o céu e o inferno

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O CÉU E O INFERNO

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O CÉU E O INFERNO

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  • O CU E O INFERNO

  • por

    Allan Kardec

    OU A JUSTIA DIVINA SEGUNDO O ESPIRITISMOEXAME COMPARADO DAS DOUTRINAS SOBRE A PASSAGEM DA VIDA CORPORAL VIDA ESPIRITUAL,

    SOBRE AS PENALIDADES E RECOMPENSAS FUTURAS, SOBRE OS ANJOS E DEMNIOS, SOBRE AS PENAS ETC., SEGUIDO DE NUMEROSOS EXEMPLOS ACERCA DA SITUAO REAL DA ALMA DURANTE E DEPOIS

    DA MORTE.

    O CU E O INFERNO

    Por mim mesmo juro disse o Senhor Deus que no quero a morte do mpio, seno que ele se converta, que deixe o mau caminho e que viva. (Ezequiel, 33:11.)

    Traduo de Manuel Quinto

  • Copyright 1944 byFEDERAO ESPRITA BRASILEIRA FEB

    61a edio 1a impresso (Edio Histrica) 30 mil exemplares 6/2013

    ISBN 978-85-7328-731-8

    Ttulo do original francs:Le Ciel et lenfer ou La Justice divine selon le spiritisme

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida, total ou parcialmente, por quaisquer mtodos ou processos, sem autorizao do detentor do copyright.

    FEDERAO ESPRITA BRASILEIRA FEBAv. L2 Norte Q. 603 Conjunto F (SGAN)70830-030 Braslia (DF) [email protected]+55 61 2101 6198

    Pedidos de livros FEB Departamento EditorialTel.: (21) 2187 8282 / Fax: (21) 2187 8298

    Texto revisado conforme o Novo Acordo Ortogrfico.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Federao Esprita Brasileira Biblioteca de Obras Raras)

    K18c Kardec, Allan, 18041869

    O cu e o inferno, ou, a justia divina segundo o espiritismo / por Allan Kardec; [traduo de Manuel Justiniano Quinto]. 61. ed. 1. imp. (Edio Histrica) Braslia: FEB, 2013. 407 p.; 23 cm

    Traduo de: Le Ciel et lenfer ou La Justice divine selon le spiritisme Exame comparado das doutrinas sobre a passagem da vida corporal vida espiritual, sobre as penalidades e recompensas futuras, sobre os anjos e demnios, sobre as penas etc., seguido de numerosos exemplos acerca da situao real da alma durante e depois da morte.

    ISBN 978-85-7328-731-8

    1. Espiritismo. 2. Justia divina Interpretaes espritas. I. Federao Esprita Brasileira. II. Ttulo. III. Ttulo: A justia divina segundo o Espiritismo.

    CDD 133.9 CDU 133.7 CDE 00.06.01

  • Sumrio

    PRIMEIRA PARTE

    Doutrina

    Captulo I O porvir e o nada ..................................................... 11

    Captulo II Temor da morte ..................................................... 19Causas do temor da morte: 19; Por que os espritas no temem a morte: 23.

    Captulo III O cu .................................................................... 25

    Captulo IV O inferno............................................................... 37Intuio das penas futuras: 37; O inferno cristo imitado do inferno pago: 38; Os limbos: 40; Quadro do inferno pago: 41; Esboo do inferno cristo: 48.

    Captulo V O purgatrio ........................................................... 57

    Captulo VI Doutrina das penas eternas .................................... 63Origem da doutrina das penas eternas: 63; Argumentos a favor das penas eternas: 68; Impossibilidade material das penas eternas: 72; A doutrina das penas eternas fez sua poca: 74; Ezequiel contra a eternidade das penas e o pecado original: 76.

    Captulo VII As penas futuras segundo o Espiritismo................ 79A carne fraca: 79; Princpios da Doutrina Esprita sobre as penas futuras: 82; Cdigo penal da vida futura: 82.

    Captulo VIII Os anjos .............................................................. 93Os anjos segundo a Igreja: 93; Refutao: 97; Os anjos segundo o Espiritismo: 102.

    Captulo IX Os demnios ......................................................... 105Origem da crena nos demnios: 105; Os demnios segundo a Igreja: 108; Os demnios segundo o Espiritismo: 118.

  • Captulo X Interveno dos demnios nas modernas manifestaes ...................................................................... 121

    Captulo XI Da proibio de evocar os mortos .......................... 139

    SEGUNDA PARTE

    Exemplos

    Captulo I O passamento .......................................................... 151

    Captulo II Espritos felizes ....................................................... 159Sanson: 159; Jobard: 168; Samuel Philippe: 173; Van Durst: 177; Sixdeniers: 178; O doutor Demeure: 181; A viva Foulon, nascida Wollis: 186; Um mdico russo: 193; Bernardin: 197; A condessa Paula: 198; Jean Reynaud: 201; Antoine Costeau: 205; A Srta. Emma: 208; O doutor Vignal: 209; Victor Lebufle: 212; A Sra. Anas Gourdon: 214; Maurice Gontran: 215.

    Captulo III Espritos em condies medianas ........................... 219Joseph Br: 219; Sra. Hlne Michel: 220; O marqus de Saint- -Paul: 222; Sr. Cardon, mdico: 224; Eric Stanislas: 228; Sra. Anna Belleville: 229.

    Captulo IV Espritos sofredores ................................................ 235O castigo: 235; Novel: 237; Auguste Michel: 238; Exprobraes de um bomio: 240; Lisbeth: 241; Prncipe Ouran: 244; Pascal Lavic: 247; Ferdinand Bertin: 248; Franois Riquier: 252; Claire: 253.

    Captulo V Suicidas ................................................................... 263O suicida da Samaritana: 263; O pai e o conscrito: 265; Franois- -Simon Louvet: 268; Me e filho: 269; Duplo suicdio, por amor e por dever: 272; Lus e a pespontadeira de botinas: 275; Um ateu: 278; Flicien: 284; Antoine Bell: 288.

    Captulo VI Criminosos arrependidos ....................................... 293Verger: 293; Lemaire: 296; Benoist: 299; O Esprito de Castelnaudary: 302; Jacques Latour: 308.

    Captulo VII Espritos endurecidos ........................................... 321Lapommeray: 321; Angle, nulidade sobre a Terra: 326; Um Esprito aborrecido: 329; A rainha de Oude: 331; Xumne: 334.

  • Captulo VIII Expiaes terrestres ............................................. 337Marcel, o menino do no 4: 337; Szymel Slizgol: 340; Julienne-Marie, a mendiga: 345; Max, o mendigo: 349; Histria de um criado: 352; Antonio B...: 354; Letil: 357; Um sbio ambicioso: 359; Charles de Saint-G..., idiota: 361; Adlade-Marguerite Gosse: 366; Clara Rivier: 367; Franoise Vernhes: 370; Anna Bitter: 372; Joseph Matre, o cego: 375.

    Nota Explicativa ........................................................................... 379

    ndice Geral ................................................................................ 385

  • MDoutrina

    Captulo I O porvir e o nadaCaptulo II Temor da morteCaptulo III O cuCaptulo IV O infernoCaptulo V O purgatrioCaptulo VI Doutrina das penas eternasCaptulo VII As penas futuras segundo o EspiritismoCaptulo VIII Os anjosCaptulo IX Os demniosCaptulo X Interveno dos demnios nas

    modernas manifestaesCaptulo XI Da proibio de evocar os mortos

    Primeira Parte

  • CAPTULO I

    M

    O porvir e o nada

    1. Vivemos, pensamos e operamos eis o que positivo; e que morremos, no menos certo. Mas, deixando a Terra, para onde vamos? Que seremos aps a morte? Estaremos melhor ou pior? Existiremos ou no? Ser ou no ser, tal a alternativa. Para sempre ou para nunca mais; ou tudo ou nada: Viveremos eternamente ou tudo se aniquilar de vez? uma tese, essa, que se impe.

    Todo homem experimenta a necessidade de viver, de gozar, de amar e ser feliz. Dizei ao moribundo que ele viver ainda; que a sua hora re-tardada; dizei-lhe sobretudo que ser mais feliz do que porventura o tenha sido, e o seu corao rejubilar.

    De que serviriam, ento, essas aspiraes de felicidade, se um leve sopro pudesse dissip-las?

    Haver algo de mais desesperador do que esse pensamento da des-truio absoluta? Afeies caras, inteligncia, progresso, saber laboriosa-mente adquiridos, tudo despedaado, tudo perdido! De nada nos serviria, portanto, qualquer esforo na represso das paixes, de fadiga para nos ilustrarmos, de devotamento causa do progresso, desde que de tudo isso nada aproveitssemos, predominando o pensamento de que amanh mes-mo, talvez, de nada nos serviria tudo isso. Se assim fora, a sorte do homem seria cem vezes pior que a do bruto, porque este vive inteiramente do pre-sente na satisfao dos seus apetites materiais, sem aspirao para o futuro. Diz-nos uma secreta intuio, porm, que isso no possvel.

    2. Pela crena em o nada, o homem concentra todos os seus pensa-mentos, forosamente, na vida presente.

  • Logicamente no se explicaria a preocupao de um futuro que se no espera.

    Esta preocupao exclusiva do presente conduz o homem a pensar em si, de preferncia a tudo: , pois, o mais poderoso estmulo ao egos-mo, e o incrdulo consequente quando chega seguinte concluso: Gozemos enquanto aqui estamos; gozemos o mais possvel, pois que co-nosco tudo se acaba; gozemos depressa, porque no sabemos por quanto tempo existiremos.

    Ainda consequente esta outra concluso, alis mais grave para a sociedade: Gozemos apesar de tudo, gozemos de qualquer modo, cada qual por si; a felicidade neste mundo do mais astuto.

    E se o respeito humano contm a alguns seres, que freio haver para os que nada temem?

    Acreditam estes ltimos que as leis humanas no atingem seno os ineptos e assim empregam todo o seu engenho no melhor meio de a elas se esquivarem.

    Se h doutrina insensata e antissocial, , seguramente, o niilismo que rompe os verdadeiros laos de solidariedade e fraternidade, em que se fundam as relaes sociais.

    3. Suponhamos que, por uma circunstncia qualquer, todo um povo adquire a certeza de que em oito dias, num ms, ou num ano ser aniquilado; que nem um s indivduo lhe sobreviver, como de sua exis-tncia no sobreviver nem um s trao: Que far esse povo condenado, aguardando o extermnio?

    Trabalhar pela causa do seu progresso, da sua instruo? Entregar--se- ao trabalho para viver? Respeitar os direitos, os bens, a vida do seu semelhante? Submeter-se- a qualquer lei ou autoridade por mais legti-ma que seja, mesmo a paterna?

    Haver para ele, nessa emergncia, qualquer dever? Certo que no. Pois bem! O que se no d coletivamente, a doutrina do niilismo

    realiza todos os dias isoladamente, individualmente.E se as consequncias no so desastrosas tanto quanto poderiam

    ser, , em primeiro lugar, porque na maioria dos incrdulos h mais jac-tncia que verdadeira incredulidade, mais dvida que convico pos-suindo eles mais medo do nada do que pretendem aparentar o qua-lificativo de espritos fortes lisonjeia-lhes a vaidade e o amor-prprio;

    Primeira Parte Captulo I

    12

  • em segundo lugar, porque os incrdulos absolutos se contam por nfima minoria, e sofrem, malgrado eles, a ascendncia da opinio contrria e so mantidos por uma fora material.

    Se um dia, porm, a incredulidade absoluta chegar a ser o pensa-mento da maioria, a ento a sociedade se dissolver.

    Eis ao que tende a propagao da doutrina niilista.1

    Fossem, porm, quais fossem as suas consequncias, uma vez que se impusesse como verdadeira, seria preciso aceit-la, e nem sistemas contrrios, nem a ideia dos males resultantes poderiam obstar-lhe a exis-tncia. Foroso dizer que, a despeito dos melhores esforos da Religio, o ceticismo, a dvida, a indiferena ganham terreno dia a dia.

    Se a Religio se mostra impotente para sustar a incredulidade, que lhe falta alguma coisa na luta. Se por outro lado a Religio se conde-nasse imobilidade, estaria, em dado tempo, dissolvida.

    O que lhe falta neste sculo de positivismo, em que se procura compreender antes de crer, , sem dvida, a sano de suas doutrinas por fatos positivos, assim como a concordncia das mesmas com os dados positivos da Cincia. Dizendo ela ser branco o que os fatos dizem ser negro, preciso optar entre a evidncia e a f cega.

    4. nestas circunstncias que o Espiritismo vem opor um dique difuso da incredulidade, no somente pelo raciocnio, no somente pela perspectiva dos perigos que ela acarreta, mas pelos fatos materiais, tornando visveis e tangveis a alma e a vida futura.

    Todos somos livres na escolha das nossas crenas; podemos crer em alguma coisa ou em nada crer, mas aqueles que procuram fazer pre-valecer no esprito das massas, da juventude principalmente, a negao 1 Nota de Allan Kardec: Um moo de 18 anos, afetado de uma enfermidade do corao, foi declarado

    incurvel. A Cincia havia dito: Pode morrer dentro de oito dias ou de dois anos, mas no ir alm. Sabendo-o, o moo para logo abandonou os estudos e entregou-se a excessos de todo o gnero.

    Quando se lhe ponderava o perigo de uma vida desregrada, respondia: Que me importa, se no tenho mais de dois anos de vida? De que me serviria fatigar o esprito? Gozo o pouco que me resta e quero divertir-me at o fim. Eis a consequncia lgica do niilismo.

    Se este moo fora esprita, teria dito: A morte s destruir o corpo, que deixarei como fato usado, mas o meu Esprito viver. Serei na vida futura aquilo que eu prprio houver feito de mim nesta vida; do que nela puder adquirir em qualidades morais e intelectuais nada perderei, porque ser outro tanto de ganho para o meu adiantamento; toda a imperfeio de que me livrar ser um passo a mais para a felicidade. A minha felicidade ou infelicidade depende da utilidade ou inutilidade da presente existncia. portanto de meu interesse aproveitar o pouco tempo que me resta, e evitar tudo o que possa diminuir-me as foras.

    Qual destas doutrinas prefervel?

    O porvir e o nada

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  • do futuro, apoiando-se na autoridade do seu saber e no ascendente da sua posio, semeiam na sociedade germens de perturbao e dissoluo, in-correndo em grande responsabilidade.

    5. H uma doutrina que se defende da pecha de materialista porque admite a existncia de um princpio inteligente fora da matria: a da absoro no Todo Universal.

    Segundo esta doutrina, cada indivduo assimila ao nascer uma par-cela desse princpio, que constitui sua alma, e d-lhe vida, inteligncia e sentimento.

    Pela morte, esta alma volta ao foco comum e perde-se no infinito, qual gota dgua no oceano.

    Incontestavelmente esta doutrina um passo adiantado sobre o puro materialismo, visto como admite alguma coisa, quando este nada admite. As consequncias, porm, so exatamente as mesmas.

    Ser o homem imerso em o nada ou no reservatrio comum, para ele a mesma coisa; aniquilado ou perdendo a sua individualidade, como se no existisse; as relaes sociais nem por isso deixam de romper-se, e para sempre.

    O que lhe essencial a conservao do seu eu; sem este, que lhe importa ou no subsistir?

    O futuro afigura-se-lhe sempre nulo, e a vida presente a nica coisa que o interessa e preocupa.

    Sob o ponto de vista das consequncias morais, esta doutrina , pois, to insensata, to desesperadora, to subversiva como o materialismo propriamente dito.

    6. Pode-se, alm disso, fazer esta objeo: todas as gotas dgua to-madas ao oceano se assemelham e possuem idnticas propriedades como partes de um mesmo todo; por que, pois, as almas tomadas ao grande oceano da inteligncia universal to pouco se assemelham? Por que o g-nio e a estupidez, as mais sublimes virtudes e os vcios mais ignbeis? Por que a bondade, a doura, a mansuetude ao lado da maldade, da cruel-dade, da barbaria? Como podem ser to diferentes entre si as partes de um mesmo todo homogneo? Dir-se- que a educao que a modifica? Neste caso donde vm as qualidades inatas, as inteligncias precoces, os bons e maus instintos independentes de toda a educao e tantas vezes em desarmonia com o meio no qual se desenvolvem?

    Primeira Parte Captulo I

    14

  • No resta dvida de que a educao modifica as qualidades inte-lectuais e morais da alma, mas aqui ocorre uma outra dificuldade: Quem d a esta a educao para faz-la progredir? Outras almas que por sua origem comum no devem ser mais adiantadas. Alm disso, reentrando a alma no Todo Universal donde saiu, e havendo progredido durante a vida, leva-lhe um elemento mais perfeito. Da se infere que esse Todo se encontraria, pela continuao, profundamente modificado e melhorado. Assim, como se explica sarem incessantemente desse Todo almas igno-rantes e perversas?

    7. Nesta doutrina, a fonte universal de inteligncia que abastece as almas humanas independente da Divindade; no precisamente o pantesmo.

    O pantesmo propriamente dito considera o princpio universal de vida e de inteligncia como constituindo a Divindade. Deus conco-mitantemente Esprito e matria; todos os seres, todos os corpos da na-tureza compem a Divindade, da qual so as molculas e os elementos constitutivos; Deus o conjunto de todas as inteligncias reunidas; cada indivduo, sendo uma parte do todo, Deus ele prprio; nenhum ser superior e independente rege o conjunto; o universo uma imensa re-pblica sem chefe, ou antes, onde cada qual chefe com poder absoluto.

    8. A este sistema podem opor-se inumerveis objees, das quais so estas as principais: no se podendo conceber divindade sem infinita perfeio, pergunta-se como um todo perfeito pode ser formado de par-tes to imperfeitas, tendo necessidade de progredir? Devendo cada parte ser submetida lei do progresso, fora convir que o prprio Deus deve progredir; e se Ele progride constantemente, deveria ter sido, na origem dos tempos, muito imperfeito.

    E como pde um ser imperfeito, formado de ideias to divergen-tes, conceber leis to harmnicas, to admirveis de unidade, de sabe-doria e previdncia quais as que regem o universo? Se todas as almas so pores da Divindade, todos concorreram para as Leis da natureza; como sucede, pois, que elas murmurem sem cessar contra essas leis que so obra sua? Uma teoria no pode ser aceita como verdadeira seno com a condio de satisfazer a razo e dar conta de todos os fatos que abran-ge; se um s fato lhe trouxer um desmentido, que no contm a verdade absoluta.

    O porvir e o nada

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  • 9. Sob o ponto de vista moral, as consequncias so igualmente il-gicas. Em primeiro lugar para as almas, tal como no sistema precedente, a absoro num todo e a perda da individualidade. Dado que se admita, consoante a opinio de alguns pantestas, que as almas conservem essa individualidade, Deus deixaria de ter vontade nica para ser um composto de mirades de vontades divergentes.

    Alm disso, sendo cada alma parte integrante da Divindade, deixa de ser dominada por um poder superior; no incorre em responsabilidade por seus atos bons ou maus; soberana, no tendo interesse algum na prtica do bem, ela pode praticar o mal impunemente.

    10. Ademais, estes sistemas no satisfazem nem a razo nem a aspi-rao humanas; deles decorrem dificuldades insuperveis, pois so impo-tentes para resolver todas as questes de fato que suscitam. O homem tem, pois, trs alternativas: o nada, a absoro ou a individualidade da alma antes e depois da morte.

    para esta ltima crena que a lgica nos impele irresistivelmente, crena que tem formado a base de todas as religies desde que o mundo existe.

    E se a lgica nos conduz individualidade da alma, tambm nos aponta esta outra consequncia: a sorte de cada alma deve depender das suas qualidades pessoais, pois seria irracional admitir que a alma atrasada do selvagem, como a do homem perverso, estivesse no nvel da do sbio, do homem de bem. Segundo os princpios de justia, as almas devem ter a responsabilidade dos seus atos, mas para haver essa responsabilidade, pre-ciso que elas sejam livres na escolha do bem e do mal; sem o livre-arbtrio h fatalidade, e com a fatalidade no coexistiria a responsabilidade.

    11. Todas as religies admitiram igualmente o princpio da felicida-de ou infelicidade da alma aps a morte, ou, por outra, as penas e gozos futuros, que se resumem na doutrina do Cu e do inferno encontrada em toda parte.

    No que elas diferem essencialmente, quanto natureza dessas pe-nas e gozos, principalmente sobre as condies determinantes de umas e de outras.

    Da os pontos de f contraditrios dando origem a cultos diferentes, e os deveres impostos por estes, consecutivamente, para honrar a Deus e alcanar por esse meio o Cu, evitando o inferno.

    Primeira Parte Captulo I

    16

  • 12. Todas as religies houveram de ser em sua origem relativas ao grau de adiantamento moral e intelectual dos homens: estes, assaz materializados para compreenderem o mrito das coisas puramente espiri-tuais, fizeram consistir a maior parte dos deveres religiosos no cumprimen-to de frmulas exteriores.

    Por muito tempo essas frmulas lhes satisfizeram a razo; porm, mais tarde, porque se fizesse a luz em seu esprito, sentindo o vcuo des-sas frmulas, uma vez que a Religio no o preenchia, abandonaram-na e tornaram-se filsofos.

    13. Se a Religio, apropriada em comeo aos conhecimentos limitados do homem, tivesse acompanhado sempre o movimento progressivo do esprito humano, no haveria incrdulos, porque est na prpria natureza do homem a necessidade de crer, e ele crer desde que se lhe d o pbulo espiritual de har-monia com as suas necessidades intelectuais.

    O homem quer saber donde veio e para onde vai. Mostrando-se-lhe um fim que no corresponde s suas aspiraes nem ideia que ele faz de Deus, tampouco aos dados positivos que lhe fornece a Cincia; impondo--se-lhe, ademais, para atingir o seu desiderato, condies cuja utilidade sua razo contesta, ele tudo rejeita; o materialismo e o pantesmo parecem-lhe mais racionais, porque com eles ao menos se raciocina e se discute, falsa-mente embora. E h razo, porque antes raciocinar em falso do que no raciocinar absolutamente.

    Apresente-se-lhe, porm, um futuro condicionalmente lgico, digno em tudo da grandeza, da justia e da infinita bondade de Deus, e ele repu-diar o materialismo e o pantesmo, cujo vcuo sente em seu foro ntimo, e que aceitar falta de melhor crena.

    O Espiritismo d coisa melhor; eis por que acolhido pressurosa-mente por todos os atormentados da dvida, os que no encontram nem nas crenas nem nas filosofias vulgares o que procuram. O Espiritismo tem por si a lgica do raciocnio e a sano dos fatos, e por isso que inutil-mente o tm combatido.

    14. Instintivamente tem o homem a crena no futuro, mas no pos-suindo at agora nenhuma base certa para defini-lo, a sua imaginao fan-tasiou os sistemas que originaram a diversidade de crenas. A Doutrina Esprita sobre o futuro no sendo uma obra de imaginao mais ou menos arquitetada engenhosamente, porm o resultado da observao de

    O porvir e o nada

    17

  • fatos materiais que se desdobram hoje nossa vista congraar, como j est acontecendo, as opinies divergentes ou flutuantes e trar gradual-mente, pela fora das coisas, a unidade de crenas sobre esse ponto, no j baseada em simples hiptese, mas na certeza. A unificao feita relativa-mente sorte futura das almas ser o primeiro ponto de contato dos diversos cultos, um passo imenso para a tolerncia religiosa em primeiro lugar e, mais tarde, para a completa fuso.

    Primeira Parte Captulo I

    18

  • CAPTULO II

    M

    Temor da morte

    Causas do temor da morte Por que os espritas no temem a morte

    Causas do temor da morte1. O homem, seja qual for a escala de sua posio social, desde sel-

    vagem tem o sentimento inato do futuro; diz-lhe a intuio que a morte no a ltima fase da existncia e que aqueles cuja perda lamentamos no esto irremissivelmente perdidos.

    A crena da imortalidade intuitiva e muito mais generalizada do que a do nada. Entretanto, a maior parte dos que nela creem apresentam--se-nos possudos de grande amor s coisas terrenas e temerosos da morte! Por qu?

    2. Este temor um efeito da sabedoria da Providncia e uma con-sequncia do instinto de conservao comum a todos os viventes. Ele necessrio enquanto no se est suficientemente esclarecido sobre as con-dies da vida futura, como contrapeso tendncia que, sem esse freio, nos levaria a deixar prematuramente a vida e a negligenciar o trabalho terreno que deve servir ao nosso prprio adiantamento.

    Assim que, nos povos primitivos, o futuro uma vaga intuio, mais tarde tornada simples esperana e, finalmente, uma certeza apenas atenuada por secreto apego vida corporal.

    3. proporo que o homem compreende melhor a vida futura, o temor da morte diminui; uma vez esclarecida a sua misso terrena, aguar-da-lhe o fim calmo, resignado e serenamente. A certeza da vida futura

  • d-lhe outro curso s ideias, outro fito ao trabalho; antes dela nada que se no prenda ao presente; depois dela tudo pelo futuro sem desprezo do presente, porque sabe que aquele depende da boa ou da m direo deste.

    A certeza de reencontrar seus amigos depois da morte, de reatar as relaes que tivera na Terra, de no perder um s fruto do seu trabalho, de engrandecer-se incessantemente em inteligncia, perfeio, d-lhe pacin-cia para esperar e coragem para suportar as fadigas transitrias da vida terrestre. A solidariedade entre vivos e mortos faz-lhe compreender a que deve existir na Terra, onde a fraternidade e a caridade tm desde ento um fim e uma razo de ser, no presente como no futuro.

    4. Para libertar-se do temor da morte mister poder encar-la sob o seu verdadeiro ponto de vista, isto , ter penetrado pelo pensamento no mundo espiritual, fazendo dele uma ideia to exata quanto possvel, o que denota da parte do Esprito encarnado um tal ou qual desenvolvimento e aptido para desprender-se da matria.

    No Esprito atrasado a vida material prevalece sobre a espiritual. Apegando-se s aparncias, o homem no distingue a vida alm do corpo, esteja embora na alma a vida real; aniquilado aquele, tudo se lhe afigura perdido, desesperador.

    Se, ao contrrio, concentrarmos o pensamento, no no corpo, mas na alma, fonte da vida, ser real a tudo sobrevivente, lastimaremos menos a perda do corpo, antes fonte de misrias e dores. Para isso, porm, necessita o Esprito de uma fora s adquirvel na madureza.

    O temor da morte decorre, portanto, da noo insuficiente da vida futura, embora denote tambm a necessidade de viver e o receio da destrui-o total; igualmente o estimula secreto anseio pela sobrevivncia da alma, velado ainda pela incerteza.

    Esse temor decresce, proporo que a certeza aumenta, e desapare-ce quando esta completa.

    Eis a o lado providencial da questo. Ao homem no suficientemen-te esclarecido, cuja razo mal pudesse suportar a perspectiva muito positiva e sedutora de um futuro melhor, prudente seria no o deslumbrar com tal ideia, desde que por ela pudesse negligenciar o presente, necessrio ao seu adiantamento material e intelectual.

    5. Este estado de coisas entretido e prolongado por causas pura-mente humanas, que o progresso far desaparecer. A primeira a feio

    Primeira Parte Captulo II

    20

  • com que se insinua a vida futura, feio que poderia contentar as inteli-gncias pouco desenvolvidas, mas que no conseguiria satisfazer a razo esclarecida dos pensadores refletidos. Assim, dizem estes: Desde que nos apresentam como verdades absolutas princpios contestados pela lgica e pelos dados positivos da Cincia, que eles no so verdades. Da, a in-credulidade de uns e a crena dbia de um grande nmero.

    A vida futura -lhes uma ideia vaga, antes uma probabilidade do que certeza absoluta; acreditam, desejariam que assim fosse, mas apesar disso exclamam: Se todavia assim no for! O presente positivo, ocupemo-nos dele primeiro, que o futuro por sua vez vir.

    E depois, acrescentam, definitivamente o que a alma? Um ponto, um tomo, uma fasca, uma chama? Como se sente, v ou percebe? que a alma no lhes parece uma realidade efetiva, mas uma abstrao.

    Os entes que lhes so caros, reduzidos ao estado de tomos no seu modo de pensar, esto perdidos, e no tm mais a seus olhos as qualida-des pelas quais se lhes fizeram amados; no podem compreender o amor de uma fasca nem o que a ela possamos ter. Quanto a si mesmos, ficam mediocremente satisfeitos com a perspectiva de se transformarem em m-nadas. Justifica-se assim a preferncia ao positivismo da vida terrestre, que algo possui de mais substancial.

    considervel o nmero dos dominados por este pensamento.6. Outra causa de apego s coisas terrenas, mesmo nos que mais

    firmemente creem na vida futura, a impresso do ensino que relativa-mente a ela se lhes h dado desde a infncia. Convenhamos que o quadro pela Religio esboado, sobre o assunto, nada sedutor e ainda menos consolatrio.

    De um lado, contores de condenados a expiarem em torturas e chamas eternas os erros de uma vida efmera e passageira. Os sculos su-cedem-se aos sculos e no h para tais desgraados sequer o lenitivo de uma esperana e, o que mais atroz , no lhes aproveita o arrependimento. De outro lado, as almas combalidas e aflitas do purgatrio aguardam a sua libertao por meio da boa vontade dos vivos que oraro ou faro orar por elas, sem nada fazerem de esforo prprio para progredirem.

    Estas duas categorias compem a maioria imensa da populao de alm-tmulo. Acima delas, paira a limitada classe dos eleitos, gozando, por toda a eternidade, da beatitude contemplativa. Esta inutilidade eterna,

    Temor da morte

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  • prefervel sem dvida ao nada, no deixa de ser de uma fastidiosa mo-notonia. por isso que se v, nas figuras que retratam os bem-aventura-dos, figuras anglicas em que mais transparece o tdio que a verdadeira felicidade.

    Este estado no satisfaz nem as aspiraes nem a instintiva ideia de progresso, nica que se afigura compatvel com a felicidade absoluta. Cus-ta crer que, s por haver recebido o batismo, o selvagem ignorante de senso moral obtuso , esteja no mesmo nvel do homem que atingiu, aps longos anos de trabalho, o mais alto grau de cincia e moralidade prticas. Menos concebvel ainda que a criana falecida em tenra idade, antes de ter conscincia de seus atos, goze dos mesmos privilgios somente por fora de uma cerimnia na qual a sua vontade no teve parte alguma. Estes raciocnios no deixam de preocupar os mais fervorosos crentes, por pouco que meditem.

    7. No dependendo a felicidade futura do trabalho progressivo na Terra, a facilidade com que se acredita adquirir essa felicidade, por meio de algumas prticas exteriores, e a possibilidade at de a comprar a dinheiro, sem regenerao de carter e costumes, do aos gozos do mundo o melhor valor.

    Mais de um crente considera, em seu foro ntimo, que assegura-do o seu futuro pelo preenchimento de certas frmulas ou por ddivas pstumas, que de nada o privam, seria suprfluo impor-se sacrifcios ou quaisquer incmodos por outrem, uma vez que se consegue a salvao trabalhando cada qual por si.

    Seguramente, nem todos pensam assim, havendo mesmo muitas e honrosas excees; mas no se poderia contestar que assim pensa o maior nmero, sobretudo das massas pouco esclarecidas, e que a ideia que fazem das condies de felicidade no outro mundo no entretenha o apego aos bens deste, acorooando o egosmo.

    8. Acrescentemos ainda a circunstncia de tudo nas usanas con-correr para lamentar a perda da vida terrestre e temer a passagem da Terra ao Cu. A morte rodeada de cerimnias lgubres, mais prprias a infundirem terror do que a provocarem a esperana. Se descrevem a morte, sempre com aspecto repelente e nunca como sono de transio; todos os seus emblemas lembram a destruio do corpo, mostrando-o hediondo e descarnado; nenhum simboliza a alma desembaraando-se

    Primeira Parte Captulo II

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  • radiosa dos grilhes terrestres. A partida para esse mundo mais feliz s se faz acompanhar do lamento dos sobreviventes, como se imensa desgraa atingira os que partem; dizem-lhes eternos adeuses como se jamais de-vessem rev-los. Lastima-se por eles a perda dos gozos mundanos, como se no fossem encontrar maiores gozos no alm-tmulo. Que desgraa, dizem, morrer to jovem, rico e feliz, tendo a perspectiva de um futuro brilhante! A ideia de um futuro melhor apenas toca de leve o pensamen-to, porque no tem nele razes. Tudo concorre, assim, para inspirar o terror da morte, em vez de infundir esperana.

    Sem dvida que muito tempo ser preciso para o homem se desfazer desses preconceitos, o que no quer dizer que isto no suceda, medida que a sua f se for firmando, a ponto de conceber uma ideia mais sensata da vida espiritual.

    9. Ademais, a crena vulgar coloca as almas em regies apenas acess-veis ao pensamento, onde se tornam de alguma sorte estranhas aos vivos; a prpria Igreja pe entre umas e outras uma barreira insupervel, declaran-do rotas todas as relaes e impossvel qualquer comunicao. Se as almas esto no inferno, perdida toda a esperana de as rever, a menos que l se v ter tambm; se esto entre os eleitos, vivem completamente absortas em contemplativa beatitude. Tudo isso interpe entre mortos e vivos uma distncia tal que faz supor eterna a separao, e por isso que muitos pre-ferem ter junto de si, embora sofram, os entes caros, antes que v-los partir, ainda mesmo que para o Cu.

    E a alma que estiver no Cu ser realmente feliz vendo, por exemplo, arder eternamente seu filho, seu pai, sua me ou seus amigos?

    Por que os espritas no temem a morte10. A Doutrina Esprita transforma completamente a perspectiva

    do futuro. A vida futura deixa de ser uma hiptese para ser realidade. O estado das almas depois da morte no mais um sistema, porm o resul-tado da observao. Ergueu-se o vu; o mundo espiritual aparece-nos na plenitude de sua realidade prtica; no foram os homens que o descobri-ram pelo esforo de uma concepo engenhosa, so os prprios habitantes desse mundo que nos vm descrever a sua situao; a os vemos em todos os graus da escala espiritual, em todas as fases da felicidade e da desgraa,

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  • assistindo, enfim, a todas as peripcias da vida de alm-tmulo. Eis a por que os espritas encaram a morte calmamente e se revestem de serenidade nos seus ltimos momentos sobre a Terra. J no s a esperana, mas a certeza que os conforta; sabem que a vida futura a continuao da vida terrena em melhores condies e aguardam-na com a mesma confiana com que aguardariam o despontar do Sol aps uma noite de tempestade. Os motivos dessa confiana decorrem, outrossim, dos fatos testemunhados e da concordncia desses fatos com a lgica, com a justia e bondade de Deus, correspondendo s ntimas aspiraes da humanidade.

    Para os espritas, a alma no uma abstrao; ela tem um corpo etreo que a define ao pensamento, o que muito para fixar as ideias sobre a sua individualidade, aptides e percepes. A lembrana dos que nos so caros repousa sobre alguma coisa de real. No se nos apresentam mais como chamas fugitivas que nada falam ao pensamento, porm sob uma forma concreta que antes no-los mostra como seres viventes. Alm disso, em vez de perdidos nas profundezas do Espao, esto ao redor de ns; o mundo corporal e o mundo espiritual identificam-se em perptuas rela-es, assistindo-se mutuamente.

    No mais permissvel sendo a dvida sobre o futuro, desaparece o temor da morte; encara-se a sua aproximao a sangue-frio, como quem aguarda a libertao pela porta da vida, e no do nada.

    Primeira Parte Captulo II

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  • CAPTULO III

    M

    O cu

    1. Em geral, a palavra cu designa o espao indefinido que circunda a Terra, e mais particularmente a parte que est acima do nosso horizonte. Vem do latim celum, formada do grego colos, cncavo, porque o cu pa-rece uma imensa concavidade.

    Os antigos acreditavam na existncia de muitos cus superpostos, de matria slida e transparente, formando esferas concntricas e tendo a Terra por centro.

    Girando essas esferas em torno da Terra, arrastavam consigo os astros que se achavam em seu circuito.

    Essa ideia, provinda da deficincia de conhecimentos astronmicos, foi a de todas as teogonias, que fizeram dos cus, assim escalados, os di-versos degraus da bem-aventurana: o ltimo deles era abrigo da suprema felicidade.

    Segundo a opinio mais comum, havia sete cus e da a expresso estar no stimo cu para exprimir perfeita felicidade. Os muulmanos admitem nove cus,2 em cada um dos quais se aumenta a felicidade dos crentes.

    O astrnomo Ptolomeu3 contava onze e denominava ao ltimo Empreo4 por causa da luz brilhante que nele reina.

    este ainda hoje o nome potico dado ao lugar da glria eterna. A teologia crist reconhece trs cus: o primeiro o da regio do ar e das

    2 N.E.: Foi realizada pesquisa no Alcoro, livro considerado sagrado pelos muulmanos, e em vrias suratas (captulos) foi constatada a crena em sete cus, e no em nove como o descrito acima.

    3 Nota de Allan Kardec: Ptolomeu viveu em Alexandria, Egito, no segundo sculo da Era Crist.4 Nota de Allan Kardec: Do grego, pur ou pyr, fogo.

  • nuvens; o segundo, o espao em que giram os astros, e o terceiro, para alm deste, a morada do Altssimo, a habitao dos que o contemplam face a face. conforme a esta crena que se diz que Paulo foi alado ao terceiro cu.

    2. As diferentes doutrinas relativamente ao Paraso repousam todas no duplo erro de considerar a Terra centro do universo, e limitada a regio dos astros.

    alm desse limite imaginrio que todas tm colocado a residncia afortunada e a morada do Todo-Poderoso.

    Singular anomalia que coloca o Autor de todas as coisas, Aquele que as governa a todas, nos confins da Criao, em vez de no centro, donde o seu pensamento poderia, irradiante, abranger tudo!

    3. A Cincia, com a lgica inexorvel da observao e dos fatos, le-vou o seu archote s profundezas do Espao e mostrou a nulidade de todas essas teorias.

    A Terra no mais o eixo do universo, porm um dos menores astros que rolam na imensidade; o prprio Sol mais no do que o centro de um turbilho planetrio; as estrelas so outros tantos e inumerveis sis, em torno dos quais circulam mundos sem conta, separados por distncias apenas acessveis ao pensamento, embora se nos afigure tocarem-se. Neste conjunto grandioso, regido por leis eternas reveladoras da sabedoria e onipotncia do Criador , a Terra no mais que um ponto impercept-vel e um dos planetas menos favorecidos quanto habitabilidade. E, assim sendo, lcito perguntar por que Deus faria da Terra a nica sede da vida e nela degredaria as suas criaturas prediletas? Ao contrrio, tudo anuncia a vida por toda parte e a humanidade infinita como o universo.

    Revelando-nos a Cincia mundos semelhantes ao nosso, Deus no podia t-los criado sem intuito, antes deve t-los povoado de seres capazes de os governar.

    4. As ideias do homem esto na razo do que ele sabe; como todas as descobertas importantes, a da constituio dos mundos deveria imprimir--lhes outro curso; sob a influncia desses conhecimentos novos, as crenas se modificaram; o Cu foi deslocado e a regio estelar, sendo ilimitada, no mais lhe pode servir. Onde est ele, pois? E ante esta questo emudecem todas as religies.

    Primeira Parte Captulo III

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  • O Espiritismo vem resolv-las demonstrando o verdadeiro destino do homem. Tomando-se por base a natureza deste ltimo e os atributos divinos, chega-se a uma concluso; isto quer dizer que partindo do co-nhecido atinge-se o desconhecido por uma deduo lgica, sem falar das observaes diretas que o Espiritismo faculta.

    5. O homem compe-se de corpo e Esprito: o Esprito o ser prin-cipal, racional, inteligente; o corpo o invlucro material que reveste o Esprito temporariamente, para preenchimento da sua misso na Terra e execuo do trabalho necessrio ao seu adiantamento. O corpo, usado, destri-se e o Esprito sobrevive sua destruio. Privado do Esprito, o corpo apenas matria inerte, qual instrumento privado da mola real de funo; sem o corpo, o Esprito tudo; a vida, a inteligncia. Ao deixar o corpo, torna ao mundo espiritual, onde paira, para depois reencarnar.

    Existem, portanto, dois mundos: o corporal, composto de Espritos encarnados; e o espiritual, formado dos Espritos desencarnados. Os seres do mundo corporal, devido mesmo materialidade do seu envoltrio, es-to ligados Terra ou a qualquer globo; o mundo espiritual ostenta-se por toda parte, em redor de ns como no Espao, sem limite algum designado. Em razo mesmo da natureza fludica do seu envoltrio, os seres que o compem, em lugar de se arrastarem penosamente sobre o solo, transpem as distncias com a rapidez do pensamento.

    A morte do corpo no mais que a ruptura dos laos que os reti-nham cativos.

    6. Os Espritos so criados simples e ignorantes, mas dotados de aptido para tudo conhecerem e para progredirem, em virtude do seu livre--arbtrio. Pelo progresso adquirem novos conhecimentos, novas faculda-des, novas percepes e, conseguintemente, novos gozos desconhecidos dos Espritos inferiores; eles veem, ouvem, sentem e compreendem o que os Espritos atrasados no podem ver, sentir, ouvir ou compreender.

    A felicidade est na razo direta do progresso realizado, de sorte que, de dois Espritos, um pode no ser to feliz quanto outro, unicamente por no possuir o mesmo adiantamento intelectual e moral, sem que por isso precisem estar, cada qual, em lugar distinto. Ainda que juntos, pode um estar em trevas, enquanto tudo resplandece para o outro, tal como um cego e um vidente que se do as mos: este percebe a luz da qual aquele no recebe a mnima impresso.

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  • Sendo a felicidade dos Espritos inerente s suas qualidades, haurem-na eles em toda parte em que se encontram, seja superfcie da Terra, no meio dos encarnados, ou no Espao.

    Uma comparao vulgar far compreender melhor esta situao. Se se encontrarem em um concerto dois homens, um, bom msico, de ouvi-do educado, e outro, desconhecedor da msica, de sentido auditivo pou-co delicado, o primeiro experimentar sensao de felicidade, enquanto o segundo permanecer insensvel, porque um compreende e percebe o que nenhuma impresso produz no outro. Assim sucede quanto a todos os gozos dos Espritos, que esto na razo da sua sensibilidade.

    O mundo espiritual tem esplendores por toda parte, harmonias e sensa-es que os Espritos inferiores, submetidos influncia da matria, no entre-veem sequer, e que somente so acessveis aos Espritos purificados.

    7. O progresso nos Espritos o fruto do prprio trabalho; mas, como so livres, trabalham no seu adiantamento com maior ou menor ati-vidade, com mais ou menos negligncia, segundo sua vontade, acelerando ou retardando o progresso e, por conseguinte, a prpria felicidade.

    Enquanto uns avanam rapidamente, entorpecem-se outros, quais poltres nas fileiras inferiores. So eles, pois, os prprios autores da sua situao, feliz ou desgraada, conforme esta frase do Cristo: A cada um segundo as suas obras. (Romanos, 2:6.)

    Todo Esprito que se atrasa no pode queixar-se seno de si mesmo, assim como o que se adianta tem o mrito exclusivo do seu esforo, dando por isso maior apreo felicidade conquistada.

    A suprema felicidade s compartilhada pelos Espritos perfeitos, ou, por outra, pelos puros Espritos, que no a conseguem seno depois de haverem progredido em inteligncia e moralidade.

    O progresso intelectual e o progresso moral raramente marcham juntos, mas o que o Esprito no consegue em dado tempo, alcana em outro, de modo que os dois progressos acabam por atingir o mesmo nvel.

    Eis por que se veem muitas vezes homens inteligentes e instrudos pouco adiantados moralmente, e vice-versa.

    8. A encarnao necessria ao duplo progresso moral e intelectual do Esprito: ao progresso intelectual pela atividade obrigatria do trabalho; ao progresso moral pela necessidade recproca dos homens entre si. A vida social a pedra de toque das boas ou ms qualidades.

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  • A bondade, a maldade, a doura, a violncia, a benevolncia, a cari-dade, o egosmo, a avareza, o orgulho, a humildade, a sinceridade, a fran-queza, a lealdade, a m-f, a hipocrisia, em uma palavra, tudo o que consti-tui o homem de bem ou o perverso tem por mvel, por alvo e por estmulo as relaes do homem com os seus semelhantes.

    Para o homem que vivesse isolado no haveria vcios nem virtudes; pre-servando-se do mal pelo isolamento, o bem de si mesmo se anularia.

    9. Uma s existncia corporal manifestamente insuficiente para o Esprito adquirir todo o bem que lhe falta e eliminar o mal que lhe sobra.

    Como poderia o selvagem, por exemplo, em uma s encarnao nivelar-se moral e intelectualmente ao mais adiantado europeu? mate-rialmente impossvel. Deve ele, pois, ficar eternamente na ignorncia e barbaria, privado dos gozos que s o desenvolvimento das faculdades pode proporcionar-lhe?

    O simples bom senso repele tal suposio, que seria no somente a negao da justia e bondade divinas, mas das prprias leis evolutivas e progressivas da natureza. Mas Deus, que soberanamente justo e bom, concede ao Esprito tantas encarnaes quantas as necessrias para atingir seu objetivo a perfeio.

    Para cada nova existncia entra o Esprito com o cabedal adquirido nas anteriores em aptides, conhecimentos intuitivos, inteligncia e mora-lidade. Cada existncia assim um passo avante no caminho do progresso.5

    A encarnao inerente inferioridade dos Espritos, deixando de ser necessria desde que estes, transpondo-lhe os limites, ficam aptos para progredir no estado espiritual, ou nas existncias corporais de mundos su-periores, que nada tm da materialidade terrestre. Da parte destes a encar-nao voluntria, tendo por fim exercer sobre os encarnados uma ao mais direta e tendente ao cumprimento da misso que lhes compete junto dos mesmos. Desse modo aceitam abnegadamente as vicissitudes e sofri-mentos da encarnao.

    10. No intervalo das existncias corporais o Esprito torna a entrar no mundo espiritual, onde feliz ou desgraado segundo o bem ou o mal que fez.

    Uma vez que o estado espiritual o estado definitivo do Esprito e o corpo espiritual no morre, deve ser esse tambm o seu estado normal.

    5 Nota de Allan Kardec: Vede 1a Parte, cap. I, item 3, nota 1.

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  • O estado corporal transitrio e passageiro. no estado espiritual sobre-tudo que o Esprito colhe os frutos do progresso realizado pelo trabalho da encarnao; tambm nesse estado que se prepara para novas lutas e toma as resolues que h de pr em prtica na sua volta humanidade.

    O Esprito progride igualmente na erraticidade, adquirindo co-nhecimentos especiais que no poderia obter na Terra, e modificando as suas ideias. O estado corporal e o espiritual constituem a fonte de dois gneros de progresso, pelos quais o Esprito tem de passar alternadamen-te, nas existncias peculiares a cada um dos dois mundos.

    11. A reencarnao pode dar-se na Terra ou em outros mundos. H entre os mundos alguns mais adiantados onde a existncia se exerce em condies menos penosas que na Terra, fsica e moralmente, mas onde tambm s so admitidos Espritos chegados a um grau de perfei-o relativo ao estado desses mundos.

    A vida nos mundos superiores j uma recompensa, visto nos acharmos isentos, a, dos males e vicissitudes terrenos. Os corpos menos materiais, quase fludicos, no sujeitos a s molstias, s enfermidades, tampouco tm as mesmas necessidades. Excludos os Espritos maus, gozam os homens de plena paz, sem outra preocupao alm da do adiantamento pelo trabalho intelectual.

    Reina l a verdadeira fraternidade, porque no h egosmo; a ver-dadeira igualdade, porque no h orgulho, e a verdadeira liberdade por no haver desordens a reprimir, nem ambiciosos que procurem oprimir o fraco.

    Comparados Terra, esses mundos so verdadeiros parasos, quais pousos ao longo do caminho do progresso conducente ao estado defi-nitivo. Sendo a Terra um mundo inferior destinado purificao dos Espritos imperfeitos, est nisso a razo do mal que a predomina, at que praza a Deus fazer dela morada de Espritos mais adiantados. Assim que o Esprito, progredindo gradualmente medida que se desenvolve, chega ao apogeu da felicidade; porm, antes de ter atingido a culminncia da perfeio, goza de uma felicidade relativa ao seu progresso. A criana tambm frui os prazeres da infncia, mais tarde os da mocidade, e final-mente os mais slidos, da madureza.

    Primeira Parte Captulo III

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  • 12. A felicidade dos Espritos bem-aventurados no consiste na ociosidade contemplativa, que seria, como temos dito muitas vezes, uma eterna e fastidiosa inutilidade.

    A vida espiritual em todos os seus graus , ao contrrio, uma cons-tante atividade, mas atividade isenta de fadigas.

    A suprema felicidade consiste no gozo de todos os esplendores da Criao, que nenhuma linguagem humana jamais poderia descrever, que a imaginao mais fecunda no poderia conceber. Consiste tambm na penetrao de todas as coisas, na ausncia de sofrimentos fsicos e mo-rais, numa satisfao ntima, numa serenidade da alma imperturbvel, no amor que envolve todos os seres, e portanto na ausncia de atrito proveniente do contato com os maus, e, acima de tudo, na contemplao de Deus e na compreenso dos seus mistrios revelados aos mais dignos. A felicidade tambm existe nas tarefas cujo encargo nos faz felizes. Os puros Espritos so os messias ou mensageiros de Deus pela transmisso e execuo das suas vontades. Preenchem as grandes misses, presidem formao dos mundos e harmonia geral do universo, tarefa gloriosa a que se no chega seno pela perfeio. Os da ordem mais elevada so os nicos a possurem os segredos de Deus, inspirando-se no seu pensamen-to, de que so diretos representantes.

    13. As atribuies dos Espritos so proporcionadas ao seu pro-gresso, s luzes que possuem, s suas capacidades, experincia e grau de confiana inspirada ao Senhor soberano.

    Nem favores, nem privilgios que no sejam o prmio ao mrito; tudo medido e pesado na balana da estrita justia.

    As misses mais importantes so confiadas somente queles que Deus julga capazes de as cumprir e incapazes de desfalecimento ou com-prometimento. E enquanto que os mais dignos compem o supremo conselho, sob as vistas de Deus, a chefes superiores cometida a direo de turbilhes planetrios, e a outros conferida a de mundos especiais. Vm, depois, pela ordem de adiantamento e subordinao hierrquica, as atribuies mais restritas dos prepostos ao progresso dos povos, pro-teo das famlias e indivduos, ao impulso de cada ramo de progresso, s diversas operaes da natureza at os mais nfimos pormenores da Cria-o. Neste vasto e harmnico conjunto h ocupaes para todas as ca-pacidades, aptides e esforos; ocupaes aceitas com jbilo, solicitadas

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  • com ardor, por serem um meio de adiantamento para os Espritos que ao progresso aspiram.

    14. Ao lado das grandes misses confiadas aos Espritos superiores, h outras de importncia relativa em todos os graus, concedidas a Espri-tos de todas as categorias, podendo afirmar-se que cada encarnado tem a sua, isto , deveres a preencher a bem dos seus semelhantes, desde o chefe de famlia, a quem incumbe o progresso dos filhos, at o homem de g-nio que lana s sociedades novos germens de progresso. nessas misses secundrias que se verificam desfalecimentos, prevaricaes e renncias que prejudicam o indivduo sem afetar o todo.

    15. Todas as inteligncias concorrem, pois, para a obra geral, qual-quer que seja o grau atingido, e cada uma na medida das suas foras, seja no estado de encarnao ou no de esprito. Por toda parte a atividade, desde a base ao pice da escala, instruindo-se, coadjuvando-se em mtuo apoio, dando-se as mos para alcanarem o znite.

    Assim se estabelece a solidariedade entre o mundo espiritual e o corporal, ou, em outros termos, entre os homens e os Espritos, entre os Espritos libertos e os cativos. Assim se perpetuam e consolidam, pela purificao e continuidade de relaes, as verdadeiras simpatias e nobres afeies.

    Por toda parte, a vida e o movimento: nenhum canto do infinito despovoado, nenhuma regio que no seja incessantemente percorrida por legies inumerveis de Espritos radiantes, invisveis aos sentidos grosseiros dos encarnados, mas cuja vista deslumbra de alegria e admira-o as almas libertas da matria. Por toda parte, enfim, h uma felicidade relativa a todos os progressos, a todos os deveres cumpridos, trazendo cada um consigo os elementos de sua felicidade, decorrente da categoria em que se coloca pelo seu adiantamento.

    Das qualidades do indivduo depende-lhe a felicidade, e no do estado material do meio em que se encontra, podendo a felicidade, por-tanto, existir em qualquer parte onde haja Espritos capazes de a gozar. Nenhum lugar lhe circunscrito e assinalado no universo.

    Onde quer que se encontrem, os Espritos podem contemplar a majestade divina, porque Deus est em toda parte.

    16. Entretanto, a felicidade no pessoal: se a possussemos so-mente em ns mesmos, sem poder reparti-la com outrem, ela seria

    Primeira Parte Captulo III

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  • tristemente egosta. Tambm a encontramos na comunho de ideias que une os seres simpticos. Os Espritos felizes, atraindo-se pela similitude de ideias, gostos e sentimentos, formam vastos agrupamentos ou famlias homogneas, no seio das quais cada individualidade irradia as qualida-des prprias e satura-se dos eflvios serenos e benficos emanados do conjunto.

    Os membros deste, ora se dispersam para se darem sua misso, ora se renem em dado ponto do Espao a fim de se prestarem contas do trabalho realizado, ora se congregam em torno dum Esprito mais eleva-do para receberem instrues e conselhos.

    17. Posto que os Espritos estejam por toda parte, os mundos so de preferncia os seus centros de atrao, em virtude da analogia exis-tente entre eles e os que os habitam. Em torno dos mundos adiantados abundam Espritos superiores, como em torno dos atrasados pululam Espritos inferiores. Cada globo tem, de alguma sorte, sua populao prpria de Espritos encarnados e desencarnados, alimentada em sua maioria pela encarnao e desencarnao dos mesmos. Esta populao mais estvel nos mundos inferiores, pelo apego dos Espritos matria, e mais flutuante nos superiores.

    Destes ltimos, porm, verdadeiros focos de luz e felicidade, Es-pritos se destacam para mundos inferiores a fim de neles semearem os germens do progresso, levar-lhes consolao e esperana, levantar os ni-mos abatidos pelas provaes da vida. Por vezes tambm se encarnam para cumprir com mais eficcia a sua misso.

    18. Nessa imensidade ilimitada, onde est o Cu? Em toda parte. Nenhum contorno lhe traa limites. Os mundos adiantados so as l-timas estaes do seu caminho, que as virtudes franqueiam e os vcios interditam. Ante este quadro grandioso que povoa o universo, que d a todas as coisas da Criao um fim e uma razo de ser, quanto pequena e mesquinha a doutrina que circunscreve a humanidade a um ponto imperceptvel do Espao, que no-la mostra comeando em dado instante para acabar igualmente com o mundo que a contm, no abrangendo mais que um minuto na eternidade!

    Como triste, fria, glacial essa doutrina quando nos mostra o resto do universo, durante e depois da humanidade terrestre, sem vida, nem movimento, qual vastssimo deserto imerso em profundo silncio! Como

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  • desesperadora a perspectiva dos eleitos votados contemplao perp-tua, enquanto a maioria das criaturas padece tormentos sem-fim! Como lacera os coraes sensveis a ideia dessa barreira entre mortos e vivos! As almas ditosas, dizem, s pensam na sua felicidade, como as desgraadas, nas suas dores. Admira que o egosmo reine sobre a Terra quando no-lo mostram no Cu?

    Oh! quo mesquinha se nos afigura essa ideia da grandeza, do po-der e da bondade de Deus! Quanto sublime a ideia que dele fazemos pelo Espiritismo! Quanto a sua doutrina engrandece as ideias e amplia o pensamento! Mas quem diz que ela verdadeira? A razo primeiro, a revelao depois, e, finalmente, a sua concordncia com os progressos da Cincia. Entre duas doutrinas, das quais uma amesquinha e a outra exalta os atributos de Deus; das quais uma s est em desacordo e a outra em harmonia com o progresso; das quais uma se deixa ficar na retaguarda enquanto a outra caminha, o bom senso diz de que lado est a verdade. Que, confrontando-as, consulte cada qual a conscincia, e uma voz n-tima lhe falar por ela. Pois bem, essas aspiraes ntimas so a voz de Deus, que no pode enganar os homens.

    19. Dir-se-, por que Deus no lhes revelou de princpio toda a verdade? Pela mesma razo por que se no ensina infncia o que se ensina aos de idade madura.

    A revelao limitada foi suficiente a certo perodo da humanidade, e Deus a proporciona gradativamente ao progresso e s foras do Esprito.

    Os que recebem hoje uma revelao mais completa so os mesmos Espritos que tiveram dela uma partcula em outros tempos e que de en-to por diante se engrandeceram em inteligncia.

    Antes de a Cincia ter revelado aos homens as foras vivas da natu-reza, a constituio dos astros, o verdadeiro papel da Terra e sua forma-o, poderiam eles compreender a imensidade do Espao e a pluralidade dos mundos? Antes de a Geologia comprovar a formao da Terra, pode-riam os homens tirar-lhe o inferno das entranhas e compreender o senti-do alegrico dos seis dias da Criao? Antes de a Astronomia descobrir as leis que regem o universo, poderiam compreender que no h alto nem baixo no Espao, que o Cu no est acima das nuvens nem limitado pelas estrelas? Poderiam identificar-se com a vida espiritual antes dos progressos da cincia psicolgica? conceber depois da morte uma vida

    Primeira Parte Captulo III

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  • feliz ou desgraada, a no ser em lugar circunscrito e sob uma forma ma-terial? No; compreendendo mais pelos sentidos que pelo pensamento, o universo era muito vasto para a sua concepo; era preciso restringi-lo ao seu ponto de vista para alarg-lo mais tarde. Uma revelao parcial tinha sua utilidade, e, embora sbia at ento, no satisfaria hoje. O absurdo provm dos que pretendem poder governar os homens de pensamento, sem se darem conta do progresso das ideias, quais se fossem crianas. (Vede O evangelho segundo o espiritismo, cap. III.)

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  • CAPTULO IV

    M

    O inferno

    Intuio das penas futuras O inferno cristo imitado do inferno pago Os limbos Quadro do

    inferno pago Esboo do inferno cristo

    Intuio das penas futuras1. Desde todas as pocas o homem acreditou, por intuio, que a vida

    futura seria feliz ou infeliz, conforme o bem ou o mal praticado neste mun-do. A ideia que ele faz, porm, dessa vida, est em relao com o seu desen-volvimento, senso moral e noes mais ou menos justas do bem e do mal.

    As penas e recompensas so o reflexo dos instintos predominantes. Os povos guerreiros fazem consistir a suprema felicidade nas honras conferidas bravura; os caadores, na abundncia da caa; os sensuais, nas delcias da voluptuosidade. Dominado pela matria, o homem no pode compreender seno imperfeitamente a espiritualidade, imaginando para as penas e gozos futuros um quadro mais material que espiritual; afigura-se-lhe que deve comer e beber no outro mundo, porm, melhor que na Terra.6

    Mais tarde j se encontra nas crenas sobre a vida futura um misto de espiritualismo e materialismo: a beatitude contemplativa concorrendo com o inferno das torturas fsicas.

    2. No podendo compreender seno o que v, o homem primiti-vo naturalmente moldou o seu futuro pelo presente; para compreender

    6 Nota de Allan Kardec: Um pequeno saboiano, a quem o seu cura fazia a descrio da vida futura, perguntou-lhe se todo mundo l comia po branco, como em Paris.

  • outros tipos, alm dos que tinha vista, ser-lhe-ia preciso um desenvolvi-mento intelectual que s o tempo deveria completar. Tambm o quadro por ele ideado sobre as penas futuras no seno o reflexo dos males da humanidade, em mais vasta proporo, reunindo-lhe todas as torturas, suplcios e aflies que achou na Terra. Nos climas abrasadores imaginou um inferno de fogo, e nas regies boreais um inferno de gelo. No estan-do ainda desenvolvido o sentido que mais tarde o levaria a compreender o mundo espiritual, no podia conceber seno penas materiais; e assim, com pequenas diferenas de forma, os infernos de todas as religies se assemelham.

    O inferno cristo imitado do inferno pago3. O inferno pago, descrito e dramatizado pelos poetas, foi o mo-

    delo mais grandioso do gnero, e perpetuou-se no seio dos cristos, onde, por sua vez, houve poetas e cantores. Comparando-os, encontram-se neles salvo os nomes e variantes de detalhe numerosas analogias; ambos tm o fogo material por base de tormentos, como smbolo dos sofrimentos mais atrozes. Mas coisa singular! os cristos exageraram em muitos pontos o inferno dos pagos. Se estes tinham o tonel das Danaides,7 a roda de xion,8 o rochedo de Ssifo,9 eram estes suplcios individuais; os cristos, ao contrrio, tm para todos, sem distino, as caldeiras ferventes cujos tampos os anjos levantam para ver as contores dos supliciados;10 e Deus, sem piedade, ouve-lhes os gemidos por toda a eternidade. Jamais os pagos descreveram os habitantes dos Campos Elseos deleitando a vista nos su-plcios do Trtaro.11

    7 N.E.: As cinquenta filhas de Dnaos, Rei de Argos, que, com exceo de uma, mataram seus maridos na noite de npcias, e foram condenadas a encher eternamente, no inferno, um tonel sem fundo.

    8 N.E.: Por caluniar Zeus, xion foi fulminado por um raio e lanado no Trtaro, onde foi preso a uma roda em chamas e condenado a nela girar pela eternidade.

    9 N.E.: Por assaltar os viajantes, Zeus condenou Ssifo ao Trtaro, e deu-lhe como castigo eterno a obri-gao de empurrar uma pedra at o lugar mais alto da montanha, de onde ela sempre rola de volta.

    10 Nota de Allan Kardec: Sermo pregado em Montpellier em 1860.11 Nota de Allan Kardec: Os bem-aventurados, sem deixarem o lugar que ocupam, podero afastar-se

    de certo modo em razo do seu dom de inteligncia e da vista distinta, a fim de considerarem as torturas dos condenados, e, vendo-os, no somente sero insensveis dor, mas at ficaro repletos de alegria e rendero graas a Deus por sua prpria felicidade, assistindo inefvel calamidade dos mpios. (So Toms de Aquino.)

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  • 4. Os cristos tm, como os pagos, o seu rei dos infernos Sat com a diferena, porm, de que Pluto se limitava a governar o sombrio imprio, que lhe coubera em partilha, sem ser mau; retinha em seus domnios os que haviam praticado o mal, porque essa era a sua misso, mas no induzia os homens ao pecado para desfrutar, tripudiar dos seus sofrimentos. Sat, no entanto, recruta vtimas por toda parte e regozija--se ao atorment-las com uma legio de demnios armados de forcados a revolv-las no fogo.

    J se tem discutido seriamente sobre a natureza desse fogo que quei-ma, mas no consome as vtimas. Tem-se mesmo perguntado se seria um fogo de betume.12

    O inferno cristo nada cede, pois, ao inferno pago.5. As mesmas consideraes que, entre os antigos, tinham feito lo-

    calizar o reino da felicidade, fizeram circunscrever igualmente o lugar dos suplcios. Tendo-se colocado o primeiro nas regies superiores, era natural reservar ao segundo os lugares inferiores, isto , o centro da Terra, para onde se acreditava servirem de entradas certas cavidades sombrias, de as-pecto terrvel. Os cristos tambm colocaram a, por muito tempo, a habi-tao dos condenados.

    A este respeito, frisemos ainda outra analogia: O inferno dos pagos continha de um lado os Campos Elseos e do

    outro o Trtaro; o Olimpo, morada dos deuses e dos homens divinizados, ficava nas regies superiores. Segundo a letra do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, isto , aos lugares baixos para deles tirar as almas dos justos que lhe aguardavam a vinda.

    Os infernos no eram, portanto, um lugar unicamente de suplcio: estavam, tal como para os pagos, nos lugares baixos.

    A morada dos anjos, assim como o Olimpo, era nos lugares elevados. Colocaram-na para alm do cu estelar, que se reputava limitado.

    6. Esta mistura de ideias crists e pags nada tem de surpreendente. Jesus no podia de um s golpe destruir inveteradas crenas, faltando aos homens conhecimentos necessrios para conceber a infinidade do Espao e o nmero infinito dos mundos; a Terra para eles era o centro do univer-so; no lhe conheciam a forma nem a estrutura internas; tudo se limitava ao seu ponto de vista: as noes do futuro no podiam ir alm dos seus 12 Nota de Allan Kardec: Sermo pregado em Paris em 1861.

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  • conhecimentos. Jesus encontrava-se, pois, na impossibilidade de os iniciar no verdadeiro estado das coisas, mas no querendo, por outro lado, com sua autoridade, sancionar preconceitos, absteve-se de os retificar, deixando ao tempo essa misso. Ele limitou-se a falar vagamente da vida bem-aven-turada, dos castigos reservados aos culpados, sem referir-se jamais nos seus ensinos a castigos e suplcios corporais, que constituram para os cristos um artigo de f. Eis a como as ideias do inferno pago se perpetuaram at os nossos dias. E foi preciso a difuso das modernas luzes, o desen-volvimento geral da inteligncia humana para se lhe fazer justia. Como, porm, nada de positivo houvesse substitudo as ideias recebidas, ao longo perodo de uma crena cega sucedeu, transitoriamente, o perodo de incre-dulidade a que vem pr termo a Nova Revelao. Era preciso demolir para reconstruir, visto como mais fcil insinuar ideias justas aos que em nada creem, sentindo que algo lhes falta, do que faz-lo aos que possuem uma ideia robusta, ainda que absurda.

    7. Localizados o Cu e o inferno, as seitas crists foram levadas a no admitir para as almas seno duas situaes extremas: a felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O purgatrio apenas uma posio intermediria e passageira, ao sair da qual as almas passam, sem transio, manso dos justos.

    Outra no pode ser a hiptese, dada a crena na sorte definitiva da alma aps a morte. Se no h mais de duas habitaes, a dos eleitos e a dos condenados, no se podem admitir muitos graus em cada uma sem admitir a possibilidade de os franquear e, conseguintemente, o progresso. Ora, se h progresso, no h sorte definitiva, e se h sorte definitiva, no h pro-gresso. Jesus resolveu a questo quando disse: H muitas moradas na casa de meu Pai.13 (Joo, 14:2.)

    Os limbos8. verdade que a Igreja admite uma posio especial em casos

    particulares.As crianas falecidas em tenra idade, sem fazer mal algum, no po-

    dem ser condenadas ao fogo eterno, mas tambm, no tendo feito bem, no lhes assiste direito felicidade suprema. Ficam nos limbos, diz-nos a

    13 Nota de Allan Kardec: Cap. III de O evangelho segundo o espiritismo.

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  • Igreja, nessa situao jamais definida, na qual, se no sofrem, tambm no gozam da bem-aventurana. Esta, sendo tal sorte irrevogavelmente fixada, fica-lhes defesa para sempre. Tal privao importa, assim, um suplcio eterno e tanto mais imerecido, quanto certo no ter dependido dessas almas que as coisas assim sucedessem. O mesmo se d quanto ao selvagem que, no tendo recebido a graa do batismo e as luzes da Religio, peca por ignorn-cia, entregue aos instintos naturais. Certo, este no tem a responsabilidade e o mrito cabveis ao que procede com conhecimento de causa. A simples lgica repele uma tal doutrina em nome da Justia de Deus, que se con-tm integralmente nestas palavras do Cristo: A cada um, segundo as suas obras. Obras, sim, boas ou ms, porm praticadas voluntria e livremen-te, nicas que comportam responsabilidade. Neste caso no podem estar a criana, o selvagem e tampouco aquele que no foi esclarecido.

    Quadro do inferno pago9. O conhecimento do inferno pago nos fornecido quase exclu-

    sivamente pela narrativa dos poetas. Homero e Virglio dele deram a mais completa descrio, devendo, contudo, levar-se em conta as necessida-des poticas impostas forma. A descrio de Fnelon, no Aventuras de Telmaco, posto que haurida na mesma fonte quanto s crenas fundamen-tais, tem a simplicidade mais concisa da prosa.

    Descrevendo o aspecto lgubre dos lugares, preocupa-se, principal-mente, em realar o gnero de sofrimento dos culpados, estendendo-se sobre a sorte dos maus reis com vista instruo do seu rgio discpulo. Por muito popular que seja esta obra, nem todos tm presente memria a sua descrio, ou no meditaram sobre ela de modo a estabelecer comparao, e assim acreditamos de utilidade reproduzir os tpicos que mais direta-mente interessam ao nosso assunto, isto , os que se referem especialmente s penas individuais.

    10. Ao entrar, Telmaco14 ouve gemidos de uma sombra inconsolvel: Qual pergunta-lhe a vossa desgraa? Quem fostes na Terra? Nabofarzan responde a sombra , rei da soberba Babilnia.

    Ao ouvir meu nome tremiam todos os povos do Oriente; fazia-me adorar pelos babilnios num templo todo de mrmore, representado por uma

    14 N.E.: Personagem da Odisseia, filho de Odisseus e Penlope.

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  • esttua de ouro, a cujos ps se queimavam noite e dia os preciosos perfu-mes da Etipia; jamais algum ousou contradizer-me sem de pronto ser punido; inventavam-se dia a dia prazeres novos para tornar-me a vida mais e mais deliciosa.

    Moo e robusto, quantos, infelizmente! quantos prazeres me res-tavam ainda por usufruir no trono! Mas certa mulher, que eu amava e que me no correspondia, fez-me sentir claramente que eu no era um deus: envenenou-me, e... nada mais sou. As minhas cinzas foram ontem encerradas com pompa em urna de ouro: choraram, arrancaram cabelos, pretenderam fingidamente atirar-se s chamas da minha fogueira, a fim de morrerem comigo, vo ainda gemer junto do tmulo das minhas cinzas, mas ningum me deplora; a minha memria horroriza a prpria famlia, enquanto aqui embaixo sofro j horrveis suplcios.

    Telmaco, compungido ante esse espetculo, diz-lhe: reis vs verdadeiramente feliz durante o vosso reinado? Senteis porventura essa paz suave sem a qual o corao se conserva opresso e abatido em meio das delcias? No respondeu o babilnio , no sei mesmo o que quereis dizer. Os sbios exaltam essa paz como bem nico; quanto raiva, nunca a senti, meu corao agitava-se continuamente por novos desejos de temor e de esperana. Procurava aturdir-me com o abalo das prprias paixes, tendo o cuidado de entreter essa embriaguez para torn-la perma-nente, contnua; o menor intervalo de razo, de calma, ser-me-ia muito amargo. Eis a paz que fru; qualquer outra parece-me antes uma fbula, um sonho. So esses os bens que choro.

    Assim falando, o babilnio chorava qual homem pusilnime, ener-vado pelas prosperidades, desabituado de suportar resignadamente uma desgraa. Havia junto dele alguns escravos mortos em homenagem hon-rosa aos seus funerais. Mercrio15 os entregara a Caronte16 com o seu rei, outorgando-lhes poder absoluto sobre esse rei, a quem tinham servido na Terra. Essas sombras de escravos no temiam a sombra de Nabofarzan, que retinham encadeada, infligindo-lhe as mais cruis afrontas. Dizia-lhe uma: No ramos ns homens iguais a ti? Insensato que eras, julgavas-te um deus, a ponto de esqueceres a tua origem comum a todos os homens.

    15 N.E.: Deus romano do comrcio e dos viajantes.16 N.E.: Barqueiro dos infernos que, mediante pagamento, transportava os mortos na travessia das

    guas infernais.

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  • Outra, para insult-lo, dizia: Tinhas razo em no querer que por homem te houvessem, porque na verdade eras um monstro desumano.

    Ainda outra: Ento?! onde esto agora os teus aduladores? nada mais tens a dar, desgraado! nem mesmo o mal podes fazer mais; eis-te re-duzido a escravo dos teus escravos. A justia dos deuses tarda, mas no falha.

    A estas frases duras Nabofarzan se rojava por terra, arrancando os cabelos em acesso de raiva e desespero, mas Caronte instigava os escravos: Arrastem-no pela corrente, levantem-no contra a vontade. No possa ele consolar-se escondendo a sua vergonha: preciso que todas as sombras do Estige17 a testemunhem como justificativa aos deuses, que por tanto tempo toleraram o reinado terreno deste mpio.

    E ele avista logo, bem perto de si, o negro Trtaro evolando escuro e espesso fumo, cujo cheiro meftico daria a morte se se espalhasse pela morada dos vivos. Esse fumo envolvia um rio de fogo, um turbilho de chamas, cujo rudo, semelhante s torrentes mais caudalosas quando se despenham de altos rochedos em profundos abismos, concorria para que nada se ouvisse nesses lugares tenebrosos. Telmaco, secretamente animado por Minerva, entra sem medo nesse bratro. Viu primeiramente um gran-de nmero de homens que tinham vivido nas mais humildes condies, punidos por haverem procurado riquezas por meio de fraudes, traies e crueldade. A notou muitos mpios hipcritas que, simulando amar a Re-ligio, dela se tinham servido como de um belo pretexto para satisfazerem ambies e zombarem dos crdulos: os que haviam abusado at da prpria Virtude, o maior dom dos deuses, eram punidos como os mais celerados de todos os homens. Os filhos que haviam degolado seus pais; as esposas que mancharam as mos no sangue dos maridos; os traidores que vende-ram a ptria, violando todos os juramentos, sofriam, apesar de tudo, penas menores que aqueles hipcritas.

    Os trs juzes infernais assim o queriam, por esta razo: os hipcritas no se contentam com ser maus como os demais mpios, porm, querem passar por bons e concorrem por sua falsa virtude para a descrena e cor-rupo da verdade. Os deuses, por eles zombados e desprezados perante os homens, empregam com prazer todo o seu poderio para se vingarem de tais insultos.

    17 N.E.: Na mitologia grega, o maior dos rios do inferno.

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  • Perto destes, outros homens aparecem, que vulgarmente se julgam isentos de culpa, mas que os deuses perseguem desapiedadamente: so os ingratos, os mentirosos, os aduladores que louvaram o vcio, os crticos perversos que procuraram enodoar a mais pura virtude; enfim aqueles que, julgando temerariamente das coisas, sem as conhecer a fundo, prejudica-ram por isso a reputao dos inocentes.

    Telmaco, vendo os trs juzes sentados a condenarem um homem, ousou perguntar-lhes quais os seus crimes. O condenado, tomando a pa-lavra, de pronto exclamava: Nunca fiz mal algum; todo o meu prazer era praticar o bem: fui sempre generoso, justo, liberal e compassivo; que se pode, pois, exprobrar-me?

    Minos ento lhe disse: Nenhuma acusao se te faz quanto aos homens, porm a estes menos no devias que aos deuses? Que justia, pois, essa de que te vanglorias? Para com os homens, que nada so, no faltaste jamais a qualquer dever; foste virtuoso, certo, mas s atribuste essa virtude a ti prprio, esquecendo os deuses que ta deram, tudo porque querias gozar do fruto da tua virtude encerrado em ti mesmo: foste a tua divindade. Mas os deuses, que tudo fizeram, e o fizeram para si, no po-dem renunciar aos seus direitos; e, pois que quiseste pertencer-te e no a eles, entregar-te-o a ti mesmo, esquecidos de ti como deles te esqueceste. Procura agora, se podes, o consolo em teu prprio corao. Eis-te agora para sempre separado dos homens, aos quais querias agradar; eis-te s contigo, tu que eras o teu dolo: fica sabendo que no h verdadeira virtude sem res-peito e amor aos deuses, a quem tudo devido. A tua falsa virtude, que por muitos anos deslumbrou os ingnuos, vai ser confundida. No julgando os homens o vcio e a virtude seno pelo que lhes agrada ou os incomoda, so cegos quanto ao bem e quanto ao mal. Aqui, uma luz divina derroga seus julgamentos artificiais, condenando muita vez o que eles admiram, e outras vezes justificando o que condenam.

    A estas palavras, o filsofo, como que ferido por um raio, mal podia suster-se. O deleite que tivera outrora em rever a sua moderao, a cora-gem, as inclinaes generosas, transformavam-se em desespero. A viso do prprio corao inimigo dos deuses, promove-lhe suplcios; v, e no pode deixar de se ver; v a vaidade dos preconceitos humanos, aos quais buscava lisonjear em todas as suas aes. Opera-se uma revoluo radical em todo o seu ntimo, como se lhe revolvessem todas as entranhas; reconhece-se

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  • outro; no encontra apoio no corao; a conscincia, cujo testemunho to agradvel lhe fora, revolta-se contra ele, incriminando-lhe amargamente o desvario, a iluso de todas as suas virtudes, que no tiveram por princpio e por fim o culto da divindade, e ei-lo perturbado, consternado, preso da vergonha, do remorso, do desespero. As Frias18 no o atormentam, bastando-lhes o terem-na entregado a si prprio, para que expie pelo corao a vingana dos deuses desprezados.

    Procurando a treva no pode encontr-la, porquanto inoportuna luz o segue por toda parte; de todos os lados os raios penetrantes da verdade vingam a verdade que ele desdenhou seguir. Tudo que amava se lhe torna odioso como fonte dos seus males infindveis. Murmura consigo: in-sensato! no conheci, pois, nem os deuses, nem os homens, nem a mim mesmo, porque jamais amei o verdadeiro e nico bem; todos os meus passos foram tresloucados; a minha sabedoria no passava de loucura; a minha virtude mais no era que o orgulho impiedoso e cego: eu era enfim o meu dolo!

    Finalmente reconheceu Telmaco os reis condenados por abuso de poder. De um lado, vingadora Fria apresentava-lhes um espelho a refletir a monstruosidade dos seus vcios: a viam, sem poder desviar os olhos, a vaida-de grosseira e vida de ridculos louvores; a crueldade para com aqueles a quem deveriam ter feito felizes; o temor da verdade, a insensibilidade para com as virtudes, a predileo pelos cobardes e aduladores, a falta de apli-cao, a inrcia, a indolncia; a desconfiana ilimitada; o fausto e a magni-ficncia excessivos calcados sobre a runa dos povos; a ambio de glrias vs custa do sangue dos concidados; a fereza, enfim, que procura a cada dia novas delcias nas lgrimas e no desespero de tantos infelizes. Esses reis reviam-se constantemente nesse espelho, achando-se mais monstruosos e horrendos que a prpria Quimera19 vencida por Belerofonte,20 que a Hidra de Lerna21 abatida por Hrcules22 e que Crbero23 vomitando por suas

    18 N.E.: Trs deusas gregas da vingana: Alecto, Tisfone e Megera.19 N.E.: Na mitologia grega, monstro fabuloso representado com cabea de leo, dorso de cabra e cau-

    da de serpente ou drago.20 N.E.: Heri mitolgico, filho de Posidon. Montou Pgaso, o cavalo alado, e matou a Quimera.21 N.E.: Na mitologia grega, serpente monstruosa com sete cabeas que renasciam to logo eram

    cortadas.22 N.E.: Heri romano; deus protetor da agricultura, do comrcio e dos exrcitos.23 N.E.: Co tricfalo, guardio dos infernos.

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  • trs goelas um sangue negro e venenoso, capaz de empestar toda a raa de mortais que vivem sobre a Terra.

    De outro lado, outra Fria lhes repetia injuriosamente todos os lou-vores que os lisonjeiros lhes dispensavam em vida e mostrava-lhes ainda outro espelho em que se viam tais como a lisonja os pintara. Da anttese dos dois quadros brotava o suplcio do amor-prprio. Era para notar que os piores dentre esses reis, foram os que tiveram maiores e mais fulgentes louvores durante a vida, por isso que os maus so mais temidos que os bons e exi-gem impudicamente as vis adulaes dos poetas e oradores do seu tempo.

    Na profundeza dessas trevas, onde s insultos e escrnios padecem, ouvem-se-lhes os gemidos agoniados. Nada os cerca que os no repila, contradiga e confunda em contraste ao que supunham na vida, zombando dos homens, convictos de que tudo era feito para servi-los. No Trtaro, en-tregues a todos os caprichos de certos escravos, estes lhes fazem provar por sua vez a mais cruel servido; humilhados dolorosamente, no lhes resta esperana alguma de modificar ou abrandar o cativeiro. Qual bigorna sob as marteladas dos Ciclopes,24 quando Vulcano25 os acorooa nas fornalhas incandescentes do Monte Etna, assim permanecem, merc das pancadas desses escravos transformados em verdugos.

    A viu Telmaco plidos semblantes, hediondos e consternados. Ne-gra tristeza essa que consome estes criminosos, horrorizados de si prprios, sem poderem dela despojar-se como da prpria natureza; no tm outro castigo s suas faltas que no as mesmas faltas; veem-nas incessantemente na plenitude da sua enormidade, apresentando-se-lhes sob a forma de espectros horrveis que os perseguem. Procurando eximir-se a essa perseguio, bus-cam morte mais potente do que a que os separou do corpo. Desesperados, invocam uma morte capaz de extinguir-lhes a conscincia: pedem aos abis-mos que os absorvam, a fim de se furtarem aos raios vingadores da verdade que os atormenta, mas continuam votados vingana que sobre eles destila gota a gota e que jamais estancar. A verdade que temem ver constitui-se em suplcio; veem-na, contudo, e s tm olhos para v-la erguer-se contra eles, ferindo-os, despedaando-os, arrancando-os de si mesmos, como o raio, sem nada destruir-lhes exteriormente, a penetrar-lhes o mago das entranhas.

    24 N.E.: Na mitologia grega, gigantes ferreiros e construtores, com apenas um olho no meio da testa.25 N.E.: Deus romano do fogo e da metalurgia.

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  • Entre os seres que lhe eriavam os cabelos, viu Telmaco vrios e antigos Reis da Ldia punidos por haverem preferido ao trabalho as delcias de uma vida inativa, quando aquele deve ser o consolo dos povos e, como tal, inseparvel da realeza.

    Estes reis lastimavam-se reciprocamente a cegueira. Dizia um a ou-tro, que fora seu filho: No vos tinha eu recomendado tantas vezes du-rante a vida e ainda antes da morte que reparsseis os males ocorridos por negligncia minha? Ah! desgraado pai! dizia o filho fostes vs que me perdestes! foi o vosso exemplo que me inspirou o fausto, o orgulho, a voluptuosidade e a crueldade para com os homens! Vendo-vos governar com tanta incria, cercado de aduladores infames, habituei-me a prezar a lisonja e os prazeres.

    Acreditei que os homens eram para os reis o que os cavalos e outros animais de carga so para aqueles, isto , animais que s se consideram enquanto proporcionam servios e comodidades.

    Acreditei-o, e fostes vs que mo fizestes crer... sofrendo agora tantos males por vos haver imitado. A estas recriminaes aliavam as mais acer-bas blasfmias, como que possudos de raiva bastante para se despedaarem mutuamente. Quais notvagos mochos, em torno desses reis corvejavam as suspeitas cruis, os vos receios e desconfianas que vingam os povos da dureza de seus reis, a ganncia insacivel das riquezas, a falsa glria sempre tirnica e a moleza displicente que duplica os sofrimentos sem a compen-sao de slidos prazeres. Viam-se muitos desses reis severamente punidos, no por males que tivessem feito, mas por terem negligenciado o bem que poderiam e deveriam fazer. Todos os crimes dos povos, provenientes da desdia na observncia das leis eram imputados aos reis, que no devem reinar seno para que as leis exeram seu ministrio. Imputavam-se-lhes tambm todas as desordens decorrentes do fausto, do luxo e dos demais excessos que impelem os homens violncia, instigando-os aquisio de bens com o desprezo das leis. Sobretudo recaa o rigor sobre os reis que, em vez de serem bons e vigilantes pastores dos povos, s cuidavam de devastar o rebanho, quais lobos devoradores.

    O que mais consternou Telmaco, porm, foi ver nesse abismo de trevas e males um grande nmero de reis que, tendo passado na Terra pelos melhores, condenaram-se s penas do Trtaro por se terem deixado guiar por homens ardilosos e maus. Tal punio correspondia aos males que

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  • tinham deixado praticar em nome da sua autoridade. Ademais, a maior par-te desses reis no foram nem bons nem maus, tal a sua fraqueza; no os atemorizava a ignorncia da verdade, e assim como nunca experimentaram o prazer da virtude, jamais poderiam faz-lo consistir na prtica do bem.

    Esboo do inferno cristo11. A opinio dos telogos sobre o inferno resume-se nas seguintes

    citaes.26 Esta descrio, sendo tomada dos autores sagrados e da vida dos santos, pode tanto melhor ser considerada como expresso da f ortodoxa na matria, quanto ela reproduzida a cada instante, com pequenas va-riantes, nos sermes do plpito evanglico e nas instrues pastorais.

    12. Os demnios so puros Espritos, e os condenados, presente-mente no inferno, podem ser considerados puros Espritos, uma vez que s a alma a desce, e os restos entregues terra se transformam em ervas, em plantas, em minerais e lquidos, sofrendo inconscientemente as meta-morfoses constantes da matria. Os condenados, porm, como os santos, devem ressuscitar no dia do juzo final, retomando, para no mais deix--los, os mesmos corpos carnais que os revestiam na vida. Os eleitos ressus-citaro, contudo, em corpos purificados e resplendentes, e os condenados em corpos maculados e desfigurados pelo pecado. Isso os distinguir, no havendo mais no inferno puros Espritos, porm homens como ns. Con-seguintemente, o inferno um lugar fsico, geogrfico, material, uma vez que tem de ser povoado por criaturas terrestres, dotadas de ps, mos, boca, lngua, dentes, ouvidos, olhos semelhantes aos nossos, sangue nas veias e nervos sensveis.

    Onde estar esse inferno? Alguns doutores o tm colocado nas en-tranhas mesmas do nosso globo; outros no sabemos em que planeta, sem que o problema se haja resolvido por qualquer conclio. Estamos, pois, quanto a este ponto, reduzidos a conjecturas; a nica coisa afirmada que esse inferno, onde quer que exista, um mundo composto de elementos materiais, conquanto sem Sol, sem estrelas, sem Lua, mais triste e inspito, mais desprovido de todo grmen e das aparncias benficas que porventura se encontram ainda nas regies mais ridas deste mundo em que pecamos.

    26 Nota de Allan Kardec: Estas citaes so tiradas da obra O inferno, de Augusto Callet.

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  • Os telogos mais circunspectos no se atrevem, semelhana dos egpcios, dos hindus e dos gregos, a descrever os horrores dessa morada, limitando-se a no-la mostrar como premissas no pouco que dela fala a escritura, o lago de fogo e enxofre do Apocalipse e os vermes de Isaas,27 esses vermes que formigam eternamente sobre os cadveres do Tofel,28 e os de-mnios atormentando os homens que eles levaram perdio, e os homens a chorarem, rangendo os dentes, segundo a expresso dos evangelistas.29

    Santo Agostinho no concorda que esses sofrimentos fsicos se-jam apenas reflexos de sofrimentos morais e v, num verdadeiro lago de enxofre, vermes e verdadeiras serpentes saciando-se nos corpos, ca-sando suas picadas s do fogo. Ele pretende mais, segundo um verscu-lo de Marcos, que esse fogo estranho, posto que material como o nosso e atuando sobre corpos materiais, os conservar como o sal conserva o corpo das vtimas. Os condenados, vtimas sempre sacrificadas e sempre vivas, sentiro a tortura desse fogo que queima sem destruir, penetrando- -lhes a pele; sero dele embebidos e saturados em todos os seus membros, na medula dos ossos, na pupila dos olhos, nas mais recnditas e sensveis fibras do seu ser. A cratera de um vulco, se a pudessem submergir, ser--lhes-ia lugar de refrigrio e repouso.

    Assim falam com toda a segurana os telogos mais tmidos, discre-tos e comedidos; no negam que haja no inferno outros suplcios corpo-rais, mas dizem que para afirm-lo lhes falta suficiente conhecimento, pelo menos to positivo como o que lhes foi dado sobre o suplcio horrvel do fogo e dos vermes. H, contudo, telogos mais ousados ou mais esclareci-dos que do do inferno descries mais minuciosas, variadas e completas. E conquanto se no saiba em que lugar do Espao est situado esse infer-no, h santos que o viram. Eles no foram l ter com a lira na mo, como Orfeu; de espada em punho, como Ulisses, mas transportados em esprito.

    Desse nmero Santa Teresa. Dir-se-ia, pela narrativa da santa, que h uma cidade no inferno:

    Ela a viu, pelo menos, uma espcie de viela comprida e estreita como essas que abundam em velhas cidades, e percorreu-a horrorizada,

    27 N.E.: J foi derrubada na sepultura a tua soberba com o som das tuas violas; os vermes debaixo de ti se estendero, e os bichos te cobriro. (Isaas, 14:11.)

    28 N.E.: Tofel/Tophel, do hebraico mentiroso, falacioso. Aluso ao demnio Mefistfeles ou ao persona-gem Mefistfeles da obra Fausto de Goethe.

    29 N.E.: Mateus, 8:12; 13:42; 13:50; 22:13; 24:51; 25:30 e Lucas, 13:28.

    O inferno

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  • caminhando sobre lodoso e ftido terreno, no qual pululavam monstruo-sos reptis. Foi, porm, detida em sua marcha por uma muralha que inter-ceptava a viela, em cuja muralha havia um nicho onde se abrigou, alis sem poder explicar a ocorrncia. Era, diz ela, o lugar que lhe destinavam se abusasse, em vida, das graas concedidas por Deus em sua cela de vila.

    Apesar da facilidade maravilhosa que tivera em penetrar esse nicho, no podia sentar-se, ou deitar-se, nem manter-se de p. Tampouco podia sair. Essas paredes horrveis, abaixando-se sobre ela, envolviam-na, aperta-vam-na como se fossem animadas de movimento prprio. Parecia-lhe que a afogavam, estrangulando-a, ao mesmo tempo que a esfolavam e retalha-vam em pedaos. Ao sentir queimar-se, experimentou, igualmente, toda a sorte de angstias.

    Sem esperana de socorro, tudo era trevas em torno de si, posto que atravs dessas trevas percebesse, no sem pavor, a hedionda viela em que se