar a frequente comparação do estilo com a estrutura de televisão. Furtado e Assis Brasil manifestam relação aparentemente paradoxal quanto à televisão, da qual também são realizadores. No texto Quando sonhamos, sonhamos filmes Furtado diz que nasceu no ano da televisão em Porto Alegre, 1959, a que assiste desde sempre. Assistiu muitas séries quando criança, e sempre com “a jornada do heroi chamado à aventura”: a estrutura clássica. Assis Brasil diz o mesmo, que assistiu centenas de filmes na TV. Mas quando é feita a comparação com a televisão, perguntam: que televisão? Porque em televisão há de tudo: drama, esporte, jornalismo, infantil, auditório, cinema etc. Assis Brasil responde assim: “a questão nem faz muito sentido pra mim, porque eu nunca entendi televisão como linguagem, e sim como veículo. De que tipo de programa de TV nós teríamos influência?” E pergunta: “É possível sustentar a sério que exista uma "linguagem televisiva", comum a todos esses formatos, mas separada da "linguagem cinematográfica?”) “E onde seria visível essa influência? Nos roteiros e na direção do Jorge? Na minha montagem? Na maneira como nós planejamos os filmes?” Assis Brasil, contundente, manifesta: “Há anos ouço isso de que o Ilha das flores teria uma montagem de TV, um ritmo de TV... Sinceramente, não sei o que isso significa. A colagem de imagens tem a ver com Monty Python, claro, mas nós conhecemos Monty Python pelo cinema” (ASSIS BRASIL, 2014). Nessa linha, talvez Ilha das Flores, cuja passagem do tempo tem transformado em um clássico, tenha mais influenciado do que sido influenciado pela televisão.

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1.3 Um filme,um mar de filmes eo ar do tempo.

No livro Os filmes da minha vida 4/O real e o imaginário, que tem por tema as

referências cinematográficas de diretores brasileiros, em seu depoimento “Quando

sonhamos, sonhamos filmes”, Furtado fala que teve influência de uma mistura de

todos os filmes que assistiu, alguns muito ruins, e, “certamente predominam

produções “hollywoodianas”, que obedecem às regras da jornada do herói, uma

aventura em busca de algo com um happy end” (FURTADO, 2012, p. 15 e ss); reitera-

se o modelo, presente no cinema e na televisão.

Diz que sempre assistiu a muitos filmes, desde criança, como programa de

entretenimento de fim de semana, no cinema Ritz, no bairro onde morava, mas aos

dezessete anos, quando estudava medicina na UFRGS, mudou o modo como

enxergava o cinema, a partir de duas grandes influências: “um filme e um oceano de

filmes” (FURTADO, 2012, p. 15), e largou a medicina.

O Diretor cita um filme em especial, Deu pra ti anos 70, (Super-8 mm, LM,

1981)16, realizado em Porto Alegre, com direção de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti

(Porto Alegre, Brasil, 1958). Uma narrativa já com hibridismos, que retrata os

costumes e conflitos de jovens urbanos da geração a que Furtado (que ainda não

iniciara como cineasta), Assis Brasil e amigos pertenciam - algo muito inovador e com

notável impacto: “A primeira vez que assisti (Deu pra ti anos 70) fiquei me procurando,

para ver se eu não aparecia em algum lugar, porque era tão parecido com a minha

vida, aquelas pessoas, aqueles jovens” (FURTADO, 2012, p. 16). Furtado afirma ter

assistido a esse filme várias vezes e percebido a, até então, inimaginável possibilidade

de fazerem filmes por eles mesmos, sobre a própria cidade e coisas próximas, nos

16Sobre Deu pra ti anos 70, que fez carreira com a cópia única super 8 mm, transcrevo dois comentários: "Os diretores souberam misturar na medida certa o regionalismo (o sotaque gaúcho dá ao filme um charme particular) e influências externas (homenagens a Fellini e Lelouch, especialmente o seu 'Toda uma vida'). Se for bem analisada, a estrutura do filme é extremamente complexa, dispensando os flash backs tradicionais para apresentar situações fragmentadas em épocas diferentes, usando como fio condutor um casal (Ceres e Marcelo) desde quando são meros conhecidos até descobrirem que se amam." (Rubens Ewald Filho, O ESTADO DE SÃO PAULO, 27/06/81) E "DEU PRA TI ANOS 70 constitui experiência singular na história do cinema brasileiro. É um dos melhores momentos de nossa produção juvenil. (...) Em torno de Marcelo e Ceres, amigos que se amam em silêncio, gravitam jovens que torcem pelo Inter (o filme abre-se em festa comemorativa do tricampeonato colorado), falam de sexo, freqüentam festinhas (cheias de bocomocos, gíria da época) e praias pouco ensolaradas para nossos padrões, preparam-se para o vestibular. (...) Ver o filme, com sua narrativa fragmentada, emotiva e sincera, é reencontrar atores e técnicos que povoaram os créditos dos filmes gaúchos nos anos 80 e 90." (Maria do Rosário Caetano, O ESTADO DE SÃO PAULO, 27/01/2002). Em http://www.casacinepoa.com.br.

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lugares que frequentavam, em Porto Alegre. A maioria dos filmes que fizeram, desde

então, se refere a esse ambiente, das coisas e costumes da própria cidade, sobre

pessoas muito reconhecíveis e, várias vezes, jovens [os longas Houve uma vez dois

verões (2002), Meu tio matou um cara (2004) e O homem que copiava (2003) têm o

mesmo tipo de ambientação, atualizada no tempo].

A outra influência decisiva, aos dezessete anos, citada por Furtado é “um

oceano de filmes”: os ciclos do antigo Cinema Bristol, no Bairro Bom Fim, nos anos

80, programados por Romeu Grimaldi (1939-1996). Furtado diz que, até então, nem

sabia que existiam diretores de filmes, e a partir daí, em ciclos semanais, assistia

vários de Kurosawa17, Forman, Fellini, Resnais etc., ciclos, por exemplo, sobre

Nouvelle-Vague, Cinema Novo, por temas ou diretores.

Nesse apanhado de referências cinematográficas fica evidenciada a influência

na diversidade das formas e estilos dos filmes que faz: “Foi uma mudança total, porque

o cinema hollywoodiano, como qualquer hegemonia, tende a se impor como a única

forma, em quetodas as histórias são mais ou menos as mesmas” (FURTADO, 2012,

p. 16). O estilo de Furtado articula essas duas ideias basilares: clássico, sensível ao

grande público, e diversificado nas formas: “E de repente eu vi uma infinidade de

filmes que não eram assim, eram muito diferentes disso... Isso me possibilitou pensar

que o cinema podia ser de muitas maneiras, não precisava ser de uma maneira só”

(FURTADO, 2012, p. 16).

O cinema, além do entretenimento, ganhou uma nova importância para o

diretor: “A partir dali comecei a prestar atenção no filme não como um entretenimento

de domingo, mas como uma forma de ver e pensar o mundo” (FURTADO, 2012, p.

16).

Em caráter evidentemente não exaustivo, Assis Brasil18 também lembra estilos

e formas cinematográficas em diversos autores e filmes. No que diz respeito à

alternância e conflitos de pontos de vista na narrativa, a influência de Akira Kurosawa

(1910/98), em Rashõmon, no qual a mesma história é contada várias vezes, mudando

17Furtado cita, especificamente, de Akira Kurosawa,(p 16) Viver (Ikiru, 1952), Dodeskaben – O caminho da vida (Dodes’ka-den, 1970), Rashomon (Rashõmon, 1950).

18Assis Brasil também menciona o curta, o qual conheceram no Festival de Gramado, A voz do Brasil, 1980, do paulista Walter Rogério, “cuja cena em que brinca com a dublagem é outra influência ao curta O dia em que Dorival encarou a guarda.”

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conforme diferentes pontos de vista de personagens que testemunham e relatam um

crime. Esse filme tem uma narrativa não convencional, que coloca a questão da virtual

falta de acesso à verdade unificadora e pura dos fatos. Uma forma similar aparece em

O homem que copiava, na troca da voz narrativa, ao fim, de André para Sílvia;

segundo o montador, os planos foram pensados e filmados para isso, embora

parcialmente adaptados na edição (ASSIS BRASIL, 2014).

Furtado se refere à força transformadora dos filmes: “Quando você entra no

cinema, daqui a pouco o mundo não existe mais, está ali dentro totalmente, mas nada

mais existe. Depois a luz se acende e voltamos à vida real, mas transformados", no

sentido da tragédia conforme Aristóteles: “uma máquina que te enlouquece e depois

te traz de volta, e isso acontece com o cinema. É impossível voltar a ser a mesma

pessoa depois de Ladrões de bicicleta19” (FURTADO, 2012, p. 17).

Numa lista de três filmes que mais o influenciaram, Furtado anota Nós que nos

amávamos tanto (C’eravamo Tanto Amati, 1974), do Ettore Scola, que conta a história

de 30 anos de amizade entre três homens italianos, ex-soldados da II Guerra,

apaixonados pela mesma mulher, cujo humor triste é uma característica com a qual

se identifica o diretor brasileiro: “É a melhor representação da vida, a vida não é só

uma tragédia, e também não é só uma comédia. A vida é uma comédia triste: a gente

ri, acha graça, mas morre no fim” (FURTADO, 2012, p. 19). O diretor, ainda sobre o

filme de Scola, chama a atenção para a inventividade da narrativa: “É todo contado

de trás para a frente, a primeira cena começa, congela e repete várias vezes”

(FURTADO, 2012, p. 19). O filme mistura teatro, embaralha o tempo, dirige-se ao

público, apresenta muitas invenções, lembra o autor20.

O segundo filme da lista apresentada pelo diretor é Noivo neurótico, noiva

nervosa (Annie Hall, Woody Allen, 1970). Furtado afirma ter sido marcado

19Ladri di Biciclette, filme italiano de 1948 dirigido por Vittorio De Sica. Furtado cita experiências marcantes como espectador em filmes como Corações e mentes (Hearts and minds, Peter Davis, 1974), Psicose (Psycho, Alfred Hitchcock, 1960), O iluminado (The Shining, Stanley Kubrick, 1980), entre outros.

20De Ettore Scola, menciona obras-primas como Um dia muito especial (Uma Giornada Particolare, 1977), Feios, sujos e malvados (Brutti, Sporchi e Cattivi, 1976) Rocco Papaleo (Permette? Rocco Papaleo, 1971). Furtado relata: “Fiz um episódio de A comédia da vida privada (série da TV Globo), chamado Apenas bons amigos, que era claramente inspirado no filme (Nós que nos amávamos tanto), são três amigos, apaixonados pela mesma mulher, que se conhecem na final da Copa de 1970... Quando o Scola veio ao Brasil (por meio de uma carta escrita pelo Giba), eu disse pra ele que iria mostrar um filme que eu havia feito que era plágio de um filme dele. Acho que ele gostou...” (FURTADO, 2012, p. 20).

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28

profundamente pela explosão de criatividade no modo de Allen em narrar o filme: ...

“não é do fim para o começo, nem do começo para o fim, nem do meio para o começo,

é organizado por núcleos dramáticos, como os encontros, os desencontros, as

separações, o momento mais feliz, é contada aos saltos” (FURTADO, 2012, p. 21).

Sobre as influências de Woody Allen (1935), Assis Brasil acrescenta o primeiro

trabalho do diretor nova-iorquino, O que há, tigresa? (Woody Allen, 1966), no qual

dubla um filme de ação japonês para uma comédia em inglês com uma história

totalmente nova, dispositivo que aparece em O dia em que Dorival encarou a guarda,

com a edição das cenas dubladas de Casablanca, por exemplo (ASSIS BRASIL,

2014). A forma criativa, fragmentada e também a comédia triste, no que se enquadra

Annie Hall (1970) e muitos filmes de Allen, marcam o estilo em estudo.

O terceiro filme que Furtado cita é Meu tio da América (Mon Oncle d’Amérique,

1980) de Alain Resnais21. O diretor aponta nesse longa as mais fortes referências

formais para o cinema que assina: “O Resnais filma teses: Meu tio da América é uma

tese científica, com um cientista falando e explicando como os seres humanos

funcionam...” (FURTADO, 2012, p. 23). Em Ilha das Flores, em O homem que copiava,

mas também em outros, como Meu tio matou um cara, Velásquez e a teoria quântica

da gravidade (2010) e A matadeira (1994), a narrativa com texto em off (voz do saber

ou pensamento do personagem), desenvolve raciocínios lógicos, questionamentos

sobre os sentidos das coisas, às vezes muito sérios, mas sempre tudo misturado com

humor, com engano e dubiedade do discurso, com ficção e narrativa. Em Meu tio da

América (1980), as situações dramáticas dos personagens são desenvolvidas aos

poucos e em partes a partir dessa narração, é uma lógica própria, bastante presente

no trabalho de Furtado. “Tudo está ali: meus filmes, o curta Ilha das Flores (1989), o

longa O homem que copiava (2003). Vejam Meu tio da América e leiam Kurt Vonnegut,

quase tudo o que fiz vem dali” (FURTADO, 2012, p. 23). Giba Assis Brasil corrobora

que especialmente Ilha das Flores (1989) tem a referência de Meu tio da América

(1980). A confluência de ambos está no estilo de narrativa não convencional, híbrido,

21Furtado refere vários filmes de Resnais, lembra de Toda a memória do mundo (Toute La Mémoire Du Monde), sobre a Biblioteca de Paris, como o melhor curta-metragem que já viu, com o qual seus filmes guardam semelhanças de estilo no texto em off carregado de conteúdos, cita Noite e neblina (Nuit et Brouillard, 1956), Hiroshima Mon Amour (1959), O ano passado em Marienbad (L’Année Dernière à Marienbad, 1961), Muriel (Muriel ouLe Temps d’um Retour, 1963), sobre os quais diz serem “transposições para a linguagem do cinema, brilhantemente bem sucedidas, dos procedimentos mentais de organização da memória, tanto pessoal quanto coletiva. Resnais se utiliza com maestria dos movimentos de câmera, dando-lhes sentido poético” (FURTADO, 2006).

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com uso criativo do off, diferentes pontos de vista e jogo com a pretensa linguagem

objetiva.

Esses três longas-metragens trazem formas narrativas inovadoras que são

vistas em diversos filmes de Jorge Furtado, conforme o realizador. Tomados como

exemplo, em Meu tio da América (1980), Annie Hall (1970) e Nós que nos amávamos

tanto (1974):

A mistura, a colagem de linhas narrativas, de estilos narrativos, que me

interessa muito, talvez seja o que mais me interessa. A pureza não me

interessa, me interessa muito mais a mistura que esses filmes criam, de

vários tipos de fotografia, de fonte de imagem – tem desenho animado

misturado com colagem, com cenas de arquivo -, a linha narrativa é

totalmente fragmentada, não segue uma ordem cronológica. Essa

mistura diz muito sobre nós. (FURTADO, 2012, p. 24)

Assis Brasil, provocado a refletir sobre os filmes que fazem, resume como

sendo inseridos na cultura do tempo, ‘como a "calça cotton" e a AIDS’:

“Certamente vem da literatura, se a gente pensar em Kurt Vonnegut

(ou Julio Cortázar, ou Caio Fernando Abreu). Mas também do cinema,

poderia falar também no Cliente morto não paga (Dead Men Don't

Wear Plaid, Carl Reiner, 1982), na Noite americana (La nuit

américaine, François Truffaut, 1973), nos primeiros filmes do Wim

Wenders, do teatro (assistimos muitas montagens de textos do Bertold

Brecht, muita coisa influenciada pelo Augusto Boal) e até da música

(O compositor me disse, do Gilberto Gil pra Elis Regina, ou Refrão do

Nei Lisboa). Simplificando, eu diria que vem da cultura da época.

Como a "calça cotton" e a “AIDS” (ASSIS BRASIL, e-mail de

20/10/2014).

Porém, como condutor, fio que costura as variadas misturas formais, reafirmam

o interesse precípuo pelas histórias básicas, que se repetem, que estão presentes em

todas as narrativas (FURTADO, 2012, p. 26). Afirmam: ‘‘em primeiro lugar uma boa

história’’, porque o objetivo da comunicação com o público baliza as realizações, pois

cinema é visto como um ritual que inclui a exibição, a presença do espectador. As

ideias que sustentam o cinema do diretor apresentam a característica do

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30

conhecimento, adesão e referência autoreflexiva à narrativa clássica, que provêm das

formas anteriores ao cinema, ao mesmo tempo em que, inserido e afinado com o

modo de saber e da cultura contemporâneas, que atualiza, presentifica e fragmenta

tudo, desenvolve formas de cinema muito identificáveis, originais, no tanto que é

possível a originalidade.

No capítulo seguinte, é feito um apanhado teórico que ajuda a compreender as

ideias, as formas e o estilo dos filmes de Jorge Furtado, a fim de estabelecer os

pressupostos para as análises do capítulo final.

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2 A EXPERIÊNCIA COM OS LIMITES DAS FORMAS FÍLMICAS – A NARRATIVA

E O CONTEMPORÂNEO

No conceito tomado de Bordwell e Thompson, “a forma é um sistema específico

de relacionamentos padronizados que percebemos em uma obra de arte”

(BORDWELL e THOMPSON, 2013, p. 139). É o resultado do trabalho do artista para

envolver a participação mental de quem assiste, num sistema que organiza os

elementos e, pelo padrão e narrativa que constrói, gera expectativas no público. O

cinema, nessa perspectiva, é entendido como construção de um sistema todo

unificado e voltado para atrair e conduzir a atenção do espectador. Num filme, são

feitas escolhas na atualização das técnicas da mise-en-scène que formam sistemas

(que inclui a narrativa e se relaciona com a cinematografia, a montagem e o uso do

som). “Cada filme desenvolve técnicas específicas de forma padronizada. Esse uso

unificado, desenvolvido e significativo de determinadas escolhas técnicas é o que

chamaremos estilo”, segundo os autores, “... cada cineasta cria um sistema peculiar

de estilo” (BORDWELL e THOMPSON, 2013, p. 203). Um dos sistemas mais

importantes é a narrativa, entendida como a cadeia causal de acontecimentos no

tempo e espaço do filme.

Os traços formais recorrentes e pronunciados presentes nos filmes autorizam

que se veja o trabalho de Furtado como um projeto de cinema com uma vertente

fortemente narrativa, ao mesmo tempo em que opera e articula, nesse sistema,

diversas estratégias contemporâneas.

Esses filmes representam e funcionam dentro de uma lógica que diz respeito

ao ambiente contemporâneo tratado por Lyotard (1986), entre outros, e também

descrito - ao propor o ‘‘campo não-hermenêutico’’ e sublinhar a importância da

materialidade da cultura - por Gumbrecht (1998), cujos três principais pressupostos

são: a ‘‘destotalização’’ -a impossibilidade da manutenção de metanarrativas que

dêem conta de todos os fenômenos; a ‘‘destemporalização’’ -a ideia clássica do tempo

como algo que flui do passado ao presente e ao futuro, um dando causa ao outro, é

substituída por um presente dilatado; e a ‘‘desreferencialização’’ -a sensação de

vivermos num espaço povoado por representações sem referência no mundo externo

(GUMBRECHT, 1998, p. 138). Pode-se inferir que essas três características do

presente também são basilares aos sistemas formais narrativos encontrados na obra

de Furtado.

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Nesse novo contexto, em que se insere a obra em estudo, inicialmente

nominado de pós-moderno, conceito sobre o qual Renato Pucci diz haver uma

sobrecarga, tendo se tornado de uso difícil (PUCCI, 2006), fica atingida em cheio a

figura do sujeito ideal de centralidade (surgido no Séc. XV), que orienta toda a tradição

humanista, e que é elemento basilar também do cinema. O cinema (a arte que tem a

feição do século XX, na sua tradição mais forte: o modelo clássico, que franqueia as

demais) se estrutura como uma construção destinada ao sujeito ideal de centralidade,

como presença invisível na cena, cujo olhar é subsidiário do olhar da câmera e do

espectador.

Nessa idealização consagrada junto ao público de massas, o trabalho de

narração fica quase sempre escondido, porque a cena é convencionalmente

naturalizada - como se não houvesse uma articulação, um ato de enunciar. Noutro

texto, o autor diz que “A manipulação da mise-en-scène (...) cria um evento pró-fílmico

aparentemente independente, que se torna o mundo tangível da história”

(BORDWELL, 2005, p. 288).

Na caracterização feita, a narração clássica “tende a ser onisciente, possuir um

alto grau de comunicabilidade e ser apenas moderadamente autoconsciente”

(BORDWELL, 2005, P. 285). A narração sabe mais do que os personagens e quase

nunca reconhece que está se dirigindo ao público. Nesse tipo de cinema, o

posicionamento da câmera busca o melhor ângulo possível de visão (respeitada a

norma da linha dos 180 graus22) dada a cada momento ao sujeito espectador ideal e

invisível. A ele são apresentados os fatos no transcorrer da narrativa. É a forma que

se pretende pura, limpa e transparente, mas, em todo o filme, “as marcas da

enunciação são por vezes exibidas” (BORDWELL, 2005, p. 286).

O modelo de cinema descrito até aqui em linhas gerais, cuja convenção é

predominante, se, por um lado, não chega a lograr a transparência total pretendida

(que seria impossível, porque o trabalho da enunciação sempre deixará algum

vestígio), tampouco é a única maneira de construir filmes, porque os mais variados

são produzidos pelo cinema.

22Linha de 180 graus ou eixo de cena: uma linha imaginária que divide, em planta baixa, a cena em dois campos, cuja obediência no posicionamento das câmeras (no modelo, a representação do olhar do sujeito ideal) garante a continuidade do posicionamento, movimentos e olhares dos personagens na estruturação da cena.

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2.1 Ilusionista e anti-ilusionista

Os teóricos percebem a narração enquanto uma formatação de técnicas e

sugerem a importância da recepção na construção da mise-en-scène. Nesse sentido,

Bordwell propõe que “...podemos estudar a narrativa como ato: o processo dinâmico

de apresentação a um receptor” (BORDWELL, 2005, p. 277).

Na forma contemporânea dos filmes enfaticamente narrativos (em decorrência

de técnicas próprias) estudados, em contra senso às convenções clássicas, o trabalho

para o jogo com os sentidos e participação do público é, muitas vezes, dado a saber,

tratado com evidência, e mesmo utilizado como estratégia inserida na narrativa.

Essa característica está na definição das formas contemporâneas do cinema,

Pucci (2006), referindo-se ao pós-moderno, que diferencia o cinema surgido nos anos

80 das rupturas modernas dos anos 60, afirmandoque ambas têm características anti-

ilusionistas (portanto anticlássicas), mas que o cinema atual se apresenta como

ambíguo, porque mantém os elementos clássicos quando em busca de diálogo com

o público de massas. Segundo o autor, é um filme ambivalente com relação à cultura

de massas. Ao mesmo tempo em que opera elementos convencionais, não faz

homenagens, uma vez que também os subverte: “...joga com eles e faz com que a

combinação com elementos distanciadores produza a quebra do ilusionismo e a

revelação de que os originais constituem discursos” (PUCCI, 2006, p. 374).

Essa mudança, quando a articulação do discurso deixa de ser invisível, está

relacionada à passagem da cultura em que a presença do sujeito ideal é centro para

a cultura na qual essa ideia não mais prevalece e essa figura (o sujeito) está

fragmentada; o olhar ordenador também deixa de ser unificado.

Em uma observação de conjunto sobre os filmes do diretor, é possível se

verificar formas prevalentes, que se aglutinam em categorias expressivas, tais como

jogos narrativos com alternância de pontos de vista, autorreflexão, paródias,

simulacros e outras. Essas formas são características da cultura contemporânea,

possíveis no contexto do modo de saber atual. E, mesmo que anti-ilusionistas, são

narrativas fortemente voltadas para a comunicabilidade dos filmes com o público de

massa e se articulam parcialmente nos sistemas desenvolvidos no modelo clássico.

Assemelham-se e se diferem do esquema narrativo convencional quando o

são;apresentam destacada autoconsciência e revelam se tratar de obras construídas

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34

com técnicas voltadas ao olhar (e entretenimento) do público. O que não é

contraditório, embora possa parecer.

2.2 Os elementos da narrativa clássica

No entendimento das formas expressivas que o cinema de Furtado articula, é

necessário aprofundar a leitura teórica de alguns temas elencados até aqui para que

se chegue às categorias que servirão de parâmetros à análise fílmica desta pesquisa.

Segundo Bordwell, Thompson e outros (2013)23, a narrativa é uma forma que

pode ser vista como o encadeamento de eventos ligados por relações causais,

temporais e espaciais, que apresentam e desenvolvem uma situação, uma

desestabilização e uma nova situação na vida do personagem. Esse encadeamento

é tratado como uma padronização formal voltada para o engajamento ativo do

espectador, que participa antecipando, assimilando informações, envolvido com a

história (mostrada ou sugerida) e na expectativa com o por vir do enredo e desfecho.

Conforme colocado em A Arte do cinema, a narração é o modo do enredo

distribuir as informações da história com o objetivo de conseguir determinados efeitos.

No estudo da narrativa, é premissa que se entenda a diferença entre: história -o

conjunto dos acontecimentos na ordem cronológica e causal direta; enredo -os

eventos como apresentados, parciais e em cronologia específica; e a narração -o

modo como esses eventos são apresentados. Tudo que diz respeito à história, o

mostrado e o sugerido/inferido, compõe a diegese do filme. Bordwell e Thompson

(2013) listam ferramentas formais que são usadas para estruturar as narrativas, muito

resumidamente: (a) o personagem, mais ou menos complexo, é o principal agente e

sofre as consequências das causas e efeitos; geralmente, (b) as narrativas se

estruturam no desenvolver de situações, que se agravam, na trajetória dos

personagens em busca por objetivos até o clímax, que resolve os conflitos (as causas

e efeitos estabelecem mudanças na vida dos personagens e criam padrões); no que

diz respeito ao (c) tempo e ao (d) espaço, ambos são mostrados incompletos, parciais

e muitas vezes fora de ordem; o espectador, assim, é chamado a trabalhar para

23As técnicas da construção da narrativa são tratadas em cinema nos estudos de roteiro por vários autores, com entendimento similar. Syd Field, que estrutura um paradigma para a evolução da narrativa (em três atos marcados por golpes dramáticos), é hoje o mais conhecido. David Howard e Edward Mabley, e também Michel Chion descrevem as diferentes técnicas utilizadas, que envolvem antecipações, elipses, preparações, evolução, desenvolvimento de conflitos etc.

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entender o desenrolar do tempo, completar as informações e inferir locais e eventos

da história não mostrados mas sugeridos no enredo. Mencionam também o espaço

do campo e do fora do campo (BORDWELL e THOMPSON, 2013, p. 149 e ss) - o

que, da diegese, é visível ou não através do quadro, enquanto elemento narrativo.

A padronização formal da narrativa, que cria o mundo do filme e estabelece a

relação com o espectador, também se vale de outras técnicas. A (e) quantidade e a

(f) profundidade das informações dizem respeito às variações que existementre uma

narração onisciente (sabe mais que os personagens) e uma narração restrita (sabe o

mesmo ou menos que os personagens) e entre uma narração objetiva (o mundo

externo e visível) e uma narração subjetiva (diferentes formas de representar o mundo

interno dos personagens). Essas não são categorias intransponíveis nem puras, ao

contrário, se misturam em diferentes arranjos formais e para diferentes efeitos

pretendidos no modo “como o espectador responde ao filme”. E, em geral, a

“subjetividade perceptiva” está justificada e integrada à estrutura objetiva da narração

(BORDWELL e THOMPSON, 2013, p. 166 e ss).

2.3 Foco narrativo: a narração de dentro

O posicionamento do narrador, a voz de quem vê de fora ou de dentro,

fundamentais no que diz respeito ao posicionamento da câmera, é explicadoantes

pelos estudos de literatura. Ligia Chiappini e Moraes Leite, em O Foco Narrativo

(2007), apontam o ocultar-se progressivo do narrador atrás de outros narradores

(personagens) ou de fatos que parecem narrar a si mesmos (devido ao modo quase

jornalístico adotado). A voz que ‘‘apenas’’ narra os fatos é típica do romance,

objetivada por uma visão dita realista. Porém, no século XX, percebe-se um

deslocamento dessa voz rumo a inserir-se no mundo ficcional: a voz que fala vela e

desvela, ao mesmo tempo, narrador e personagem. “Quem narra, narra o que viu, o

que viveu, o que testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que

desejou” (CHIAPPINI e MORAES, 2007, p. 6). Esta incerteza quanto à veracidade da

voz que narra, em cinema, quanto à veracidade do que é mostrado na narração, que

nos filmes de Furtado assume a perspectiva de personagens, é figura da narrativa

contemporânea.

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Neste contexto, compreende-se que autor e narrador são entes distintos; que

o autor em cada obra cria um narrador, na voz que fala, no ponto de vista que adota,

na escolha dos ângulos e visões dadas ao espectador do filme.

Sobre o foco narrativo24 no cinema contemporâneo, Arlindo Machado (2007)

escreve: “A instância que vê e ouve e dá a ver e ouvir é um fato da ficção e, como tal,

circunscrita ao universo da diegese” (MACHADO, 2007, p. 11). Transpor os limites

entre transparência e presença do narrador é um traço do contemporâneo, quando a

enunciação aparece como parte da narração: “... fazendo emergir, a todo momento,

ou pelo menos problematizando, esse “alguém” que se intromete na diegese para

conformá-la à sua visão” (MACHADO, 2007, p. 11).

A variabilidade da forma do cinema está no modo de articular o olhar através

dos planos construídos e montados. Browne (2005), por exemplo, ao analisar a

sequência Estação Dry Fork, de No tempo das diligências (John Ford, 1939), pretende

“descrever e explicar em detalhe uma retórica fílmica na qual a articulação do narrador

em sua relação com o espectador é encenada, conjuntamente, pelos personagens e

pela sucessão particular de planos que os mostra” (BROWNE, 2005, p.231)25.

No cinema de Furtado, que afirma aderir ao modelo da jornada do herói

chamado à aventura, conforme Campbell e Vogler26, as marcas centrais seguem

sendo a clareza da história básica e da estrutura que usa para narrar, mas também

24O problema também é tratado por François Jost que, em El Relato Cinematográfico, expõe a teoria pioneira do estruturalista Todorov (1966) quanto ao ponto de vista do narrador: quando a visão é de dentro ou de fora, quando sabe mais, menos ou o mesmo que o personagem; e as categorias de Genette (1972) da focalização: zero, interna, ou externa - na primeira o narrador onisciente não focaliza; a outra corresponde à voz do personagem, que pode ser múltipla; na terceira não é dado a saber nada sobre o que pensa ou sente o personagem. (JOST, 1995, p. 137 ss).

25A reflexão sobre a construção da cena pela construção do jogo do olhar no posicionamento da câmera para narrar, em filmes emblemáticos pelas estratégias que constroem, é feita também, entre outros, por Ismail Xavier, quando analisa Um corpo que cai (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958), no jogo narrativo pela parcialidade do olhar, em O olhar e a cena, 2003; e por Arlindo Machado, quando analisa Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941), perguntando quem testemunha a cena final, quando morre o magnata, em O enigma de Kane, O sujeito e a tela, 2007. Jacques Aumont, em a Imagem (1996), descreve, historicamente, a constituição e o funcionamento do sujeito abstrato ordenador do olhar da cena clássica. 26A aventura padrão é descrita nas seguintes etapas: “descrição do mundo comum, o herói-protagonista é chamado à aventura, inicialmente recusa, encontra seu mentor e acaba aceitando o convite, então viaja ao mundo especial (oposto ao normal onde a história começa), recebe a chave, ultrapassa um portal, enfrenta provas, conhece inimigos e aliados, desobedece o mentor, enfrenta o antagonista, triunfa e regressa, transformado, ao mundo normal para dividir com seus pares (e com os espectadores) os frutos (o elixir) e descobertas de sua aventura” (FURTADO, 2005, p. 100).

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constrói modos característicos de arranjar a narrativa com os elementos expressivos

contemporâneos do cinema.

2.4 O preso Dorival e o sentido contingente

Em O dia em que Dorival encarou a guarda (CM, 1986), um filme que utiliza

materiais híbridos e referentes ao próprio cinema, o enredo acompanha o desenrolar

da história do preso (Dorival/João Acaiabe) que enfrenta o quartel, numa ordem de

hierarquia militar crescente, para poder tomar um banho – há um personagem

motivado e um padrão que envolve o público rumo ao desfecho, conforme visto. O

filme utiliza uma forma narrativa clássica, com o tempo conciso, mas na ordem

cronológica, que alterna o ponto de vista e enfatiza a subjetividade nas imagens

ligadas às mentes dos personagens. Segundo Assis Brasil (2014), a estrutura do filme

se baseia no pressuposto de que cada personagem (militar que Dorival enfrenta)

queria estar em outro lugar. Porém, mantida a clareza da história básica que conta (o

preso quer tomar um banho), apresenta, como outra característica marcante e que

destoa da forma clássica, o hibridismo nas imagens da mente dos personagens.

Planos de longas-metragens clássicos, como King Kong (Merian C. Cooper e Ernest

B. Schoedsack, 1933) e Casablanca (Michael Curtiz, 1942), com novos áudios e de

western produzido ao estilo de revista em quadrinhos são alguns materiais que se

inserem à narrativa, chamam atenção para o constructo e oferecem sentidos

contingentes, dependentes do trabalho do espectador. As imagens clássicas são

mostradas em outros contextos, chamando a participar: o sentido passa a ser uma

espécie de jogo proposto ao público, frente a novas possíveis interpretações.

O modo como o preso se impõe, a intimidação que os militares sofrem e a

necessidade de sempre chamarem reforços são traços de ironia somados ao discurso

sério nessa antecipação instigada.

As informações do enredo são apresentadas em um padrão formal criado para

que o espectador fique envolvido até o desfecho relativo ao banho almejado pelo

protagonista, na iminência de que o militar enfrentado por Dorival chamará,

sucessivamente, o superior e que esse estará absorto em alguma imagem de tipo

especial. O desfecho, desse modo, se torna uma conclusão necessária à expectativa

plantada; o público se interessa até o fim, sendo um filme narrativo (que segue a linha:

Dorival conseguirá ou não tomar um banho?).

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Neste filme (O dia em que Dorival encarou a guarda), há uma padronização

que se estrutura nas formas clássica e híbrida. A narrativa se comunica com o

espectador de modo bastante amplo, mas as imagens que citam o cinema são

recebidas de forma diferente conforme o conhecimento prévio ou não do material

citado: a inscrição em camadas é outra característica da obra de Furtado, que aparece

com ênfase também em outros trabalhos.

2.5 O hibridismo narrativo em Barbosa e A Matadeira

Um padrão claro de narrativa, assim como em quase todos os filmes do autor,

também está presente em Barbosa (CM, 1988). O curta-metragem é uma ficção

científica em que, com uma máquina de viagem no tempo, o protagonista (Antônio

Fagundes) retorna à final da Copa do Mundo de 50 para evitar a derrota do Brasil para

o Uruguai. O enredo usa formas híbridas: ficção e documentário (a entrevista com o

goleiro Barbosa e imagens de época são documentais), e, principalmente, apesar de

ter um final muito conhecido, o empenho e trajetória do personagem ficcional

envolvem o espectador com o desenvolvimento e desfecho da história narrada.

Híbrido, autorreflexivo e narrativo também é o curta-metragem A Matadeira

(CM, 1994). Um filme que trata de um fato histórico, a tomada de Canudos, adaptando

de forma livre eventos descritos por Euclides da Cunha em Os Sertões (1902), a partir

do canhão que o exército brasileiro usa para a destruição do povoado insurgente e

religioso de Antônio Conselheiro, na virada do século XIX para o século XX. O

hibridismo está na multiplicidade dos materiais: paródias, reconstituições, falsos

documentários, melodrama, animações, maquetes, imagens históricas e documentais

contemporâneas, discurso irônico e discurso sério, cenários e encenações

destacados e narração em off.

O filme é narrativo na medida em que conta uma história, descreve os fatos

relativos à tomada de Canudos, cujo desfecho histórico é previamente conhecido. A

atenção está no uso de técnicas variadas de forma muito livre, irônica, em contraste

com um também presente discurso sério.

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Com Pedro Cardoso em vários papéis, a narrativa usa a paródia do

documentário clássico e do filme educativo27. Um dos personagens interpretados por

Cardoso é um falso professor de história, cuja aula dada, em contraste com a ironia,

de fato contextualiza e explica historicamente Canudos, seguindo o relato do livro. O

sistema formal se funda na liberdade cinematográfica no uso de recursos variados em

prol do desenvolvimento de um argumento histórico. O autor afirma que A matadeira

é um documentário do livro Os Sertões (FURTADO, 2014), porém, transforma a

expressão literária (objetiva, jornalística e minuciosa do estilo de Euclides da Cunha)

em uma forma eminentemente cinematográfica.

A Matadeira é exemplo das possibilidades formais que o estilo de cinema

contemporâneo de Furtado pode dar a um tema. Os cenários e as representações são

evidentes, teatralizadas. Os soldados avançam num ambiente cuja arte e

interpretação são pronunciadas. Mais uma vez, uma construção anti-ilusionista, que

deixa aparecer o trabalho da mise-en-scène, incluindo reconstituições em stop motion

e maquetes muito simples e funcionais, a serviço do padrão formal da narrativa.

Como Ilha das Flores (CM, 1989), O homem que copiava (LM, 2003)e outros,

também A Matadeira (CM, 1994) utiliza a narração em off, a reconstituição, o falso, a

variabilidade dos sentidos, em perspectivas que alternam o onisciente e o restrito, o

verdadeiro e o errático, mas com muito controle e interesse se sabe sobre as

circunstâncias e eventos da história narrada. As incertezas prevalecem, mas nesse e

também em outros filmes são desenvolvidos discursos realistas, históricos, sendo um

tipo de ambiguidade frequente. São mostradas reconstituições e reproduzidas

imagens jornalísticas do massacre na guerra com os civis de Canudos, com crianças

sendo mortas por soldados, e editadas com imagens atuais de crianças mortas na

violência das periferias urbanas brasileiras. Após longo e irônico discurso do professor

de história, nos segundos finais, é dado um tom sério: “cerca de 30 mil pessoas

morreram em Canudos. Simples assim”.

27A forma clássica no documentário se caracteriza, em poucas palavras, por um saber anterior e de caráter geral dado por uma narração onisciente coberta por imagens ilustrativas; a variação da forma educativa advém da finalidade dada a esse formato.

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40

2.6 A paródia em Ilha das Flores e os enganos em O Sanduíche

A ênfase no papel do contingente para o sentido, como autoreflexão mas

também como estratégia narrativa, é um dos traços centrais dos filmes em questão.

Ilha das Flores (CM, 1989), um dos curtas-metragens de maior êxito do cinema

nacional, já sendo considerado um clássico, enquanto referência que perdura, é um

filme de formas híbridas, repleto de humor, drama, crítica social e filosofia. Num

transcorrer de citações, a história de um tomate podre na forma de uma paródia do

documentário que faz uma colagem de imagens de vários tipos cobrindo um off que

simula o documentário clássico de tipo educativo. É o falso documentário clássico que

vira, ao final, documentário clássico propriamente dito (segundo Sílvio Da Rin, em

Espelho Partido, 2004). O filme joga com o público que é surpreendido por ironias

sobre assuntos e imagens muito sérias: o holocausto judaico sob o nazismo e a

pobreza extrema numa ilha de Porto Alegre, por exemplo, provocando reflexões

críticas sobre o mundo e também sobre os sentidos e discursos. O filme induz ao

engano do espectador que espera um tipo de narrativa condizente com a forma

(parodiada) do clássico, mas que é surpreendido primeiro pelas piadas e depois, ao

final, quando se depara com imagens realistas de miséria envoltas por uma reflexão

sobre as possibilidades de encontrar ‘‘a verdade’’ em um filme.

A paródia dos objetos da cultura do passado, incluindo o próprio cinema, é uma

característica contemporânea muito frequente na obra de Furtado. Segundo Linda

Hutcheon (1989), é uma forma que marca a contemporaneidade, em cujo contexto de

crise de referências em sistemas gerais, a autoreferência ganha importância: uma

tendência a “se referir a si mesmos num processo incessante de reflexividade”

(HUTCHEON, 1989, p. 11). Segundo a autora, a paródia contemporânea não é

ingênua, o distanciamento é crítico e o sentido do objeto parodiado é sempre

atualizado. Conforme se estabeleceu na cultura contemporânea, a repetição e a

citação produzem novos sentidos; é uma “repetição alargada com diferença crítica”

(HUTCHEON, 1989, p. 19). Quando desaparece a fé humanista na continuidade e

estabilidade culturais que asseguravam os códigos comuns necessários à

compreensão de tais obras, a paródia surge como forma presente nas artes do tempo

atual. Dessacralizada a interpretação (uma vez que a participação do espectador em

seu contexto é vista como atividade principal ao sentido), a paródia traz a ideia da

“complementariedade dos atos de produção e recepção textual” (HUTCHEON, 1989,

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41

p.16). Os sentidos são elaborados a partir da linguagem comum a ambos, autor e

público. Há um jogo contextual livre: em cada página se inscreve o campo concebível.

Nessa forma, de acordo com a autora, aparecem a intertextualidade e a

autorepresentação como uma estética do processo, da percepção, da interpretação e

da produção das obras de arte, estratégias usadas em Ilha das Flores, mas também

em outros filmes de Furtado.

Exemplar do estilo, em Ilha das Flores (CM, 1989) são enfatizadas as próprias

condições e incertezas dos diferentes tipos de discursos, inclusive o cinematográfico.

Um recurso estilístico que se funda no mesmo problema surge numa forma de

narrativa também contemporânea em O Sanduíche (CM, 2000).

Em um filme de ‘‘dispositivo’’ e autoreflexivo, que trabalha com o engano da

narração e do enquadramento, O Sanduíche (CM, 2000) percorre um deslocar por

representados níveis de enunciação: a cena do diálogo de um fim de relacionamento

de um casal (Janaína Kramer/Felippe Mônaco) em um apartamento se revela um

ensaio do texto de uma peça de teatro, que logo (embora um plano antecipe uma

arquibancada como audiência no lugar da parede invisível) se transforma em relação

verdadeira do casal, até que se ouve o grito de “corta”, surge um campo ampliado

extradiegético revelando uma equipe de cinema no cenário, os atores se despedem,

fica apenas o diretor (Nelson Diniz), até que surge outra voz de diretor, gritando “vai

grua”, e o plano se abre, em grua de afastamento, revelando um novo campo de

diegese, com o cenário e o estúdio instalados à céu aberto, na frente do Mercado

Público, bem no centro de Porto Alegre. Há uma arquibancada de populares

assistindo ao trabalho de produção, numa imagem de tipo documental que registra

uma filmagem (por isso é um dispositivo: promove um evento que se torna a estrutura

do filme). Iniciam vozes de populares, dirigindo-se a “Furtado” que não aparece,

falando sobre o que estão achando da filmagem: “que nunca tinha visto”, “é repetitivo”,

“é cheio de detalhes”, “é muito legal e devia ter todos os dias” etc.. Nesse plano aberto,

há um fade de encerramento, mas rapidamente a imagem volta e aparece Jorge

Furtado como repórter, em mais uma ampliação de campo, entrevistando populares

que assistiam à filmagem – aqui finalmente parece que o filme se torna ‘‘verdadeiro’’,

até que se percebe que nesse ‘‘fala povo’’ estão repetindo um texto ensaiado e dito

pelos atores na produção vista a pouco: Furtado volta a ser diretor e corrige uma

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dessas falas que pareciam documentais. Revelado finalmente o engano, a certeza

está na incerteza das narrativas, o filme encerra28.

Diversas das formas recorrentes na obra do diretor aparecem em nova

configuração no curta O Sanduíche. É um trabalho narrativo, namedida em que busca

a relação com o público na construção de um padrão, no caso, o jogo de revelação e

engano acerca da instância de articulação, que se assume como real, mas logo é

assimilada pela ficção e revela ser apenas mais uma instância da

enunciação,culminando com a revelação de que o próprio diretor atua forjando a cena

final em documentário. Esse padrão envolve o público no empenho para acompanhar

e compreender a sucessão de eventos apresentados, ligados entre si, porém de forma

não convencional. É uma narrativa bastante diferente do modelo clássico. Além da

constante referência à própria construção da narrativa, embora a história de amor

entre o casal de atores que contracena, o filme não se estrutura no acompanhamento

do personagem na busca de dado sucesso, e o tempo e o espaço são construídos em

uma lógica especial, atendendo ao tramado pelo ‘dispositivo’; é uma diegese nunca

estabilizada. A questão tem servido de mote ao cinema de Furtado: “quem está aí

fora, quem narra?”, que inicia a fala de Hamlet, de WilliamShakespeare, a cuja obra

se referencia, está na forma de narrar de O Sanduíche.

A narrativa que mistura, amplia e usa o tema da presença da voz/instância que

anuncia também está em Velásquez e a teoria quântica da gravidade (CM, 2010). O

personagem, em um evento social, relata, em off, que teve uma inspiração para

entender o que seria uma teoria científica até então impossível diante do quadro As

Meninas, de Velásquez. No off da narração, descreve o quadro em detalhes, a

representação do próprio pintor na cena, os onze personagens, dos quais oito olham

para o observador fora do quadro29, quando o pensamento é interrompido e o

28O mecanismo do filme O sanduíche (2000) é similar ao modelo descrito e desenhado por Umberto Eco, em Seis passeios pelo bosque da ficção (1994), que problematiza os lugares do leitor, do autor e do narrador, e as possibilidades de construções, dissimulações, deslocamentos e surpresas nos sistemas narrativos.

29Foucault afirma que As damas de companhia, ou As Meninas, quadro de Velásquez (1656), representa a representação clássica que tem, em seu bojo, a presunção de um ponto de observação dominante. Os personagens (incluindo o próprio pintor) na cena da corte de Felipe IV (Espanha, século XVII) dirigem seu olhar para um ponto inacessível, fora da cena. Um ponto exterior prescrito por todas as linhas de olhares da composição. O que Velásquez constrói, coloca nesse ponto de referência que olha, são também personagens sugeridos - “o quadro é uma cena para a qual ele é uma cena - pura reciprocidade que o espelho do cenário manifesta” (FOULCAULT, 2001). Esse centro do olhar é o soberano para a atenção do qual todos agem. Representado sem estar visível. A conclusão a que chega Foucault é que nesse e em qualquer quadro “a invisibilidade profunda do que se vê é solidária

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personagem esquece qual a compreensão reveladora que havia tido. É um curta com

hibridismo formal, com imagens ilustrativas cobrindo o off, no tipo de colagem que

também faz Ilha das Flores, A matadeira e O homem que copiava, num estilo de

Furtado que também trata da tomada de consciência da invisibilidade da

representação.

Sobre fronteiras, limites e misturas, em Até a vista (CM, 2010), repleto de

situações engraçadas, inspirado numa experiência pessoal de Furtado, um jovem

cineasta (Fernando/Felipe de Paula) compra os direitos autorias de uma novela de um

escritor Argentino (Borges Escudero/Salo Pasik), como parte do contrato, ambos

viajam a Belém do Pará, em busca de uma mulher (Araci/Dira Paes) que o escritor

conheceu. A comédia representa as diferenças entre idiomas, culturas e formas

expressivas do cinema e da literatura. O escritor, por exemplo, insiste que, na

adaptação, o personagem permaneça inerte, exasperando o cineasta. O filme é

altamente narrativo, brinca com quebras de expectativas, articula bem pontos de

viradas, surpresas e humor.

Nesses filmes, a narrativa é uma brincadeira de bom humor, com desfechos

surpreendentes, e tudo parece mais uma vez ser apenas o gozo, o lúdico do jogo com

o público.

2.7 A citação do Cinema de Bordas em Saneamento básico, o filme

Saneamento básico, o filme(LM, 2007), é outro exemplo dos estilos formais que

sustentam esse conjunto. Nesse longa-metragem, sobre os cartões de apresentação,

uma voz feminina conversa diretamente com a plateia que chega à sala de exibição

de cinema. Assim, desde antes do início, o filme assume uma forma não clássica de

narrativa: rompida a invisibilidade, é criada uma expressão representativa da instância

autoral, comumente deixada sem visibilidade. A produção de sentido é trazida para o

centro. Após esse prólogo, o filme abre com um movimento de câmera em tilt, do céu

à pequena comunidade, em grande plano geral. Um texto, a mesma voz feminina de

antes, mas a diegese (oficialmente) iniciada: “Disse o poeta que a natureza é grande

nas coisas grandes, e enorme nas coisas pequenas (movimento de câmera chega a

da invisibilidade daquele que vê”, pois, de fato, aquele que pinta e dá sentido permanece oculto. Esse tema da invisibilidade ou visibilidade do olhar da representação é recorrente na obra de Furtado.

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uma reunião comunitária, a céu aberto). Segue a fala: “Sabemos que um pequeno

arroio que corta uma comunidade do município é apenas um pequeno arroio, para

nós, moradores da Linha Cristal, o arroio Cristal é único...”. A fala é de Marina

(Fernanda Torres), em assembleia dos moradores, lendo carta que pede à prefeitura

providências sobre o saneamento básico do lugar. Na abertura do filme, num instante,

o assunto vai da poesia à fossa, ‘‘o cocô da comunidade’’, diz Seu Otaviano (Paulo

José), causando risos na reunião. Os figurantes são tipos do lugar, e as locações se

encontramnuma pequena comunidade colonial do Rio Grande do Sul (Brasil).

Furtado explica que Saneamento básico, o filme segue a estrutura da

commedia dell arte (uma forma de teatro popular surgida no Século XV, na Itália), com

os sete personagens típicos representados30.

A narrativa contrapõe à solução do problema do esgoto a realização

comunitária de O Monstro do fosso (a ficção que decidem produzir desviando os

recursos de um edital público de produção audiovisual para a obra sanitária). O vídeo

que a comunidade quer fazer tem vários traços do cinema de bordas. Conforme Lyra

e Santana (2006), a experiência das bordas se baseia na imutabilidade das formas

consagradas (as formas dos gêneros, que se repetem, compõem o imaginário e

fidelizam o público). Não pelo sentido, mas pelo efeito corporal buscado e causado, o

cinema de bordas “atualiza os mesmos conteúdos”, com o “mínimo de informação e

máxima previsibilidade” (LYRA e SANTANA, 2006, p. 13) – essa é a experiência

retratada no filme que os personagens do longa em questão realizam. Essa forma

expressiva presente em Saneamento básico, o filme é apontada por Rosana Soares,

“como sendo um ‘tributo às bordas’ feito por Jorge Furtado” (SOARES, 2012, p.182).

Aqui, mais uma vez, está representado o ambiente contemporâneo, em que se

valoriza a materialidade da forma cultural.

De diversas maneiras,Saneamento básico, o filme evidencia a contingência

para os sentidos: além da representação das bordas, as situações criadas colocam

os personagens frente a esses temas, discutem em várias cenas significados das

30“...a Marina é uma mulher que trabalha, que cuida da casa, que manda, uma mulher meio homem; o Joaquim é um arlequim totalmente servidor de dois patrões: um chefe e uma mulher; a Silene é a personagem que vende a virgindade pra acender socialmente, é a gostosa; o Bruno faz o galã, bonitão, só quer comer todo mundo; os dois velhos: um é de Bologna e um é de Veneza, o de Bologna gosta de dinheiro e o de Veneza é intelectual. Fiz os personagens da commedia dell’arte para contar uma história” (FURTADO, 2014).

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45

palavras e valores das coisas, jogandocom o público quando manifesta

autoconsciência, ao mesmo tempo em que se mantém fortemente narrativo.

2.8 Simulacros, autoreflexão, jogos narrativos e br icolagem em O homem que

copiava

Mas talvez estejam no longa-metragem O Homem que copiava (LM, 2003) os

traços formais mais elaborados da cultura contemporânea.

Em O Homem que copiava, à primeira vista, chamam a atenção o ritmo

acelerado de montagem, a trama rica em peripécias bem costuradas e as

interposições de materiais originários de diversas mídias e artes: cinema, televisão,

quadrinhos, desenhos, poesia, jornal impresso, estátuas, imagens de santos,

ilustrações, colagens etc., em citações que transitam com velocidade entre o pop e o

erudito. Santana (2006), na análise que faz, aponta o aspecto central de ser um filme

de bricolagens diversas, que cria um mundo real a partir da repetição com diferença

de imagens conhecidas e do que já aconteceu, ou seja, uma realidade de segundo

grau, que apaga os rastros primários (SANTANA, 2006, p 177 e ss).

O filme também é leve, irônico e até inconsequente, sem deixar de causar

polêmica. O final é um exemplo: o par romântico de protagonistas (André/Sílvia,

Lázaro Ramos/Leandra Leal), com a ajuda dos amigos, comete o assassinato do

próprio pai (Carlos Cunha), ou padrasto (há essa dúvida, da moça), não sendo punidos

por isso. A falta, no universo dos personagens, dos parâmetros morais até então

socialmente reconhecidos (como a vedação de matar especialmente pai ou mãe, ou

de fraudar contas públicas, como no exemplo anterior, ou a não punição do adultério

de Anita (Adriana Esteves) no inédito Real beleza) é apenas um dos aspectos na

narrativa que remetem ao contexto atual da cultura.

Entre as formas e categorias expressivas contemporâneas de O homem que

copiava, o simulacro ocupa lugar central desde o nome do filme: André trabalha como

operador de máquina fotocopiadora. A máquina fotocopiadora, objeto de cena descrito

com didática em detalhes, é o aparato tecnológico que produz o fluxo de imagens.

Através dessas cópias, André conhece fragmentos de representações e monta seu

próprio mundo imaginário. Ele vive imerso em desenhos e colagens que faz com

representações e citações recolhidas nunca inteiras de sobras do material que

fotocopia. Entre as várias peripécias da trama, André fotocopia dinheiro, embaralha e

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46

embaralha-se entre original e cópia, tendo, inclusive, apesar do cômico das situações,

sucesso como falsificador: as notas grosseiramente copiadas são aceitas como

verdadeiras, resultando questionado o estatuto do real.

O contexto do filme é o de um mundo povoado por imagens desenraizadas, tais

como as fotocópias de André. Nesse sentido, vale a descrição feita em Simulacros e

Simulações (BAUDRILLARD, 1992, pp. 8-9), em que o mapa, o duplo, o espelho, o

conceito já não mais são a abstração, porque o real, a causa objetiva, a referência

deixaram de existir. Mas o simulacro dissimula que é só imagem, constituindo-se como

um novo tipo de real. “A passagem dos signos que dissimulavam alguma coisa aos

signos que dissimulam que não há nada marca uma virada decisiva” (BAUDRILLARD,

1992, p. 14). Na fase atual, a imagem não tem relação alguma com a realidade, porque

a produção de real e de referencial é superior à produção material. A tensão é

midiática, não com o real representado, porque é um filme quase totalmente calcado

na imagem (SANTANA, 2006, p. 82), mas com o novo tipo de real.

O protagonista do filme vive entre o imaginário (que recolhe dos fragmentos e

monta nos desenhos e colagens que faz) e partes do real que enquadra da janela do

quarto através das lentes do binóculo. A câmera e a narrativa se apropriam desse

olhar. O universo de André é estruturado por imagens e fragmentos de

representações. Ele pensa: “é divertido ficar bem longe e olhar uma pessoa bem de

perto”, essa é uma citação do que proporciona o cinema (com o close up, exemplo

mais conhecido). Através das lentes do cinema, do escuro da sala de projeção,

observamos, nos planos e sequências dos filmes, recortes da vida de outras pessoas.

Em ambos os casos, o sentido é preenchido pela imaginação.

No filme, André conhece Sílvia espiando com o binóculo, mas só há uma fresta

transparente na janela do quarto por onde se enxerga fragmentos da garota se

movimentando refletidos em um espelho na porta de um guarda-roupa. O filme usa

um dispositivo explicitado: dependendo de como a porta fica, o espelho mostra a

André um pedaço diferente do quarto. O filme monta esses fragmentos, dizendo, com

transparência: esse é o modo como conhecemos o mundo nas representações,

fragmentado em imagens refletidas, observado sempre a partir de um lugar. Esse

sublinhar enfatiza o próprio mecanismo de constituição de sentidos e pontua,

integrado, a evolução da história. Também vale notar que o trabalho de André

operando a máquina copiadora é mecânico, repetitivo, desconectado, alienado. À

máquina, por sua vez, cabe reproduzir o conhecimento que recebe de antemão

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avalizado. Mas o fluxo mental e criativo de André, em contrapartida, recolhe e organiza

os fragmentos de imagens em novos e flutuantes sentidos, não tendo nada a ver e

superando a operação da máquina, com apenas dois comandos (start/stop). André

monta esses fragmentos em novos textos, nessas bricolagens, cria realidades. Em O

homem que copiava, o sucesso depende da habilidade em dominar o aparato produtor

dos simulacros. É uma questão de jogo de linguagem.

O filme se estrutura num misto de opostos: transparência clássica, ao contar a

trajetória linear e reconhecível dos conflitos no amor proibido entre dois jovens, a

história base do que Furtado e Assis Brasil dizem nunca se afastar, com ruptura

contemporânea, pois usa em profusão citações e manipulações de imagens e

montagem não naturalistas (tais como animações, hibridismos, trocas de pontos de

vista etc.). Neste filme, a forma híbrida também está presente e as citações estão

inseridas no contexto narrativo do olhar do filme. Conforme apontado: “Ao mesmo

tempo em que mistura gêneros, como um procedimento estrutural, simula os mesmos

na narrativa; e é justamente esta ‘simulação’ que deixa marcas nela” (SANTANA,

2006, p. 77).

É um tipo de narrativa em que não há onisciência, porque o mundo está

fragmentado e a câmera mostra conforme o olhar errático dos personagens. A história

do jovem casal é mostrada conforme o olhar de André. Mas, num jogo de montagem,

ao final, os mesmos planos recebem outro corte e as mesmas cenas são vistas sob

outro ângulo, o olhar passa a ser de Sílvia. Não há um ponto de vista onisciente, não

é buscado o melhor ângulo de visão ao espectador ideal, mas enquadrado conforme

a estratégia narrativa. A trama faz um jogo, lance a lance [assim como recursos

gráficos visuais, a trilha de O Homem que copiava (LM, 2003) também lembra o som

de game, várias vezes, embora noutras seja erudita, o mesmo tratamento que aparece

em Houve uma vez dois verões (LM, 2002) e Meu tio matou um cara (LM, 2004)]. Ao

alternar pontos de vista, mas também ao utilizar os métodos narrativos do cinema,

modulando as relações causais, temporais e espaciais em padrões, elaborando em

ritmo acelerado as várias reviravoltas que conduzam ao clímax e desfecho, O Homem

que copiava representa o mundo como um jogo narrativo. Porque estabelecidas as

regras (da narrativa), os lances são possíveis.

Outro exemplo do estilo, o longa-metragem O Mercado de notícias (LM, DOC,

2013), com formas híbridas e irônicas, faz uma reflexão séria sobre o jornalismo

brasileiro. O filme é estruturado com a edição de blocos por temas de entrevistas com

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profissionais da imprensa em paralelo a intervenções do diretor em cena conduzindo

o filme, ensaios e representação, no palco do teatro São Pedro, em Porto Alegre, da

peça teatral Mercado de notícias (The staple of news, Ben Jonson, 1625, traduzida

pelo próprio Furtado).

A temática da comunicação, a crítica política e historicamente posicionada e a

articulação de formas expressivas e artísticas híbridas (documentário, jornalismo

investigativo, ficção, entrevistas, teatro, televisão etc.) são algumas características

marcantes da inserção de Mercado de notícias no ambiente contemporâneo e na

trajetória estilística do diretor.

Uma narrativa que guarda diferenças com as anteriores é Real beleza (LM,

inédito, assistido na ilha de edição da Casa de Cinema de Porto Alegre, em

14/10/2014). Esse drama, único filme do diretor até então quase sem comédia, sem

alternâncias de pontos de vista e ausentes as estruturas autorreflexivas, é a história

de João (Vladimir Brichta), fotógrafo em busca de modelos entre jovens do interior,

que descobre Maria (Vitória Strada), filha de Anita (Adriana Esteves). O pai da jovem,

Pedro (Francisco Cuoco), um velho cego e letrado (tem uma vasta biblioteca que

conhece bem), se opõe a que a filha adolescente parta na carreira de modelo. Anita,

bem mais jovem que o marido, se envolve com o fotógrafo forasteiro.

O cenário é uma região rural, lugar de difícil acesso, mas com uma casa muito

confortável, com uma fantástica biblioteca. Os moradores da casa são mostrados

imersos em livros, citações e atividades telúricas.

Real beleza foge dos estereótipos: o interior é culto e confortável, a reação ao

adultério não é violenta nem machista, a escolha de Anita é pela vida pacata e em

extinção e o caçador de modelos não é vigarista nem insensível.

Trata de um tema sério, o mercado da beleza que fascina jovens que sonham

com carreiras midiáticas. O início do filme tem uma sequência em tratamento

documental, que mostra rostos juvenis repletos de expectativas em uma seleção

fotográfica.

Assim, mais uma vez, a representação ocupa lugar central na própria trama,

num filme que pergunta onde está a beleza real, que discute o olhar e o valor das

coisas no mundo midiatizado, no qual a cultura clássica é preservada simbolicamente

em ínfimos redutos. Anita escolhe ficar ali, com o marido, até o fim - falta pouco. O LM

inédito pode ser visto como uma representação sobre o fim de uma cultura, de um

tempo.

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49

2.9 Os pressupostos de base para a análise

Os filmes em estudo são múltiplos e híbridos, estão entre o clássico e a

narrativa anti-ilusionista. A verificação do estilo é realizada na análise da modulação

que os filmes operam entre a comunicabilidade e a autoconsciência, na estruturação

formal e padronizada da narrativa, no modo como as cenas são construídas,

vinculando a câmera ao olhar e voz interior dos personagens, como trabalha entre o

certo e o errático da imagem, como trama nas ações o hibridismo dos materiais

utilizados. Para compreender o estilo, interessa investigar a natureza dos contrastes,

das misturas, das relações entre objetividade e subjetividade, vinculantes do

hibridismo. Essas formas estão impregnadas pelo tempo da cultura fragmentada, com

o presente dilatado e a profusão de real simbólico, que é o simulacro com o qual

operam as bricolagens. É quando qualquer objeto do passado é copiado, nas

paródias, com diferença e distanciamento crítico. Interessa observar como as mesclas

estruturam os filmes em análise. Essas são categorias expressivas que modulam o

estilo do cinema de Jorge Furtado e que servirão de parâmetros para a análise fílmica

das sequências selecionadas no capítulo seguinte.

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3 A ANÁLISE DOS FILMES DE JORGE FURTADO

Neste capítulo, a análise dos filmes de Furtado é estendida para além das

ideias norteadoras dos realizadores da obra (anotadas no cap. 1) e nos estudos

teóricos buscados para a compreensão dos filmes (no cap. 2), em busca da definição

dos traços do estilo que se configura nas narrativas cujas formas expressivas são

pertinentes à cultura contemporânea. Na primeira parte do capítulo, são destacados

frames representativos de curtas e longas; na segunda parte, é realizada a análise

dos filmes, no cotejamento das construções formais encontradas frente aos

pressupostos básicos elaborados da articulação entre as ideias dos realizadores, a

observação dos filmes e os conceitos teóricos trazidos sobre a narrativa e o

contemporâneo.

3.1 Relação dos curtas e longas analisados Foram selecionados para análise os curta-metragens O dia em que Dorival

encarou a guarda (1986), Ilha das Flores (1989) e O sanduíche (2000), e os longa-

metragens O homem que copiava (2003) e Saneamento básico, o filme (2007).

3.1.1O dia em que Dorival encarou a guarda (CM, 14 min, 1986, co-direção Jorge

Furtado e José Pedro Goulart, adaptação do conto homônimo de Tabajara Ruas).

O dia em que Dorival encarou a guarda narra a história de Dorival (João

Acaiabe), que enfrenta os militares do quartel em que está preso para poder tomar um

banho, o que está proibido de fazer há dias. O curta se estrutura na evolução desse

conflito central, com cada militar chamando seu superior. A ordem deve ser cumprida,

e o banho é sempre negado. Assis Brasil diz que a ideia do filme é que cada

personagem queria estar em outro lugar. Cada um deles está imerso em imagens

mentais diversas montadas no filme. O preso não se subjuga, insultao soldado (Pedro

Santos) e ameaça fazer um estardalhaço. O soldado vê em Dorival a figura

ameaçadora de King Kong e é intimado a procurar o cabo (das Figuras 1 a 4). O corte

é para uma cena de faroeste (Figura 5).

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51

Figura 1 - O dia em que Dorival encarou

a guarda. Frame 1.

Figura 2 - O dia em que Dorival encarou a

guarda. Frame 2.

Figura 3 - O dia em que Dorival encarou

a guarda. Frame 3.

Figura 4 - O dia em que Dorival encarou a

guarda. Frame 4.

Figura 5 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 5.

Figura 6 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 6.

Figura 7- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 7.

Figura 8 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 8.

Na cena, um típico cowboyavança cautelosamente em umceleiro de gênero.

Há uma mocinha amarrada e amordaçada e ele é atacado por um índio com o qual

terá que lutar (Figura 8). O cabo (Zé Adão Barbosa) está lendo uma história em

quadrinhos e se imaginando como protagonista. A luta iminente é interrompida pela

voz do soldado de fora da cena de western.

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52

Figura 9- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 9.

Figura 10- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 10.

Figura 11- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 11.

Figura 12- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 12.

Figura 13- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame13.

Figura 14- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 14.

Figura 15- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 15.

Na sequência, Dorival tem seu pedido negado pelo cabo. Há ordens paranão

deixá-lo tomar banho, “e ordens são ordens”, é o argumento (Figura 9). Dorival, cada

vez mais enfurecido, ameaça e desacata os militares, o bordão que usa com cada um

é, gritando: “pra mim, milico e merda é a mesma coisa!”. O corte é para uma quadra

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53

de escola de samba, com som de batucada ao fundo (Figura 10). O Sargento (Sirmar

Antunes) está conversado com a namorada, que usa um telefone público, explicando

que não vai poder ir ao ensaio; ela diz que vãosubstitui-lo no surdo, e paquera outro

homem, que está fora de quadro (Figuras 11 e 12). Entram na sala o soldado e o cabo,

num tom coloquial quase carinhoso: “Sarja!”. Informam do tumulto com o preso, que

há ordens e tal. No corte, o Sargento tenta acalmar Dorival, mas não permite o banho

(Figuras 14 e 15).

De Dorival gritando ameaçador corta para a cena de Casablanca com o cantor

do bar soltando a voz (Figura 16). O Tenente (Lui Strassburger) está assistindo ao

filme em um vídeo (Figura 17) e é interrompido pelos militares subalternos.

Figura 16- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 16.

Figura 17- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 17.

Figura 18- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 18.

Figura 19- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 19.

Page 54: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

54

Figura 20- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 20.

Figura 21- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 21.

O Tenente conclui que Dorival não pode tomar banho. O clima esquenta ainda

mais. Dorival insultaa todos, gritando que são bonecos que obedecem sem saber nem

quem deu as ordens, diz que quem o proibiu de tomar banho foi o carcereiro, por

implicância (Figuras 18 e 19). Os militares, mostrados como racistas desde a primeira

fala, decidem dar uma surra no “negão”, para ele aprender a ter respeito. Chamam

reforços, abrem a cela e espancam Dorival. Para limpar o sangue, Dorival é arrastado

para debaixo do chuveiro (Figura 21). Ao fim, ganha o banho.

3.1.2 Ilha das Flores (CM, 12 min, 1989)

O curta Ilha das Flores se apresenta dúbio desde o primeiro quadro, quando

afirma, em um cartão (Figura 22), que “este não é um filme de ficção”, mesmo que se

reconheça que também não possaser tido comoum documentário (os produtores não

o classificam assim); é uma narrativa em off (Paulo José), num texto com estilo

científico, ilustrada por vários tipos de imagens erepleta de humor e subtextos.

Page 55: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

55

Figura 22 - Ilha das Flores. Frame 1.

Figura 23 - Ilha das Flores. Frame 2.

Figura 24- Ilha das Flores. Frame 3.

Figura 25 - Ilha das Flores. Frame 4.

Figura 26 - Ilha das Flores. Frame 5.

Figura 27 - Ilha das Flores. Frame 6.

A partir do Sr. Suzuki (Figuras 23 e 24), produtor rural do bairro Belém Novo,

em Porto Alegre, o filme conta a trajetória de um tomate podre, dispensado por

umadona de casa, que, depois, também não serve de alimento aos porcos criados

junto ao lixão de uma ilha na periferia da cidade, mas que serve de alimento à

população miserável do local. É um falso documentário, paródia do documentário

clássico, com a locução portando um discurso fechado, uma tese sobre o mundo (tipo

de narrativa chamada de ‘‘a voz de Deus’’, pela onisciência, onipresença e ausência

de corpo), que, ao fim, se transforma em um documentário propriamente dito, com um

novo tipo de imagem e corte. É um discurso que potencializa o conteúdo do

audiovisual com múltiplas digressões, ao modo de verbetes de hipertexto, com a

aparente objetividade da narração em contraponto irônico às imagens e montagem de

materiais híbridos em ritmo acelerado de variados assuntos da cultura humana.

Page 56: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

56

Figura 28 - Ilha das Flores. Frame 7.

Figura 29 - Ilha das Flores. Frame 8.

Figura 30 - Ilha das Flores. Frame 9.

Figura 31 - Ilha das Flores. Frame 10.

Figura 32 - Ilha das Flores. Frame 11.

Figura 33 - Ilha das Flores. Frame 12.

Figura 34 - Ilha das Flores. Frame 13.

Figura 35 - Ilha das Flores. Frame 14.

Os conceitos, fatos, verbetes, associações edigressões que a narração faz, de

fundo histórico e filosófico, são ilustrados com imagens híbridas, nas quais

predominam soluções analógicas de estúdio e trucagens (na época da produção, os

recursos digitais mal se iniciavam): colagens, desenhos, objetos, animações,

reconstituições, publicidade, maquetes, documentários, TV e muitas dessas se

repetem, acompanhando o texto lógico que dá voltas nas comparações que faz, como

Page 57: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

57

se fosse um exagerado documentário de tipo educativo, mas sendo uma paródia

(Figuras 28 a 35).

Figura 36 - Ilha das Flores. Frame 15.

Figura 37 - Ilha das Flores. Frame 16.

Figura 38 - Ilha das Flores. Frame 17.

Figura 39 - Ilha das Flores. Frame 18.

Figura 40 - Ilha das Flores. Frame 19.

Figura 41 - Ilha das Flores. Frame 20.

A tese sobre o mundo que o filme constrói a partir da trajetória do tomate enseja

um estilo de edição livre, cujo humor vai se constituindo pela ênfase das imagens que,

como o texto, simulam objetividade. Mas, no conjunto, no uso da edição, em relação

a outras imagens, na narrativa que desenvolve, na repetição com outros contextos e

sentidos, o texto e as imagens se tornam incertos (Figuras 36 a 41). O filme provoca

uma desacomodação no espectador, porque o sentido carece de trabalho e atenção;

é preciso olhar e escutar, porque imagens e sons não se confirmam, mas se

complementam em contraponto, muitas vezes se contradizem, e os possíveis sentidos

precisam ser descobertos e atualizados a cada momento.

Page 58: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

58

Figura 42 - Ilha das Flores. Frame 21.

Figura 43 - Ilha das Flores. Frame 22.

Figura 44 - Ilha das Flores. Frame 23.

Em meio à sucessão de risos provocados pelas surpresas, pelo estado de

atenção que o texto e cortes acelerados provocam, o filme mostra, nesse ritmo, por

exemplo, de súbito, imagens de alta dramaticidade da história do século passado,

referentes a feridas abertas da humanidade. A explosão da bomba atômica e o

massacre de judeus no holocausto, tragédias da II Grande Guerra do Século XX, são

referidos por imagens documentais, com aparente casualidade e alto impacto (Figuras

42 a 44).

Page 59: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

59

Figura 45 - Ilha das Flores. Frame 24.

Figura 46 - Ilha das Flores. Frame 25.

Figura 47 - Ilha das Flores. Frame 26.

Figura 48 - Ilha das Flores. Frame 27.

Figura 49 - Ilha das Flores. Frame 28.

Figura 50 - Ilha das Flores. Frame 29.

Figura 51 - Ilha das Flores. Frame 30.

Figura 52 - Ilha das Flores. Frame 31.

Figura 53 - Ilha das Flores. Frame 32.

Figura 54 - Ilha das Flores. Frame 33.

Page 60: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

60

Na narrativa, em meio às imagens marcadamente produzidas e antinaturalistas

(Figuras 47 e 48, p.e), insere-se um outro tipo de imagens (figuras 45 e 46 e de 49 a

52), em contraste com as primeiras. Surgem planos realistas, com tratamento muito

diverso por fotógrafo, e em estilo diferente da outra parte do filme, feitos em áreas de

população miserável das ilhas de Porto Alegre, para onde converge a história do

tomate podre jogado ao lixo pela dona de casa, e onde os porcos, pelo fato de terem

donos, têm prioridade de se alimentar sobre as pessoas que sobrevivem do lixão,

porque essas são livres. “Liberdade é o que ninguém sabe explicar, mas todos sabem

o que é.”,éo último dos muitos conceitos e digressões que o texto perfaz na espécie

de hiperaudiovisual que estrutura.

Os créditos finais enfatizam as incertezas do discurso, porque de verdadeiro

mesmo é o filme que fizerem, que foi escrito, dirigido, produzido como tal. Inclusive,

informam, nem foi filmado na Ilha das Flores, embora esse lugar exista.

3.1.3 O sanduíche (CM, 13 min, 2000)

O curta O sanduíche tem uma construção ímpar que vai deslocando a voz

narrativa e ampliando a diegese ao incorparar sucessivos falsos fora de campo,

revelando ser sempre uma história dentro da outra. Inicia (Figura 55) por um diálogo

de despedida de um casal (Janaína Kremer e

Felippe Monnaco).

Page 61: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

61

Figura 55 - O sanduíche. Frame 1.

Figura 56 - O sanduíche. Frame 2.

Figura 57 - O sanduíche. Frame 3.

Figura 58 - O sanduíche. Frame 4.

Figura 59 - O sanduíche. Frame 5.

A conversa muda e os dois interrompem o ensaio do texto, revelando que são

atores e o casal em separação são os papéis que preparam (Figura 56). Os

personagens se dirigem à parede invisível, revelando, num corte rápido e sem

explicações, um público que assiste em uma arquibancada (Figuras 57 e 58). Nessa

segunda diegese, eles inciciam uma outra história, conversam com intimidade sobre

si, aproximam-se até que se beijam. Neste momento, ouvimos um grito de ‘corta’.

Page 62: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

62

Figura 60 - O sanduíche. Frame 6.

Figura 61 - O sanduíche. Frame 7.

Acontece uma nova ruptura, uma nova ampliação da diegese, quando é

revelado que a ação ocorria em um cenário de um set de filmagem (Figura 60), e que

as cenas da separação e dos atores que ensaiam e se beijam são igualmente partes

de uma produção. Os atores se despedem, (na Figura 61) o diretor (Nelson Diniz)

encerra a filmagem ea equipe sai.

Figura 62 - O sanduíche. Frame 8.

Figura 63 - O sanduíche. Frame 9.

Figura 64 - O sanduíche. Frame 10.

Figura 65 - O sanduíche. Frame 11.

Page 63: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

63

Figura 66 - O sanduíche. Frame 12.

Figura 67 - O sanduíche. Frame 13.

Figura 68 - O sanduíche. Frame 14.

Figura 69 - O sanduíche. Frame 15.

O diretor (Nelson Diniz) estuda suas anotações, quando se ouve outra voz de

fora, dizendo “vai grua”. É a voz de mais outro diretor em nova ampliação da diegese.

O movimento de afastamento em grua revela aos poucos, e em plano único (da Figura

62 à Figura 68), o cenário e o estúdio, que estão a céu aberto, no centro da cidade,

de frente a uma arquibancada, com o público que assiste à produção (Figura 69). Em

off, durante a grua, populares se dirigindo aFurtado (fora de campo)dizem o que

acharam da filmagem: gostaram de assistir a filmagem, que devia ter sempre, que é

repetitivo, que dá trabalho, que é muito legal. Vai para fade.

Figura 70 - O sanduíche. Frame 16.

Figura 71 - O sanduíche. Frame 17.

Page 64: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

64

Logo a imagem volta e Jorge Furtado aparece atuando como repórter (Figura

70), perguntando a populares o que acharam. Nesse momento o filme, em fim, atinge

um aspecto de credibilidade na imagem e no som, que parecem neutros. Quando, nas

respostas dos populares, percebe-seque estão repetindo uma fala dita pelo casal na

cena da separação, pelos atores na cena do ensaio e quando se despedem no set de

filmagem, Furtado corrige os populares (Figura 71): “é assim, ela fala: seria ótimo, e

tu responde: seria”. O filme encerra.

3.1.4 O homem que copiava (LM, 124 min, 2003)

O longa-metragem O homem que copiavasegue a história do amor entre dois

jovens, André e Silvia (Lázaro Ramos e Leandra Leal). Ambos são trabalhadores com

pouco dinheiro de um bairro não distante do centro de Porto Alegre. André quer o

amor de Sílvia e também ganhar dinheiro para saírem dali.

Figura 72 - O homem que copiava. Frame 1.

Figura 73 - O homem que copiava. Frame 2.

Figura 74- O homem que copiava. Frame 3.

Page 65: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

65

Figura 75 - O homem que copiava.

Frame 4.

Figura 76 - O homem que copiava.

Frame 5.

Figura 77 - O homem que copiava.

Frame 6.

Figura 78 - O homem que copiava.

Frame 7.

André é ilustrador, mas trabalha como operador de máquina fotocopiadora

numa papelaria do bairro. Ele narra o mundo a partir do ponto de vista muito particular

que tem, os fatos em fragmentos, como as fotocópias que faz, com associaçoes

diversas. André também espia o mundo em volta de casa com binóculos da janela do

quarto (Figura 77). Assim conhece Sílvia (Figura 78), que mora perto. É uma

referência direta à Janela indiscreta (Rear Window, Alfred Hitchcock, 1954), que

também se baseia no ato de ver pela janela através da lente.

Page 66: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

66

Figura 79 - O homem que copiava.

Frame 8.

Figura 80 - O homem que copiava.

Frame 9.

Figura 81 - O homem que copiava.

Frame 10.

Figura 82 - O homem que copiava.

Frame 11.

Figura 83 - O homem que copiava.

Frame 12.

Figura 84 - O homem que copiava.

Frame 13.

A ideia que estrura o filme é que André faz vários planos mirabolantes para

ganhar dinheiro e todos dão certo. O filme mistura mais de uma linha narrativa: a

história de amor de André e Sílvia e os golpes que o protagonista arma com os amigos

Cardoso (Pedro Cardoso) e Marinês (Luana Piovani), numa linha dramática

secundária. Há uma sucessão de peripécias em ritmo acelerado e ricamente

ilustradas: falsificam dinheiro, assaltam um carro forte- situação em que André fere o

segurança que é o pai de Sílvia –, acertam na loteria, ele planeja e assassina

umtraficante amigo, os jovens namoram, planejam e assassinam o pai de Sílvia, e

fogem impunes para o Rio de Janeiro.

Page 67: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

67

Figura 85 - O homem que copiava.

Frame 14.

Figura 86 - O homem que copiava.

Frame 15.

Toda a narrativa é contada pelo ponto de vista de André (Figuras 85 e 86),

através de um off, que é o pensamento do personagem, ilustrado com variadas

imagens. Ele descreve, às vezes com aparente objetividade, detalhes da rotina da

vida sem graça que tem: o bairro humilde, o trabalho na papelaria, o funcionamento

da máquina fotocopiadora, os fragmentos de textos e imagens que vê e imagina, o

histórico de criança problemática, o pai que abandou a família, os desenhos e

colagens que faz. Nessas sequências, é usada uma edição livre de imagens de

origens variadas para ilustrar o pensamento de André, que especula e mistura

diversos assuntos da cultura e sociedade humana.

Figura 87 - O homem que copiava.

Frame 16.

Figura 88 - O homem que copiava.

Frame 17.

Figura 89 - O homem que copiava.

Frame 18.

Figura 90 - O homem que copiava.

Frame 19.

Page 68: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

68

Figura 91 - O homem que copiava. Frame 20.

Figura 92 - O homem que copiava. Frame 21.

Figura 93- O homem que copiava. Frame 22.

A narrativa se apoia em recursos audiovisuais híbridos, é repleta de símbolos,

de imagens, de variadas representações e formatos (Figuras 87 a 93): colagens,

desenhos, iconoclastia, estatuária, HQ, publicidade, televisão, cinema. Na TV (Figura

93), uma cena de ação de Teixeirinha31, na ponte elevadiça do Rio Guaíba, em Porto

Alegre.

Figura 94 - O homem que copiava.

Frame 23.

Figura 95 - O homem que copiava.

Frame 24.

Noutro exemplo das representações que faz, no foco do binóculo, através da

fresta na janela, vê ao fundo um espelho na porta do guarda-roupas, que, conforme a

posição em que fica aberta, mostra um pedaço diferente do quarto de Sílvia aAndré,

31Cantor, compositor, ator, diretor e produtor de cinema, do Rio Grande do Sul (1927/1985).

Page 69: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

69

que monta mentalmente esses fragmentos (Figura 94). O filme insere diversas

referências ao ato de observação, do recorte e enquadramento, da montagem, do

ponto de vista e uso de lentes e formas variadas de representação (Figura 95). Tudo

está fragmentado, leem e veem em fragmentos refletidos aos pedaços.

Figura 96 - O homem que copiava.

Frame 25.

Figura 97 - O homem que copiava.

Frame 26.

O filme valoriza as locações de Porto Alegre (Figuras 96 e 97), em paisagens

que não são usais. É um traço do perfil do cinema de Furtado.

Figura 98 - O homem que copiava.

Frame 27.

Figura 99 - O homem que copiava.

Frame 28.

As ações do filme são preparadas com cuidado, em outras

representações;afirma Jorge Furtado que nada aparece uma única vez. Acima

(Figuras 98 e 99), a cena em que o traficante (Júlio Andrade) é morto, atravessado

por lanças, é vista várias vezes, antes, de outros modos. É um recurso narrativo que

funciona como o implante, a pista que antecipa e cria um padrão que envolve a

atenção do espectador, recompensado pelo trabalho dedicado.

Page 70: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

70

Figura 100 - O homem que copiava. Frame 29.

Figura 101 - O homem que copiava. Frame 30.

Noutro momento, André usa a estratégia de, quando começa a ganhar dinheiro,

dar de presente para Sílvia uma cortina transparente (Figuras 100 e 101).

Figura 102 - O homem que copiava. Frame 31.

Figura 103 - O homem que copiava. Frame 32.

Outro elemento da estrutura é o discurso sério, a tristeza em meio às peripécias

e piadas. André descobre que Antunes (Carlos Cunha), o suposto pai de Sílvia, é um

abusador (aparece mexendo nas coisas, pegando dinheiro e espiando-a no banheiro,

enquanto sugere que se masturba, e, noutro momento, Sílvia sugere ter sido

abusada). Na trama, armam um plano e assassinam Antunes.

Page 71: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

71

Figura 104 - O homem que copiava. Frame 33.

Figura 105 - O homem que copiava. Frame 34.

Figura 106 - O homem que copiava. Frame 35.

Assim, durante uma hora e cinquenta e cinco minutos de filme, toda a história

que inclui os encontros dos dois é narrada pelo olhar e pensamento de André (Figuras

104 a 106).

Figura 107 - O homem que copiava. Frame 36.

Figura 108 - O homem que copiava. Frame 37.

Figura 109 - O homem que copiava. Frame 38.

Page 72: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

72

A narrativa vira: Sílvia revela que sabe de tudo (Figura 107). Revela ter

consciência de que está sendo observada (Figura 108). Conscientes, o casal supera

a fragmentação, decifra os textos e sentidos, e decide fugir dali.

Figura 110 - O homem que copiava. Frame 39.

Figura 111 - O homem que copiava. Frame 40.

Figura 112 - O homem que copiava. Frame 41.

Figura 113 - O homem que copiava. Frame 42.

Figura 114 - O homem que copiava. Frame 43.

Figura 115 - O homem que copiava. Frame 44.

Após todas as peripécias (e crimes cometidos), são premiados no Rio de

Janeiro, recebidos simbolicamente pelo Cristo Redentor. A voz de Sílvia reconta

também em off (em carta ao amigo Paulo/Paulo José) toda a história nos cinco

minutos finais do filme, agora pelo ponto de vista dela. As cenas de encontros de

ambos recebem nova decupagem e montagem. São as mesmas ações, locações e

falas, mas com outros sentidos, pois ela sabia de tudo. Sílvia diz: “minha mãe chama

Thelma, com ‘h’”, é uma anagrama de Hamlet que, segundo Furtado, como Sílvia, é

quem sabe de tudo, é inclusive quem se dirige a quem observa a cena.

Page 73: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

73

Agora, ficamos sabendo, por exemplo, que na cena casual, do início da

narrativa, quando André descreve a papelaria, Sílvia estava presente. Ao fim do filme,

a mesma cena recebe o olhar dela. Quando inverte o ponto de vista, é ela quem

observa André e tem a iniciativa da ação. Acima, nas Figuras 110, 111 e 112, do início

do filme, a cena é vista e descrita por André. Na Figura 111, cai no chãoum postal do

Rio de Janeiro (cidade com a qual Sílvia sonha e para onde vão quando o filme

termina) e André o apanha. Na Figura 113, ficamos sabendo que é Sílvia quem deixara

o cair o postal. Observandobem, agora, vemos que, no início do filme, em 110 e 111,

estava Sílvia, antes mesmo de ter sido apresentada, semiescondida, ao fundo. É uma

construção muito detalhada, uma decupagem que complementa formalmente o fim ao

início do filme, costurada pelos olhares, pelos ângulos, pelas subjetividades.

3.1.5 Saneamento básico, o filme (LM, 112 min, 2007)

O longa-metragem conta a história de uma comunidade do interior que

pretende usar os recursos de um edital público destinado à produção audiovisual em

pequenas cidades na obra de saneamento do arroio Cristal que banha e dá nome ao

lugar.

Figura 116 – Saneamento básico, o filme. Frame 1.

Figura 117 – Saneamento básico, o filme. Frame 2.

Após a fala que se dirige ao público entrando na sala de cinema, durante os

cartões de apresentação, quando o filme se inicia da imagem do céu, a câmera desce

atéa pequena comunidade entre montanhas. O filme abre por uma assembleia de

moradores (Figura 117), em um estilo de vida antigo, dialogado, textual. Marina

(Fernada Torres) lê um poema em uma carta que escrevem ao prefeito pedindo

solução para o esgoto do lugar. Desde o início, é um filme repleto de humor.

Page 74: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

74

Figura 118 – Saneamento básico, o filme. Frame 3.

Figura 119 – Saneamento básico, o filme. Frame 4.

Figura 120 – Saneamento básico, o filme. Frame 5.

Figura 121 – Saneamento básico, o filme. Frame 6.

Figura 122 – Saneamento básico, o filme. Frame 7.

As situações e os personagens são cômicos, segundo Furtado, inspirados nos

tipos da commedia dell’arte. Nas Figuras 118 a 122: o casal Marina e Joaquim

(Wagner Moura); Otaviano (Paulo José), pai de Marina e Silene (Camila Pitanga), que

aparece com o namorado Fabricio (Bruno Garcia), e Antônio (Tonico Pereira), amigo

de Otaviano. Também há uma oposição entre o mundo antigo, representado pela

marceneria de Otaviano e filhas (Figura 120), e o mundo novo da produção do vídeo.

Também faz um discurso sério, quando debate sobre poder fazer ou não cinema

quando não há dinheiro para resolver o esgoto (Furtado diz que essa é a tese e que,

para ele, pode). Os personagens discutem o que é ficção, o que é roteiro, se vão fazer

um filme ou um vídeo, comparam o valor das coisas: um saco de cimento, uma cadeira

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75

ou uma fita de vídeo. Se apaixonam pela ideia de fazerem um filme, que se torna algo

muito mais importante.

Figura 123 – Saneamento básico, o filme. Frame 8.

Figura 124 – Saneamento básico, o filme. Frame 9.

Uma característica é a naturalização da vida que, mesmo bem interiorana, é

tratada sem clichês, na rotina comum, na intimidade dos casais, por exemplo. Nas

imagens acima (Figuras 123 e 124), momentos de diálogos criativos, cômicos.

Figura 125 – Saneamento básico, o filme. Frame 10.

Figura 126 – Saneamento básico, o filme. Frame 11.

Figura 127 – Saneamento básico, o filme. Frame 12.

Figura 128 – Saneamento básico, o filme. Frame 13.

Page 76: NO LIMITE DAS FORMAS. A Configuração do Contemporâneo no

76

Produzem um filme (Figuras 125 a 128) com as ferramentas e

referências que têm. ‘‘O monstro do fosso’’, filme diegético, objeto da ação dos

personagens, tem as características do cinema de bordas. É uma repetição de

formas de gêneros diversos, cujo conteúdo faz sentido apenas no contexto em

que vivem os personagens, que se tornam os realizadores e o público de

bordas. Em ‘‘O monstro do fosso’’, não há nexos causais temporais e se torna,

de fato, um pretexto pelo qual os personagens de Saneamento básico

representam os problemas da representação.

Figura 129 – Saneamento básico, o filme. Frame 14.

Figura 130 – Saneamento básico, o filme. Frame 15.

Figura 131 – Saneamento básico, o filme. Frame 16.

Os membros do grupo descobrem que precisam editar o filme e procuram o

produtor de vídeos de eventos sociais Zico (Lázaro Ramos, Figuras 129 e 130), em

Bento Gonçalvez que, perto, é a cidade grande. Na ilha de edição, manipulam a

imagem. Zico encontra na fita sobras de imagens provocantes de Silene feitas pelo

namorado na intimidade do casal. Com esse matertial, e vários efeitos especiais de

vídeo, conclui a narrativa de ‘‘O monstro do fosso’’, que é uma confusão, sem pé nem

cabeça.

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77

Figura 132 – Saneamento básico, o filme. Frame 17.

Figura 133 – Saneamento básico, o filme. Frame 18.

Figura 134 – Saneamento básico, o filme. Frame 19.

Figura 135 – Saneamento básico, o filme. Frame 20.

O vídeo que produzem mescla várias formas: terror, ficção científica, romance,

mocinha indefesa, herói, documentário, vídeo ambiental, vídeo doméstico,

sensualidade, tudo misturado, sem seguir uma linha narrativa definida, e faz enorme

sucesso na comunidade. O público local entende e se identifica profundamente com

a produção (Figuras 132 a 135).

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78

Figura 136 – Saneamento básico, o filme. Frame 21.

Figura 137 – Saneamento básico, o filme. Frame 22.

Figura 138 – Saneamento básico, o filme. Frame 23.

O vídeo ‘‘O monstro do fosso’’ é um sucesso. Silene transforma-se em uma

estrela (Figura 136), o turismo local dispara, os negócios da marcenaria progridem,

onde vendem vários produtos ligados ao tema do vídeo, entre eles, pequeno detalhe,

um abajur de cabeceira que é uma lanterna mágica (Figura 137). O arroio Cristal

segue poluído. A vida local segue.

3.2 Sob o crivo da análise fílmica

Nas ideias norteadoras dos realizadores da obra de Jorge Furtado e nos

estudos teóricos buscados para a compreensão dos filmes (conforme pontuado

acima), foram localizados alguns conceitos formais muito presentes, conforme podem

ser identificadosnos filmes em análise, possibilitando traçar um estilo nas realizações

configurado às feições da contemporaneidade.

3.2.1 O espectador nos pormenores das histórias e r oteiros A primeira intenção que Jorge Furtado e Giba Assis Brasil expressam é a

preocupação em contar uma boa história. Aqui, sobretudo, como princípio, pensam

na comunicabilidade da obra com o público, uma necessidade no projeto que

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desenvolvem. Os filmes são narrativos, estruturados demodo adespertar o interesse

e deter a atenção do espectador com o desenrolar até o desfecho da história que

contam. Porém, não desenvolvem uma fórmula pura: elogiam e usam as formas do

clássico, cujas referências buscam especialmente na literatura e no teatro, mas são

filmes com formas marcadamente híbridas e autoreflexivas, que misturam humor e

discursos sérios sobre o mundo, que atualizam e operam variadas outras mesclas, à

feição dos modos de saber e da cultura do contemporâneo.

Embora sempre seja arriscado definir o que é uma boa história, porque as

ideias às vezes funcionam e às vezes não, é uma característica marcante, no estilo

de Furtado, a ênfase e o trabalho nos roteiros. Há muita clareza quanto às histórias

narradas e às estruturas dos filmes, que são escritas e decupadas no pormenor (nas

amarras, costuras, passagens, pistas e uso das outras técnicas que antecipam e

vinculam os acontecimentos e fazem a narrativa evoluir com controle). Nesse cinema,

considera-se a presença ativa do espectador, que é chamado a construir sentidos

contingentes, ao acompanhar o padrão que a forma estabelece.

Os filmes desenvolvem histórias bases em conceitos estruturantes dos quais

não se afastam. Mas não há uma forma única. Ilha das Flores (CM, 1989) e O

sanduíche (CM, 2000), como exemplos, têm características muito próprias, o primeiro,

modelo de paródia, hipertexto e hibridismo, o segundo, na construção que perpassa,

em cascata, instâncias de enunciação que vão sendo incorporadas à diegese. Frente

ao tipo clássico de narrativa, O dia em que Dorival encarou a guarda (CM, 1986), O

Homem que copiava (LM, 2003) e Saneamento Básico (LM, 2007) seguem a

evolução, numa relação de causa e efeito de situações que se agravam, da trajetória

de cada protagonista: no curta, o preso do quartel enfrenta os militares para poder

tomar um banho, porque está proibido; em um dos longas, André, o jovem desenhista

age na busca do amor de Sílvia e para ganhar dinheiro; no outro, a comunidade

interiorana, para conseguir a verba da obra sanitária da localidade, precisa fazer um

vídeo de ficção, que é um exemplar ficcional do cinema de bordas, mas sem a menor

ideia de como se faz isso. Esses três filmes narram as trajetórias dos personagens,

os heróis chamados à aventura, conforme o paradigma que Furtado refere,

enfrentando dificuldades e crises sucessivas que se agravam até a culminância. As

cenas são encadeadas por relações de causa e efeito, e constroem tempos e espaços

mostrados parcialmente. Os universos dos personagens são construídos de modo

conciso, cabe à imaginação do espectador completar as informações. No modelo:

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uma situação entra em desequilíbrio, o personagem se esforça em busca do objetivo

(amor e dinheiro, tomar um banho ou fazer um filme), vive crises e riscos e se

transforma, chegando a um novo equilíbrio.

As aventuras de André começam quando ele se apaixona por Sílvia e precisa

arrumar 38 reais para se aproximar dela. Após a intensa jornada de peripécias,

transformados e premiados pelo esforço empenhado, os personagens (André e Sílvia,

e os amigos Cardoso e Marinês) saboreiam a vitória, impunes apesardos graves

crimes cometidos, numa nova e feliz vida no Rio de Janeiro.

O filme sobre o preso Dorival começa com a situação já em crise; os formatos

de curta e de conto literário, nosquaisse inspira, são ainda mais sintéticos, tratam da

parte mais forte da história, a qual, portanto, pegam já em curso. Há uma crise que se

agrava na sucessão de conflitos conectados entre preso e militares do quartel, até a

culminância: o espancamento, que leva a uma nova estabilidade, enfim, o banho.

Na pequena localidade interiorana, a sucessão de acontecimentos segue a

trajetória dos personagens (e seus dramas paralelos) envolvidos com a tarefa, cada

vez mais difícil, de produzirem um vídeo de ficção (o plano é usar a verba de um edital

público para produção audiovisual em pequenas cidades na obra sanitária da

localidade).

Os filmes são formados pelo desenvolvimento causal de grandes conflitos

motrizes e por conflitos menores ligados a esse, que se sucedem e se agravam numa

linha de tempo registrada de modo conciso, pois apenas alguns acontecimentos da

vida dos personagens são mostrados. São três exemplos, portanto, que usam as

estruturas narrativas clássicas, mas não apenas.

3.2.2 O simulacro, o hiperaudiovisual, a paródia, o sério e a mente fragmentada dos personagens

Essas narrações são focalizadas a partir de pontos de vista e imaginários dos

personagens no modo de mostrar os eventos da trama. A visão dada não privilegia o

melhor ângulo da cena ao espectador ideal,poisestá dentro dos acontecimentos. O

olhar não é objetivo nem unificado, embora muitas vezes o filme simule imparcialidade

(quando também é autoreflexivo), na característica descrição e associação em

cadeias de conceitos ricamente ilustrados, através do texto em off, estilo que surge

em Ilha das Flores (CM, 1989), está em A matadeira (CM, 1994) e em A teoria quântica

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da gravidade (CM, 2010), e pontua outros filmes, como Meu tio matou um cara (LM,

2004) e, de modo destacado, estrutura O homem que copiava (LM, 2003), que segue

primeiro o pensamento de André e, ao fim, o de Sílvia. Nesse sentido, opera o jogo

possível entre a objetividade e aparente crença na verdade da imagem (e também do

relato testemunhal) e o errático e fragmentado do olhar e mente dos personagens

(semelhantes às pessoas reais) e dos enquadramentos e construções que o filme faz.

Mesmo que as narrativas de Ilha das Flores e de O sanduíche também sigam

estruturas e linhas muito claras, diferem dos outros exemplos, pois não acompanham

um determinadopersonagem em busca de seu objetivo. Ilha das Flores é conduzido

pela narração de um locutor ‘‘de fora’’, no tom objetivo e isento comum ao

documentário educativo denominado ‘‘clássico’’, que discorre um argumento sobre o

mundo a partir da trajetória de um tomate. A paródia, forma característica do

contemporâneo, segundo Hutcheon (1980), uma atualização na repetição com

distância crítica das expressões do passado, é construída no formato de um

audiovisual em hipertexto, um tipo de raciocínio que faz múltiplas e livres associações

conceituais, como se fosse um cérebro eletrônico que passeia por uma enciclopédia

virtual, descortina a possibilidade de haver sempre outro texto e mostra que o saber

está fragmentado (à semelhança da atual experiência de navegar pela internet, por

exemplo). Esse uso característico do texto em off, que, em Ilha das Flores, articulando

linhas de pensamentos lógicos, imita a locução onisciente do documentário, o qual

parodia, em O homem que copiava, aparece como um dispositivo semelhante, sendo

a voz interior de André que narra, às vezes com aparente objetividade, fazendo

também as livres associações em modo de hipertexto; é o pensamento do

personagem, uma voz diegética e fragmentada.

Em O homem que copiava, que representa a partir da mente de André, quase

tudo é símbolo, o real se torna de difícil apreensão, não há originalidade, o passado é

atualizado em citações fragmentadas do que já não é, e o mundo é povoado por

imagens de si mesmas, num tempo em que a produção de real e de referencial é

maior que a produção material (conforme Baudrillard, 1982, conceitua o simulacro).

As imagens desenraizadas são articuladas em um processo de bricolagem (apontado

por Santana, 2006), em que o filme forja um novo tipo de realidade, com referenciais

muito difusos, imaginativos.

A unidade que a história e estrutura centrais imprimem aos filmes é

contrastante ao hibridismo que advém do olhar e mente fragmentadas dos

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personagens e textos. É o que se observa no hibridismo associado à subjetividade

dos militares que vão sendo chamados a enfrentar o preso Dorival. Vem da

imaginação fragmentada de André o hibridismo de O homem que copiava. Ilha das

Flores é o exemplo mais conhecido, inaugura o estilo que incorpora imagens e

referências de qualquer procedência, que atualiza potencialmente qualquer elemento

da cultura, precursor de espécie de ‘‘hiperaudiovisual’’ e ‘‘hipernarrativa’’.

Nessa linha de mesclas, o estilo dos filmes conforma incertezas que há, por

exemplo, entre o documentário e a ficção. Ilha das Flores é o caso mais emblemático,

exemplo de problematização dos limites entre os campos, que até hoje, vinte e seis

anos após a estreia, ainda suscita dúvidas e discussões [A mataderia (CM, 1994)

também opera no mesmo intercampo; Essa não é sua vida (CM, 1991) é o curta que

os realizadores assumem como documentário, porém no estilo moderno32; também é

documentário o recente e híbrido longa Mercado de notícias (LM, 2013)]. O estilo que

predomina é de ficção, mas o desenvolvimento de discursos sérios emprega aos

filmes um realismo comum no documentário, mas muito possível na ficção em meio

ao proeminente humor que apresenta.

A impureza entre o documentário e a ficção também está na combinação entre

comédia e sério. O diretor se identifica com a comédia triste, o humor triste como a

forma mais próxima do que são as pessoas. Entre piadas rápidas, aparecem os temas

sérios da humanidade: fome, pobreza e liberdade, autoritarismo e opressão, abuso

doméstico e obrigatória gratidão, produção de cultura em meio à falta de saneamento

público, entre outros.

Porém, persiste o aspecto dúbio das produções, pois, além dessa expressa

preocupação séria com o mundo, abstém-se de moralismos: assim como o adultério

não é punido em Real beleza e o sexo mercantilizado é natural em Houve uma vez

dois verões, os personagens de O homem que copiava cometem um rolde graves

crimes (falsificação, assalto e homicídio) e não são punidos. Além disso, também

fogem aos clichês, o que gera desacomodação no público, são alguns exemplos:

mesmo com personagens negros no Rio Grande do Sul, não tratam do racismo;no

interior, a vida íntima é naturalizada.

32Os documentários modernos, nas formas do ‘direto’ e do ‘verdade’, apresentam estruturas anti-ilusionistas, nas quais se evidência o processo de fabricação do filme e a carência intrínseca de validade geral que as narrativas apresentam.

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Muitos filmes de Furtado desenvolvem como que uma tese sobre o mundo, em

parte na forma desse raciocínio lógico, usando textos com narração em off, que são

permeados por digressões e associações de fundo filosófico, semântico, retórico,

histórico, científico, estético, moral, político, carregados de humor e ironia pelo

exagero ou contraponto, pelo subtexto e sentidos contingentes e sugeridos, quando

se apropria e imita discursos pretensamente isentos, em meio a diferentes e

cambiantes níveis de subjetividade. Essas construções em alto ritmo são permeadas

de citações no que se chama de ‘‘narração por camadas’’; pois, voltadas ao grande

público, atêm-se à história base, mas recebem um grande número de detalhes

inscritos em outras camadas que serão percebidos por grupos menores de audiência,

dependendo das referências culturais e atenção do espectador (esse é um dos

motivos pelos quais os filmes, mesmo que ricamente ilustrados, às vezes até com

erudição, são apreciados pelo público de massa da televisão).

Como exemplos da subjetivação, em O dia em que Dorival encarou a guarda e

em O homem que copiava, os olhares e mentes dos personagens, através dos quais

opera a narração, tutelam a imagem. Os filmes do diretor constroem sobremaneira

representações e chamam a atenção para a subjetividade intrínseca, que muitas

vezes se oculta da instância de articulação. A autoreflexão é uma das estratégias

frequentes encontradas nas configurações formais. A voz que narra deixa de ser

centralizada, unificada, oculta e isenta. A citação frequente de Furtado, como

exemplo, está na fala inicial de Hamlet, que se dirige ao extracampo, perguntando

“quem está aí, quem está narrando, quem está observando a cena?”.

3.2.3 A representação representada e o fluxo de con sciência

O off de Ilha das Flores pode ser visto como a enunciação ficcionalizada. O

homem que copiava‘‘hiper-representa’’ e vincula a narrativa ao enquadramento, ao

olhar e ao ponto de vista, nos recortes da máquina fotocopiadora, nos desenhos e

colagens, e, com destaque, em André que espia o mundo da janela do quarto em

fragmentos enquadrados pelas lentes do binóculo. O filme representa a imaginação e

a montagem quando compõe, na mente de André, o quarto de Sílvia a partir de partes

refletidas no espelho do guarda roupas. Quando a narrativa troca da voz de André

para a de Sílvia, e a imagem muda, o filme joga com a importância do ponto de vista

e do enquadramento para o sentido. Em Saneamento básico, o filme os personagens

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encarnam papéis de diretores de cinema e brincam com as possibilidades e limitações

da narrativa, do roteiro, da edição. A autoreflexão integra a própria estrutura do curta

O Sanduíche, que faz um movimento de contínuo afastamento e ampliação do campo

da cena, incorporando sucessivas instâncias de enunciação, até o extremo do artifício,

no que seria a última camada, do próprio diretor em cena naturalista, que logo se

mostra mais uma atuação (presença do diretor em cena que também está em Mercado

de notícias). A parcialidade do artifício é ensejada e dada a ver na ação e na narrativa.

O sentido, deixando assim de ser unívoco, mas uma possibilidade presente no

filme, depende da recepção, passa a ser contingente, e sobre ele, portanto, não há

garantias. O sentido é dado da leitura, efeito da narrativa. É assim que funciona “O

monstro do fosso”, que seria sem pé nem cabeça, mas que faz muito sentido no

contexto e para o público específico em que é exibido como parte de Saneamento

básico, o filme. Nesse longa, os problemas da representação e da narrativa integram

a própria trama, o filme representa a representação.

A contingência também está no constructo. As espécies de comandos,

inspiração da literatura de Kurt Vonnegut e do grupo de escritores do OuLiPo (Oficina

de Literatura Potencial), apresentam um toque de circunstancial pela regra, pelo

dispositivo autoimposto à narrativa. O comando do jogo que imagina o realizador

estipula: “Ilha das Flores é todo em narração em off e terá dois fotógrafos que nem se

falarão”, “todos os personagens querem estar em outro lugar em Dorival”, “O

sanduíche se baseia no dispositivo do movimento que expõem a produção da

narrativa”, “Saneamento básico não pode ter off e são personagens da commedia dell

art”, “em O homem que copiava a história troca de olhar ao fim”. As narrativas têm

sistemas que as estruturam, que forjam os padrões voltados para a participação do

espectador, na acepção trazida de Bordwell e Thompson (2013).

Os filmes, como já dito, têm estruturas muito definidas, nas quais a palavra

ocupa um espaço importante. Porém, o texto é adaptado: as formas narrativas se

originam na literatura, mas se constroem no plano e na montagem de cinema; as falas,

especialmente nos característicos textos em off, são elementos expressivos do plano,

porque palavra e imagem não se repetem, nem se confirmam, e carecem de

objetividade. Nesta linha, nos filmes, de certo modo, Furtado tenta aquilo que aponta

faltar na natureza do cinema: representar o fluxo de consciência dos personagens,

transformado em roteiros e planos.

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3.2.4 Diverso e criativo: mistura de tudo São obras por princípio e extrinsecamente multirreferenciais, que têm a

potência de presentificar qualquer objeto do passado. Mistura de tudo, e “mistura de

todos os filmes”, como diz Furtado (2014). O estilo vem do cinema, do teatro, da

literatura e até da música da época da virada entre anos 70 e 80, como a “calça cotton

e a AIDS”, conforme Assis Brasil (2014). Assim como a estrutura clássica da jornada

do herói é conhecida desde os filmes e séries da TV, a temática dos jovens do lugar

está em Deu pra ti anos 70 (1981), traços do estilo estão dispersos no oceano de

filmes de diretores citados. As narrativas com várias linhas, a criatividade no modo de

narrar, as estratégias anti-ilusionistas, a manipulação do áudio, o filme tese e a relação

objetividade/subjetividade da imagem, o hipertexto, o corte acelerado, as trocas de

pontos de vista, a estrutura não linear eo humor triste podem ser vistos, de modos e

graus variados, em Nós que nos amávamos tanto (1974), Annie Hall (1977), Meu tio

da América (1980), Toda a memória do mundo (1956) e tantos filmes de Scola, Allen,

Resnais, e também De Sica, Hitchcock, Kurosawa, Wenders, Fellini, Formam e vários

outros, cujo cinema múltiplo identifica o estilo de Furtado.

Os filmes vistos, com constantes, mas em diversas formas, se fundam num

jogo contextual livre, pertinente ao contemporâneo, que potencializa as possibilidades

criativas do cinema, pois, estabelecidas as regras da narrativa, tudo é possível.

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CONCLUSÃO - UM OLHAR REUNIFICADOR NAS MESCLAS

Pela análise doconjunto, que representa uma produção muito ampla e

diversificada, percebe-se que os filmes de Jorge Furtado operam nos limites impuros

das formas e categorias expressivas, enquanto identificação pertinente ao contexto

contemporâneo.

A tessitura formada entre a objetividade e a subjetividade no enquadramento e

narrativa, também na impureza própria do olhar fragmentado, na referência e na

atualização das formas clássicas, ao mesmo tempo em que se distancia ao expor e

representar as construções que faz, são alguns traços dos filmes pertinentes ao

ambiente contemporâneo, onde vigem a expansão do tempo presente, o predomínio

da produção simbólica e a fragmentação do sentido e do olhar – o trio

destemporalização, desreferencialização e destotalização, segundo Gumbrecht

(1998) -, conforme exposto nesse trabalho.

A modulação de estilo nas formas adotadas se dá em mesclas entre a

autoconsciência e o uso das técnicas da narrativa, quando articulam sistemas e fazem

jogos de sentidos possíveis ao espectador, cuja presença passa a ser sabidamente

ativa. O sujeito a quem a câmera se referenda deixa de ser onisciente, pois os filmes

representam e trabalham com o errático e incerto das linguagens e dos sentidos, em

pontos de vista inseridos natrama, implicando, com frequência, em operações de

redirecionamento de expectativas criadas como parte dos jogos narrativos em que se

estruturam. Isentos de metanarrativas, ancorados na materialidade das imagens

produzidas, a interpretação de sentido deixa de ser perene, e ganha força a ideia do

contextual e contingente das relações de narração e recepção.

Neste ínterim, surgem os hibridismos, a paródia (repetição com distância

crítica), o simulacro (imagem cuja referência é outra imagem) como dominantes no

ambiente, a autorreflexão e as múltiplas citações: formas sempre articuladas como

partes de jogos narrativos.

Essas estratégias se encontram fundadas na construção de sistemas formais

narrativos que seguem a intenção de contar histórias simples e básicas, no

encadeamento causal de eventos, em linhas de tempo e espaço, para o envolvimento

e participação entretida do espectador. Entretanto,as narrativas entrelaçam mais de

uma linha dramática e várias estratégias. O tensionamento que, como categoria do

contemporâneo, mescla autoconsciência à ilusão do filme, todavia, também reforça

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as unidades na fragmentação, na medida em que estão implicadas nas próprias

tramas e olhares que estruturam os filmes.

Na obra, entre alguns dos principais traços, também estão as inscrições em

camadas de sentido (das mais acessíveis às mais eruditas), o humor e a inserção de

discursos sérios em meio ao trivial do jogo narrativo.

O tema sério, em assuntos e imagens muito realistas, convivendo com o

intenso humor e artificialidade assumida da produção, é característica dos filmes em

análise. Os roteiros, planos filmados e montagens, costurados ricamente nos

detalhes, acompanham e desenvolvem, além da narrativa, teses sérias sobre o

mundo. Apesar da fragmentação do saber, do pensamento e do olhar midiatizados e

do contexto desprovido de referências confiáveis que representam, os filmes forjam

fortes unidades dramáticas, estruturais e personagens que juntam peças do mundo

fragmentado. A trajetória de juntar fragmentos, reconfigurar e ler o mundo, no caso de

André e Sílvia, em O homem que copiava (2003), é um exemplo da operação

reunificadora que os filmes fazem. Nesse mesmo sentido, embora erroneamente tidos

por vezes como formalistas ou vazios, tratam-se de filmes altamente críticos e

intelectualizados, mesmo que voltados ao público de massas, não apenas pelas teses

e discursos sérios, mas pelo próprio ato político de desvelar e refletir sobre as

representações midiáticas do mundo atual.

Ao hipertexto, desenvolvido no discurso repleto de associações e verbetes, um

emprego ostensivo e irônico da palavra, muitas vezes na forma de um off,

correspondem um hiperaudiovisual e uma hipernarrativa. Os filmes são repletos de

representações visuais, ligadas à imaginação dos personagens, e pontuados de

detalhes nas construções narrativas (nas antecipações, pistas, preparações, golpes

dramáticos etc.).

A palavra, nos offs dos pensamentos e descrições do mundo pelos

personagens, marca o estilo. No arranjo que os filmes fazem, os textos são elementos

expressivos do plano, elementos da narrativa, cuja mais direta referência

cinematográfica vem de Allain Resnais. Palavra e imagem, presenças superlativas no

estilo hiper, não se confirmam nem se repetem, são partes igualmente integradas ao

contar da história.

A unidade e estrutura dos filmes também são advindas dos conceitos formais

que funcionam como comandos, conforme a referida adesão à proposta de escritores

como Kurt Vunnegut e do grupo OuLiPo.

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Com essas características, no estilo, fica privilegiado o jogo narrativo:

estabelecidas as normas internas do filme, tudo é possível nas formas de apresentar

as histórias. Neste caso, o parâmetro que permanece é o posicionamento ético nas

escolhas, mesmo que os valores morais sejam dilatados nas vidas dos personagens.

Assis Brasil sugere que o estilo vem do ‘‘ar do tempo’’ – estava no que

assistiam, liam e escutavam, mas a preocupação primeira é com as histórias

contadas. Furtado afirma: “eu sou muito mais um roteirista que dirige do que um

diretor” (FURTADO, 2012, p. 27), com acerto, porque a ênfase está nas histórias e

roteiros de filmes pensados na impureza dos limites das formas, nas mesclas e

atualizações, nas bricolagens entre citações diversas e na ênfase narrativa. São

realizações do tempo e espaço atuais nas formas expressivas com que representam.

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