no céu nos reconheceremos

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 NO CÉU NOS RECONHECEREMOS PELO Pe. F. BLOT, DA COMPANHIA DE JESUS VERSÃO DA 19ª EDIÇÃO FRANCESA PELO Pe. FRANCISCO SOARES DA CUNHA LIVRARIA APOSTOLADO DA IMPRENSA Rua da Boavista, 591 PORTO

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7/25/2019 No Céu nos Reconheceremos

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NO CÉU NOS

RECONHECEREMOS

PELO

Pe. F. BLOT, DA COMPANHIA DE JESUS

VERSÃO DA 19ª EDIÇÃO FRANCESA

PELO

Pe. FRANCISCO SOARES DA CUNHA 

LIVRARIA APOSTOLADO DA IMPRENSA

Rua da Boavista, 591

PORTO

7/25/2019 No Céu nos Reconheceremos

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 Imprimi Potest.

Olysipone, die 1 Januarii, 1952

 Julius Marinho, S. JPræp. Prov. Lusit.

Pode imprimir-se

Porto, 29 de Janeiro de 1952

 Mons. Pereira Lopes, Vig. Geral 

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

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Í N D I C E

P R Ó L O G O

I – Ocasião e motivos desta obra...................................................................... 5

II – Juízo que dela fazem alguns eminentes bispos e sacerdotes...................... 6

III – Vantagens desta publicação...................................................................... 12

CARTAS DE CONSOLAÇÃO

1 – Estado da questão ..................................................................................... 15

2 – No Céu todos se conhecem ....................................................................... 27

3 – Resposta a algumas objeções .................................................................... 37

4 – Oremos pelos pecadores mesmo despois da sua triste morte

(Apêndice à 3ª. Carta) ................................................................................ 53

5 – Reconhecimento dos parentes ou a família no Céu ................................... 596 – Reconhecimento dos amigos, ou a amizade no Céu ................................. 63

7 – O homem conhece os anjos, ou a união dos anjos e dos homens no Céu.. 83

8 – Conclusões práticas ................................................................................... 93

ORAÇÕES PARA TORNARMOS A VER NO CÉU AS PESSOAS

QUE NOS SÃO QUERIDAS

1) Oração à Santíssima e adorável Trindade ................................................ 103

2) Oração a Nosso Senhor Jesus Cristo ........................................................ 105

3) Oração à Santíssima Virgem, a S. José e a todos os Santos ..................... 107

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I N T R O D U Ç Ã O

I

 No princípio do ano de 1859, numa cidade do Oeste, onde ensinávamos teolo-

gia, soubemos que um pregador dissera, da cadeira da verdade, que os membros da

mesma família não se reconheceriam no Céu.

Entre os seus ouvintes encontrava-se um ancião que ao ouvir isto se afligiu

muito, porque tinha perdido a sua virtuosa esposa, que sempre esperara tornar a ver

 junto de Deus. Foi confiar sua aflição ao seu confessor, que era o Superior da mesmacasa que habitávamos.

Este, sabendo que andávamos procurando nas obras dos Padres da Igreja os

materiais necessários para a composição duma obra, que esperávamos publicar um

dia, sobre o dogma da comunicação dos santos, convidou-nos especialmente a reco-

lher todos os testemunhos que assegurassem que os parentes e os amigos se reconhe-

cem na eterna bem-aventurança.

Disse-nos que estas autoridades nos serviriam para consolar as almas, e disse a

verdade; tivemos a prova disto três anos depois, em seu próprio país.

Corria o ano de 1862, e pregávamos a Quaresma na catedral duma cidade do

Leste. No fim duma instrução mostramos a família recomposta no Céu. Este quadro

 pareceu próprio a regozijar santamente uma viúva e uma mãe angustiada, bem co-

nhecida em toda a cidade por sua virtude, mas a quem uma indisposição tinha impe-

dido de ir ouvir-nos.

Uma de suas parentes que ela amava ternamente contou-lhe, em resumo, o que

tínhamos desenvolvido, e veio da sua parte suplicar-nos que lho déssemos por escri-

to.

Pouco tempo depois, a piedosa senhora reiterava-nos pessoalmente esta súplicae contava-nos que, muitos anos antes, tendo perdido uma de suas filhas ainda jovem,

quisera consolar-se com a esperança de tornar a vê-la no Paraíso, mas que um eclesi-

ástico a repreendera severamente, porque esta esperança, segundo a sua opinião, não

tinha fundamento algum, e que nutrir-se dela era uma grande imperfeição, pois que

só Deus nos deve bastar.

Uma resposta tão dura não satisfazia nem o seu espírito nem o seu coração.

Como um dos seus filhos era então aluno da Companhia de Jesus, no célebre colégio

de Friburgo, na Suíça, suplicou ao padre Reitor que o fizesse acompanhar até a casa

no tempo das férias mais próximas, por um religioso que a instruísse sobre este pon-to, a fim de assegurá-la e tranqüilizá-la, sendo possível.

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As exagerações duma certa escola tinham, pois, formado como que uma nuvem

que ocultava aos olhos dum grande número de pessoas aflitas, o vivo resplendor des-

ta verdade tão consoladora: No Céu nos Reconheceremos. Se lhe não negavam ab-

solutamente a existência, via-se pouco, e mostrava-se ainda menos todo o bálsamo

que encerra para adoçar as mais cruéis dores.Foi o que determinou a pessoa de que temos falado, digna de todos os nossos

respeitos e atenções, a pedir-nos instantemente estas Cartas de Consolação, nas

quais nos esforçamos em apresentar a verdade com toda a sua clareza, para que o

coração aflito a veja, sinta e se regozije.

Pelo mesmo motivo, muitos de nossos leitores desejariam encontrar aqui as al-

tas aprovações que recebemos. Fomos graciosamente autorizados a satisfazer um

desejo que tende unicamente a tornar este opúsculo ainda mais consolador.

Estes testemunhos são efetivamente um novo alívio para as almas provadas por

uma cruel separação; servem de lição para todos, e são uma censura para os contradi-tores, antes que um elogio para um escrito sem importância e sem merecimento.

Longe de assemelhar-se a essas obras doutrinais que têm um grande alcance, não é

mais do que um tecido de citações onde o coração dos santos e dos doutores está

aberto para que a alma atribulada tire daqui as consolações de que tem necessidade.

Contudo, seria necessário atrair a atenção dos homens para uma coisa em si tão

simples e tão evidente?

Eis o que a este respeito nos dizem pessoas de autoridade indiscutível:

 – Monsenhor Dupanloup, Bispo de Orleans:“Desde há muito tempo que fazia votos para que uma tal obra saísse a públi-

co”.

 – Monsenhor Filion, Bispo de Mans:

“Li com vivo interesse o opúsculo – No Céu nos Reconheceremos. As verda-

des que com tanta felicidade exprimistes, servindo-vos da linguagem da Escritura e

dos Santos Padres, são mui necessárias a todos durante o exílio da vida presente; e é

isso o que poderosamente concorrerá para que o seu livro tenha uma grande extração.

Faço sinceros votos para que assim aconteça”.

Um veterano do Sacerdócio, um dos padres mais experimentados que possuía aAlsácia, M. F. Muhe, dizia-nos: “0 seu livro é um bálsamo para a alma aflita pela

 perda de seus parentes. Ai! e quantas vezes no nosso santo ministério não temos nós

ocasião de difundir este bálsamo! Fez, pois, um grande serviço, com a edição deste

excelente pequeno tratado, não só aos fieis, mas ainda a todos os padres encarregados

da direção das almas. Além disso, esta matéria é mui raras vezes tratada nas mesmas

obras teológicas. Portanto, exerceu por este motivo uma boa obra de misericórdia –

consolar os aflitos”.

Monsenhor Pie, Bispo de Poitiers, escrevia-nos: “O seu pequeno livro – No

Céu nos Reconheceremos – é uma verdadeira pérola engastada em textos seletos dos

Padres da Igreja. Li-o com fruto e consolação, e regozijo-me com a esperança do

grande alívio que levará a certas almas faltas de doutrina sobre este ponto, ou que

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facilmente se têm deixado impressionar pelos ditos dalguns pseudo-teólogos que se

crêem sempre mais próximos da verdade, quando se mostram mais severos. Obriga-

do, pois, meu querido Padre, por todo o bem que há de fazer este pequeno volume”.

Sua Exa. não se contentou só com esta aprovação. O “Courrier”, jornal de Vie-

na, de 6 de Novembro de 1862, terminava assim um longo artigo sobre o nosso livro:“Acrescentarei como o mais belo elogio, que, em sua eloqüente homilia da fes-

ta de Todos os Santos, Sua Exa. aconselhou a todos a leitura e a meditação destas

 páginas consoladoras, ditadas pela fé e pelo coração.

A obra do R. P. Blot, efetivamente, tem um lugar distinto em todas as bibliote-

cas cristãs e sobre a mesa de todas as famílias piedosas que conservam fielmente o

culto e a memória de seus membros falecidos”.

0 padre Gratry escrevia-nos rapidamente as seguintes linhas: “Li o seu livro.

Propaguei-o por dezenas, e tenho-o feito propagar. Li-o com avidez, tão ligeiramente

que talvez mesmo omitisse algumas páginas, mas tornei-o a ler.A idéia que teve não podia ser mais feliz. Fez absoluta justiça, uma vez para

sempre, duma verdadeira perversão jansenista acerca da idéia da vida futura. Edifi-

cou-me e instruiu-me plenamente sobre este ponto.

Ignorava, confesso-o, quanto a sua tese é teológica e incontestável em presença

de tantas autoridades. Tinha a firme convicção, mas não a ciência teológica desta

verdade.

Agradeço-lhe vivamente, meu bom Padre, por ma haverdes dado. Agradeço-lhe

o bem que tendes feito e fareis a milhares de almas, a quem muitas vezes o própriodiretor espiritual, como dizeis, hesita em consolar sob este ponto de vista. Não se

hesitará mais”.

Poderiam ainda outras causas tornar oportuno o nosso trabalho?

Monsenhor Darboy, Arcebispo de Paris, dignou-se escrever-nos depois de ter

lido os opúsculos – No Céu nos Reconheceremos e as Auxiliadoras do Purgatório:

“Quero unir o meu voto às felicitações, que lhe atrairão de todas as partes estes

livros cheios de doutrina e de piedade. Há muitos motivos de abrir diante de nossos

contemporâneos os horizontes da outra vida, e de premuni-los contra as ilusões e

atrativos desta.Olho, pois, como oportunas e mui úteis estas curtas, mas substanciosas pági-

nas, onde excitais a piedosa compaixão dos vivos a favor dos mortos, e reanimais nos

corações o desejo do Céu. É para mim um dever, assim como uma satisfação, aplau-

dir o merecimento do seu trabalho e animar os seus estudos. Suplico a Deus que lhe

aplique as suas melhores graças e o gênero de triunfo que lhe é mais caro, quero di-

zer, à edificação das almas”.

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I I

Mas conviria tratar um objeto tão mavioso em presença duma geração a quem

o trovão da divina vingança e os estilhaços do raio dificilmente despertam do seu

letargo?Monsenhor Malou, Bispo de Burges, respondendo a um amigo, escrevia-lhe:

“Acabo de ler o opúsculo No Céu nos Reconheceremos. Pergunta-me o que

 penso a seu respeito. Todas as obras que tratam do Céu, da sua felicidade, da sua

eternidade, etc., causam-me muito prazer, porque são estas que em nossos dias pro-

duzem nas almas o maior bem. Outrora recolhiam-se maiores frutos, ao que parece,

falando da Morte, do Juízo e do Inferno. O temor tinha então mais poder do que o

amor. Hoje o amor é mais poderoso para converter os corações.

É, pois, o amor que convém inspirar, não só para firmar os justos, mas também

 para converter os pecadores.O objeto de que trata este livro é cheio de interesse. Responde a uma pergunta

que as pessoas piedosas nos dirigem repetidas vezes: ‘Reconhecer-nos-emos no

Céu?’ Sim, certamente, reconhecer-se-ão reciprocamente as almas e se amarão, e

este amor fará parte da felicidade acidental do Céu. Segundo a minha opinião, o au-

tor é exato e nada exagera. Se tem algum defeito, é, talvez, o de não ter esgotado o

assunto de que se propôs tratar.”

O autor diz que o sábio prelado entra, depois disto, em considerações que lhe

teriam sido dum grande auxílio se quisesse tratar este assunto debaixo doutro pontode vista e com mais extensão; mas que, por uma parte, pessoas muito autorizadas o

aconselharam a conservar neste opúsculo a sua primitiva filosofia; e que, por outra, a

nobre senhora, a quem foram dirigidas estas cartas de consolação, tinha rendido na-

quela ocasião a sua bela alma a Deus, e que por isso lhe não era permitido acrescen-

tar novas cartas às antigas, mas que unicamente lhe parecera conveniente completar

estas, porque junto às orações que vão no fim deste opúsculo, lhe aumentarão muito

interesse.

Em seguida, discorre sobre as considerações de Monsenhor Malou, e diz por

conclusão, que quase todas estas provas se acham melhor desenhadas, mais clara-mente enunciadas, e têm ao mesmo tempo mais desenvolvimento e precisão nas se-

guintes páginas do mesmo ilustre prelado:

“A sociedade dos santos, me dizia eu, constitui a Jerusalém Celeste, a Santa Si-

ão, a cidade de Deus. Mas uma cidade tem os seus magistrados e seus príncipes, as-

sim como os seus cidadãos. Supõem, entre as pessoas que a compõem, relações de

superioridade e de subordinação na ordem moral, relações que não podem existir sem

mútuo conhecimento”.

“A sociedade dos santos é a família de Deus; família espiritual, transportada da

Terra ao Céu, família de que Maria é ainda Mãe e distingue seus filhos muito ama-

dos. Ora, pode conceber-se uma família cujos membros não se conheçam entre si?

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Poderá acontecer que os filhos conheçam seu pai e sua mãe, sem que os irmãos e as

irmãs tenham relações fraternais?”

“A sociedade dos santos forma uma hierarquia celeste, à imitação da dos anjos,

se todavia se não confunde”.

Ora, nós sabemos que os anjos se conhecem entre si, visto que as ordens supe-riores iluminam as inferiores, e que todos se auxiliam mutuamente em louvar, bendi-

zer e adorar o Deus três vezes santo.

Os bem-aventurados obrarão da mesma forma, e visto que os santos anjos os

conhecerão como substitutos dos anjos caídos, eles também conhecerão os anjos, e se

conhecerão reciprocamente.

“Além disto, não é a Igreja Militante uma, ainda que imperfeita, imagem da I-

greja Triunfante? Sendo assim, como é na realidade, a Igreja Triunfante conservará,

 pois, em seu seio o selo – permita-se-nos a expressão – da Igreja Militante.

Quero dizer que a ordem e harmonia que reinam cá na terra entre os filhos deDeus, a fim de se prepararem para a felicidade do Céu, passarão com eles à habitação

dos escolhidos.

Assim, os pastores se encontrarão no Céu à frente dos seus rebanhos; os bispos

à frente dos fieis das suas dioceses; os Soberanos Pontífices à frente de toda a Igreja

Católica; os Patriarcas das Ordens Religiosas à frente de suas famílias espirituais e de

todos aqueles que seguiram a sua regra, trouxeram o seu hábito e imitaram o seu e-

xemplo.

Mas esta ordem e esta harmonia repousam sobre o conhecimento recíproco das pessoas, e sobre as relações da ordem moral que, sem conhecimento recíproco, são

impossíveis.

A mesma natureza da bem-aventurança celeste fornece, a este respeito, provas

irrefutáveis.

Esta bem-aventurança repousa completamente sobre a visão beatífica, isto é,

sobre a vista intelectual da Divindade.

E que é a vista intelectual senão o conhecimento e a ação do espírito? O desen-

volvimento e a ação da inteligência será, pois, de alguma sorte, a medida da felicida-

de do Céu.A felicidade resulta, é verdade, do amor; mas este é necessariamente propor-

cionado ao conhecimento que se tiver do objeto da sua felicidade. Não se ama o que

se ignora, e ama-se infinitamente o que se conhece como infinitamente amável.

A inteligência é, pois, a faculdade pela qual os bem-aventurados apreendem e

se apossam da felicidade; e poderia supor-se nos escolhidos uma completa ignorância

de tudo o que os rodeia e interessa no mais alto grau?

Poder-se-á crer que gozem do conhecimento da essência de Deus, e que nesta

essência não contemplem os gozos que dela tiram os outros bem-aventurados? Isto é

inteiramente impossível. O poder que adquiriu o seu espírito para contemplar a Di-

vindade, origem de toda a felicidade, auxilia-os poderosamente a conhecer aqueles a

quem a essência divina beatifica e enche de felicidade. Não gozam somente do raio

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de luz que os põe em contato com a Divindade, mas também do oceano de claridade

que os inunda e põe em relação com todas as felicidades do Céu.

“Ainda que a felicidade essencial dos escolhidos consista na visão e posse da

essência divina, todavia sua bem-aventurança completa-se e acaba-se, se assim posso

falar, pelo conhecimento que adquirem da felicidade dos amigos de Deus”. No Céu, como na Terra, Deus recebe não somente homenagens isoladas, mas

também coletivos louvores de todos os seus filhos reunidos.

Demais, por que no Céu estas auréolas ou sinais particulares de virtude e de

glória? Por que trarão os mártires, as virgens, os confessores, os doutores, etc., um

sinal distintivo no meio da luz comum, senão para serem mais facilmente reconheci-

dos e glorificados por seus irmãos? Certamente não é para atrair a vista da Divindade

ou dos anjos, que estes selos particulares de merecimento e de glória são necessários,

mas sim para atrair a vista dos outros escolhidos.

Os bem-aventurados reconhecerão, pois, e distinguirão os mártires dos confes-sores e das virgens; e, reconhecendo inteiramente seus merecimentos, reconhecerão

também suas pessoas. Há, pois, entre os bem-aventurados uma série de mútuas rela-

ções de admiração, de felicitações, de aplausos e de reconhecimento, que supõe um

conhecimento pessoal, claro e direto.

Ainda mais: cremos na ressurreição dos corpos. Isto não é rigorosamente ne-

cessário para que os escolhidos se reconheçam entre si. As almas despojadas de seus

corpos revestem formas intelectuais que as inteligências desembaraçadas da carne

 podem perceber, distinguir e conhecer.Todavia, é certo que a reunião do corpo à alma, que reconstitui a individuali-

dade terrestre quebrada pela morte, é um meio poderoso de distinguir os escolhidos

uns dos outros. E ainda que a ressurreição da carne tenha outros fins sublimes, que é

inútil enumerar aqui, é permitido crer que ela contribuirá também, por sua parte, para

facilitar aos bem-aventurados o conhecimento que possuírem de seus parentes, de

seus amigos e benfeitores.

Sob este ponto de vista, o dogma da invocação dos santos também nos fornece

luzes.

O apóstolo S. Pedro, escreveu aos fiéis que tinha convertido, que depois da suamorte se lembraria deles. Estes fiéis tinham, pois, um direito mui particular de invo-

cá-lo depois da sua morte. Este direito temo-lo nós também, de certo modo, a respei-

to de todos os santos, mas especialmente a respeito daqueles cujo nome temos, ou

que, por um título qualquer, se tornaram nossos protetores particulares.

Chegados ao Céu, os santos que conhecemos na Terra conhecem-nos ainda.

Mas que digo eu? Os santos que reinam no Céu desde há séculos, os santos

mártires que verteram o seu sangue na primeira idade da Igreja, muito tempo antes

do nosso nascimento, conhecem-nos e amam-nos em Jesus Cristo. Nós os invocamos

com bastante confiança e bom sucesso.

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Ora, se os escolhidos nos não conhecem no Céu, é forçoso que estes bem-

aventurados protetores que nos seguiram na terra, nos percam de vista quando lá su-

 birmos, e deixem de se interessar pela nossa felicidade.

Mas, isto é impossível.

Longe de se quebrarem, quando subimos ao Céu, as cadeias de amor que nosunem aos santos; fortificam-se, pelo contrário, e estreitam-se ainda mais.

A fé e a esperança deixam então de existir; mas a caridade permanece sempre.

Os santos que nos conheciam na terra conhecem-nos quando chegamos ao Céu; e

como esta prerrogativa é essencialmente comum a todos os escolhidos, todos estes se

conhecem mutuamente por toda a eternidade.

Enfim, se os bem-aventurados se não reconhecessem uns aos outros, que idéia

se poderia fazer da felicidade do Céu? Seria necessário imaginar-se uma multidão de

seres separados uns dos outros, sem ação nem relações recíprocas, imóveis, absorvi-

dos numa contemplação imutável, e de alguma sorte materializada.O espírito e o coração dos escolhidos seriam absorvidos, concedo-o, no conhe-

cimento e no amor da natureza divina, mas o seu todo não formaria nem uma socie-

dade de amigos, nem a família espiritual, nem a Cidade de Deus.

O Céu não seria a habitação de delícias onde todas as faculdades da alma ra-

cional têm uma ação própria, concorrendo para a felicidade desta alma e dos outros

escolhidos; tornar-se-ia, permita-se-me a expressão, uma espécie de prisão celular,

onde as almas, cativadas pela felicidade essencial da visão beatífica, não saberiam o

que se passa em volta delas, e viveriam numa espécie de isolamento sem motivos.“Atenhamo-nos, pois, à imagem da sociedade dos santos, onde a caridade reina

como soberana; à da família de Jesus e de Maria, cujos membros todos se conhecem

e amam; à do Reino de Deus, onde tudo se passa com ordem e harmonia para maior

felicidade de todos.

Estas idéias, e algumas outras ainda, apresentaram-se ao meu espírito enquanto

lia o opúsculo do R. P. Blot, donde concluo que é a ele que as devo.

Agradeço-lhe mui sinceramente por mas ter sugerido, e reenvio-lhas como uma

dívida de reconhecimento. Possa o seu excelente livro derramar o bálsamo da espe-

rança cristã em muitas almas aflitas e, fazendo inteiramente sentir os laços espirituaisque nos unem entre nós, unir-nos cada vez mais no Senhor!

Depois do que acabo de dizer é inútil declarar que aprovo o livrinho e que de-

sejo vê-lo espalhado pela minha diocese”.

 Nunca o nosso reconhecimento será demasiado para com a memória do vene-

rando prelado que, apesar das dores duma cruel enfermidade a que devia em breve

tempo sucumbir, se dignou escrever-nos de seu próprio punho uma tão longa e bené-

vola carta.

Ela permite-nos esperar que este humilde trabalho fará algum bem às almas,

sobretudo àquelas que, não tendo uma fé assaz viva, murmuram contra a Providência

 por ocasião da perda dum ente querido, e são tentadas a abandonar as práticas da

 piedade cristã.

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I I I

Esta esperança é-nos dada ainda por Monsenhor Wicart, Bispo de Laval:“Li, diz ele, com muito prazer e fruto o seu livro – No Céu nos Reconhecere-

mos.

Continuai, meu bom Padre, a escrever obras tão piedosas e atraentes ao mesmo

tempo; muitas pessoas vos deverão a felicidade de se resolverem a marchar com pas-

so firme no caminho que conduz à pátria celeste, onde se tornarão a encontrar para

viverem eternamente em Deus”.

O sr. Hamon, pároco de S. Sulpício, escrevia-nos assim:

“O seu agradável opúsculo é muito próprio para consolar tantas pobres almas

aflitas, que, tendo gozado na terra a felicidade de amarem certas pessoas queridas,têm dificuldade em conceber que se possa ser feliz longe delas.

Sem dúvida, Deus só, basta ao coração; mas a parte sensível da nossa alma tem

repugnância de se elevar a esta verdade; e se o conhecimento que tivermos uns dos

outros no Céu não aumentar a felicidade essencial no seio de Deus, a esperança deste

conhecimento aumentará imensamente a nossa consolação nesta vida. É o fim que

vos propusestes, e que haveis perfeitamente conseguido.

O seu livro é, pois, uma boa obra, um verdadeiro ato de caridade que lhe agra-

deço pela minha parte”.O bem que produziu este opúsculo prova-se por cinqüenta mil exemplares em

língua francesa, espalhados no espaço de quatro anos; pelas numerosas traduções

feitas no estrangeiro; pelos novos opúsculos que suscita cada ano sobre o mesmo

objeto, e por fatos que nos têm sido contados muitas vezes.

Aqui é uma mulher do mundo, sem alguma piedade que, por ocasião da morte

de seu único filho, recebe de uma de suas amigas estas cartas de consolação; percor-

re-as e resolve-se a mudar de vida para estar segura de ir reunir-se no Céu ao peque-

no anjo que a precedeu.

Ali é um homem ainda jovem que, na morte imprevista de sua muito amadaesposa, é tentado pelo desespero, mas encontra entre os livros da defunta o opúsculo

 – No Céu nos Reconheceremos. Lê-o com empenho, e sente-se inteiramente muda-

do. Vai confessar-se, comunga e marcha daí por diante sobre as pisadas de sua virtu-

osa esposa, na esperança de se lhe reunir para sempre junto de Deus.

Acolá é uma filha cujo pai, à hora da morte, tinha dado todos os sinais exterio-

res de impenitência. Ela olhava como inútil tudo quanto pudesse fazer em benefício

de sua alma; mas lê o apêndice à terceira carta e toma a resolução de multiplicar as

suas orações e sacrifícios por esta alma tão querida, até ao último instante da sua

vida.

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O bom resultado que tem obtido este modesto escrito foi uma doce consolação

 para a alma sensível que no-lo pediu, e que quis aliviar-se a si, aliviando os outros.

Ela mesma nos escreveu:

“Sou-lhe, por certo, devedora de muitas consolações e bons desejos. Tendes

sempre a delicadeza de me dar parte dos bons resultados do livrinho - No Céu nosReconheceremos. Agradeço-lhe de todo o meu coração.

Quando penso que foram os meus suspiros e as minhas lágrimas que tiraram do

seu coração esta excelente obra, não me canso de admirar a Providência que, dum

grão de mostarda, formou uma árvore onde repousam as almas aflitas”.

Ai! a morte levantou de novo a sua espada, por bastante tempo suspensa, e des-

carregou um terrível golpe, arrancando ainda a esta pobre mãe uma filha muito que-

rida. Mas a graça deu-lhe alguma semelhança com Maria, por meio duma religiosa

resignação: “Consagrei-me, diz ela, a esta boa Mãe no mais terrível momento da mi-

nha dor, e ela me auxiliou. Ainda que me não foi dado ficar de pé como ela junto dacruz, fiquei assentada, e não a tenho abandonado. Esta graça, foi ela que ma obteve”.

Possam todas as mães, a quem a morte arrebata um filho, invocar e imitar as-

sim aquela que viu crucificar seu Filho único!

Possam todos aqueles que lerem este livro recorrer à Consoladora dos Aflitos,

e ficar pelo menos assentados ao pé da Cruz, se junto dela não puderem permanecer

de pé.

A virtuosa viúva, cujas palavras há pouco citamos, assemelhava-se, desde há

muitos anos, àquelas árvores fecundas e robustas que são abatidas, cortando-se umaapós outra as suas raízes, e algumas vezes os seus principais ramos.

Deus tirou-lhe, pouco a pouco, os ramos brotados da sua fecundidade; des-

 prendeu-a da terra onde a retinham profundas raízes, preparando-a para cair sem

muita dificuldade.

Tempo antes, a sua queda, isto é, a sua morte teria mergulhado na dor a seu es-

 poso e a seus numerosos filhos. Agora aqueles que a precederam no Céu vão regozi-

 jar-se, pois vêem que a morte só a inclina para a terra, a fim de apressar a sua reunião

com eles na pátria celeste.

Aqueles que ficam neste mundo, como estas tenras vergônteas que ela via cres-cer junto de si, vão adoçar, pelos testemunhos do seu amor, o momento da separação.

Mas, antes de chamá-la a si, Deus reservava-lhe uma grande alegria.

A 12 de Março de 1865, a Senhora *** assistiu, em Paris, à primeira missa do

mais jovem de seus filhos, e recebia de suas mãos a Sagrada Comunhão. Deste modo

tinha um ante-gosto da felicidade que gozarão os pais na glória, quando se virem

com seus filhos assentados ao banquete do Senhor.

Pela sua parte, o novo padre, por mais ocupado que estivesse de Deus e do Au-

gusto Sacrifício, conservava em sua alma a viva lembrança de sua família, e não se

esqueceu de sua mãe, orando pelos vivos, nem de seu pai, orando pelos mortos.

Quando desceu os degraus do altar para dar o Pão dos Anjos àquela que lhe

havia dado o ser, distinguiu-a, sem dúvida, entre todas as outras pessoas queridas a

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quem ia administrar a Sagrada Eucaristia, e as pulsações de seu coração lhe fizeram

sentir que, se é doce para um filho reconhecer sua mãe à mesa eucarística, será muito

mais doce ainda reconhecê-la no eterno banquete dos Céus.

Feliz, mil vezes feliz a mãe cristã que deixa depois da sua morte, para continu-

ar o hino começado por ela à glória do Senhor, um filho sacerdote, ministro de JesusCristo, uma filha no claustro, esposa do mesmo Jesus Cristo, e um filho no século à

frente de uma família onde se perpetua a fidelidade a Jesus Cristo, a dedicação à sua

Igreja e a misericórdia para com os seus pobres!

A Senhora *** teve esta rara felicidade, antes de adormecer no Senhor, a 4 de

Março de 1866, tendo sessenta e nove anos de idade. Podem-se-lhe aplicar sem exa-

geração nem lisonja, estas santas palavras:

 – Ela passou fazendo o bem (Act. X, 38);

 – A sua memória não se apagará jamais, e o seu nome passará de geração em

geração (Eccles. XXXIX 1,3); – Os seus filhos se levantaram e a proclamaram bem-aventurada (Prov., XXXI, 28);

 – Regozijar-vos-eis em vossos filhos, porque eles serão abençoados e se reuni-

rão todos junto do Senhor (Tob., XIII, 17);

 – Desprezei todas as vaidades do século por amor de Jesus Cristo que contem-

 plei, que amei, em quem cri firmemente e a quem dei todo o meu coração (Brev.

Rom. Commune non Virg., R. VIII).

Os restos mortais da Senhora *** foram depostos no mesmo túmulo em que

seu marido e três de suas filhas a haviam precedido, e pareciam esperá-la, a fim deque seus ossos, aproximando-se sob a terra, fossem como que uma prova de que suas

almas se tinham reunido no Céu; porque o desejo de ser sepultado junto de um paren-

te ou de um amigo foi muitas vezes olhado como expressão de um outro desejo, de

uma piedosa esperança: a de se reunirem um dia na pátria celeste, junto de Deus1.

Agora, quando o seu filho se prepara a fim de celebrar a Santa Missa e volta as

folhas do missal, encontra muitas vezes diante dos olhos um título que faz estremecer

o seu coração: Pro pater et mater  – por meu pai e minha mãe.

E que diz o padre nestas orações? Três vezes pede que reconheça seus pais na

eterna bem-aventurança:“Ó Deus, que nos mandastes honrar nosso pai e nossa mãe, tende piedade das

almas de meu pai e de minha mãe; perdoai-lhes os seus pecados; fazei que eu os veja

no gozo da eterna claridade; reuni-me com eles na felicidade dos santos; e permiti

que a vossa eterna graça aí me coroe com eles!”.

1  Amsaldi, Della speranza et della consolazione di rivedere i cari nostri nell’altra vita, cap. XVI, pag. 174

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NO CEU NOS RECONHECEREMOS 

Cartas de Consolação

PRIMEIRA CARTA

I

Estado da questão

É permitido afligir-nos pela morte dos nossos parentes,

contanto que não cessemos de esperar. – Testemunho de

Santo Agostinho. – Prática da Igreja – Palavras de S.

Paulino. – Exemplo de Jesus Cristo.

SENHORA,

A morte descarregou o seu terrível golpe junto de vós, sobre as pessoas que voseram mais caras. A vossa dor é extrema, e é legítima, ainda que não duvideis da eter-

na salvação daqueles cuja falta lamentais.

Por que motivos vos será proibido chorar por vossos parentes e amigos que a-

dormecem no Senhor, contanto que, seguindo o conselho do Apóstolo, vos não en-

tristeçais como os que não têm esperança? (I Thess. IV 12).

Santo Agostinho comentava assim estas palavras:

“É natural entristecermo-nos com a morte daqueles que nos são caros, pois quea natureza tem horror à morte, e a fé nos ensina que ela é um castigo do pecado.

A tristeza é uma necessidade: Hinc itaque necesse est ut tristes simus, quan-

do aqueles que amamos deixam de existir. Porque, ainda que saibamos que nos não

abandonam para sempre, como aconteceria se devêssemos ficar sempre na terra, mas

que nos precedem pouco tempo, porque estamos destinados a segui-los talvez muito

 breve; todavia, como não contristaria o sentimento do nosso amor a inexorável morte

que se apodera do nosso amigo?

Que seja permitido, pois, aos corações amantes entristecerem-se com a mortedas pessoas amadas, contanto que haja um remédio para esta dor e uma consolação

 para estas lágrimas, na alegria que a fé nos faz gozar, assegurando-nos da sorte de

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nossos queridos defuntos, que se apartam somente por algum tempo de nós e passam

a melhor vida.”2 

A Igreja, pelo seu exemplo, permite-nos chorar, e pelo seu ensino ordena-nos

esperar.

Como nós, toma luto por ocasião da morte de nossos parentes, e a sua voz, co-

mo a nossa, é cheia de tristeza.

Com o tato, que é particular às mães, e que elas sabem empregar em todas as

coisas para se tornarem mais persuasivas, a Igreja, tem-se dito, pede de empréstimo à

dor as suas lúgubres harmonias, tão bem adaptadas ao estado da alma aflita, que crê

mitigar a sua dor nutrindo-se da mesma dor.

Mas, misturando os seus gemidos com os nossos gemidos e as suas lágrimas

com as nossas, declara-nos, em nome de Deus vivo, que o que julgamos ser uma

morte, não é mais do que uma separação momentânea, um ponto fixo de reunião que

a pessoa tão chorada nos dá na habitação da vida, onde a reencontraremos em breve

tempo para não mais a perdermos.

Acrescenta que, “mesmo na terra, não acabou tudo entre nós e esta alma; que

ainda podemos amá-la e sermos dela amados, apesar da morte”.

A mesma Igreja ainda no-lo mostra na morada dos sofrimentos, implorando

com voz aflitiva o fraternal tributo de nossas esmolas, de nossas orações e de nossas

 boas obras. Ou então, no-la faz ver já revestida da incomparável beleza do Céu, e

repousando no seio de Deus, donde sobre nós lança olhares duma doçura e ternura

inefáveis; faz-nos vê-la, preparando-nos com amor um lugar a seu lado, e oferecendo

a Deus incessantemente as suas mais ferventes orações a fim de obter-nos o mereci-

mento de possuí-la e de nunca mais a perder”3.

S. Paulino, Bispo de Nola, consolou a Pamáquio, por ocasião da morte de Pau-

lina, sua mulher, filha de Santa Paula e irmã de Santa Eustáquia.O virtuoso esposo vertia lágrimas tão abundantes como as suas esmolas. Que

vai fazer o seu amigo? Irá censurar estas lágrimas? Louva-las-á pelo contrário, e co-

lherá nas Sagradas Escrituras todos os exemplos de santas lágrimas vertidas por oca-

sião da morte duma pessoa querida.

Depois acrescentará: “Para que censurar as lágrimas dos santos mortais? Não

chorou o mesmo Jesus a morte de Lázaro, a quem amava?”

2 Santo Agostinho, Serm. 172, no. 13.3 Marc, Le ciel, apêndice sobre o amor beatífico, cap. I.

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 Não se dignou Ele condoer-se da nossa desgraça, até derramar lágrimas sobre

um morto? Não se dignou chorar, acomodando-se à fraqueza humana, aquele a quem

ia ressuscitar por um efeito da sua divina virtude?

“Eis o motivo, ó meu irmão, por que vossas lágrimas são piedosas e santas”:

 Idcirco et tuae, frater, lacrymae sanctae et piae. Porque uma semelhante afeição as

faz correr; e se chorais uma digna e casta esposa, não é porque duvideis da ressurrei-

ção, mas porque vosso amor tem pesares e desejos4.

Diante daqueles que vos repreenderem de vossas lágrimas, abri, pois, o Evan-

gelho, e por única resposta, apontai-lhes com o dedo estas palavras de S. João: Et

lacrymatus est Jesus – e Jesus chorou; e ainda as seguintes: Et turbavit seipsum – e

se perturbou a si mesmo. (Joan., XI, 33, 35 ).

Mostrai-lhes estas linhas dum escritor que há bem merecido de todas as pesso-

as aflitas:“Jesus quis privar-se desta doçura que se encontra no sossego da aflição, quis

ser perturbado. A sua natureza divina não lhe permitia sê-lo senão tanto quanto ele

mesmo concorresse para esta perturbação; foi isso o que fez; assim no-lo diz o Evan-

gelho.

Depois dum semelhante exemplo, não mais atribuamos à nossa imperfeição as

lágrimas que a aflição nos arranca, nem a perturbação em que ela nos lança: Jesus

chorou, Jesus perturbou-se.É necessário, porém, que esta perturbação não degenere em inquietação, para

se não perder a semelhança com Jesus.

 Não é do agrado de Deus que eu desaprove as lágrimas de um esposo que, de-

 pois de ter levantado os olhos ao Céu para aí ver a sua esposa coroada de imortalida-

de, os sente encherem-se de lágrimas quando, abaixando-os para a terra, não encontra

 já esta companheira muito amada.

O sentimento que faz chorar a pessoa cuja companhia formava a nossa felici-dade, não poderia ser condenado, quando não é o único motivo das lágrimas que ver-

temos na sua perda. Este desejo de gozar da sociedade da pessoa que se ama, é de tal

sorte natural ao homem, que Deus lhe propõe o seu complemento como eterna re-

compensa de sua fidelidade em o amar durante a vida”.5 

4 S. Paulino, Epist. XIII, no. 4, 5.5 Luiz Provana de Collegno – Consolações da religião na perda das pessoas que nos são queridas , Carta

I.

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I I

Bem-aventurança essencial e bem-aventurança acidental.

– Três erros sobre esta bem-aventurança acidental citados

pelo filosofismo. – Confissão de J. J. Rousseau. – Refu-

tam-se estes três erros.

Gozar plenamente do que temos amado pura e santamente na terra, eis para nós

o Céu. Gozar de Deus constitui a bem-aventurança essencial.

Este gozo da criatura que nos tem sido mais querida, sem deixar de ser secun-

dário, torna-se para a alma uma doce consolação, desde que a morte nos arrebata

aqueles que mais amávamos; e Deus nos envia, para moderar nossos pesares, a espe-

rança de torná-los a ver, de reconhecê-los, de amá-los ainda muito especialmente no

Céu, e de receber deles também os testemunhos duma especial afeição.

Quantas vezes não tem servido esta esperança de remédio a vossas feridas e de

alívio a vossas dores?

Mas, eis que muitas pessoas, aquelas mesmas cujos lábios devem guardar a ci-

ência e cujo coração deve ser o depositário da lei (Malach. II, 7) ousaram primeira-

mente dizer-vos que não nos reconheceríamos no outro mundo, nem mesmo no Para-

íso; depois repreenderam, como uma imperfeição, o vosso vivo desejo de possuir no

Céu, além do Criador, certas pessoas ternamente queridas, vosso esposo e vossos

filhos.

Finalmente, fazem crer ao mundo que a perfeição cristã, mais ainda a vida reli-

giosa, esgota no coração humano a fonte da sensibilidade, para deixá-lo seco e gela-

do para com seus pais, irmãos ou irmãs e seus amigos. No Céu tudo se esquece em Deus, dizem elas. Deus não vos será suficiente? Os

santos nunca amaram senão a Deus, chamado pela Escritura um Deus cioso (Exod.,

XXXIV, 14).

Tais são os três erros que me proponho combater, escrevendo-vos estas cartas.

Aqueles que os sustentam marcham após os quietistas e jansenistas, sem o sa-

 berem talvez, sob os estandartes do filosofismo anti-religioso.

 No desejo do gozo de Deus, o quietismo via um ultraje ao puro amor e uma brecha no desinteresse; o jansenismo, polido, mas frio como gelo, comunicava a sua

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sequidão e aspereza a uma religião de amor. Os filósofos incrédulos aproveitaram-se

destas disposições para atacarem a Igreja e desacreditarem os padres.

Um sábio religioso de S. Domingos, tratando, no século XVIII, do objeto de

que me entretenho hoje, fazia notar esta tática da impiedade.

Entretanto tudo se concede na nossa religião, para torná-la mais amável e con-

soladora, um filosofismo mentiroso atribuía-lhe dogmas sombrios e desesperados,

que lhe arrebatam toda esta força atrativa de que necessita para levar as almas a ama-

rem e a seguirem a Jesus Cristo6.

Quereis um exemplo disto? Rousseau fez dizer por uma pessoa moribunda:

“Cem vezes tenho recebido grande satisfação em fazer alguma boa obra, imaginando

minha mãe presente, que lia no coração de sua filha e aplaudia. Tem alguma coisa de

consolador viver ainda sob os olhos da pessoa que nos foi querida! Isto faz que sin-

tamos a sua morte só por metade”. Mas que sentimentos os deste inimigo de toda a

religião revelada, protestante ou católica, presta ao ministro que corre a consolar e

fortificar a enferma?

Lede:

“Ainda que o pastor respondesse a tudo com muita doçura e moderação, e afe-

tasse mesmo não a contrariar em coisa alguma, com receio de que se tomasse o seu

silêncio, sobre outros pontos, por uma confissão, não deixou um momento de ser

eclesiástico, e de expor sobre a outra vida uma doutrina oposta.

Disse que a imensidade, a glória e os atributos de Deus seriam o único objeto

de que se ocuparia a alma dos bem-aventurados, que esta sublime contemplação apa-

garia toda e qualquer outra lembrança, que as almas se não veriam nem se reconhece-

riam no Céu, e que, em presença deste aspecto arrebatador, se não pensaria em coisa

alguma terrestre”7.

Todo aquele que propagar esta negra doutrina, ministro sincero da religião ou piedoso fiel, veja pois, a causa que serve, e em que fileiras se coloca!

Para vos mostrar toda a sua falsidade, quero, Senhora, fazer passar diante de

vossos olhos um grande número destes autores, cuja antiguidade, ciência, ortodoxia e

santidade fez chamar Padres e Doutores da Igreja. Cada um deles vos deixará pene-

trar em seu coração. Ser-vos-á tão agradável como útil ver quanto eles foram sempre

sensíveis à esperança de reconhecerem e amarem, ainda depois da morte, aqueles que

tinham conhecido e amado durante esta vida.

6 Ansaldi, Della speranza..., cap. X.7 J. J. Rousseau, Julie, IV part., Carta IX ; edição de Paris, 1823, in-8a. , t. II, pag. 482.

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Mas quero primeiro resolver, ainda que brevemente, as três objeções que vos

fiz, a fim de que me escuteis depois com um espírito mais livre e um coração mais

dilatado. Assim, abraçareis com mais confiança e consolação a verdade que devo

oferecer-vos.

Quão pouco vos aliviaria agora a esperança deste mútuo reconhecimento se

devêsseis ser-lhe indiferente, ou se não viesse acompanhado de alegria e amor!

I I I

Será verdade que os santos só amam a Deus? – Eles amam-se entre si co-

mo concidadãos, como irmãos, como dois amigos que vêem todas as perfeições

um do outro. – Deus só é cioso do nosso amor de adoração. – O amor recíproco

dos santos glorifica-o como Criador, como Pai, como princípio de toda a amabi-

lidade.

Disseram-vos que os santos amariam só a Deus.

Ouvi a resposta do abade Marcos no seu belo livro sobre a felicidade dos san-tos:

“A pátria celeste é-nos incessantemente apresentada no Evangelho sob o sím-

 bolo dum reino, duma sociedade, duma família. Mas uma sociedade, um Estado, uma

família não é simplesmente uma aglomeração de individualidades estranhas umas às

outras; mas sim uma reunião de seres inteligentes e racionais, obedecendo a leis co-

muns e obrigatórias para todos, que fazem um só e mesmo corpo da harmônica união

destes diversos membros.Ora, entre todas estas leis, há uma que é salvaguarda, e como que o laço de to-

das as outras; é a lei da solidariedade social ou fraternal, que ordena a todos se dedi-

quem por cada um, e que cada um se dedique por todos, à proporção das forças e

necessidades de cada membro. É, por outros termos, a lei da mútua caridade, a lei do

amor.

 No Céu nos amaremos como se amam os filhos dum mesmo pai, como irmãos

queridos e ternas irmãs; amar-nos-emos, como se amam dois amigos que só se co-nhecem desde ontem, e cujos corações, apenas se encontraram, se compreenderam e

encadearam um no outro, por uma simpatia que sentem ser indestrutível e eterna.

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Desde o momento em que nossas almas tiverem penetrado no seio de Deus, en-

contrar-se-ão abrasadas duma fervente caridade de umas para com as outras. A sua

vista e recíproca presença serão como que uma faísca que operará este abrasamento,

assim como na natureza física se vê muitas vezes um corpo inflamar outro corpo,

somente pelo efeito do choque ou simples contato.

Eis como se pode, até um certo ponto, explicar este fenômeno.

Estas almas, iluminadas da plenitude da luz de Deus, a qual porá a descoberto

todas as suas perfeições, e envolvidas no reflexo de sua glória como num esplêndido

vestido (Ps. CIII, 2); apresentarão os atrativos do coração, como num maravilhoso

feixe, o conjunto de todas as suas amabilidades; pela sua parte, este coração, livre

desde este momento de todas as suas fraquezas, de suas ilusões e de suas trevas, este

coração, faminto de amor e restabelecido na sua integridade afetiva, será levado por

um irresistível atrativo para o seu natural alimento e único depois de Deus, isto é,

 para as almas feitas para serem amadas por Ele.

É verdade que Deus é cioso do nosso coração, mas somente no sentido de que

não devemos amar alguma criatura tanto ou mais do que a Ele. Se assim não fora,

como nos ordenaria, sem se contradizer, que amássemos o nosso próximo como a

nós mesmos?

Além disto, segundo o contexto, o sentido próprio destas palavras da Escritura,

é que o Criador é cioso do amor de adoração: Não adoreis Deus alheio; o Senhor

chama-se o Deus cioso (Exod., XXXIV, 14).

Mas vai grande distância do amor que nos faria amar certas pessoas até à ado-

ração, ao amor que no-las faz amar conforme a vontade do Criador. Tanto falta para

que o mútuo amor dos escolhidos possa ser uma injustiça ou um roubo feito a Deus,

que será Ele, depois da pura caridade, a mais preciosa e querida homenagem que lhe

 possamos render, como Criador, como Pai e como princípio de todo o amor e de todaa amabilidade.

Tendo criado todas as coisas para nós, se as fez maravilhosamente belas (Ec-

cles., XI, 4), foi para que as admirássemos; se as fez excelentemente boas (Idem,

XXXIX, 21), foi para lhe pedirmos o bem que encerram; se as fez desejáveis (Ibi-

dem, XLII, 23), foi para que lhe concedêssemos ao menos uma pequena parte do

nosso coração.

Além disto, nenhum ser inteligente, seja Deus ou seja homem, pode racional-mente deixar de ser cioso da obra que criou. Pois, do contrário, seria melhor ter pro-

duzido uma obra vil e desprezível, ou então não ter produzido nenhuma.

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Todos nós somos filhos de Deus, e Ele mesmo quis que o chamássemos nosso

Pai (Matth., VI, 9). Mas a condição da paternidade no Céu será a mesma que na terra,

exceto que possuirá, no mais alto grau de perfeição, os caracteres que a distinguem

neste mundo. Ora, qual é nesta vida a paternidade modelo? Por que sinal reconhece-

remos nós que uma paternidade é verdadeiramente feliz?

Feliz paternidade, é o estado dum pai cercado de numerosos filhos que rivali-

zam em cuidados e ternura para com ele. Mas isto apenas seria metade da sua felici-

dade, ou antes toda a sua felicidade se encontraria envenenada e destruída, se não

reinasse uma verdadeira união entre todos os seus filhos.

Toda a afeição legítima, isto é, ordenada ou autorizada pela lei eterna, vem de

Deus.

A caridade que testemunhamos às criaturas, é como um rio que tem a sua ori-

gem em Deus, que ordena ou permite que vamos matar a sede que temos n’Ele, em

objetos distintos do mesmo.

O rio, continuando sempre o seu curso, volta outra vez para a sua nascente, on-

de chega sem alteração.

Todas as belezas que divisamos nas criaturas, e que nos atraem tão vivamente

 para si, não são outra coisa mais do que o reflexo da eterna e divina beleza, do seio

da qual se desprendem, assim como vemos soltar ondas luminosas do disco solar,

que vêm alegrar e vivificar a natureza.

Mas como é sempre o Sol que admiramos mesmo em seus raios e reflexos, é

igualmente a Deus que admiramos e amamos de longe, nos esplendores e encantos

que derrama sobre suas criaturas.

Poderia Ele, pois, olhar como um atentado contra os seus direitos ou à sua gló-

ria, o atrativo que nos impele para as belezas e perfeições que de si mesmo derrama

sobre suas obras?Se os seus encantos e amabilidades não são mais do que uma irradiação da a-

mabilidade e dos atrativos divinos, já vemos como a beleza incriada não eclipsará as

 belezas criadas, e como se dará no Céu o amor mútuo dos escolhidos sem risco nem

 perigo.

 Na terra, o imortal raio só nos aparecia por um único ponto, aquele por onde

tocava e iluminava a criatura. No Céu, vê-lo-emos descer do seu centro e tornar a

voltar ao mesmo.

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Será a Deus que procuraremos e a que aspiraremos, dirigindo-nos para as cria-

turas; Deus a quem admiraremos, admirando-as, Deus a quem acharemos, amando-

as”8.

I V

 Porque Deus só basta aos escolhidos, seguir-se-á que terão a Deus unica-

 mente? – A sua liberalidade em todas as ordens conhecidas prova qual seja a

 mesma na ordem da glória. – É falso que nos esqueçamos no Céu ou que sejamos

insensíveis à felicidade de nos tornarmos a ver. – Palavras de S. Francisco de Sa-

les sobre este mútuo reconhecimento e sobre a alegria que dele resulta.

Disseram-vos ainda:

“Só Deus é suficiente aos escolhidos!

Sem dúvida, deixando-se ver e possuir por nós, só Deus seria bastante para nos

tornar a todos felizes. Mas que se pode concluir daqui?

Se bastava a si mesmo desde toda a eternidade, direis vós que nada criou notempo e que nós não existimos? O menor sofrimento do Redentor bastava para nos

salvar a todos: negareis sua Paixão e sua Morte?

A sua Divindade é suficiente a si mesma: credes que ela não tenha cuidado al-

gum da sua humanidade?

Descei desta ordem toda divina até à ordem da graça e da mesma natureza, e

contai todos os socorros que nos são oferecidos para santificar nossas almas, todas as

iguarias que nos são dadas para nutrir nosso corpo, contai todas as flores que ornam aterra e todos os astros que brilham no firmamento, e dizei se o Senhor se contentou

de criar para nós o suficiente, ou se passou muito além dele.

E querer-se-ia que na ordem da glória, quando houver de recompensar os seus

fiéis servos, os seus apóstolos, os seus mártires, os seus pontífices, os seus confesso-

res e as suas virgens, se limitasse a dar-lhes estritamente o necessário!

 Não, não. Deus mostrar-se-á ainda mais generoso e mais pródigo para com os

santos do Céu do que para com os justos da terra.

8 Marc, Le Ciel, apêndice sur l’amour béatifique, chap., I, II ; IV question.

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Vemos e sabemos o que fez para nós na ordem da natureza e da graça; mas o

grande Apóstolo nos afirma que os nossos ouvidos nada ouviram, e que o nosso co-

ração nada conjeturou que seja comparável ao que Deus prepara, na ordem da glória,

àqueles que o amam (1 Cor., II, 9).

Pela graça possuímos a Deus neste mundo, e será verdade que aquele que tem a

graça não necessita de mais coisa alguma?

É certo, pelo contrário, que tem ainda necessidade de exortações e de bons e-

xemplos, da intercessão dos santos, da participação dos sacramentos, de mortifica-

ções e de orações para conservar e aumentar esta graça.

Assim, no outro mundo, sem que isto seja então para nós uma necessidade, mas

 porque desejará encher-nos inteiramente de seus dons, o mesmo Deus, que só por si

 bastaria para a nossa felicidade essencial, se dignará aumentá-la acidentalmente pela

sociedade das santas almas que tivermos conhecido e ternamente amado na terra.

E do mesmo modo que, em tudo o que nos dá segundo a natureza ou segundo a

graça, é Ele que se nos comunica por diferentes maneiras e em muitos graus; assim,

também na bem-aventurança será ainda Ele, sempre Ele, que se dará a nós por meio

de todas as criaturas glorificadas, as quais nos permitirá contemplar e admirar, reco-

nhecer e amar.

 Não temais, Senhora, que as almas se esqueçam mutuamente no Céu, ou que

sejam insensíveis a tudo que não for Deus.

A caridade nunca pode ser indiferente nem insensível. Por isso mesmo que as

ama, o Criador é sensível a tudo o que diz respeito às suas criaturas.

 Nosso Senhor é sensível à presença de sua Mãe, e Maria não é indiferente à

glória da humanidade de Jesus.

Se nós devêssemos ser insensíveis à felicidade de tornarmos a encontrar no Pa-

raíso as pessoas mais queridas, a nossa alma devia ser indiferente à ressurreição doseu próprio corpo: e assim caducariam muitos argumentos empregados pelos teólo-

gos para provarem a ressurreição da carne.

 No Céu seremos capazes de tudo conhecer ao mesmo tempo, com amor, e de

tudo sentir com alegria, sem que um conhecimento ou um sentimento seja nocivo a

outro.

Sentiremos tão vivamente como na terra o amor para com nossos parentes e

nossos amigos, ainda que o nosso amor para com Deus seja então incomparavelmen-te mais ardente e mais sentido.

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 Nunca estaremos absorvidos em Deus a tal ponto que nos esqueçamos de tudo

que não for Ele. Mas, como se tem dito, os amigos, os irmãos, os parentes, se reco-

nhecerão, conversarão e se lembrarão de suas lágrimas, de seus combates e de suas

tribulações; porque esta vida momentânea lega à vida infinita uma eterna lembrança

e infindas gratulações.

A vista e o pensamento das criaturas não farão um só momento olvidar o Cria-

dor; a vista e o amor do Criador não impedirão de ver e de amar as criaturas. Unidas

e distintas, todas estas alegrias, todos estes louvores e todos estes amores se fundirão

no louvor e amor de Deus, e formarão em sua glória um concerto único, sempre vari-

ado, sempre o mesmo, o aleluia eterno9.”

Deixai, Senhora, deixai nutrir vosso coração desta doce esperança, e permiti-

me que acrescente a esta ainda mais algumas linhas que vos tranqüilizarão. São estas

de S. Francisco de Sales, explicando a transformação de Jesus Cristo sobre o Tabor,

que foi como uma reprodução do Céu (Matth. XVIII, 1-9):

“Todos os bem-aventurados se conhecerão mutuamente por seus nomes, como

nos afirma o Evangelho de hoje. Pedro viu ainda Moisés e Elias que nunca tinha vis-

to, os quais conheceu perfeitamente, tendo o primeiro um corpo transparente como o

ar, e o segundo seu próprio corpo como quando foi arrebatado num carro de fogo.

Vedes, pois, muito bem que todos nos reconheceremos mutuamente na eterna

felicidade, visto que nesta pequena amostra que Nosso Senhor se dignou apresentar

sobre a montanha do Tabor a seus apóstolos, quis que estes conhecessem Moisés e

Elias que nunca tinham visto.

À vista disto, que contentamento o nosso, vendo aqueles que tivermos extre-

mosamente amado nesta vida! Sim, conheceremos mesmo os novos cristãos, que se

converterem agora à nossa santa fé, nas Índias, no Japão e nos antípodas; as santas

amizades, da mesma forma que tiverem sido começadas por Deus nesta vida, conti-nuarão na eterna. Amaremos pessoas particulares, mas estas amizades não formarão

 parcialidades, porque todas as nossas amizades tomarão a sua origem no amor de

Deus, que, conduzindo-as todas, fará que amemos a cada um dos bem-aventurados

com o puro amor com que somos amados por sua divina Bondade.

Ó Deus! que consolações receberemos na celeste conversação que tivermos uns

com outros!

 Na bem-aventurança, os nossos bons anjos nos darão uma consolação muitomaior do que se pode dizer ou ainda imaginar, quando se nos fizerem reconhecer e

9 Guiton, L’homme releve de as chute, II partie, épilogue, pág. 364, 365.

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nos representarem mui amorosamente o cuidado que tiveram da nossa salvação en-

quanto estivemos na terra, lembrando-nos as santas inspirações que nos ofereceram

como um leite sagrado que iam tirar dos peitos da divina Bondade para nos atrair à

indagação dessas divinas suavidades, de que então estivermos gozando. Não vos re-

cordais, nos dirão, duma tal inspiração que vos sugeri em tal tempo, lendo um tal

livro, ouvindo um tal sermão ou fitando tal imagem, inspiração que vos incitou a

converter-vos a Nosso Senhor, e que foi o motivo da vossa predestinação?

Ó meu Deus! e não se derreterão nossos corações num indizível contentamen-

to?!”10 

10 Sermão sobre a Transfig., na 2ª. Dom. da Quaresma.

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  26

SEGUNDA CARTA 

No Céu todos se conhecem

I

Provas da Sagrada Escritura: a parábola do rico avaren-

to, explicada por Santo Irineu, e sobretudo por S. Gregó-

rio Magno. – Fato que ele cita em apoio. O juízo final, ba-

se da argumentação de S. Teodoro Studita.

SENHORA,

Todos os bem-aventurados admitidos no Céu conhecem-se perfeitamente, antes

mesmo da ressurreição geral. Provam-no tanto a Sagrada Escritura como a Tradição.

Limitar-me-ei a citar-vos o Novo Testamento, tomando apenas dele a parábola

do rico avarento e algumas palavras que se referem ao juízo final.

Está parábola é tão bela que não posso resistir ao desejo de apresentar a vossos

olhos as suas passagens principais:

Havia um homem rico que trajava esplendidamente e se banqueteava com

magnificência, todos os dias.

Havia também ao mesmo tempo um pobre, chamado Lázaro, deitado à sua por-

ta, todo coberto de úlceras, que desejava ardentemente saciar a fome com as miga-lhas que caíam da mesa do rico, mas ninguém lhas dava, e os cães vinham lamber as

suas feridas.

Ora, aconteceu morrer este pobre, e foi transportado pelos anjos ao seio de A-

 braão. O rico morreu também e teve por túmulo o Inferno. E quando estava em tor-

mentos, levantou os olhos para o Céu e viu, ao longe, Abraão e Lázaro em seu seio;

e, exclamando, diz estas palavras:

“Pai Abraão, tende piedade de mim, e enviai-me Lázaro, a fim de que molhe naágua a ponta do seu dedo para me refrescar a língua, porque sofro horríveis tormen-

tos nesta chama”.

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  27

Mas Abraão respondeu-lhe: “Meu filho, lembra-te que recebeste muitos bene-

fícios na terra, e que Lázaro só teve por companheira a miséria e o sofrimento; e é

 por isso que está gozando agora das maiores consolações, e tu estás em tormentos”.

Replicou o avarento: “Suplico-vos então, Pai Abraão, que o envieis à casa de

meu pai, onde tenho cinco irmãos, a fim de adverti-los, pois receio que venham tam-

 bém para este lugar de tormentos”. (Luc., XVI, 19-28).

Santo Ireneu, combatendo os hereges, escrevia no princípio do século III:

“O Senhor revelou-nos que as almas se lembram na outra vida das ações que

 praticaram nesta. Não nos ensina Ele esta verdade por meio da história do rico ava-

rento e de Lázaro? Visto que Abraão conhece o que diz respeito a um e outro, as al-

mas continuam portanto a conhecerem-se mutuamente e a recordarem-se das coisas

da terra”.11 

 No fim do século IV, o Papa S. Gregório Magno perguntava a si mesmo se os

 bons conheceriam os bons no reino do Céu, e se os maus conheceriam os maus no

Inferno. Sustentou a afirmativa:

“Vejo, diz ele, uma prova disto, mais clara do que o dia, na parábola do rico

avarento. Não declara aqui o Senhor abertamente que os bons se conhecem entre si, e

os maus também? Porque, se Abraão não reconhecesse Lázaro, como falaria de suas

 passadas desgraças ao rico avarento que estava no meio dos tormentos?

E como não conheceria este mesmo avarento os seus companheiros de tormen-

tos se tem cuidado de pedir pelos que ainda estão na terra? Vê-se igualmente que os

 bons conhecem os maus e os maus os bons. Com efeito, o avarento é conhecido por

Abraão; e Lázaro, um dos escolhidos, é reconhecido pelo avarento, que é do número

dos réprobos.

Este conhecimento põe o remate ao que cada um deve receber. Faz com que os

 bons gozem mais, porque se regozijam com aqueles que amaram na terra. Faz comque os maus, por isso que são atormentados com aqueles que amaram neste mundo

até ao desprezo de Deus, sofram não só o seu próprio castigo, mas ainda, de alguma

sorte, o dos outros.

Há, mesmo para os bem-aventurados, alguma coisa mais admirável. Além de

reconhecerem aqueles que conheceram neste mundo -  Agnoscunt quos in hoc mundo

noverante - reconhecem também, como se os houvessem visto e conhecido, os bons

que nunca viram: Velut visos ac cognitos recognoscunt .

11 Santo Irineu, - Contra haereses, lib. II, cap. XXXIV, no. 1.

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Que podem ignorar os bem-aventurados no Céu, vendo em plena luz o Deus

que tudo sabe?

Um dos nossos religiosos, muito recomendável pela sua santidade, viu junto de

si, por ocasião da sua morte, os profetas Jonas, Ezequiel e Daniel, e designou-os por

seus nomes.

Este exemplo faz-nos claramente perceber quão grande será o conhecimento

que teremos uns dos outros na incorruptível vida do Céu, visto que este religioso,

estando ainda revestido da corruptibilidade, conheceu os santos profetas que nunca

tinha visto”12.

Encontramos um fato muito semelhante na vida da fundadora das Anunciadas

Celestinas, Maria Vitória Fornari. Interrogava ela uma irmã conversa, pobre aldeã,

sobre os Bem-aventurados que a honravam com suas aparições, como a Santíssima

Virgem, Santo Onofre, Santa Catarina de Sena, etc.. Surpreendida por ver que uma

rapariga sem letras tinha um tão distinto conhecimento de tantos santos, a bem-

aventurada perguntou-lhe onde havia aprendido tudo o que sabia a este respeito:

“Minha madre, disse ela com grande simplicidade, todos os santos se conhecem dis-

tintamente em Deus”13.

S. Gregório Magno foi citado por escritores eclesiásticos muito antigos: na A-

lemanha, no século IX, por Haymon, Bispo de Halberstadt; na Inglaterra, no século

VIII, pelo venerável Beda; na Espanha, no século VII, por S. Julião, Bispo de Tole-

do. Todos participam do seu sentimento e o afirmam sem rodeios.

S. Julião, por exemplo, antes de referir estas palavras do grande Pontífice, diz:

“As almas dos defuntos, privadas de seus corpos podem reconhecer-se mutuamente;

o Evangelista assim o atesta. Não se pode duvidar de que as almas dos mortos se

reconheçam: ' Non est dubitandum quod se defunctorum spiritus recognoscant’.14 

Sobre o juízo final, temos as seguintes palavras de Jesus Cristo a seus discípu-

los:

“Em verdade vos digo que, quando chegar o tempo da regeneração, e o Filho

do Homem estiver sentado no trono da sua glória, vós, que me tendes seguido, esta-

reis sentados sobre doze cadeiras e julgareis as doze tribos de Israel” (Matth., XIX,

28.).

Temos também estas palavras do grande Apóstolo aos Coríntios:

12 Saint Grégorie le Grand, Dialog. I, IV., cap. XXXIII et XXXIV.13 Collet, La vie de V. M. Victoire Fornaire, I, II, no. 9.o. 14 S. Julião de Toledo, Prognosticon, I. II, cap. XXIV – Haymon,  De Amore caelestis patriae, I. I, cap.

VIII. – V. Beda, Aliquot quoestionum liber , q. XII.

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“Não sabeis que os santos devem um dia julgar o Mundo? Não sabeis que nós

seremos os juízes dos mesmos anjos?” (1 Corinth., VI, 2, 3).

Tal é a base da argumentação de S. Teodoro Studita, num discurso que fez no

fim do VIII século ou princípio do IX, para refutar o erro que nos esforçamos por

combater aqui.

“Alguns oradores, diz ele, enganam os seus ouvintes, sustentando que as criatu-

ras ressuscitadas não se reconhecerão quando o Filho de Deus vier julgar-nos a to-

dos.” “Como, exclamam, quando de frágeis nos tornarmos incorruptíveis e imortais;

quando já não houver gregos, nem judeus, nem bárbaros, nem citas, nem escravos,

nem homens livres, nem esposo, nem esposa; quando formos todos semelhantes em

gênios, poderíamos reconhecer-nos mutuamente?”.

Respondemos, em primeiro lugar, que o que é impossível aos homens é possí-

vel a Deus. Doutra sorte não acreditaríamos na ressurreição da carne, pretextando

raciocínios humanos.

E, efetivamente, como se poderá reorganizar no último dia um corpo desfeito

em podridão, devorado talvez por animais ferozes, pelas aves ou pelos peixes, e estes

devorados por outros e isto de muitas maneiras, e sucessivamente?

Todavia, assim há de ser, e o secreto poder de Deus reunirá todas as suas partes

espalhadas e as ressuscitará. Então, cada alma reconhecerá o corpo com que viveu.

Mas cada uma das almas reconhecerá também o corpo do seu próximo?

 Não se pode duvidar, sem que se ponha ao mesmo tempo em dúvida o juízo u-

niversal. Porque não se pode ser citado em juízo sem ser conhecido, e para julgar

uma pessoa é preciso conhecê-la, segundo estas palavras da Sagrada Escritura:

“Convencer-vos-ei, e porei diante de vossos olhos vossos pecados” (Ps., XLIX, 21).

O valor deste raciocínio depende da seguinte distinção: no juízo particular, so-

mos julgados só por Deus; mas, no juízo universal, julgaremos de alguma sorte unsaos outros.

Entretanto, o primeiro só manifesta a justiça à alma que é julgada, o último a

manifestará a todas as criaturas. Assim todas esperam, para o grande dia, a revelação

dos filhos de Deus (Rom., VIII; 19) que fará mudar muito as apreciações dos ho-

mens.

O Santo continua nestes termos:

“Portanto, se nos não reconhecermos mutuamente, não seremos julgados; senão formos julgados, não seremos recompensados ou punidos pelo que tivermos feito

e sofrido neste mundo. Se não devem reconhecer aqueles a quem hão de julgar, verão

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 porventura os Apóstolos o cumprimento desta promessa do Senhor: Assentar-vos-eis

sobre doze tronos para julgardes as doze tribos de Israel?” (Matt., XIX, 28). E por

estas palavras: “Onde o próprio irmão não resgata, um estranho resgatará” (Ps. XL-

VIII, 8), não supõe o santo rei David que o irmão reconhecerá seu irmão?

Muitas são as razões e autoridades que se opõem àqueles que pretendem negar

o mútuo reconhecimento das almas no Céu; asserção insensata, asserção comparada

 pela impiedade às fábulas de Orígenes. Enquanto a nós, meus irmãos, acreditemos

sempre que ainda havemos de ressuscitar, que nos tornaremos incorruptíveis, e que

nos reconheceremos mutuamente, como nossos primeiros pais se conheciam no para-

íso terrestre, antes do pecado, quando estavam ainda isentos de toda a corrupção.

Sim, é necessário crê-lo: Gredendum fore ut fratrem agnoscat frater, liberos

 pater, uxor maritum, amicus amicum – o irmão reconhecerá seu irmão, o pai seusfilhos, a esposa seu esposo, o amigo seu amigo; digo mais: o religioso reconhecerá o

religioso, o confessor reconhecerá o confessor; o mártir, o seu companheiro de ar-

mas; o apóstolo, o seu colega no apostolado; todos nos conheceremos - quo omnium

in Deo laetum domicilium sit   - a fim de que a habitação de todos em Deus se torne

mais agradável pelo benefício, além de tantos outros, de nos reconhecermos mutua-

mente”15.

15 Saint Theodore Studite, Serm., catech., XXII. – Migne, Patrologie grecque, t. XCIX, pág. 538, 539.

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I I

Provas da tradição: o fato simplesmente afirmado por Santo Atanásio, S.Paulino, Santo Agostinho, Honório e Berti – As consolações tiradas deste fato,

por Santo Ambrósio para os irmãos; por Fócio para os parentes; por S. Jerôni-

mo, Santo Agostinho e, mais ainda, S. João Crisóstomo, para as viúvas.

A luz despedida sobre este objeto pela tradição católica é tão viva e constante

que passa através de todas as nuvens dos sofismas e da preocupação.

Os testemunhos podem dividir-se em duas classes: os que afirmam simples-

mente o fato, e os que dele tiram uma consolação.Entre as obras muitas vezes atribuídas a Santo Atanásio, esta glória tão pura do

IV século, encontra-se uma que tem por título: Questões necessárias que nenhum

cristão deve ignorar . Ora, na resposta à XXII questão lê-se: “Deus concede às almas

 justas, no Céu, um grande bem, o de se conhecerem mutuamente”.16 

 No fim do mesmo século, S. Paulino, que mais tarde foi Bispo de Nola, escre-

via ao seu antigo preceptor, o poeta Ausónio:

“A alma sobrevive ao corpo, e é necessário que ela guarde os seus sentimentos

e as suas afeições, tanto quanto a sua vida. Ela não pode esquecer que é imortal. Para

qualquer lugar que Nosso Senhor me mande depois da minha morte, levar-vos-ei em

meu coração, e o fatal golpe que me separar do meu corpo não porá termo ao amor

que vos consagro”.17 

 No século V, o grande Bispo de Hipona dizia a seu auditório: “Conhecer-nos-

emos todos no Céu. Pensais vós que me conhecereis, por me haverdes conhecido na

terra, mas não conhecereis meu pai, porque nunca o vistes? Repito-vos, conhecereis

todos os santos. Eles se conhecerão, não porque vejam a face uns dos outros, masverão como os profetas costumam ver na terra; ou ainda dum modo bem mais exce-

lente. Verão divinamente. Por isso que estarão cheias de Deus”18.

“E vós, S. Paulo e Santo Estêvão, o perseguidor e a vítima, não reinais junta-

mente com Jesus Cristo? Aí, vede-vos ambos mutuamente, ouvis o nosso discurso;

16 Questiones ad Antiochum principem, q. XXII.17 S. Paulino, Poema, XI, V. 59-67.18 Santo Agostinho, Sermo 243, cap. VI.

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orai ambos aí, orai ambos por nós. Aquele que vos coroou a ambos, vos ouvirá tam-

 bém a ambos”19.

 No século XII, Honório d'Antun perguntava a si mesmo:

“Os justos conhecem-se na glória?”

Eis a sua resposta:

“As almas dos justos conhecem todos os justos, até mesmo o seu nome, a sua

raça e seus merecimentos, como se tivessem vivido sempre com eles. Conhecem

também todos os maus, sabendo por que falta cada um deles está no inferno. Os

maus conhecem os maus, e ainda conhecem os justos que vêem, e até sabem seus

nomes, como o rico avarento sabia o nome de Abraão e de Lázaro. Os justos oram

 por aqueles que amaram no Senhor ou que os invocam. Mas a sua alegria só se com-

 pletará depois da ressurreição, quando tiverem recuperado os seus corpos e estiver-

mos reunidos com eles; pois a nossa ausência causa-lhes, por enquanto, alguma soli-citude - De abcentia lutem nostra sollicitantur ”20.

Se quisesse interrogar sobre isto os teólogos modernos, seriam unânimes em

responder afirmativamente. Que um só fale em nome de todos: “Os Santos, diz ele,

vêem-se reciprocamente; assim o pede a unidade do reino e da cidade em que vivem

na companhia do próprio Deus. Revelam espontaneamente uns aos outros os seus

 pensamentos e as suas afeições, como pessoas da mesma casa que estão unidas por

um sincero amor.Entre os seus concidadãos celestiais, conhecem aqueles mesmos que não co-

nheceram neste mundo, e o conhecimento das belas ações leva-os a outro conheci-

mento mais pleno daqueles que as praticaram”.21 

Os maiores santos e os homens mais eminentes da Igreja não receavam de re-

correr a esta verdade, como a um fecundo manancial, para daqui haurirem as cristali-

nas águas das celestes consolações que distribuíam às pessoas aflitas.

Quem, pois, ousaria ainda acusar de imperfeição este vivo desejo e esta doce

esperança?

Perdestes um irmão ou uma irmã? Consolai-vos como Santo Ambrósio se con-

solava a si mesmo: “Ó meu irmão, dizia ele, visto que me precedestes aí, preparai-me

um lugar nessa habitação comum, que daqui por diante será para mim a mais deseja-

da. E assim como neste mundo tudo foi comum entre nós, também no Céu desconhe-

ceremos a lei de partilhas.

19 Ibid., Sermo 316 , cap. V.20 Honorius d’Autun, Elucidarium, lib. III, no. 7, 8.21 Berti, De Theologicis disciplinis, lib. III c. XIII, no. 2

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 Não façais esperar por muito tempo, eu vos suplico, aquele que experimenta

um tão vivo desejo de se vos reunir. Esperai aquele que avança, auxiliai aquele que

se apressa e, se vos parece que ainda tardo muito, fazei-me ir com mais ligeireza.

 Nunca estivemos na terra separados um do outro por muito tempo; mas éreis

vós que costumáveis visitar-me.

Agora, visto que o não podeis fazer, pertence-me ir para junto de vós. Ó meu

irmão, que consolação me resta, a não ser esta esperança de nos reunirmos o mais

 breve possível?

Sim, consola-me a esperança de que a separação que se efetuou entre nós pela

vossa partida, não será de longa duração, e que por vossas súplicas obtereis a graça

de atrair a vós com mais brevidade aquele que vos chora tão vivamente”22.

Perdestes um filho ou uma filha? Recebei as consolações que um Patriarca de

Constantinopla dirigia a um pai aflito.

Este Patriarca não pode ser contado entre os homens eminentes, e ainda menos

entre os santos. É Phócio, o autor do cruel cisma que separa o Oriente do Ocidente.

Mas suas palavras provam tanto mais, quanto que indicam ser idêntico o parecer dos

gregos e latinos sobre este ponto. Ei-las:

“Se vossa filha vos aparecesse e vos falasse, tendo a sua mão apertada na vossa

e o seu risonho semblante chegado ao vosso, não vos faria ela a descrição do Céu?

Depois acrescentaria: Por que vos afligis, ó meu pai? Estou no paraíso, onde a

felicidade não tem limites. Ireis para lá um dia com minha querida mãe, e então acha-

reis que nada vos disse de mais deste lugar de delícias, cuja realidade excede muito

as minhas palavras.

Ó querido pai, não me retenhais por mais tempo em vossos braços, mas deixai-

me com satisfação voltar para o Céu, onde me arrasta a violência do meu amor! –

Expulsemos, portanto, a tristeza, conclui Phócio, porque vossa filha está cheia defelicidade no seio de Abraão.

Expulsemos a tristeza; porque, dentro de pouco tempo, a veremos ali exultar de

alegria e contentamento”23.

Perdestes vosso marido? Ai! os vestidos de luto, que trajais continuamente,

manifestam bem a desgraça que vos feriu, e a afeição que sobrevive ao vínculo que a

morte quebrou. Aproveitai-vos, pois, das consolações que os Padres da Igreja ofere-

ceram por tantas vezes às viúvas cristãs.

22 Santo Ambrósio, De Excessu fratris sui, lib I, nos. 78, 7923 Ibid., lib. III, no. 135

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S. Jerônimo escrevia a uma viúva: “Chorai vosso Lucínio como um irmão, mas

regozijai-vos por ele reinar com Jesus Cristo. Vitorioso e seguro da sua glória, olha-

vos do alto do Céu, anima-vos nas vossas aflições, e prepara-vos um lugar junto de

si, com tal amor e caridade que, esquecendo-se do seu direito de esposo, começa ain-

da na terra por vos considerar como sua irmã, ou antes, como seu irmão, porque uma

casta união não conhece esta diferença de sexo que se requer para o matrimônio”24.

Santo Agostinho escrevia a outra viúva:

“Não perdemos aqueles que saem dum mundo donde nós devemos também sa-

ir; mas enviamo-los, primeiro que nós, para essa outra vida, onde nos serão tanto

mais queridos quanto mais conhecidos nos forem – Ubi nobis erunt quanto notiores,

tanto utique cariores. Vós víeis melhor o seu rosto, mas ele via melhor o seu cora-

ção. Ora, quando o Senhor vier, porá em plena luz tudo o que estiver envolvido nas

trevas, e manifestará os pensamentos do coração.

Então cada um saberá o que disser respeito a todos, e não haverá distinção al-

guma entre os nossos e os estranhos para revelar um segredo aos primeiros e ocultá-

lo aos segundos, pois na pátria celeste não haverá estranhos.

Mas qual será a natureza, qual a intensidade da luz que assim manifestará tudo

quanto o nosso coração encerra agora na obscuridade? Quem poderá dizê-lo? Quem

 poderá somente concebê-lo?”25.

S. João Crisóstomo, numa das suas homilias sobre o Evangelho de S. Mateus,

dizia a cada um de seus ouvintes:

“Desejais ver aquele que a morte vos arrebatou? Segui a mesma vida que ele

no caminho da virtude, e muito brevemente gozareis desta santa visão.

Mas quereríeis vê-lo aqui mesmo? Ah! quem vos poderá estorvar? Se sois pru-

dente, é-vos permitido e fácil vê-lo; porque a esperança dos bens futuros é mais clara

do que a própria vista”.

Este sublime orador encontrava, na sua própria história, tudo o que podia torná-

lo mais sensível às tristezas da esposa que perdera seu marido. Filho único de uma

viúva, que vivia no meio da sociedade, entregue à fraqueza de sua idade e do seu

sexo, tinha sido ele o confidente das suas lágrimas e da sua dor, até que a deixara só,

como em segunda viuvez, fugindo ao seu amor para encerrar-se na solidão. Ele

mesmo nos contou que Libânio, orador pagão, sabendo que sua mãe conservava cas-

ta viuvez desde a idade de vinte anos, e nunca tinha querido passar a segundas núp-

24 Phócio, Epistol. t. III, epist. 63, Tarasio, patrício, fratri 25 Santo Agostinho, Epis., 92, nos. 1,2

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cias, exclamou, voltando-se para os que o cercavam: “Oh! que mulheres que são as

cristãs!”26.

A Providência soube proporcionar a Crisóstomo a ocasião de aproveitar estas

disposições do seu coração, consolando outra jovem, que só tinha vivido cinco anos

com Terásio, seu marido, um dos principais homens do seu tempo. Escreveu a seu

respeito dois tratados, que são tidos na conta dos seus mais notáveis livros. Entre

outras muitas mais consoladoras, diz-lhe:

“Se desejais ver o vosso marido, se quereis gozar da vossa mútua presença, fa-

zei brilhar em vós a mesma pureza de vida que resplendecia nele, e estai certa que

ireis assim fazer parte do mesmo coro angélico em que ele está.

Habitareis em sua companhia, não por espaço de cinco anos, como na terra,

mas por toda a eternidade. Tornareis então a encontrar vosso marido, não já com

aquela beleza corpórea de que era dotado neste mundo, mas com outro esplendor,

com outra beleza, que excederá em brilho os raios do Sol.

Se vos tivessem prometido de dar a vosso esposo o império de toda a terra,

com a condição de vos separardes dele por espaço de vinte anos; e se, além disto,

 prometessem restituir-vo-lo passado este espaço de tempo, ornado com o diadema e a

 púrpura, colocando-vos no mesmo grau de honra; não vos resignaríeis a esta separa-

ção, observando a castidade? Veríeis mesmo nesta proposição um insigne favor e um

objeto digno de todos os vossos desejos.

Suportai, pois, agora, com resignação e paciência, uma separação que dá a vos-

so marido a realeza, não da Terra, mas do Céu; suportai-a para o encontrardes entre

os bem-aventurados habitantes do Paraíso, coberto, não dum manto de ouro, mas

dum vestido de glória e de imortalidade. Portanto, pensando nas honras de que The-

rásio goza no Céu, ponde termo às vossas lágrimas e aos vossos suspiros. Vivei co-

mo ele viveu, ou ainda com mais perfeição, para que, depois de haverdes praticado asmesmas virtudes, sejais recebida nos mesmos tabernáculos, unindo-vos novamente

com ele por toda a eternidade, não pelo vínculo do matrimônio, mas por outro ainda

melhor. O primeiro une somente os corpos, entretanto que o segundo, mais puro,

mais agradável e mais santo, une também as almas”27.

26 S. João Crisóstomo, Ad Viduam juniorem, tract. I, no. 227 S. João Crisóstomo, Ad Viduam Juniorem, trat. I, nos. 3 e 4.

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TERCEIRA CARTA

Resposta a algumas objeções

I

É perigoso não responder às objeções. – As de que falamos, re-

sultam da idéia falsa ou acanhada que se faz do Céu – O pen-

samento católico exprimido com felicidade por Dante. – Luzes

que os bem-aventurados têm. – Eles não ignoram as nossas ne-

cessidades. – Desejo que têm de nos socorrer. – A sua lembran-

ça de tudo.

SENHORA,

 Nenhuma das verdades solidamente estabelecidas na Igreja deve ser abalada

em nossas almas, por uma ou muitas objeções, cuja solução nos escapa.“A verdade é do Senhor e permanecerá eternamente”, diz a Escritura (Ps. CX-

VI, 2); as objeções são do homem, o tempo muda-as, e o sopro da ciência as dissipa.

Todavia, acontece que uma verdade claramente demonstrada, não penetra pro-

fundamente em nossa alma, enquanto tivermos uma dificuldade a que não achemos

resposta. Algumas vezes mesmo a objeção apodera-se de tal modo do nosso espírito,

que chega a expelir dele a verdade.

É o que se deu em muitas pessoas a respeito do objeto de que nos ocupamos.

 Não sabendo como rasgar o véu de algumas dificuldades que lhes ocultava esta luz

tão consoladora, têm dito que não nos reconheceremos no Céu. A sua imprudência poderia comparar-se à dum menino que, não podendo dissipar o espesso nevoeiro,

negasse a existência do Sol.

As objeções que vos têm feito, e que me haveis transmitido, resultam de se não

formar uma idéia assaz justa e grande do Céu.

Muitos supõem que Deus se dispusera a construir o edifício da nossa grandeza

sobre a indiferença ou insensibilidade, a coroar-nos de glória e inebriar-nos de felici-

dade no meio da ignorância ou das trevas. Aderir a esta idéia é provar que nem mes-

mo se leu aquele príncipe de poetas cristãos, que pôs ao serviço da fé a sua poderosa

e bem regulada imaginação e que cantou numa língua e num país a que vossa família

não pode chamar estrangeiro. Cito-o, não para lhe atribuir uma autoridade que não

tem, mas porque exprime felizmente o pensamento católico.

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“O Céu, disse ele, é um admirável e angélico templo, que tem por confins só o

amor

e a luz. E uma luz pura, luz intelectual carregada de amor, amor do verdadeiro bem,

cheio de alegria que excede toda a suavidade.

O estado da bem-aventurança funda-se sobre a ação de ver, seguindo-se-lhe ade amar, e tanto que a alegria dos bem-aventurados, como a dos anjos, é maior ou

menor segundo a sua vista se fixa mais ou menos na verdade, onde se repousa toda a

inteligência”28.

Eis aqui, pois, o princípio de solução para as objeções: no Céu, que é mais um

estado do que um lugar, tudo é luz, tudo é amor.

Por esta luz, os escolhidos que gozam da visão de Deus, conhecem, com os

 prodígios da natureza e da graça, tudo o que se refere ao estado próprio de cada um.

Assim, os pontífices vêem o que diz respeito ao governo da sua Igreja, e os reis

o que concerne ao seu reino. Deve crer-se, pois, que gozam da bem-aventurança, queo seu estado é perfeito pela reunião de todos os bens, 29 sê-lo-ia sem este conheci-

mento?

Deve também crer-se que vêem a Deus face a face: por que motivo não verão

também o que lhes diz respeito, neste espelho da Divindade, sempre patente a seus

olhos e fiel em tudo refletir?

Os bem-aventurados têm uma ciência infusa e atual, que lhes vem por via de

revelação ou iluminação, seja da parte de Deus, seja da parte dos anjos ou dos santos

mais elevados em glória.Têm também uma ciência natural e adquirida, que obtiveram durante a sua vida

mortal, seja pelo trabalho, seja pela experiência, e que conservam no Céu.

Perderiam, pois, na habitação da felicidade, o gozo de todos os seus conheci-

mentos adquiridos que pode aumentar mais a sua ventura, o conhecimento dos paren-

tes e dos amigos que tiveram na terra?

Eles não ignoram as necessidades nem as orações de seus parentes que ficaram

neste mundo.

Depois da morte de S. Bernardo, um abade de Claraval consolava os seus reli-

giosos dizendo-lhes: “Quanto mais no Céu do que na Terra, nosso Pai vê, sente econhece tudo o que nos toca! A sua espiritual paternidade não se dissolveu com o

corpo, ele nada ignora das necessidades de seus filhos, e ouve-nos do fundo de seu

túmulo”30.

O mesmo Deus que é a suma verdade, ilumina e penetra os santos, anima-os e

inflama-os com o seu amor.

Eles são também caridade com Ele, amam-nos como Ele, lembram-se de nós,

ocupam-se de nós; e esta misericordiosa solicitude – diz Augusto Nicolas – concilia-

se tanto neles como n’Ele, com a suprema felicidade. Que digo eu? É esta mesma

28 Dante, Paradiso, canto XXVIII e XXX.29 Boécio, De Consolatione, lib. III, prosa II.30 Gautridus, Sermo in anniversario obitus sancti Bernardi, nos. 4 et 15.

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felicidade que, inebriando-os de suas delícias, os inebria também, de alguma sorte,

da necessidade de comunicá-la, porque é ela a felicidade de amor, que só se enche

 para se derramar  31.

Eles governam-nos, dirigem-nos e intercedem por nós. S. Gregório Nazianze-

no, concluindo o elogio de S. Cipriano, exclamou:“Ó vós, do alto do Céu, olhai-nos com bondade, guiai nossos discursos e nossa

vida, apascentai este virtuoso rebanho e auxiliai o seu pastor”32.

 No segundo livro dos Macabeus (XV, 12-16), vemos Onias e Jeremias, já mor-

tos, interessarem-se pela sorte dos judeus, orarem pela sua liberdade e entregarem a

Judas a espada que devia assegurar-lhe a vitória.

 No Apocalipse (V, 8; VI, 10) vemos os bem-aventurados oferecerem ao Senhor

as orações que se elevam da terra, como perfumes, e queixarem-se de seus persegui-

dores estarem ainda impunes. Por que, pois, seriam os únicos a não serem reconheci-

dos, aqueles que foram na terra seus protetores ou seus protegidos, e que lhes fazemagora companhia na glória? Por que esta exceção inteiramente semelhante a um cas-

tigo? Por que esta pobreza do coração, que seria assim privado de todas as santas

afeições, a que deve talvez a sua entrada na pátria da caridade, ou pelo menos um

grau mais elevado no reino da pura luz e do verdadeiro perfeito amor?

O Cristão não tem necessidade de passar o rio do esquecimento para chegar ao

eterno repouso.

O santo nunca perde a memória do menor de seus triunfos, nem o mais obscuro

dos seus merecimentos.A nossa mão esquerda, que não sabe na terra o bem que faz a direita (Math. VI,

3), sabê-lo-á um dia no Céu, e se regozijará por isso eternamente.

 Neste mundo, morremos em nós mesmos, por um esquecimento que cada vez

se torna maior; mas no Céu, ressuscitaremos em nós mesmos pela mais completa

lembrança: Todo o bem que tivermos feito, reviverá em nossa memória com uma

fresquidão e vivacidade de sentimentos, que nunca houvéramos conhecido. Conser-

varemos a lembrança das nossas provas interiores e espirituais; recordar-nos-emos

das nossas dores físicas e de todos os nossos trabalhos.

Como nos será doce então repassar, pela imaginação, todas estas rugas do tem- po, onde as lágrimas dos nossos olhos e os suores dos nossos membros caírem, como

orvalho fecundo, para enriquecer a colheita dos nossos eternos merecimentos!

Mas como! Os felizes habitantes do Paraíso, em suas íntimas conversações,

nunca falariam do seu passado, deixariam ignorar a grandeza e multiplicidade dos

seus combates neste mundo, e não revelariam entre si uma única circunstância que

lhes fizesse conhecer que foram contemporâneos, vizinhos, parentes ou amigos?! É

impossível.

31 Augusto Nicolas, La Vierge Marie vivant dans l’Eglise, lib. I, cap. IV, § 3, n.o 4. 32 S. Gregório Nazianzeno, Oratio XXIV , no. 19.

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  39

II

Com a ciência cresce no Céu o amor. – Aumento deste mesmo amor. – Pa-lavras de S. Bernardo em diferentes ocasiões. – Doutrina de S. Tomás de Aqui-

no. – Revelação feita a Santa Catarina de Sena. - Harmonia do conhecimento e

do amor. - Nem inveja nem ciúme, mas completa resignação.

Ora, no Céu, com a ciência cresce a caridade, o amor.

Assim como o Sol nos envia num só e mesmo raio duas coisas ao mesmo tem-

 po: a luz e o calor; assim também este mútuo conhecimento que Deus permite aosseus escolhidos, é sempre acompanhado de amor. E da mesma forma que se tornari-

am mais abrasados, à medida que se aproximassem da chama; assim também, quanto

mais se aproximam deste grande Deus que é um fogo consumidor (Deut., IV, 24),

tanto mais amam e são amados.

A caridade nunca se extingue, diz o Apóstolo, (I Cor., XIII, 8); e este amor in-

finito, abraça a Deus em sua unidade, a nós mesmos e ao próximo.

E efetivamente não existem duas ou três virtudes da caridade, mas só uma. Se, pois, o amor do justo sobe com ele ao Céu depois da sua morte, se brilha mesmo com

um esplendor mais radioso sobre o imaculado horizonte da bem-aventurada eternida-

de, como um astro que, elevando-se, aumenta os seus esplendores, por que razão

deixaria este justo de inflamar-se também em caridade para com todos aqueles que

amou santamente na terra? Por que motivo, quando é maior o seu amor para com

Deus, e para consigo mesmo, não seria maior também para com o seu próximo?

O santo abade de Claraval chorou a perda de seu irmão Gerardo com uma ter-

nura maravilhosa. Um de seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos, não é mais do

que uma oração fúnebre a respeito deste irmão querido. Que diz ele sobre este ponto?

Atendei e consolai-vos:

“Quanto mais se estiver unido a Deus, mais cresce o amor. Ora, se Deus não

 pode sofrer, pode condoer-se; porque ter piedade dos desgraçados e perdoar aos cul-

 pados, é próprio da sua infinita misericórdia.

É forçoso, pois, meu irmão, que estejais comovido das misérias do próximo,

visto que estais tão intimamente unido à divina misericórdia. Assim a vossa afeição

 por nós, longe de diminuir, chegou, pelo contrário, à sua perfeição; e tendo-vos re-

vestido de Deus, não vos despojastes da vossa solicitude para conosco, visto que o

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mesmo Deus tem cuidado de nós (1 Petr. V, 7). Ter-vos-eis despojado de tudo o que

era fraqueza, mas nunca da piedade ou compaixão.

Enfim, visto que a caridade não morre, vós nunca me olvidareis.” 33 

Baseado neste motivo do amor para com o próximo, o abade de Claraval diri-

gia-se a S. Malaquias nos termos seguintes: “Longe de nós o pensamento de que a

vossa caridade, tão ativa na terra, esteja, não digo esgotada, mas somente diminuída,

quando vos achais junto da mesma nascente da eterna caridade, tirando dela a longos

tragos aquilo de que anteriormente tínheis sede e que só podíeis beber gota a gota!

O amor nunca pode ceder à morte, pois que é mais forte do que ela”34.

O santo abade dizia a respeito de outro seu amigo:

“Ele era meu em quanto vivia, será meu depois da sua morte, e reconhecê-lo-ei

 por meu na pátria celeste – Meum in patria recognoscam”35. Num sermão de S. Vítor, mostrava-o tão cheio de solicitude por nós como de

segurança a seu respeito; “porque, dizia ele, não é numa terra de esquecimento que

habita a alma de Vítor.

Porventura a celeste habitação endurece as almas que recebe, ou priva-as da

memória, ou despoja-as da piedade?

Meus irmãos, a amplidão do Céu dilata os corações e não os restringe, dilata os

espíritos e não os dissipa, não diminui as afeições, mas aumenta-as. Na eterna luz, amemória é aclarada e não obscurecida, aprende-se o que se ignora e não se esquece o

que se sabe – discitur quod nescitur, non quod scitur dediscitur.” 36. 

O doutor angélico, S. Tomás de Aquino, diz que os bem-aventurados se amam

entre si tanto mais quanto maior é a sua união com Deus; entretanto, na terra nos

amamos mais ou menos, segundo a maior ou menor união entre nós, pelas diferentes

relações que nos são necessárias ou permitidas.

Todavia, ainda que no Céu não tenhamos de prover às necessidades uns dos

outros, cada um conservará uma afeição especial por aqueles que lhe foram unidos, econtinuará a amá-los com mais particularidade, ou por motivo de parentesco, de ami-

zade, de aliança, de benefícios concedidos ou recebidos, por serem patrícios ou da

mesma vocação. Porque nenhum motivo de pura afeição deixará de operar sobre o

coração dum bem-aventurado – Non enim cessabunt ab animo beati honestae dilecti-

onis causae.37 

33

 S. Bernardo, in Cant. Serm. XXVI, no.

 3.34 Ibid., Epístola 374, no. 2.35 Ibid., Epístola 65, no. 236 In Natali sancti Victoris, sermo II, nº 137 S. Tomás, Summ. 2. 2, q. 26, art. 13

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O próprio Deus dizia a Santa Catarina de Sena: “Ainda que todos os meus es-

colhidos estejam indissoluvelmente unidos por uma perfeita caridade, todavia, entre

aqueles que se amavam reciprocamente neste mundo, reina uma singular comunica-

ção e uma alegre e santa familiaridade. Por este mútuo amor se esforçavam por cres-

cer na minha graça, caminhando de virtude em virtude; por ele, um era para o outro

um meio de salvação; por ele, todos se auxiliavam reciprocamente em me glorificar

em si mesmos e no seu próximo. Assim, este santo amor nada diminui entre eles na

vida eterna; pelo contrário, ocasiona-lhes muito maior alegria e contentamento espiri-

tual”38.

Sem esta admirável harmonia do conhecimento e do amor, o Céu seria triste.

Acendei nele o facho da ciência sem a fornalha da caridade, e os ciúmes estenderão

suas redes, como na terra.

Fazei do amor um cego correndo nas trevas em procura do seu objeto, e vê-lo-

eis, dentro em pouco, vítima dos mais sombrios pesares.

Sem o amor, nada faria contrapeso à desigualdade, porque deixaríamos de pos-

suir no próximo o que não temos em nós mesmos.

Sem a luz, nada nos consolaria do desgraçado fim dum ente querido, infiel ao

comparecimento no ponto determinado para a reunião, porque não se veriam já os

decretos da eterna justiça, nem a marcha da amável Providência.

Mas, unir à perfeição da ciência a perfeição da caridade é excluir do Céu os ci-

úmes do egoísmo e os amargos pesares.

Os santos gozam do que têm, e não se afligem do que não têm. Aqueles mes-

mos que passaram uma parte da sua vida no pecado, nem por isso gozam menos du-

ma pura alegria e duma completa felicidade, ainda mesmo que o seu grau de glória

seja inferior.

O grande Bispo de Hipona dizia às virgens: “A multidão que vos vir seguir oCordeiro, sem poder acompanhar-vos, não terá ciúme. Tomando parte na vossa ale-

gria, ela terá em vós o que não tem em si mesma – collaectando vobis, quod in se

non habet, habebit in vobis. Sem dúvida, ela não poderá entoar o novo cântico, que

só vos é próprio (Apoc. XIV, 3, 4); mas poderá ouvi-lo e regozijar-se com a vossa

imensa felicidade”39.

Dizia ainda:

“Na mesma bem-aventurança, nenhum daqueles que tiver um grau mais inferi-

or terá inveja dos que estiveram colocados numa ordem mais superior, assim como

38 Sainte Catherine de Siene, Le Dialogue, cap. XLI.39 Santo Agostinho, De Sancta Virginitate, cap. XXIX

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os anjos não têm ciúme dos arcanjos. Ninguém quererá ser mais do que aquilo para

que Deus o fez, assim como em nosso corpo o olho não pode invejar a sorte do dedo.

A todo aquele que recebeu dons menores, dá Deus a graça de os não ambicionar

maiores”40.

Se vos repugna consultar, sobre esta matéria, os sérios e mui importantes livros

dos doutores, lançai mãos da Divina Comédia, e lede uma página deste poema, que

vos agradará, por isso mesmo que tem nele grande parte a teologia.

 Na sua graciosa viagem ao Paraíso, o autor perguntava a uma alma que encon-

trou no mais ínfimo grau, se ela não desejava subir mais acima para mais ver e mais

amar.

“Irmão, respondeu ela, há uma virtude de caridade que modera o nosso querer

e que, fazendo que queiramos somente o que temos, nos impede de desejar outra

qualquer coisa. É mesmo essencial à nossa bem-aventurada existência manter-se ca-

da qual na vontade divina, de maneira que todas as nossas vontades não façam mais

do que uma.

Que sejamos distribuídas em graduações diversas neste reino, é uma disposição

que agrada a todo ele, assim como ao Rei que absorve o nosso querer no seu. Na sua

vontade está a nossa paz. A sua vontade é este mar para o qual se move não só o que

ela diretamente criou, mas também o que a natureza produz.

Conheci então, conclui o poeta, que todo o lugar no Céu é Paraíso, ainda que a

graça do Soberano Bem se não derrame por toda a parte com a mesma intensida-

de”41.

40 Ibid., De Civitate Dei, lib. XXIII, cap. XXX, no. 2.41 Dante, Paradiso, cant. III.

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  43

III

Não haverá necessidade de desviar os olhos do Criador para ver as criatu-

ras – O Céu não é um êxtase onde se esquecem os parentes e os amigos. – A na-

tureza, no que tem de bom, existirá sempre. – A graça não a repele, mesmo na

terra.

O Céu é luz; não digais pois: –Encontrando-se em Deus em toda a sua plenitu-de a perfeição que nos torna amável um ser criado, poder-se-á desviar os olhos do

centro dos eternos esplendores e do oceano das perfeições infinitas, para seguir com

a vista um raio separado, um pequeno regato?

Os bem-aventurados nunca têm necessidade de desviar os olhos do Criador pa-

ra reconhecerem uma criatura. É nele, é no Verbo que contemplam ao mesmo tempo

o centro luminoso e os raios, o fecundo manancial e os arroios.

“É no Verbo divino, escrevia o autor da Vida dos predestinados, que se verá a

verdade claramente, e sem estes véus que nos não deixam vê-la neste mundo em toda

a sua pureza e a descoberto. No Céu já não haverá dúvida, ou incerteza. É neste Verbo que o predestinado

verá, como num admirável espelho, este espetáculo do mundo desenvolver-se na

mais pequena circunstância de cada sucesso. Será n’Ele que aprenderá a série dos

eternos conselhos de Deus nos interesses da sua glória. Aí divisaremos ao mesmo

tempo o presente, o pretérito e o futuro, e marcharemos, com a graça desta luz, nos

imensos caminhos da eternidade, sem nos perdermos nem ainda nos afastarmos de-

les.

 –Leremos aí a descrição universal de todos os tempos, e o que se passou de

mais curioso no decurso de cada século, não só no mundo exterior, mas ainda no

interior, isto é, nos lugares mais recônditos do coração humano. Será neste livro, pa-

tente aos escolhidos, que se terá o prazer de estudar a história secreta da celeste Jeru-

salém, que contém o mistério da salvação de cada predestinado, e que encerra a nar-

ração do procedimento de Deus em relação aos homens, no admirável desejo da sua

 predestinação”42.

42 P. Rapin, La Vie des prédestinés dans la bienheurese éternité , cap. V

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O Céu é amor; não digais portanto: –Não há necessidade de amigos. Os santos

no êxtase esquecem até os seus parentes, e além disso a maior parte das nossas afei-

ções têm um princípio inteiramente natural que deixará de existir na eternidade.

Pobre filosofia, que circunscreve os sentimentos do coração nos limites da uti-

lidade presente, e não compreende que o principal bem da amizade é o mesmo amor

ou a correspondência estabelecida entre duas pessoas sinceramente unidas entre si!

Quantos sábios monarcas se têm crido mais felizes por terem um amigo do que por

terem um reino!

 Não nego que os santos, em certos momentos de consolação espiritual, sobre-

tudo no êxtase ou arrebatamento, tenham banido toda a lembrança de seus parentes e

ainda das pessoas mais virtuosas; não nego que tenham perdido todo o sentimento

exceto o de Deus. Mas estavam na terra e em provação; cumpriam penosamente a

 primeira palavra do Mestre: “Deixai casa e campos, irmão e irmã, pai e mãe, mulher

e filhos”, e não viam ainda cumprir-se a segunda: “Recebereis o cêntuplo e possui-

reis a vida eterna” (Math., XIX, 29).

O Céu não é um êxtase, nem um estado violento e transitório; é a cidade per-

manente, onde não há mortificação nem sacrifícios a fazer para subir mais alto, mas

onde se encontra em Deus o que se deixou por Deus. É o termo da viagem e dos

combates, onde se repousa na posse tranqüila de uma eterna recompensa.

 No Céu, o Senhor prodigaliza a todos, luzes que recusa na terra a seus maiores

servos; e dá à caridade para com o próximo uma liberdade de expansão que a pru-

dência cristã ou religiosa deve, muitas vezes, restringir neste mundo.

A natureza, no que tem de bom, existirá sempre. Será no Céu para a glória o

que é na terra para a graça, o apoio necessário.

A natureza é uma árvore silvestre, mas a graça é-lhe engastada como um enxer-

to divino. Este enxerto dá primeiramente flores, pintadas com as cores de Jesus Cris-to, que exalam no tempo a sua ótima fragrância. Produz em seguida frutos de salva-

ção que serão a glória dos bem-aventurados na eternidade.

Toda esta árvore com o seu fruto será transplantada no Céu. Teremos aqui

mesmo, com todas as faculdades da nossa alma, todos os sentidos do nosso corpo

sem defeito algum. Aquele que morrer ainda criança ressuscitará homem feito.

Ouviram-se os vossos gemidos quando a morte arrebatou do berço uma de vos-

sas filhas; sentir-se-ão vossas alegrias e cânticos ao Senhor, quando tornardes a en-contrar junto do mesmo Deus, sobre um trono, esta filha querida, chegada de impro-

viso a uma permanente madureza, eternamente bela, eternamente jovem!

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Chamando-a para si, Deus encarregou-se de a criar, e ele mesmo cuidou da sua

educação. Ora, não receeis que ele não vos deixasse lugar em seu coração. Na terra,

ela não pôde conhecer-vos nem amar-vos; mas no Céu, por causa destas relações de

origem que são naturais, Deus lhe fará conhecer sua mãe, e lhe dará a piedade filial

como virtude sobrenatural.

Mesmo na terra, como já se disse, a graça não repele a natureza; pelo contrário,

estende-lhe a mão, torna-se seu guia e seu apoio. Algumas vezes mesmo leva a con-

descendência até ao ponto de deixá-la marchar diante de si, vigiando sobre os seus

movimentos com uma doce solicitude maternal, tendo sempre a mão levantada para

regular os seus passos e prevenir suas quedas.

O autor da graça, não contente com amar sobrenaturalmente sua divina Mãe,

amou-a também naturalmente, e não se dedignou de ser por ela amado. E quando

verteu lágrimas sobre o túmulo de Lázaro, seu amigo, foi a natureza que as deixou

cair.

“A graça e a natureza são, ambas, filhas do Céu; mas uma pode ser considerada

como filha da esposa, a outra como filha da escrava. A primeira será herdeira do pai

de família, por direito de nascimento; a segunda será admitida a uma parte da heran-

ça, pelo privilégio duma benévola e gratuita adoção. Aquela será a rainha, esta a fa-

vorita da mesma rainha”43.

43 Marc, Le Ciel, appendice, III question.

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  46

IV

No Céu, os bem-aventurados não se afligem pela conde-

nação de pessoa alguma. – Não têm já afeição alguma por

um condenado. – Ele não conserva um só elemento de

amabilidade. – A vontade dos bem-aventurados é intei-

ramente conforme à de Deus, mesmo para a reprovação

dum amigo, como diz Santa Catarina de Sena, Honório e

os teólogos.

O Céu é amor e luz; não digais, pois: –Imensa será a aflição dum santo ao lem-

 brar-se do parente ou do amigo que jamais irá reunir-se-lhe.

Das sublimidades da glória descobre-se melhor o horror e a justiça de sua con-

denação.

Sol do mundo moral, Deus é o centro cuja atração livremente sujeita mantém

nossa alma na órbita da salvação, apesar das paixões que sempre nos impelem a afas-

tar-nos dela.Das eternas colinas, os santos seguem atentamente as vicissitudes desta luta,

cujos resultados devem ocasionar às pessoas que lhes são queridas, o Céu ou o Infer-

no. Vêem, desde há muito tempo, a divina atração, que é a mesma força da miseri-

córdia, obrar sobre o pecador e vencer resistências insensatas ou culpadas.

Mas, enfim, vêem este pródigo obstinado, este homem que segunda vez cruci-

fica a Jesus Cristo, ceder voluntariamente às seduções do pecado e ao ímpeto das

 paixões, e sair inteiramente da órbita da salvação. Como um astro extinto ou quebra-do, projetado no espaço, corre veloz, afastando-se cada vez mais do seu centro, e

chega assim, pela condenação, a uma infinita distância de Deus.

Ora, a afeição dos bem-aventurados, por qualquer pessoa, enfraquece e diminui

em proporção da distância em que esta se achar do soberano bem; e como é infinita a

distância que medeia entre Deus e o condenado, nenhuma afeição pode haver por

este.

O afeto que lhe consagravam na terra, não era mais do que uma irradiação dos

atrativos divinos. Esta afetuosa inclinação será destruída pela reprovação divina, e o

raio que os iluminava e atraía voltará para Deus da mesma forma que, no mundo

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material, quando uma nuvem se mete de permeio entre o sol e um corpo, o raio que

iluminava este corpo desaparece no mesmo instante, e volta para o astro donde saíra.

Rompida assim a cadeia do afeto, esta criatura, que outrora nos era tão querida,

deixou inteiramente de o ser. Só veremos nela uma estranha, uma inimiga, a inimiga

do nosso Deus, do nosso Pai, do nosso bem supremo. Não teremos a fazer esforço

nem violência para nos desligar dela. Proferida a sentença de reprovação pelo supre-

mo Juiz, o afeto que nutríamos pela pessoa condenada, desaparecerá de nosso cora-

ção como por encanto. Porque entre nós e ela não havia atrativo necessário, assim

como não há qualidade alguma de atração entre dois fragmentos de ferro antes de um

deles ser tocado pelo ímã, ou depois de ter perdido esta propriedade emprestada.

 Não podemos, é verdade, eximir-nos de um imenso desgosto na vida presente,

lembrando-nos desta separação.

Mas aqui é só a sensibilidade que raciocina e se entristece; a fé não entra nisto:

não é mesmo propriamente a sensibilidade, que é um dom de Deus e tem uma razão

de ser. Pelo contrário, esta perseverança na afeição por criaturas que já não têm ele-

mento algum de amabilidade, é um contra-senso e uma espécie de aberração: é a ilu-

são da sensibilidade. As recordações das nossas antigas e verdadeiras afeições fixam-

se em nós e molestam-nos, como as impressões dum sonho, quando se está meio

acordado, apesar mesmo duma suficiente luz para nos demonstrar a sua frivolidade.

A nossa sensibilidade em relação a estas afeições está atualmente neste estado

que tem uma espécie de meio entre o sonho e a vigília; mas apenas soe o eterno des-

 pertar, veremos claramente que tudo eram fantasmas, e a nossa sensibilidade não se

 preocupará mais delas.44 

Esta objeção é, algumas vezes, apresentada e sustentada por pessoas que se

consolam muito facilmente com a indiferença prática ou triste fim de seus parentes, e

que pouco fazem por convertê-los neste mundo, ou socorrê-los no outro. Mas, será possível porventura que no Céu amemos pessoas condenadas a eternas penas mais do

que a nós mesmos? Todavia cada um de nós saberá quais foram as suas próprias fal-

tas, verá os graus de glória que estas lhe fizeram perder, e nem por isso seremos infe-

lizes, nem mesmo nos entristeceremos. Será possível que os amemos ainda mais do

que os amaram Deus e Jesus Cristo? Contudo a felicidade de Deus não é perturbada

 pela sua condenação, e Jesus Cristo não se aflige com a perda de Judas.

Finalmente, como só amam o que Ele ama, os bem-aventurados querem uni-camente o que o Senhor quer. Assim dizia ele a uma grande santa:

44 Marc, Lê Ciel, appendice, III question, note.

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  48

“Os habitantes do Céu têm os seus desejos inteiramente completos, e nunca es-

tão comigo em desacordo. O seu livre arbítrio está de tal sorte ligado pela caridade,

que eles só podem querer o que eu quiser. A sua vontade está tão conforme e unida à

minha que os pais que vêem seus filhos no Inferno, ou filhos que vêem seus pais

condenados, não se afligem por isso; regozijam-se até de vê-los punidos pela minha

 justiça, visto que estes filhos ou estes pais se obstinaram em ser meus inimigos”45.

Honório exprime por outros termos, e com não menos energia, o meu pensa-

mento:

“Os bem-aventurados não se afligirão à vista dos condenados e de seus tormen-

tos. Quando mesmo o pai vir seu filho no meio dos suplícios, o filho a seu pai, a filha

a sua mãe ou esta àquela, não só se não entristecerão, mas ainda se deleitarão à vista

deste espetáculo, como nos acontece quando vemos os peixes brincarem num pego.

 Não está escrito (Ps. LVII, 11): ‘O justo se alegrará quando vir tirar vingança dos

 pecadores?’”46.

 Neste mundo, segundo o parecer do Cardeal Caetano, um pai cristão, um bom

 pai, não seria feliz se soubesse que seu filho estava condenado às penas eternas; mas,

no Céu é ainda feliz na mesma hipótese, ainda que se possa dizer que, em certo sen-

tido, tem pesar desta condenação47.

E por que será ele feliz? Porque uma grande parte da nossa eterna felicidade,

segundo Vasquez, consistirá na inteira conformidade da nossa vontade com a divina.

Efetivamente, na eterna glória, a nossa vontade e a vontade divina estarão tão

 perfeitamente de acordo, como estão os olhos do mesmo rosto, um dos quais não

 pode olhar para um objeto sem que o outro o siga.

Veremos, pois, todas as coisas como Deus as vê: assim como cada um de nos-

sos olhos encontra no mesmo objeto a mesma aparência48.

Mas, Senhora, ouço-vos repetir-me o que me dissestes por tantas vezes: –Comonos consolaremos neste mundo depois da desgraçada morte duma pessoa querida que

se viu expirar sem alguma aparência de reconciliação com Deus?

Ainda que esta proposta se afaste um pouco do meu objeto, não quero deixá-la

sem resposta. Vou, pois, acrescentar algumas páginas a esta carta para vos dizer:

Consolai-vos, orando.

45

 Sainte Catherine de Sienne, Le Dialogue, chap. XLI.46 Honorius d’Autun, Elucidarium, lib. III, no. 547 Cajetan, Comment. In S. Thom., III, p. 9, 46, art. VII, ed. Rome 1773, t. VIII, p. 16.48 Vasquez, in Summ., 1ª., 2ª., q. 19, Disput. 72, cap. V. – Cf. Eadmer, De sancti Anselmi similitudinibus,

cap. LXIII.

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Previstas por Deus, vossas atuais orações talvez obtivessem, antes da morte, a

secreta conversão do pecador cuja perda chorais.

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APÊNDICE À TERCEIRA CARTA

Oremos pelos pecadores mesmo depois da sua triste morte

I

Mistérios da graça por ocasião da morte. - Como se podem explicar. - Efi-

cácia das orações feitas pelos pecadores depois do seu falecimento, segundo a

opinião do P. de Ravignam. – Testemunho de S. João Crisóstomo.

SENHORA,

A Igreja não condena pessoa alguma. Publica os seus decretos em que nos de-

clara que esta ou aquela pessoa está no Céu, o que nunca fez a respeito dos condena-

dos.

Tenho a satisfação de saber que lendo vós uma obra que merece toda a consi-deração, notastes particularmente estas linhas:

“O Padre de Ravignam gostava de falar dos mistérios da graça, que cria passa-

rem-se no momento da morte, e parece ter sido o seu sentimento de que um grande

número de pecadores se convertem nos seus últimos momentos, e expiram reconcili-

ados com Deus.

Há, em certas mortes, mistérios de misericórdia e rasgos de graça em que os

olhos humanos só vêem golpes de justiça. À luz dum último raio, Deus revela-se

algumas vezes a certas almas cuja maior desgraça fora ignorá-lo; o último suspiro,

compreendido por Aquele que sonda os corações, pode ser um gemido que implore o

 perdão”.

O marechal Exelmans, a quem uma queda do cavalo subitamente precipitou no

túmulo, não praticava a religião. Tinha prometido confessar-se, mas não teve tempo.

Todavia, no mesmo dia da morte, uma pessoa habituada às celestes comunicações

acreditou ouvir uma voz interior que lhe dizia:

“Quem conhece a extensão da minha misericórdia? Sabe-se porventura a pro-

fundeza do mar e as águas que encerra? Muito será perdoado a certas pessoas que

muito ignoram”.

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Como explicar estes rasgos da graça? Pelo preço duma alma que vale o sangue

de Jesus Cristo, vertido por ela, e pela misericórdia que não conhece limites, por al-

guma boa obra, esmola ou oração que o pecador tiver feito durante a sua vida; pelo

invisível ministério do Anjo da Guarda, sempre disposto a trabalhar a bem da salva-

ção do seu protegido; pelas precedentes orações dos santos do Céu e dos justos da

terra, e sobretudo pela intercessão da Virgem Maria; finalmente, pelas orações feitas

 pelos pecadores depois da sua morte, quando mesmo não tenham dado algum sinal

de arrependimento.

É este último ponto que me limito a explicar-vos aqui.

Lestes com prazer na obra que há pouco citei, as seguintes linhas traçadas pelo

santo religioso para consolar uma rainha cujo filho morrera, caindo duma carruagem.

“Cristãos, colocados sob a lei da esperança não menos que da fé e do amor, de-

vemos erguer-nos incessantemente do fundo das nossas aflições, até ao pensamento

da infinita bondade do Salvador. Nenhum limite, nenhuma impossibilidade se mete

de permeio entre a graça e a alma enquanto restar um sopro de vida. Convém, pois,

esperar sempre e dirigir ao Senhor humildes e perseverantes instâncias. Não se pode-

rá dizer até que ponto elas podem ser atendidas. Grandes santos e eminentes doutores

estiveram bem longe, falando desta poderosa eficácia das orações por almas queri-

das, de dizerem qual tenha sido o seu fim.

Conheceremos um dia estas inefáveis maravilhas da divina misericórdia, as

quais nunca devemos deixar de implorar com uma profunda confiança”49.

Visto que o P. de Ravignan apela para os santos e para os doutores, quero apre-

sentar-vos o testemunho dum grande doutor e duma grande santa.

O mais eloqüente Arcebispo de Constantinopla, provando que não é conveni-

ente chorar muito pelos nossos queridos defuntos, mas antes auxiliá-los com as nos-

sas orações e boas obras, supõe que um de seus ouvintes o interrompe para lhe dizer: –“Mas eu choro este querido defunto, porque morreu como um pecador - Prop-

ter hoc ipsum plango, quod peccator excessit!”.

Que responde S. João Crisóstomo?

“Não será isto um vão pretexto? Pois se tal é o motivo das vossas lágrimas, por

que não fazíeis mais esforços para convertê-lo durante a vida? E se morreu verdadei-

ramente pecador, não devereis regozijar-vos, por isso mesmo, que a sua morte veio

 pôr termo ao número de seus pecados que, desde então, já não pode aumentar? É

sobretudo necessário ir em seu socorro, tanto quanto puderdes, não por meio de lá-

49 P. de Pontlevoy, Vie du P. X. De Ravignan, chapp. X et XXI.

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grimas, mas de orações, súplicas, esmolas e sacrifícios. Nenhuma destas coisas são

efetivamente loucas invenções. Não é inutilmente que nos divinos mistérios come-

moramos os mortos; não é infrutiferamente que nos aproximamos do sagrado altar e

oramos por eles ao Cordeiro que apaga os pecados do mundo; pelo contrário, tudo

isto lhes serve de muita consolação.

Se Job purificava seus filhos, oferecendo por eles um sacrifício, de quanto mais

alívio deve ser para os nossos defuntos aquele que por eles oferecermos ao Senhor?

 Não costuma Deus fazer bem a uns em consideração a outros? Mostremo-nos cuida-

dosos em socorrer os nossos queridos defuntos, e ofereçamos por eles as nossas ora-

ções.

A Missa é uma expiação comum de que todo o mundo se pode aproveitar. Por-

tanto oramos na Missa por todo o Universo, e nesta multidão nomeamos os mortoscom os mártires, com os confessores e com as virgens. Pois todos nós somos um só

corpo, ainda que este tenha membros mais brilhantes do que outros. Pode mesmo

acontecer que obtenhamos para nossos defuntos um completo perdão. Et fieri potest

ut veniam eis omni ex parte conciliemos – pelas súplicas e dons que oferecem em seu

 benefício aqueles que são nomeados com eles.

Por que estais ainda angustiado? Para quê estas lamentações? Não se poderá

obter uma tão sublime graça para aquele que perdestes?”50.

II

Exemplo tirado da vida de Santa Gertrudes. – Esta

verdade não é mais do que uma particular aplica-

ção do princípio geral da Redenção. – A fecundida-

de que ela pode dar à dor.

Encontra-se nas célebres revelações de Santa Gertrudes um exemplo que con-

firma esta doutrina e lhe dá uma nova luz.

Em presença de Gertrudes, deu-se a uma pessoa a notícia da morte de um de

seus parentes. Temendo esta que ele não tivesse morrido no estado de graça, mos-

trou-se muito aflita. Foi tão grande a sua perturbação que, comovida a Santa, se ofe-

50 S. João Crisóstomo, in I ad Cor. Hom. XLI, nos. 4, 5.

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receu para pedir a Deus pela alma do defunto, o que fez, principiando por dizer a

 Nosso Senhor:

“Vós podíeis bem ter-me dado o pensamento e a graça de orar por esta alma

sem que a isso fosse levada por este movimento de ternura e compaixão”.

Jesus respondeu-lhe:

“Comprazo-me singularmente nas súplicas que se me dirigem pelos mortos,

quando nelas se encontra a natural compaixão junto à boa vontade que a torna meri-

tória, e estas duas coisas se aliam e concorrem para darem a esta obra a plenitude e

 perfeição de que é capaz”.

Tendo a abadessa orado depois disto, por muito tempo a favor desta alma, co-

nheceu que o seu estado era lastimoso; porque lhe apareceu horrivelmente disforme,

negra como um carvão, e semelhante àquelas pessoas que se confrangem pela vio-

lência das dores. Contudo ninguém se via que a atormentasse; mas parecia claramen-

te que eram seus antigos pecados que faziam sobre ela o ofício de carrasco.

“Senhor, exclamou a caritativa religiosa, não quereis ceder aos nossos rogos,

 perdoando a esta criatura?

 – Queria por amor de ti, responde o divino Salvador, ter piedade não só desta,

mas ainda dum milhão de outras. Queres, pois, que lhe perdoe todos os seus pecados

e a livre de toda sorte de sofrimentos?

 – Talvez, replicou a Santa, não é isso conforme ao que ordena a vossa justiça!

 – Não seria contrário, acrescentou Nosso Senhor, se mo pedisses com bastante

confiança. Porque a minha divina luz, que penetra no futuro, tendo-me feito conhecer

que me farias esta súplica, excitei nessa alma boas disposições, para prepará-la a go-

zar dos frutos da tua caridade.51 

Oh! palavras cheias de consolação!

Primeiramente, Deus, prevendo nossas futuras súplicas, digna-se de concederao pecador moribundo boas disposições que assegurem a salvação da sua alma; de-

 pois, por virtude das nossas orações presentes, consente em livrar esta mesma alma

de toda a sorte de penas, e em retirá-la das chamas expiatórias.

A última confidência do Salvador à sua virginal esposa, não é mais do que uma

aplicação particular dum principio geral.

Antes que os homens tivessem podido abaixar seus olhos sobre o Presépio e

levantá-los para o Calvário; antes que o Sol da Redenção fosse para eles visível, nes-

51  Les Insinuations de la divine piété , liv. V, chap. XIX.

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te humilde vale do nosso exílio, já podiam deixar-se conduzir pela sua luz e vivificar

 pelo seu calor.

Por quê? Porque Deus Pai, da sublimidade das eternas colinas, via já as ora-

ções, os sofrimentos, as virtudes e os merecimentos do seu único Filho, que devia

encarnar-se para salvar o mundo.

Não é assim que a Virgem bendita, que devia ser a Mãe deste único Fi-

lho, foi preservada de toda a mancha em sua própria conceição, porque, diz-

nos a Igreja, Deus considerava antecipadamente a Jesus Cristo crucificado?

 – Ex morte ejusdem Fielii tui praevisa, eam ab omni labe preservasti.52 

Esta verdade, bem compreendida e posta em prática, pode dar à dor a sua maior

fecundidade.

“Toda a minha vida está nisto presentemente”, dizia a pessoa que me fez notar

esta passagem das revelações de Santa Gertrudes; “antes que meu marido morresse,

Deus sabia o que eu faria por ele!”.

E assim fez um completo sacrifício de si mesma. Consagrou-se ao Senhor, to-

mando por divisa: Orar, sofrer, trabalhar53 e o Senhor a consolou, dando-lhe por

família, com os pobres enfermos da terra, as atribuladas almas do Purgatório.

Orai, pois, e fazei orar: o Deus cuja misericórdia é alta e vasta como o Céu (Ps.

LVI, 2; CVI1, 5), conheceu, no momento em que ia expirar o vosso parente ou ami-go, as orações que mais tarde faríeis por ele, hoje, amanhã, depois de terdes lido estas

 páginas e seguido o meu conselho.

Orai e fazei orar: vossas orações, santificando-vos e consolando-vos nesta vida,

concorrerão para salvar aqueles que amais.

52 Collecta da Missa da Imaculada Conceição.53 Simart, estatuário, membro do Instituto, Étude sur sa vie et sur son oeuvre, par Gustave Eyriès, chap.

X, p. 402, 403.

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QUARTA CARTA

Reconhecimento dos parentes ou a família no Céu

I

Reflexo dos três principais mistérios da nossa religião na família cristã. –

A família recomposta no Céu. – Palavras de Tertuliano. – Exemplo de Nosso

Senhor. – Tocante espetáculo que oferecerá o Paraíso. – Jesus e Maria reconhe-

cem-se. – Maria tem cuidado de Jesus no Sacramento do seu amor. – Ela con-

serva sobre o seu Coração um soberano poder.

SENHORA,

Desejaríeis saber, particularmente, o que acontece à família no Céu, isto é, se

Deus ali a recompõe, e se a esperança de possuir vossos parentes na pátria celeste é

uma consolação de que possais gozar sem receio, sem escrúpulo e sem imperfeição.

Podereis duvidá-lo, quando tantos santos personagens vo-lo afirmam, tanto por

seus exemplos como por suas palavras?

Deus coroou de glória e honra a família cristã, e faz brilhar em sua fronte o re-flexo dos três principais mistérios da nossa religião. Vede por onde ela começa: – Por

um Sacramento que é o sinal sagrado da união do Verbo de Deus com a natureza

humana, da união de Jesus Cristo com a sua Igreja, e da união do mesmo Deus com a

alma justa.

Quem o disse? Um grande Papa, Inocêncio III54. Vede por onde continua:

“Maridos, amai vossas mulheres como Jesus Cristo amou a sua Igreja e se entregou

 por ela; mulheres, amai vossos maridos como a igreja ama a Jesus Cristo e se entrega

 por Ele”.

Quem o disse? O grande apóstolo S. Paulo (Eph., V, 25).

Vede por onde acaba: – Pelas relações de origem que os anjos nos enviam,

tanto elas nos recordam as da Trindade e nos procuram alegrias; porque o homem é

do homem como Deus é de Deus.  Homo est de homine, sicut Deus de Deo. Assim o

disse um grande doutor, S. Tomás de Aquino55.

Mas teria mais poder o sopro da morte para destruir esta obra prima, do que a

virtude força para lhe conservar o esplendor? E visto que o amor é forte como a mor-

54 Inocêncio III, Prima collectio Decretalium, titul. XL, epist., t. I, p. 600, édit. Baluz.55 S. Tomas, Summ. I, p., q. 93, art. 3.

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te (Cant., VIII, 6), dar-se-á que a caridade de Deus, que criou a família, que a carida-

de do homem que lhe santifica o uso, não queira ou não possa refazer eternamente no

Céu o que a morte desfez temporariamente na terra?

Tertuliano dizia:

“Na vida eterna, Deus não separará aqueles que unira na terra, cuja separação

também não permite nesta vida inferior. A mulher pertencerá a seu marido, e este

 possuirá o que há de principal no matrimônio – o coração. A abstenção e ausência de

toda a comunicação carnal, nada lhe fará perder. Não será tanto mais honrado um

marido quanto mais puro for?”56.

Aquele que nos deu este preceito: Não separe o homem o que Deus uniu 

(Math., XIX, 6), deu-nos também o exemplo. O Verbo contratou com a humanidade

um divino desponsório: repudiou ele porventura a sua esposa subindo ao Céu?Pelo contrário, fê-la assentar consigo à direita do seu Eterno Pai.

O Homem Deus tem uma Mãe que é bendita entre todas as mulheres: dedig-

nou-se Ele de fazê-la participante da sua glória? Depois de associá-la à sua Paixão na

terra, fê-la gozar das alegrias da sua Ressurreição e dos esplendores do seu triunfo,

atraindo ao Céu, após de si, o seu corpo e sua alma.

Jesus Cristo tinha dado a alguns homens o nome de irmãos: desconhecê-los-ia

mais tarde? Não. Reconheceu os seus Apóstolos no martírio que sofreram por Ele, efez-se reconhecer por eles no esplendor de que os cerca na Corte Celeste.

Mas o Filho de Deus que assim se dignou recompor, em redor de si, a sua famí-

lia por natureza e por adoção, não quereria recompor da mesma forma, no Paraíso,

esta cristã e religiosa família, que é a vossa e também a sua? Quer, sim, e o Céu ofe-

recerá um espetáculo não menos tocante do que admirável.

Assim como a primeira pessoa da Augustíssima Trindade, dirigindo-se à se-

gunda, lhe diz: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei (Act., XIII, 33); e a segunda diz à

 primeira, com o acento da piedade filial: Meu Pai, Pai justo, Pai santo, guarda aque-les que me foram dados em teu nome para que sejam um, como nós somos um, vós

em mim e eu neles (Joan., XVII, 11, 22-25): assim também uma criatura humana se

voltará para outra e lhe dirá com ternura: Meu filho, minha filha! E do coração desta

subirá para aquela, esta exclamação de amor: Meu Pai!

Assim como o único Filho de Deus se regozija de poder dizer a uma mulher:

Vós sois minha Mãe; também inumeráveis escolhidos exultarão de alegria dizendo

igualmente a uma mulher: Minha mãe! 

56 Tertuliano, De Monogamia, cap. X.

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Ora, se fosse verdade que os membros da mesma família se não reconhecessem

no Céu, Jesus não reconheceria já sua Mãe nem seria reconhecido por ela. Não será

horrível pensar nisto e muito mais dizê-lo?

Um piedoso autor estava por certo mais bem inspirado, quando escrevia:

“A Santíssima Virgem conserva intacta a sua autoridade maternal sobre o cor-

 po do seu Filho, Nosso Senhor, mesmo depois da Ressurreição e Ascensão; porque o

seu direito é perpétuo e inalienável.

Depois de se ter deleitado, durante a sua vida mortal, na submissão a Maria, Je-

sus compraz-se ainda em mostrar-se seu filho na bem-aventurada imortalidade, e em

reconhecê-la por sua Mãe. Temos a prova disto nessas numerosas aparições, em que

ele se tem feito ver sob a forma de um menino entre os braços de sua Mãe, e se tem

mesmo dado a alguns Santos por suas virginais mãos. Na glória, os parentes conser-

vam um contínuo cuidado de seus próximos, e particularmente dos filhos, que são

uma parte deles mesmos, e por assim dizer, outros eles. É, pois, indubitável que a

Mãe de Jesus tem sempre o pensamento unido a tudo o que toca ao corpo do seu que-

rido Filho, tanto na obscuridade do Sacramento como nos esplendores da glória. Se-

gue-o, do alto do Céu, com a vista e com o coração em todos os lugares em que se

encontra presente na terra, pela consagração eucarística”.57 

A eterna duração desta maternal ternura e desta filial piedade, explica e justifi-

ca o belo titulo de Nossa Senhora do Sagrado Coração, dado a Maria pelos nossos

contemporâneos.

“Tomando a natureza humana, disse o sr. Bispo de Rodes, o Verbo Divino a-

 propriou-se de todos os elementos que a compõem, no estado de perfeição a que a

elevou a união hipostática – Debuit per omnia fratribus similiari (Hebr., II, 17).

 Nosso Senhor possui no mais alto grau o sentimento do amor filial, um dos

mais nobres do coração humano, e longe de se despojar dele depois da ressurreição e

da sua gloriosa ascensão, tê-lo-ia dilatado, fortificado e elevado no seu mais sublime

 poder, se fora permitido dizê-lo, no seu estado de bem-aventurada transfiguração, em

que está assentado à direita de seu Pai.

Daqui é fácil de concluir que a augusta Virgem Maria possui sobre o seu divino

Coração um soberano poder, de que ela é verdadeiramente a Senhora ou a Rainha”58.

57 De Machault, Le Trésor dês grands biens de la T. S. Eucharistie, Nat. de la T. S. Vierge, III. p.58  Notice sur l’association em l’honneur de N. D. du Sacré-Coeur , no. 1.

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II

A segurança de se reconhecerem os parentes no Céu tem consolado todos

os santos. – O B. Henrique Suso. – S. Tomás de Aquino. – S. Francisco Xavier. –Santa Tereza. – O seu pensar a respeito da felicidade de uma mãe. – Felizes as

pais que têm filhos religiosos.

Esta certeza de uma especial união com os nossos parentes na eterna bem-

aventurança, é uma consolação tão pura e tão doce que tem chegado a fazer as delí-

cias dos próprios santos. Por todos os ventos do Céu, do Oriente, do meio dia, do

Ocidente e do Setentrião, nos chegam vozes que testemunham esta verdade.A Alemanha apresenta-nos, entre muitos outros, o B. Henrique Suso, religioso

da Ordem de S. Domingos. O seu nome era Henrique Besg, mas preferiu o nome de

Suso, que era o de sua mãe, para honrar a sua piedade e recordar-se dela incessante-

mente59.

Esta virtuosa mãe morreu numa Sexta-feira Santa, à mesma hora em que Nosso

Senhor foi crucificado. Henrique estudava então em Colônia. Ela apareceu-lhe du-

rante a noite, toda resplandecente de glória:“Meu filho, lhe disse, ama com todas as tuas forças o Deus onipotente, e fica

 bem persuadido de que ele nunca te abandonará em teus trabalhos e aflições. Deixei

o mundo; mas isto não é morrer, pois que vivo feliz no Paraíso, onde a misericórdia

divina recompensou o imenso amor que eu tinha à Paixão de Nosso Senhor e Salva-

dor Jesus Cristo.

 – Ó minha santa mãe, ó minha terna mãe, exclamou Henrique, amai-me sempre

no Céu, como fizestes na Terra, e não me abandoneis jamais nas minhas aflições!”A bem-aventurada desapareceu, mas seu filho ficou inundado de consolação60.

Em outra ocasião viu a alma de seu pai, que tinha vivido muito apegado ao

mundo. Apareceu-lhe cheia de sofrimentos e aflições, fazendo-lhe assim compreen-

der os tormentos que sofria no Purgatório, e pedindo-lhe o socorro das suas orações.

Henrique derramou tão ferventes lágrimas que alcançou quase logo a sua en-

trada no Paraíso, donde ele veio agradecer-lhe a sua felicidade.61 

59 Oeuvres du B. Henri Suso, traduzidos por Cartier, prólogo p. XIII.60 Idem, idem, Vida, no. 39.61 Ib., Vida, no. 8.

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Os gauleses poderiam reivindicar, quase tanto como os italianos, o Anjo da es-

cola. A alma de S. Tomás de Aquino não estava absorvida pela ciência, mas a cari-

dade conservava em seu coração um lugar distinto para seus irmãos e irmãs segundo

a natureza.

Durante a sua estada em Paris, uma de suas irmãs lhe apareceu para dizer-lhe

que estava no Purgatório. Pediu-lhe que dissesse um certo número de missas, espe-

rando que a bondade de Deus e a intercessão de seu irmão a livrariam das chamas.

O Santo pediu aos seus alunos que orassem e dissessem missas pela alma de

sua irmã.

Depois disto, quando ele estava em Roma, tornou-lhe a aparecer, dizendo que

estava livre do Purgatório e já gozava da glória do Céu, por virtude das missas que

ele tinha dito ou feito dizer.

“– E quanto a mim, minha irmã, exclamou o Santo, nada sabeis?”

 – Quanto a vós, meu irmão, sei que a vossa vida é agradável ao Senhor. Vireis

muito breve reunir-vos a mim; mas o vosso diadema de glória será muito mais belo

do que o meu.

 – E onde está meu irmão Landulfo?

 – Está no Purgatório.

 – E meu irmão Reinaldo?

 – Está no Paraíso entre os mártires, porque morreu pelo serviço da Santa Igre-

 ja62”.

 Na Espanha, encontramos S. Francisco Xavier, partindo para as Índias, e pas-

sando perto do castelo de seus pais. Excitaram-no para que entrasse em casa de sua

família, representando-lhe que, deixando a Europa para talvez nunca mais a ver, não

 podia honestamente dispensar-se de visitar os seus naquela ocasião, e de dizer um

último adeus a sua mãe que ainda vivia. Não obstante todas estas solicitações, o Santo seguiu caminho direto, e somen-

te respondeu que se reservava para ver seus pais no Céu, não de passagem e com o

 pesar que os adeuses causam ordinariamente, mas para sempre e com uma alegria

verdadeiramente pura63.

Encontramos a ilustre reformadora do Carmelo, a seráfica Teresa de Jesus.

Dentro das grades do seu convento, apesar da austeridade da sua vida, cultivava em

seu coração as puras afeições da família; e esperava que o Deus que promete o cên-

62  Acta sanctorum, VII martii, auctore Guillelmo de Troco, cap. VIII, no. 4563 Bouhours, La vie de Saint François Xavier , 1. 1.

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tuplo a quem deixar tudo pelo seu nome (Math., XIX, 29), lhe restituiria centuplicado

o amor dos seus parentes no Céu.

Uma tarde, Teresa, encontrava-se tão incomodada e aflita que julgava não po-

der fazer oração, e tomou o seu Rosário para orar verbalmente sem algum esforço de

espírito. Que fez Nosso Senhor para a consolar? Ela mesma no-lo diz por estas pala-

vras:

“Tinham decorrido apenas alguns instantes, quando um arrebatamento veio,

com irresistível impetuosidade, roubar-me a mim mesma. Fui transportada em espíri-

to ao Céu, e as primeiras pessoas que vi foram meu pai e minha mãe”64.

Sabeis, Senhora, que uma igual graça foi concedida à Senhora Acaria, que de-

 pois veio a ser carmelita no mesmo convento de Pontoise, onde uma de vossas irmãs

ora por vós e se santifica entre as filhas de Santa Teresa, e que é agora honrada sob o

nome de Beata Maria da Encarnação? Ela viu um dia seu esposo, um ano depois dele

ter falecido, no meio dos santos do Paraíso65.

Deus compraz-se em tomar o coração da esposa cristã, como recebeu em suas

mãos o pão no deserto (Marc. VI., 41), para o multiplicar, abençoando-o tantas vezes

quantas lhe dá filhos, que estão esfaimados do seu amor, aos quais ela deve saciar,

não só para glória do Senhor, mas também para a sua própria felicidade.

Santa Teresa louva uma piedosa senhora que, para ter posteridade, praticava

grandes devoções e dirigia ao Céu ferventes súplicas. “Dar filhos à luz que, depois da

sua morte, pudessem louvar a Deus, era a súplica que incessantemente dirigia ao

Céu. Sentia muito não poder, depois do seu último suspiro, reviver em filhos cristãos,

e oferecer ainda por eles ao Senhor um tributo de bênçãos e de louvores”.

A austera carmelita diz de si mesma:

“Penso algumas vezes, Senhor, que vos comprazeis em derramar sobre aqueles

que vos amam a preciosa graça de lhes dar, em seus filhos, novos meios de vos ser-vir.”

Diz ainda: “Demoro-me muitas vezes neste pensamento: Quando estes filhos

gozarem no Céu das eternas alegrias, e conhecerem que as devem a sua mãe, com

que ações de graças lhe não testemunharão o seu reconhecimento, e com que redu-

64 Vida de Santa Tereza, escrita por ela mesma, cap. XXXVIII.65 Boucher, Histoire de la B. Marie de l’Incarnation, publicada pelo Exmo. Bispo d’Orleans ; liv. VI, cap.

VI, t. II, 264, 265.

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 plicada ventura se não sentirá palpitar o coração desta mãe em presença da sua feli-

cidade!”66.

Eis o que pensaram, eis o que disseram, a respeito da família recomposta no

Céu, santos que têm direito à auréola da virgindade, e que passaram nalguma Ordem

ou comunidade religiosa quase toda a sua vida.

Livrai-vos, pois, de acreditar que o filho que, desde seus primeiros anos, se

consagra a Deus para sempre, olvide seu pai, sua mãe e seus irmãos. Pelo contrário, o

seu coração torna-se o depósito da caridade.

Se, pelas fendas das paixões, ela se escapasse de todos os outros para só deixar

neles a indiferença e o esquecimento, o seu guardaria este precioso tesouro para in-

cessantemente o derramar por todos os canais da virtude.

Tanto o religioso ancião, como o jovem, é ouvido muitas vezes pelo seu bom

anjo durante o silêncio do sacrifício ou da oração, dizendo ao Senhor:  Memento,

lembrai-vos de meus parentes que ainda vivem; memento, lembrai-vos de meus pa-

rentes que já morreram; e abençoai uns e outros para além de quanto o meu cora-

ção pode desejar.

Feliz mãe que tivestes a ventura de poder dar a Jesus dois filhos e duas filhas

 para glória do seu nome e amor do seu Coração; não temais que estes filhos sejam

infiéis ao quarto preceito da lei divina.

Frutos separados da família, os religiosos, voltam-se muitas vezes, pela mesma

força da sua tendência à perfeição da caridade, para a árvore que os produziu, a fim

de a louvar e abençoar. Todas as bênçãos, temporais ou espirituais, que lhe obtêm de

Deus, serão conhecidas somente no Céu.

66  Le livre des fundations, chap. XI, XX, XXII.

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III

Conformidade de sentimento e de linguagem em todos os lugares. – S. Ci-priano. – S. Teodoro Estudita. – Elogio que faz de sua mãe. – Cartas de consola-

ção que ele escreve. – Pura alegria dos esposos no Céu. – Santa Francisca Ro-

mana e seu filho Evangelista. – Alegria dos pais e dos filhos no Paraíso.

Mas esquecia-me de que prometera percorrer todo o horizonte da Igreja, para

vos mostrar a sua conformidade de sentimentos e de linguagem sobre todos os pon-

tos. Na África, eis S. Cipriano que foi educado no paganismo, e só abraçou a conti-

nência depois da sua conversão. Eleito Bispo de Cartago e condenado ao martírio,

consolou os fiéis por ocasião duma epidemia que então grassava e que os ameaçava

de morte. Que lhes disse ele? Dirigiu-lhes palavras que a Santa Igreja recorda aos

seus sacerdotes, na oitava da festa de Todos os Santos. Ei-las:

“Visto que vivemos na terra como estrangeiros e viajantes, suspiremos pelo dia

que nos conduzirá à nossa habitação e nos reintegrará no Reino dos Céus. Qual é

aquele que, estando exilado, não se apressaria a voltar à sua pátria?

Qual é aquele que, obrigado a regressar por mar aos lares pátrios, não desejaria

ardentemente um vento favorável, a fim de poder mais cedo abraçar aqueles que lhe

são queridos?

A nossa pátria é o Paraíso, e os patriarcas, nossos antepassados, já aí nos pre-

cederam. Apressemo-nos, pois, e corramos para ver a nossa pátria e saudar os nossos

maiores! Somos esperados por um grande número de pessoas que nos são queridas;

somos desejados por uma grande multidão de parentes, de irmãos e de filhos que,

seguros da sua imortalidade, se conservam ainda solícitos pela nossa salvação. Ir vê-

los, ir abraçá-los, ah! que alegria para nós e para eles!67”

Entre os gregos, em Constantinopla, um dos campeões mais intrépidos da orto-

doxia contra os iconoclastas do Oriente, S. Teodoro Estudita, tinha entrado em religi-

ão na idade de vinte e dois anos, sob a direção dum tio materno, a quem sucedeu no

governo. Teve a ventura de fazer, na presença de todos os religiosos, o elogio fúne-

 bre de sua mãe, panegírico que o cardeal Mai traduziu e publicou, elogio que um

67 S. Cipriano, De Mortalitate, in fine. – Brev.

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coração amoroso não pode ler sem uma profunda comoção. Apenas soube que a sua

enfermidade era mortal, escreveu-lhe uma carta afetuosa e consoladora, em que che-

gou a dizer:

“Ó minha mãe, se me retivessem somente cadeias de ferro, o amor que vos

consagro as quebraria, e teríeis a alegria de me ver ainda. Mas, vós o sabeis, outros

vínculos me retêm, vínculos que era indigno de gozar; e posso somente fazer-me

representar junto de vós, por alguém que vos é agradável e querido”68.

 No elogio que dela fez, diz que esta mãe, verdadeiramente cristã, ia todas as

noites, quando seus filhos estavam deitados, fazer sobre eles o sinal da cruz; conta

como ela levou após de si para a vida religiosa seu marido, três filhos, uma filha e

três cunhados; diz com que docilidade ela foi mais tarde submissa a ele próprio.

Teodoro termina a exposição das admiráveis virtudes desta heróica mulher, por

este brado dum coração ternamente filial:

“Oh, minha mãe e minha filha, oh vós que fostes duas vezes minha mãe, quan-

to desejo tornar-vos a ver! Vós habitais com todos os santos, no meio das solenidades

e das alegrias do Céu; habitais com os nossos irmãos que tanto amáveis nesta vida.

Ah! não vos esqueçais de mim que sou o mais pequeno de vossos filhos; mas orai,

orai por mim com mais instância do que em tempo algum. Dirigi-me, fortalecei-me e

 preservai-me de todos os perigos do pecado. Visitai-me por uma presença espiritual –

Spiritali praesentia visita – e fazei ainda por mim o que fazíeis na minha infância:conduzi, observai como me levanto, como me deito, observai as agitações da minha

alma e do meu corpo, a fim de que, depois da presente vida, obtenha estar com meus

discípulos debaixo da vossa proteção, e ocupar um lugar convosco à direita de Jesus

Cristo nosso Deus”69.

Este ilustre confessor da fé consolou muitas famílias aflitas. A um pai que tinha

 perdido todos os seus filhos, escrevia:

“Vossos filhos não estão perdidos, mas antes existem sãos e salvos para vós; e

quando chegardes ao termo desta vida temporal, torná-los-eis a ver cheios da mais

 pura e santa alegria”70.

Também escrevia a uma viúva:

“O Deus que vos tirou do nada para dar-vos a existência, o Deus que vos con-

duziu a uma idade florescente para vos unir a um homem ilustre, saberá unir-vos

ainda outra vez a ele pela ressurreição. Olhai, pois, a sua partida como uma viagem.

 Não vos resignaríeis se um rei da terra a ordenasse? Resignai-vos, portanto, com esta

68 S. Teodoro Estudita, Epist. lib. I, epist. VI.69 Ibid., Epist., lib. I, ep. 29, Leoni orphanotropho70 Ibid., Oratio, XII, Laudatio funebris in matrem suam, no. 14

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ausência, pois muito bem sabeis que aquele que ordenou esta viagem é o verdadeiro

Rei, o único Rei do universo. Exorto-vos a isso, e espero que possuireis novamente

vosso marido no dia do Senhor”71.

A um homem que acabava de perder sua mulher dirigiu também as seguintes

linhas:

“Foi para junto de Deus que enviastes uma tão digna esposa; não será isto bas-

tante para vossa consolação? E que é o que deveis procurar agora? Deveis trabalhar

 para encontrar no Céu, no momento fixado pela Providência, esta excelente compa-

nheira que se regozijará convosco, por todos os séculos, na participação de bens ine-

fáveis”72.

Sem dúvida, aqueles que na terra se acharem ligados pelo vínculo matrimonial,

subindo ao Céu, serão como os anjos:  Neque nubent, neque nubentur  (Matth. XXII,30). Mas, despidos de toda a sensualidade, gozarão sempre do casto prazer do espíri-

to, e se recordarão que, na terra, não só foram dois corações num e duas almas numa,

como os primeiros cristãos (Act., VI, 32), mas também uma só carne, como os nos-

sos primeiros pais (Gen., II, 24; - Matth., XIX, 6).

 Na Itália, Santa Francisca Romana foi casada, teve filhos e, depois de viúva,

fez-se religiosa.

Despertando do sono ao romper da aurora de certo dia, levantava seu coração

 para Deus, e abaixava os olhos para sua jovem filha que dormia perto dela. De repen-

te, viu o seu quarto cheio duma nova luz, no meio da qual apareceu um de seus filhos

que, havia um ano, tinha falecido. A sua estatura e todo o seu exterior era o mesmo

que quando vivo; mas a sua beleza era incomparavelmente mais arrebatadora: cha-

mava-se Evangelista.

Este filho, sempre amoroso, aproximou-se de sua mãe, e saudou-a com profun-

do respeito e uma graça encantadora.

Que fez então Francisca, transportada duma inexplicável alegria? O que toda amãe teria feito: estendeu ávidos os braços para estreitar ainda uma vez contra o peito

este filho querido. E que lhe disse? O Céu é a lembrança de tua mãe:  Num matris

suae meminisset in coelis. 

 – “Ó minha mãe, respondeu Evangelista, vede se penso em vós e se vos amo!

 Não divisais um outro menino, de pé, a meu lado, duma beleza muito superior à mi-

nha? É meu companheiro no coro dos arcanjos, pois o meu lugar no Céu é no segun-

do coro da hierarquia angélica. Todavia, este arcanjo está colocado na glória em grau

superior ao meu, e contudo, Deus vo-lo dá. Deus vai deixa-lo ocupar junto de vós o

71 Ibid., Epist. 1, II. Ep. 110. Uxori Demochari. 72 Ibid., 1. II, ep. 186, Nicethoe spathario.

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meu lugar e o de minha irmã Inês que, muito brevemente, voará ao Paraíso, para aqui

gozar comigo das alegrias eternas. Este celestial espírito vos consolará na vossa pe-

regrinação, vos acompanhará assiduamente e permanecerá dia e noite ao vosso lado,

de maneira que o possais ver com os vossos próprios olhos”.

Este colóquio durou por espaço de uma hora; e, antes de se ausentar, o filho

 pediu a sua mãe licença para regressar ao Céu, deixando-lhe o arcanjo73.

Se já lestes a vida de Santa Francisca Romana, composta por um nobre e zelo-

so católico da vossa província, não podeis ignorar o importante papel que desempe-

nhou junto desta santa mulher, o arcanjo, este celestial companheiro, devido às ora-

ções dum filho que a precedera na pátria dos escolhidos74.

Deus é sempre admirável em seus santos (Ps. LXVII, 36). O que acabais de

ver, mostra que o não é menos pela delicadeza das consolações de que inunda o seu

coração, do que pela grandeza das provas ou dos milagres de que se serve para os

conduzir à perfeição ou para fazer brilhar a sua santidade. Em volta deles, disse um

orador francês, que foi confessor de Henrique IV, em volta deles estarão seus paren-

tes, seus amigos, seus aliados e todos aqueles que lhes forem iguais em glória: todos,

muito nobres, muito santos, muito sábios, muito opulentos, muito afáveis, muito e-

minentes, muito agradáveis de condição, de excelente temperamento, de belas manei-

ras, de inteligência, de coração, de discrição e de todas as virtudes; todos, lírios sem

más ervas, rosas sem espinhos, ouro sem liga, grão sem palha e trigo sem joio!

E, ainda que o seu número seja grande, todos se conhecem reciprocamente, e

conversam com tanta familiaridade como se o seu número fosse pequeno.

Então o filho agradecerá a seu pai a sã instrução que lhe tiver procurado, e a fi-

lha a sua mãe os bons exemplos que lhe tiver dado. Deus vos recompensa, minha

muito querida e digna mãe, dirá a filha, Deus vos inunda para sempre de felicidade

 por tantos cuidados, que tivestes de mim! Sois minha mãe e duplamente minha mãe; porque me destes a vida temporal e a eterna. Foi por meio de vós que a divina bon-

dade me tornou tão feliz.

 – Bendito seja Deus, minha filha, bendita sejas tu nele para sempre! A tua bem-

aventurança é um apanágio da minha, e esta é uma adição da tua; amemos o Senhor e

louvemo-lo incessantemente. Felizes as entranhas que te geraram e o seio que te a-

73  Acta sanctorum, IX martii, Vita Sanctae Franciscae, cap. III, nos. 21,22, 23.74 Vie de Sainte Françoise Romaine, pelo visconde Bussiére, cap. VI

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mamentou, e um milhão de vezes bendito ainda mais Aquele de quem possuímos

todas as coisas! Glória a Ele, honra, luz e bênção em todos os séculos dos séculos75.

Eis aqui, Senhora, a conversa que tereis, eis a felicidade que gozareis tantas ve-

zes quantos filhos tiverdes.

Todavia, Deus não se contentará somente com vos consolar pelas alegrias da

família que recomporá no Céu; mas ainda multiplicará vossas consolações pelas do-

çuras da amizade que ali transplantará.

75 Sermons sur lês principales et plus difficiles matières de la foi , pelo r. P. Cotou, da Companhia de Je-

sus, confessor e pregador ordinário do rei, reduzidos por ele mesmo à forma de meditações. – Rouen, 1926, Du

Paradis, meditação XXIa. 

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Q U I N T A C A R T A

Reconhecimento dos amigos ou a amizade no Céu

I

Todos os santos se têm comprazido no pensamento de reconhecer e amar

ainda no Céu os seus amigos. – Sentimentos do B. Etelredo. – Palavras do P.

Rapin. – Santo Ambrósio. – 0 Santo Cura d'Ars.

SENHORA,

Além do estreito círculo da família, pode a amizade estender a vasta esfera das

nossas afeições.

O Homem-Deus quis ter amigos na terra, e dignou-se reuni-los em volta de si

no Céu. A seu exemplo, os mais santos personagens deixaram dilatar o amor de seu

coração; todos tiveram amigos escolhidos entre mil, e todos se têm regozijado com o

 pensamento de os reconhecerem e amarem ainda na eterna glória.

Também escreveram admiráveis páginas a respeito da verdadeira e perfeita a-

mizade, que é toda espiritual. Apenas vos citarei uma que diz particular respeito ao

nosso assunto. É do bem-aventurado Etelredo ou Aelredo, contemporâneo de S. Ber-

nardo e abade da ordem dos Cistercienses, na Inglaterra. É uma conversa com um

amigo.

Aelredo. Suponhamos que não haja neste mundo pessoa alguma além de vós, eque todas as delícias, com todas as riquezas do universo, estejam à vossa disposição,

ouro, prata, pedras preciosas, cidades muradas, acampamentos fortificados por torres,

grandes edifícios, esculturas e pinturas. Suponhamos ainda que estejais restabelecido

no antigo estado, e que todas as criaturas vos sejam submissas como ao primeiro ho-

mem. Pergunto-vos: Todas estas coisas poderiam ser-vos agradáveis sem um compa-

nheiro?

Gualter. Não, por certo.

Aelredo. Mas se tivésseis somente um companheiro cuja língua ignorásseis,

cujos costumes desconhecêsseis, e cujo coração e espírito vos fossem ocultos?

Gualter. Se, por qualquer sinal, eu não pudesse saber se sim ou não ele era

meu verdadeiro amigo, desejaria antes estar só do que ter um tal companheiro.

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Aelredo. Mas se houvesse alguém a quem amásseis como a vós mesmo e que

vos amasse também do mesmo modo, sem que nenhum de vós o pudesse duvidar,

todas as coisas que até ali vos apareciam amargas não se vos tornariam doces e sua-

ves?

Gualter. Sim, certamente.Aelredo. Não será ainda verdade que quanto maior fosse o número de tais a-

migos, mais feliz vos julgaríeis?

Gualter. É muito verdade.

Aelredo. Eis precisamente a grande e admirável felicidade que esperamos go-

zar no Céu. Deus operará, Deus derramará, entre si e a criatura que tiver elevado ao

Paraíso, entre os graus, ou ordens que tiver distinguido, entre todos os predestinados

que tiver escolhido, uma tão grande amizade, uma tão grande caridade, que se ama-

rão reciprocamente como a si mesmos. Resultará deste mútuo amor o regozijar-se

cada um com a felicidade do próximo tanto como com a sua própria. Assim a felici-dade de cada um será comum a todos, e a soma destas bem-aventuranças, será pró-

 pria a cada um.

Ali nenhum pensamento será oculto, ali nenhuma afeição se dissimulará, tal é a

eterna e verdadeira amizade que tem princípio na terra e se completa no Céu; que na

terra pertence a um pequeno número, porque também aqui são poucos os bons, mas

que no Céu pertence a todos, porque todos ali são bons.

 Neste mundo é necessário experimentar nossos amigos, porque os sábios estão

misturados com os tolos; no Céu não há necessidade de se ser provado, porque todos

gozam duma perfeição angélica e quase divina.

Procuremos, pois, encontrar semelhantes amigos, que nos amem e a quem a-

memos como a nós mesmos, que nos descubram todos os seus segredos, e a quem

descubramos todos os nossos, que sejam firmes, estáveis e constantes em todas as

coisas.

Com efeito, pensais vós que se encontre alguém entre os mortais que não quei-

ra ser assim amado?

Gualter . Não creio.

 Aelredo . Se vísseis alguém, vivendo no meio dum grande número de

homens e tendo-os a todos por suspeitos, temendo-os mesmo como se qui-

sessem atentar contra a sua vida, não amando pessoa alguma e crendo não

ser amado por ninguém, não o consideraríeis o mais desgraçado de todos?

Gualter. Sem dúvida.

Aelredo. Não negareis, pois, que o mais feliz será aquele que habita e repousano coração daqueles entre os quais vive, que os ama a todos e que é igualmente ama-

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do, sem que esta suavíssima tranqüilidade seja diminuída pela suspeita ou repelida

 pelo temor.

Gualter. Muito bem, certissimamente.

Aelredo. Se é difícil que todos obtenham esta felicidade no presente, ao menos

o futuro no-la reserva; e julgar-nos-emos tanto mais felizes no Céu, quanto maior foro número de semelhantes amigos que tivermos na terra.

Antes de ontem passeava eu em volta do mosteiro, enquanto meus irmãos reu-

nidos e assentados formavam a mais amável companhia, e como se estivera no meio

das delícias do Paraíso, admirava as folhas, as flores e os frutos destas místicas árvo-

res. Não divisando nesta multidão pessoa alguma que não amasse, e de quem não

tivesse a segurança de ser amado, fiquei inundado duma tão grande alegria que exce-

dia a todos os prazeres deste mundo. Sentia o meu coração entornar-se em todos, e os

corações de todos entornarem-se em mim, de sorte que dizia com o Profeta:

“Oh! como é bom; oh! como é agradável viver unidos como irmãos (Ps.

CXX11, 1)”76.

Estes sentimentos do bem-aventurado Aelredo justificam estas palavras de um

autor mais moderno:

“Ah! se eu tivera expressões assaz ternas e fortes para descrever a doçura das

castas e espirituais amizades que terão lugar no Céu, onde não se amará senão pelo

espírito, e para explicar todas as santas ternuras, que os bem-aventurados terão uns

 para com os outros, e as comunicações amorosas em que os impuros vapores da car-

ne e todo o comércio vergonhoso dos sentidos não terão parte; que prazeres e que

delícias não faria eu sentir às almas puras que só aspiram ao gozo destas celestes

afeições, que farão uma das grandes felicidades da outra vida, porque estarão mistu-

radas com o gozo do mesmo Deus, e com as inefáveis doçuras de seus divinos abra-

samentos!

Que poderá aqui haver de delicioso aos sentidos que mereça ser comparado aestes prazeres? Se uma amizade sincera, honesta, fiel e inocente faz muitas vezes a

doçura desta vida, que fruto se não tirará destas espirituais amizades, que se pratica-

rão no Céu, acompanhadas de todas estas circunstâncias?

E se um amigo seguro e fiel pode, na terra, tornar um outro amigo feliz, qual

será a felicidade da vida eterna, onde todos os bem-aventurados serão verdadeiros

amigos?”77.

76 B. Aelredus, De spiritali amicitia, lib. 111.77 P. Rapin, La Vie des prédestinés dans la B. Eternité , cap. IX

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Ora, uma das alegrias destes verdadeiros amigos será reconhecerem-se na Igre-

 ja Triunfante, assim como na Igreja Militante é também uma das suas alegrias vaza-

rem o coração no seio uns dos outros.

Assim pensava Santo Ambrósio, quando comentava estas palavras de Nosso

Senhor: “Vós sóis meus amigos, porque vos revelei tudo o que aprendi de meu Pai”

(Joan., XV. 15).

“Por estas palavras, diz ele, deu-nos, o Salvador, a forma da amizade que de-

vemos seguir. É necessário que revelemos ao nosso amigo todos os segredos que se

encerram no nosso coração, e que não ignoremos também os seus. Abramos-lhe,

 pois, o nosso coração, e que ele nos abra igualmente o seu.

Um amigo nada tem de oculto. Se ele é sincero, patenteia o seu espírito, como

Jesus patenteava os mistérios de seu Pai”78.

Assim pensava esse humilde e santo padre de nossos dias, que foi um grande

apóstolo sem sair da sua pobre aldeia onde a multidão o visitava quando vivo e o

visita ainda depois da sua morte. Eis aqui algumas das suas consoladoras frases:

Com quem estaremos no Paraíso? Com Deus que é nosso Pai, com Jesus Cristo

que é nosso Irmão, com a Santíssima Virgem que é nossa Mãe, com os anjos e os

santos que são nossos amigos. Um rei dizia com bastante pesar em seus últimos mo-

mentos:

“É necessário, pois, que eu deixe o meu reino a fim de ir para um país onde não

conheço ninguém!

É que ele nunca tinha pensado na felicidade do Céu. É preciso desde já arran-

 jarmos verdadeiros amigos, a fim de os tornarmos a encontrar depois da morte; e não

teremos receio, como este rei, de não conhecermos ninguém”79.

 Não disse o próprio Salvador:

“Empregai as riquezas injustas em obter amigos, a fim de que, quando morrer-des, eles vos recebam nos eternos tabernáculos?” (Luc. XVI. 9).

78 Santo Ambrósio, De Officiis, liv. III, cap. XXII, no. 135.79 O Santo cura d’Ars, Vie de J. B. Marie Vianney, por Alfredo Monuin, liv. IV, cap. XV, homilia para a

última dominga do ano.

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II

Flor duma especial e santa amizade no Paraíso. – Durar assim para sem-

pre é também da verdadeira amizade, segundo S. Jerônimo. – A santa amizade

é o prelúdio ou o gozo antecipado do Céu, segundo S. Francisco de Sales. – Cé-lebre visão de S. Vicente de Paulo. – A continuação da amizade depois da morte

consolou S. Gregório Nazianzeno, Santo Agostinho e S. Cipriano.

Talvez vos pareça que só tenho falado, até aqui, dessa geral amizade que existi-

rá no Céu entre todos os religiosos que vivem na mesma comunidade. Mas não se

aplicará com mais razão, tudo o que tenho dito, a essa flor duma especial e santa a-

mizade, que o tempo vê algumas vezes germinar entre dois corações pela virtude dosangue de Jesus Cristo? Crede firmemente que esta flor, depois de ter feito as vossas

delícias na terra, continuará a exalar o seu perfume na bem-aventurada eternidade,

 para embalsamar a corte celeste e dar aos santos mais uma alegria.

Os doutores consideram ainda como essencial à amizade, o poder seguir-nos

assim até ao seio de Deus.

A afeição que não possa entrar onde nada penetrará que não seja puro, é indig-

na do nome de amizade. Diz S. Jerônimo:  Amicitia quae desinere potest, vera nun-

quam fuit  – a amizade que pode acabar nunca foi verdadeira 80. Logo que ela não

 pode ser eterna, não é real; desde que não merece durar sempre, só é aparente ou

impura.

A verdadeira, a sincera, a virtuosa e santa amizade sobrevive a todas as separa-

ções da morte, para reunir nas sublimidades do Céu, no ápice da bem-aventurança, os

corações e as almas que ela unia neste vale de lágrimas e de misérias.

Quem não leu estas linhas em que S. Francisco de Sales considera a verdadeira

amizade como prelúdio ou ante-gosto do Céu?“Se a vossa mútua e recíproca comunicação, diz ele, se transforma em carida-

de, em devoção, em perfeição cristã, ó Deus, quanto será preciosa a vossa amizade!

Ela será excelente, porque vem de Deus, excelente porque tende a Deus, excelente

 porque o seu liame é Deus, excelente porque durará eternamente em Deus.

Oh! como é bom amar na terra como se ama no Céu, e aprendermos a querer-

nos mutuamente nesta vida como nos queremos e nos amaremos eternamente na ou-

tra!

80 S. Jerônimo, Epist. I, class. epist. III, no. 6.

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O delicioso bálsamo da devoção destila-se dum dos corações no outro, por uma

contínua participação, de sorte que se pode dizer que Deus derramou sobre esta ami-

zade a sua bênção e a vida, por todos os séculos dos séculos. Esta casta união nunca

se converte senão em uma união de espíritos, mais perfeita e pura, imagem viva da

 bem-aventurada amizade que se exerce no Céu”81.

É um exemplo desta bem-aventurada amizade o próprio fundador e a fundado-

ra da Visitação. S. Vicente de Paulo foi dela testemunha, numa célebre visão que

refere nestes termos:

“Tendo esta pessoa (ele mesmo) notícia da perigosa enfermidade da nossa de-

funta, ajoelhou para orar a Deus por ela; e imediatamente depois, apareceu-lhe um

 pequeno globo como de fogo, que se elevava da terra, e ia reunir-se, na região supe-

rior do ar, a um outro globo maior e mais luminoso, e ambos reunidos se elevaram

mais, entraram e derramaram-se noutro globo infinitamente maior e mais luminoso

do que os outros; e foi-lhe interiormente dito que este primeiro globo era a alma da

nossa digna mãe (Santa Chantal), o segundo, a do nosso bem-aventurado pai (S.

Francisco de Sales), e o terceiro, a Essência Divina; que a alma da nossa digna mãe

se tinha reunido à do nosso bem-aventurado pai, e ambas a Deus, seu soberano prin-

cípio. Além disso, a mesma pessoa, que é um padre, celebrando a santa missa pela

nossa digna mãe, como se de repente tivesse recebido a notícia do seu feliz passa-

mento, e estando no segundo Memento em que se ora pelos mortos, pensou que faria

 bem em orar por ela; e viu novamente a mesma visão, os mesmos globos e a sua uni-

ão”82.

Quando a morte vos arrebatar alguma pessoa querida, não tenhais, pois, algum

escrúpulo de vos consolar, repetindo: Ela não me esquece; ora por mim e vela sobre

mim. Permanecemos unidas!

Assim se consolava S. Gregório Nazianzeno depois da morte de S. Basílio, seu perfeito amigo:

“Agora, dizia ele, Basílio está no Céu. É lá que oferece por nós os seus antigos

sacrifícios e recita pelo povo novas orações. Porque, indo-se desta vida, não nos dei-

xou inteiramente. Vem ainda algumas vezes advertir-me por meio de visões notur-

nas, e repreende-me quando me desvio do meu dever”83.

81 S. Francisco de Sales, Introduction à la vie dévote, IIIa. p., cap. XIX e XX.82 Abelly, Vie de saint Vincent de Paul, t. II, cap. VII.83 S. Gregório Nazianzeno, Oratio XLIII, no. 80.

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Santo Agostinho também se consolava do mesmo modo, depois que um dos

seus amigos foi transportado pela morte à eterna bem-aventurança. “É aí, escrevia

ele, que vive o meu Nebrídio, ele, meu doce amigo, ele, vosso filho adotivo, ó Se-

nhor! É aí que ele vive, é aí que sacia à vontade a sede da sabedoria. Contudo, não

 penso que ele esteja inebriado desta sabedoria até ao ponto de se esquecer de mim. E,

como se esqueceria ele, visto que vós mesmo, Senhor, vós, de quem se inebria o meu

amigo, vos lembrais de nós?”84.

A mesma consolação tomava um santo bispo, escrevendo a um santo Papa,

 prevendo a morte que não podia tardar em feri-los:

“Lembremo-nos um do outro, em toda a parte e oremos sempre um pelo outro,

adocemos nossos pesares e angústias com o nosso mútuo amor; enfim, se um de nós,

 por um efeito da bondade divina, preceder o outro no Céu, que a nossa amizade dure

ainda junto do Senhor, e que a nossa oração não cesse de solicitar a misericórdia do

nosso Pai, em favor dos nossos irmãos e irmãs”85.

III

Podemos mesmo excitar-nos ou animar-nos pela esperança de nos unirmos

a um amigo junto de Deus. – Grandes santos foram sensíveis a esta esperança. –

Confissão de S. Francisco Xavier. – União sobrenatural de dois corações. – Gra-

dação no parentesco espiritual das almas. – Fraternidade inteiramente espiritu-

al e de escolha.

Podeis ainda ir mais longe. Depois de vos terdes primeiramente consolado, de

alguma sorte, pela firme esperança de que a vossa amiga oraria mais eficazmente por

vós, se fosse a primeira a subir ao Céu, regozijar-vos-eis também de ali vos reunirdes

a ela com o pensamento, e lhe direis: Estaremos um dia reunidas no Paraíso, sim,

reunidas junto de Deus: quanto mais nos amaremos então!

Mas talvez se encontre alguém que tente repelir violentamente todos estes sen-

timentos dum coração amoroso, dirigindo-vos esta censura: “Quê! animar a vossa

coragem e excitar-vos a sustentar generosamente os combates deste mundo, em parte

 pela esperança de vos repousardes no Céu sobre o coração das pessoas que amais,

não será uma clara e grosseira imperfeição?”

84 Santo Agostinho, Confess., liv. IX, cap. III, no. 3.85 S. Cypriano, Epist ., LX, Cornélio, fin.

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Respondei que os maiores santos foram sensíveis, ainda mais do que vós, a esta

esperança, e que desejavam gozar, ainda na eternidade, dos castos abraços de seus

amigos. O apóstolo das Índias e do Japão confirma isto mesmo por sua confissão,

feita ao fundador da Companhia de Jesus.

“Dizeis, escrevia S. Francisco Xavier a Santo Inácio, no excesso da vossa ami-

zade por mim, que desejaríeis ardentemente ver-me ainda uma vez antes de morrer.

Ah! só Deus, que vê o interior dos nossos corações, sabe quão viva e profunda im-

 pressão causou em minha alma este doce testemunho do vosso amor para comigo.

Cada vez que me lembro dele, e isto acontece muitas vezes, involuntárias lágrimas

me rebentam dos olhos; e se a deliciosa idéia de que poderia abraçar-vos ainda uma

vez, se apresenta ao meu espírito (porque, por mais difícil que isto pareça à primeira

vista, não é coisa que a santa obediência não possa efetuar), encontro-me num instan-

te surpreendido por uma torrente de lágrimas que nada pode fazer parar”86.

“Peço a Deus que se nos não pudermos tornar a ver na terra, gozemos unidos,

na feliz eternidade, do repouso que se não pode encontrar na vida presente87. E efeti-

vamente, não nos tornaremos a ver na terra senão por meio de cartas; mas, no Céu,

ah! será face a face! E então, como nos abraçaremos!”.88 

Com efeito, quem poderá descrever os transportes de alegria que dois amigos

experimentarão, um pelo outro, no Céu, depois de se terem mutuamente excitado à

 perfeição, e de terem verificado estas palavras da Escritura: “O amigo fiel é um re-

médio que dá a vida e a imortalidade, e aqueles que temem o Senhor encontram um

tal amigo” (Eccl., VI, 16).

Escutai, sobre esta amizade dos santos, um autor que merece ser citado ainda

uma vez:

“Dominado, neste mundo o nosso coração pelas sensíveis impressões, e não

 julgando o mais das vezes senão por elas, nem sempre se dá conta exata das delíciasdesta união sobrenatural das almas. Admite-as pela fé, mas são-lhe mistério; mostra-

se-lhe ordinariamente insensível, porque as não compreende.

Algumas vezes, contudo, desprende-se do oceano da divina graça um como

raio que, rompendo a nuvem dos sentidos, vem iluminar certas almas privilegiadas e

dar-lhes um ante-gosto destas inefáveis uniões que são, à vista das da natureza, o que

seria um perfume emanado do Céu ao pé dos mais esquisitos perfumes da terra.

86  Lettres de saint François Xavier , traduzidas por A. M. F., t. II, p. 203, carta XCIII no. 3.87 Ibid., t. I, p. 161, carta XLIII, no. 4.88 Ibid., p. 8, carta II, no. 1.

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Vê-se algumas vezes, e mesmo não é raro, na vida dos santos, uma alma unida

a outra por uma destas misteriosas atrações, fortes e serenas, que admiram e confun-

dem a natureza.

A alma que assim ama, vê na sua amiga uma companheira duma beleza inex-

 plicável, cujos espirituais encantos ela aprecia como tipo divino, em conformidade

do qual fora feita. Vê nela a imagem de Deus, e só esta imagem; emprega todos os

meios, ofertas, sacrifícios e orações, para que ela se torne cada vez mais semelhante

ao modelo, para assim aumentar a sua amabilidade e amá-la ainda mais. São como

duas irmãs, saídas à luz no mesmo dia, do lado de Jesus no Calvário, pelos mais do-

lorosos sofrimentos.

 No Céu, este parentesco espiritual terá uma graduação análoga à da natureza:

uma hierarquia de pais, de filhos, de irmãos e de irmãs.

“Os bem-aventurados verão um pai em todo o homem que, pela efusão do seu

sangue, de seus suores e orações, os tiver, de perto ou de longe, gerado em Jesus

Cristo; e este homem contará tantos filhos muito amados quantas as almas que tiver

lucrado para o seu Deus.

Oh! quanto será bela esta paternidade! Quão ricos e preciosos serão os tesouros

da sua fecundidade!

O cego mundo apieda-se destas almas sobre-humanas que, calcando aos pés os

atrativos e as seduções da natureza, renunciam às alegrias mais legítimas da família;

e não vê que, em troco do seu sacrifício, Deus as dotará com uma outra família, que

lhes fará gozar duma felicidade e de consolação incomparavelmente mais doces do

que jamais sentiu alguma mãe da terra.

Um dia seremos testemunhas disto, e veremos quanto estas almas eram mais

dignas de inveja do que de compaixão. Assim, a glória terá a sua doce fraternidade,

formada entre duas ou mais almas por vínculos próprios e pessoais. Esta especialfraternidade nascerá primeiramente dessas ligações que uma comunidade de deveres,

de regras e de práticas, forma entre todos os filhos do mesmo pai ou da mesma mãe

espiritual.

 Nascerá, em segundo lugar, daquelas cadeias mais particulares que uma comu-

nhão de boas obras e de orações forma por si entre duas almas, unidas uma à outra

 por um atrativo comum para com Deus: simpatia de todo o ponto celeste, afeição

inteiramente divina de dois corações, dando-se o ponto de reunião no Coração de

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Jesus, cioso da perfeição um do outro, e pondo todo o ardor do seu zelo em procurá-

la e aumentá-la”89.

Tendes admirado, Senhora, tendes abençoado esta fraternidade inteiramente

especial, esta doce e santa amizade, unindo sob a vossa vista maternal, duas almas

que pareciam ser-vos igualmente queridas, e que honravam a Virgem das Virgens

mais ainda imitando a sua piedade do que possuindo o seu nome.

Agora que uma delas, vossa filha por natureza, subiu ao Céu, a outra ficou jun-

to de vós como filha por adoção. A sua presença é-vos deliciosa, como muitas vezes

me dissestes, porque crêdes encontrar nela a vossa filha muito querida. Encontrá-las-

eis unidas no Paraíso, encontrá-las-eis continuando a santa intimidade da sua recí-

 proca afeição, encontrá-las-eis, finalmente, rivalizando para convosco em respeito e

amor.

A vossa própria felicidade aumentará muito à vista desta venturosa união.

89 Marcos, Le Ciel, apêndice, IIIa. questão.

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S E X T A C A R T A

O homem conhece os anjos, ou a união dos anjos e dos homens

no Céu

I

Deus renovará o Céu e a terra para que gozemos dos seres mate-

riais. – Comparação de S. Tomás. – Comparação de S. João Crisósto-

mo. – Quanto mais nos fará ele gozar dos puros espíritos ! – No Céu,

estaremos colocados entre os anjos. – As crianças formarão como que

um décimo coro. – Visão de santa Francisca Romana.

SENHORA,

Deus não se contenta de nos conceder somente a bem-aventurança essencial, a

visão e o gozo do bem incriado, que é Ele mesmo.

Está tão longe de nos recusar a parte da bem-aventurança acidental, que é o co-

nhecimento e o amor dos nossos parentes e amigos, que multiplicará as alegrias e

 prazeres para os olhos, língua, gosto, olfato, tato e ouvidos; numa palavra, para todos

os sentidos do nosso corpo90. “Renovará mesmo o Céu e a terra” (Isai. LXV, 17). –

(Apoc., XXI, 1) para que gozemos tanto pelos nossos sentidos como pelo nosso espí-

rito, dos seres privados de razão.

“Se os corpos, disse S. Tomás, nada mereceram por si mesmos, mereceu o ho-

mem por eles: mereceu que a glória lhes fosse dada, para aumentar a sua própria gló-

ria. Assim, quando alguém adquire uma nova dignidade, é justo que os seus vestidos

recebam mais belos ornamentos em testemunho da sua nova glória”91.

S. João Crisóstomo emprega duas outras comparações. “Quando um príncipe

real, diz ele, toma posse do trono paterno, a ama que o criou não receberá novos be-

nefícios, novas graças? Ora, as criaturas materiais, são nossas amas. Quando um fi-

lho deve aparecer em público revestido de alguma dignidade, não tem o pai cuidado

 para honrá-lo, de dar a seus criados um vestuário mais esplêndido? Assim também

90 Belarmino, De aeterna felicitate sanctorum, liv. IV, cap. V-VIII – Drexelius, Caelorum Beatorum civi-

tas, liv. II, cap. I-V.91 S. Tomás, Summ, supp., q. 91, art. 1, ad. 5.

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quando o nosso Pai celeste nos apresentar no mundo superior, com a branca toga da

virilidade, com as insígnias devidas ao nosso grau, aumentará a nossa glória, reves-

tindo dum brilho incorruptível os seres materiais que são nossos servos”92.

Quanto mais devem gozar os santos, assim antes como depois da ressurreição

 bem-aventurada, dos puros espíritos que dominam as outras criaturas, e com os quais

temos, por parte da nossa alma, um verdadeiro parentesco? Nós já os amamos e hon-

ramos. Mas, além disso, então vê-los-emos e cada um de nós conhecerá o seu amável

guarda.

Seremos colocados no Céu entre os coros angélicos, num lugar determinado

 pelo grau dos nossos merecimentos ou pela natureza das nossas virtudes93. O quarto

abade de Claraval, pregando de S. Bernardo, no ano de 1163, recordava-o aos religi-

osos como coisa conhecida de todos, e mostrava-lhes como o seu glorioso predeces-

sor merecia ser provido a todas as ordens ou graus angelicais, pelas qualidades que

desenvolvera e pelos ministérios que cumprira94.

S. Tomás crê que algumas almas bem-aventuradas já têm os seus tronos nas

graduações mais elevadas dos espíritos celestes, donde vêem a Deus mais claramente

do que os anjos inferiores95. Nenhum coro angélico será excetuado; mas todos ve-

rão, cedo ou tarde, os tronos vagos pela queda dos espíritos rebeldes ocupados pelos

homens.

S. Boaventura partilha esta opinião, e pensa que os bem-aventurados que não

chegam em merecimento ao nível dos anjos menos elevados em glória, formam uma

décima ordem ou um décimo coro96.

 Neste estão, sem dúvida, colocados os meninos que, arrebatados pela morte,

não puderam ajuntar algum merecimento pessoal à graça do seu batismo: anjos ben-

ditos a quem suas mães invocam para se consolarem da pena de os não verem mais

neste mundo, e que são os protetores de suas famílias.Portanto, de que mal se tornam culpadas tantas mulheres cristãs que recuam di-

ante das dores do parto ou dos trabalhos da educação! E de que alegrias se não pri-

vam elas para sempre, recusando povoar o Céu de pequenos anjos, que viriam saudá-

las à sua entrada na glória e formariam eternamente a sua corte?

92 S. João Crisóstomo, In Rom. Hom. XIV.93

  Potho, presbítero Prumiense, de Statu domus Dei, liv. IV, cap. XIV. – De Barry,  La Dévotion auxanges, cap. III. – Santa Catarina de Senna, Le Dialogue, cap. XLI.94 Gaufredo, Sermo in anniversario obitus sancti Bernardi, no. 18-21.95 S. Tomás, Summ. 1ª., 2ª., q. 4, art. 5 ad 6.96 S. Boaventura, in lib. II Sentent., Dist. IX, art. unic., q. VII.

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Enquanto vós, mais feliz, vereis os vossos numerosos filhos, os vossos parentes

e todos aqueles que amastes na terra, engrossar as fileiras dos anjos e ornar talvez

cada um dos seus coros. Possa esta esperança consolar-vos, como consolou uma ou-

tra mãe aflita por causa da morte dos seus!

 Numa visão, Santa Francisca Romana viu subir algumas almas bem-

aventuradas que iam tomar lugar no grau que Deus lhes assinalara na glória eterna:

Todos os coros angélicos que estas almas atravessavam para chegar a uma ordem

mais elevada, prodigalizavam-lhes os testemunhos do mais sincero amor e da mais

viva alegria.

Sempre assim é. Mas o coro onde a alma novamente chegada ocupa um trono,

excede todos os outros em brilhantes felicitações e em transportes de alegria. Entoa

um cântico de louvores e ações de graças em honra do Deus de bondade, e prolonga

esta doce festa por muito tempo depois dela ter cessado nos outros coros.

Depois desta visão, todas as vezes que a Santa queria exprimir esta alegria dos

anjos à chegada das almas bem-aventuradas, com esta admirável união da criatura

humana com a criatura angélica, o seu rosto inflamava-se, e toda ela parecia derreter-

se como a cera em presença do fogo97.

Com que alegria não terá sido acolhida, e até que ponto não terá subido a alma

da vossa filha que possuía o nome da Rainha dos Anjos, e que foi ela mesma, na ter-

ra, um anjo de pureza e dedicação? Todas os dias ela pedia a vossa bênção, e à vista

do seu retrato ainda a vossa mão se levanta para a abençoar.

Agora é ela que, todos os dias, faz descer do alto do Céu, as bênçãos que pede

 para vós ao Senhor, todas aquelas que os santos desejam, bênçãos de sofrimento e de

cruz, mas de paciência e de amor ao mesmo tempo. Gozai, pois, da sua felicidade

que deve ser a vossa; porque Maria está mais bem colocada no Céu do que na terra,

melhor entre os anjos do que entre os homens.

97 Acta Sanctorum, IX, martii, Acta sanctae Franciscae, lib. III, cap. IX, no. 91.

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II

Não estaremos mais absortos do que os anjos, na contemplação

do Criador. – Como eles, contemplaremos as criaturas, e poderemosentreter-nos com elas. – Veremos os condenados. – Reconhecer-nos-

emos tão facilmente como se reconhecem os puros espíritos. – Nada

teremos de ocul to, segundo S Bernardo, S. Gregório e Santo Agosti-

nho. – Todavia os nossos pensamentos, assim como os dos anjos, não

serão conhecidos contra nossa vontade.

Esta mistura dos homens e dos anjos nas mesmas hierarquias e nos mesmos co-

ros, permite-nos responder a algumas dificuldades, cuja solução parece estar na se-

melhança que teremos com os puros espíritos.

 Não existe motivo algum pelo qual devêssemos estar mais absortos na contem-

 plação de Deus do que os próprios anjos. Desde o momento em que eles foram con-

firmados na graça, gozaram duma perfeita bem-aventurança e ficaram arrebatados de

admiração em presença da glória e da majestade do Criador. Não se distraem d'Ele,

quando lhes mostram as criaturas que são obra sua, e que Ele lhes permitiu contem-

 plar e admirar, e quis mesmo que as conduzissem e governassem.

 Não estão distraídos, quando nos acompanham durante a nossa peregrinação

neste mundo, para nos guardar e sustentar no bom caminho. Não o estão, finalmente,

quando se interessam pela conversão dum pobre pecador a ponto de se regozijarem

mais da sua volta para Deus do que da perseverança de noventa e nove justos (Luc.,

XV, 7, 10).

Da mesma sorte, diz Ansaldo, por mais ocupados que estejamos no Céu, da

glória e da imensidade do Soberano Bem, poderemos ainda ocupar-nos de todos osnossos amigos; não só dos que tiverem ficado na terra, mas também dos que partici-

 parem da nossa felicidade.98 

Esta mesma caridade que, na terra, eleva o homem mortal da criatura ao Cria-

dor, o fará inclinar-se das sublimidades da Pátria para o mundo inferior, quando se

tiver tornado imortal e glorioso, assim como impele os anjos fiéis a descerem do Céu

à terra, do Criador à criatura.

O argumento que resulta desta semelhança foi desenvolvido por S. Bernardo:

98 Ansaldo, Della sperança..., cap. X.

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“Os espíritos superiores, que desde todo o princípio estão no Paraíso, despreza-

rão a terra porque habitam o Céu? Não. Visitam-na, pelo contrário e a freqüentam.

Por isso mesmo que vêem sempre a face do Pai celeste, não se desempenharão mais

do ministério da compaixão?

Todos eles são enviados, diz o Apóstolo, para exercerem o seu ministério em

favor daqueles que recebem a herança da salvação (Hebr., 1, 14). Como assim? Pois

se os anjos vão e vêm para socorrer os homens, os bem-aventurados, que são da nos-

sa raça, não nos conheceriam nem poderiam mais condoer-se de nós em certas cir-

cunstâncias em que eles mesmos tiveram que sofrer?! Os espíritos, que nunca expe-

rimentaram dor alguma, sentem contudo as nossas dores; e os santos que passaram

 por grandes tribulações, não reconheceriam já o estado em que estiveram?!”99 

O Anjo da Escola, S. Tomás, demonstra que nem a contemplação da Essência

Divina impedirá os bem-aventurados de sentirem as coisas sensíveis, de contempla-

rem as criaturas, e mesmo de operarem; nem este sentimento, esta contemplação e

esta ação, os distrairá da beatífica vista de Deus. Não se daria isto em Nosso Senhor

durante a sua peregrinação na terra?100. Sem nada perderem deste divino gozo, os

 bem-aventurados poderão conversar com os seus parentes, com os seus amigos e

com os mesmos anjos, como estes conversam entre si.

Quando aplicamos fortemente, neste mundo, uma das nossas faculdades a um

objeto difícil, todas as outras ficam sem força e ação. Mas, no Céu, cada uma das

nossas potências terá toda a plenitude da perfeição de que é capaz.

A inteligência dos santos será iluminada pela luz da glória, e a sua vontade será

fortificada pela pátria sobrenatural da caridade, a tal ponto que nenhum esforço terão

a fazer para nunca perderem de vista a Divindade; mas contemplando-a e amando-a

inteiramente, lhes será fácil também contemplar os globos celestes, conversar com os

escolhidos e amar todos os bem-aventurados, como nos é fácil e natural neste mundover a luz, conversar ao mesmo tempo com os nossos parentes ou amigos, e amá-los

ternamente101.

Mas os santos verão os condenados e os condenados verão os santos? Reco-

nhecer-se-ão ao menos no juízo final. A Escritura não nos permite duvidá-lo, pois

que nos mostra os maus exclamando, em presença dos bons: “São estes que outrora

foram o objeto das nossas zombarias! Quão insensatos éramos!” (Sap., V, 3, 4.)

99 S. Bernardo, in Natali sancti Victoris, sermo II, no. 3.100 S. Tomás, Summ., IIa. p, q. 84, art. II, 4.101 Ansaldo, Della speranza..., cap. X.

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Segundo Honório, os justos verão os pecadores nos tormentos, para se regozi-

 jarem mais de se terem livrado deles.

Também os condenados, antes do juízo universal, verão os justos na glória para

mais se afligirem de a terem desprezado. Mas os bons verão sempre os maus nos

suplícios depois do juízo, entretanto que os maus nunca mais tornarão a ver os

 bons.102 Não se deve, porém, concluir daqui, que a bem-aventurança seja tanto uma

visão do inferno, como do Céu.

Só Deus pode ver tudo ao mesmo tempo. Os santos, bem como os anjos, não

contemplam incessantemente as simples criaturas, nem todas ao mesmo tempo. Eles

não vêem, pois, sem interrupção, as horríveis torturas dos condenados. O Senhor

mesmo desvia delas, quando lhe apraz, os seus pensamentos e os seus olhos.

Os anjos não têm feição alguma corpórea, e todavia reconhecem-se entre si,

tanto como as três divinas Pessoas. Não podemos negar o fato, ainda que ignoremos

o modo.

Porque não admitiremos igualmente este reconhecimento entre as almas dos

 bem-aventurados, antes da ressurreição da carne? Porventura a alma de Jesus Cristo

morto e sepultado, quando desceu ao limbo, não foi reconhecida dos patriarcas, dos

 profetas e de todos os justos do Antigo Testamento de quem ela se dignava ser con-

soladora? E como os teria consolado, se não fosse vista, ouvida e reconhecida por

eles?

Pode mesmo dizer-se com Monsenhor Malou, cujas palavras citamos na carta

que serve de introdução a este livro:

“As almas despojadas de seus corpos revestem formas intelectuais que as inte-

ligências separadas da carne podem perceber, distinguir e conhecer”.

Finalmente, até que ponto se conhecem os santos entre si? 0 abade de Claraval

diz em geral: “Os bem-aventurados então ligados entre si por um amor tanto maiorquanto menor é a distância em que se acham do próprio amor que é Deus.

 Nenhuma suspeita pode introduzir a divisão nas suas fileiras, porque entre eles

nada há de oculto: o raio da verdade que tudo penetra não o permite”103.

Antes de S. Bernardo, tinha dito um grande papa, que o coração dos bem-

aventurados será brilhante como o ouro, e transparente como o cristal, de sorte que se

conhecerão entre si melhor no Céu do que durante a sua vida na terra104.

102 Honório d’Autum, Elucidarium, liv. III, no. 3.103 S. Bernardo, In Dedication e Ecclesiae, sermo I, no. 7104 S. Gregório Magno, Moralium, liv. XVIII, cap. XLVIII, no. 77, 78

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Antes de S. Gregório, dizia também o ilustre Bispo de Hipona: “Nesta socieda-

de dos santos, verão todos reciprocamente os pensamentos que só Deus vê agora.

Assim como quereis que neste mundo se veja o vosso rosto, também querereis que

no outro se veja a vossa consciência105. Todos os espíritos bem-aventurados forma-

rão somente uma cidade, um coração e uma alma; e, nesta perfeição da nossa unida-

de, os pensamentos de cada um de nós não serão ocultos aos outros”106.

Contudo, a condição dos homens não deve diferir, sob este ponto de vista, da

condição dos anjos. Ora, um sábio teólogo prova que estes puros espíritos têm uma

linguagem que, sem ser sensível ou corporal, é todavia mui inteligível; mas que os

seus pensamentos não chegam ao conhecimento uns dos outros, senão tanto quanto

eles querem. É necessário que um ato da sua vontade dirija este pensamento ou esta

“palavra espiritual” àquele a quem lhe agrada que seja conhecida. Podem assim falar

a uns sem falar a outros e sem ser entendidos ou compreendidos por todos. Pois a

linguagem angélica não parece ser outra coisa mais do que o destino ou a direção

dum pensamento, por um ato de vontade a algum destes puros espíritos que só então

o conhece107.

III

Cada um de nós reconhecerá o seu anjo da guarda, e se-

rá também reconhecido por ele. – Alegria que disto re-

sultará. – Os santos comparados por Dante com as flo-

res e os anjos, com as faíscas. – Todos os santos com-

parados a uma rosa somente, e os anjos, às abelhas. – 0

Céu comparado por Jesus Cristo a um banquete. – Tro-

ca recíproca entre os anjos e os santos.

As doçuras da santa união formada na Pátria Celeste entre os anjos e os ho-

mens, foram-nos desenhados pelos grandes gênios católicos.

S. Tomás de Aquino faz-nos perceber que os anjos põem uma parte da sua feli-

cidade em reinar cada um com o bem-aventurado que lhe foi confiado, em assentar-

se no mesmo trono, em cingir-se, por assim dizer, com a mesma coroa e em fazer

 juntamente com ele um só coração e uma só alma: pois que todo o homem deve ter

105 Santo Agostinho, Sermo CCXLIII , cap. 5106 Santo Agostinho, De bono conjugali, cap. XVIII, no. 21.107 Petau, De Angelis, liv. I, cap. XII, nos. 7 e 11.

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no Céu um anjo para reinar com ele, ou, no inferno, um demônio para o atormentar –

 Habebit in regno Angelum conregnantem, in inferno daemonem punientem108.

S. Boaventura diz-nos que a alegria do anjo aumentará pela bem-aventurança

do homem que guardou na terra, não só quanto à extensão, visto que cresce o número

daqueles com cuja glória se regozija, mas também quanto à mesma intensidade. É

verdade que esta não se deve entender da recompensa essencial, mas somente da

acidental. Ela explica-se pelo próprio bem dos anjos, pelo bem das criaturas santifi-

cadas que eles amam ternamente, e sobretudo pelo bem daquela que lhes está mais

intimamente unida, porque foram os ministros da sua salvação e fizeram por ela mi-

lhares de ações boas. Por isso se regozijam e se felicitam109.

Então efetuam-se, entre o anjo da guarda e o bem-aventurado que ele conduziu,

mistérios de amor que não podemos ver nem compreender enquanto as sombras des-te mundo não forem dissipadas pelos esplendores dos Céus. O espírito faz passar,

 perante o homem, o comovente quadro de todos os seus esforços para contê-lo no

 bem, e conduzi-lo à perfeição; desenrola na sua presença todo o plano da Providência

a respeito da obra da sua salvação. O santo responde ao espírito celeste, testemu-

nhando-lhe mil vezes o seu reconhecimento, recordando a confiança com que se lhe

recomendava, assegurando-o de que este feliz passado está sempre na sua memória, e

que estas doces lembranças são um perfume que ainda respira com delícias, no meiomesmo das alegrias do Paraíso.

Muitas vezes, nestes amáveis entretenimentos, o anjo e o homem inclinam-se

um para o outro, sob o impulso deste sopro divino que se denomina caridade da pá-

tria, e do coração de um para o outro a efusão daquela penetrante alegria, que é se-

melhante ao orvalho do Céu.

Assim, nos jardins terrenos, vêem-se, sob a ação duma doce brisa, duas flores

vizinhas inclinarem-se uma para a outra como para se darem o beijo da paz e con-fundirem os seus tesouros.

O grande poeta que tão admiravelmente descreveu o Paraíso, tem pois, ainda

mais uma vez razão.

Por uma parte, mostra que os homens se conhecem reciprocamente no Céu,

quando mesmo se não tenham conhecido na terra. S. Tomás reconhece o seu mestre

Alberto Magno; mas conhece também Dionísio Areopagita, Beda e Isidoro. S. Bento

reconhece os seus discípulos, e o príncipe dos Apóstolos reconhece S. Tiago; mas o

108 S. Tomás, Summ., I, p., q. 113, art. 4.109 S. Boaventura, in lib. II Sentent. Dis XI , art. II. q. 2.

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grande abade de Claraval conhece também o pai da humanidade, Adão; e o pai da

Igreja, Simão Pedro, com S. João, Santo Agostinho e com muitos outros que não

 pode conhecer na terra. Por outra parte, os anjos e os homens também se conhecem

entre si. S. Bernardo conhece o arcanjo Gabriel, e todos os puros espíritos conhecem

a incomparável Virgem Maria, Mãe de Deus110.

Umas vezes, este poderoso gênio figura-se o Céu como um jardim onde passa

um rio de resplandecente luz, entre duas margens matizadas duma admirável prima-

vera. Deste rio de luz saem vivas faíscas, que de todas as partes vão pousar nas flo-

res, semelhantes a rubis engastados em ouro. Depois, como inebriados de perfumes,

remergulham-se no brilhante pego, e quando uma aqui entra, sai outra. Estas faíscas

são os anjos, e os santos são as flores.

Outras vezes, diríeis que é inspirado pela bênção dessa rosa que nos recorda

todas as Jerusalém, e nos convida a figurar pela alegria da Igreja Militante o prazer

da Igreja Triunfante111.

Representa-se o Paraíso como uma rosa branca, exalando um perfume de lou-

vor ao sol que produz uma eterna primavera.

Com efeito, porque os bem-aventurados chegados da terra estão colocados em

círculo sobre mais de mil degraus e como este círculo se alonga à medida que os de-

graus se elevam, esta coordenação faz lembrar a forma da rosa, cujas pétalas aumen-

tam de elevação à medida que se afastam do centro, onde se desabrocham os jal-

des(112) filamentos.

“Eis porque, diz ele, se me mostrava, na forma duma rosa branca, a milícia san-

ta que Jesus Cristo desposou ao derramar o seu sangue.

Mas os anjos que, voando duma para outra parte, não cessam de ver e de cantar

a glória do seu Criador, tinham o semblante radioso de chamas, as asas de ouro, e o

resto do corpo mais branco do que a neve. Sobre qualquer degrau que pousassem, aíentornavam as doçuras da paz e as chamas do amor. Ora desciam para a grande flor,

ornada de tantas folhas, ora subiam para a constante habitação do seu amor, isto é,

 para o Coração de Deus, bem como um enxame de abelhas que umas vezes se engol-

fa nas flores, e outras se volve à sua morada onde o seu trabalho se dulcifica”113.

Senhora, podeis, sem temor, recorrer a estas poéticas imagens, para vos repre-

sentardes a santa sociedade dos anjos e dos homens.

110 S. Boaventura, in lib. II Sentent., dist. XI, art. II, q. 2.111 Inocêncio III, Sermo XVIII, Dominica Laetare sive de Rosa.112 Amarelo vivo; cor de ouro.113 Dante, Le Paradis, cantos XXX e XXXI.

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Quando se trata do Céu e da felicidade que nele se goza, todas as imagens ter-

renas de que nos sirvamos como termo de comparação nada exageram. Antes, ficam

muito abaixo da realidade. Demais, não foi o mesmo divino Mestre que se serviu

duma imagem terrena, quando comparou o Céu a um banquete? (Luc., XXII, 29)

Assim como os sete filhos de Job se convidavam alternativamente, cada um em

seu dia, para um esplêndido festim (Job, I, 4), também, no Paraíso, os filhos de Deus

se convidam uns aos outros para participarem de suas felicidades.

Grande devia ser o amor recíproco dos filhos de Job, para que pusessem em

comum todas as suas riquezas; mas quanto não excede o mútuo amor dos anjos e dos

santos ao amor fraternal cá na terra!

Qual, pois, não será a magnificência do banquete a que é convidado cada um

dos coros dos anjos por cada coro dos santos que, deste vale de lágrimas, subiram às

eternas colinas da Pátria!

Belo Céu, delicioso banquete, onde os Querubins e os Serafins fazem circular,

como precioso licor e vivificante maná, a manifestação dos segredos divinos, os es-

 plendores das suas contemplações e o ardor e afeto do seu amor; onde os Tronos, as

Dominações, os Principados, as Potestades, as Virtudes, os Arcanjos, os Anjos e os

homens, patriarcas, confessores e virgens se derramam alternativamente no coração

uns dos outros, como numa taça encantada que sempre transborda e sempre conserva

o seu conteúdo, o vinho de Deus, o vinho da sabedoria e da pureza, o vinho do reco-

nhecimento e da alegria!

Assim nas sublimidades dos Céus, sob as vistas do Pai de família, todos os seus

filhos, não só os puros espíritos, mas também os que estiverem envolvidos num véu

de carne, se conhecem, estimam, amam e entretêm numa perpétua comunicação, nu-

ma recíproca permutação de glória, de felicidade, de luz e de amor.

Todos estes astros que brilham no firmamento da eternidade, sem nunca teme-rem o eclipse, cruzam os seus raios e os seus fogos, inundam-se reciprocamente do

seu brilho, e parecem nadar num oceano de esplendores.

Todos estes instrumentos animados que não cessam de retinir sob o impulso do

divino amor, formam um harmonioso mar, em que as ondas se confundem recipro-

camente, as vagas mais fortes se unem às mais fracas para enriquecê-las e fortificá-

las, a fim de que os seus movimentos, semelhantes aos das vagas regulares e irresis-

tíveis, invadam, abalem e arrebatem tudo para Deus.

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S É T I M A C A R T A

Conclusões práticas

I

O conhecimento das criaturas, comparado ao do Criador, é muito diminu-

to. – É todavia uma parte da bem-aventurança acidental. – Os bem-aventurados

sabem todos os mistérios do passado, e deles se regozijam. – Sabem especial-

mente o que se refere aos seus parentes e amigos. – Nuvem luminosa dos teste-

munhos que o provam. – Os contraditores fazem um grande mal.

Tudo quanto vos tenho escrito até aqui não deve fazer-vos esquecer que a es-

sência da bem-aventurança é a clara visão ou a intuição do próprio Deus.

O conhecimento das criaturas, acrescentado ao do Criador, parece aos bem-

aventurados menos do que uma gota de água lançada no mar. Eles dizem com o filho

de Amós: “Todas as nações, todas as famílias dos homens, dos anjos e dos astros,

não podem, de modo algum, comparar-se com Deus; elas estão na sua presença como

se não estivessem, e pesam tanto na sua balança como se não existissem”. (Is., XL,15, 17)

Dizem ainda com o filho de Mônica: “Senhor, Deus de toda a verdade, quão

desgraçado é o homem que conhece todas as criaturas, e não vos conhece a Vós!

Quão afortunado é todo aquele que vos conhece, quando mesmo não conheça mais

coisa alguma! Aquele que une estas duas ciências, a do Criador e a das criaturas, não

vê aumentar a sua felicidade pelo conhecimento dos seres criados; mas só Vós, ó

meu Deus, o tornais feliz”

114

. Nem por isso é menos verdade, como creio ter-vos suficientemente demonstra-

do, que uma parte da bem-aventurança acidental reservada pelo Senhor a todos os

seus escolhidos, consiste no conhecimento das criaturas.

É este um belo ponto de meditação, que o célebre P. Coton não receava de pro-

 por a uma rainha de França115, e que um beneditino também propunha aos seus reli-

giosos para os consolar no momento da morte116.

114 Santo Agostinho, Confissões, liv. V, cap. IV, no. 7.115 Sermons sur les principales et plus difficiles matières de la foi, feitos pelo P. Coton, e reduzidos pelo

mesmo à forma de meditações. Du Paradis, medit. XXI, profits, no. 14.

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Os bem-aventurados sabem todos os mistérios do passado, e alegram-se com

um espetáculo que muitas vezes nos entristece.

“Que direi, escrevia um sábio e piedoso cardeal, tratando da eterna felicidade

dos santos, que direi do decurso dos tempos e dos séculos, desde o seu princípio até

ao fim? Que deleite não causará aos escolhidos a lembrança de tantas vicissitudes emudanças entre as coisas que a inimitável Providência governa com sabedoria e con-

duz a seus fins? Lá haverá esta impetuosidade do rio, que tão maravilhosamente ale-

gra a Cidade de Deus – Fluminis impetus laetificat civitatem Dei! (Ps. XLV, 5).

O que será, efetivamente, a ordem ou a sucessão dos séculos, que passam rapi-

damente e nunca interrompem o seu curso, senão a impetuosidade dum rio que, sem

descanso, faz girar as suas águas, arrastando-as até ao mar, onde se mergulham e

desaparecem? Entretanto, o rio passa e os tempos correm, muitos homens duvidam

da Providência de Deus.

Entre os seus próprios servos, há muitos que são perturbados ou gravemente

tentados, e que se queixam do seu governo. Porque esta rápida corrente do rio causa

muitas vezes grandes danos aos bons, e grandes vantagens aos maus, pois leva a boa

terra dos campos do justo para deixá-la nos do ímpio.

Mas, quando os tempos finalizarem a sua carreira e o rio tiver entrado no mar

com todas as suas águas, os santos lerão claramente, no livro da Divina Providência,

as razões de todas as desordens e de todas as revoluções.

Então a impetuosidade deste rio, representada pela imaginação, alegrará a Ci-

dade de Deus acima de tudo o que pode dizer a língua dum mortal”117.

Mas, segundo Bossuet, “no infinito espelho da Divina Essência, onde se vê tu-

do, as almas dos bem-aventurados descobrem principalmente o que toca às pessoas

que lhes estão unidas por ligações particulares”118.

É o que provam de sobejo todos os testemunhos que tenho referido, em vez de

falar por mim mesmo. Fi-lo assim para que vos fosse mais fácil consolar-vos, viven-do deste modo, durante algumas horas, na companhia e mesmo na intimidade dos

santos e dos doutores, cujo coração foi sempre tão sensível e compassivo.

Se alguém, pois, ainda ousar dizer-vos que não nos reconheceremos no Céu,

mostrai-lhe esta nuvem de testemunhos de que fala o Apóstolo (Hebr. XII, 1 ), e que

 paira sobre a vossa cabeça.

116

  Le Religieux mourant, ou Préparation à la mort pour les personnes religieuses, por um beneditino deS. Mauro. Avinhão, 1731, cap. XI, & 5 e 6. t. I, p. 257, 266.117 Bellarmino, De Aeterna felicitate sanctorum, liv. IV, cap. IV.118  Bossuet , Sermon pour profession d’une demoiselle que la reine mère avait tendremente aimée –

Péroraison.

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Todos os autores que vos tenho citado, e muitos outros de que me poderia ter

servido, são sábios e virtuosos. Eles formam uma nuvem cujo brilho rende testemu-

nho ao Sol da verdade, que nasceu no mundo, e os doura com seus raios. Formam

uma nuvem cuja suavidade e escuridão faz repousar docemente os nossos olhos e

deixa esperar aos nossos corações uma chuva fecunda em consolações celestes.

Os seus contraditores também formam nuvens, mas tenebrosas e ameaçadoras.

Aumentam o horror da noite que nos envolve, derramam negra tinta sobre o eterno

dia que esperamos. Roubam ao nosso conhecimento e ao nosso amor esses brilhantes

astros a que chamamos bem-aventurados do Paraíso, e forçam os nossos olhos a fixa-

rem-se dolorosamente nos túmulos, quando teríamos maior necessidade de os levan-

tar para o Céu, a fim de nele encontrarmos alguma luz e alegria. Negar que nos reco-

nheceremos no seio da glória, junto de Deus, é fazer-nos um grande mal, aumentar-

nos a tristeza e lançar-nos no desespero ou desalento.

Mas divulgar a importante verdade que se acaba de estabelecer é aliviar a afli-

ção, sustentar a piedade e reanimar o zelo.

Eis as três conclusões práticas que me resta desenvolver-vos.

II

 A esperança de nos reconhecermos no Céu é um alivio para a dor. – Exem-

 plo e palavras de Fénelon. – É-nos útil entretermo-nos com os nossos virtuosos e

queridos defuntos. – Podemos até invocá-los. – Prática de S. Francisco Xavier, de

S. Luís Bertrand, de M. Emery. – As almas do Purgatório pedem por nós.

Poucos homens têm sido tão sensíveis à perda dos seus amigos, como o amável

Arcebispo de Cambrai. Eis uma prova disto nas suas próprias palavras:“Seria tentado a desejar que todos os bons amigos esperassem para morrerem

 juntos no mesmo dia. Aqueles que não amam pessoa alguma quereriam enterrar todo

o gênero humano com os olhos secos e o coração alegre; tais pessoas, porém, não são

dignas de viver. Custa muito ser sensível à amizade; mas aqueles que têm esta sensi-

 bilidade envergonhar-se-iam se a não tivessem; desejam antes sofrer do que serem

insensíveis”119.

119  Histoire de Fénelon, pelo cardeal de Bauset, liv. VIII, morte do duque de Chevreuse.

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Vede, todavia, como ele sabia aliviar a sua própria aflição, consolando as pes-

soas mais angustiadas. Por ocasião da morte do duque de Beauvilliers, seu amigo,

escrevia à duquesa:

“Só os nossos sentidos e a nossa imaginação perderam o objeto do nosso amor.

Aquele que já não podemos ver, está conosco mais do que nunca. Encontramo-lo

incessantemente no nosso centro comum. Ele vê-nos aí, e lá mesmo nos procura os

verdadeiros socorros. Conhece melhor, onde está agora, as nossas enfermidades, do

que nós mesmos, ele que já não tem nenhuma; e procura os remédios próprios e ne-

cessários para a nossa cura.

Quanto a mim, eu, que estava privado de o ver desde há tantos anos, falo-lhe,

abro-lhe o meu coração e creio encontrá-lo na presença de Deus; e ainda que o tenha

chorado amargamente, não posso todavia acreditar que o perdesse. Oh! quanta reali-

dade nesta íntima sociedade!”120.

Fénelon escrevia ainda à viúva do duque de Chevreuse:

“Unamo-nos de coração àquele que choramos; ele não se ausentou de nós pelo

fato de se tornar invisível. Vê-nos, ama-nos e comove-se das nossas necessidades.

Chegado felizmente ao porto, ora por nós, que ainda estamos expostos ao naufrágio.

E diz-nos com uma voz secreta:

Apressai-vos a unirmo-nos. Os puros espíritos vêem, ouvem, e amam sempre

os seus verdadeiros amigos no seu centro comum. A sua amizade é imortal, como a

fonte donde nasce.

Os incrédulos só amam a si mesmos; do contrário, deveriam desesperar-se de

 perderem para sempre os seus amigos; mas a amizade divina torna a sociedade visí-

vel numa sociedade de pura fé; chora, mas consola-se na esperança de tornar a reunir

seus amigos no país da verdade, e no seio do próprio Amor”121.

Que coisa mais adequada à sustentação da piedade do que estas afetuosas e ín-timas relações, que podem estabelecer-se entre nós e os nossos queridos defuntos,

desde que nos é permitido esperar que, tendo morrido na graça de Deus, não se lem-

 bram menos de nós do que nós deles! Sem dúvida, gozar da presença do Senhor e

entreter-nos com Ele, mesmo nesta vida mortal, é o que nutre mais a nossa piedade.

Todavia, conversar, tratar e entretermo-nos com os santos do Céu, por longo tempo e

repetidas vezes, sempre que nos agrade, não será um meio poderoso de nos santificar

e consolar ao mesmo tempo? Deste modo, não participamos, de alguma sorte, do

120 Correspondance de Fénelon, no. 340.121  Histoire de Fénelon, par de Bausset, liv. VII, morte do duque de Chevreuse.

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 privilégio dos anjos que têm contínuas relações e a mais doce familiaridade com to-

dos os santos?

A lembrança dum amigo virtuoso e fiel que possuamos neste mundo, basta

muitas vezes para afugentarmos de nós, com os desgostos e tristezas, as tentações, os

desesperos e todos os maus pensamentos. Quanto mais eficazes e salutares devem ser

 para a nossa alma a conversação e convivência destes parentes e amigos que vêem o

Senhor face a face e gozam da sua glória!

Um piedoso autor, o P. de Barry, aconselha-nos a que invoquemos aqueles que

a Igreja não designa ao nosso culto, mas que tiveram uma vida santa neste mundo, ou

 pelo menos uma boa morte, sobretudo, se o seu amor por nós foi agradável ao Se-

nhor. Fazei, diz ele, o catálogo dos seus nomes, e uma vez por ano, ou antes, uma vez

 por semana, percorrei-o, invocando aqueles que nele estão inscritos. Isto fará que

desejeis com mais ardor encontrar no Céu a feliz sociedade daqueles que vos eram

unidos na terra.

E quão grande será a alegria do vosso coração quando obtiverdes de Deus, por

sua intercessão, o que durante muito tempo debalde tiverdes solicitado! Pois não du-

vido que, por seu intermédio, algumas vezes sejamos ouvidos.

Se eles nos amavam durante a sua vida e não ousavam repelir as nossas súpli-

cas, que não farão agora, visto que o seu amor se tornou mais ardente e estão em

grande honra junto de Deus!

S. Francisco Xavier invocava muitas vezes os religiosos da Companhia de Je-

sus que tinham passado a melhor vida. Recorria a todos aqueles que tinha conhecido

e com os quais vivera; recomendava-lhes as suas empresas, considerava-os como

seus protetores na corte celeste, e confessava que suas orações lhe eram duma fre-

qüente utilidade.

S. Luís Bertrand, dominicano, compôs um catálogo com os nomes dos seusmais queridos amigos, que julgava estarem já de posse da eterna bem-aventurança, e

invocava-os muitas vezes nas suas necessidades122.

Um livro que saiu à luz neste corrente ano de 1862, fornece-nos outro exemplo

muito semelhante. Na Vida de M. Émery, nosso superior de S. Sulpício, lê-se, a res-

 peito dos antigos padres desta Companhia que mais o tinham edificado por suas vir-

tudes:

“Em muitos de seus retiros, tomou a resolução de redigir, segundo o mapa dassepulturas do seminário, uma nota que lhe recordasse os dias do falecimento daque-

122 P. de Barry, Sanctum faedus cum sanctis caeli civibus, cap. V.

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les santos padres por quem tinha mais devoção, a fim de invocá-los nos mesmos dias

com fervor, e de render graças a Deus pela eminente santidade a que os elevara”123.

Podeis fazer sobre esta piedosa prática a seguinte objeção: Acaso estarão no

Céu os meus parentes e amigos? Estarão eles no Purgatório?

É verdade que a Igreja não tem declarado onde eles estão. Mas a oração não se

desencaminha, e, entre o grande número dos que assim invocardes, alguns devem ter

 já certamente chegado ao porto da felicidade.

Muitos e graves teólogos são de parecer que as almas do Purgatório podem o-

rar por nós; porque não são de pior condição do que os pecadores, inimigos de Deus.

Estão mesmo confirmadas na graça e amizade do Senhor, têm a perfeição do amor,

recordam-se de tudo o que nos devem, e podem conhecer as nossas orações pelos

seus anjos da guarda.

E por que não orariam elas a Deus por nós, visto que vêm algumas vezes pedir-

nos por si mesmas, como aconteceu com Santa Brígida a quem seu marido apareceu,

 pedindo-lhe que fizesse celebrar missas e distribuísse esmolas por sua alma?124 

Santa Catarina de Bolonha invocava freqüentemente as almas do Purgatório, e

dizia que tinha obtido de Deus, por sua intercessão, os maiores e mais numerosos

 benefícios. “Muitas vezes mesmo, acrescentava ela, o que não tinha podido obter

durante muito tempo, pelas orações dos santos do Céu, consegui-o depois que recorri

a estas almas padecentes”125.

123 Vie de M. Émery, 1ª. P., no. 52, t. I, p. 195.124  Révélations de sainte Brigitte, liv. Des Révélations extraor., cap. LVI.125 P. de Barry, Sanctum faedus, cap. VI – Acta sanctorum, die 9 martii. Vita, auctore Grassetti, cap. XII,

no. 118

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III

O reconhecimento no Céu é um estímulo para o zelo. – Zelo para o alívio

de nossos queridos defuntos. – Zelo para conversão dos pecadores. – Zelo para a

nossa própria santificação. – O Céu começa no tempo e continua na eternidade.A glória só fará desenvolver o gérmen da graça. – Nós saberemos tudo o que

alguma pessoa fizer em nosso beneficio, e a nossa felicidade, como a sua, será

por isso maior. – Cada florão da coroa duma mãe será uma alegria a mais para

todos os seus filhos.

Finalmente, que a esperança de torná-los a ver no Céu, de reconhecê-los e de

serdes por eles reconhecida, reanime o vosso zelo e vos faça trabalhar com mais ar-dor no alívio destas pobres almas, na conversão dos pecadores e na vossa própria

santificação.

As almas do Purgatório são tão reconhecidas, que as pessoas que as têm alivia-

do, têm recebido provas da sua gratidão, antes de se lhes reunirem na bem-

aventurança. Foi mesmo concedido muitas vezes a Santa Gertrudes, mui zelosa em

aliviar as almas do Purgatório, ver, durante a sua vida, e mesmo entreter-se com a-

quelas que havia socorrido

126

.Um dia, depois da comunhão, Gertrudes oferecia a adorável Hóstia pelo eterno

descanso das almas de todos os parentes dos membros da sua comunidade. Apenas

tinha acabado de fazer este precioso oferecimento, quando viu sair das trevas um

grande número de almas, semelhantes a faíscas ou estrelas:

“Senhor, exclamou ela, esta multidão de almas é só de nossos parentes?”

 – Sou eu mesmo, respondeu o Senhor, o mais próximo de vossos parentes: sou

vosso pai, vosso irmão e vosso esposo. Todos aqueles que são especialmente meus,

tornam-se, portanto, vossos parentes e aliados, e quero que eles tenham parte nos

frutos das orações que fazeis pelos vossos parentes”127.

Continuai, pois, Senhora, a orar por vosso marido, por vossos filhos e por todos

os vossos parentes que já acabaram a sua peregrinação na terra. Se as suas almas,

como espero, estiverem já em lugar de refrigério, de luz e de paz, as vossas orações

aliviarão outros membros da família de Jesus Cristo, retirando-os das chamas expia-

tórias para introduzi-los na infinita bem-aventurança.

126 Les Insinuations de la divine piété, liv. V. Cap. XV, XVI, XVII, XVIII, XXIV.127 Ib., id., cap. XX.

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Mas não limiteis aos mortos o vosso zelo; que seja católico ou universal, como

a Igreja.

Quantos pecadores e infiéis, entre os vivos, cujo regresso para Deus podeis a-

 pressar por meio dos vossos cuidados, orações, esmolas e de todos os vossos mere-

cimentos! Tende compaixão da sua miséria; porque são cegos, levados à destruição

de todo o amor pela mesma desordem de suas mentirosas afeições.

 A ninguém se aplica tanto, como aos condenados, o que S. Paulo dizia

dos pagãos: “Nenhuma afeição há neles – Sine affectione” (Rom., I, 31).

Se é verdade que o princípio natural das nossas afeições subsiste no inferno, só

o devemos entender assim quando ele é mau ou separado de Jesus Cristo. Desta for-

ma, só produz frutos muito amargos e um ódio eterno onde parecia haver um grande

amor.

Mas reconduzindo a seu Pastor as ovelhas desgarradas, e ao Pai de família os

filhos pródigos, preparareis no Céu a vós mesma um círculo de ternos e reconhecidos

amigos, que permitirão se vos apliquem estas palavras do profeta: “Erguei os olhos e

correi a vista em volta de vós; todos estes que se acham aqui reunidos são vossos.

Sereis deles revestida como dum ornamento; sereis rodeada por eles como uma espo-

sa ou uma mãe o é por seus filhos, ainda que os não tenhais gerado segundo a nature-

za.” (Is., XLIX, 18. – LIV, l . )

Àqueles que tiverdes convertido, podereis mesmo dizer com o Apóstolo:

“Vós sois meus filhos muito amados, meus irmãos desejados, minha alegria e

minha coroa.” (Gal., IV, 19 - Philip. IV, 1)

Ao pensar, ao ver antecipadamente esta coroa de alegria que encontrareis no

Paraíso, quando chegar o tempo de deixardes este triste lugar de desterro, tereis a

consolação de dizer a vós mesma: Vou reunir-me àqueles que enviei para a Pátria,

vou vê-los e reconhecê-los, vou gozar dos testemunhos da sua gratidão e do seu a-mor.

Podereis mesmo dizer àqueles que deixardes na terra o que o divino Mestre di-

zia a seus discípulos:

“Vou preparar-vos o lugar para que habiteis comigo” (Joan. XVI, 2, 3); “Den-

tro em pouco já me não vereis, mas bem depressa me tornareis a ver, porque vou

 para junto do meu Pai. Também em breve tempo vos tornarei a ver, e o vosso cora-

ção se regozijará, e ninguém vos tirará a vossa alegria” (Joan., XVI, 26, 22).Esta alegria de vos tornarem a ver, Senhora, será tanto maior naqueles que vos

conheceram, quanto mais tiverdes trabalhado na vossa santificação pessoal. Quando

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nos esforçamos por santificar-nos, o Céu começa para nós no tempo para continuar

na eternidade.

Assim como a planta se despoja sucessivamente de seus grossos invólucros, até

a haste saída do tronco se coroar duma bela flor, assim pelo seu trabalho santificador,

a alma se despoja de tudo o que tinha de mais terrestre, e se transforma, pouco a pou-

co, em Jesus Cristo, que se compara na Escritura à rosa dos campos, ao lírio dos va-

les (Cant., II, 1). Para ela, o Céu começa pelo louvável desenvolvimento das suas

faculdades, e acabará pela sua completa dilatação.

Porque, mesmo no Paraíso, não seremos preguiçosos, mas ativos. Teremos

sempre alguma coisa que aprender, pois que Deus é um fundo inesgotável, e nunca

seremos capazes do infinito.

Para termos alguma idéia do que a glória causará então numa alma, bastaria,

 pois, estudar e conhecer o que a graça produz agora na mesma, tirado o sofrimento e

a luta, que já não existirá. Toda a luz e amor que a graça produz em nós, não será o

gérmen que a glória desenvolverá? Ora, o que a graça nos dá presentemente para

iluminar os nossos espíritos e inflamar os nossos corações, é imenso e incalculável.

Imenso e incalculável também será o eterno peso de glória de que nos fala S.

Paulo (II Cor., IV, 17), isto é, o aumento de esplendor e caridade que nos merecem, a

 paciência em nossas provações, a atividade para o bem, o zelo pela salvação das al-

mas e o cuidado do nosso progresso espiritual.

E assim como os condenados serão punidos por onde tiverem pecado (Sap., XI,

17), também os bem-aventurados serão recompensados por onde tiverem merecido.

Toda a mãe que se santifica educando seus filhos, receberá neles um aumento

de recompensa eterna.

Todo o filho que diz para consigo: Faço este sacrifício para honrar meus pais,

 para que Deus abençoe meu pai e minha mãe, prepara-lhes, e prepara a si mesmo, umaumento de eterna felicidade.

Com efeito, não será somente em conjunto, se assim posso falar, que reconhe-

ceremos no Céu aqueles que nos foram queridos; conhecê-los-emos até por miúdo,

saberemos o que muitas vezes ignoramos na terra, saberemos tudo o que eles fizeram

ou sofreram por nós; veremos a recompensa que por isto o Senhor lhes concede, e

este espetáculo assim como este conhecimento, será uma das nossas alegrias durante

a eternidade.

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Que este pensamento vos console de todos os esforços que tendes feito, de to-

das as fadigas que tendes suportado para santificar vossos filhos, santificando-vos

também. Que aumento de recompensa não recebereis disto na glória!

Todos os escolhidos que vos amaram na terra, o contemplarão e dele se regozi-

 jarão em vós. Não será assim que consideraremos a auréola das virgens, dos mártires

e dos doutores, e que, considerando-a, nos regozijaremos com aqueles doutores, már-

tires e virgens que tivemos a felicidade de conhecer e amar?

A especial coroa que vos espera, será como a auréola da vossa maternidade

cristã. Será devida a todos os santos desejos, a todos os piedosos cuidados, a todas as

dores íntimas, ignoradas na terra por aqueles que foram o seu objeto ou causa, mas

que reconhecerão no reino do Céu, pois cada um destes desejos, destes cuidados e

destas dores terá produzido um florão da imortal coroa que brilhará sobre a vossa

cabeça. Os vossos filhos admirarão esta coroa, contarão todos os seus florões, e serão

 por isso eternamente mais felizes.

Para vos excitar a adquirir ainda mais merecimentos ou direitos à eterna re-

compensa, que doce e poderoso incentivo não tendes vós, pois, no vivo desejo de

irdes, para aumentar a sua glória com a vossa, reunir no Céu todos aqueles que mais

tendes amado, ou vê-los aí subir triunfantes para junto de vós!

Mas o Senhor dignar-se-á deixar-vos ainda por muito tempo no meio de nós,

tanto para felicidade de vossos filhos e de vossos netos, como para edificação de to-

dos os fiéis.

Tal é, pelo menos, o voto, tal é á súplica.

SENHORA,

Do vosso muito humilde e dedicado servo,

F. Blot

Strasburgo, 15 de Agosto de 1862.

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O R A Ç Õ E S

Para tornarmos a ver no Céu as pessoas que nos são queridas

I

Oração à Santíssima e adorável Trindade

Um só Deus em três Pessoas que se conhecem e se amam, fizestes-nos à vossa

imagem, dando-nos o conhecimento e o amor, com o vivo desejo de sermos sempre

unidos. Não permitais que este traço de semelhança convosco seja destruído pela

morte, em nenhuma daquelas pessoas que tenho conhecido e amado neste mundo. E,

visto que vos dignastes unir-nos pelos laços da família, e nos permitistes ligarmo-nos

ainda por uma estreita amizade, não consintais que tudo quanto tendes unido jamais

se separe!

 Não fizestes esperar ao velho Tobias, que os filhos de Jerusalém se reuniriam

 junto de Vós? (Tob., XIII, 17). Não tendes por agradável que o sacerdote vos supli-

que, no santo altar, que lhe façais ver seu pai e sua mãe nos esplendores da glória?

 Não desvieis de mim a vossa divina face, mas ouvi a minha prece, quando vos supli-

co com todo o fervor de que sou capaz, que me concedais também a graça de tornar a

ver no Paraíso todos aqueles que me foram queridos na terra, particularmente a almade  N...  que amo sempre ternamente.

Espírito de luz e de amor, consolador por excelência, Vós que sois a cadeia

unitiva do Pai e do Filho, e que unistes os nossos corações, derramando sobre eles a

caridade, dignai-vos fazer conhecer a essa alma cuja ausência me é tão dolorosa,

quanto desejo unir-me a ela, quanto a amo ainda, que sacrifícios estou pronto a fazer

 para apressar a sua entrada no lugar de refrigério e de paz, para eu mesmo entrar aí

após ela, de sorte que, por uma indissolúvel união, não façamos senão um coração euma alma para vos amar e bendizer, com o Pai e o Filho, por todos os séculos dos

séculos. Assim seja.

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II

Oração a Nosso Senhor Jesus Cristo

Divino Jesus, que pusestes em vosso Coração todas as nossas legítimas afei-

ções para abençoá-las e santificá-las, e vos dignastes gozar das alegrias da piedade

filial e mesmo dar aos homens o doce nome de amigo: Onde estão agora, Senhor,

estes meus amigos e parentes? Estão no Céu, junto de Vós e de vossa Mãe muito

amada, a quem reconheceis como Ela vos reconhece? Ah! quanto desejo, eu também,

reconhecer minha mãe na glória celeste e ser por ela reconhecido, torná-la a ver com

meu pai e meus irmãos, e tornar a ver juntamente todos os meus parentes e amigos!

Ó Deus de amor, Deus do tabernáculo e da Santa Mesa, cujo corpo nos reúne

num mesmo banquete neste mundo e guarda as nossas almas para a vida eterna,

guardai, guardai também todos os membros da minha alma, todos os membros do

meu coração, isto é, todas as pessoas que amo; guardai-as para a vida, guardai-as

 para a eternidade, e fazei que nos encontremos todos no banquete dos Céus. Fazei,

sobretudo, que aí encontre a alma que me era especialmente querida. Que ela e eunos reconheçamos, que eu saiba tudo o que ela faz em segredo por mim, e que lho

agradeça eternamente na Pátria dos bem-aventurados. Assim seja.

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III

Oração à Santíssima Virgem, a S. José e a todos os Santos 

Ó Maria, Mãe de Deus e minha Mãe, que depois da ascensão do vosso amado

Filho, suspiráveis ardentemente por vos reunirdes a Ele no Céu, e tivestes, com o

 privilégio da vossa gloriosa Assunção, o de torná-lo a ver triunfante, de contemplá-lo

daí por diante sem interrupção com os mesmos olhos que tanto gozavam com a sua

vista na terra. Ó doce consoladora dos aflitos, intercedei por mim, intercedei pela

 pessoa querida que eu choro, a fim de que ela e eu nos reunamos, nos reconheçamos

e nos amemos ainda na eternidade, como o filho e a mãe sob a vossa vista, e junto do

vosso Coração maternal.

Pai putativo de Jesus, e fiel S. José, vós que estivestes no limbo e soubestes,

 por experiência, quão longos são os dias da expectação, qual deve ser a vossa alegria

quando reconhecestes a alma do Salvador que ali desceu para anunciar a todos os

 justos a sua próxima subida ao Céu! Ah! retirai, retirai prontamente do Purgatório,

onde talvez ainda esteja penando, a alma de para quem imploro, hoje, instantemente,

a vossa poderosa proteção! Orai por ela, orai por mim, a fim de que tenhamos a feli-

cidade de nos tornarmos a encontrar e reconhecer na celeste Pátria, no meio dos ine-

fáveis esplendores que Nosso Senhor Jesus Cristo derrama sobre todos os anjos e

santos.

E vós, bem-aventurados escolhidos, que fostes parentes ou amigos na terra, e

que sempre sois sensíveis à graça de vos encontrardes reunidos junto de Deus, orai

 para que os meus parentes e amigos e companheiros de luta da Contra-Revolução

formem, convosco e comigo, uma cidade e família, onde todos se reconhecem e se