o céu que nos envolve

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INTRODUÇÃO À ASTRONOMIA PARA EDUCADORES E INICIANTES EDIÇÃO E COORDENAÇÃO: ENOS PICAZZIO O CÉU QUE NOS ENVOLVE

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  • Introduo astronomIa para educadores e InIcIantesedIo e coordenao: enos pIcazzIo

    o cu que nos envolve

  • o cu que nos envolveIntroduo astronomia para educadores e iniciantes

  • Todos os direitos desta edio reservados :

    Produo grfica: Odysseus Editora

    Reviso final: Pedro Ulsen Projeto grfico, capa e diagramao: Vania Vieira

    Odysseus Editora Ltda. R. dos Macunis, 495 CEP 05444-001 Tel./fax: (11) [email protected] www.odysseus.com.br

    ISBN: 978-85-7876-021-2

    Edio: 1aAno: 2011

  • Edio e Coordenao: Enos Picazzio

    Autores: Augusto DamineliEder Cassola Molina

    Enos PicazzioGasto B. Lima Neto

    Jane Gregorio-HetemRoberto Costa

    Ulisses Capozzoli Vera Jatenco

    Walter Maciel

    Reviso tcnica: Ulisses Capozzoli

    Financiamento: CNPq

  • O cu intriga o homem desde a pr-histria, representado em pinturas anteriores escrita e em mitos sobre deuses e heris. No tardou at que comessemos a tentar entend-lo.

    A astronomia nasceu de observaes ainda a olho nu e de hipteses que nem sempre se mos-traram verdadeiras. Da Mesopotmia Amrica, os primeiros estudos do cu tiveram impacto em diversos aspectos de cada cultura, desde a religio at a diviso e a organizao do tempo.

    Ainda hoje, a astronomia continua a nos desafiar. Agora com tcnicas e equipamentos mais pre-cisos e sensveis, podemos descobrir cada vez mais sobre o funcionamento da mquina do Universo mas sempre encontrando novas perguntas que mantm nossos olhares voltados para o alto.

    O cu que nos envolve apresenta a astronomia de acordo com o conhecimento presente e de for-ma bastante acessvel. Assim, este livro busca responder algumas perguntas de quem j se encantou pelo cu e despertar o interesse dos que ainda no mergulharam em seus mistrios.

    Os captulos, escritos por astrnomos com vasta experincia em pesquisa, ensino e divulgao, esto organizados para atender a interesses especficos, aprofundando cada tema de forma particularizada.

    No entanto, este livro tambm pode ser lido como uma jornada. Partimos do modo como nos relacionamentos com a astronomia desde o que ela representou e o que representa ao homem at os modos como observamos e estudamos o cu. Caminhamos por suas implicaes para nosso planeta e para o Sistema Solar, com a combinao de fria e harmonia essencial para sua formao e seu funcionamento. Viajamos em direo s estrelas e s galxias, at lanarmos nosso olhar ao Universo sua histria, sua composio e a Teoria do Big Bang, com seu embasamento terico e observacional. E encerramos o percurso voltando a uma questo essencial: a vida, e como ela poderia se manifestar no Universo.

    Com finalidade educativa, O cu que nos envolve complementado por um Manual do Educa-dor que inclui informaes e sugestes para seu uso em ambiente escolar. O objetivo desse material levar um pouco do Universo aos estudantes brasileiros, integrando um trabalho que vem sendo realizado no Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofsica e Cincias At-mosfricas da USP h algumas dcadas.

    Nossa produo voltada a atividades de educao e divulgao inclui livros, apostilas, artigos em revistas e painis. Dois livros elaborados por pesquisadores do Departamento de Astronomia foram agraciados com o prmio Jabuti: em 2000, Introduo estrutura e evoluo estelar (W. J.

    APRESENTAO

  • Maciel); e em 2001, Astronomia. Uma viso geral (orgs. A. C. S. Friaa, E. Dal Pino, L. Sodr Jr., V. Jatenco-Pereira).

    Tambm so realizados palestras e atendimentos monitorados para estudantes e para o pblico em geral, alm de cursos de extenso universitria para professores de Ensino Fundamental e Mdio, para profissionais com formao em cincias exatas, e para apaixonados por astronomia da Terceira Idade. Todas essas iniciativas contam com a participao de professores, de ps-doutorandos, ps-graduandos e alunos de graduao do Departamento de Astronomia.

    No podemos deixar de registrar que este livro tampouco teria sido realizado sem a colaborao de pessoas diversas que, de uma forma ou de outra, contriburam para sua existncia e seu aperfeio-amento. O apoio financeiro do CNPq foi fundamental para sua concluso, assim como o apoio do Departamento de Astronomia e do prprio IAGUSP.

    A todos que de alguma forma contriburam, deixamos nossos agradecimentos.

  • Augusto Damineli - Captulo 11Professor titular do Departamento de Astronomia do IAGUSP. Autor/co-autor em 51 arti-gos em revistas cientficas internacionais que receberam mais de 1600 citaes. autor/co-autor de 4 livros. Foi diretor dos Telescpios Gemini e presidente da Sociedade Astr-nomica. Brasileira. Coordenou o Ano Internacional da Astronomia 2009 no Brasil. Publi-cou mais de 150 artigos em jornais e revistas. Participou em 6 roteiros de vdeos cient-ficos na srie Minuto Cientfico da TV Cultura, ganhadora de 3 prmios internacionais.

    Eder Cassola Molina - Captulo 4Formado em Engenharia Quimica (FEI, 1985) e Bacharelado em Geofsica (IAG-USP, 1987). Mestrado, doutorado e livre-docncia em Geofsica, todos pela Universidade de So Paulo. Trabalha no IAG-USP desde 1988 nas reas do estudo do campo de gravidade e do campo magntico terrestre voltados investigao da estrutura da Terra e explo-rao de minerais e hidrocarbonetos. Foi coordenador adjunto da rea de Cincias do PNLD 2004, autor de artigos e captulos em livros e revistas de divulgao cientifica.

    Enos Picazzio - Captulo 3, 4 e 5Bacharelado e Licenciatura em Fsica pela Universidade Mackenzie (1972), Mestrado (1977) e Doutorado (1991) em Astronomia pelo IAGUSP, Ps-doutorado pelo Observa-trio de Paris-Meudon (1994). Especialista em Astrofsica do Sistema Solar. Autor de artigos cientficos em revistas especializadas, de captulos em livros e de artigos de divulgao cientfica. Presidente da Comisso de Cultura e Extenso do IAGUSP. Co-ordenador de Mdulo do Curso de Licenciatura em Cincias por EaD da USP-Univesp.

    Gasto B. Lima Neto - Captulo 9 e 10Professor Associado do Departamento de Astronomia do IAG/USP e sua pesquisa voltada a astrofsica extragalctica. Graduado pelo Instituto de Fsica/USP, Mestre pelo IAG/USP, defendeu sua tese de doutorado em 1993 na Universidade de Paris VII, Frana. Entre 1994 a 1998, fez ps-doutorado em Berlin, Lyon e Paris. Atualmente coordenador de um projeto de cooperao franco-brasileiro cujo foco a anlise e a interpretao de observaes em raios X de aglomerados e grupos de galxias.

    Jane Gregorio-Hetem - Captulo 7Bacharel em Fsica pelo Instituto de Fsica da USP (1982), com mestrado (1986) e doutorado (1991) em Astronomia pelo Instituto de Astronomia, Geofsica e Cincias At-mosfricas (IAG/USP). Realizou ps-doutoramento no Centre dtudes de Saclay/Service dAstrophysique (1993-1995, Frana). Professor Associado pelo IAG/USP em 2003.

    OS AUTORES

  • Membro da diretoria da Sociedade Astronmica Brasileira (secretria-geral, 1999-2001; vice-presidente, 2001-2003). Representente brasileira na Comisso de Ensino da Unio Astronmica Internacional (desde 1999). Especialidade: astrofsica estelar - estrelas jovens.

    Roberto D. Dias da Costa - Captulo 2Possui graduao em Fsica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul -UFRGS (1982), Mestrado em Fsica pela UFRGS (1986), Doutorado em Cincias (Astronomia) pela Universidade de So Paulo - USP (1993) e Livre-Docncia em Astronomia pela USP (2002). Professor Associado do Instituto de Astronomia, Geofsica e Cincias Atmos-fricas da Universidade de So Paulo. Trabalha na rea de Evoluo Estelar, atuando principalmente nos seguintes temas: nebulosas planetrias, abundncias qumicas nebulares e evoluo qumica da Galxia e de outros sistemas estelares.

    Ulisses Capozzoli - Captulo 1 Jornalista especializado em divulgao de cincia mestre e doutor em cincias pela Universidade de so Paulo. Editor de Scientific American Brasil, autor de livros como Antrtida, a ltima terra (Edusp) e No reino dos astrnomos cegos uma histria da radioastronomia (Record)

    Vera Jatenco-Pereira - Captulo 6Bacharel e licenciada em Fsica (1979, PUC-SP), mestre e doutora (1982 e 1989, respecti-vamente) pelo IAG-USP. De 1987 a 1989, foi pesquisadora visitante no Institute for Fu-sion Studies (The University of Texas at Austin, USA). Docente do Departamento de Astronomia desde 1986, atualmente como professora associada, desenvolve pesquisas e orienta estudantes nas reas de astrofsica estelar e do meio interestelar.

    Walter Junqueira Maciel - Captulo 8Nasceu em Cruzlia, MG. Graduou-se em Fsica pela UFMG, obteve o mestrado no ITA, e o doutorado na USP. Fez estgios em Groningen, Holanda, e Heidelberg, Alemanha. pro-fessor titular no Departamento de Astronomia do IAG/USP, onde trabalha desde 1974. Publicou cerca de 150 artigos de pesquisa em publicaes internacionais e 60 artigos em publicaes nacionais. autor dos livros Introduo Estrutura e Evoluo Estelar prmio Jabuti em 2000, Astrofsica do Meio Interestelar e Hidrodinmica e Ventos estelares: uma introduo, todos pela Edusp. um dos autores do livro Astro-nomia, uma Viso Geral do Universo, prmio Jabuti em 2001.

  • NDICE

    Cap. 1 - Uma pr-histria do cu 12Cap. 2 - Instrumentos e tcnicas astronmicas 27Cap. 3 - Movimento aparente do cu 55Cap. 4 - A Terra 79Cap. 5 - Sistemas planetrios 99Cap. 6 - Sol 153Cap. 7 - Estrelas 176Cap. 8 - A Via Lctea 200Cap. 9 - Galxias 229Cap. 10 - Cosmologia 256Cap. 11 - procura de vida fora da Terra 277

  • Uma pr-histria do cuUlisses Capozzoli

    Captulo 1

    1.1 Introduo1.2 A escultura da histria1.3 Antecipao do futuro1.4 Geometria na Grcia1.5 A sntese de Hiparco1.6 O cu do Novo Mundo1.7 Invases brbaras

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    1.1 Introduo

    De alguma maneira, tudo comeou com o primeiro homem, ainda que ele no passe de pura alegoria. Do primeiro homem, arquelogos, paleontlogos, e todos os que escavam em busca de formas antigas de cultura e vida, jamais encontraro restos de um molar, pedaos de uma costela partida, uma falange, ou uma vrtebra roda pelo tempo. E a razo do fracasso nessa busca se justifica por essa criatura no ser real, ainda que esteja presente na aurora da humanidade. O primeiro homem um estgio no processo de tecer os fios da vida. E, de maneira surpreendente, o primeiro homem est ligado ao ltimo deles.

    Essa conexo expressa a fora da vida e por ela transita, como numa fita de celuloide, tudo o que o homem foi, e ser. E tudo apenas um fluxo de tempo.

    O homem parte indissocivel do Universo. O material que emergiu do Big Bang, associado ao que posteriormente fundiu-se nos caldeires estelares, constri suas entranhas, msculos, pulmo e corao. E como o Universo inteiro, o homem transmuta sem cessar. Ele j foi uma criatura vestida com pele grosseira, rosnando com o som de uma fera determinada a capturar sua presa, segundo os relatos de Charles Dar win que surpreendem ainda hoje.

    Os livros que registram a histria da cincia a aventura da busca do conhecimento que faz do homem uma criatura humana costumam iniciar seus relatos a partir de terrenos minimamente consistentes. Ainda que possam ser, como ocorre na astronomia, paisagens da Caldeia, onde pastores dedicando os ouvidos ao balido das ovelhas, consagraram os olhos vastido da noite estrelada.

    Da aurora da humanidade era dos pastores quando muitos animais estavam domesticados e a agricultura j tinha razes profundas h um longo espao de tempo. Entre um e outro desses estgios, grupos humanos vagaram, por diferentes regies da Terra em busca de alimentao e temperaturas amenas ao longo das estaes do ano, resultado da ligeira inclinao do eixo de rotao do planeta.

    Esse deslocamento que nunca cessou permite concluir que desde o incio o destino do homem esteve ligado ao cu. E isso continua ainda hoje com a criao recente da cosmologia, a busca de padres para se definir a velocidade com que galxias se afastam umas das outras, a investigao do corao de fogo das estrelas, a natureza fugidia da matria e energia escuras. O mapeamento das entranhas de buracos negros e a pergunta incessante sobre eventualmente sermos a nica inteligncia no Universo.

    No passado remoto, entre grupos que vagaram desde sempre, houve como ainda h, indivduos com

    Cada uma das culturas humanas concebeu seus prprios conceitos do cu. Para compreender o funciona-mento da mquina do Universo, como fizeram os gregos, ou antecipar o futuro do tempo.

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    lve habilidades especiais. Alguns mais hbeis na caa. Outros com talentos para curar, utilizando ervas e re-

    cursos que esto nas razes do xamanismo e na medicina moderna. Outros ainda podem ter desenvolvido acuidade para observar o cu e prever a chegada das estaes, a base do calendrio, associado agricultura.

    Um deles gravou, no interior da gruta de Lascaux, na Frana atual, sinais datados em 17 mil anos que arqueoastrnomos julgam representar o asterismo das Pliades. Embora Lascaux abrigue algumas das pinturas rupestres mais antigas, esses registros so recentes, em comparao idade do homem.

    O homem j havia feito conquistas formidveis, quando um grupo deles ornamentou o interior de Lascaux no s com motivos astronmicos, mas com magnficas cenas de caa. H 40 mil anos, homens ainda mais antigos j haviam adornado os amplos sales de Altamira, numa regio que hoje parte da Espanha. Eles legaram o que antroplogos, arquelogos e artistas reconhecem hoje como a Capela Sistina da pr-histria. E cinco mil anos depois dos grafismos de Lascaux, no Crescente Frtil, regio que avana do Mediterrneo Mesopotmia, foi fundada a agricultura.

    Diferentes grupos, ao longo desse perodo de tempo, podem ter sido surpreendidos por chuvas de meteoros, como os Leondeos que ainda hoje iluminam o cu como fsforos riscados contra a parede escura da noite. Que perguntas foram feitas pelo grupo queles que observavam o cu, os primeiros astrnomos?

    Perguntas e respostas esto perdidas no tempo, mas provvel que estejam relacionadas a di-vindades, estruturas arquetpicas que permitiram a primeira inteligibilidade do mundo sob a forma mitolgica. E, h seis mil anos, na mesma Mesopotmia que integra o Crescente Frtil, o homem inventou a escrita e assim abriu as portas para a histria.

    1.2 A escultura da histria

    Os humanos, ao menos parte dos humanos, j podiam escrever quando pedras gigantes foram des-locadas com determinao e habilidade para construir Stonehenge (do ingls arcaico stan = pedra e hencg = eixo) na plancie de Salisbury, territrio atual da Inglaterra, h pelo menos 4.500 anos.

    Stonehenge est identificado, agora, com um observatrio astronmico, construdo por homens cujos corpos se esfacelaram no tempo. E o nico testemunho das pedras que sobrevivem em equil-

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    brio foi o da antiga determinao que eles manifestaram de perscrutar o cu, talvez vigiando o des-locamento aparente do Sol, associado a cultos religiosos. Quanto s pirmides, contemporneas de Stonehenge, algumas expressam alinhamentos sugestivos com a disposio de estrelas como as que formam o cinturo de rion.

    Assim, Stonehenge, como as pirmides egpcias ou da Mesoamrica, atestam o olhar humano para as estrelas, em busca de inteligibilidade e evidncias do futuro.

    J as tbuas de argila cozida com os caracteres cuneiformes, a primeira forma de escrita, peas como as tbuas Mulapin, registram constelaes bem definidas e reconhecveis ainda hoje, caso de Escorpio e Leo. Mas os babilnios, os autores dessas primeiras impresses, foram ainda mais longe. Estabeleceram a durao do ano em 360 dias, fracionaram o cu em 360 graus, dividiram o grau em 60 pores e conceberam o dia de 24 horas.

    Os babilnios foram um dos muitos povos que se estabeleceram na Mesopotmia, regio que hoje majoritariamente territrio do Iraque. Outros ocupantes dessa regio, entre os rios Tigre e Eufrates, incluram assrios, sumrios, caldeus, acdios e amoritas, todos interessados nas terras frteis asseguradas pelos rios prximos onde nasceu a agricultura, ao final da ltima glaciao. De modo geral, esses povos politestas com organizao poltica centrada no rei ou imperador, tiveram economia baseada na agricultura e comrcio, neste caso organizado na forma nmade de caravanas.

    A asceno da Babilnia se iniciou por volta de 1800 a.C. e terminou com a invaso hitita e o incio do que ficou conhecido como sculos obscuros, perodo marcado pela ausncia de documen-tao, em torno de 1530 a.C..

    Entre o quarto e terceiro milnio antes de Cristo, a rea meridional entre o Tigre e o Eufrates esteve controlada pelos sumrios e essa dominao estendeu-se pelo menos at 2350 a.C., quando os acadianos chegaram para se apossar do poder. Ao menos o poder poltico, no o cultural.

    Como ocorre ainda hoje, essa regio vasta e fascinante nunca foi pacfica. Em 1200 a.C. chegaram os assrios sob a forma de uma nova onda invasora. Mas se venceram pelas armas, no empanaram o brilho dos sumrios, reconhecidos como os verdadeiros criadores da escrita.

    A Sumria teve cidades importantes, com forte influncia em reas prximas. Alm de Ur, talvez a mais famosa delas, Lagash, fundada por volta de 6000 a.C., atingiu sua culminncia por volta de 2350 a.C. com o nome de Gudeia.

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    lve Ur deve parte de seu prestgio presena dos zigurates, estrutura em forma de torre formada

    por vrios andares abrigando um santurio no topo. O mais notvel deles foi dedicado protetora da cidade, a deusa Nanna ou Sin. Tcnicas arquitetnicas embutidas nos ziguarates posteriomente foram adotadas pelos construtores do majestoso Parthenon dedicado deusa Atena, em Atenas, na Grcia. Os zigurates foram edifcios utilizados tambm na observao do cu, no como preo-cupaes de compreender seu mecanismo, mas como fonte divinatria. Nesse estgio da Histria, astronomia e astrologia formavam um tronco nico e inseparvel.

    Durante certo tempo a Babilnia, enquanto cidade-estado, foi uma espcie de satlite de Ur, mas com a decadncia desse poder anterior, passou a primeiro plano e se transformou na maior cidade do mundo antigo, com rea de dez mil hectares.

    Tbuas cermicas com registros astronmicos de origem babilnica registram um universo de oito cus encaixados entre si. O cu das estrelas fixas dividia-se em trs zonas de doze setores, as-sociadas a estrelas e constelaes. Mas o emprego de sries numricas em progresso aritmtica, primeira evidncia de instrumentao matemtica, permitiu aos babilnios a descrio de fenmenos peridicos como os eclipses lunares e solares.

    Dois textos desse perodo referem-se a questes que hoje seriam astrolgicas e astronmicas, no um corpo nico e indissocivel de conhecimento.

    O texto astronmico, que interessa aqui, traz uma lista de datas relativas s posies de V-nus durante os 21 anos do reinado de Ammisaduga (1646-1626 a.C.) um sculo e meio depois de Hamurabi (1792-1750 a.C.), rei conhecido pelo cdigo que leva seu nome e um dos mais antigos conjuntos de leis j encontrados.

    1.3 Antecipao do futuro

    Os dados astronmicos das tbuas cermicas esto relacionados ao calendrio lunar, mas ligados a pressgios sobre ocorrncias polticas e fenmenos celestes.

    A astronomia babilnica chegou Grcia por volta de 500 a.C. envolta por esses contedos astrolgicos, com preocupaes de desvendar o futuro.

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    Mas os gregos o reinterpretariam com centro na compreenso de como funciona a mquina do Universo, ao contrrio do que ocorria tanto na Mesopotmia quanto no Egito.

    Os egpcios tiveram uma relao de natureza quase que puramente utilitria com a astronomia, especialmente para a marcao do tempo. Talvez, como consideram alguns autores, para assegurar uma administrao eficiente, preocupada em estabelecer critrios claros e eficientes como o recebi-mento de tributos em perodos bem definidos.

    Os astrnomos egpcios, tanto quanto os babilnicos, no se envolveram com a elaborao de te-orias sobre a natureza do Sol, da Lua, ou dos planetas, ainda que soubessem que os ltimos se deslo-cavam em meio s estrelas fixas, expresso que denota uma compreenso do cu que se estendeu at a era do telescpio, no incio do sculo 17. Como outros povos, antes e depois, os egpcios tambm organizaram a partilha do cu em diferentes regies, como fazem as constelaes atuais. Mas esse arranjo no se preservou para a posteridade.

    No papiro funerrio da princesa Nesitanebtashu, sacerdotisa de Amon Ra, em Tebas, atual Lu-xor o mais largo encontrado at agora pelos arquelogos (49,5 cm) datado de 970 a.C. est gra-vada uma representao apenas simblica do universo concebido pelos egpcios. E ele est ocupado por um grupo de deuses e deusas.

    Esse e outros desenhos do mesmo tipo tiveram contedo evidentemente religioso, pois os astr-nomos egpcios tambm eram sacerdotes. Os historiadores consideram que o motivo para a ausncia de uma preocupao maior com descrio do cu e de astros como estrelas, planetas e mesmo a Lua, no Egito, justifica-se pelo fato de todo o interesse dos astrnomos-sacerdotes estarem relacionado vida ps-morte, tambm ao contrrio do que ocorreria na Grcia.

    De qualquer maneira, os egpcios conceberam a durao do ano em 365 dias, divididos em 12 meses de 30 dias a que se acrescia 5 dias (epagmenos), com o objetivo de fazer coincidir o ano civil com o ano solar. No Egito antigo, a inundao peridica do rio Nilo, entre junho a setembro, por ao das chuvas abundantes, coincidia aproximadamente com o nascer helaco (primeira apario anual de um astro sobre o horizonte leste) de Sothis, ou Sirius (alfa do Co Maior) e marcava o incio do ano.

    Outra contribuio interessante legada por eles so os decanos e aqui necessrio retornar ao conceito de nascer helaco de uma determinada estrela que os egpcios consideraram como a ltima hora de uma noite. Eles elegeram 36 decanos, cada um deles representado pelo nascer helaco de uma

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    lve estrela com durao de dez dias. Portanto, 36 decanos somam 360 dias escoando-se at a primeira

    das estrelas escolhidas voltasse ao nascer helaco novamente. A diferena observada, j que o ano solar tem 365 dias, foi ento devidamente ajustada a partir dessas observaes que tambm ajudou na definio de um dia de 24 horas.

    A base que sustenta a astronomia moderna, no entanto, a partir da revoluo copernicana, em meados do sculo 16, grega. Ou mais claramente, foi produzida na Grcia, mas com influncias que se perdem no tempo, ainda que parte desse legado possa ser reconhecido.

    Boa parte das constelaes gregas so cpias quase exatas de concepes mesopotmicas pro-duzidas pelos diferentes povos que ocuparam essa regio. As estrelas que formam as constelaes zodiacais de Gmeos e Capricrnio, por exemplo, eram conhecidas como Grandes Gmeos e Pei-xe-Bode pelos assrios. Outras, ainda zodiacais, que hoje conhecemos como ries e Peixes, eram conhecidas como Trabalhador e Andorinha. Assim, arqueoastrnomos e historiadores da cincia admitem que uma maioria significativa de constelaes e asterismos, agrupamentos estelares como Pliades, no interior do Touro, tm origem mesopotmica.

    A constelao boreal do Tringulo (Triangulum), por exemplo, limitada ao sul por ries e Pei-xes, a oeste e norte por Andrmeda e a leste por Perseu e ries, era conhecida entre os mesopotmi-cos, de acordo com as gravaes em placas cermicas, como o Arado.

    1.4 Geometria na Grcia

    Associado a conhecimentos astronmicos a partir dos gregos, a geometria rea da matemtica que se ocupa do estudo do espao e das figuras que podem preench-lo era conhecida tanto na Meso-potmia quanto no Egito, mas restrita a usos na engenharia. Teria sido levada para a Grcia por Tales de Mileto, o primeiro filsofo grego, e l evoluiu para um sistema lgico complexo que culminou com "Os Elementos de Euclides", em 300 a.C.. Historiados suspeitam que a constelao do Tringulo, visvel a olho nu bem elevada ao Norte logo ao anoitecer em fins de dezembro ou mais tarde, em meses anteriores o rebatismo grego de uma constelao mesopotmica entre a poca de Tales (624-547 a.C.) e de Eudxio (406-355 a.C ).

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    Entre a produo intelectual grega mais antiga esto as obras dos poetas contemporneos Ho-mero (Ilada e Odisseia) e Hesodo (Almanaque Agrcola), ambas do sculo 8 a.C.. E ambos fazem referncia a duas constelaes bem conhecidas a equatorial rion e a boreal Ursa Maior, dois as-terismos (Pliades e Hades) e duas estrelas Sirius, alfa do Co Maior, a mais brilhante, e Arcturus, alfa do Boieiro, igualmente notvel por seu brilho intenso, mas no estendem alm disso. O legado de Homero e Hesodo faz com que historiadores da cincia especulem sobre um conhecimento limitado do cu em um perodo anterior a 500 a.C. entre os gregos.

    Sobre o que no h dvida que, de um ponto de vista histrico, o primeiro relato completo do cu produzido na Grcia est representado no livro de Eudxio, datado de 360 a.C., mas s conhecido indiretamente por obras de Arato, poeta e mdico grego (315/310 239/240 a.C.) e Hiparco, um dos maiores astrnomos gregos que parece ter tido bom conhecimento da astro-nomia babilnica. Hiparco deixou um rico legado. Alm de elaborar o primeiro catlogo estelar, ele determinou o comprimento do ano trpico, ou ano solar, perodo em que o Sol d uma volta aparente em torno da Terra. Descobriu a precesso dos equincios cone formado por rotao do eixo da Terra no perodo de 25.800 anos e irregularidades no movimento da Lua, alm de aperfeioar instrumentos astronmicos. O conjunto de sua obra fez com que fosse preservado no Almagesto de Ptolomeu.

    Euxdio faz descries sugerindo que estrelas prximas ao polo celeste norte se elevam pouco acima do horizonte dependendo de poca e latitude de um observador e acrescenta que quando o Escorpio se levanta no leste, rion mergulha sob o horizonte no oeste, referncias que arqueoas-trnomos julgam vagas para permitir concluses mais promissoras quanto latitude dessas obser-vaes. Essas referncias, no entanto, sugerem que Eudxio apenas reproduzia uma base de dados construda h mais de 700 anos. Bradley Schaefer, professor de fsica e astronomia da Universidade Estadual de Louisiana, nos Estados Unidos, envolvido com arqueoastronomia, sustenta que tanto as citaes de Eudxio, como as repetidas por Hiparco, remetem a registros do Mulapin, os registros cermicos mesopotmicos datados de 1100 a.C., observados de uma latitude em torno de 36.

    No se sabe em que poca os gregos receberam o conjunto de constelaes mesopotmicas, ainda que o espao de tempo aceitvel para isso sugira um intervalo entre 1100 a.C. e 400 a.C., aproximadamente.

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    lve Mas existem pelo menos 18 constelaes inconfundivelmente gregas. o caso das constela-

    es boreais de Hrcules e Delfim, alm da zodiacal Ofico. Seis delas se referem a mitos gregos relacionado ao resgate de Andrmeda por Perseu. O heri voltava para casa, depois de decapitar a medusa, quando avistou uma jovem acorrentada oferecida como sacrifcio ao deus do mar, Cetus. A me da jovem, Cassiopeia, havia ousado comparar a beleza da filha das filhas de Possidon, deus supremo do mar. Como castigo Possidon mandou Cetus destruir a cidade das mulheres e ofereceu me e filha ao sacrifcio. Perseu decide salvar a jovem, desde que ela aceite casar-se com ele. Nesse momento, no entanto, uma vaga se abre e o monstro marinho aparece, ameaador. Per-seu enfrenta-o valendo-se da capacidade que tem de voar e vence a batalha. Com isso, os pais de Andrmeda permitem que ela se case com ele.

    De qualquer maneira, a utilizao das constelaes entre os gregos teve mudanas ao longo do tempo. Comearam como referncias a narrativas mitolgicas, passaram a referncias do calendrio e auxiliaram especialmente em navegaes e acabaram como base para localizaes planetrias.

    1.5 A sntese de Hiparco

    Entre os gregos, Hiparco fez a transio de pocas que resultou numa sntese do passado remoto para um legado ao futuro. Ele descobriu uma estrela nova, em 134 a.C., no interior da constelao do Escorpio, o que o levou a preparar um catlogo completo de estrelas, concludo em 128 a.C., lamentavelmente perdido , para permitir futuras identificaes dessa natureza. Foi com base nesses dados que ele se deu conta da precesso dos equincios.

    Em relao s constelaes, com adaptaes e inovaes, basicamente elas foram produzidas no mundo mesopotmico e transmitidas aos gregos, e, posteriormente, incorporadas por romanos, ra-bes e disseminados por toda a Europa, especialmente a partir do incio do sculo 16.

    Os rabes foram uma espcie de repositrio do conhecimento clssico grego com o declnio da civilizao grego-romana. Foram as tradues rabes que permitiram a recuperao dos avanos obtidos no passado e que, no Ocidente com o incio da Idade Mdia, no sculo 4o , passou por um profundo retrocesso. Essa uma evidncia de que a cincia, como outras produes culturais

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    humanas, no algo que possa ser entendido como um movimento uniformemente acelerado. Ao contrrio disso, o percurso da civilizao humana talvez possa ser comparado ao trajeto de um rio que corre para o mar. Em determinados trechos pode haver recuos, definidos por curvas fechadas, que o deslocam rumo nascente, antes que retome a direo do mar.

    No caso da astronomia mas tambm da medicina e at da filosofia o declnio da civilizao grego-romana fez com que o centro de investigao fosse transferido para Bagd, na Mesopotmia de onde ela havia partido. Claudio Ptolomeu (90/100 d.C.-170 d.C.), astrnomo, astrlogo, mate-mtico e gegrafo, foi um dos gnios gregos que tiveram suas obras traduzidas para o rabe. Pouco antes do ano 1000 d.C., o astrnomo persa Abderrahman Al-Sufi (903-986) produziu um catlogo onde as magnitudes das estrelas foram criteriosamente estabelecidas, competindo de certa forma em qualidade ao trabalho de Ptolomeu e mesmo de catlogos modernos. Al-Sufi fez esse trabalho para permitir futuras comparaes de variaes estelares. Seu trabalho expresso no Livro das Estrelas Fixas tem um dos mais antigos mapas celestes conhecidos, incluindo o desenho das constelaes.

    Amplamente reproduzido, o trabalho de Al-Sufi foi uma das obras mais populares entre os livros rabes de astronomia. As obras gregas foram reintroduzidas na Pennsula Ibrica entre os sculos 10 e 13 com as invases rabes e, posteriormente, traduzidas quase sempre por intelectuais judeus.

    Na Grcia, no entanto, essa base de astronomia e matemtica particularmente a geometria ampliada e sofisticada teve contribuies de nomes bem conhecidos da histria da cincia. o caso de Euclides ou de astrnomos como Eratstenes (276 a.C.-196 a.C.), tambm gegrafo e o primeiro a medir a circunferncia da Terra com preciso notvel em relao ao estabelecido hoje. Aristarco de Samos (310 a.C. 230 a.C.) foi pioneiro em afirmar que a Terra gira em torno do Sol e no o contrrio quinze sculos antes de Nicolau Coprnico. Aristarco tambm calculou as distncias entre a Terra e o Sol e Terra e Lua e estimou, surpreendentemente, um volume de Universo compatvel ao aceito pela cincia moderna entre os anos 1920 e 1930, poca da consolidao da cosmologia.

    Foi esse conjunto de conhecimentos, recuperado e reinterpretado pelo religioso, mdico e as-trnomo polons, Nicolau Coprnico (1473-1543), que construiu os fundamentos da astronomia moderna, ampliada e consolidada por homens como Galileu Galilei, Johannes Kepler, Tycho Brahe, Isaac Newton e, mais recentemente, William Herschel j no sculo 19 e Albert Einstein e Edwin P. Hubble, no sculo 20.

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    lve O Universo, neste incio do sculo 21, entendido como originrio de uma exploso primordial

    (Big Bang) que pode tanto ser nica como repetida. No ltimo caso, o Universo se expandiria e contrairia ao longo do tempo, num movimento de distole e sstole csmicos, e seria eterno. Alm disso, o Universo pode no ser nico, mas apenas um entre vrios. Ao menos para a cosmologia de Multiversos.

    Criaturas que os astrnomos chamam hoje de animais do zoolgico csmico so to exticas quanto surpreendentes e essa classificao inclui matria escura, substncia que no interage com a luz e por isso mesmo invisvel, ainda que denuncie sua presena por interaes gravitacionais. Energia escura parece algo ainda mais estranho por ser uma espcie de antigravidade, ou gravidade negativa, que acelera o movimento de expanso csmica. Buracos negros, capazes de dragar toda for-ma de matria e energia no interior de uma regio crtica o horizonte de eventos estrelas de nu-trons e curvatura do espao e do tempo so conceitos que fascinam mesmo crianas em idade escolar.

    1.6 O cu do Novo Mundo

    Mas a investigao do cu que nos trouxe a esse estgio especulativo no ficou restrita ao Oriente. Quase ao mesmo tempo em que diferentes povos interagiram na Mesopotmia, como ocorreu com os assrios que conquistaram os sumrios, em 1200 a.C., na Amrica Central, culturas brotavam com vigor durante muito tempo inesperado. Foi o que ocorreu com os olmecas, entre 1200 a.C. e 400 a.C.. Esse povo mesoamericano erigiu cidades-estados como foram Ur e mesmo Babilnia e es-tabeleceu relaes comerciais com regies distantes, o que pressupe infraestrutura sofisticada, alm de coeso e expresso polticas significativas.

    Numa analogia com o que ocorreu na Grcia clssica, que influenciou profundamente outras culturas, na Amrica os olmecas estiveram na base da histria dos maias, zapotecas e teotihuacanas e, posteriormente, toltecas e astecas.

    A cultura maia foi a mais duradoura e, a rigor, no se esgotou. Ainda hoje descendentes desse povo sobrevivem em territrios, especialmente do Mxico, alm de Guatemala, Belize e Honduras, expressando-se em dialetos que sobreviveram violncia fsica e cultural da conquista espanhola,

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    desde fins do sculo 15. Entre 250 e 900 d.C., os maias tiveram seu pice, quando construram cida-des sofisticadas, guarnecidas com palcios e templos religiosos.

    A astronomia foi uma das reas em que os maias se expressaram com maior vigor e criativi-dade. Eles registraram movimentos de objetos celestes com preciso acima de culturas que foram suas contemporneas. Tambm desenvolveram a escrita, esculpida ainda hoje em edifcios e mo-numentos: as estelas.

    Mas, o que esteve gravado em papel, produzido a partir de cascas de rvores, foi destrudo pelos espanhis para quem esses povos tinham parte com o demnio e eram pouco mais que selvagens ignorantes. O testemunho de um padre espanhol, Diego de Landa, d mostra dessa destruio br-bara em uma fala que ficou registrada pela Histria: encontramos um grande nmero de livros que no continham nada, a no ser supersties e falsidades do demnio, os destrumos e queimamos, o que provocou neles grande pesar e muita dor.

    Embora tenham sido chamados de cdices, esses livros maias tinham apenas a forma de equivalentes europeus, mas eram confeccionados com longas tiras retiradas da parte interna da casca da figueira, ou mesmo fibras de outras plantas que, para serem utilizadas, recebiam antecipadamente uma camada de cal.

    O cdice de Dresden identificado como preciosidade maia num museu dessa cidade da ex-Alemanha Oriental o mais conhecido desses documentos que existiram aos milhares, acompa-nhados de ricas ilustraes, destrudos pelo fogo, enterrados ou simplesmente atirados ao mar sob as ordens de Diego de Landa.

    A destruio desse tesouro hoje um dos principais obstculos a um conhecimento mais pro-fundo e detalhado do que foi a cultura maia e, para os mesoamericanos, equivale a uma perda to profunda quanto destruio da Biblioteca de Alexandria, fundada por Alexandre Magno, discpulo de Aristteles, e que, no seu apogeu, pode ter reunido perto de 700 mil pergaminhos.

    De muitas maneiras, ambas representam uma perda irrecupervel no apenas da produo cul-tural de povos mais ou menos relacionados, mas de um atentado memria de toda a humanidade. No passado, no presente e no futuro.

    Outro dos poucos documentos maias que escaparam sanha da destruio alimentada por re-sistncia diversidade e estreitamente religioso foi o livro do gene maia, o Popol Vuh. Ele s no foi perdido porque acabou copiado clandestinamente, em caracteres latinos, por um religioso maia

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    lve numa poca em que a escrita original desse povo esteve proibida. Essa cpia acabou descoberta em

    1702, na Guatemala por outro religioso, um espanhol, que a preservou. O Popol Vuh mostra que, como ocorreu com outros povos, a mitologia maia est profundamente associada ao cu. O desloca-mento de corpos celestes como o Sol, a Lua, e do planeta Vnus, entre os maias, foram identificados aos deuses e eles deveriam ser sempre apaziguados. Assim, da mesma forma que na Mesopotmia, tambm a astronomia maia esteve ntima e indissociavelmente relacionada a motivos religiosos e a tentativas de previso do tempo futuro.

    1.7 Invases brbaras

    Os maias conceberam o Universo como uma estrutura plana e quadrada com o Sol girando em torno da Terra, composto por trs planos: o submundo, a terra e o cu. Na interpretao moderna, o submun-do reflete a geografia e geologia locais, sem qualquer associao com o submundo cristo referido como inferno. O Sol subjugava o cu e a janela escura da noite exibia claramente a ao dos deuses.

    Os maias desenvolveram calendrios precisos para definir no apenas o ano solar, mas tambm festividades religiosas, pela observao em especial de Vnus e tambm da Lua. Vnus, associado a mitos de criao maia, foi tomado como referncia para definio de datas de enfrentamentos rituais, jogos e sacrifcios humanos.

    Se os cdices maias foram destrudos com relativa facilidade pela ainda hoje chocante intolern-cia espanhola, os edifcios resistiram, ao menos em parte, e ainda hoje surpreendem pela sofisticao e conexo com motivos astronmico-religiosos. A pirmide de Kukulcn, dedicada ao deus Serpente Emplumada, na antiga cidade de Chichn-ltz, no estado de Yucatn, por exemplo, tem cada uma de suas faces voltadas para um ponto cardeal. E os 52 painis esculpidos em suas paredes refletem ciclos de criao e destruio do mundo segundo a tradio maia.

    Os maias surpreendem pela sofisticao astronmica e arquitetnica, entre outras caractersticas de uma cultura que em muitos aspectos se compara ou se sobrepe s mesopotmicas. Mas, ainda assim, no Novo Mundo, no foram os nicos povos a se ocupar da observao celeste, criao de cosmologias e reconhecimento particular do cu.

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    Muitas outras etnias indgenas se ocuparam de investigar o cu e fazem isso ainda hoje. Os ia-nommis (etimologicamente "os construtores de casas"), de uma famlia formada por quatro lnguas prximas e a nenhum tronco lingustico da Amrica do Sul, acreditam que o cu comporta uma estrutura muito antiga e fraturada que deixa vazar a gua de um lago superior, sob a forma de chuvas. E, surpreendentemente, de onde pode cair peixes... Essa estrutura antiga e fraturada, segundo os ianommis, est apoiada em pilares guardados por feiticeiros de seu povo. Se esses feiticeiros forem mortos, advertem eles, os pilares desabaro e todo o cu vir abaixo, com o fim do mundo conhecido.

    Na verdade, e isso importante de ser considerado, o que ocorre aqui, como comum em toda a mitologia, um recurso metfora, alegoria. Os ianommis, ndios de porte mdio, costumam construir suas aldeias em reas remotas, alm de corredeiras de difcil acesso ou afastados de comu-nidades de no ndios. O dia em que seus pajs estiverem mortos , de alguma maneira, o dia em que suas aldeias estiverem ameaadas ou j destrudas. O que significa dizer de um dia, possvel, em que a Terra estar arruinada e nem o cu tiver mais o sentido que teve ao longo de toda a historia humana.

    O mito, no entanto, pode ser parcialmente explicado com a mesma lgica que suporta a cincia moderna. Ocorre que, na Amaznia brasileira e venezuelana, habitada por eles, fenmenos atmosf-ricos como tornados podem sugar a gua de rios e lagos em determinados pontos e depositar esses contedos em outros, o que inclui peixes e d aos ianommis a demonstrao de que necessitam para sustentao essa estrutura mitolgica.

    Construtores de extensas redes de trilhas na floresta, os ianommis se orientam pelo cu para retornar s aldeias mesmo percorrendo centenas de quilmetros de distncia. Eles tambm reconhe-cem a posio de determinadas constelaes ou asterismos para definir pocas em que, por exemplo, os macacos, de que se alimentam com satisfao, esto gordos. A posio das pliades no cu, logo ao anoitecer, um desses indicativos.

    O mesmo ocorreu e ainda ocorre com aproximadamente uma centena de etnias indgenas bra-sileiras, sem contar algumas dezenas de povos isolados, neste caso grupos menores, cujos ancestrais tiveram experincias negativas de contato com no ndios no passado (os brancos caracterizados pela mdia influenciada pelos filmes de faroeste americanos) e agora preferem o isolamento.

    O paranaense Germano Afonso, talvez o nico etnoastrnomo no Brasil, tem demonstrado com um sensvel e extenso trabalho de documentao que povos indgenas, alm de bons conhecedores

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    lve do ambiente em que vivem, associam estaes do ano e fases da Lua ao clima, fauna e regio em que

    vivem. Para esses povos, cada elemento da Natureza tem um esprito protetor e as ervas medicinais so preparadas segundo um rigoroso calendrio anual, baseado na paciente observao do cu.

    Os povos do tronco tupi-guarani, por exemplo, baseados na observao lunar, definem os pero-dos mais propcios caa os animais ficam mais agitados com a iluminao intensa da lua cheia e mesmo o corte de madeiras, entre outras prticas que levam em conta a evoluo cotidiana do cu.

    Uma pesquisa histrica, envolvendo cada uma das culturas j extintas ou ainda vivas nas mais diferentes regies da Terra, mostra que cada uma delas leu o cu sua maneira. Mas todas, sem ex-ceo, elevaram os olhos para observar as estrelas.

  • Instrumentos e tcnicas astronmicasRoberto D. Dias da Costa

    Captulo 2

    2.1 Introduo 2.2 A natureza da luz

    2.2.1 A luz como radiao eletromagntica2.2.2 O espectro eletromagntico

    2.2.3 A radiao trmica e o espectro do corpo negro2.2.4 Espectroscopia e as leis de kirchhoff

    2.2.5 A atmosfera da Terra e a interao com a radiao 2.3 Telescpios

    2.3.1 Conceitos bsicos Abertura

    Resoluo angular ou poder separador Distncia focal e razo focal

    Magnificao2.3.2 Telescpios refratores, refletores e catadiptricos2.3.3 Detectores de luz: das primeiras cmeras aos CCDs

    2.3.4 Radiotelescpios2.3.5 Telescpios no espao

    2.3.6 Observatrios astronmicos 2.4 A informao que no chega pela luz

    2.4.1 Material do sistema solar: meteoritos e coleta local2.4.2 Detectores de neutrinos

    2.4.3 Detectores de raios csmicos2.4.4 Detectores de ondas gravitacionais

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    lve 2.1 Introduo

    O cu sempre fascinou os humanos. A regularidade dos movimentos do Sol e da Lua, a beleza distante das estrelas, os eventos efmeros e os objetos que se movem entre os astros encantaram e perturbaram nossos ancestrais, desde a aurora da civilizao.

    A astronomia moderna, baseada na fsica e com o apoio da tecnologia, permite que o cu seja investigado em nveis sofisticados de detalhamento, privilgio das geraes atuais. Alm disso, possi-bilita que a informao proveniente de corpos celestes seja analisada de maneira que o cu se trans-forme em um fascinante laboratrio, onde processos fsicos impossveis de serem reproduzidos na Terra so observados, analisados e desvendados.

    Neste captulo sero abordados os instrumentos utilizados em astronomia para analisar a infor-mao que chega at ns. Ser examinada a natureza da luz, fonte da maioria das informaes que recebemos sobre os corpos celestes. A luz, compreendida como radiao eletromagntica, chega at ns em diversas faixas de comprimento de onda: dos raios gama s ondas de rdio, passando pela faixa estreita da luz visvel.

    Aqui, vamos tratar da natureza da luz, alm do conceito de espectro eletromagntico, com descri-o da tcnica denominada espectroscopia. Tambm sero consideradas as interaes da atmosfera da Terra com a radiao que a atravessa.

    Posteriormente, uma reviso dos conceitos fundamentais da ptica iniciar a descrio dos teles-cpios, instrumentos essenciais para a observao astronmica. Sero detalhados seus tipos princi-pais, localizao na Terra ou no espao e a instalao de telescpios profissionais em grandes obser-vatrios. Sero tambm descritas as tcnicas de imagem que permitem o registro das observaes, analise detalhada, armazenamento e divulgao.

    Finalmente sero consideradas as tcnicas de coleta de informaes astronmicas que no de-pendem da radiao eletromagntica: dados obtidos por sondas espaciais ou a partir de meteoritos. Essas fontes fornecem informaes importantes sobre a estrutura e composio do Sistema Solar. Detectores de neutrinos revelam informaes sobre os processos de fuso nuclear que ocorrem em ncleos estelares, raios csmicos produzidos em regies remotas do Universo interagem com a at-mosfera superior e podem ser detectados no solo. Para concluir, abordaremos a radiao gravitacional.

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    2.2 A natureza da luz

    2.2.1 A luz como radiao eletromagntica

    A luz foi objeto de discusso entre fsicos e filsofos ao longo de sculos. Sua verdadeira natureza, onda ou partcula, foi tema de debates acalorados. Ainda na Antiguidade Clssica, o matemtico Euclides, considerado o pai da geometria, descreveu as propriedades da luz, sua propagao em linha reta e as caractersticas da reflexo. Esses problemas foram considerados por pensadores to distin-tos quanto o mdico persa Ibn Sina (Avicena) e o filsofo francs Ren Descartes.

    No final do sculo 17, a chamada teoria ondulatria da luz foi formulada por distintos cientis-tas europeus como Robert Hooke e Christiaan Huygens. Experimentos de difrao da luz feitos por Thomas Young e mais tarde por Jean-Augustin Fresnel confirmaram que a teoria ondulatria poderia explicar diversos resultados experimentais. Em contraponto existia tambm uma teoria cor-puscular para a luz. Isaac Newton acreditava que a luz era composta de pequenas partculas e fez diversos experimentos em ptica, publicados no livro Opticks, que saiu em 1704. O debate entre as duas hipteses perdurou at meados do sculo 19, quando a teoria corpuscular clssica foi tempora-riamente descartada. Ela s retornou no sculo 20, pelas mos de Albert Einstein, expressa no efeito fotoeltrico que rendeu a ele o Prmio Nobel de Fsica em 1921.

    A luz tem um comportamento surpreendente, a dualidade onda-partcula. Ela exibe ao mesmo tempo propriedades ondulatrias como refrao, difrao e interferncia, alm de propriedades cor-pusculares como o efeito fotoeltrico, que depende exclusivamente da energia dos ftons incidentes, os gros de luz.

    Em 1845 o fsico-qumico ingls Michael Faraday (1791-1867) descobriu que o plano de polari-zao da luz alterado na presena de um campo magntico. Esse resultado surpreendente inspirou o fsico matemtico tambm ingls James Clerk Maxwell (1831-1879) a investigar a natureza da luz como forma de radiao eletromagntica. Seus trabalhos resultaram numa descrio matemtica rigorosa das propriedades da radiao eletromagntica, incluindo a luz, sintetizadas nas chamadas equaes de Maxwell, que descrevem o comportamento dos campos eltricos e magnticos. As pre-

    1- Rara foto de um arco-ris primrio e secundrio, com um terceiro ao fundo. Todos podem tambm ser vistos refletidos na gua (crdito: NASA).

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    lve dies tericas de Maxwell foram confirmadas experimentalmente pelo fsico alemo Heinrich R.

    Hertz (1857-1894) por experimentos envolvendo a emisso de ondas de rdio. Ele demonstrou que as ondas eletromagnticas comportam-se exatamente como a luz visvel e exibem as mesmas propriedades como refrao, difrao, reflexo e interferncia.

    A partir dos resultados de Hertz foi possvel incluir a descrio das propriedades da luz no corpo das propriedades das ondas eletromagnticas: a luz energia, e pode ser descrita com o mesmo ins-trumental matemtico usado para tratar todas as faixas de energia da radiao eletromagntica, das altas energias como os raios gama e os raios X at as faixas de baixa energia como as ondas de rdio.

    2.2.2 O espectro eletromagntico

    Num arco-ris a decomposio da luz branca do Sol em suas componentes um fenmeno natural provocado pela refrao da luz em gotculas de gua na atmosfera. Essa uma viso simples e clara de como o espectro eletromagntico se divide dentro da faixa de energia que nossos olhos detectam.

    Este efeito foi reproduzido pela primeira vez em laboratrio por Newton ao redor de 1670: tomando a luz do Sol que entrava por uma fresta nas cortinas de seu laboratrio e fazendo-a passar por um prisma, ele obteve a decomposio da luz em suas cores constituintes, no mesmo padro de cores do arco-ris.

    Agora, o espectro eletromagntico dividido em faixas de energia e a luz visvel apenas uma delas. A figura 2 mostra as faixas de energia em que a radiao eletromagntica dividida. Pode-se notar que a luz visvel corresponde a apenas uma pequena faixa do espectro total.

    A energia de um fton dada pela expresso:

    E = h onde: E: energia em joules ( J)h: constante de Planck = 6,63 x 10-34 J.s: frequncia do fton em hertz (Hz)

    2- Faixas de energia da radiao eletromagntica

    PrismaFenda

    Tela

    Verm

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    Laranja

    Amarelo

    Verde

    Azu

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    Analogamente, a energia pode ser expressa em termos do comprimento de onda da radiao em vez de sua frequncia:

    E = hc

    onde:E: energia em joules ( J)h: constante de Planck = 6,63 x 10-34 J.sc: velocidade da luz = 3 x 108 m/s: comprimento de onda em metros (m)

    Todas as fontes de luz emitem energia numa faixa de frequncias (ou de comprimentos de onda). A distribuio espectral de energia de uma fonte define seu espectro eletromagntico. Todos os corpos emitem um espectro de radiao: a faixa das baixas frequncias so as ondas de rdio como emisses de TV, rdio AM e FM, radar e micro-ondas. Prxima a elas est faixa da radiao infravermelha, percebida como calor e que emitida pelos nossos corpos, por exemplo. Na faixa das altas energias, acima da luz visvel, esto a radiao ultravioleta, os raios X e os raios gama.

    2.2.3 A radiao trmica e o espectro do corpo negro

    Todos os corpos, sem exceo, emitem radiao. Isto no depende de seu tamanho ou forma, nem mesmo de sua temperatura, desde que esteja acima do chamado zero absoluto, ou a -273,15 oC. Isso ocorre porque, do ponto de vista microscpico, a temperatura uma medida da agitao de tomos e molculas que compem o corpo, e esse movimento no cessa. A temperatura de um corpo a medida dessa energia interna: quanto mais quente o corpo, maior o movimento das partculas que o compem.

    Em 1900 o fsico alemo Max Planck (1858-1947) definiu a lei que rege a emisso trmica, agora conhecida como curva de Planck ou curva de corpo negro. O termo corpo negro um con-

    3- Distribuio da intensidade de radia-o em funo da frequncia de um corpo

    negro (crdito: Chaisson & McMillan).

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    lve ceito fsico e define um objeto ideal, que absorve toda a radiao que incide sobre ele, sem refletir

    nada. Nessas condies, emite um espectro que depende apenas de sua temperatura efetiva.O comprimento de onda do mximo de intensidade para uma curva de corpo negro dado

    pela Lei de Wien, formulada em 1892 pelo fsico alemo Wilheim Wien (1864-1928), uma fer-ramenta importante em astronomia. Ela permite obter a temperatura na superfcie de uma estrela a partir da medida do comprimento de onda do mximo de intensidade. A Lei de Wien pode ser expressa como:

    max = b T

    onde:max: comprimento de onda do mximo de intensidade, em metrosb: constante de deslocamento de Wien = 0.002897 m.KT: temperatura em kelvins

    Outra expresso til em astronomia baseada nas propriedades da emisso trmica dos corpos a Lei de Stefan-Boltzmann, que fornece o fluxo de energia por unidade de rea de um corpo negro. Essa lei muito utilizada em astrofsica j que as estrelas se comportam, aproximadamente, como corpos negros:

    F = T4

    onde:F: fluxo de energia por unidade de rea de um corpo negro, por segundo: constante de Stefan-Boltzmann = 5,67 x 10-8 W m-2 K-4

    T: temperatura do corpo negro em kelvins

    4- Diversas curvas de corpo negro superpostas. Notar que as curvas correspondentes s tem-peraturas mais elevadas tm seus mximos em

    comprimentos de onda menores (ou frequncias

    maiores) [crdito: Chaisson & McMillan].

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    2.2.4 Espectroscopia e as leis de kirchhoff

    A espectroscopia uma das mais poderosas ferramentas astronmicas. Auguste Comte, fundador do Positivismo, considerou que a composio qumica das estrelas seria desconhecida para sempre j que no se poderia ir at uma delas e coletar material para essa demonstrao. Hoje continua impossvel, mesmo uma sonda, aproximar-se do Sol ou de qualquer outra estrela. Mas, usando es-pectroscopia, possvel conhecer a composio qumica delas com boa preciso.

    A anlise da composio qumica estelar feita com um espectrgrafo, equipamento que decom-pe a luz de forma anloga ao experimento clssico de Newton: a luz passa por uma fenda e, a seguir, por um sistema ptico onde decomposta. Assim se chega distribuio espectral de energia da fonte, com informao sobre a composio qumica j que distintos ons de cada substncia presente no corpo emissor da luz deixam sua impresso digital no espectro emitido.

    Espectros de estrelas como o Sol apresentam uma emisso contnua superposta com linhas de absoro. J outros objetos astronmicos, como as nebulosas, mostram espectros bem diferentes: sua energia no emitida num contnuo, mas em linhas de emisso bem determinadas. Em meados do sculo 19 o fsico alemo Gustav Kirchhoff (1824-1887) realizou uma srie de experimentos com slidos e gases aquecidos em diferentes condies de temperatura e presso e a partir dos resultados obtidos formulou trs leis que descrevem o tipo de espectro emitido por uma fonte. Elas so conhe-cidas como Leis de Kirchhoff da espectroscopia:

    1. Um slido ou lquido aquecido, ou ainda um gs suficientemente denso, emite energia em todos os comprimentos de onda, de modo que produz um espectro contnuo de radiao.

    2. Um gs quente de baixa densidade emite luz cujo espectro consiste apenas de linhas de emisso

    caractersticas da composio qumica do gs.

    3. Um gs frio de baixa densidade absorve certos comprimentos de onda quando uma luz contnua o atravessa, de modo que o espectro resultante ser um contnuo superposto por linhas de absoro

    caractersticas da composio qumica do gs.

    5- Esquema bsico de um espectrgrafo (crdito: Chaisson & McMillan).

    6- Espectro do Sol. A sequncia de cores do azul ao vermelho re-presenta a distribuio de cores da luz visvel do Sol, divididas em

    cerca de 50 fatias horizontais, cada uma representando uma fai-xa de comprimentos de onda. As pequenas faixas escuras verticais so linhas ou bandas de absoro, cada uma delas provocada pela

    presena de um determinado on ou molcula na superfcie do Sol

    (crdito: Nigel Sharp NOAO).

    Luz vermelha

    Luz azul

    Luz vermelhatela oudetector

    Luz azulLente

    Prisma(decompe a luzbranca em cores)

    Feixe estreito de luz

    Barreira opaca

    Fonte de luz Lente

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    lve 2.2.5 A atmosfera da Terra e a interao com a radiao

    A atmosfera da Terra uma mistura de gases que interage com a radiao que a atravessa de modo bem conhecido. A opacidade atmosfrica define janelas de observao: alguns comprimentos de onda, em especial os raios X e os raios gama, so quase inteiramente absorvidos pela atmosfera. Foi essa caracterstica que permitiu a evoluo da vida j que essas faixas de radiao so nocivas s molculas orgnicas.

    Devido a essas propriedades de transmitncia da atmosfera fcil concluir a razo das observa-es astronmicas na faixa dos raios X e gama serem feitas por satlites.

    Mas a opacidade apenas uma das maneiras pelas quais a atmosfera interage com a radiao dos corpos celestes que atinge a Terra. Outra forma bem evidente de interao a difuso atmosfrica: na faixa da luz visvel a atmosfera espalha preferencialmente comprimentos de onda mais curtos, ou seja, a luz azul, e deixa passar com mais eficincia os comprimentos de onda maiores, como o amarelo e o vermelho. Essa a razo de o cu ser azul durante o dia.

    Outra interao importante da atmosfera com a radiao provocada pela turbulncia. A atmos-fera no esttica, o ar se desloca em clulas de conveco de diferentes tamanhos, desde pequenas estruturas com metros de dimetro prximas ao solo at grandes formaes, com quilmetros de dimetro na atmosfera superior. O efeito dessa turbulncia na visualizao dos corpos celestes a degradao da qualidade das imagens astronmicas. Em telescpios de pequeno porte, usados em astronomia amadora, a turbulncia pode ser notada pelo tremor das imagens, que parecem oscilar quando observadas. J nos grandes telescpios profissionais o mesmo efeito aparece na forma de perda de qualidade da imagem, que se tornam levemente borradas.

    Alm disso, mesmo a atmosfera tem uma determinada temperatura efetiva, e, portanto existe uma emisso atmosfrica na forma da radiao de um corpo negro cujo mximo est no infraver-melho. Devido a essa propriedade, as observaes astronmicas nessa faixa so muito complexas e exigem refrigerao eficiente de todo o sistema de imageamento, incluindo a cmera, o detector e o prprio telescpio.

    7- Leis de Kirchhoff da espectroscopia

    Espectro contnuo Espectro de linhas de emisso

    Espectro contnuocom linhas de absoro

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    2.3 Telescpios

    2.3.1 Conceitos bsicos

    Um telescpio essencialmente um funil para coleta de luz: quanto maior sua rea, maior a quanti-dade de luz recolhida, e dependendo da ptica, melhor as imagens obtidas. Existem diversos concei-tos bsicos de ptica envolvidos no funcionamento de um telescpio. Vamos examin-los:

    9- Diagrama bsico de um telescpio. A luz entra pela lente convergente direita, chega ao plano focal distncia F da objetiva e sai pela ocular da esquerda, cuja distncia focal f.

    Abertura

    o dimetro da objetiva do telescpio no caso dos refratores. Ou o dimetro do espelho primrio no caso dos refletores.

    Resoluo angular ou poder separador

    Esse o mnimo ngulo no cu que um telescpio consegue distinguir. Quanto maior a resoluo angular, menores os detalhes de um objeto que o telescpio poder resolver. Matematicamente, a

    8- Opacidade da atmosfera da Terra em funo do comprimento de onda da radiao. Pode-se ver que a atmosfera

    totalmente opaca radiao de alta energia (ultravioleta, raios X e gama), parcialmente transparente no visvel e no

    infravermelho prximo, opaca na faixa das ondas de rdio milimtricas, transparente novamente na faixa das ondas mtricas e novamente opaca para as ondas muito longas (crdito: NASA).

    Opa

    cida

    de a

    tmos

    fric

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    0.1 nm 1 nm 10 nm 100 nm 1 m 10 m 100 m 1 mm 10 cm1 m 1 m 10 m 100 m 1 km

    100 %

    50 %

    0 %

    Comprimento de onda

    Raios Gama, raios X e ultravioleta so bloqueados pela alta atmosfera (so observados apenas do espao)

    A luz visvel observada da superfcie, com alguma distoro

    A maior parte do infravermelho absorvida pela atmosfera (melhor observado do espao)

    Ondas de radio, observadas na superfcie

    Ondas de radio, de comprimentos de onda longos so bloqueadas pela atmosfera

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    lve resoluo angular pode ser expressada, desprezando-se o efeito da atmosfera da Terra ou defeitos

    na ptica, por:

    R = 138

    D

    onde:R: resoluo angular em segundos de arcoD: abertura do telescpio em milmetros

    Essa expresso diz, por exemplo, que com um telescpio de 10 cm de dimetro possvel distinguir detalhes de 1,38 segundo de arco. J com um telescpio de 30 cm de dimetro, em princpio, pode distinguir detalhes de 0,46 segundo de arco.

    Distncia focal e razo focal

    A distncia focal de uma lente convergente (ou de um espelho cncavo, no caso dos telescpios re-fletores) uma medida de como se d a convergncia da luz. Para uma dada ocular, distncias focais pequenas implicam em aumentos maiores, porm em campos de viso menores no cu. A razo focal a razo entre a distncia focal e o dimetro de uma lente ou espelho. Para uma dada abertura, razo focal menor implica em campo de viso maior no cu.

    Magnificao

    o poder de aumento de um telescpio. Ela dada pela razo das distncias focais da objetiva e da ocular de um telescpio. Com frequncia as pessoas se surpreendem quando descobrem que um telescpio profissional com vrios metros de dimetro aumenta tanto ou menos que pequenos ins-trumentos usados em astronomia amadora. Isso ocorre porque o poder de resoluo o parmetro fundamental que define a qualidade de um telescpio. Instrumentos pequenos que acenam com centenas de magnificaes no so promissores para a astronomia.

    10- Telescpio refrator de Galileo ( direita) e telescpio refletor de Newton ( esquerda), dois dos pri-meiros telescpios construdos.

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    M = F

    f

    onde:M: magnificao, ou nmero de vezes que o telescpio aumenta. F: distncia focal da objetivaf: distncia focal da ocular

    Dessa expresso pode-se concluir que o mesmo equipamento pode produzir imagens com aumento diferente, bastando para isso trocar a ocular. Normalmente os telescpios tm jogos de oculares intercambiveis.

    2.3.2 Telescpios refratores, refletores e catadiptricos

    Em 2009 completou-se 400 anos que Galileo usou o primeiro telescpio astronmico. Tratava-se de um modesto refrator com 26 mm de abertura, mas, com ele a astronomia libertou-se dos limites o olho humano e uma revoluo na compreenso do Universo teve incio.

    Desde os primeiros telescpios astronmicos no sculo 17 os dois conceitos bsicos de telesc-pio, o refrator e o refletor, caminharam juntos. Limitaes tecnolgicas favoreceram um ou outro tipo ao longo do tempo. S no sculo 19 que os grandes telescpios de pesquisa foram desen-volvidos. Essa foi a poca dos primeiros grandes refletores. O maior deles, o chamado Leviat de Parsonstown, foi construdo na Irlanda em 1845 por Lord Rosse e tinha 1,8 metro de dimetro. Era um instrumento de grande porte, mas complexo, de operao totalmente manual, muito difcil e com severas limitaes para apontamento. Raramente foi utilizado.

    Ainda durante o sculo 19 as montagens de telescpio evoluram bastante e os instrumentos refratores tiveram seu apogeu j que eram mais rgidos e simples de montar que os refletores. Era finalmente possvel ter um telescpio que apontava com facilidade para qualquer direo no cu, e, com o uso de um motor, foi possvel compensar a rotao da Terra e acompanhar um corpo celeste por horas a fio. Os motores, no princpio, eram acionados por pesos ou por corda como nos relgios.

    11- Princpios bsicos do telescpio refrator (acima, esquerda), do refletor (acima, direita) e do catadiptrico ( esquerda). No caso do refrator a luz coletada pela lente objetiva, faz foco no plano focal e sai pela lente ocular localizada no mesmo eixo ptico do telescpio. No refletor a luz entra pela abertura do tubo, coletada pelo espelho primrio, refletida por um espelho plano chamado espelho secundrio e desviada para fora da montagem onde est uma ocular. No catadiptrico a luz passa por uma lente corretora de campo, reflete-se no primrio, no secundrio localizado atrs da lente corretora e ento dirigida para a ocular por um orifcio no espelho primrio.

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    lve Posteriormente, o motor eltrico resolveu esse desafio. O maior refrator construdo, no observatrio

    Yerkes, tem 102 cm de abertura, com distncia focal de 19,4 metros. A construo do grande refrator de Yerkes representou o limite superior para a tecnologia de

    construo dos telescpios refratores. Sua grande lente objetiva (na verdade um par acromtico de lentes) de 102 cm de dimetro muito espessa para evitar deformaes produzidas pela gravidade, de modo que apenas uma frao pequena da luz incidente passa atravs dela.

    Isso evidenciou que os telescpios profissionais de maior dimetro seriam refletores. No caso desses modelos, apenas um dos lados do sistema coletor de luz, um espelho cncavo, necessita ser polido. As lentes, ao contrrio, requerem polimento de alta preciso em ambas as faces. Alm disso, o espelho pode ficar apoiado por toda a sua face inferior, o que minimiza a deformao por ao da gravidade enquanto que as lentes devem ser apoiadas apenas pelas bordas, o que distorce as imagens.

    Existem diferentes projetos de telescpios refletores. Conforme sua utilizao, um telescpio com dada abertura pode ter o caminho ptico da luz em seu interior maior ou menor, o que refletir em distintas luminosidades ou magnificaes das imagens.

    O telescpio newtoniano o mais simples dos refratores. Esse modelo tem um espelho primrio paraboloide e um secundrio plano que desvia a luz para fora do tubo, onde est uma ocular. Neste projeto, a ocular fica prxima do extremo superior do tubo, ponto pouco prtico para colocar instru-mentos pesados. Os telescpios dobsonianos, muito populares entre os astrnomos amadores, so uma variao dos newtonianos.

    Na ptica Cassegrain os raios de luz fazem um percurso duplo no tubo: refletem no espelho pri-mrio, um paraboloide, so desviadas para um secundrio, com forma hiperboloide e ento passam por um orifcio no centro do primrio, fazendo foco abaixo desse subsistema. Essa ptica torna o instrumento bastante compacto. A quase totalidade dos telescpios profissionais usa uma variao do Cassegrain chamada ptica Ritchey-Chrtien, onde os espelhos primrio e secundrio so hiper-boloides, pois esse projeto minimiza as aberraes pticas. Nesse tipo de telescpio os equipamentos de deteco so colocados abaixo do espelho primrio, no eixo ptico do telescpio.

    Telescpios com foco Nasmyth, com foco Coud, tm projeto similar ao Cassegrain, mas contam com um terceiro espelho que desvia o feixe de luz do eixo ptico do telescpio. Esses modelos nor-

    12- Refrator de 40 polegadas (102 cm) do observatrio Yerkes (crdito: Yerkes Observatory).

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    13- Refletor newtoniano (crdito: Wikimedia Commons).

    14- Refletor Cassegrain (crdito: Wikimedia Commons).

    15- Refletor Nasmyth (crdito: Wikimedia Commons).

    16- Os dois projetos de telescpios catadiptricos mais populares. A imagem superior demonstra o esquema de um telescpio Schmidt-Cassegrain e a inferior o de um telescpio Maksutov-Cassegrain. Em ambos os casos o espelho

    secundrio est junto face inferior da lente corretora de campo.

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    17- Duas montagens altazimutais. Em ambas, o movimento do telescpio se d num eixo horizontal (de azimute) e num eixo vertical (de altura). O telescpio da esquerda acionado por motores eltricos controlados por com-putador e o da direita totalmente manual (crdito: Celestron).

    18- Montagem equatorial mo-torizada (crdito: Celestron).

    malmente so utilizados em grandes telescpios que usam equipamentos de deteco pesados e no podem ser montados no prprio tubo, como grandes espectrgrafos.

    Os telescpios catadiptricos combinam caractersticas dos refletores e dos refratores simultane-amente. So instrumentos nos quais a luz coletada por um espelho primrio como nos refletores, mas o tubo ptico fechado e na sua entrada uma lente corretora de campo permite corrigir aber-raes pticas da imagem. Esse conceito permite projetar instrumentos com grande distncia focal, mantendo o tubo compacto.

    Para se observar um astro por um longo perodo necessrio que a rotao da Terra seja com-pensada. Isso feito com emprego de um motor ou de um conjunto de motores que move o tubo do telescpio, mantendo o alvo sempre na mira. Assim, um ponto crtico no projeto ou na aquisio de um telescpio a deciso sobre a montagem do equipamento, o que vai definir como o acompanha-mento sideral feito.

    Existem duas montagens bsicas de telescpio: a equatorial e a altazimutal. Em ambos os casos, o telescpio montado sobre dois eixos ortogonais que permitem apont-lo para qualquer direo no cu e, com o acionamento de motores, compensar a rotao da Terra. A montagem altazimutal conceitualmente mais simples: o telescpio se move num plano horizontal, chamado plano azimutal, e num plano ortogonal a esse, chamado plano de altitude ou de elevao. Nesse caso a compensao da rotao da Terra requer o movimento de dois motores simultaneamente, um em cada eixo, que devem funcionar com velocidades diferentes e variveis ao longo de uma sesso de observao.

    Na montagem equatorial, um dos eixos do telescpio alinhado com o eixo de rotao da Terra. Ainda que esse alinhamento possa ser razoavelmente trabalhoso para telescpios portteis, torna o acompanhamento sideral muito mais simples, pois basta que o telescpio se mova num nico eixo, alinhado com o eixo de rotao da Terra, para compensar o giro do planeta. Mais ainda, esse acompanhamento feito por um motor de velocidade constante e igual para qualquer alvo ou horrio de observao.

    At o fim dos anos 1980, os telescpios profissionais eram construdos em montagem equatorial, j que nesse caso um motor girando a velocidade constante e bem controlada pode compensar com eficincia a rotao da Terra. Mas a montagem equatorial assimtrica, o que traz uma dificuldade

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    sria: a necessidade de alinhar um dos eixos do telescpio com o eixo da Terra faz com que a mon-tagem seja volumosa, complexa, pesada e cara de construir. A partir do incio dos anos 1990, com a popularizao e com o rpido progresso da informtica, foi possvel projetar e construir os grandes telescpios com montagem altazimutal, pois processadores cada vez mais rpidos e baratos passaram a permitir o controle em tempo real de motores de velocidades varivel em dois eixos. Atualmente todos os grandes telescpios profissionais so construdos com montagem altazimutal, o que faz os projetos do telescpio e de seu prdio mais compactos e baratos.

    2.3.3 Detectores de luz: das primeiras cmeras aos ccds

    Ao longo de milnios, o olho humano foi o nico detector de luz usado em observaes astronmi-cas. Grandes astrnomos da Antiguidade, como Hiparco de Nicea, fizeram descobertas notveis sem auxlio de instrumentos pticos; eles usavam apenas miras e instrumentos de medidas de ngulos como quadrantes ou sextantes.

    A partir do incio do sculo 17 o telescpio astronmico tomou forma graas engenhosidade de Galileo, que adaptou para observaes astronmicas um instrumento que j existia para fins mi-litares ou comerciais como a observao de navios ou de soldados distncia. Mas mesmo com o auxlio de telescpios o problema-chave do registro das observaes continuava em aberto: se um astrnomo descobrisse algo interessante no cu, era obrigado a desenhar sua descoberta em papel para relat-la a seus pares. A questo do registro das observaes fundamental j que apenas por uma imagem de qualidade que uma descoberta pode ser verificada pela comunidade cientfica, para ser comprovada ou refutada.

    Como detector da radiao luminosa, a performance do olho humano admirvel: em termos da eficincia na deteco da radiao incidente, a eficincia quntica, o olho humano bem mais eficiente que os filmes fotogrficos que por mais de um sculo foram os detectores mais utilizados pela cin-cia em geral. A eficincia quntica uma medida da frao da radiao incidente que efetivamente registrada por um detector: enquanto um filme fotogrfico tem eficincia quntica de 2-3%, o olho humano chega a 10%. Outra caracterstica importante do olho sua sensibilidade espectral: o olho humano mais eficiente no amarelo, regio espectral em que o Sol emite mais energia, revelando as-

    19- Desenho feito por Galileo que repro-duz as observaes feitas com o primeiro

    telescpio astronmico. Nesse esboo ele

    mostra o relevo e as fases da Lua.

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    lve sim o resultado de bilhes de anos de evoluo: o olho humano mais sensvel na faixa espectral onde

    existe mais energia disponvel. Outra caracterstica do olho importante para observaes astronmicas sua adaptabilidade escurido. O olho mais sensvel em ambientes de baixa luminosidade.

    At meados do sculo 19 todas as observaes astronmicas eram registradas apenas com o olho do observador, que a seguir deveria se valer de suas habilidades grficas e desenhar o que havia observado pela ocular do telescpio. Essa uma limitao dramtica pela razo simples de que o olho humano no dispe de ajuste do tempo de exposio! A pupila funciona como um diafragma de cmera fotogrfica e pode ficar mais aberta em ambientes de baixa luminosidade ou mais fechada em ambientes muito iluminados, mas a taxa com que a informao transmitida ao crebro no se altera. Com qualquer cmera fotogrfica, por mais rudimentar que seja, possvel ajustar o tempo de exposio de modo a aument-lo para permitir o registro de objetos mais fracos.

    A inveno da cmera fotogrfica permitiu o registro fiel das observaes astronmicas. A foto-grafia, baseada no princpio de reaes qumicas que ocorrem numa chapa colocada no plano focal de uma cmera para registrar uma imagem, foi desenvolvida nas primeiras dcadas do sculo 19. Diversas pessoas participaram dessa empreitada, s vezes colaborando entre si, ou concorrendo umas com as outras. Joseph Nicphore Nipce foi um desses pioneiros: em 1822 ele conseguiu registrar imagens numa superfcie tratada quimicamente. Atribui-se a seu colaborador, o pintor e inventor Louis Daguerre, a primeira foto astronmica. Em 1840 Daguerre fez uma imagem da Lua usando um pequeno telescpio. Lamentavelmente, essa imagem no sobreviveu para a histria. A primeira fotografia astronmica remanescente uma imagem da Lua obtida John Adams Whipple, fotgrafo americano. Em colaborao com o astrnomo William Cranch Bond, ele fez, na mesma poca, tam-bm a primeira imagem de uma estrela, Vega, a mais brilhante da constelao da Lira.

    A partir de meados do sculo 19 a fotografia consolidou-se como a tcnica fundamental para o registro de observaes astronmicas. Ela permitiu o desenvolvimento da fotometria, a anlise rigo-rosa do fluxo de luz proveniente de qualquer alvo observado no cu como estrelas ou objetos difusos como nebulosas ou galxias. O emprego de tcnicas fotomtricas, principalmente quando aliadas a telescpios mais modernos, a partir do incio do sculo 20, permitiu avanos significativos na as-tronomia. Em 1925, por exemplo, o astrnomo norte-americano Edwin P. Hubble (1899-1953) demonstrou, usando medidas fotomtricas precisas, que a chamada nebulosa de Andrmeda uma

    20- Primeira foto da Lua, feita em 1851 por John Adams Whipple usan-do a tcnica chamada daguerreotipo.

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    galxia to grande ou maior que a Via Lctea, a galxia que abriga o Sistema Solar, o que alterou profundamente a concepo do Universo.

    A fotografia passou a ser empregada no s no registro de imagens, mas tambm na espectroscopia. Utilizada no plano focal da sada do espectrgrafo por tempos de exposio que podiam ser de muitas horas ou mesmo de algumas noites sucessivas, uma cmera fotogrfica registrava o espectro do corpo celeste em observao. Os resultados desse procedimento abriram janelas novas na compreenso dos processos fsicos que ocorrem nos corpos celestes como o estudo de abundncias qumicas das estrelas, a medida de velocidades radiais estelares, galxias ou a investigao de atmosferas estelares.

    Aps mais de um sculo reinando sozinha como instrumento de registro de imagens astronmi-cas, a fotografia viu surgirem em meados do sculo 20 os dispositivos eletrnicos como opo para o registro de imagens. Esses dispositivos resultaram do rpido desenvolvimento da eletrnica durante a Segunda Guerra Mundial. Inicialmente surgiram os chamados tubos de imagem baseados no prin-cpio da varredura eletrnica. Neste caso a imagem projetada num plano focal composto de material fotossensvel que libera eltrons, que por sua vez so lidos por um processo de varredura. A cada ponto de leitura lida uma carga eltrica proporcional intensidade da luz incidente. Esse tipo de dispositivo constri o anlogo eletrnico de uma fotografia clssica onde cada ponto da imagem um gro de material fotossensvel que sofre reao fotoqumica com intensidade proporcional luz incidente.

    Em 1948 o transistor foi inventado por John Bardeen, Walter H. Brattain e William B. Shockley. Esse dispositivo serve como chave ou como amplificador eletrnico e seu desenvolvimento permitiu a miniaturizao e integrao dos componentes eletrnicos em escala nunca antes imaginada. Por esse desenvolvimento, seus autores foram reconhecidos com o Prmio Nobel de Fsica de 1956.

    Em 1969, o Dispositivo de Carga Acoplada (Charge-Coupled Device CCD) foi desenvolvido por Willard Boyle e George E. Smith. Esse dispositivo um circuito integrado, e portanto descen-dente dos transistores, e funciona como o anlogo de um filme fotogrfico, com a diferena que, em vez de gros de um material fotossensvel que sofre uma reao fotoqumica, o CCD uma matriz de fotoelementos. Quando colocado no plano focal de uma cmera, cada elemento do CCD, deno-minado pixel, acumula uma carga eltrica proporcional luz incidente, produzindo-se assim uma imagem eletrnica. Por essa conquista com notvel impacto em diversas reas da cincia e da tecno-logia modernas, Boyle e Smith receberam o Prmio Nobel de Fsica de 2009.

    21- Trecho do espectro do Sol com diversas linhas de absoro de ons presentes na atmosfera solar (crdito: E.

    C. Olson, Mt. Wilson Observatory).

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    lve A partir dos anos 1980, os CCDs comearam a ser largamente empregados em astronomia,

    substituindo os filmes fotogrficos como elemento de registro de imagens. Isso ocorreu porque os CCDs tm inmeras vantagens sobre os filmes: so mais sensveis, tm eficincia quntica maior e operam em faixas dinmicas mais amplas. Alm disso, imagens eletrnicas podem ser analisadas, impressas, armazenadas, transmitidas e exibidas usando exclusivamente meios digitais, dispen-sando processamento qumico.

    A partir de meados dos anos 1990 as cmeras fotogrficas digitais popularizaram-se e a pro-duo de CCDs explodiu, bem como a dos CMOS, seus similares. Agora, cmeras relativamente baratas, e mesmo telefones celulares, tm detectores digitais com performances que at recentemente estavam restritas a equipamentos profissionais de alto custo.

    Atualmente, mosaicos compostos por vrios detectores CCDs esto em desenvolvimento para equipar novos telescpios. O projeto LSST (Large Synoptic Survey Telescope) um exemplo disso. Trata-se de um telescpio de 8,4 metros de dimetro em construo nos Andes chilenos e, quando estiver concludo, em 2015, far um levantamento fotogrfico de todo o cu visvel daquele local ao final de poucas noites. Esse telescpio ser equipado com a maior cmera CCD do mundo: um mosaico totalizando 3.200 megapixels.

    2.3.4 Radiotelescpios

    A informao que chega at a Terra proveniente de corpos celestes no se limita faixa visvel do espectro eletromagntico. A faixa das ondas de rdio, por exemplo, comeou a ser explorada na astronomia a partir de 1931, quando Karl G. Jansky construiu a primeira antena tipo prato com o objetivo inicial de procurar as origens de interferncias detectadas em emisses comerciais de ra-diotelefone. Essa antena pioneira operava na frequncia de 20.5 MHz. Com ela foi possvel obter pela primeira vez a emisso em rdio do disco da Via Lctea, com intensidade mxima registrada na direo da constelao de Sagitrio, onde est o centro da Galxia. O rpido desenvolvimento da tec-nologia de radar durante a Segunda Guerra Mundial foi posteriormente aplicado radioastronomia, que experimentou um rpido crescimento no ps-guerra.

    Comparada com a faixa ptica, a janela das ondas de rdio do espectro eletromagntico muito

    22- O retngulo central mais claro em um CCD contm os

    fotoelementos ou pixels, a montagem mais escura abriga os circuitos eletrnicos e no verso esto os conectores eltricos.

    Colocado no plano focal de um telescpio e dado um tempo de exposio apropriado, o CCD permite obter imagens de

    objetos milhes de vezes mais fracos que os visveis a olho nu

    (crdito: Smithsonian Astrophysical Observatory).

    23- Modelo do mosaico de 189 CCDs que equi-par a cmera de 3.200 mega-pixels do LSST,

    cujo plano focal ter 64 cm de lado. A imagem da Lua mostra qual ser a escala do plano focal do telescpio (crdito: LSST Corporation).

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    mais larga, estendendo-se das ondas milimtricas, com frequncias na faixa dos GHz, at compri-mentos de onda de dezenas de metros. Para as regies espectrais de comprimentos de onda mais longos, entre 3 e 30 metros, que corresponde a frequncias de 10 a 100 MHz, so usadas antenas direcionais similares s antenas de televiso comerciais. J para comprimentos de ondas menores so empregadas antenas tipo prato, similares s parablicas comerciais, mas com dimetros muito maiores, podendo chegar a uma centena de metros.

    Uma tcnica extremamente poderosa usada em radioastronomia a chamada radiointerfero-metria. Esse recurso consiste em captar sinais de uma mesma fonte astronmica por um conjunto de antenas, normalmente algumas dezenas, espalhadas num arranjo pr-estabelecido que pode ser unidimensional, ou em forma de Y ou ainda num arranjo mais complexo. O sinal de cada uma das antenas transportado por cabos coaxiais ou fibras pticas at um centro de anlise onde so super-postos, ou seja, combinados levando-se em conta suas intensidades e fases.

    Esse tipo de medida permite aumentar a intensidade do sinal medido, mas sua importncia fundamental que atravs de uma tcnica denominada sntese de abertura permite reconstruir a imagem da fonte que est sendo observada com imensa resoluo angular. Essa tcnica permite resultados equivalentes em resoluo angular a um telescpio virtual cujo dimetro corresponde separao entre as antenas mais distantes do conjunto e permite visualizar detalhes da ordem de milsimos de segundo de arco.

    Um dos mais ambiciosos projetos de radiotelescpios atualmente em desenvolvimento o ALMA (Atacama Large Millimeter Array), em construo no norte do Chile, em um dos stios mais elevados e secos de todo o mundo, o Planalto de Chajnantor, a 5.200 m acima do nvel do mar no altiplano andino. O ALMA pertence a um consrcio de vrios pases e formado por um conjunto de 66 radiotelescpios, cada um deles com 12 m de dimetro, operam na faixa das ondas milimtricas, mas atuando como interfermetro. Os sinais individuais das antenas sero correla-cionados de forma a que o conjunto todo opere como se fosse um nico radiotelescpio gigante. Com a concluso prevista para 2013, o ALMA ser o maior e mais sensvel radiointerfermetro do mundo e suas antenas individuais podero ser posicionadas em distintos arranjos, conforme a exigncia de cada pesquisa.

    24- Antena de 40 m do Rdio-observatrio de Owens Valley, nos Estados Unidos (cr-dito: Owens Valley Radio Observatory).

    25- Radiointerfermetro VLA (Very Large Array), localizado no Novo Mxico, Estados Unidos (crdito: David Finley - NRAO).

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    lve 2.3.5 Telescpios no espao

    Desde o incio dos lanamento de satlites artificiais no final dos anos 1950, ficou claro que uma nova janela de observao se abria para a astronomia. Sem a interferncia da atmosfera da Terra possvel observar faixas do espectro eletromagntico s quais a atmosfera opaca, como as regies do ultravioleta, dos raios X, dos raios gama ou das ondas de rdio milimtricas. Alm disso, mesmo nas faixas em que a atmosfera transparente, como a regio visvel, observaes acima da atmosfera no sofrem os efeitos de turbulncia, emisso ou absoro de radiao.

    O primeiro observatrio espacial foi o satlite Ariel 1, da Gr-Bretanha, lanado em 1962 e destinado a medir emisses de raios X e ultravioleta solares. Da em diante, dezenas de satlites destinados a observaes astronmicas foram projetados e lanados. Ao longo das ltimas dcadas diversos satlites se tornaram muito conhecidos dentro da comunidade astronmica. O satlite IUE (International Ultraviolet Explorer), destinado a investigar a regio ultravioleta do espectro, entre 120 e 320 nanometros, operou de 1978 a 1995 e, a partir de seus resultados, milhares de artigos cientficos foram publicados. Outro satlite importante foi o IRAS (Infrared Astronomical Satellite), que operou apenas no ano de 1983. Com ele foi feito o primeiro levantamento de todo o cu na faixa do infravermelho, entre 12 e 100 mm.

    Um dos telescpios espaciais mais conhecidos o Hubble Space Telescope, lanado pela Nasa em 1990, que um dos equipamentos astronmicos com maior produo de resultados cient-ficos. Com a misso de servio executada em 2009 espera-se que o Hubble mantenha-se ativo at a entrada em operao do Telescpio Espacial James Webb, previsto para ser lanado no final desta dcada.

    Atualmente diversos observatrios espaciais esto em operao e outros tantos em fase de proje-to. Um dos mais instigantes o satlite Gaia, que dever operar entre 2013 e 2018. Ele vai determi-nar posies e distncias de estrelas com preciso at milhares de anos-luz do sol. Esses resultados permitiro que se obtenha pela primeira vez uma viso tridimensional da Galxia, resultado essencial para o progresso de diversas reas da astronomia pois possibilitar a calibrao de diversos parme-tros bsicos usados em distintas reas da astronomia.

    26- Concepo artstica do projeto ALMA, visto aqui em sua configurao com-pacta. Nas configuraes estendidas as antenas podem se afastar muito mais

    umas das outras, chegando at a 16 km de extenso em seu eixo maior (crdito:

    ALMA/European Southern Observatory).

    27- Foto do Telescpio Espacial Hubble feita pela tripulao do Space Shuttle Atlantis em

    maio de 2009, durante a quinta e ltima misso de reparo (crdito: NASA).

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