no limite das formas. a configuração do contemporâneo no
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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
GUILHERME DE SOUZA CASTRO NETO
NO LIMITE DAS FORMAS.
A Configuração do Contemporâneo no Estilo de Cinema de
Jorge Furtado.
SÃO PAULO
2015
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
GUILHERME DE SOUZA CASTRO NETO
NO LIMITE DAS FORMAS.
A Configuração do Contemporâneo no Estilo de Cinema de
Jorge Furtado.
Dissertação de Mestrado apresentada à Banca
Examinadora, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre do Programa de
Mestrado em Comunicação, área de concentração
em Comunicação Contemporânea da Universidade
Anhembi Morumbi, sob a orientação da Prof. Dra.
Maria Bernadette Cunha de Lyra
SÃO PAULO
2015
GUILHERME DE SOUZA CASTRO NETO
NO LIMITE DAS FORMAS.
A Configuração do Contemporâneo no Estilo de Cinema de
Jorge Furtado.
Dissertação de Mestrado apresentada à Banca
Examinadora, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre do Programa de
Mestrado em Comunicação, área de concentração
em Comunicação Contemporânea da Universidade
Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dra.
Maria Bernadette Cunha de Lyra
Aprovado em ----/-----/-----
___________________________________
Prof. Dra. Maria Bernadette Cunha de Lyra
___________________________________
Prof. Dra. Rosana de Lima Soares
___________________________________
Prof. Dr. Gelson Santana Penha
Agradeço em especial, pela sábia e generosa orientação, à Dra Benadette Lyra, pelos
ensinamentos e convivência, aos professores e colegas de mestrado, e, pelo apoio
fundamental, aos meus amigos e familiares.
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo estudar e analisar as formas fílmicas e as categorias expressivas que configuram estilos pertinentes à contemporaneidade nos filmes de Jorge Furtado (Porto Alegre, Brasil, 1959). Trata-se de uma produção premiada nos mais importantes festivais do Brasil e do mundo, obtendo sucesso de crítica e público, desde os primeiros curtas-metragens dos anos 80 (dentre os quais O temporal, de 1984, O Dia em que Dorival encarou a guarda, 1986 e Ilha das Flores,1989) à série de longas-metragens iniciados nos anos dois mil (como Houve uma vez dois verões, de 2002, O homem que copiava, 2003, Saneamento básico, 2007 e Mercado de notícias, 2013). Tais filmes, por um lado, dedicam-se a estabelecer uma alta comunicabilidade com o público, tratando de contar, de maneira atraente, histórias bastante evidentes e diretas, por outro, diferenciam-se pelas formas múltiplas, híbridas e autorreflexivas trabalhadas em roteiros e realizações ricos em detalhes narrativos, muitas vezes antinaturalistas. Essa duplicidade estrutural se constrói sobre certas características específicas, reiteradas de modo variado: o uso do texto em off(um hipertexto que compõe uma espécie de hiperaudiovisual, vinculado a pontos de vista variáveis e incertos que, inseridos na trama, tutelam o olhar para a construção das cenas); uma organização de tempo em que o presente se dilata; o espaço povoado por imagens desprovidas de lastro, representando a fragmentação do olhar e do pensamento. Além disso, os filmes também se caracterizam pelo “humor triste”: personagens e textos provocam o riso em sucessivas situações cômicas, porém, pelo uso recorrente da paródia e de outras estratégias críticas, reflexões sérias sobre a vida estão inseridas em todas as obras, evidenciando-se em situações dramáticas e em teses sobre o mundo. As estratégias, que sustentam a construção desses filmes, transitam pelos limites das formas;elas são fragmentárias, apresentando-se com mesclas e impurezas. No entanto, a essa fragmentação e miscigenação, os filmes contrapõem sólidas unidades narrativas, conceituais e também formais. Todos os pressupostos de base elencados neste trabalho decorrem da análise fílmica de um conjunto representativo da obra cinematográfica em questão e estão consolidados a partir de um diálogo com o pensamento dos cineastas Jorge Furtado e Giba Assis Brasil, materializado por textos e entrevistas, e da aplicação teórica das categorias de narrativa cinematográfica (especialmente em David Bordwell) e de contemporâneo (especialmente em Hans Ulrich Gumbrecht) às análises feitas, com a finalidade de compreender e descrever como se configura a expressão do tempo e espaço atuais no estilo do cinema de Jorge Furtado.
Palavras-chaves: Jorge Furtado, análises fílmicas, formas, categorias
expressivas, estilo cinematográfico contemporâneo.
ABSTRACT
The objective of this research is to study and to analyze the filmic forms and the expressive categories that configure relevant styles to the present times in the movies by Jorge Furtado (Porto Alegre, Brazil, 1959). It is a production awarded in the most important festivals in Brazil and in the world, gaining acclaim from critics and audience, since the early short movies from the 1980s (among them: Storm, 1984; The Day Dorival faced the guard, 1986; and Island of Flowers, 1989) to the set of feature films started in the 2000s (such as Two Summers, 2002, The Man who copied, 2003, Basic Sanitation – The Movie, 2007, and The Staple of News, 2013). Such films, on the one hand, are dedicated to establish a high communicability with the public, trying to tell, attractively, quite clear and straightforward stories, on the other hand, they differ in the multiple, hybrid and self-reflective forms, developed through elaborate narrative details on the scripts and filming, often anti-naturalistic. This structural duplicity is created on certain specific characteristics, on repeated ways: the use of voice over (a hypertext that composes a sort of hyper-audiovisual, related to variable and uncertain points of view that, within the plot, guide the look for the construction of the scene); an organization of time in which the present stretches; the space is filled by images devoid of ballast, representing the fragmentation of the look and the thought. Besides, the films are also characterized by the sad humor: the characters and texts provoke laughter in successive comic situations, but, as a result of the recurrent use of the parody and other critical strategies, serious reflections about life are inserted in the works, demonstrated in dramatic situations and theories about the world. The strategies that support the construction of these films pass through the borders of the forms; they are fragmentary, presented with mixtures and impurities. However, to this fragmentation, the movies oppose solid narrative, conceptual and formal units. All the underlying assumptions listed in this work derive from the filmic analysis of a representative set of the given cinematographic work and are consolidated through a dialogue with the thought of the filmmakers Jorge Furtado and Giba Assis Brasil, made concrete using texts and interviews; moreover, the theoretical application of the categories of the cinematic storytelling (especially David Bordwell) and of the concept of contemporary (especially Hans Ulrich Gumbrecht) in regard to the analysis made are presented, in order to comprehend and to describe how the expression of present time and space are configured in the Jorge Furtado’s film style. Keywords: Jorge Furtado; filmic analysis; forms; expressive categories; contemporary film style.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 1. .................. 51
Figura 2 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 2. .................. 51
Figura 3 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 3 ................... 51
Figura 4 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 4 ................... 51
Figura 5 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 5. .................. 51
Figura 6 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 6. .................. 51
Figura 7 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 7. .................. 51
Figura 8 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 8. .................. 51
Figura 9 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 9. .................. 52
Figura 10 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 10. ............. 52
Figura 11 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 11. ............. 52
Figura 12 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 12. ............. 52
Figura 13 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame13................ 52
Figura 14 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 14. ............. 52
Figura 15 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 15. ............. 52
Figura 16 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 16. ............. 53
Figura 17 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 17. ............. 53
Figura 18 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 18. ............. 53
Figura 19 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 19. ............. 53
Figura 20 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 20. ............. 54
Figura 21 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 21. ............. 54
Figura 22 - Ilha das Flores. Frame 1. ........................................................... 55
Figura 23 - Ilha das Flores. Frame 2. .......................................................... 55
Figura 24 - Ilha das Flores. Frame 3. ........................................................... 55
Figura 25 - Ilha das Flores. Frame 4. ........................................................... 55
Figura 26 - Ilha das Flores. Frame 5. ........................................................... 55
Figura 27 - Ilha das Flores. Frame 6. ........................................................... 55
Figura 28 - Ilha das Flores. Frame 7. ........................................................... 56
Figura 29 - Ilha das Flores. Frame 8. ........................................................... 56
Figura 30 - Ilha das Flores. Frame 9. ........................................................... 56
Figura 31 - Ilha das Flores. Frame 10. ......................................................... 56
Figura 32 - Ilha das Flores. Frame 11. ......................................................... 56
Figura 33 - Ilha das Flores. Frame 12. ......................................................... 56
Figura 34 - Ilha das Flores. Frame 13. ......................................................... 56
Figura 35 - Ilha das Flores. Frame 14. ......................................................... 56
Figura 36 - Ilha das Flores. Frame 15. ......................................................... 57
Figura 37 - Ilha das Flores. Frame 16. ......................................................... 57
Figura 38 - Ilha das Flores. Frame 17. ......................................................... 57
Figura 39 - Ilha das Flores. Frame 18. ......................................................... 57
Figura 40 - Ilha das Flores. Frame 19. ......................................................... 57
Figura 41 - Ilha das Flores. Frame 20. ......................................................... 57
Figura 42 - Ilha das Flores. Frame 21. ......................................................... 58
Figura 43 - Ilha das Flores. Frame 22. ......................................................... 58
Figura 44 - Ilha das Flores. Frame 23. ......................................................... 58
Figura 45 - Ilha das Flores. Frame 24. ......................................................... 59
Figura 46 - Ilha das Flores. Frame 25. ......................................................... 59
Figura 47 - Ilha das Flores. Frame 26. ......................................................... 59
Figura 48 - Ilha das Flores. Frame 27. ......................................................... 59
Figura 49 - Ilha das Flores. Frame 28. ......................................................... 59
Figura 50 - Ilha das Flores. Frame 29. ......................................................... 59
Figura 51 - Ilha das Flores. Frame 30. ......................................................... 59
Figura 52 - Ilha das Flores. Frame 31. ......................................................... 59
Figura 53 - Ilha das Flores. Frame 32. ......................................................... 59
Figura 54 - Ilha das Flores. Frame 33. ......................................................... 59
Figura 55 - O sanduíche. Frame 1. ............................................................... 61
Figura 56 - O sanduíche. Frame 2. ............................................................... 61
Figura 57 - O sanduíche. Frame 3. ............................................................... 61
Figura 58 - O sanduíche. Frame 4. ............................................................... 61
Figura 59 - O sanduíche. Frame 5. ............................................................... 61
Figura 60 - O sanduíche. Frame 6. ............................................................... 62
Figura 61 - O sanduíche. Frame 7. ............................................................... 62
Figura 62 - O sanduíche. Frame 8. ............................................................... 62
Figura 63 - O sanduíche. Frame 9. ............................................................... 62
Figura 64 - O sanduíche. Frame 10. ............................................................. 62
Figura 65 - O sanduíche. Frame 11. ............................................................. 62
Figura 66 - O sanduíche. Frame 12. ............................................................. 63
Figura 67 - O sanduíche. Frame 13. ............................................................. 63
Figura 68 - O sanduíche. Frame 14. ............................................................. 63
Figura 69 - O sanduíche. Frame 15. ............................................................. 63
Figura 70 - O sanduíche. Frame 16. ............................................................. 63
Figura 71 - O sanduíche. Frame 17. ............................................................. 63
Figura 72 - O homem que copiava. Frame 1. ............................................. 64
Figura 73 - O homem que copiava. Frame 2. ............................................. 64
Figura 74 - O homem que copiava. Frame 3. ............................................. 64
Figura 75 - O homem que copiava. Frame 4. ............................................. 65
Figura 76 - O homem que copiava. Frame 5. ............................................. 65
Figura 77 - O homem que copiava. Frame 6. ............................................. 65
Figura 78 - O homem que copiava. Frame 7. ............................................. 65
Figura 79 - O homem que copiava. Frame 8. ............................................. 66
Figura 80 - O homem que copiava. Frame 9. ............................................. 66
Figura 81 - O homem que copiava. Frame 10. ........................................... 66
Figura 82 - O homem que copiava. Frame 11. ........................................... 66
Figura 83 - O homem que copiava. Frame 12. ........................................... 66
Figura 84 - O homem que copiava. Frame 13. ........................................... 66
Figura 85 - O homem que copiava. Frame 14. ........................................... 67
Figura 86 - O homem que copiava. Frame 15. ........................................... 67
Figura 87 - O homem que copiava. Frame 16. ........................................... 67
Figura 88 - O homem que copiava. Frame 17. ........................................... 67
Figura 89 - O homem que copiava. Frame 18. ........................................... 67
Figura 90 - O homem que copiava. Frame 19. ........................................... 67
Figura 91 - O homem que copiava. Frame 20. ........................................... 68
Figura 92 - O homem que copiava. Frame 21. ........................................... 68
Figura 93 - O homem que copiava. Frame 22. ........................................... 68
Figura 94 - O homem que copiava. Frame 23. ........................................... 68
Figura 95 - O homem que copiava. Frame 24. ........................................... 68
Figura 96 - O homem que copiava. Frame 25. ........................................... 69
Figura 97 - O homem que copiava. Frame 26. ........................................... 69
Figura 98 - O homem que copiava. Frame 27. ........................................... 69
Figura 99 - O homem que copiava. Frame 28. ........................................... 69
Figura 100 - O homem que copiava. Frame 29. ......................................... 70
Figura 101 - O homem que copiava. Frame 30. ......................................... 70
Figura 102 - O homem que copiava. Frame 31. ......................................... 70
Figura 103 - O homem que copiava. Frame 32. ......................................... 70
Figura 104 - O homem que copiava. Frame 33. ......................................... 71
Figura 105 - O homem que copiava. Frame 34. ......................................... 71
Figura 106 - O homem que copiava. Frame 35. ......................................... 71
Figura 107 - O homem que copiava. Frame 36. ......................................... 71
Figura 108 - O homem que copiava. Frame 37. ......................................... 71
Figura 109 - O homem que copiava. Frame 38. ......................................... 71
Figura 110 - O homem que copiava. Frame 39. ......................................... 72
Figura 111 - O homem que copiava. Frame 40. ......................................... 72
Figura 112 - O homem que copiava. Frame 41. ......................................... 72
Figura 113 - O homem que copiava. Frame 42. ......................................... 72
Figura 114 - O homem que copiava. Frame 43. ......................................... 72
Figura 115 - O homem que copiava. Frame 44. ......................................... 72
Figura 116 – Saneamento básico, o filme. Frame 1. ................................ 73
Figura 117 – Saneamento básico, o filme. Frame 2. ................................. 73
Figura 118 – Saneamento básico, o filme. Frame 3. ................................. 74
Figura 119 – Saneamento básico, o filme. Frame 4. ................................. 74
Figura 120 – Saneamento básico, o filme. Frame 5. ................................. 74
Figura 121 – Saneamento básico, o filme. Frame 6. ................................. 74
Figura 122 – Saneamento básico, o filme. Frame 7. ................................. 74
Figura 123 – Saneamento básico, o filme. Frame 8. ................................. 75
Figura 124 – Saneamento básico, o filme. Frame 9. ................................. 75
Figura 125 – Saneamento básico, o filme. Frame 10. ............................... 75
Figura 126 – Saneamento básico, o filme. Frame 11. ............................... 75
Figura 127 – Saneamento básico, o filme. Frame 12. ............................... 75
Figura 128 – Saneamento básico, o filme. Frame 13. ............................... 75
Figura 129 – Saneamento básico, o filme. Frame 14. ............................... 76
Figura 130 – Saneamento básico, o filme. Frame 15. ............................... 76
Figura 131 – Saneamento básico, o filme. Frame 16. ............................... 76
Figura 132 – Saneamento básico, o filme. Frame 17. ............................... 77
Figura 133 – Saneamento básico, o filme. Frame 18. ............................... 77
Figura 134 – Saneamento básico, o filme. Frame 19. ............................... 77
Figura 135 – Saneamento básico, o filme. Frame 20. ............................... 77
Figura 136 – Saneamento básico, o filme. Frame 21. ............................... 78
Figura 137 – Saneamento básico, o filme. Frame 22. ............................... 78
Figura 138 – Saneamento básico, o filme. Frame 23. ............................... 78
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO - NO LIMITE DAS FORMAS: A CONFIGURAÇÃO DO CONTEMPORÂNEO NO ESTILO DE CINEMA DE JORGE FURTADO ..................... 14
1 UMA ‘BOA HISTÓRIA’, IMPUREZAS E MULTIRREFERÊNCIAS ................. 18
1.1 O prazer do jogo dramático. O novo na repetição. Cinema em potencial. 19
1.2 Palavra, imagem, engano e fluxo de consciência .................................. 22
1.3 Um filme, um mar de filmes e o ar do tempo. .......................................... 25
2 A EXPERIÊNCIA COM OS LIMITES DAS FORMAS FÍLMICAS – A NARRATIVA E O CONTEMPORÂNEO ............................................................................. 31
2.1 Ilusionista e anti-ilusionista ............................................................................ 33
2.2 Os elementos da narrativa clássica ............................................................. 34
2.3 Foco narrativo: a narração de dentro ........................................................... 35
2.4 O preso Dorival e o sentido contingente ..................................................... 37
2.5 O hibridismo narrativo em Barbosa e A Matadeira .................................... 38
2.6 A paródia em Ilha das Flores e os enganos em O Sanduíche ................ 40
2.7 A citação do Cinema de Bordas em Saneamento básico, o filme .......... 43
2.8 Simulacros, autorreflexão, jogos narrativos e bricolagem em O homem que copiava ......................................................................................................................... 45
2.9 Os pressupostos de base para a análise .................................................... 49
3 A ANÁLISE DOS FILMES DE JORGE FURTADO ........................................... 50
3.1 Relação dos curtas e longas analisados ..................................................... 50
3.1.1 O dia em que Dorival encarou a guarda .............................................. 50
3.1.2 Ilha das Flores .......................................................................................... 54
3.1.3 O sanduíche .............................................................................................. 60
3.1.4 O homem que copiava ............................................................................ 64
3.1.5 Saneamento básico, o filme ................................................................... 73
3.2 Sob o crivo da análise fílmica ........................................................................ 78
3.2.1 O espectador nos pormenores das histórias e roteiros ..................... 78
3.2.2 O simulacro, o hiperaudiovisual, a paródia, o sério e a mente fragmentada dos personagens .................................................................................... 80
3.2.3 A representação representada e o fluxo de consciência .................. 83
3.2.4 Diverso e criativo: mistura de tudo ........................................................ 85
CONCLUSÃO - UM OLHAR REUNIFICADOR NAS MESCLAS ....................... 86
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 89
14
INTRODUÇÃO - NO LIMITE DAS FORMAS: A CONFIGURAÇÃO D O CONTEMPORÂNEO NO ESTILO DE CINEMA DE JORGE FURTADO
Os filmes do roteirista e diretor Jorge Furtado (Porto Alegre, Brasil, 1959), com
importância alcançada junto a festivais, crítica e público, vêm apresentando, em
profícua e exitosa produção, desde os primeiros curtas-metragens (CM) dos anos 80
do século XX, aos longas-metragens (LM) iniciados nos anos 2000, um estilo próprio
que enseja reflexões diversas sobre as formas do cinema no contexto da cultura
contemporânea.
O cinema tem por parâmetro a estrutura de representação consagrada, que
opera a construção de uma cena naturalizada, como se existisse por si mesma e não
houvesse instância de produção do sentido. As rupturas contemporâneas fazem a
quebra da parede de invisibilidade da construção do filme, mantendo, porém,
diferentemente das rupturas modernas, a intenção do diálogo com o público em obras
narrativas.
No ambiente contemporâneo com o qual os filmes de Furtado dialogam,
tomando a descrição de Gumbrecht (1998), o presente se dilata, as teorias capazes
de explicar todos os fenômenos são abandonadas e o espaço é povoado por
representações com tênues referências aomundo externo; é quando a ideia de
superioridade unificadora do espírito sobre a matéria e a centralidade da interpretação
sobre os sentidos profundos do que é expresso na superfície não mais prevalecem. A
ideia de sentido prévio e unificado é substituída pela contextualização das condições
da emissão e da recepção, e o sentido, assim, passa a ser contingente.
O estilo, em conceito trazido de Bordwell e Thompson (2013), relaciona-se aos
procedimentos reiterados no uso das formas do cinema na construção do filme e no
conjunto da obra do realizador. As principais técnicas do cinema disponíveis para os
arranjos formais expressivos que configuram estilos estão compreendidas na narrativa
e na mise-en-scène.
Os filmes em questão se apresentam de forma múltipla: são narrativos,
amparados na “suspensão provisória da incredulidade’’, quando voltados a contar
uma boa história para o interesse do espectador envolvido com a obra, conforme
Furtado e Assis Brasil (2014), mas, também, marcadamente híbridos, autoconscientes
e anti-ilusionistas nas estratégias narrativas que desenvolvem.
15
Entre os curtas-metragens, já o filme de estreia, O temporal (CM, 1984),
inovador à época, narra com humor e hibridismo formal a história da noite em que falta
luz durante uma festa. Em O dia em que Dorival encarou a guarda (CM, 1986) - sobre
o preso que quer tomar um banho, um filme narrativo, mas híbrido nas formas e
gêneros-, a contingência é um fator relevante: cenas de clássicos do cinema ganham
novos sentidos e o espectador fica incluído. Em Ilha das Flores (CM, 1989), a trajetória
de um tomate podre na forma de uma paródia de documentário clássico; o filme lança
um estilo reconhecido e posteriormente muito reproduzido no uso do off e da
montagem. As formas expressivas recebem diferentes usos também no curta de
ficção, documentário e falso documentário A matadeira (CM, 1994), cuja ênfase está
na representação quando encena a tomada da histórica Canudos em um armazém no
centro de Porto Alegre. Estruturado num jogo narrativo e autoreflexivo, O
Sanduíche (CM, 2000) passa por diferentes camadas de enunciação a partir do
diálogo de um casal. O estilo aparece com força em Velásquez e a teoria quântica da
gravidade (CM, 2010): off, hibridismo, representações e edição aceleradas, humor e
autoreflexão, a partir do quadro As meninas (Diego Valazquez, 1656).
Os longas-metragens de estreia,Houve uma vez dois verões (LM, 2002) e Meu
tio matou um cara (LM, 2004), são dramas adolescentes, mesclados com comédia,
numa lógica similar ao ambiente de jogos que ilustra os planos, e têm na elaboração
dos roteiros os pontos fortes. O homem que copiava (LM, 2003) é uma história de
amor entre jovens urbanos em peripécias possíveis num mundo dominado por
imagens sem referências (simulacros), em fluxo, num filme que sublinha a
autoconsciência e alterna com engenhosidade os pontos de vista. A produção de
sentido ocupa lugar central na trama e na narrativa de Saneamento básico, o filme
(LM, 2007): sobre uma comunidade interiorana às voltas com um problema de esgoto
e com a produção de cinema de bordas.
Os filmes longas-metragens mais recentes são o documentário O Mercado de
notícias (LM, 2013), que, híbrido entre encenação teatral e intervenção do diretor, faz
uma reflexão séria através de entrevistas sobre o jornalismo brasileiro, e o primeiro
drama, Real beleza (LM, inédito), que se difere dos demais, pois não é híbrido e nem
autoconsciente, mas estrutura-se também pelo tema do olhar, de comparações dos
valores das coisas, entre o clássico e o transitório.
Nesses filmes, representativos da obra do diretor, há uma presença importante
de formas e categorias identificadas com o cinema contemporâneo, as quais se
16
articulam em torno do eixo da visibilidade da enunciação, porém em narrativas
construídas com a intenção de provocar a participação do espectador, características
bastante visíveis no cinema de Furtado.
Partindo de um diálogo com o pensamento dos realizadores e da observação
dos filmes frente a teorias cinematográficas e do contemporâneo para a localização
dos pressupostos de base, a análise fílmica deste trabalho está voltada para a
localização das formas que sustentam as categorias expressivas responsáveis pela
configuração do estilo da contemporaneidade na obra de Jorge Furtado.
O material que compõe o capítulo primeiro da dissertação é elaborado a partir
de textos, e-mails trocados e entrevistas realizadas para este trabalho com Jorge
Furtado1, e com o montador dos filmes, Giba Assis Brasil2, na Casa de Cinema de
Porto Alegre3, produtora da qual são fundadores e sócios. Nesse diálogo com o
pensamento dos realizadores, aparecem como ideias centrais a ênfase nas histórias
de base e na narrativa, os conceitos formais que funcionam como estruturas dos
filmes, o humor, as impurezas, as múltiplas citações e referências, a variedade e a
diversidade no tipo de cinema que propõem.
No segundo capítulo, observando os filmes, é desenvolvido um quadro teórico
sobre as categorias expressivas do cinema, com subsídios de teoria da narrativa,
frente às características do tempo e das formas do contemporâneo, a fim de
estabelecer os pressupostos de base para a análise fílmica.
1Além da multi-premiada atuação no cinema, um autodidata que iniciou quatro cursos, mas não se graduou, Jorge Furtado também faz televisão, especialmente como colaborador de Guel Arraes na Rede Globo, é escritor, com 8 títulos lançados, articulista e pensador com textos e conferências publicados. A filmografia de Furtado está registrada em: http://www.imdb.com/name/nm0299134/. 2Giba Assis Brasil (Porto Alegre, Brasil, 1957), graduado em jornalismo pela UFRGS, é montador, roteirista, professor universitário, conferencista e militante do cinema com intensa atuação e expressão nacional. Também dirigiu, entre outros, Deu pra ti anos 70 (LM, super 8 mm, 1981) e Verdes anos (LM, 35 MM, 1984), dois filmes que são precursores do cinema que desenvolvem. Ao se falar em cinema de Jorge Furtado, fica intrínseca a participação intelectual dos colabores próximos, entre os quais, a contribuição reconhecida de Giba Assis Brasil. A filmografia de Assis Brasil está registrada em: http://www.imdb.com/name/nm0039856/.
3A Casa de Cinema de Porto Alegre é uma produtora criada em 1987, originalmente por 11 sócios que dividiam o mesmo espaço, no intuito de colaboração e produções conjuntas. Desde então, a produtora teve uma atuação ampla e intensa em cinema e televisão, angariando cerca de 300 prêmios em Festivais nacionais e internacionais. Hoje são quatro sócios: além de Furtado e Assis Brasil, a roteirista e diretora Ana Luiza Azevedo e a produtora Nora Goulart. Informações sobre a produtora podem ser encontradas em: http://www.casacinepoa.com.br/os-filmes/principal.
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O terceiro capítulo tem duas partes: primeiro, são indicados frames
representativos de cinco filmes que abrangem um período de 21 anos – oscurtas O
dia em que Dorival encarou a guarda (1986), Ilha das Flores (1989) e O sanduíche
(2000), e os longas O homem que copiava (2003) e Saneamento básico (2007); a
seguir, é apresentado o texto de análise dos filmes.
Nesse caminho, é possível estabelecer, na conclusão, quais são e como
funcionam as categorias formais do contemporâneo presentes nos filmes de Jorge
Furtado.
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1 UMA ‘BOA HISTÓRIA’, IMPUREZAS E MULTIRREFERÊNCIAS
Neste capítulo, procuro destacar e organizar algumas das ideias expressas em
textos publicados e inéditos de Jorge Furtado4 e nas entrevistas que fiz com ele e com
Giba Assis Brasil, que irei relacionar ao estudo teórico e análise fílmica nos capítulos
subsequentes no intuito de compreender o estilo formal do diretor.
Quais são as ideias norteadoras do estilo do cinema de Jorge Furtado?
Após a entrevista, na saída da Casa de Cinema de Porto Alegre, o Giba Assis
Brasil provoca: “o Jorge costuma dizer que estilo é preguiça do cineasta” (ASSIS
BRASIL, 2014). Eles afirmam não se preocuparem com a forma e não se deterem no
estilo e na interpretação do que fizeram, vindo a descobrir as possíveis leituras sobre
os filmes nos textos posteriores escritos por terceiros (de fato, guardam e citam vários
artigos sobre os filmes); porém, fazem reflexões importantes, não apenas sobre o
cinema e os filmes que realizam, mas também sobre a cultura e o tempo atuais, sobre
o que falam em momentos diferentes.
Os realizadores reiteram que partem sempre de uma boa história, para depois
pensarem na melhor forma narrativa: “A situação ficcional vem em primeiro lugar,
depois pensamos nas imagens, no modo de narrar” (ASSIS BRASIL, 2014). Partem
de boas histórias, sobre as quais há clareza, e também está presente sempre de modo
pronunciado o interesse na comunicabilidade da obra5, utilizando certas estratégias
características. Nesse sentido, num tom quase confessional, Assis Brasil explica que
se decidiram desde cedo a fazer algo que até pode ser autoral, sobre o que não
haveria interesse em sublinhar, mas “nunca para desprezar e excluir o espectador”
(ASSIS BRASIL, 2014). Desse modo, nos filmes, embora com um pronunciado sentido
4Procuro estabelecer um diálogo com o pensamento dos realizadores a partir de cinco textos de Furtado: “O Sujeito Extra-ordinário e a mimese camuflada” (em O cinema do real, 2005); “Quando sonhamos, sonhamos filmes” (em Os filmes da minha vida 4, O real e o imaginário, 2012); “Anotações sobre memória, cinema e psicanálise” (participação em curso de extensão em Cinema e Psicanálise, na PUC/RS, 2006) e “Onze ideias e meia” (publicado em A face escondida da criação, 2005), cujos originais foram-me enviados pelo autor, e “Adaptação literária para cinema e televisão” (palestra realizada na X Jornada de Literatura de Passo Fundo, 2003, disponível na internet); também a partir de e-mails trocados e entrevistas realizadas com Jorge Furtado (em 12/11/14 ) e com Giba Assis Brasil (em 16/10/2014), na produtora Casa de Cinema de Porto Alegre. Porém, é bom mencionar que, contemporâneo, conterrâneo e colega de profissão, acompanho o pensamento e a produção de ambos desde os anos 80.
5“Comunicabilidade’ conforme David Bordwell, O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos (2005), que é visto no capítulo seguinte.
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formal, a forma vem depois da história; porém, também é visível a importância da
busca do engajamento do público no trabalho detalhado das construções narrativas
que executam.
Assim, dizem que a análise caberia ao analista enão a eles, mas, nas falas
(bem como nos filmes) sempre repletas de citações diversas, oferecem pistas
importantes às análises possíveis.
Registrada o que parece ser uma ressalva dos realizadores, de que o cinema
que fazem não coloca o interesse formal acima da história e da comunicabilidade com
o espectador, é bastante possível apontar traços que marcam um estilo formal definido
desde os primeiros curtas, dos anos 1980, presente nos trabalhos de televisão6 e no
conjunto de longas iniciadonos anos dois mil, no qual aparecem, por um lado, fortes
marcas da narrativa clássica, e, por outro, características diversas de ruptura com
essa forma predominante. Nessas realizações, há uma articulação expressiva
inovadora em prol da narrativa.
1.1 O prazer do jogo dramático. O novo na repetição . Cinema em potencial.
No texto “O sujeito extra-ordinário e a mimese camuflada”7, Furtado diz que,
numa separação ideal, mas impossível, “porque documentário e ficção são ‘gêmeos
siameses”, entre Lumière e Méliès8, “sou Méliès de carteirinha, o realismo nunca me
enganou” (FURTADO, 2005a, p. 99). De fato, mesmo quando faz documentários,
esses são paródias, híbridos que misturam ficção e diversos tipos de expressões,
filmes de classificação dúbia9. No escopo da dissertação, atento para a expressa
6Para a televisão, podem ser destacadas as colaborações de Furtado como roteirista nas séries da Rede Globo Agosto (1993), Memorial de Maria Moura (1994), Os normais (2003), A cidade dos homens (2002/05), Antônia (2006), Ó paí, Ó (2008/09), a criação e direção de Cena aberta (2003), cuja proposta era baseada no estilo de autorreflexão que o realizador propõe, e Doce de mãe (2012). 7A partir de mesa que dividiu com Ismail Xavier e Eduardo Coutinho, nas Conferências da X edição do “É tudo verdade”, publicado em O cinema do real (2005a).
8Referência aos Irmãos Lumière e à Geoge Méliés, precursores do cinema, aos primeiros creditado o início do documentário, ao segundo, pouco depois, o da ficção.
9Como tema paralelo, também se refere à impossibilidade ou irrelevância da separação nítida entre documentários e ficções. Nesse sentido, embora Ilha das flores tenha se tornando mundialmente conhecido como tal não é, com acerto, considerado um filme documentário pelos realizadores. Além disso, e em aparente contradição, como marca de todos os trabalhos, em meio à comédia e jogo lúdico narrativo, piadas e ficção, há sempre um discurso sério, característica que também é arrolada como de estilo.
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vocação ficcionista do realizador, cuja ênfase costuma estar nas histórias básicas,
muitas vezes com arquétipos, nas formas do roteiro e da narrativa, articulando o
clássico e o contexto contemporâneo nos filmes que realiza.
Entre as citações, há uma passagem do psicanalista, médico e pensador Carl
Gustav Jung (1875/961) que observa estruturas arquetípicas comoparecendo “leitos
secos, cuja forma determina a característica do rio” (FURTADO, 2005a, p. 101). Esta
é uma imagem que se coaduna à visão de forma e de estilo de cinema trabalhados
na dissertação, que se refere a certos padrões consagrados. O realizador afirma que
segue os padrões narrativos da estrutura clássica10, em três atos [conforme Joseph
Campbell (O herói de mil faces) e Cristopher Vogler (A jornada do escritor)]: a jornada
do herói que recebe um chamado à aventura, que sai do seu mundo comum para ir a
outro especial, em busca de um objetivo (o amor da mocinha, o prêmio, vencer o
inimigo) - a estrutura clássica, que entrelaça amor e aventura. Os filmes em estudo,
voltados ao público, usam as estruturas arquetípicasda ficção, “cuja suspensão da
descrença permite usufruir com segurança o prazer do jogo dramático” (FURTADO,
2005a, p. 101),mas essa característica, embora sempre presente, não explica
suficientemente os filmes.
Desde logo, como aspecto central unido à narratividade, também fica
evidenciada a inserção consciente em um ambiente cultural que, em potência, mistura
tudo que já foi feito, presentifica e atualiza qualquer expressão pregressa. As
referências e elementos são de todo o tipo de arte e cultura: literatura, cinema, teatro,
histórias em quadrinhos, televisão, artes gráficas variadas, estatuária, colagens,
reflexões sobre a própria narrativa, filosofia, ironia, discurso sério, documentários,
história, etc.; apresentando, assim, um aspecto muito diversificado na composição do
hibridismo como marca e a serviço da narração da história base.
Sobre esse perfil muito destacado na obra, em Onze Ideias e Meia, é enfatizada
a raridade e mesmo virtual impossibilidade de uma ‘ideia nova’ no campo da cultura
10Em “O sujeito extra-ordinário e a mimese camuflada” (2005a, p. 98 e ss), Furtado discorre sobre o conceito de clássico: remete a janela do quadro de cinema (1/1,66) às proporções do Parthenon; pelo dicionário: diz respeito à artes dos gregos e romanos antigos, o sóbrio e simples, o modelo e exemplo; aquilo cujo valor é confirmado pelo tempo; “um bom filme antigo”. Quando o cinema clássico é o parâmetro, é pertinente aos cânones pré-estabelecidos, observados na “estrutura e nos procedimentos narrativos do cinema americano dos últimos 50 anos”, descritos por Campbell e Vogler. Uma abordagem sobre a estrutura narrativa clássica em cinema é mais detalhada no capítulo seguinte deste trabalho.
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(tudo que não é natureza)11. O autor manifesta-se contra a originalidade, e, na
ausência de ideias novas, diz: “o melhor a fazer é tentar conhecer e misturar ideias já
nascidas” (FURTADO, 2005b). É um princípio que cabe aos filmes, quando segue:
“de preferência uma mistura de forma e proporção incomum ou, melhor ainda, inédita,
a ponto desta mistura poder até ser chamada de nova” (FURTADO, 2005b). Na
repetição, da qual não há escape, é que está o novo da obra, mas complementa com
ironia: “embora provavelmente os gregos já tenham tido uma ideia igualzinha, e antes
deles os chineses e os hindus”. No mesmo texto, sublinha que, enquanto na ciência
novas ideias transformam as anteriores em ‘‘refugo’’, “na arte (...) criar e transformar
são sinônimos. A arte não é substitutiva, não se desinventa nem se perde”
(FURTADO, 2005b). Assim, o diretor sugere que é possível identificar um pouco de
tudo em tudo que o homem faz. Esse ambiente está no modo híbrido, nas múltiplas
citações, e justifica a liberdade formal, elementos com osquais os filmes são
estruturados, mesmo que perfeitamente amarrados às formas narrativas.
Nas bases percebidas do cinema de Furtado, é registrado que, enquanto
citação, autoreflexão, mas, sobretudo, como estrutura que constrói e segue, a
literatura e a dramaturgia clássicas12 estão presentes de modo destacado, desde as
adaptações, nos primeiros curtas, nos longas e também nos textos e falas aqui
apresentadas. Em Osujeito extra-ordinário e a mimese camuflada, Furtado enuncia
comparações entre os clássicos da literatura e modos de representar no cinema13.
O diretor refere que a maior formação que tem (como autor e realizador)
provém do cinema, mas, enquanto esse tem pouco mais de cem anos, a literatura é
11As citações de “Onze ideias e meia” foram obtidas do original, enviado pelo autor. Por essa razão, deixam de vir com página remissiva, embora, na bibliografia, esteja citada a posterior publicação do artigo no livro A face escondida da criação, de Clara Pechansky (Ver Furtado, 2005b, nas referências bibliográficas). 12Os autores são profícuos leitores e conhecedores de filmes, se percebe pelas citações nos trabalhos e falas. Furtado é especialista em Willian Shakespeare, cuja obra diz ter dedicado dez anos de exclusiva leitura, da qual é tradutor, e coloca nas falas e quase sempre nos filmes que faz; seus personagens parecem dizer: “quem está produzindo essas imagens que estão acontecendo? Quem possui estas imagens? "Who’s there?", "Quem está aí?", como na instigante fala inicial de Hamlet, uma peça que é a síntese extraordinariamente eloqüente da perplexidade do ser humano com as origens de sua condição". (FURTADO, “Anotações sobre memória, cinema e psicanálise”). 13Na participação no É tudo verdade (ver FURTADO, 2005a. P. 103 e ss), Furtado relaciona Homero, Petrônio, Dante, Santo Agostinho, Rabelais, Montaigne, Shakespeare, Cervantes, Molière, Voltaire, Saint-Simon, Goethe, Stendhal, Balzac, Flaubert, Brecht a Resnais, Godard, Welles, Allen, Tarantino, Herzog, Pereira dos Santos, Joaquim Pedro, Monty Python, Gutierrez Alea, Scorsese, Capra, Fellini, Buñel, Coutinho, Bergman, Kurosawa, Scola, Wilder, Altman, Janete Clair, Huston, Cunningham, Tarkovsky e Rocha, o que confirma a diversidade de referências ao estilo que desenvolve.
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milenar, mais sofisticada, porque entra no inconsciente do personagem, e fonte
principal de referência (FURTADO, 2005a, p.102).
Porém, o cinema do autor, híbrido, além de se estruturar em modelos narrativos
consagrados, é contemporâneo também na literatura em que se inspira. Na entrevista,
informa: “... quando eu apresentei para os meus colegas o Ilha das flores (em projeto
antes da produção) a minha referência principal era o (escritor norte americano Kurt)
Vonnegut” (FURTADO, 2014), que integra o grupo OuLiPo, Oficina de Literatura em
Potencial, cuja marca é o estabelecimento de comandos à narrativa, limites
autoimpostos, regras que balizam o texto, apenas por jogo, espécie de exercício
intelectual14. O autor afirma que articula “essa brincadeira de narrativa, uma
autoimposição, no caso do Ilha das Flores: um filme sem som direto, só com narração;
impõe que são dois fotógrafos, que nem se falarão, para criar a menor unidade
possível” (FURTADO, 2014).
Essa característica tem algo de mecânico, aleatório, padronizador, que Furtado
aponta em Ilha das Flores (CM, 1989) e que corresponderia a uma certa falta de lógica
do computador (ainda uma novidade à época do filme), comparada à hoje: “coloca no
Google a palavra Judeu, e vai aparecer desde o holocausto, até qualquer coisa”;nesse
sentido, antecipou a tecnologia: “o Ilha tem um pouco isso. Eu disse assim, qual é a
imagem que a gente tem de tomate? Isso, isso e isso” (FURTADO, 2014).
O sistema, espécie de jogo narrativo, também é lembrado por Assis Brasil, em
O Dia em que Dorival encarou a guarda (1986), no qual cada personagem queria estar
em outro lugar; sobre essa espécie de norma narrativa, o filme é construído.
1.2 Palavra, imagem, engano e fluxo de consciência
Também é notável, na visão de Furtado, mesmo fortemente herdeira das
formas narrativas consagradas, na relação com a literatura, a transposição para as
formas expressivas do cinema como um pressuposto. Isso é tratado de modo didático
e pontual na fala do autor sobre adaptações, na X Jornada Nacional de Literatura de
Passo Fundo, que enumera as diferenças: “na linguagem audiovisual toda a
informação deve ser visível ou audível” (FURTADO, 2003); a principal consequência
14Assis Brasil como referências, de Kurt Vonnegut, cita os livros Slaughterhouse-Five (Matadouro 5) de 1969, Breakfast of Champions (Café-da-Manhã dos Campeões) de 1973. Furtado ainda, do mesmo grupo, nomeia os escritores Georges Perec, Raymond Queneau, Italo Calvino e Umberto Eco.
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disso é a virtual impossibilidade do roteiro referir diretamente ao fluxo de consciência
do personagem, frequente na literatura, e a vedação ao uso de palavras abstratas:
“Palavras como pensa, lembra, esquece, sente, quer ou percebe, presentes em
qualquer romance, são proibidas para o roteirista, que só pode escrever o que é visível
(FURTADO, 2003)”. Outra diferença destacada é o fato de a literatura se basear mais
no conhecimento prévio e imaginação própria do leitor, que monta a cena lida em sua
mente, enquanto que no cinema cabe ao realizador determinar quase tudo que
aparece e se escuta no filme: o aspecto, o modo de enquadrar, a ordem em que as
informações são reveladas, as cores etc.. “Lendo, cada leitor cria suas próprias
imagens, sem custos de produção e limites de realidade. É natural que se decepcione
quando veja as imagens criadas pelo cineasta e diga: ‘gostei mais do livro’”
(FURTADO, 2003). O tempo previamente determinado do filme, o evento ritualístico
compartilhado em que implica, o trabalho coletivo na realização, a soma de diversas
artes numa articulação única, os elementos específicos do enquadramento,
movimentos de câmera etc. compõem, na fala de Furtado, o que é próprio do cinema.
O modo de expressão do cinema, por um lado, é naturalizado: no ensaio
Anotações sobre memória, cinema e psicanálise, cita António Damásio ao afirmar que
o cinema é o que mais se aproxima da narrativa que ocorre na mente: “O que acontece
em cada plano, o enquadramento diferente de um assunto que o movimento da
câmera pode mostrar, o que se passa na transição de planos” (FURTADO, 2006) têm
equivalência à espécie de produção de imagens e sons internos.
Porém, por outro lado, o autor refere às limitações das imagens frente à palavra:
“Se é verdade que a narrativa por imagens é natural, também é verdade que a palavra
representa com maior exatidão a complexidade do pensamento humano...”
(FURTADO, 2006). Destaca, entre as limitações, que “a imagem não pode afirmar a
inexistência da coisa representada”, mesmo que René Magritte brinque com esta
impossibilidade em Isto não é um cachimbo, diz Furtado (2006). A outra característica
é que a imagem tende a expressar sentidos diversos e incertos. De fato, isso justifica
que a palavra ocupe um lugar de destaque no cinema de Furtado, mas a articulação
desse elemento, enquanto narrativa, se ampara no jogo possível pelo engano e acerto
presentes nas imagens e textos em diferentes contextos. Nesse jogo, imagens e
palavras não se confirmam nem se repetem e são elementos expressivos da narrativa.
As limitações fazem parte da forma expressiva.
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O engano da imagem é explicado em O sujeito extra-ordinário e a mimese
camuflada, no qual Furtado diz que o cinema (e a fotografia) cria uma maior ilusão de
realidade frente às outras artes porque se percebe que a imagem é feita na presença
de uma coisa corpórea; fica indicada a materialidade referencial. Mesmo com as
mudanças da produção em digital, que se intensificaram desde a fala de Furtado, essa
ligação ainda é bastante forte. “Na fotografia, e ainda mais no cinema, a imagem de
uma cama sempre leva a crer a existência de uma cama real e possível de ser
fotografada.” O dispositivo tecnológico cria a sensação de objetividade, Furtado se
posiciona: “Todos nós sabemos que essa não subjetividade é falsa. E quanto mais
elaborada se torna a linguagem cinematográfica mais aumenta a subjetividade”
(FURTADO, 2005a, p.107).
É na dubiedade dos sentidos que textos e imagens são articulados enquanto
elementos expressivos. A obra e o pensamento do realizador remetem a um estilo de
narrativa próprio do audiovisual contemporâneo, no qual o texto literário, mesmo tão
presente, não se sobrepõe. O texto, de par em par com a imagem, é transformado em
narrativa cinematográfica. O estilo no uso da palavra é outra marca da obra.
Em Anotações para um debate sobre cinema, memória e psicanálise, Furtado
cita o crítico Hélio Nascimento, que aponta Alain Resnais (cujas referências são
notáveis nos filmes de Furtado) como modelo no uso da palavra enquanto mais um
elemento do filme, com um papel na composição do plano (o que difere de um ainda
muito comum cinema de tipo literário).
Não obstantea frequência com que surge a comparação com a estrutura de
televisão15, as maiores influências do estilo de Furtado vêm do cinema.
15As maiores influências vêm do cinema, mas é preciso mencionar a frequente comparação do estilo com a estrutura de televisão. Furtado e Assis Brasil manifestam relação aparentemente paradoxal quanto à televisão, da qual também são realizadores. No texto Quando sonhamos, sonhamos filmes Furtado diz que nasceu no ano da televisão em Porto Alegre, 1959, a que assiste desde sempre. Assistiu muitas séries quando criança, e sempre com “a jornada do heroi chamado à aventura”: a estrutura clássica. Assis Brasil diz o mesmo, que assistiu centenas de filmes na TV. Mas quando é feita a comparação com a televisão, perguntam: que televisão? Porque em televisão há de tudo: drama, esporte, jornalismo, infantil, auditório, cinema etc. Assis Brasil responde assim: “a questão nem faz muito sentido pra mim, porque eu nunca entendi televisão como linguagem, e sim como veículo. De que tipo de programa de TV nós teríamos influência?” E pergunta: “É possível sustentar a sério que exista uma "linguagem televisiva", comum a todos esses formatos, mas separada da "linguagem cinematográfica?”) “E onde seria visível essa influência? Nos roteiros e na direção do Jorge? Na minha montagem? Na maneira como nós planejamos os filmes?” Assis Brasil, contundente, manifesta: “Há anos ouço isso de que o Ilha das flores teria uma montagem de TV, um ritmo de TV... Sinceramente, não sei o que isso significa. A colagem de imagens tem a ver com Monty Python, claro, mas nós conhecemos Monty Python pelo cinema” (ASSIS BRASIL, 2014). Nessa linha, talvez Ilha das Flores, cuja passagem do tempo tem transformado em um clássico, tenha mais influenciado do que sido influenciado pela televisão.
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1.3 Um filme,um mar de filmes eo ar do tempo.
No livro Os filmes da minha vida 4/O real e o imaginário, que tem por tema as
referências cinematográficas de diretores brasileiros, em seu depoimento “Quando
sonhamos, sonhamos filmes”, Furtado fala que teve influência de uma mistura de
todos os filmes que assistiu, alguns muito ruins, e, “certamente predominam
produções “hollywoodianas”, que obedecem às regras da jornada do herói, uma
aventura em busca de algo com um happy end” (FURTADO, 2012, p. 15 e ss); reitera-
se o modelo, presente no cinema e na televisão.
Diz que sempre assistiu a muitos filmes, desde criança, como programa de
entretenimento de fim de semana, no cinema Ritz, no bairro onde morava, mas aos
dezessete anos, quando estudava medicina na UFRGS, mudou o modo como
enxergava o cinema, a partir de duas grandes influências: “um filme e um oceano de
filmes” (FURTADO, 2012, p. 15), e largou a medicina.
O Diretor cita um filme em especial, Deu pra ti anos 70, (Super-8 mm, LM,
1981)16, realizado em Porto Alegre, com direção de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti
(Porto Alegre, Brasil, 1958). Uma narrativa já com hibridismos, que retrata os
costumes e conflitos de jovens urbanos da geração a que Furtado (que ainda não
iniciara como cineasta), Assis Brasil e amigos pertenciam - algo muito inovador e com
notável impacto: “A primeira vez que assisti (Deu pra ti anos 70) fiquei me procurando,
para ver se eu não aparecia em algum lugar, porque era tão parecido com a minha
vida, aquelas pessoas, aqueles jovens” (FURTADO, 2012, p. 16). Furtado afirma ter
assistido a esse filme várias vezes e percebido a, até então, inimaginável possibilidade
de fazerem filmes por eles mesmos, sobre a própria cidade e coisas próximas, nos
16Sobre Deu pra ti anos 70, que fez carreira com a cópia única super 8 mm, transcrevo dois comentários: "Os diretores souberam misturar na medida certa o regionalismo (o sotaque gaúcho dá ao filme um charme particular) e influências externas (homenagens a Fellini e Lelouch, especialmente o seu 'Toda uma vida'). Se for bem analisada, a estrutura do filme é extremamente complexa, dispensando os flash backs tradicionais para apresentar situações fragmentadas em épocas diferentes, usando como fio condutor um casal (Ceres e Marcelo) desde quando são meros conhecidos até descobrirem que se amam." (Rubens Ewald Filho, O ESTADO DE SÃO PAULO, 27/06/81) E "DEU PRA TI ANOS 70 constitui experiência singular na história do cinema brasileiro. É um dos melhores momentos de nossa produção juvenil. (...) Em torno de Marcelo e Ceres, amigos que se amam em silêncio, gravitam jovens que torcem pelo Inter (o filme abre-se em festa comemorativa do tricampeonato colorado), falam de sexo, freqüentam festinhas (cheias de bocomocos, gíria da época) e praias pouco ensolaradas para nossos padrões, preparam-se para o vestibular. (...) Ver o filme, com sua narrativa fragmentada, emotiva e sincera, é reencontrar atores e técnicos que povoaram os créditos dos filmes gaúchos nos anos 80 e 90." (Maria do Rosário Caetano, O ESTADO DE SÃO PAULO, 27/01/2002). Em http://www.casacinepoa.com.br.
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lugares que frequentavam, em Porto Alegre. A maioria dos filmes que fizeram, desde
então, se refere a esse ambiente, das coisas e costumes da própria cidade, sobre
pessoas muito reconhecíveis e, várias vezes, jovens [os longas Houve uma vez dois
verões (2002), Meu tio matou um cara (2004) e O homem que copiava (2003) têm o
mesmo tipo de ambientação, atualizada no tempo].
A outra influência decisiva, aos dezessete anos, citada por Furtado é “um
oceano de filmes”: os ciclos do antigo Cinema Bristol, no Bairro Bom Fim, nos anos
80, programados por Romeu Grimaldi (1939-1996). Furtado diz que, até então, nem
sabia que existiam diretores de filmes, e a partir daí, em ciclos semanais, assistia
vários de Kurosawa17, Forman, Fellini, Resnais etc., ciclos, por exemplo, sobre
Nouvelle-Vague, Cinema Novo, por temas ou diretores.
Nesse apanhado de referências cinematográficas fica evidenciada a influência
na diversidade das formas e estilos dos filmes que faz: “Foi uma mudança total, porque
o cinema hollywoodiano, como qualquer hegemonia, tende a se impor como a única
forma, em quetodas as histórias são mais ou menos as mesmas” (FURTADO, 2012,
p. 16). O estilo de Furtado articula essas duas ideias basilares: clássico, sensível ao
grande público, e diversificado nas formas: “E de repente eu vi uma infinidade de
filmes que não eram assim, eram muito diferentes disso... Isso me possibilitou pensar
que o cinema podia ser de muitas maneiras, não precisava ser de uma maneira só”
(FURTADO, 2012, p. 16).
O cinema, além do entretenimento, ganhou uma nova importância para o
diretor: “A partir dali comecei a prestar atenção no filme não como um entretenimento
de domingo, mas como uma forma de ver e pensar o mundo” (FURTADO, 2012, p.
16).
Em caráter evidentemente não exaustivo, Assis Brasil18 também lembra estilos
e formas cinematográficas em diversos autores e filmes. No que diz respeito à
alternância e conflitos de pontos de vista na narrativa, a influência de Akira Kurosawa
(1910/98), em Rashõmon, no qual a mesma história é contada várias vezes, mudando
17Furtado cita, especificamente, de Akira Kurosawa,(p 16) Viver (Ikiru, 1952), Dodeskaben – O caminho da vida (Dodes’ka-den, 1970), Rashomon (Rashõmon, 1950).
18Assis Brasil também menciona o curta, o qual conheceram no Festival de Gramado, A voz do Brasil, 1980, do paulista Walter Rogério, “cuja cena em que brinca com a dublagem é outra influência ao curta O dia em que Dorival encarou a guarda.”
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conforme diferentes pontos de vista de personagens que testemunham e relatam um
crime. Esse filme tem uma narrativa não convencional, que coloca a questão da virtual
falta de acesso à verdade unificadora e pura dos fatos. Uma forma similar aparece em
O homem que copiava, na troca da voz narrativa, ao fim, de André para Sílvia;
segundo o montador, os planos foram pensados e filmados para isso, embora
parcialmente adaptados na edição (ASSIS BRASIL, 2014).
Furtado se refere à força transformadora dos filmes: “Quando você entra no
cinema, daqui a pouco o mundo não existe mais, está ali dentro totalmente, mas nada
mais existe. Depois a luz se acende e voltamos à vida real, mas transformados", no
sentido da tragédia conforme Aristóteles: “uma máquina que te enlouquece e depois
te traz de volta, e isso acontece com o cinema. É impossível voltar a ser a mesma
pessoa depois de Ladrões de bicicleta19” (FURTADO, 2012, p. 17).
Numa lista de três filmes que mais o influenciaram, Furtado anota Nós que nos
amávamos tanto (C’eravamo Tanto Amati, 1974), do Ettore Scola, que conta a história
de 30 anos de amizade entre três homens italianos, ex-soldados da II Guerra,
apaixonados pela mesma mulher, cujo humor triste é uma característica com a qual
se identifica o diretor brasileiro: “É a melhor representação da vida, a vida não é só
uma tragédia, e também não é só uma comédia. A vida é uma comédia triste: a gente
ri, acha graça, mas morre no fim” (FURTADO, 2012, p. 19). O diretor, ainda sobre o
filme de Scola, chama a atenção para a inventividade da narrativa: “É todo contado
de trás para a frente, a primeira cena começa, congela e repete várias vezes”
(FURTADO, 2012, p. 19). O filme mistura teatro, embaralha o tempo, dirige-se ao
público, apresenta muitas invenções, lembra o autor20.
O segundo filme da lista apresentada pelo diretor é Noivo neurótico, noiva
nervosa (Annie Hall, Woody Allen, 1970). Furtado afirma ter sido marcado
19Ladri di Biciclette, filme italiano de 1948 dirigido por Vittorio De Sica. Furtado cita experiências marcantes como espectador em filmes como Corações e mentes (Hearts and minds, Peter Davis, 1974), Psicose (Psycho, Alfred Hitchcock, 1960), O iluminado (The Shining, Stanley Kubrick, 1980), entre outros.
20De Ettore Scola, menciona obras-primas como Um dia muito especial (Uma Giornada Particolare, 1977), Feios, sujos e malvados (Brutti, Sporchi e Cattivi, 1976) Rocco Papaleo (Permette? Rocco Papaleo, 1971). Furtado relata: “Fiz um episódio de A comédia da vida privada (série da TV Globo), chamado Apenas bons amigos, que era claramente inspirado no filme (Nós que nos amávamos tanto), são três amigos, apaixonados pela mesma mulher, que se conhecem na final da Copa de 1970... Quando o Scola veio ao Brasil (por meio de uma carta escrita pelo Giba), eu disse pra ele que iria mostrar um filme que eu havia feito que era plágio de um filme dele. Acho que ele gostou...” (FURTADO, 2012, p. 20).
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profundamente pela explosão de criatividade no modo de Allen em narrar o filme: ...
“não é do fim para o começo, nem do começo para o fim, nem do meio para o começo,
é organizado por núcleos dramáticos, como os encontros, os desencontros, as
separações, o momento mais feliz, é contada aos saltos” (FURTADO, 2012, p. 21).
Sobre as influências de Woody Allen (1935), Assis Brasil acrescenta o primeiro
trabalho do diretor nova-iorquino, O que há, tigresa? (Woody Allen, 1966), no qual
dubla um filme de ação japonês para uma comédia em inglês com uma história
totalmente nova, dispositivo que aparece em O dia em que Dorival encarou a guarda,
com a edição das cenas dubladas de Casablanca, por exemplo (ASSIS BRASIL,
2014). A forma criativa, fragmentada e também a comédia triste, no que se enquadra
Annie Hall (1970) e muitos filmes de Allen, marcam o estilo em estudo.
O terceiro filme que Furtado cita é Meu tio da América (Mon Oncle d’Amérique,
1980) de Alain Resnais21. O diretor aponta nesse longa as mais fortes referências
formais para o cinema que assina: “O Resnais filma teses: Meu tio da América é uma
tese científica, com um cientista falando e explicando como os seres humanos
funcionam...” (FURTADO, 2012, p. 23). Em Ilha das Flores, em O homem que copiava,
mas também em outros, como Meu tio matou um cara, Velásquez e a teoria quântica
da gravidade (2010) e A matadeira (1994), a narrativa com texto em off (voz do saber
ou pensamento do personagem), desenvolve raciocínios lógicos, questionamentos
sobre os sentidos das coisas, às vezes muito sérios, mas sempre tudo misturado com
humor, com engano e dubiedade do discurso, com ficção e narrativa. Em Meu tio da
América (1980), as situações dramáticas dos personagens são desenvolvidas aos
poucos e em partes a partir dessa narração, é uma lógica própria, bastante presente
no trabalho de Furtado. “Tudo está ali: meus filmes, o curta Ilha das Flores (1989), o
longa O homem que copiava (2003). Vejam Meu tio da América e leiam Kurt Vonnegut,
quase tudo o que fiz vem dali” (FURTADO, 2012, p. 23). Giba Assis Brasil corrobora
que especialmente Ilha das Flores (1989) tem a referência de Meu tio da América
(1980). A confluência de ambos está no estilo de narrativa não convencional, híbrido,
21Furtado refere vários filmes de Resnais, lembra de Toda a memória do mundo (Toute La Mémoire Du Monde), sobre a Biblioteca de Paris, como o melhor curta-metragem que já viu, com o qual seus filmes guardam semelhanças de estilo no texto em off carregado de conteúdos, cita Noite e neblina (Nuit et Brouillard, 1956), Hiroshima Mon Amour (1959), O ano passado em Marienbad (L’Année Dernière à Marienbad, 1961), Muriel (Muriel ouLe Temps d’um Retour, 1963), sobre os quais diz serem “transposições para a linguagem do cinema, brilhantemente bem sucedidas, dos procedimentos mentais de organização da memória, tanto pessoal quanto coletiva. Resnais se utiliza com maestria dos movimentos de câmera, dando-lhes sentido poético” (FURTADO, 2006).
29
com uso criativo do off, diferentes pontos de vista e jogo com a pretensa linguagem
objetiva.
Esses três longas-metragens trazem formas narrativas inovadoras que são
vistas em diversos filmes de Jorge Furtado, conforme o realizador. Tomados como
exemplo, em Meu tio da América (1980), Annie Hall (1970) e Nós que nos amávamos
tanto (1974):
A mistura, a colagem de linhas narrativas, de estilos narrativos, que me
interessa muito, talvez seja o que mais me interessa. A pureza não me
interessa, me interessa muito mais a mistura que esses filmes criam, de
vários tipos de fotografia, de fonte de imagem – tem desenho animado
misturado com colagem, com cenas de arquivo -, a linha narrativa é
totalmente fragmentada, não segue uma ordem cronológica. Essa
mistura diz muito sobre nós. (FURTADO, 2012, p. 24)
Assis Brasil, provocado a refletir sobre os filmes que fazem, resume como
sendo inseridos na cultura do tempo, ‘como a "calça cotton" e a AIDS’:
“Certamente vem da literatura, se a gente pensar em Kurt Vonnegut
(ou Julio Cortázar, ou Caio Fernando Abreu). Mas também do cinema,
poderia falar também no Cliente morto não paga (Dead Men Don't
Wear Plaid, Carl Reiner, 1982), na Noite americana (La nuit
américaine, François Truffaut, 1973), nos primeiros filmes do Wim
Wenders, do teatro (assistimos muitas montagens de textos do Bertold
Brecht, muita coisa influenciada pelo Augusto Boal) e até da música
(O compositor me disse, do Gilberto Gil pra Elis Regina, ou Refrão do
Nei Lisboa). Simplificando, eu diria que vem da cultura da época.
Como a "calça cotton" e a “AIDS” (ASSIS BRASIL, e-mail de
20/10/2014).
Porém, como condutor, fio que costura as variadas misturas formais, reafirmam
o interesse precípuo pelas histórias básicas, que se repetem, que estão presentes em
todas as narrativas (FURTADO, 2012, p. 26). Afirmam: ‘‘em primeiro lugar uma boa
história’’, porque o objetivo da comunicação com o público baliza as realizações, pois
cinema é visto como um ritual que inclui a exibição, a presença do espectador. As
ideias que sustentam o cinema do diretor apresentam a característica do
30
conhecimento, adesão e referência autoreflexiva à narrativa clássica, que provêm das
formas anteriores ao cinema, ao mesmo tempo em que, inserido e afinado com o
modo de saber e da cultura contemporâneas, que atualiza, presentifica e fragmenta
tudo, desenvolve formas de cinema muito identificáveis, originais, no tanto que é
possível a originalidade.
No capítulo seguinte, é feito um apanhado teórico que ajuda a compreender as
ideias, as formas e o estilo dos filmes de Jorge Furtado, a fim de estabelecer os
pressupostos para as análises do capítulo final.
31
2 A EXPERIÊNCIA COM OS LIMITES DAS FORMAS FÍLMICAS – A NARRATIVA
E O CONTEMPORÂNEO
No conceito tomado de Bordwell e Thompson, “a forma é um sistema específico
de relacionamentos padronizados que percebemos em uma obra de arte”
(BORDWELL e THOMPSON, 2013, p. 139). É o resultado do trabalho do artista para
envolver a participação mental de quem assiste, num sistema que organiza os
elementos e, pelo padrão e narrativa que constrói, gera expectativas no público. O
cinema, nessa perspectiva, é entendido como construção de um sistema todo
unificado e voltado para atrair e conduzir a atenção do espectador. Num filme, são
feitas escolhas na atualização das técnicas da mise-en-scène que formam sistemas
(que inclui a narrativa e se relaciona com a cinematografia, a montagem e o uso do
som). “Cada filme desenvolve técnicas específicas de forma padronizada. Esse uso
unificado, desenvolvido e significativo de determinadas escolhas técnicas é o que
chamaremos estilo”, segundo os autores, “... cada cineasta cria um sistema peculiar
de estilo” (BORDWELL e THOMPSON, 2013, p. 203). Um dos sistemas mais
importantes é a narrativa, entendida como a cadeia causal de acontecimentos no
tempo e espaço do filme.
Os traços formais recorrentes e pronunciados presentes nos filmes autorizam
que se veja o trabalho de Furtado como um projeto de cinema com uma vertente
fortemente narrativa, ao mesmo tempo em que opera e articula, nesse sistema,
diversas estratégias contemporâneas.
Esses filmes representam e funcionam dentro de uma lógica que diz respeito
ao ambiente contemporâneo tratado por Lyotard (1986), entre outros, e também
descrito - ao propor o ‘‘campo não-hermenêutico’’ e sublinhar a importância da
materialidade da cultura - por Gumbrecht (1998), cujos três principais pressupostos
são: a ‘‘destotalização’’ -a impossibilidade da manutenção de metanarrativas que
dêem conta de todos os fenômenos; a ‘‘destemporalização’’ -a ideia clássica do tempo
como algo que flui do passado ao presente e ao futuro, um dando causa ao outro, é
substituída por um presente dilatado; e a ‘‘desreferencialização’’ -a sensação de
vivermos num espaço povoado por representações sem referência no mundo externo
(GUMBRECHT, 1998, p. 138). Pode-se inferir que essas três características do
presente também são basilares aos sistemas formais narrativos encontrados na obra
de Furtado.
32
Nesse novo contexto, em que se insere a obra em estudo, inicialmente
nominado de pós-moderno, conceito sobre o qual Renato Pucci diz haver uma
sobrecarga, tendo se tornado de uso difícil (PUCCI, 2006), fica atingida em cheio a
figura do sujeito ideal de centralidade (surgido no Séc. XV), que orienta toda a tradição
humanista, e que é elemento basilar também do cinema. O cinema (a arte que tem a
feição do século XX, na sua tradição mais forte: o modelo clássico, que franqueia as
demais) se estrutura como uma construção destinada ao sujeito ideal de centralidade,
como presença invisível na cena, cujo olhar é subsidiário do olhar da câmera e do
espectador.
Nessa idealização consagrada junto ao público de massas, o trabalho de
narração fica quase sempre escondido, porque a cena é convencionalmente
naturalizada - como se não houvesse uma articulação, um ato de enunciar. Noutro
texto, o autor diz que “A manipulação da mise-en-scène (...) cria um evento pró-fílmico
aparentemente independente, que se torna o mundo tangível da história”
(BORDWELL, 2005, p. 288).
Na caracterização feita, a narração clássica “tende a ser onisciente, possuir um
alto grau de comunicabilidade e ser apenas moderadamente autoconsciente”
(BORDWELL, 2005, P. 285). A narração sabe mais do que os personagens e quase
nunca reconhece que está se dirigindo ao público. Nesse tipo de cinema, o
posicionamento da câmera busca o melhor ângulo possível de visão (respeitada a
norma da linha dos 180 graus22) dada a cada momento ao sujeito espectador ideal e
invisível. A ele são apresentados os fatos no transcorrer da narrativa. É a forma que
se pretende pura, limpa e transparente, mas, em todo o filme, “as marcas da
enunciação são por vezes exibidas” (BORDWELL, 2005, p. 286).
O modelo de cinema descrito até aqui em linhas gerais, cuja convenção é
predominante, se, por um lado, não chega a lograr a transparência total pretendida
(que seria impossível, porque o trabalho da enunciação sempre deixará algum
vestígio), tampouco é a única maneira de construir filmes, porque os mais variados
são produzidos pelo cinema.
22Linha de 180 graus ou eixo de cena: uma linha imaginária que divide, em planta baixa, a cena em dois campos, cuja obediência no posicionamento das câmeras (no modelo, a representação do olhar do sujeito ideal) garante a continuidade do posicionamento, movimentos e olhares dos personagens na estruturação da cena.
33
2.1 Ilusionista e anti-ilusionista
Os teóricos percebem a narração enquanto uma formatação de técnicas e
sugerem a importância da recepção na construção da mise-en-scène. Nesse sentido,
Bordwell propõe que “...podemos estudar a narrativa como ato: o processo dinâmico
de apresentação a um receptor” (BORDWELL, 2005, p. 277).
Na forma contemporânea dos filmes enfaticamente narrativos (em decorrência
de técnicas próprias) estudados, em contra senso às convenções clássicas, o trabalho
para o jogo com os sentidos e participação do público é, muitas vezes, dado a saber,
tratado com evidência, e mesmo utilizado como estratégia inserida na narrativa.
Essa característica está na definição das formas contemporâneas do cinema,
Pucci (2006), referindo-se ao pós-moderno, que diferencia o cinema surgido nos anos
80 das rupturas modernas dos anos 60, afirmandoque ambas têm características anti-
ilusionistas (portanto anticlássicas), mas que o cinema atual se apresenta como
ambíguo, porque mantém os elementos clássicos quando em busca de diálogo com
o público de massas. Segundo o autor, é um filme ambivalente com relação à cultura
de massas. Ao mesmo tempo em que opera elementos convencionais, não faz
homenagens, uma vez que também os subverte: “...joga com eles e faz com que a
combinação com elementos distanciadores produza a quebra do ilusionismo e a
revelação de que os originais constituem discursos” (PUCCI, 2006, p. 374).
Essa mudança, quando a articulação do discurso deixa de ser invisível, está
relacionada à passagem da cultura em que a presença do sujeito ideal é centro para
a cultura na qual essa ideia não mais prevalece e essa figura (o sujeito) está
fragmentada; o olhar ordenador também deixa de ser unificado.
Em uma observação de conjunto sobre os filmes do diretor, é possível se
verificar formas prevalentes, que se aglutinam em categorias expressivas, tais como
jogos narrativos com alternância de pontos de vista, autorreflexão, paródias,
simulacros e outras. Essas formas são características da cultura contemporânea,
possíveis no contexto do modo de saber atual. E, mesmo que anti-ilusionistas, são
narrativas fortemente voltadas para a comunicabilidade dos filmes com o público de
massa e se articulam parcialmente nos sistemas desenvolvidos no modelo clássico.
Assemelham-se e se diferem do esquema narrativo convencional quando o
são;apresentam destacada autoconsciência e revelam se tratar de obras construídas
34
com técnicas voltadas ao olhar (e entretenimento) do público. O que não é
contraditório, embora possa parecer.
2.2 Os elementos da narrativa clássica
No entendimento das formas expressivas que o cinema de Furtado articula, é
necessário aprofundar a leitura teórica de alguns temas elencados até aqui para que
se chegue às categorias que servirão de parâmetros à análise fílmica desta pesquisa.
Segundo Bordwell, Thompson e outros (2013)23, a narrativa é uma forma que
pode ser vista como o encadeamento de eventos ligados por relações causais,
temporais e espaciais, que apresentam e desenvolvem uma situação, uma
desestabilização e uma nova situação na vida do personagem. Esse encadeamento
é tratado como uma padronização formal voltada para o engajamento ativo do
espectador, que participa antecipando, assimilando informações, envolvido com a
história (mostrada ou sugerida) e na expectativa com o por vir do enredo e desfecho.
Conforme colocado em A Arte do cinema, a narração é o modo do enredo
distribuir as informações da história com o objetivo de conseguir determinados efeitos.
No estudo da narrativa, é premissa que se entenda a diferença entre: história -o
conjunto dos acontecimentos na ordem cronológica e causal direta; enredo -os
eventos como apresentados, parciais e em cronologia específica; e a narração -o
modo como esses eventos são apresentados. Tudo que diz respeito à história, o
mostrado e o sugerido/inferido, compõe a diegese do filme. Bordwell e Thompson
(2013) listam ferramentas formais que são usadas para estruturar as narrativas, muito
resumidamente: (a) o personagem, mais ou menos complexo, é o principal agente e
sofre as consequências das causas e efeitos; geralmente, (b) as narrativas se
estruturam no desenvolver de situações, que se agravam, na trajetória dos
personagens em busca por objetivos até o clímax, que resolve os conflitos (as causas
e efeitos estabelecem mudanças na vida dos personagens e criam padrões); no que
diz respeito ao (c) tempo e ao (d) espaço, ambos são mostrados incompletos, parciais
e muitas vezes fora de ordem; o espectador, assim, é chamado a trabalhar para
23As técnicas da construção da narrativa são tratadas em cinema nos estudos de roteiro por vários autores, com entendimento similar. Syd Field, que estrutura um paradigma para a evolução da narrativa (em três atos marcados por golpes dramáticos), é hoje o mais conhecido. David Howard e Edward Mabley, e também Michel Chion descrevem as diferentes técnicas utilizadas, que envolvem antecipações, elipses, preparações, evolução, desenvolvimento de conflitos etc.
35
entender o desenrolar do tempo, completar as informações e inferir locais e eventos
da história não mostrados mas sugeridos no enredo. Mencionam também o espaço
do campo e do fora do campo (BORDWELL e THOMPSON, 2013, p. 149 e ss) - o
que, da diegese, é visível ou não através do quadro, enquanto elemento narrativo.
A padronização formal da narrativa, que cria o mundo do filme e estabelece a
relação com o espectador, também se vale de outras técnicas. A (e) quantidade e a
(f) profundidade das informações dizem respeito às variações que existementre uma
narração onisciente (sabe mais que os personagens) e uma narração restrita (sabe o
mesmo ou menos que os personagens) e entre uma narração objetiva (o mundo
externo e visível) e uma narração subjetiva (diferentes formas de representar o mundo
interno dos personagens). Essas não são categorias intransponíveis nem puras, ao
contrário, se misturam em diferentes arranjos formais e para diferentes efeitos
pretendidos no modo “como o espectador responde ao filme”. E, em geral, a
“subjetividade perceptiva” está justificada e integrada à estrutura objetiva da narração
(BORDWELL e THOMPSON, 2013, p. 166 e ss).
2.3 Foco narrativo: a narração de dentro
O posicionamento do narrador, a voz de quem vê de fora ou de dentro,
fundamentais no que diz respeito ao posicionamento da câmera, é explicadoantes
pelos estudos de literatura. Ligia Chiappini e Moraes Leite, em O Foco Narrativo
(2007), apontam o ocultar-se progressivo do narrador atrás de outros narradores
(personagens) ou de fatos que parecem narrar a si mesmos (devido ao modo quase
jornalístico adotado). A voz que ‘‘apenas’’ narra os fatos é típica do romance,
objetivada por uma visão dita realista. Porém, no século XX, percebe-se um
deslocamento dessa voz rumo a inserir-se no mundo ficcional: a voz que fala vela e
desvela, ao mesmo tempo, narrador e personagem. “Quem narra, narra o que viu, o
que viveu, o que testemunhou, mas também o que imaginou, o que sonhou, o que
desejou” (CHIAPPINI e MORAES, 2007, p. 6). Esta incerteza quanto à veracidade da
voz que narra, em cinema, quanto à veracidade do que é mostrado na narração, que
nos filmes de Furtado assume a perspectiva de personagens, é figura da narrativa
contemporânea.
36
Neste contexto, compreende-se que autor e narrador são entes distintos; que
o autor em cada obra cria um narrador, na voz que fala, no ponto de vista que adota,
na escolha dos ângulos e visões dadas ao espectador do filme.
Sobre o foco narrativo24 no cinema contemporâneo, Arlindo Machado (2007)
escreve: “A instância que vê e ouve e dá a ver e ouvir é um fato da ficção e, como tal,
circunscrita ao universo da diegese” (MACHADO, 2007, p. 11). Transpor os limites
entre transparência e presença do narrador é um traço do contemporâneo, quando a
enunciação aparece como parte da narração: “... fazendo emergir, a todo momento,
ou pelo menos problematizando, esse “alguém” que se intromete na diegese para
conformá-la à sua visão” (MACHADO, 2007, p. 11).
A variabilidade da forma do cinema está no modo de articular o olhar através
dos planos construídos e montados. Browne (2005), por exemplo, ao analisar a
sequência Estação Dry Fork, de No tempo das diligências (John Ford, 1939), pretende
“descrever e explicar em detalhe uma retórica fílmica na qual a articulação do narrador
em sua relação com o espectador é encenada, conjuntamente, pelos personagens e
pela sucessão particular de planos que os mostra” (BROWNE, 2005, p.231)25.
No cinema de Furtado, que afirma aderir ao modelo da jornada do herói
chamado à aventura, conforme Campbell e Vogler26, as marcas centrais seguem
sendo a clareza da história básica e da estrutura que usa para narrar, mas também
24O problema também é tratado por François Jost que, em El Relato Cinematográfico, expõe a teoria pioneira do estruturalista Todorov (1966) quanto ao ponto de vista do narrador: quando a visão é de dentro ou de fora, quando sabe mais, menos ou o mesmo que o personagem; e as categorias de Genette (1972) da focalização: zero, interna, ou externa - na primeira o narrador onisciente não focaliza; a outra corresponde à voz do personagem, que pode ser múltipla; na terceira não é dado a saber nada sobre o que pensa ou sente o personagem. (JOST, 1995, p. 137 ss).
25A reflexão sobre a construção da cena pela construção do jogo do olhar no posicionamento da câmera para narrar, em filmes emblemáticos pelas estratégias que constroem, é feita também, entre outros, por Ismail Xavier, quando analisa Um corpo que cai (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958), no jogo narrativo pela parcialidade do olhar, em O olhar e a cena, 2003; e por Arlindo Machado, quando analisa Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941), perguntando quem testemunha a cena final, quando morre o magnata, em O enigma de Kane, O sujeito e a tela, 2007. Jacques Aumont, em a Imagem (1996), descreve, historicamente, a constituição e o funcionamento do sujeito abstrato ordenador do olhar da cena clássica. 26A aventura padrão é descrita nas seguintes etapas: “descrição do mundo comum, o herói-protagonista é chamado à aventura, inicialmente recusa, encontra seu mentor e acaba aceitando o convite, então viaja ao mundo especial (oposto ao normal onde a história começa), recebe a chave, ultrapassa um portal, enfrenta provas, conhece inimigos e aliados, desobedece o mentor, enfrenta o antagonista, triunfa e regressa, transformado, ao mundo normal para dividir com seus pares (e com os espectadores) os frutos (o elixir) e descobertas de sua aventura” (FURTADO, 2005, p. 100).
37
constrói modos característicos de arranjar a narrativa com os elementos expressivos
contemporâneos do cinema.
2.4 O preso Dorival e o sentido contingente
Em O dia em que Dorival encarou a guarda (CM, 1986), um filme que utiliza
materiais híbridos e referentes ao próprio cinema, o enredo acompanha o desenrolar
da história do preso (Dorival/João Acaiabe) que enfrenta o quartel, numa ordem de
hierarquia militar crescente, para poder tomar um banho – há um personagem
motivado e um padrão que envolve o público rumo ao desfecho, conforme visto. O
filme utiliza uma forma narrativa clássica, com o tempo conciso, mas na ordem
cronológica, que alterna o ponto de vista e enfatiza a subjetividade nas imagens
ligadas às mentes dos personagens. Segundo Assis Brasil (2014), a estrutura do filme
se baseia no pressuposto de que cada personagem (militar que Dorival enfrenta)
queria estar em outro lugar. Porém, mantida a clareza da história básica que conta (o
preso quer tomar um banho), apresenta, como outra característica marcante e que
destoa da forma clássica, o hibridismo nas imagens da mente dos personagens.
Planos de longas-metragens clássicos, como King Kong (Merian C. Cooper e Ernest
B. Schoedsack, 1933) e Casablanca (Michael Curtiz, 1942), com novos áudios e de
western produzido ao estilo de revista em quadrinhos são alguns materiais que se
inserem à narrativa, chamam atenção para o constructo e oferecem sentidos
contingentes, dependentes do trabalho do espectador. As imagens clássicas são
mostradas em outros contextos, chamando a participar: o sentido passa a ser uma
espécie de jogo proposto ao público, frente a novas possíveis interpretações.
O modo como o preso se impõe, a intimidação que os militares sofrem e a
necessidade de sempre chamarem reforços são traços de ironia somados ao discurso
sério nessa antecipação instigada.
As informações do enredo são apresentadas em um padrão formal criado para
que o espectador fique envolvido até o desfecho relativo ao banho almejado pelo
protagonista, na iminência de que o militar enfrentado por Dorival chamará,
sucessivamente, o superior e que esse estará absorto em alguma imagem de tipo
especial. O desfecho, desse modo, se torna uma conclusão necessária à expectativa
plantada; o público se interessa até o fim, sendo um filme narrativo (que segue a linha:
Dorival conseguirá ou não tomar um banho?).
38
Neste filme (O dia em que Dorival encarou a guarda), há uma padronização
que se estrutura nas formas clássica e híbrida. A narrativa se comunica com o
espectador de modo bastante amplo, mas as imagens que citam o cinema são
recebidas de forma diferente conforme o conhecimento prévio ou não do material
citado: a inscrição em camadas é outra característica da obra de Furtado, que aparece
com ênfase também em outros trabalhos.
2.5 O hibridismo narrativo em Barbosa e A Matadeira
Um padrão claro de narrativa, assim como em quase todos os filmes do autor,
também está presente em Barbosa (CM, 1988). O curta-metragem é uma ficção
científica em que, com uma máquina de viagem no tempo, o protagonista (Antônio
Fagundes) retorna à final da Copa do Mundo de 50 para evitar a derrota do Brasil para
o Uruguai. O enredo usa formas híbridas: ficção e documentário (a entrevista com o
goleiro Barbosa e imagens de época são documentais), e, principalmente, apesar de
ter um final muito conhecido, o empenho e trajetória do personagem ficcional
envolvem o espectador com o desenvolvimento e desfecho da história narrada.
Híbrido, autorreflexivo e narrativo também é o curta-metragem A Matadeira
(CM, 1994). Um filme que trata de um fato histórico, a tomada de Canudos, adaptando
de forma livre eventos descritos por Euclides da Cunha em Os Sertões (1902), a partir
do canhão que o exército brasileiro usa para a destruição do povoado insurgente e
religioso de Antônio Conselheiro, na virada do século XIX para o século XX. O
hibridismo está na multiplicidade dos materiais: paródias, reconstituições, falsos
documentários, melodrama, animações, maquetes, imagens históricas e documentais
contemporâneas, discurso irônico e discurso sério, cenários e encenações
destacados e narração em off.
O filme é narrativo na medida em que conta uma história, descreve os fatos
relativos à tomada de Canudos, cujo desfecho histórico é previamente conhecido. A
atenção está no uso de técnicas variadas de forma muito livre, irônica, em contraste
com um também presente discurso sério.
39
Com Pedro Cardoso em vários papéis, a narrativa usa a paródia do
documentário clássico e do filme educativo27. Um dos personagens interpretados por
Cardoso é um falso professor de história, cuja aula dada, em contraste com a ironia,
de fato contextualiza e explica historicamente Canudos, seguindo o relato do livro. O
sistema formal se funda na liberdade cinematográfica no uso de recursos variados em
prol do desenvolvimento de um argumento histórico. O autor afirma que A matadeira
é um documentário do livro Os Sertões (FURTADO, 2014), porém, transforma a
expressão literária (objetiva, jornalística e minuciosa do estilo de Euclides da Cunha)
em uma forma eminentemente cinematográfica.
A Matadeira é exemplo das possibilidades formais que o estilo de cinema
contemporâneo de Furtado pode dar a um tema. Os cenários e as representações são
evidentes, teatralizadas. Os soldados avançam num ambiente cuja arte e
interpretação são pronunciadas. Mais uma vez, uma construção anti-ilusionista, que
deixa aparecer o trabalho da mise-en-scène, incluindo reconstituições em stop motion
e maquetes muito simples e funcionais, a serviço do padrão formal da narrativa.
Como Ilha das Flores (CM, 1989), O homem que copiava (LM, 2003)e outros,
também A Matadeira (CM, 1994) utiliza a narração em off, a reconstituição, o falso, a
variabilidade dos sentidos, em perspectivas que alternam o onisciente e o restrito, o
verdadeiro e o errático, mas com muito controle e interesse se sabe sobre as
circunstâncias e eventos da história narrada. As incertezas prevalecem, mas nesse e
também em outros filmes são desenvolvidos discursos realistas, históricos, sendo um
tipo de ambiguidade frequente. São mostradas reconstituições e reproduzidas
imagens jornalísticas do massacre na guerra com os civis de Canudos, com crianças
sendo mortas por soldados, e editadas com imagens atuais de crianças mortas na
violência das periferias urbanas brasileiras. Após longo e irônico discurso do professor
de história, nos segundos finais, é dado um tom sério: “cerca de 30 mil pessoas
morreram em Canudos. Simples assim”.
27A forma clássica no documentário se caracteriza, em poucas palavras, por um saber anterior e de caráter geral dado por uma narração onisciente coberta por imagens ilustrativas; a variação da forma educativa advém da finalidade dada a esse formato.
40
2.6 A paródia em Ilha das Flores e os enganos em O Sanduíche
A ênfase no papel do contingente para o sentido, como autoreflexão mas
também como estratégia narrativa, é um dos traços centrais dos filmes em questão.
Ilha das Flores (CM, 1989), um dos curtas-metragens de maior êxito do cinema
nacional, já sendo considerado um clássico, enquanto referência que perdura, é um
filme de formas híbridas, repleto de humor, drama, crítica social e filosofia. Num
transcorrer de citações, a história de um tomate podre na forma de uma paródia do
documentário que faz uma colagem de imagens de vários tipos cobrindo um off que
simula o documentário clássico de tipo educativo. É o falso documentário clássico que
vira, ao final, documentário clássico propriamente dito (segundo Sílvio Da Rin, em
Espelho Partido, 2004). O filme joga com o público que é surpreendido por ironias
sobre assuntos e imagens muito sérias: o holocausto judaico sob o nazismo e a
pobreza extrema numa ilha de Porto Alegre, por exemplo, provocando reflexões
críticas sobre o mundo e também sobre os sentidos e discursos. O filme induz ao
engano do espectador que espera um tipo de narrativa condizente com a forma
(parodiada) do clássico, mas que é surpreendido primeiro pelas piadas e depois, ao
final, quando se depara com imagens realistas de miséria envoltas por uma reflexão
sobre as possibilidades de encontrar ‘‘a verdade’’ em um filme.
A paródia dos objetos da cultura do passado, incluindo o próprio cinema, é uma
característica contemporânea muito frequente na obra de Furtado. Segundo Linda
Hutcheon (1989), é uma forma que marca a contemporaneidade, em cujo contexto de
crise de referências em sistemas gerais, a autoreferência ganha importância: uma
tendência a “se referir a si mesmos num processo incessante de reflexividade”
(HUTCHEON, 1989, p. 11). Segundo a autora, a paródia contemporânea não é
ingênua, o distanciamento é crítico e o sentido do objeto parodiado é sempre
atualizado. Conforme se estabeleceu na cultura contemporânea, a repetição e a
citação produzem novos sentidos; é uma “repetição alargada com diferença crítica”
(HUTCHEON, 1989, p. 19). Quando desaparece a fé humanista na continuidade e
estabilidade culturais que asseguravam os códigos comuns necessários à
compreensão de tais obras, a paródia surge como forma presente nas artes do tempo
atual. Dessacralizada a interpretação (uma vez que a participação do espectador em
seu contexto é vista como atividade principal ao sentido), a paródia traz a ideia da
“complementariedade dos atos de produção e recepção textual” (HUTCHEON, 1989,
41
p.16). Os sentidos são elaborados a partir da linguagem comum a ambos, autor e
público. Há um jogo contextual livre: em cada página se inscreve o campo concebível.
Nessa forma, de acordo com a autora, aparecem a intertextualidade e a
autorepresentação como uma estética do processo, da percepção, da interpretação e
da produção das obras de arte, estratégias usadas em Ilha das Flores, mas também
em outros filmes de Furtado.
Exemplar do estilo, em Ilha das Flores (CM, 1989) são enfatizadas as próprias
condições e incertezas dos diferentes tipos de discursos, inclusive o cinematográfico.
Um recurso estilístico que se funda no mesmo problema surge numa forma de
narrativa também contemporânea em O Sanduíche (CM, 2000).
Em um filme de ‘‘dispositivo’’ e autoreflexivo, que trabalha com o engano da
narração e do enquadramento, O Sanduíche (CM, 2000) percorre um deslocar por
representados níveis de enunciação: a cena do diálogo de um fim de relacionamento
de um casal (Janaína Kramer/Felippe Mônaco) em um apartamento se revela um
ensaio do texto de uma peça de teatro, que logo (embora um plano antecipe uma
arquibancada como audiência no lugar da parede invisível) se transforma em relação
verdadeira do casal, até que se ouve o grito de “corta”, surge um campo ampliado
extradiegético revelando uma equipe de cinema no cenário, os atores se despedem,
fica apenas o diretor (Nelson Diniz), até que surge outra voz de diretor, gritando “vai
grua”, e o plano se abre, em grua de afastamento, revelando um novo campo de
diegese, com o cenário e o estúdio instalados à céu aberto, na frente do Mercado
Público, bem no centro de Porto Alegre. Há uma arquibancada de populares
assistindo ao trabalho de produção, numa imagem de tipo documental que registra
uma filmagem (por isso é um dispositivo: promove um evento que se torna a estrutura
do filme). Iniciam vozes de populares, dirigindo-se a “Furtado” que não aparece,
falando sobre o que estão achando da filmagem: “que nunca tinha visto”, “é repetitivo”,
“é cheio de detalhes”, “é muito legal e devia ter todos os dias” etc.. Nesse plano aberto,
há um fade de encerramento, mas rapidamente a imagem volta e aparece Jorge
Furtado como repórter, em mais uma ampliação de campo, entrevistando populares
que assistiam à filmagem – aqui finalmente parece que o filme se torna ‘‘verdadeiro’’,
até que se percebe que nesse ‘‘fala povo’’ estão repetindo um texto ensaiado e dito
pelos atores na produção vista a pouco: Furtado volta a ser diretor e corrige uma
42
dessas falas que pareciam documentais. Revelado finalmente o engano, a certeza
está na incerteza das narrativas, o filme encerra28.
Diversas das formas recorrentes na obra do diretor aparecem em nova
configuração no curta O Sanduíche. É um trabalho narrativo, namedida em que busca
a relação com o público na construção de um padrão, no caso, o jogo de revelação e
engano acerca da instância de articulação, que se assume como real, mas logo é
assimilada pela ficção e revela ser apenas mais uma instância da
enunciação,culminando com a revelação de que o próprio diretor atua forjando a cena
final em documentário. Esse padrão envolve o público no empenho para acompanhar
e compreender a sucessão de eventos apresentados, ligados entre si, porém de forma
não convencional. É uma narrativa bastante diferente do modelo clássico. Além da
constante referência à própria construção da narrativa, embora a história de amor
entre o casal de atores que contracena, o filme não se estrutura no acompanhamento
do personagem na busca de dado sucesso, e o tempo e o espaço são construídos em
uma lógica especial, atendendo ao tramado pelo ‘dispositivo’; é uma diegese nunca
estabilizada. A questão tem servido de mote ao cinema de Furtado: “quem está aí
fora, quem narra?”, que inicia a fala de Hamlet, de WilliamShakespeare, a cuja obra
se referencia, está na forma de narrar de O Sanduíche.
A narrativa que mistura, amplia e usa o tema da presença da voz/instância que
anuncia também está em Velásquez e a teoria quântica da gravidade (CM, 2010). O
personagem, em um evento social, relata, em off, que teve uma inspiração para
entender o que seria uma teoria científica até então impossível diante do quadro As
Meninas, de Velásquez. No off da narração, descreve o quadro em detalhes, a
representação do próprio pintor na cena, os onze personagens, dos quais oito olham
para o observador fora do quadro29, quando o pensamento é interrompido e o
28O mecanismo do filme O sanduíche (2000) é similar ao modelo descrito e desenhado por Umberto Eco, em Seis passeios pelo bosque da ficção (1994), que problematiza os lugares do leitor, do autor e do narrador, e as possibilidades de construções, dissimulações, deslocamentos e surpresas nos sistemas narrativos.
29Foucault afirma que As damas de companhia, ou As Meninas, quadro de Velásquez (1656), representa a representação clássica que tem, em seu bojo, a presunção de um ponto de observação dominante. Os personagens (incluindo o próprio pintor) na cena da corte de Felipe IV (Espanha, século XVII) dirigem seu olhar para um ponto inacessível, fora da cena. Um ponto exterior prescrito por todas as linhas de olhares da composição. O que Velásquez constrói, coloca nesse ponto de referência que olha, são também personagens sugeridos - “o quadro é uma cena para a qual ele é uma cena - pura reciprocidade que o espelho do cenário manifesta” (FOULCAULT, 2001). Esse centro do olhar é o soberano para a atenção do qual todos agem. Representado sem estar visível. A conclusão a que chega Foucault é que nesse e em qualquer quadro “a invisibilidade profunda do que se vê é solidária
43
personagem esquece qual a compreensão reveladora que havia tido. É um curta com
hibridismo formal, com imagens ilustrativas cobrindo o off, no tipo de colagem que
também faz Ilha das Flores, A matadeira e O homem que copiava, num estilo de
Furtado que também trata da tomada de consciência da invisibilidade da
representação.
Sobre fronteiras, limites e misturas, em Até a vista (CM, 2010), repleto de
situações engraçadas, inspirado numa experiência pessoal de Furtado, um jovem
cineasta (Fernando/Felipe de Paula) compra os direitos autorias de uma novela de um
escritor Argentino (Borges Escudero/Salo Pasik), como parte do contrato, ambos
viajam a Belém do Pará, em busca de uma mulher (Araci/Dira Paes) que o escritor
conheceu. A comédia representa as diferenças entre idiomas, culturas e formas
expressivas do cinema e da literatura. O escritor, por exemplo, insiste que, na
adaptação, o personagem permaneça inerte, exasperando o cineasta. O filme é
altamente narrativo, brinca com quebras de expectativas, articula bem pontos de
viradas, surpresas e humor.
Nesses filmes, a narrativa é uma brincadeira de bom humor, com desfechos
surpreendentes, e tudo parece mais uma vez ser apenas o gozo, o lúdico do jogo com
o público.
2.7 A citação do Cinema de Bordas em Saneamento básico, o filme
Saneamento básico, o filme(LM, 2007), é outro exemplo dos estilos formais que
sustentam esse conjunto. Nesse longa-metragem, sobre os cartões de apresentação,
uma voz feminina conversa diretamente com a plateia que chega à sala de exibição
de cinema. Assim, desde antes do início, o filme assume uma forma não clássica de
narrativa: rompida a invisibilidade, é criada uma expressão representativa da instância
autoral, comumente deixada sem visibilidade. A produção de sentido é trazida para o
centro. Após esse prólogo, o filme abre com um movimento de câmera em tilt, do céu
à pequena comunidade, em grande plano geral. Um texto, a mesma voz feminina de
antes, mas a diegese (oficialmente) iniciada: “Disse o poeta que a natureza é grande
nas coisas grandes, e enorme nas coisas pequenas (movimento de câmera chega a
da invisibilidade daquele que vê”, pois, de fato, aquele que pinta e dá sentido permanece oculto. Esse tema da invisibilidade ou visibilidade do olhar da representação é recorrente na obra de Furtado.
44
uma reunião comunitária, a céu aberto). Segue a fala: “Sabemos que um pequeno
arroio que corta uma comunidade do município é apenas um pequeno arroio, para
nós, moradores da Linha Cristal, o arroio Cristal é único...”. A fala é de Marina
(Fernanda Torres), em assembleia dos moradores, lendo carta que pede à prefeitura
providências sobre o saneamento básico do lugar. Na abertura do filme, num instante,
o assunto vai da poesia à fossa, ‘‘o cocô da comunidade’’, diz Seu Otaviano (Paulo
José), causando risos na reunião. Os figurantes são tipos do lugar, e as locações se
encontramnuma pequena comunidade colonial do Rio Grande do Sul (Brasil).
Furtado explica que Saneamento básico, o filme segue a estrutura da
commedia dell arte (uma forma de teatro popular surgida no Século XV, na Itália), com
os sete personagens típicos representados30.
A narrativa contrapõe à solução do problema do esgoto a realização
comunitária de O Monstro do fosso (a ficção que decidem produzir desviando os
recursos de um edital público de produção audiovisual para a obra sanitária). O vídeo
que a comunidade quer fazer tem vários traços do cinema de bordas. Conforme Lyra
e Santana (2006), a experiência das bordas se baseia na imutabilidade das formas
consagradas (as formas dos gêneros, que se repetem, compõem o imaginário e
fidelizam o público). Não pelo sentido, mas pelo efeito corporal buscado e causado, o
cinema de bordas “atualiza os mesmos conteúdos”, com o “mínimo de informação e
máxima previsibilidade” (LYRA e SANTANA, 2006, p. 13) – essa é a experiência
retratada no filme que os personagens do longa em questão realizam. Essa forma
expressiva presente em Saneamento básico, o filme é apontada por Rosana Soares,
“como sendo um ‘tributo às bordas’ feito por Jorge Furtado” (SOARES, 2012, p.182).
Aqui, mais uma vez, está representado o ambiente contemporâneo, em que se
valoriza a materialidade da forma cultural.
De diversas maneiras,Saneamento básico, o filme evidencia a contingência
para os sentidos: além da representação das bordas, as situações criadas colocam
os personagens frente a esses temas, discutem em várias cenas significados das
30“...a Marina é uma mulher que trabalha, que cuida da casa, que manda, uma mulher meio homem; o Joaquim é um arlequim totalmente servidor de dois patrões: um chefe e uma mulher; a Silene é a personagem que vende a virgindade pra acender socialmente, é a gostosa; o Bruno faz o galã, bonitão, só quer comer todo mundo; os dois velhos: um é de Bologna e um é de Veneza, o de Bologna gosta de dinheiro e o de Veneza é intelectual. Fiz os personagens da commedia dell’arte para contar uma história” (FURTADO, 2014).
45
palavras e valores das coisas, jogandocom o público quando manifesta
autoconsciência, ao mesmo tempo em que se mantém fortemente narrativo.
2.8 Simulacros, autoreflexão, jogos narrativos e br icolagem em O homem que
copiava
Mas talvez estejam no longa-metragem O Homem que copiava (LM, 2003) os
traços formais mais elaborados da cultura contemporânea.
Em O Homem que copiava, à primeira vista, chamam a atenção o ritmo
acelerado de montagem, a trama rica em peripécias bem costuradas e as
interposições de materiais originários de diversas mídias e artes: cinema, televisão,
quadrinhos, desenhos, poesia, jornal impresso, estátuas, imagens de santos,
ilustrações, colagens etc., em citações que transitam com velocidade entre o pop e o
erudito. Santana (2006), na análise que faz, aponta o aspecto central de ser um filme
de bricolagens diversas, que cria um mundo real a partir da repetição com diferença
de imagens conhecidas e do que já aconteceu, ou seja, uma realidade de segundo
grau, que apaga os rastros primários (SANTANA, 2006, p 177 e ss).
O filme também é leve, irônico e até inconsequente, sem deixar de causar
polêmica. O final é um exemplo: o par romântico de protagonistas (André/Sílvia,
Lázaro Ramos/Leandra Leal), com a ajuda dos amigos, comete o assassinato do
próprio pai (Carlos Cunha), ou padrasto (há essa dúvida, da moça), não sendo punidos
por isso. A falta, no universo dos personagens, dos parâmetros morais até então
socialmente reconhecidos (como a vedação de matar especialmente pai ou mãe, ou
de fraudar contas públicas, como no exemplo anterior, ou a não punição do adultério
de Anita (Adriana Esteves) no inédito Real beleza) é apenas um dos aspectos na
narrativa que remetem ao contexto atual da cultura.
Entre as formas e categorias expressivas contemporâneas de O homem que
copiava, o simulacro ocupa lugar central desde o nome do filme: André trabalha como
operador de máquina fotocopiadora. A máquina fotocopiadora, objeto de cena descrito
com didática em detalhes, é o aparato tecnológico que produz o fluxo de imagens.
Através dessas cópias, André conhece fragmentos de representações e monta seu
próprio mundo imaginário. Ele vive imerso em desenhos e colagens que faz com
representações e citações recolhidas nunca inteiras de sobras do material que
fotocopia. Entre as várias peripécias da trama, André fotocopia dinheiro, embaralha e
46
embaralha-se entre original e cópia, tendo, inclusive, apesar do cômico das situações,
sucesso como falsificador: as notas grosseiramente copiadas são aceitas como
verdadeiras, resultando questionado o estatuto do real.
O contexto do filme é o de um mundo povoado por imagens desenraizadas, tais
como as fotocópias de André. Nesse sentido, vale a descrição feita em Simulacros e
Simulações (BAUDRILLARD, 1992, pp. 8-9), em que o mapa, o duplo, o espelho, o
conceito já não mais são a abstração, porque o real, a causa objetiva, a referência
deixaram de existir. Mas o simulacro dissimula que é só imagem, constituindo-se como
um novo tipo de real. “A passagem dos signos que dissimulavam alguma coisa aos
signos que dissimulam que não há nada marca uma virada decisiva” (BAUDRILLARD,
1992, p. 14). Na fase atual, a imagem não tem relação alguma com a realidade, porque
a produção de real e de referencial é superior à produção material. A tensão é
midiática, não com o real representado, porque é um filme quase totalmente calcado
na imagem (SANTANA, 2006, p. 82), mas com o novo tipo de real.
O protagonista do filme vive entre o imaginário (que recolhe dos fragmentos e
monta nos desenhos e colagens que faz) e partes do real que enquadra da janela do
quarto através das lentes do binóculo. A câmera e a narrativa se apropriam desse
olhar. O universo de André é estruturado por imagens e fragmentos de
representações. Ele pensa: “é divertido ficar bem longe e olhar uma pessoa bem de
perto”, essa é uma citação do que proporciona o cinema (com o close up, exemplo
mais conhecido). Através das lentes do cinema, do escuro da sala de projeção,
observamos, nos planos e sequências dos filmes, recortes da vida de outras pessoas.
Em ambos os casos, o sentido é preenchido pela imaginação.
No filme, André conhece Sílvia espiando com o binóculo, mas só há uma fresta
transparente na janela do quarto por onde se enxerga fragmentos da garota se
movimentando refletidos em um espelho na porta de um guarda-roupa. O filme usa
um dispositivo explicitado: dependendo de como a porta fica, o espelho mostra a
André um pedaço diferente do quarto. O filme monta esses fragmentos, dizendo, com
transparência: esse é o modo como conhecemos o mundo nas representações,
fragmentado em imagens refletidas, observado sempre a partir de um lugar. Esse
sublinhar enfatiza o próprio mecanismo de constituição de sentidos e pontua,
integrado, a evolução da história. Também vale notar que o trabalho de André
operando a máquina copiadora é mecânico, repetitivo, desconectado, alienado. À
máquina, por sua vez, cabe reproduzir o conhecimento que recebe de antemão
47
avalizado. Mas o fluxo mental e criativo de André, em contrapartida, recolhe e organiza
os fragmentos de imagens em novos e flutuantes sentidos, não tendo nada a ver e
superando a operação da máquina, com apenas dois comandos (start/stop). André
monta esses fragmentos em novos textos, nessas bricolagens, cria realidades. Em O
homem que copiava, o sucesso depende da habilidade em dominar o aparato produtor
dos simulacros. É uma questão de jogo de linguagem.
O filme se estrutura num misto de opostos: transparência clássica, ao contar a
trajetória linear e reconhecível dos conflitos no amor proibido entre dois jovens, a
história base do que Furtado e Assis Brasil dizem nunca se afastar, com ruptura
contemporânea, pois usa em profusão citações e manipulações de imagens e
montagem não naturalistas (tais como animações, hibridismos, trocas de pontos de
vista etc.). Neste filme, a forma híbrida também está presente e as citações estão
inseridas no contexto narrativo do olhar do filme. Conforme apontado: “Ao mesmo
tempo em que mistura gêneros, como um procedimento estrutural, simula os mesmos
na narrativa; e é justamente esta ‘simulação’ que deixa marcas nela” (SANTANA,
2006, p. 77).
É um tipo de narrativa em que não há onisciência, porque o mundo está
fragmentado e a câmera mostra conforme o olhar errático dos personagens. A história
do jovem casal é mostrada conforme o olhar de André. Mas, num jogo de montagem,
ao final, os mesmos planos recebem outro corte e as mesmas cenas são vistas sob
outro ângulo, o olhar passa a ser de Sílvia. Não há um ponto de vista onisciente, não
é buscado o melhor ângulo de visão ao espectador ideal, mas enquadrado conforme
a estratégia narrativa. A trama faz um jogo, lance a lance [assim como recursos
gráficos visuais, a trilha de O Homem que copiava (LM, 2003) também lembra o som
de game, várias vezes, embora noutras seja erudita, o mesmo tratamento que aparece
em Houve uma vez dois verões (LM, 2002) e Meu tio matou um cara (LM, 2004)]. Ao
alternar pontos de vista, mas também ao utilizar os métodos narrativos do cinema,
modulando as relações causais, temporais e espaciais em padrões, elaborando em
ritmo acelerado as várias reviravoltas que conduzam ao clímax e desfecho, O Homem
que copiava representa o mundo como um jogo narrativo. Porque estabelecidas as
regras (da narrativa), os lances são possíveis.
Outro exemplo do estilo, o longa-metragem O Mercado de notícias (LM, DOC,
2013), com formas híbridas e irônicas, faz uma reflexão séria sobre o jornalismo
brasileiro. O filme é estruturado com a edição de blocos por temas de entrevistas com
48
profissionais da imprensa em paralelo a intervenções do diretor em cena conduzindo
o filme, ensaios e representação, no palco do teatro São Pedro, em Porto Alegre, da
peça teatral Mercado de notícias (The staple of news, Ben Jonson, 1625, traduzida
pelo próprio Furtado).
A temática da comunicação, a crítica política e historicamente posicionada e a
articulação de formas expressivas e artísticas híbridas (documentário, jornalismo
investigativo, ficção, entrevistas, teatro, televisão etc.) são algumas características
marcantes da inserção de Mercado de notícias no ambiente contemporâneo e na
trajetória estilística do diretor.
Uma narrativa que guarda diferenças com as anteriores é Real beleza (LM,
inédito, assistido na ilha de edição da Casa de Cinema de Porto Alegre, em
14/10/2014). Esse drama, único filme do diretor até então quase sem comédia, sem
alternâncias de pontos de vista e ausentes as estruturas autorreflexivas, é a história
de João (Vladimir Brichta), fotógrafo em busca de modelos entre jovens do interior,
que descobre Maria (Vitória Strada), filha de Anita (Adriana Esteves). O pai da jovem,
Pedro (Francisco Cuoco), um velho cego e letrado (tem uma vasta biblioteca que
conhece bem), se opõe a que a filha adolescente parta na carreira de modelo. Anita,
bem mais jovem que o marido, se envolve com o fotógrafo forasteiro.
O cenário é uma região rural, lugar de difícil acesso, mas com uma casa muito
confortável, com uma fantástica biblioteca. Os moradores da casa são mostrados
imersos em livros, citações e atividades telúricas.
Real beleza foge dos estereótipos: o interior é culto e confortável, a reação ao
adultério não é violenta nem machista, a escolha de Anita é pela vida pacata e em
extinção e o caçador de modelos não é vigarista nem insensível.
Trata de um tema sério, o mercado da beleza que fascina jovens que sonham
com carreiras midiáticas. O início do filme tem uma sequência em tratamento
documental, que mostra rostos juvenis repletos de expectativas em uma seleção
fotográfica.
Assim, mais uma vez, a representação ocupa lugar central na própria trama,
num filme que pergunta onde está a beleza real, que discute o olhar e o valor das
coisas no mundo midiatizado, no qual a cultura clássica é preservada simbolicamente
em ínfimos redutos. Anita escolhe ficar ali, com o marido, até o fim - falta pouco. O LM
inédito pode ser visto como uma representação sobre o fim de uma cultura, de um
tempo.
49
2.9 Os pressupostos de base para a análise
Os filmes em estudo são múltiplos e híbridos, estão entre o clássico e a
narrativa anti-ilusionista. A verificação do estilo é realizada na análise da modulação
que os filmes operam entre a comunicabilidade e a autoconsciência, na estruturação
formal e padronizada da narrativa, no modo como as cenas são construídas,
vinculando a câmera ao olhar e voz interior dos personagens, como trabalha entre o
certo e o errático da imagem, como trama nas ações o hibridismo dos materiais
utilizados. Para compreender o estilo, interessa investigar a natureza dos contrastes,
das misturas, das relações entre objetividade e subjetividade, vinculantes do
hibridismo. Essas formas estão impregnadas pelo tempo da cultura fragmentada, com
o presente dilatado e a profusão de real simbólico, que é o simulacro com o qual
operam as bricolagens. É quando qualquer objeto do passado é copiado, nas
paródias, com diferença e distanciamento crítico. Interessa observar como as mesclas
estruturam os filmes em análise. Essas são categorias expressivas que modulam o
estilo do cinema de Jorge Furtado e que servirão de parâmetros para a análise fílmica
das sequências selecionadas no capítulo seguinte.
50
3 A ANÁLISE DOS FILMES DE JORGE FURTADO
Neste capítulo, a análise dos filmes de Furtado é estendida para além das
ideias norteadoras dos realizadores da obra (anotadas no cap. 1) e nos estudos
teóricos buscados para a compreensão dos filmes (no cap. 2), em busca da definição
dos traços do estilo que se configura nas narrativas cujas formas expressivas são
pertinentes à cultura contemporânea. Na primeira parte do capítulo, são destacados
frames representativos de curtas e longas; na segunda parte, é realizada a análise
dos filmes, no cotejamento das construções formais encontradas frente aos
pressupostos básicos elaborados da articulação entre as ideias dos realizadores, a
observação dos filmes e os conceitos teóricos trazidos sobre a narrativa e o
contemporâneo.
3.1 Relação dos curtas e longas analisados Foram selecionados para análise os curta-metragens O dia em que Dorival
encarou a guarda (1986), Ilha das Flores (1989) e O sanduíche (2000), e os longa-
metragens O homem que copiava (2003) e Saneamento básico, o filme (2007).
3.1.1O dia em que Dorival encarou a guarda (CM, 14 min, 1986, co-direção Jorge
Furtado e José Pedro Goulart, adaptação do conto homônimo de Tabajara Ruas).
O dia em que Dorival encarou a guarda narra a história de Dorival (João
Acaiabe), que enfrenta os militares do quartel em que está preso para poder tomar um
banho, o que está proibido de fazer há dias. O curta se estrutura na evolução desse
conflito central, com cada militar chamando seu superior. A ordem deve ser cumprida,
e o banho é sempre negado. Assis Brasil diz que a ideia do filme é que cada
personagem queria estar em outro lugar. Cada um deles está imerso em imagens
mentais diversas montadas no filme. O preso não se subjuga, insultao soldado (Pedro
Santos) e ameaça fazer um estardalhaço. O soldado vê em Dorival a figura
ameaçadora de King Kong e é intimado a procurar o cabo (das Figuras 1 a 4). O corte
é para uma cena de faroeste (Figura 5).
51
Figura 1 - O dia em que Dorival encarou
a guarda. Frame 1.
Figura 2 - O dia em que Dorival encarou a
guarda. Frame 2.
Figura 3 - O dia em que Dorival encarou
a guarda. Frame 3.
Figura 4 - O dia em que Dorival encarou a
guarda. Frame 4.
Figura 5 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 5.
Figura 6 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 6.
Figura 7- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 7.
Figura 8 - O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 8.
Na cena, um típico cowboyavança cautelosamente em umceleiro de gênero.
Há uma mocinha amarrada e amordaçada e ele é atacado por um índio com o qual
terá que lutar (Figura 8). O cabo (Zé Adão Barbosa) está lendo uma história em
quadrinhos e se imaginando como protagonista. A luta iminente é interrompida pela
voz do soldado de fora da cena de western.
52
Figura 9- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 9.
Figura 10- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 10.
Figura 11- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 11.
Figura 12- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 12.
Figura 13- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame13.
Figura 14- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 14.
Figura 15- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 15.
Na sequência, Dorival tem seu pedido negado pelo cabo. Há ordens paranão
deixá-lo tomar banho, “e ordens são ordens”, é o argumento (Figura 9). Dorival, cada
vez mais enfurecido, ameaça e desacata os militares, o bordão que usa com cada um
é, gritando: “pra mim, milico e merda é a mesma coisa!”. O corte é para uma quadra
53
de escola de samba, com som de batucada ao fundo (Figura 10). O Sargento (Sirmar
Antunes) está conversado com a namorada, que usa um telefone público, explicando
que não vai poder ir ao ensaio; ela diz que vãosubstitui-lo no surdo, e paquera outro
homem, que está fora de quadro (Figuras 11 e 12). Entram na sala o soldado e o cabo,
num tom coloquial quase carinhoso: “Sarja!”. Informam do tumulto com o preso, que
há ordens e tal. No corte, o Sargento tenta acalmar Dorival, mas não permite o banho
(Figuras 14 e 15).
De Dorival gritando ameaçador corta para a cena de Casablanca com o cantor
do bar soltando a voz (Figura 16). O Tenente (Lui Strassburger) está assistindo ao
filme em um vídeo (Figura 17) e é interrompido pelos militares subalternos.
Figura 16- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 16.
Figura 17- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 17.
Figura 18- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 18.
Figura 19- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 19.
54
Figura 20- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 20.
Figura 21- O dia em que Dorival encarou a guarda. Frame 21.
O Tenente conclui que Dorival não pode tomar banho. O clima esquenta ainda
mais. Dorival insultaa todos, gritando que são bonecos que obedecem sem saber nem
quem deu as ordens, diz que quem o proibiu de tomar banho foi o carcereiro, por
implicância (Figuras 18 e 19). Os militares, mostrados como racistas desde a primeira
fala, decidem dar uma surra no “negão”, para ele aprender a ter respeito. Chamam
reforços, abrem a cela e espancam Dorival. Para limpar o sangue, Dorival é arrastado
para debaixo do chuveiro (Figura 21). Ao fim, ganha o banho.
3.1.2 Ilha das Flores (CM, 12 min, 1989)
O curta Ilha das Flores se apresenta dúbio desde o primeiro quadro, quando
afirma, em um cartão (Figura 22), que “este não é um filme de ficção”, mesmo que se
reconheça que também não possaser tido comoum documentário (os produtores não
o classificam assim); é uma narrativa em off (Paulo José), num texto com estilo
científico, ilustrada por vários tipos de imagens erepleta de humor e subtextos.
55
Figura 22 - Ilha das Flores. Frame 1.
Figura 23 - Ilha das Flores. Frame 2.
Figura 24- Ilha das Flores. Frame 3.
Figura 25 - Ilha das Flores. Frame 4.
Figura 26 - Ilha das Flores. Frame 5.
Figura 27 - Ilha das Flores. Frame 6.
A partir do Sr. Suzuki (Figuras 23 e 24), produtor rural do bairro Belém Novo,
em Porto Alegre, o filme conta a trajetória de um tomate podre, dispensado por
umadona de casa, que, depois, também não serve de alimento aos porcos criados
junto ao lixão de uma ilha na periferia da cidade, mas que serve de alimento à
população miserável do local. É um falso documentário, paródia do documentário
clássico, com a locução portando um discurso fechado, uma tese sobre o mundo (tipo
de narrativa chamada de ‘‘a voz de Deus’’, pela onisciência, onipresença e ausência
de corpo), que, ao fim, se transforma em um documentário propriamente dito, com um
novo tipo de imagem e corte. É um discurso que potencializa o conteúdo do
audiovisual com múltiplas digressões, ao modo de verbetes de hipertexto, com a
aparente objetividade da narração em contraponto irônico às imagens e montagem de
materiais híbridos em ritmo acelerado de variados assuntos da cultura humana.
56
Figura 28 - Ilha das Flores. Frame 7.
Figura 29 - Ilha das Flores. Frame 8.
Figura 30 - Ilha das Flores. Frame 9.
Figura 31 - Ilha das Flores. Frame 10.
Figura 32 - Ilha das Flores. Frame 11.
Figura 33 - Ilha das Flores. Frame 12.
Figura 34 - Ilha das Flores. Frame 13.
Figura 35 - Ilha das Flores. Frame 14.
Os conceitos, fatos, verbetes, associações edigressões que a narração faz, de
fundo histórico e filosófico, são ilustrados com imagens híbridas, nas quais
predominam soluções analógicas de estúdio e trucagens (na época da produção, os
recursos digitais mal se iniciavam): colagens, desenhos, objetos, animações,
reconstituições, publicidade, maquetes, documentários, TV e muitas dessas se
repetem, acompanhando o texto lógico que dá voltas nas comparações que faz, como
57
se fosse um exagerado documentário de tipo educativo, mas sendo uma paródia
(Figuras 28 a 35).
Figura 36 - Ilha das Flores. Frame 15.
Figura 37 - Ilha das Flores. Frame 16.
Figura 38 - Ilha das Flores. Frame 17.
Figura 39 - Ilha das Flores. Frame 18.
Figura 40 - Ilha das Flores. Frame 19.
Figura 41 - Ilha das Flores. Frame 20.
A tese sobre o mundo que o filme constrói a partir da trajetória do tomate enseja
um estilo de edição livre, cujo humor vai se constituindo pela ênfase das imagens que,
como o texto, simulam objetividade. Mas, no conjunto, no uso da edição, em relação
a outras imagens, na narrativa que desenvolve, na repetição com outros contextos e
sentidos, o texto e as imagens se tornam incertos (Figuras 36 a 41). O filme provoca
uma desacomodação no espectador, porque o sentido carece de trabalho e atenção;
é preciso olhar e escutar, porque imagens e sons não se confirmam, mas se
complementam em contraponto, muitas vezes se contradizem, e os possíveis sentidos
precisam ser descobertos e atualizados a cada momento.
58
Figura 42 - Ilha das Flores. Frame 21.
Figura 43 - Ilha das Flores. Frame 22.
Figura 44 - Ilha das Flores. Frame 23.
Em meio à sucessão de risos provocados pelas surpresas, pelo estado de
atenção que o texto e cortes acelerados provocam, o filme mostra, nesse ritmo, por
exemplo, de súbito, imagens de alta dramaticidade da história do século passado,
referentes a feridas abertas da humanidade. A explosão da bomba atômica e o
massacre de judeus no holocausto, tragédias da II Grande Guerra do Século XX, são
referidos por imagens documentais, com aparente casualidade e alto impacto (Figuras
42 a 44).
59
Figura 45 - Ilha das Flores. Frame 24.
Figura 46 - Ilha das Flores. Frame 25.
Figura 47 - Ilha das Flores. Frame 26.
Figura 48 - Ilha das Flores. Frame 27.
Figura 49 - Ilha das Flores. Frame 28.
Figura 50 - Ilha das Flores. Frame 29.
Figura 51 - Ilha das Flores. Frame 30.
Figura 52 - Ilha das Flores. Frame 31.
Figura 53 - Ilha das Flores. Frame 32.
Figura 54 - Ilha das Flores. Frame 33.
60
Na narrativa, em meio às imagens marcadamente produzidas e antinaturalistas
(Figuras 47 e 48, p.e), insere-se um outro tipo de imagens (figuras 45 e 46 e de 49 a
52), em contraste com as primeiras. Surgem planos realistas, com tratamento muito
diverso por fotógrafo, e em estilo diferente da outra parte do filme, feitos em áreas de
população miserável das ilhas de Porto Alegre, para onde converge a história do
tomate podre jogado ao lixo pela dona de casa, e onde os porcos, pelo fato de terem
donos, têm prioridade de se alimentar sobre as pessoas que sobrevivem do lixão,
porque essas são livres. “Liberdade é o que ninguém sabe explicar, mas todos sabem
o que é.”,éo último dos muitos conceitos e digressões que o texto perfaz na espécie
de hiperaudiovisual que estrutura.
Os créditos finais enfatizam as incertezas do discurso, porque de verdadeiro
mesmo é o filme que fizerem, que foi escrito, dirigido, produzido como tal. Inclusive,
informam, nem foi filmado na Ilha das Flores, embora esse lugar exista.
3.1.3 O sanduíche (CM, 13 min, 2000)
O curta O sanduíche tem uma construção ímpar que vai deslocando a voz
narrativa e ampliando a diegese ao incorparar sucessivos falsos fora de campo,
revelando ser sempre uma história dentro da outra. Inicia (Figura 55) por um diálogo
de despedida de um casal (Janaína Kremer e
Felippe Monnaco).
61
Figura 55 - O sanduíche. Frame 1.
Figura 56 - O sanduíche. Frame 2.
Figura 57 - O sanduíche. Frame 3.
Figura 58 - O sanduíche. Frame 4.
Figura 59 - O sanduíche. Frame 5.
A conversa muda e os dois interrompem o ensaio do texto, revelando que são
atores e o casal em separação são os papéis que preparam (Figura 56). Os
personagens se dirigem à parede invisível, revelando, num corte rápido e sem
explicações, um público que assiste em uma arquibancada (Figuras 57 e 58). Nessa
segunda diegese, eles inciciam uma outra história, conversam com intimidade sobre
si, aproximam-se até que se beijam. Neste momento, ouvimos um grito de ‘corta’.
62
Figura 60 - O sanduíche. Frame 6.
Figura 61 - O sanduíche. Frame 7.
Acontece uma nova ruptura, uma nova ampliação da diegese, quando é
revelado que a ação ocorria em um cenário de um set de filmagem (Figura 60), e que
as cenas da separação e dos atores que ensaiam e se beijam são igualmente partes
de uma produção. Os atores se despedem, (na Figura 61) o diretor (Nelson Diniz)
encerra a filmagem ea equipe sai.
Figura 62 - O sanduíche. Frame 8.
Figura 63 - O sanduíche. Frame 9.
Figura 64 - O sanduíche. Frame 10.
Figura 65 - O sanduíche. Frame 11.
63
Figura 66 - O sanduíche. Frame 12.
Figura 67 - O sanduíche. Frame 13.
Figura 68 - O sanduíche. Frame 14.
Figura 69 - O sanduíche. Frame 15.
O diretor (Nelson Diniz) estuda suas anotações, quando se ouve outra voz de
fora, dizendo “vai grua”. É a voz de mais outro diretor em nova ampliação da diegese.
O movimento de afastamento em grua revela aos poucos, e em plano único (da Figura
62 à Figura 68), o cenário e o estúdio, que estão a céu aberto, no centro da cidade,
de frente a uma arquibancada, com o público que assiste à produção (Figura 69). Em
off, durante a grua, populares se dirigindo aFurtado (fora de campo)dizem o que
acharam da filmagem: gostaram de assistir a filmagem, que devia ter sempre, que é
repetitivo, que dá trabalho, que é muito legal. Vai para fade.
Figura 70 - O sanduíche. Frame 16.
Figura 71 - O sanduíche. Frame 17.
64
Logo a imagem volta e Jorge Furtado aparece atuando como repórter (Figura
70), perguntando a populares o que acharam. Nesse momento o filme, em fim, atinge
um aspecto de credibilidade na imagem e no som, que parecem neutros. Quando, nas
respostas dos populares, percebe-seque estão repetindo uma fala dita pelo casal na
cena da separação, pelos atores na cena do ensaio e quando se despedem no set de
filmagem, Furtado corrige os populares (Figura 71): “é assim, ela fala: seria ótimo, e
tu responde: seria”. O filme encerra.
3.1.4 O homem que copiava (LM, 124 min, 2003)
O longa-metragem O homem que copiavasegue a história do amor entre dois
jovens, André e Silvia (Lázaro Ramos e Leandra Leal). Ambos são trabalhadores com
pouco dinheiro de um bairro não distante do centro de Porto Alegre. André quer o
amor de Sílvia e também ganhar dinheiro para saírem dali.
Figura 72 - O homem que copiava. Frame 1.
Figura 73 - O homem que copiava. Frame 2.
Figura 74- O homem que copiava. Frame 3.
65
Figura 75 - O homem que copiava.
Frame 4.
Figura 76 - O homem que copiava.
Frame 5.
Figura 77 - O homem que copiava.
Frame 6.
Figura 78 - O homem que copiava.
Frame 7.
André é ilustrador, mas trabalha como operador de máquina fotocopiadora
numa papelaria do bairro. Ele narra o mundo a partir do ponto de vista muito particular
que tem, os fatos em fragmentos, como as fotocópias que faz, com associaçoes
diversas. André também espia o mundo em volta de casa com binóculos da janela do
quarto (Figura 77). Assim conhece Sílvia (Figura 78), que mora perto. É uma
referência direta à Janela indiscreta (Rear Window, Alfred Hitchcock, 1954), que
também se baseia no ato de ver pela janela através da lente.
66
Figura 79 - O homem que copiava.
Frame 8.
Figura 80 - O homem que copiava.
Frame 9.
Figura 81 - O homem que copiava.
Frame 10.
Figura 82 - O homem que copiava.
Frame 11.
Figura 83 - O homem que copiava.
Frame 12.
Figura 84 - O homem que copiava.
Frame 13.
A ideia que estrura o filme é que André faz vários planos mirabolantes para
ganhar dinheiro e todos dão certo. O filme mistura mais de uma linha narrativa: a
história de amor de André e Sílvia e os golpes que o protagonista arma com os amigos
Cardoso (Pedro Cardoso) e Marinês (Luana Piovani), numa linha dramática
secundária. Há uma sucessão de peripécias em ritmo acelerado e ricamente
ilustradas: falsificam dinheiro, assaltam um carro forte- situação em que André fere o
segurança que é o pai de Sílvia –, acertam na loteria, ele planeja e assassina
umtraficante amigo, os jovens namoram, planejam e assassinam o pai de Sílvia, e
fogem impunes para o Rio de Janeiro.
67
Figura 85 - O homem que copiava.
Frame 14.
Figura 86 - O homem que copiava.
Frame 15.
Toda a narrativa é contada pelo ponto de vista de André (Figuras 85 e 86),
através de um off, que é o pensamento do personagem, ilustrado com variadas
imagens. Ele descreve, às vezes com aparente objetividade, detalhes da rotina da
vida sem graça que tem: o bairro humilde, o trabalho na papelaria, o funcionamento
da máquina fotocopiadora, os fragmentos de textos e imagens que vê e imagina, o
histórico de criança problemática, o pai que abandou a família, os desenhos e
colagens que faz. Nessas sequências, é usada uma edição livre de imagens de
origens variadas para ilustrar o pensamento de André, que especula e mistura
diversos assuntos da cultura e sociedade humana.
Figura 87 - O homem que copiava.
Frame 16.
Figura 88 - O homem que copiava.
Frame 17.
Figura 89 - O homem que copiava.
Frame 18.
Figura 90 - O homem que copiava.
Frame 19.
68
Figura 91 - O homem que copiava. Frame 20.
Figura 92 - O homem que copiava. Frame 21.
Figura 93- O homem que copiava. Frame 22.
A narrativa se apoia em recursos audiovisuais híbridos, é repleta de símbolos,
de imagens, de variadas representações e formatos (Figuras 87 a 93): colagens,
desenhos, iconoclastia, estatuária, HQ, publicidade, televisão, cinema. Na TV (Figura
93), uma cena de ação de Teixeirinha31, na ponte elevadiça do Rio Guaíba, em Porto
Alegre.
Figura 94 - O homem que copiava.
Frame 23.
Figura 95 - O homem que copiava.
Frame 24.
Noutro exemplo das representações que faz, no foco do binóculo, através da
fresta na janela, vê ao fundo um espelho na porta do guarda-roupas, que, conforme a
posição em que fica aberta, mostra um pedaço diferente do quarto de Sílvia aAndré,
31Cantor, compositor, ator, diretor e produtor de cinema, do Rio Grande do Sul (1927/1985).
69
que monta mentalmente esses fragmentos (Figura 94). O filme insere diversas
referências ao ato de observação, do recorte e enquadramento, da montagem, do
ponto de vista e uso de lentes e formas variadas de representação (Figura 95). Tudo
está fragmentado, leem e veem em fragmentos refletidos aos pedaços.
Figura 96 - O homem que copiava.
Frame 25.
Figura 97 - O homem que copiava.
Frame 26.
O filme valoriza as locações de Porto Alegre (Figuras 96 e 97), em paisagens
que não são usais. É um traço do perfil do cinema de Furtado.
Figura 98 - O homem que copiava.
Frame 27.
Figura 99 - O homem que copiava.
Frame 28.
As ações do filme são preparadas com cuidado, em outras
representações;afirma Jorge Furtado que nada aparece uma única vez. Acima
(Figuras 98 e 99), a cena em que o traficante (Júlio Andrade) é morto, atravessado
por lanças, é vista várias vezes, antes, de outros modos. É um recurso narrativo que
funciona como o implante, a pista que antecipa e cria um padrão que envolve a
atenção do espectador, recompensado pelo trabalho dedicado.
70
Figura 100 - O homem que copiava. Frame 29.
Figura 101 - O homem que copiava. Frame 30.
Noutro momento, André usa a estratégia de, quando começa a ganhar dinheiro,
dar de presente para Sílvia uma cortina transparente (Figuras 100 e 101).
Figura 102 - O homem que copiava. Frame 31.
Figura 103 - O homem que copiava. Frame 32.
Outro elemento da estrutura é o discurso sério, a tristeza em meio às peripécias
e piadas. André descobre que Antunes (Carlos Cunha), o suposto pai de Sílvia, é um
abusador (aparece mexendo nas coisas, pegando dinheiro e espiando-a no banheiro,
enquanto sugere que se masturba, e, noutro momento, Sílvia sugere ter sido
abusada). Na trama, armam um plano e assassinam Antunes.
71
Figura 104 - O homem que copiava. Frame 33.
Figura 105 - O homem que copiava. Frame 34.
Figura 106 - O homem que copiava. Frame 35.
Assim, durante uma hora e cinquenta e cinco minutos de filme, toda a história
que inclui os encontros dos dois é narrada pelo olhar e pensamento de André (Figuras
104 a 106).
Figura 107 - O homem que copiava. Frame 36.
Figura 108 - O homem que copiava. Frame 37.
Figura 109 - O homem que copiava. Frame 38.
72
A narrativa vira: Sílvia revela que sabe de tudo (Figura 107). Revela ter
consciência de que está sendo observada (Figura 108). Conscientes, o casal supera
a fragmentação, decifra os textos e sentidos, e decide fugir dali.
Figura 110 - O homem que copiava. Frame 39.
Figura 111 - O homem que copiava. Frame 40.
Figura 112 - O homem que copiava. Frame 41.
Figura 113 - O homem que copiava. Frame 42.
Figura 114 - O homem que copiava. Frame 43.
Figura 115 - O homem que copiava. Frame 44.
Após todas as peripécias (e crimes cometidos), são premiados no Rio de
Janeiro, recebidos simbolicamente pelo Cristo Redentor. A voz de Sílvia reconta
também em off (em carta ao amigo Paulo/Paulo José) toda a história nos cinco
minutos finais do filme, agora pelo ponto de vista dela. As cenas de encontros de
ambos recebem nova decupagem e montagem. São as mesmas ações, locações e
falas, mas com outros sentidos, pois ela sabia de tudo. Sílvia diz: “minha mãe chama
Thelma, com ‘h’”, é uma anagrama de Hamlet que, segundo Furtado, como Sílvia, é
quem sabe de tudo, é inclusive quem se dirige a quem observa a cena.
73
Agora, ficamos sabendo, por exemplo, que na cena casual, do início da
narrativa, quando André descreve a papelaria, Sílvia estava presente. Ao fim do filme,
a mesma cena recebe o olhar dela. Quando inverte o ponto de vista, é ela quem
observa André e tem a iniciativa da ação. Acima, nas Figuras 110, 111 e 112, do início
do filme, a cena é vista e descrita por André. Na Figura 111, cai no chãoum postal do
Rio de Janeiro (cidade com a qual Sílvia sonha e para onde vão quando o filme
termina) e André o apanha. Na Figura 113, ficamos sabendo que é Sílvia quem deixara
o cair o postal. Observandobem, agora, vemos que, no início do filme, em 110 e 111,
estava Sílvia, antes mesmo de ter sido apresentada, semiescondida, ao fundo. É uma
construção muito detalhada, uma decupagem que complementa formalmente o fim ao
início do filme, costurada pelos olhares, pelos ângulos, pelas subjetividades.
3.1.5 Saneamento básico, o filme (LM, 112 min, 2007)
O longa-metragem conta a história de uma comunidade do interior que
pretende usar os recursos de um edital público destinado à produção audiovisual em
pequenas cidades na obra de saneamento do arroio Cristal que banha e dá nome ao
lugar.
Figura 116 – Saneamento básico, o filme. Frame 1.
Figura 117 – Saneamento básico, o filme. Frame 2.
Após a fala que se dirige ao público entrando na sala de cinema, durante os
cartões de apresentação, quando o filme se inicia da imagem do céu, a câmera desce
atéa pequena comunidade entre montanhas. O filme abre por uma assembleia de
moradores (Figura 117), em um estilo de vida antigo, dialogado, textual. Marina
(Fernada Torres) lê um poema em uma carta que escrevem ao prefeito pedindo
solução para o esgoto do lugar. Desde o início, é um filme repleto de humor.
74
Figura 118 – Saneamento básico, o filme. Frame 3.
Figura 119 – Saneamento básico, o filme. Frame 4.
Figura 120 – Saneamento básico, o filme. Frame 5.
Figura 121 – Saneamento básico, o filme. Frame 6.
Figura 122 – Saneamento básico, o filme. Frame 7.
As situações e os personagens são cômicos, segundo Furtado, inspirados nos
tipos da commedia dell’arte. Nas Figuras 118 a 122: o casal Marina e Joaquim
(Wagner Moura); Otaviano (Paulo José), pai de Marina e Silene (Camila Pitanga), que
aparece com o namorado Fabricio (Bruno Garcia), e Antônio (Tonico Pereira), amigo
de Otaviano. Também há uma oposição entre o mundo antigo, representado pela
marceneria de Otaviano e filhas (Figura 120), e o mundo novo da produção do vídeo.
Também faz um discurso sério, quando debate sobre poder fazer ou não cinema
quando não há dinheiro para resolver o esgoto (Furtado diz que essa é a tese e que,
para ele, pode). Os personagens discutem o que é ficção, o que é roteiro, se vão fazer
um filme ou um vídeo, comparam o valor das coisas: um saco de cimento, uma cadeira
75
ou uma fita de vídeo. Se apaixonam pela ideia de fazerem um filme, que se torna algo
muito mais importante.
Figura 123 – Saneamento básico, o filme. Frame 8.
Figura 124 – Saneamento básico, o filme. Frame 9.
Uma característica é a naturalização da vida que, mesmo bem interiorana, é
tratada sem clichês, na rotina comum, na intimidade dos casais, por exemplo. Nas
imagens acima (Figuras 123 e 124), momentos de diálogos criativos, cômicos.
Figura 125 – Saneamento básico, o filme. Frame 10.
Figura 126 – Saneamento básico, o filme. Frame 11.
Figura 127 – Saneamento básico, o filme. Frame 12.
Figura 128 – Saneamento básico, o filme. Frame 13.
76
Produzem um filme (Figuras 125 a 128) com as ferramentas e
referências que têm. ‘‘O monstro do fosso’’, filme diegético, objeto da ação dos
personagens, tem as características do cinema de bordas. É uma repetição de
formas de gêneros diversos, cujo conteúdo faz sentido apenas no contexto em
que vivem os personagens, que se tornam os realizadores e o público de
bordas. Em ‘‘O monstro do fosso’’, não há nexos causais temporais e se torna,
de fato, um pretexto pelo qual os personagens de Saneamento básico
representam os problemas da representação.
Figura 129 – Saneamento básico, o filme. Frame 14.
Figura 130 – Saneamento básico, o filme. Frame 15.
Figura 131 – Saneamento básico, o filme. Frame 16.
Os membros do grupo descobrem que precisam editar o filme e procuram o
produtor de vídeos de eventos sociais Zico (Lázaro Ramos, Figuras 129 e 130), em
Bento Gonçalvez que, perto, é a cidade grande. Na ilha de edição, manipulam a
imagem. Zico encontra na fita sobras de imagens provocantes de Silene feitas pelo
namorado na intimidade do casal. Com esse matertial, e vários efeitos especiais de
vídeo, conclui a narrativa de ‘‘O monstro do fosso’’, que é uma confusão, sem pé nem
cabeça.
77
Figura 132 – Saneamento básico, o filme. Frame 17.
Figura 133 – Saneamento básico, o filme. Frame 18.
Figura 134 – Saneamento básico, o filme. Frame 19.
Figura 135 – Saneamento básico, o filme. Frame 20.
O vídeo que produzem mescla várias formas: terror, ficção científica, romance,
mocinha indefesa, herói, documentário, vídeo ambiental, vídeo doméstico,
sensualidade, tudo misturado, sem seguir uma linha narrativa definida, e faz enorme
sucesso na comunidade. O público local entende e se identifica profundamente com
a produção (Figuras 132 a 135).
78
Figura 136 – Saneamento básico, o filme. Frame 21.
Figura 137 – Saneamento básico, o filme. Frame 22.
Figura 138 – Saneamento básico, o filme. Frame 23.
O vídeo ‘‘O monstro do fosso’’ é um sucesso. Silene transforma-se em uma
estrela (Figura 136), o turismo local dispara, os negócios da marcenaria progridem,
onde vendem vários produtos ligados ao tema do vídeo, entre eles, pequeno detalhe,
um abajur de cabeceira que é uma lanterna mágica (Figura 137). O arroio Cristal
segue poluído. A vida local segue.
3.2 Sob o crivo da análise fílmica
Nas ideias norteadoras dos realizadores da obra de Jorge Furtado e nos
estudos teóricos buscados para a compreensão dos filmes (conforme pontuado
acima), foram localizados alguns conceitos formais muito presentes, conforme podem
ser identificadosnos filmes em análise, possibilitando traçar um estilo nas realizações
configurado às feições da contemporaneidade.
3.2.1 O espectador nos pormenores das histórias e r oteiros A primeira intenção que Jorge Furtado e Giba Assis Brasil expressam é a
preocupação em contar uma boa história. Aqui, sobretudo, como princípio, pensam
na comunicabilidade da obra com o público, uma necessidade no projeto que
79
desenvolvem. Os filmes são narrativos, estruturados demodo adespertar o interesse
e deter a atenção do espectador com o desenrolar até o desfecho da história que
contam. Porém, não desenvolvem uma fórmula pura: elogiam e usam as formas do
clássico, cujas referências buscam especialmente na literatura e no teatro, mas são
filmes com formas marcadamente híbridas e autoreflexivas, que misturam humor e
discursos sérios sobre o mundo, que atualizam e operam variadas outras mesclas, à
feição dos modos de saber e da cultura do contemporâneo.
Embora sempre seja arriscado definir o que é uma boa história, porque as
ideias às vezes funcionam e às vezes não, é uma característica marcante, no estilo
de Furtado, a ênfase e o trabalho nos roteiros. Há muita clareza quanto às histórias
narradas e às estruturas dos filmes, que são escritas e decupadas no pormenor (nas
amarras, costuras, passagens, pistas e uso das outras técnicas que antecipam e
vinculam os acontecimentos e fazem a narrativa evoluir com controle). Nesse cinema,
considera-se a presença ativa do espectador, que é chamado a construir sentidos
contingentes, ao acompanhar o padrão que a forma estabelece.
Os filmes desenvolvem histórias bases em conceitos estruturantes dos quais
não se afastam. Mas não há uma forma única. Ilha das Flores (CM, 1989) e O
sanduíche (CM, 2000), como exemplos, têm características muito próprias, o primeiro,
modelo de paródia, hipertexto e hibridismo, o segundo, na construção que perpassa,
em cascata, instâncias de enunciação que vão sendo incorporadas à diegese. Frente
ao tipo clássico de narrativa, O dia em que Dorival encarou a guarda (CM, 1986), O
Homem que copiava (LM, 2003) e Saneamento Básico (LM, 2007) seguem a
evolução, numa relação de causa e efeito de situações que se agravam, da trajetória
de cada protagonista: no curta, o preso do quartel enfrenta os militares para poder
tomar um banho, porque está proibido; em um dos longas, André, o jovem desenhista
age na busca do amor de Sílvia e para ganhar dinheiro; no outro, a comunidade
interiorana, para conseguir a verba da obra sanitária da localidade, precisa fazer um
vídeo de ficção, que é um exemplar ficcional do cinema de bordas, mas sem a menor
ideia de como se faz isso. Esses três filmes narram as trajetórias dos personagens,
os heróis chamados à aventura, conforme o paradigma que Furtado refere,
enfrentando dificuldades e crises sucessivas que se agravam até a culminância. As
cenas são encadeadas por relações de causa e efeito, e constroem tempos e espaços
mostrados parcialmente. Os universos dos personagens são construídos de modo
conciso, cabe à imaginação do espectador completar as informações. No modelo:
80
uma situação entra em desequilíbrio, o personagem se esforça em busca do objetivo
(amor e dinheiro, tomar um banho ou fazer um filme), vive crises e riscos e se
transforma, chegando a um novo equilíbrio.
As aventuras de André começam quando ele se apaixona por Sílvia e precisa
arrumar 38 reais para se aproximar dela. Após a intensa jornada de peripécias,
transformados e premiados pelo esforço empenhado, os personagens (André e Sílvia,
e os amigos Cardoso e Marinês) saboreiam a vitória, impunes apesardos graves
crimes cometidos, numa nova e feliz vida no Rio de Janeiro.
O filme sobre o preso Dorival começa com a situação já em crise; os formatos
de curta e de conto literário, nosquaisse inspira, são ainda mais sintéticos, tratam da
parte mais forte da história, a qual, portanto, pegam já em curso. Há uma crise que se
agrava na sucessão de conflitos conectados entre preso e militares do quartel, até a
culminância: o espancamento, que leva a uma nova estabilidade, enfim, o banho.
Na pequena localidade interiorana, a sucessão de acontecimentos segue a
trajetória dos personagens (e seus dramas paralelos) envolvidos com a tarefa, cada
vez mais difícil, de produzirem um vídeo de ficção (o plano é usar a verba de um edital
público para produção audiovisual em pequenas cidades na obra sanitária da
localidade).
Os filmes são formados pelo desenvolvimento causal de grandes conflitos
motrizes e por conflitos menores ligados a esse, que se sucedem e se agravam numa
linha de tempo registrada de modo conciso, pois apenas alguns acontecimentos da
vida dos personagens são mostrados. São três exemplos, portanto, que usam as
estruturas narrativas clássicas, mas não apenas.
3.2.2 O simulacro, o hiperaudiovisual, a paródia, o sério e a mente fragmentada dos personagens
Essas narrações são focalizadas a partir de pontos de vista e imaginários dos
personagens no modo de mostrar os eventos da trama. A visão dada não privilegia o
melhor ângulo da cena ao espectador ideal,poisestá dentro dos acontecimentos. O
olhar não é objetivo nem unificado, embora muitas vezes o filme simule imparcialidade
(quando também é autoreflexivo), na característica descrição e associação em
cadeias de conceitos ricamente ilustrados, através do texto em off, estilo que surge
em Ilha das Flores (CM, 1989), está em A matadeira (CM, 1994) e em A teoria quântica
81
da gravidade (CM, 2010), e pontua outros filmes, como Meu tio matou um cara (LM,
2004) e, de modo destacado, estrutura O homem que copiava (LM, 2003), que segue
primeiro o pensamento de André e, ao fim, o de Sílvia. Nesse sentido, opera o jogo
possível entre a objetividade e aparente crença na verdade da imagem (e também do
relato testemunhal) e o errático e fragmentado do olhar e mente dos personagens
(semelhantes às pessoas reais) e dos enquadramentos e construções que o filme faz.
Mesmo que as narrativas de Ilha das Flores e de O sanduíche também sigam
estruturas e linhas muito claras, diferem dos outros exemplos, pois não acompanham
um determinadopersonagem em busca de seu objetivo. Ilha das Flores é conduzido
pela narração de um locutor ‘‘de fora’’, no tom objetivo e isento comum ao
documentário educativo denominado ‘‘clássico’’, que discorre um argumento sobre o
mundo a partir da trajetória de um tomate. A paródia, forma característica do
contemporâneo, segundo Hutcheon (1980), uma atualização na repetição com
distância crítica das expressões do passado, é construída no formato de um
audiovisual em hipertexto, um tipo de raciocínio que faz múltiplas e livres associações
conceituais, como se fosse um cérebro eletrônico que passeia por uma enciclopédia
virtual, descortina a possibilidade de haver sempre outro texto e mostra que o saber
está fragmentado (à semelhança da atual experiência de navegar pela internet, por
exemplo). Esse uso característico do texto em off, que, em Ilha das Flores, articulando
linhas de pensamentos lógicos, imita a locução onisciente do documentário, o qual
parodia, em O homem que copiava, aparece como um dispositivo semelhante, sendo
a voz interior de André que narra, às vezes com aparente objetividade, fazendo
também as livres associações em modo de hipertexto; é o pensamento do
personagem, uma voz diegética e fragmentada.
Em O homem que copiava, que representa a partir da mente de André, quase
tudo é símbolo, o real se torna de difícil apreensão, não há originalidade, o passado é
atualizado em citações fragmentadas do que já não é, e o mundo é povoado por
imagens de si mesmas, num tempo em que a produção de real e de referencial é
maior que a produção material (conforme Baudrillard, 1982, conceitua o simulacro).
As imagens desenraizadas são articuladas em um processo de bricolagem (apontado
por Santana, 2006), em que o filme forja um novo tipo de realidade, com referenciais
muito difusos, imaginativos.
A unidade que a história e estrutura centrais imprimem aos filmes é
contrastante ao hibridismo que advém do olhar e mente fragmentadas dos
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personagens e textos. É o que se observa no hibridismo associado à subjetividade
dos militares que vão sendo chamados a enfrentar o preso Dorival. Vem da
imaginação fragmentada de André o hibridismo de O homem que copiava. Ilha das
Flores é o exemplo mais conhecido, inaugura o estilo que incorpora imagens e
referências de qualquer procedência, que atualiza potencialmente qualquer elemento
da cultura, precursor de espécie de ‘‘hiperaudiovisual’’ e ‘‘hipernarrativa’’.
Nessa linha de mesclas, o estilo dos filmes conforma incertezas que há, por
exemplo, entre o documentário e a ficção. Ilha das Flores é o caso mais emblemático,
exemplo de problematização dos limites entre os campos, que até hoje, vinte e seis
anos após a estreia, ainda suscita dúvidas e discussões [A mataderia (CM, 1994)
também opera no mesmo intercampo; Essa não é sua vida (CM, 1991) é o curta que
os realizadores assumem como documentário, porém no estilo moderno32; também é
documentário o recente e híbrido longa Mercado de notícias (LM, 2013)]. O estilo que
predomina é de ficção, mas o desenvolvimento de discursos sérios emprega aos
filmes um realismo comum no documentário, mas muito possível na ficção em meio
ao proeminente humor que apresenta.
A impureza entre o documentário e a ficção também está na combinação entre
comédia e sério. O diretor se identifica com a comédia triste, o humor triste como a
forma mais próxima do que são as pessoas. Entre piadas rápidas, aparecem os temas
sérios da humanidade: fome, pobreza e liberdade, autoritarismo e opressão, abuso
doméstico e obrigatória gratidão, produção de cultura em meio à falta de saneamento
público, entre outros.
Porém, persiste o aspecto dúbio das produções, pois, além dessa expressa
preocupação séria com o mundo, abstém-se de moralismos: assim como o adultério
não é punido em Real beleza e o sexo mercantilizado é natural em Houve uma vez
dois verões, os personagens de O homem que copiava cometem um rolde graves
crimes (falsificação, assalto e homicídio) e não são punidos. Além disso, também
fogem aos clichês, o que gera desacomodação no público, são alguns exemplos:
mesmo com personagens negros no Rio Grande do Sul, não tratam do racismo;no
interior, a vida íntima é naturalizada.
32Os documentários modernos, nas formas do ‘direto’ e do ‘verdade’, apresentam estruturas anti-ilusionistas, nas quais se evidência o processo de fabricação do filme e a carência intrínseca de validade geral que as narrativas apresentam.
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Muitos filmes de Furtado desenvolvem como que uma tese sobre o mundo, em
parte na forma desse raciocínio lógico, usando textos com narração em off, que são
permeados por digressões e associações de fundo filosófico, semântico, retórico,
histórico, científico, estético, moral, político, carregados de humor e ironia pelo
exagero ou contraponto, pelo subtexto e sentidos contingentes e sugeridos, quando
se apropria e imita discursos pretensamente isentos, em meio a diferentes e
cambiantes níveis de subjetividade. Essas construções em alto ritmo são permeadas
de citações no que se chama de ‘‘narração por camadas’’; pois, voltadas ao grande
público, atêm-se à história base, mas recebem um grande número de detalhes
inscritos em outras camadas que serão percebidos por grupos menores de audiência,
dependendo das referências culturais e atenção do espectador (esse é um dos
motivos pelos quais os filmes, mesmo que ricamente ilustrados, às vezes até com
erudição, são apreciados pelo público de massa da televisão).
Como exemplos da subjetivação, em O dia em que Dorival encarou a guarda e
em O homem que copiava, os olhares e mentes dos personagens, através dos quais
opera a narração, tutelam a imagem. Os filmes do diretor constroem sobremaneira
representações e chamam a atenção para a subjetividade intrínseca, que muitas
vezes se oculta da instância de articulação. A autoreflexão é uma das estratégias
frequentes encontradas nas configurações formais. A voz que narra deixa de ser
centralizada, unificada, oculta e isenta. A citação frequente de Furtado, como
exemplo, está na fala inicial de Hamlet, que se dirige ao extracampo, perguntando
“quem está aí, quem está narrando, quem está observando a cena?”.
3.2.3 A representação representada e o fluxo de con sciência
O off de Ilha das Flores pode ser visto como a enunciação ficcionalizada. O
homem que copiava‘‘hiper-representa’’ e vincula a narrativa ao enquadramento, ao
olhar e ao ponto de vista, nos recortes da máquina fotocopiadora, nos desenhos e
colagens, e, com destaque, em André que espia o mundo da janela do quarto em
fragmentos enquadrados pelas lentes do binóculo. O filme representa a imaginação e
a montagem quando compõe, na mente de André, o quarto de Sílvia a partir de partes
refletidas no espelho do guarda roupas. Quando a narrativa troca da voz de André
para a de Sílvia, e a imagem muda, o filme joga com a importância do ponto de vista
e do enquadramento para o sentido. Em Saneamento básico, o filme os personagens
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encarnam papéis de diretores de cinema e brincam com as possibilidades e limitações
da narrativa, do roteiro, da edição. A autoreflexão integra a própria estrutura do curta
O Sanduíche, que faz um movimento de contínuo afastamento e ampliação do campo
da cena, incorporando sucessivas instâncias de enunciação, até o extremo do artifício,
no que seria a última camada, do próprio diretor em cena naturalista, que logo se
mostra mais uma atuação (presença do diretor em cena que também está em Mercado
de notícias). A parcialidade do artifício é ensejada e dada a ver na ação e na narrativa.
O sentido, deixando assim de ser unívoco, mas uma possibilidade presente no
filme, depende da recepção, passa a ser contingente, e sobre ele, portanto, não há
garantias. O sentido é dado da leitura, efeito da narrativa. É assim que funciona “O
monstro do fosso”, que seria sem pé nem cabeça, mas que faz muito sentido no
contexto e para o público específico em que é exibido como parte de Saneamento
básico, o filme. Nesse longa, os problemas da representação e da narrativa integram
a própria trama, o filme representa a representação.
A contingência também está no constructo. As espécies de comandos,
inspiração da literatura de Kurt Vonnegut e do grupo de escritores do OuLiPo (Oficina
de Literatura Potencial), apresentam um toque de circunstancial pela regra, pelo
dispositivo autoimposto à narrativa. O comando do jogo que imagina o realizador
estipula: “Ilha das Flores é todo em narração em off e terá dois fotógrafos que nem se
falarão”, “todos os personagens querem estar em outro lugar em Dorival”, “O
sanduíche se baseia no dispositivo do movimento que expõem a produção da
narrativa”, “Saneamento básico não pode ter off e são personagens da commedia dell
art”, “em O homem que copiava a história troca de olhar ao fim”. As narrativas têm
sistemas que as estruturam, que forjam os padrões voltados para a participação do
espectador, na acepção trazida de Bordwell e Thompson (2013).
Os filmes, como já dito, têm estruturas muito definidas, nas quais a palavra
ocupa um espaço importante. Porém, o texto é adaptado: as formas narrativas se
originam na literatura, mas se constroem no plano e na montagem de cinema; as falas,
especialmente nos característicos textos em off, são elementos expressivos do plano,
porque palavra e imagem não se repetem, nem se confirmam, e carecem de
objetividade. Nesta linha, nos filmes, de certo modo, Furtado tenta aquilo que aponta
faltar na natureza do cinema: representar o fluxo de consciência dos personagens,
transformado em roteiros e planos.
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3.2.4 Diverso e criativo: mistura de tudo São obras por princípio e extrinsecamente multirreferenciais, que têm a
potência de presentificar qualquer objeto do passado. Mistura de tudo, e “mistura de
todos os filmes”, como diz Furtado (2014). O estilo vem do cinema, do teatro, da
literatura e até da música da época da virada entre anos 70 e 80, como a “calça cotton
e a AIDS”, conforme Assis Brasil (2014). Assim como a estrutura clássica da jornada
do herói é conhecida desde os filmes e séries da TV, a temática dos jovens do lugar
está em Deu pra ti anos 70 (1981), traços do estilo estão dispersos no oceano de
filmes de diretores citados. As narrativas com várias linhas, a criatividade no modo de
narrar, as estratégias anti-ilusionistas, a manipulação do áudio, o filme tese e a relação
objetividade/subjetividade da imagem, o hipertexto, o corte acelerado, as trocas de
pontos de vista, a estrutura não linear eo humor triste podem ser vistos, de modos e
graus variados, em Nós que nos amávamos tanto (1974), Annie Hall (1977), Meu tio
da América (1980), Toda a memória do mundo (1956) e tantos filmes de Scola, Allen,
Resnais, e também De Sica, Hitchcock, Kurosawa, Wenders, Fellini, Formam e vários
outros, cujo cinema múltiplo identifica o estilo de Furtado.
Os filmes vistos, com constantes, mas em diversas formas, se fundam num
jogo contextual livre, pertinente ao contemporâneo, que potencializa as possibilidades
criativas do cinema, pois, estabelecidas as regras da narrativa, tudo é possível.
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CONCLUSÃO - UM OLHAR REUNIFICADOR NAS MESCLAS
Pela análise doconjunto, que representa uma produção muito ampla e
diversificada, percebe-se que os filmes de Jorge Furtado operam nos limites impuros
das formas e categorias expressivas, enquanto identificação pertinente ao contexto
contemporâneo.
A tessitura formada entre a objetividade e a subjetividade no enquadramento e
narrativa, também na impureza própria do olhar fragmentado, na referência e na
atualização das formas clássicas, ao mesmo tempo em que se distancia ao expor e
representar as construções que faz, são alguns traços dos filmes pertinentes ao
ambiente contemporâneo, onde vigem a expansão do tempo presente, o predomínio
da produção simbólica e a fragmentação do sentido e do olhar – o trio
destemporalização, desreferencialização e destotalização, segundo Gumbrecht
(1998) -, conforme exposto nesse trabalho.
A modulação de estilo nas formas adotadas se dá em mesclas entre a
autoconsciência e o uso das técnicas da narrativa, quando articulam sistemas e fazem
jogos de sentidos possíveis ao espectador, cuja presença passa a ser sabidamente
ativa. O sujeito a quem a câmera se referenda deixa de ser onisciente, pois os filmes
representam e trabalham com o errático e incerto das linguagens e dos sentidos, em
pontos de vista inseridos natrama, implicando, com frequência, em operações de
redirecionamento de expectativas criadas como parte dos jogos narrativos em que se
estruturam. Isentos de metanarrativas, ancorados na materialidade das imagens
produzidas, a interpretação de sentido deixa de ser perene, e ganha força a ideia do
contextual e contingente das relações de narração e recepção.
Neste ínterim, surgem os hibridismos, a paródia (repetição com distância
crítica), o simulacro (imagem cuja referência é outra imagem) como dominantes no
ambiente, a autorreflexão e as múltiplas citações: formas sempre articuladas como
partes de jogos narrativos.
Essas estratégias se encontram fundadas na construção de sistemas formais
narrativos que seguem a intenção de contar histórias simples e básicas, no
encadeamento causal de eventos, em linhas de tempo e espaço, para o envolvimento
e participação entretida do espectador. Entretanto,as narrativas entrelaçam mais de
uma linha dramática e várias estratégias. O tensionamento que, como categoria do
contemporâneo, mescla autoconsciência à ilusão do filme, todavia, também reforça
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as unidades na fragmentação, na medida em que estão implicadas nas próprias
tramas e olhares que estruturam os filmes.
Na obra, entre alguns dos principais traços, também estão as inscrições em
camadas de sentido (das mais acessíveis às mais eruditas), o humor e a inserção de
discursos sérios em meio ao trivial do jogo narrativo.
O tema sério, em assuntos e imagens muito realistas, convivendo com o
intenso humor e artificialidade assumida da produção, é característica dos filmes em
análise. Os roteiros, planos filmados e montagens, costurados ricamente nos
detalhes, acompanham e desenvolvem, além da narrativa, teses sérias sobre o
mundo. Apesar da fragmentação do saber, do pensamento e do olhar midiatizados e
do contexto desprovido de referências confiáveis que representam, os filmes forjam
fortes unidades dramáticas, estruturais e personagens que juntam peças do mundo
fragmentado. A trajetória de juntar fragmentos, reconfigurar e ler o mundo, no caso de
André e Sílvia, em O homem que copiava (2003), é um exemplo da operação
reunificadora que os filmes fazem. Nesse mesmo sentido, embora erroneamente tidos
por vezes como formalistas ou vazios, tratam-se de filmes altamente críticos e
intelectualizados, mesmo que voltados ao público de massas, não apenas pelas teses
e discursos sérios, mas pelo próprio ato político de desvelar e refletir sobre as
representações midiáticas do mundo atual.
Ao hipertexto, desenvolvido no discurso repleto de associações e verbetes, um
emprego ostensivo e irônico da palavra, muitas vezes na forma de um off,
correspondem um hiperaudiovisual e uma hipernarrativa. Os filmes são repletos de
representações visuais, ligadas à imaginação dos personagens, e pontuados de
detalhes nas construções narrativas (nas antecipações, pistas, preparações, golpes
dramáticos etc.).
A palavra, nos offs dos pensamentos e descrições do mundo pelos
personagens, marca o estilo. No arranjo que os filmes fazem, os textos são elementos
expressivos do plano, elementos da narrativa, cuja mais direta referência
cinematográfica vem de Allain Resnais. Palavra e imagem, presenças superlativas no
estilo hiper, não se confirmam nem se repetem, são partes igualmente integradas ao
contar da história.
A unidade e estrutura dos filmes também são advindas dos conceitos formais
que funcionam como comandos, conforme a referida adesão à proposta de escritores
como Kurt Vunnegut e do grupo OuLiPo.
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Com essas características, no estilo, fica privilegiado o jogo narrativo:
estabelecidas as normas internas do filme, tudo é possível nas formas de apresentar
as histórias. Neste caso, o parâmetro que permanece é o posicionamento ético nas
escolhas, mesmo que os valores morais sejam dilatados nas vidas dos personagens.
Assis Brasil sugere que o estilo vem do ‘‘ar do tempo’’ – estava no que
assistiam, liam e escutavam, mas a preocupação primeira é com as histórias
contadas. Furtado afirma: “eu sou muito mais um roteirista que dirige do que um
diretor” (FURTADO, 2012, p. 27), com acerto, porque a ênfase está nas histórias e
roteiros de filmes pensados na impureza dos limites das formas, nas mesclas e
atualizações, nas bricolagens entre citações diversas e na ênfase narrativa. São
realizações do tempo e espaço atuais nas formas expressivas com que representam.
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