nietzche, freud, marx

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  • 8/4/2019 Nietzche, Freud, Marx

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    1967

    Nietzsche, Freud, Marx

    "Nietzsche, Freud, Marx", Cahiers de Royaumont, t.VI, Paris, Ed. deMmuit, 1967,Nietzsche, ps. 183-200. (Coloquto de Royaumont, julho de 1964.)

    Quando esse projeto de "mesa redonda" me foi proposto, pare-ceu-me muito interessante, mas, evidentemente, bern espinhoso.Sugtro urn vies: alguns temas relatives as tecnicas de tnierpreta-cdo emMarx, Nietzsche e Freud.Na realidade, por tras desses temas, ha urn sonho, que seria 0de

    poder fazer, urn dia, uma especie de Corpus geral, de Enciclopedtade todas as tecntcas de tnterpretacao que pudemos conhecer dosgramattcos gregos aos nossos dias. Acredtto que, ate 0 presente,poucos capitulos desse grande corpus de todas as tecntcas de inter-pretacao foram redigidos.Parece-me que seria possivel dizer 0segutnte, como introducao

    gerai a tdeta de uma historia das tecntcas de interpretacao: a lin-guagem, em todo caso, a linguagem nas culturas indo-europetas,sempre fez nascer dois Upos de suspeitas:- inicialmente, a suspeita de que a linguagem nao diz exatamente

    o que ela diz. 0 sentido que se apreende, e que e imediatamentemanifesto, e talvez, na realidade, apenas urn sentido menor, queprotege, restringe e, apesar de tudo, transmite urn outro sentido,sendo este, por sua vez,0sentido mais forte e0sentido "por baixo",It isso que os gregos chamavam de allegoria e hyponoi:a.- por outro lado, a linguagem faz nascer esta outra suspeita: que,

    de qualquer maneira, ela ultrapassa sua forma proprtamente ver-bal, que ha certamente no mundo outras coisas que falam e nao saoltnguagern. Afinal, e possivel que a natureza, 0mar, 0sussurro dasarvores, os antmats, os rostos, as mascaras, as facas cruzadas,tudo isso fale: talvez haja linguagem se arttculando de uma manei-ra que nao serta verbal. Isso serta, se voces querem, muito grosset-ramente, 0semai:non dos gregos.

    1967- Nietzsche,Freud, Marx 41Essas duas suspeitas, que se veem aparecer ja nos gregos, nao

    desapareceram e ainda sao contemporaneas, ja que voltamos aacreditar, precisamente, desde 0seculo XIX,que os gestos mudos,as doencas, qualquer tumulto a nossa volta tambem pode falar: emais do que nunca estamos a escuta de toda essa linguagem possi-vel, tentando surpreender por baixo das palavras urn dtscurso queseria mats essencial.Creio que cada cultura, quero dizer, cada forma cultural na ctvt-

    ltzacao ocidental, teve seu sistema de mterpretacao, suas tecnicas,seus metodos, suas maneiras proprtas de supor que a linguagemquer dizer outra coisa do que ela diz, e de supor que ha linguagempara alem da propria linguagem. Parece, portanto, que haveriauma empreitada a ser inaugurada para estabelecer 0 sistema ou 0quadro, como se dlzta no seculo XVII,de todos esses sistemas deinterpretacao.Para compreender que sistema de tnterpretacao 0 seculo XIX

    fundou e, consequentemente, de que sistema de mterpretacao nos,ainda hoje, fazemos parte, parece-me que seria necessario retomaruma referencta remota, urn tipo de tecnica, tal como p6de existir,por exemplo, no seculo XVI.Nesta epoca, 0que dava lugar a inter-pretacao, simultaneamente seu sitio geral e a unidade minima quea mterpretacao tinha a tratar, era a semelharica, Laonde as coisasse assemelhavam, la onde isso se parecia, alguma coisa queria serdita e podia ser decifrada; sabe-se bern 0importante papel que de-sempenharam, na cosmologta, na botantca, na zoologia, na filoso-fia do seculo XVI, a sernelhanca e todas as nocoes que giram emtorno dela como satelites. Naverdade, aos nossos olhos de homensdo seculo XX,toda essa rede de Similitudes e sofrivelmente confusae embaralhada. De fato, no seculo XVI,esse corpus da semelhancaera perfeitamente organizado. Havia pelo menos cinco nocoes total-mente definidas:. - a nocao de conveniencia. a convenentia, que e ajustamento(por exemplo, da alma ao corpo, ou da serte animal a vegetal);- a nocao de sympathei:a, a simpatia, que e a identidade dos aci-

    dentes nas distintas substancias:- a nocao de etnulaiio, que e 0mais curioso paralelismo dos .

    atributos nas substancias ou em seres distintos, de tal manetraque os atributos sao como 0reflexo uns dos outros em uma sub~-tancta e na outra. (Asstm, Porta explica que 0 rosto humano e,com as setes partes que ele distingue, a emulacao do ceu com seussete planetas.);

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    - a nocao de signatura, a assinatura, que e , dentre as proprieda-des vtsivets de urn individuo, a imagem de uma propriedade invtsi-vel e escondida;- e de resto, certamente, a nocao de analogia, que e a identidade

    das relacoes entre duas ou mats substanctas distintas.Nesta epoca, a teoria do stgno e as tecnicas de interpretacao se

    baseavam em uma defmicao perfeitamente clara de todos os ttpospossivets de semelhanca, e elas fundavam dois tipos de conheci-mento completamente distintos: a cognitio, que era a passagem, dequalquer forma lateral, de uma semelhanca a outra: e a divinatio,que era 0conhecimento em profundidade, indo de uma semelhan-ca superficial a outra mais profunda. Todasessas semelhancasmanifestam 0consensusdo mundo que as funda; elas se opoern aosimulacrum, a rna semelhanca, que repousa na dissensao entreDeus e 0Diabo.

    Se essas tecntcas de interpretacao do seculo XVIforam deiXadas

    em suspenso pela evolucao do pensamento ocidental nos seculosXVIIe XVIII,se a critica baconiana, a critica cartesiana da seme-lhanca desempenharam certamente urn grande papel para colo-ca-las entre parenteses, 0seculo XIXe,multo singularmente, Marx,Nietzsche e Freud nos poem diante de uma nova possibilidade demterpretacoes: eles fundaram novamente a possibilidade de umahermeneutica.o primeiro livro doCapitall, textos como 0 nascimento da tra-gedia2 eGenealogia damorae, a Truumdeurunc" nos confrontam

    1. Marx (K.).Das Kapital. Kritik der politis chen Oekonomie. livre I:Der Prbduk-ttonsprozess des Kapitals. Hamburgo, O. Meissner, 1867 (Le capital. Critique del'economie pol!tique, lrvro I: Le developpement de la production capitaliste, trad.J. Roy, revista por M. Rubel. in Oeuvres. t. I: Econornie, Paris. Gallimard, col."Btbhotheque de la Pletade", 1965, ps. 630-690).2. Nietzsche (F.).Die Geburt der Traqodie. Oder: Griechenthum und Pessimismus,Leipzig, E. W. Fritzsch, 1872 (La natssance de la traqedie. Ou hellenite etpessirnisrne. trad. P. Lacoue-Labarthe, in Oeuvres philosophiques completes.Paris, Galltmard. t. I, 1977, ps. 23-156).3. Nietzsche IF.l. Zur Genealogie der Moral, Leipzig, C. G. Naumann, 1887 (Lagencalogie de la morale, trad. 1. Hildenbrand e J. Gratien, in Oeuvres philoso-phtques completes, Paris, Galltmard, t. VII, 1971, ps. 213-347).4. Freud (5.). Die Traumdeutung, Vtena, Franz Deuticke, 1900 (L'interpretationdes reves, trad. D. Berger. Paris, PUF, 1967).

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    com tecnicas interpretativas. Eo efeitode choque, a especte de fert-da provocada nopensamento ocidental por essas obras vernprova-velmente do fato de elas reconstituirem aos nossos olhos algumacoisa que, inclusive, 0proprio Marx chamava de "hieroghfos''. Issonos colocou em uma postura desconfortavel, ja que es~as tecntcasde mterpretacao nos implicam, visto que nos mesmos, mterpretes.somos levados a nos interpretar por essas tecntcas. It com essastecntcas de mterpretacao que, em compensacao, devemos tnterro-gar esses tnterpretes que foram Freud, Nietzsche e Marx, emborasejamos remetidos perpetuamente a urn perpetuo jogo de espe-lhos.Freud fala, em algum lugar, que ha tres grandes feridas nard-

    sicas na cultura ocidental: a ferida imposta por Copernico: aquelafeitapor Darwin, quando ele descobriu que 0Homem descendia do.macaco; e a ferida feitapor Freud, ja que ele proprio, por sua vez,descobriu que a consciencta repousava na mconsctencta". Eu mepergunto se nao seria possivel dizer que Freud, Nietzsche e Marx,nos envolvendo em uma tarefa de tnterpretacao que sempre se re-flete sobre si mesma, constituiram a nossa volta, e para nos, essesespelhos, de onde nos sao enviadas as imagens, cujas feridas tnes-gotaveis formam nosso narcisismo atual. Em todo caso - e e sobreisso que eu gostaria de dar algumas sugestoes - nao me parece que,de qualquer forma, Marx, Nietzsche e Freud tenham multiplicadoos signos no mundo ocidental. Eles nao deram urn sentido novo acoisas que nao tinham sentido. Narealidade, eles mudaram a natu-reza do stgno e modificaram a maneira pela qual 0 signo em geralpodia ser interpretado.Aprimeira questao que eugostaria de colocar e a segumte: Marx,

    Freud e Nietzsche modificaram profundamente 0espaco de distr i-buicao no qual os signos podem ser stgnos?Naepoca que tomei como ponto de referencia, no seculo XVI,os

    .signos se dtstrlbuiam de uma maneira homogenea em urn espacoque era ele proprio homogeneo, e em todas as dtrecoes. Os signosda terra remetiam ao ceu, mas tambem ao mundo subterraneo,

    5. Alusao a triplice humilhacao infligida ao narcistsmo do Homem por NicolauCopernico ("humilhac;ao cosmologica"), Charles Darwin ("humilhac;ao biologica") eSigmund Freud ("humilhac;ao pstcologtca") da qual fala Freud em Eine Schwie-rigkeit der Psychoanalyse, 1917 (Une d![ftculte de la psychanalyse, trad. M.Bonaparte e E. Marty, in Essais de psychanalyse appliquee, Paris, Gallimard, col."Les essais", n2 61, 1933, ps. 141-147).

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    eles remetiam do homem ao animal, do animal a planta, e vice-versa. A partir do seculo XIX - ou seja, desde Freud, Marx e Nie-tzsche - os stgnos foram escalonados emurn espaco muito mais di-ferenciado, segundo uma dimensao que se poderia chamar de a daprofundidade, desde que nao a entendamos como interioridade,mas, ao contrarto, como exterioridade.Penso, em particular, nesse longo debate que Nietzsche nao ces-

    sou de manter sobre a profundidade. Ha emNietzsche uma criticada profundidade ideal, da profundidade de consctencta, que ele de-nuncia como uma tnvencao dosfllosofos, essa profundidade seriabusca pura e interior da verdade. Nietzsche mostra como ela implt-ca a resignacao, a hipocrisia, a mascara; embora 0 interprete deva,ao percorrer os signos para denuncia-los. descer ate 0fim da linhavertical emostrar que essa profundidade da interioridade e, na ver-dade, outra coisa do que ela diz. It preciso, consequentemente, queo interprete desca, que seja, como ele proprio diz, "0born escava-dor dos subterraneos'".Mas, na realidade, apenas se pode percorrer essa linha descen-

    dente quando se interpreta para restituir a exterioridade cintilanteque estava recoberta e soterrada. Porque, se 0 proprio interpr etedeve ir ate 0fundo como urn escavador, 0movimento de mterpreta-C;aoe, ao contrarto, 0de urn desaprumo, de urn desequilibrio cadavezmaior, que deixa sempre, acima dele, a profundidade revelar-sede uma maneira cada vezmais vlsivel: a profundidade e entao resti-tuida como segredo absolutamente superficial, de tal maneira queo voo da aguta, a ascensao da montanha, toda essa verticalidadetao importante emZaratustra e, no sentido estrito, a reviravolta daprofundidade, a descoberta de que a profundidade nao passava deumjogo e de uma dobra da superficie. A medida que, sob 0olhar ,0mundo se torna mais profundo, nos apercebemos de que tudo 0que exerceu a profundidade do homem nao passava de uma brtn-cadeira de crianca.Essa espacialidade, esse jogo de Nietzsche com a profundidade,

    eu me pergunto se eles nao podem ser comparados ao jogo, apa-rentemente diferente, que Marx fez com a platitude. 0 conceito deplatitude e multo importante emMarx; no comeco do Capital, eleexplica como, diferentemente de Perseu, ele deve mergulhar na

    6. (N.A.) Nietzsche (F.), Morgenrothe, Leipzig. C. G. Naumann. 1880. Aurore.Pensees sur les prejuqes moraux. 446: "Hterarchte", (Trad. Julien Hervier.Oeuvres phllosophiques completes. Paris. Galltmard, t. IV. 1980. p. 238 (N.E.).)

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    bruma para mostrar de fato que nao ha monstros nem enigmasprofundos, porque tudo 0que existe de profundidade na concep-cao que a burguesia tern da moeda, do capital, do valor etc. naopassa. na verdade, de platitude.E, certamente, seria necessarto chamar 0espaco de Interpreta-

    cao que Freud constituiu, nao somente na famosa topologta daConsciencia e do Inconsciente, mas tambern nas regras que ele for-mulou relativas a atencao do pstcanalista e a dectfracao pelo analis-ta do que se diz durante 0desenrolar da "cadeia" falada. Seria ne-cessarto relembrar a espacialidade, no final das contas muito ma-terial, a qual Freud atribuiu tanta tmportancta, e que instala 0do-ente sob 0olhar inclinado do psicanalista.

    o segundo tema que gostaria de lhes propor, e que inclusive esta

    urn pouco ligado a esse, seria indicar, a partir desses tres homensde que falamos ha pouco, que a interpretacao finalmente tornou-seuma tarefa infinita.Naverdade, ela ji 0era no seculo XVI,mas os stgnos remetiam

    uns aos outros simplesmente porque a semelhanca so pode ser ll-mitada. A partir do seculo XIX, os stgnos se encadeiam em umarede tnesgotavel, ela tambem infinita, nao porque repousem emuma semelhanca sem limite, mas porque ha uma hiancia e abertu-ra irredutiveis.o inacabado da tnterpretacao, 0fato de que ela seja sempre reta-lhada, e perrnaneca em suspenso no limite dela mesma, e encon-trado, acredito, de uma maneira bastante analoga em Marx, Nie-tzsche e Freud, sob a forma da recusa do comeco. Recusa da "ro-binsonade", dlzia Marx; dtstmcao, tao importante em Nietzsche,entre 0 comeco e a origem; e carater sempre tnterrnmavel do pro-cesso regressivo e analitico em Freud. It sobretudo em N~etzs~heeern Freud, inclusive, e emmenor grau emMarx, que se ve delmearessa expertencia, que acredito ser tao importante para a hermen~u-ttca moderna, de que, quanta mais longe vamos na Interpretacao,ao mesmo tempo mais nos aproximamos de uma regtao ~bso!uta-mente pertgosa, na qual a tnterpretacao vai encontrar nao so seuponto de retrocesso, mas onde ela propria vai desaparecer ~o~omterpretacao, ocasionando talvez 0 desaparecimento do propnomterprete. Aexistencia sempre aproximativa do ponto absoluto damterpretacao seria, simultaneamente, a aproxtmacao de urn pontode ruptura.

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    Em Freud, sabe-se claramente como e feita progressivamente adescoberta desse carater estruturalmente aberto da interpretacao,estruturalmente vazio. Ela foi fetta inicialmente de uma maneiramulto alusiva, muito velada a si mesma na Traumdeutung, quan-do Freud analisa seus proprios sonhos, e invoca raz6es de pudorou de nao-dtvulgacao de urn segredo pessoal para se interromper.Naanalise de Dora, vemos aparecer essa tdeta de que a interpre-

    tacao devedeter-se, nao pode ir ate 0flm por causa de alguma cotsaque sera chamada, alguns anos mats tarde, de transferencia, E de-pots se aflrrna, ao longo de todo 0estudo da transferencia, 0inter-minavel da analise, no carater inflnito e infinitamente problematicoda relacao do analisando com 0 analista, relacao que e evidente-mente constituinte para a pstcanaltse, e que abre 0espaco no qualela nao cessa de se desdobrar, sem nunc a poder terrninar.Em Nietzsche, tambem, e evidente que a tnterpretacao e sempre

    inacabada. 0 que e, para ele, a filosofia, senao uma especie de filo-logia sempre em suspenso, uma ftlologta sem termlno, desenvolvi-da sempre mais adiante, uma fllologia que nunc a serta absoluta-mente fixada? Por que? Porque, como ele 0diz emAlem do bem edo mal, "morrer pelo conhecimento absoluto bern poderia fazerparte do fundamento do ser'", E, no entanto, ele mostrou emEccehamo" 0 quanto ele estava proximo desse conhecimento absolutoque faz parte do fundamento do Ser. Da mesma forma, durante 0outono de 1888, em Turtrn.Se, na correspondencta de Freud, deciframos suas perpetuas

    preocupacoes desde 0momenta em que ele descobriu a pstcanali-se, podemos nos perguntar se a expertencia de Freud nao e, no fun-do, bern semelhante a de Nietzsche. 0 que esta em questao no pon-to de ruptura da tnterpretacao, nessa convergencta da tnterpreta-c;aona dtrecao de urn ponto que a torna Impossivel, poderia sercertamente alguma coisa como a expertencla da loucura.Experiencta contra a qual Nietzsche se debateu e pela qual ele

    era fascinado; expertencta contra a qual 0proprio Freud lutou ao

    7. (N.A.) Nietzsche (F.)' Jenseits von Gut und Bose. Vorspiel etner Philosophie derZuku'!ft. Leipzig, C. G. Naumann, 1886. (Par-dela le bien et lemal. Prelude d'unephtlosophte de l'aventr, trad, C. Heim, in Oeuvres philosophiques completes,Parts. Galllmard. t. VII, 1971, 39, p. 56 (N.E.).)8. Nietzsche (F.), Ecce homo. Wie man wird, was man ist, Leipzig, C. G.Naumann,1889 (Ecce homo. Comment on devient ce que l'on est, trad. J.-C. Hernery, inOeuvres phtlosophtques completes. Parts, Gallimard, t. VIII, 1974, ps. 237-341).

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    lllllgode toda a sua vida, nao semangustia. Essa expertencta daloucura seria a sancao de urn movimento de tnterpretacao, que se.iproxtma infinitamente do seu centro, e que desmorona, calcinada.

    Esse aspecto essencial de mconclusao da Interpretacao. creto

    que esta ligado a dois outros principios, tambem fundamentais, eque constituiriam com os dois primeiros, de que acabo de falar, ospostulados da hermeneutic a moderna. Inicialmente este: se a inter-pretacao nunca pode se concluir, e mutto simplesmente porque"ada ha a interpretar. Nada ha de absolutamente prtmeiro a inter-prctar, pois no fundo tudo ja e tnterpretacao: cada stgno e nelemesmo nao a coisa que se oferece a mterpretacao, mas interpreta-t;aode outros stgnos. _ .. ,Nunca ha, se voces querem, urn interpretandum que nao seja jaIllterpretans, embora seja estabelecida, na interpretacao. uma re-lacao tanto de violencia como de elucidacao. De fato, a inte~preta-t;{lOao esclarece uma materia a interpretar, que se oferecena a elapassivamente; ela pode apenas apoderar-se, e viol.entamente, delima mterpretacao ja ali, que ela deve subverter, revirar, quebrar amarteladas.Vemos isso ja em Marx, que nao interpreta a htstorta das rela-coes de producao, mas uma relacao ja se oferecendo como inter-pretacao, ja que ela se apresenta como nature~a. Damesma forma,Freud nao interpreta stgnos, mas mterpretacoes. 0 que Freu~ des-,'ubre, de fato, sob os smtomas? Ele nao descobre. como se diz, os"traumattsmos": ele revela osfantasmas*, com sua carga de an-~llst1a,ou seja, urn nucleo que ja e ele proprio, _emseu proprio ser.lima interpretacao. Aanorexia, por exemplo, nao remete ao desm~-me. como 0 significante remeteria ao significado, mas a anore~ar-omo stgno, sintoma a interpretar, remete aos fant~smas ~?,selDmau materno, que ja e em si mesmo uma mterpretacao. quePe emsl rnesmo urn corpo falante. Eis por que Freud so tern a interp~etarII;! linguagem de seus pacientes 0que ~leslhe ofe~ecemcom~ S1Oto-uuis: sua mterpretacao e a interpretacao de uma mterpretacao. nosII'IIIIOSem que essa mterpretacao e dada. Sabe-se claramente. queFliud mventou 0superego no dta em que urn paciente the disse:"Stuto urn cachorro em cima de mim.""N.R.) Preferlmos a traducao deJantasme por fantasma em portugues. como se fez1'111 espanhcl. de acordo com 0 significante da lingua france sa.

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    Damesma forma, Nietzsche se apodera de interpretac;oes que jase apod~~aram uma~ d~s outras. Nao ha para Nietzsche urn signifi-cado ongmal. Aspropnas palavras nao passam de interpretac;oes;a~ l~ng? de su~ htstorta, elas interpretam antes de serem signos, eS?~lg~lflcam fmalmente porque sao apenas interpretac;oes essen-Cl~lS.E a qu~ testemunha a famosa etimologia de aqathos", E tam-bern a ~ue diz Nietzsche, quando ele fala que as palavras sempreforam mventadas pelas classes superiores; elas nao indicam urnsignificad,o,.impoemuma tnterpretacao, Conseqiientemente, nao eporqu~ ha signos ?rimeiros e enigmatical?que estamos agora dedi-cados a t:refa de mterpretar, mas, sim, porque ha Interpt-etacoes,porque na~ cessa de t:aver, debaixo _?etudo a que se fala, a grandet~ama das mterpretac;oes Violentas.E par essa razao que ha stgnos,signos que nos prescrevem a interpretac;ao de sua interpretac;ao,que nos prescrevem revtra-tos como slgnos. Neste sentido, pode-sedizer que a allegoria e a hypono"ia sao, no fundo e antes dela, lin-guagen;, nao aq~ilo q~e deslizou aposteriori sob as palavras paradesloca-las e faze-lasvibrar, mas aquila que fez nascer as palavras,que as faz cintilar emurn clarao que nunca se fixa.Eis par que tam-bern a Interprete, para Nietzsche, eo "veridico", ele e a "verdadei-ro": nao porque se apodera de uma verdade adormecida para pro-feri-la, mas porque ele pronuncia a tnterpretaeao que toda verdadete~ par funcao velar. Talvez essa primazia da Inter'pretacao em re-lacao aos signos seja a que ha de mais decisrvo na hermeneuticamoderna.A~deia~e que a Interpretacao precede a signa implica que 0sig-

    na nao seja urn ser simples e generoso, como era a caso ainda noseculo XVI,em que a pletora dos stgnos, a fato de as coisas se asse-melharem provavam simplesmente a benevolencia de Deus, e ape-nas afastavam par urn veu transparente a signa do significado. Aocontrarto, desde a seculo XIX,a partir de Freud, Marx e Nietzsche,parece-me que a signa vat se tornar malevolo, quero dizer que hano signa uma mane ira ambigua e urn pouco equivocada demalque-rer e.de "malevolencta''. E isso na medida em que a signa ja e umaInterpretacao que nao se da como tal. Os signos sao interpretacoesque tentam se justiftcar, e nao a inverso.Assim funciona a maeda, tal como a vemos definida na Critique

    de l'economie politique, e sobretudo no prime ira livro do Capt-9. (N.A.) cr . La genealogte de la morale, op. cti., F dtssertacao. 4 e 5.

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    hi/I". E assim que functonam as sintomas para Freud. E, em Nte-ItNehe, as palavras, a justtca, as classiftcacoes blnartas do Bern edo Mal, consequentemente as stgnos, sao mascaras. 0 signa, ad-qutrtndo essa nova funcao de recobrimento da tnterpretacao, per-I,' scu ser simples de stgniftcante que possuia ainda n~ epoca do, nascimento, sua densidade propria verncomo que se abrtr, e po-oinll entao se prectpttar na abertura todos as conceitos neganvos'lilt' ate agora tinham permanecido alheios a teoria do signa. Esta. ,.nhecia apenas a momenta transparente e quase negativo do veu.~(Jrapodera organtzar-se no interior do signa todo urn jogo deucettos negativos, de contradtcoes, de oposicoes, enfim, 0con-IlIntodesse jogo de forcas reativas que Deleuze tao bern analisou"111 seu livro sabre Nietzsche."Repor a dialettca sabre seus pes", se essa expressao deve ter urn

    ..cnttdo, nao seriajustamente ter recolocado na densidade do signa,nesse espaco aberto, sem fim,vazio, nesse espaco sem conteudo realucm reconciltacao, todo esse jogo da negattvidade que a dialetica ti-uha finalmente neutralizado dando-lhe urn sentido positive?

    '"":nfim,ultima caracteristtca da hermeneutica: a tnterpretacao se

    runfronta com a obrtgacao de interpretar a si mesma infinitamen-!c'. de sempre se retomar. Donde duas consequencias importantes.A prtmeira e que a mterpretacao sera sempre, desde entao, inter-prt'lac;aoatraves do "quem?"; nao se interpreta a que ha no signtft-r.lo, mas, no fundo, quem colocou a tnterpretacao. 0 principia dauucrpretacao nada mais e do que 0tnterprete. E talvez seja esse a!'of'lllidoque Nietzsche deu a palavra "psicologia". Asegunda conse-quvncta e que a mterpretacao tern sempre que interpretar a si mes-lila, e nao pode deixar de retornar a st mesma. Em oposicao aotcuipo dos stgnos, que e urn tempo do fracasso, e em opostcao ao'-C'IlIPO da dialettca, que, apesar de tudo, e linear, ha urn tempo dauucrpretacao, que e circular. Esse tempo e , certamente, obrtgado ap.ixsar novamente par onde eleja passou, a que faz com que final-uu-ute a unico pertgo que a tnterpretacao realmente corra, mas e11111 pertgo supremo, sejam paradoxalmente as stgnos que a fazem10 Marx (K), Zur Kritik der politischen Oekonomie, Berltm, Franz Dancker , 1859II', Itlque de l'economie politique, trad. M. Rubel e L. Evrard, l ' secao: Le capital en1}.,u'lt.d. Capitulo II: "La monnaie", in Oeuvres, t. I: Economie, Paris, Gallimard, . . 1 "Blbltotheque de la Pletade", 1965, ps. 317-452).

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    dcslizar. Amorte da interpretacao e acreditar que ha stgnos, signosque existem primeiramente, ortgmalmente, realmente, como mar-cas coerentes, pertinentes e ststemattcas.Avida da interpretacao, pelo contrarlo, e acredttar que so ha in-

    terpretacoes Parece-me que e preciso compreender uma cotsa quernuttos de nossos conternpor aneos esquecem, que a hermeneuticae a semiologta sao dois inimigos implacaveis. Uma hermeneutic a,que se restringe de fato a uma semiologta, acredita na existenctaabsoluta dos signos: ela abandona a vtolencta, 0 inacabado, a infi-nitude das Interpretacoes, para fazer reinar 0 terror do indice esuspeitar da linguagem. Reconhecemos aqui 0 marxismo, aposMarx. Aocontrarto, uma hermeneutica que se envolve consigo mes-rna entra no dominto das linguagens que nao cessam de implicar asi mesma,s, essa regtao tnterrnedtarta entre a loucura e a pur a lin-guagem. E ali que reconhecemos Nietzsche.

    DiscussaoSr. Boehm: Vocemostrou claramente que, em Nietzsche, a in-

    terpretacao nunca cessa e que ela constituia a propria trama darealidade. Inclusive, para Nietzsche, interpretar 0mundo e mu-da-le nao sao duas coisas diferentes. Mas isso vale para Marx? Emurn texto celebre, ele opoe mudanca do mundo e interpretacao dornundo ...Sr. Foucault: Eu esperava que essa frase de Marx me fosse con-

    traposta. Dequalquer forma, se voce se reportar a economia politl-ca, observara que Marxa trata sempre como uma maneira de inter-pretar. 0 texto sobre a Interpretacao diz respeito a filosofia e ao fimda filosofia.Mas sera que a economia politica, tal como Marx a con-cebe, seria capaz de constituir uma tnterpretacao que nao fossecondenavel, na medtda em que ela pudesse levar em conta a mu-danca do mundo e, de alguma forma, a interiorizasse?Sr. Boehm: Outra questao: 0 essencial, para Marx, Nietzsche e

    Freud nao esta na ideta de uma automtstlftcacao da consciencta?Nao se trata ai dessa nova Idela, que nao surge antes do seculo XIXe que encontraria sua fonte em Hegel?Sr. Foucault: FOinegligencta minha nao dizer que essa nao era

    precisamente a questao que eu queria colocar. Eu quis tratar da in-terpretacao como tal. Por que somos levados a interpretar? Serapor Influencia de Hegel?

    1967 - Nietzsche. Freud. Marx 51Uma coisa e certa: a tmportancta do stgno, pelomenos uma certa

    mudanca na tmportancta e no credito que se dava ao signo. pr odu-ztu-se no final do seculo XVIIIou no inicio do XIX, por razoes quesao muito numerosas. Por exemplo, a descoberta da ftlologia. nosentido classtco do termo, a organizacao da rede das Iinguas in-do-europeias, 0fato de os metodos de classiftcacao terem 'perdidosua utilidade, tudo isso provavelmente reorganizou inteiramenteIIOSSO mundo cultural dos stgnos. Coisas como a filosofia da natu-reza, entendida em urn sentido muito amplo, nao somente em He-gel, mas em todos os contemporaneos alemaes de Hegel, sao, semduvida, a prova dessaalteracao no regime dos stgnos produzida narnltur a naquele momento.Tenho a impressao de que seria, dtgamos. mais fecundo, atual-mente, em relacao ao tipo de problema que nos colocamos, ver na

    tdeia da mtsttftcacao da consciencia urn tema nascido talvez matsda modiflcacao do regime fundamental dos stgnos do que encon-trar ai, ao contrarto, a origem da preocupacao em interpretar.Sr. Taubes: Aanalise de M. Foucault nao e incompleta? Ele nao

    levou em conta as tecntcas de exegese reltgtosa. que tiveram urn pa-pel decisivo. E ele nao seguiu a articulacao htstortca verdadeira:Apesar do que M. Foucault acaba de dizer, parece-me que a inter-pretacao no seculo XIXcomeca com Hegel.Sr. Foucault: Nao me referi a interpretacao reltgiosa que, de

    fato, teve extrema tmportancta, porque, na muito resumida historiaque tracei, localizei-me do lade dos stgnos, e nao do lado do senti-do. Quanto ao corte doseculo XIX, podemos atribui-lo a Hegel.Mas, na historia dos stgnos, tornados em sua mais ampla extensao,a descoberta das linguas tndo-europetas, 0 desaparecimento dagramatica geral, a substttuicao do conceito de organismo pelo con-('('itode carater nao sao menos "importantes" do que a filosofia he-gdiana. Itpreciso nao confundir historta da filosofia e arqueologiado pensamento.Sr. Vattimo: Se eu 0compreendi bern, Marx deveria ser classtfi-

    ('ado entre os pensadores que, como Nietzsche, descobrem 0 inter-nunavel da tnterpretacao, Estou inteiramente de acordo com voceIII)que se refere a Nietzsche. Mas, em relacao a Marx, nao ha neces-s.utamente urn ponto de chegada? 0 que quer dizer a infra-rxtrutura senao alguma cotsa que deve ser considerada comohase?Sr. Foucault: Em relacao a Marx, quase nao desenvolvi minha

    IcI{'la;temo mesmo nao poder demonstra-la ainda. Mas tomem 0

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    Dezotto ~rumarioll, por exemplo: Marx jamais apresenta sua in-terpretacao como interpretacao final. Ele sabe claramente, eo diz,q~e se poderia interpretar em urn nivel mats profundo, ou em urnmvel mats geral, e que nao ha expltcacao que seja rasteira.Sr. Wahl: Creio existir uma guerra entre Nietzsche e Marx, e en-

    tre ~ietz~che e Freud, apesar de haverem analogtas. Se Marx ternrazao, NIetzsche deve ser interpretado como urn fenomeno da bur-guesia de sua epoca. Se Freud tern razao, seria preciso analisar 0inconsciente de Nietzsche. Vejo entao uma especte de guerra entreNietzsche e os outros dots.

    Nao e verdade que temos Interpretacoes em demasia? Estamos"obsedados pela interpretacao". Sem duvida, e preciso interpretarsempre. Mas ha sempre 0que interpretar? E me pergunto ainda:quem int~rpreta? E, por fim: estamos sendo enganados, mas porquem? Ha urn mistiftcador, mas quem e ele? Ha sempre uma plu-ralidade de interpretagoes: Marx, Freud, Nietzsche, e tambem Go-bineau ... Ha0marxismo, a pstcanaltse, ha ainda, digamos, as in-terpretacoes raciais ...~r. Foucault: Creio que 0problema da pluralidade das interpre-tacoes, da guerra das Interpretacoes se tornou estruturalmentepossivel pela propria deftnlcao da Interpretacao como aqullo que

    nao tern flm, sem que haja urn ponto absoluto a partir do qual elase julga e se decide. Demane ira que isso, 0proprio fato de que este-jamos dedicados a ser interpretados no momento mesmo em queinterpretamos, todo interprete deve sabe-lo. Essa pletora de inter-pretacoes e, certamente, urn trace que caracteriza profundamentea cultura ocidental atualmente.Sr. Wahl: Ha, de qualquer forma, pessoas que nao sao inter-

    pretes.Sr. Foucault: Neste momento, elas repetem, repetem a proprialmguagem.Sr. Wahl: Por que? Por que dizer isso? Pode-se, naturalmente, in-

    terpretar Claudel demultiplas maneiras, a maneira marxista, ao mo-do freudiano, mas, apesar de tudo, 0importante e a obra de Claudel.Quanto a obra deNietzsche, e mais dificil dizer. Em relacao as inter-pretacoes marxistas e freudianas, ele arrisca sucumbir ...

    11. Marx (K.)' Der Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte, in Die Revolution.Eine Zettscfirlrt in zwanglosen Hejten, Ed. J. Weydemeyer, Erstes Heft, Novalorque, 1852 (Le dix-hutt brumaire de Louis Bonaparte, Paris, Editions Sociales,1962).

    1967 - Nietzsche, Freud, Marx 53Sr. Foucault: Oh, eu nao diria que ele sucumbiu! It claro queextste, nas tecntcas de Interpretacao de Nietzsche, alguma coisa

    que e radicalmente diferente, e que faz com que nao se possa, se vo-I'es querem, inscreve-Io nos corpos constttuidos que representam,atualmente, por urn lado, os comunistas e, por outro, os psicana-IIstas. Os nietzschianos nao tern, do ponto de vista do que eles in-terpretam ...Sr. Wahl: Ha nietzschianos? Duvidava-se disso essa manha!Sr. Baroni: Gostaria de the perguntar se voce concorda que entre

    Nietzsche, Freud e Marx 0 paralelo poderia ser 0 seguinte: Nie-tzsche, em sua mterpretacao, busca analisar os bons sentimentos emostrar 0que eles escondem na realidade (tal como na Genealogiaciamoral). Freud, na psicanalise, val desvelar 0 que e 0 conteudolatente: e, aqut tambem. a tnterpretacao sera bastante catastroftcapara os bons sentimentos. Enflm, Marx atacara a boa conscienciaciaburguesia, e mostrara 0que existe no fundo. Embora as tres in-terpretacoes parecam estar dominadas pela Ideia de que ha signosit traduzir, dos quais e preciso descobrir a stgmficacao, mesmo seessa traducao nao e simplese deva ser fetta em etapas, talvez infini-tamente.Mas existe, me parece, urn outro tipo de interpretacao em psi-

    cologia, que e totalmente oposta, e que nos remete ao seculo XVIdo qual voce falou. It a de Jung, que denunciava, precisamente,no ttpo de interpretacao freudiana, 0veneno depreciativo. Jungopoe 0 simbolo ao stgno, 0 stgno sendo 0 que deve ser traduzidorill seu conteudo latente, enquanto 0simbolo fala por si mesmo.St' eu disse ha pouco que me parecia que Nietzsche estava do101110de Freud e de Marx, creio de fato que, em relacao a esse pon-to. Nietzsche pode tambern ser aproximado de Jung. Tanto paraNietzsche, como para Jung, ha uma opostcao entre 0 "eu" e 0 "si",r-utre a pequena e a grande razao. Nietzsche e urn interprete ex-t,'cmamente agudo, e mesmo cruel, mas ha nele uma certa manei-r it de se colocar a escuta da "grande razao", 0que 0aproxima de,'"ng.Sr. Foucault: Sem duvida, voce tern razao.Srta. Ramnoux: Gostaria de retornar a urn ponto: por que voce

    uao falou do papel da exegese religiosa? Parece-me que talvez naoIH' possa neglicenciar a questao das traducoes, porque, no fundo,todo tradutor da Biblla considera que ele diz 0sentido de Deus, e(PH, consequentemente, deve colocar ali uma consciencia infinita.I'lnalmente, as traducoes evoluem com 0tempo, e alguma coisa se

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    revela atraves dessa evolucao das traducoes, Ituma questao muitocomplicada ...Ante~ de ouvi-lo, eu tambem refletia sobre as possivets relacoes

    entre NIetzsche e Freud. Se tomarmos 0 indice das obras comple-tas de Freud, e como suplemento 0 livro de Jones, encontraremosno final das contas muito pouca coisa. De repente, eu me disse: 0problema e inverso. Por que Freud se cala sobre Nietzsche?Ora, em relacao a Isso, ha dois pontos. 0 primeiro e que, em

    1908, creio, os alunos de Freud, ou seja, Rank e Adler, tomaramcomo tema de urn de seus pequenos congressos as semelhancas ouas analogtas entre as teses de Nietzsche (particularmente na Genea-logia da moral) e as teses de Freud. Freud perrnitiu que 0flzessem,mas guardou extrema reserva, e creio que 0que ele disse neste mo-mento foi mais ou menos 0 segutnte: Nietzsche traz muitas Ideiasao mesmo tempo.o outro ponto e que, desde 1910, Freud inicia seu contato comLou Salome; sem duvida. ele fez urn esboco ou uma analise dtdati-ca de Lou SalorneP Consequentemente, devia haver, atraves deLou Salome, uma especte de relacao medica entre Freud e Nie-tzsche. Ora, ele nao podia falar sobre isso. Mas 0certo e somenteque tudo 0que Lou Salome publicou depois faz parte, no fundo, desua analise Interminavel. Seria prectso le-lo nessa perspectiva. Asegutr, encontramos 0 livro de Freud, Moise et lemonorhetsme ".em que ha uma especte de diaIogo de Freud com 0Nietzsche deGe-nealogia da moral - ve]a, eu apenas the submeto os problemas;voce poderia acrescentar alguma coisa?Sr. Foucault: Nao, nao sei rtgorosamente nada mais. Fiquei real-

    mente surpreso com 0espantoso stlencto, com excecao de uma ouduas frases, de Freud em relacao a Nietzsche, mesmo em sua cor-respondencta, It realmente muito entgmattco. A explicacao "pelaanalise de Lou Salome, 0fato de ele nao poder falar disso ...Srta. Ramnoux: Ele nao queria dizer mais nada sobre Isso...

    12. Referencta a correspondencta entre LouAndreas-Salome e Freud, que se esten-de por urn quarto de seculo, LouAndreas-Salome. Correspondance avec SigmundFreud (1912-1936). Segutda do Journal d'une anee (1912-1913). trad. L. Jumel,Paris, Galluuard. col. "Connalssance de l'tnconsctent", 1970.13. Freud (S.), Der Mann Moses und die Monothetsttsche Religion. Drei Abhand-lu~gen. Amsterdam, Allert de Lange, 1939 (L'homme MOiseet la religion mono-thetste. Trois essals, trad. C. Helm, Paris, Gallimard, col. "Connaissance deI'tnconsctent", 1986),

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    Sr. Demonbynes: Sobre Nietzsche, voce disse que a expertenctada loucura era 0 ponto mats proximo do conhecimento absoluto.Eu the pergunto em que medida, do seu ponto de vista, Nietzscheleve a expertencia da loucura? Se voce trver tempo, naturalmente,seria multo interessante colocar a mesma questao a respeito de ou-Iros grandes homens, sejam eles poetas ou escritores, como H61-derltn, Nerval ou Maupassant, ou mesmo mustcos, como Schu-mann, Henri Duparc ou Maurice Ravel.Mas fiquemos no plano deNietzsche, Sera que compreendi bern? Pols voce falou claramentedessa expertencia da loucura. Foi Isso, na verdade, 0que voce quisdizer?Sr. Foucault: Sim.Sr. Demonbynes: Voce nao quis dizer "consciencia" ou "pres-ctencia", ou pressentimento da loucura? Voce acredita verdadetra-

    mente que possa existir. .. que grandes homens como Nietzschepossam ter tido "a expertencta da loucura"?Sr. Foucault: Eu the respondo: sim, sim.Sr. Demonbynes: Nao compreendo 0 que isso quer dizer, por-

    que eu nao sou urn grande homem.Sr. Foucault: Eu nao disse tsso.Sr. Kelkel: Minha questao sera muito breve: ela se relaciona, no

    fundo, com 0que voce chamou de "tecnicas de tnterpretacao", nasquais voce parece ver, eu nao diria urn substituto, mas em todocaso urn sucessor, uma sucessao possfvel a fllosofta. Voce concor-da que essas tecnicas de mterpretacao do mundo sao antes de tudotecntcas de "terapeuttca", tecntcas de "cura", no sentido mats am-plo do termo: da sociedade em Marx, do tndividuo em Freud e dahumanidade em Nietzsche?Sr. Foucault: Penso de fato que 0 sentido da tnterpretacao, noseculo XIX,certamente se aproximou do que voce concebe por tera-

    peutica. Noseculo XVI,a interpretacao talvez encontrasse seu sen-udo do lado da revelacao, da salvacao. Eu the citarei simplesmenteuma frase de urn historiador chamado Garcia: "Em nossos dias -diz ele, em 1860 - a saude substituiu a salvacao".

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    I. edicuo - 2000 Editions Gallimurd, 1994 Librairie philosophioue 1. Vrin, Paris, 1964,para 0 rexto lnfonnc Historico Presses universitaires de France, 197 J e Edithms Galtimard, Paris, 1994. para () textoNietzsche, a Genealagiu, a HistoricTraduzido de:Dits et ectitsCrt (JIII'I"(Jgl'.jlllhlil; dans /e cadre du programme d'oidc (1 J (/ publication. hel1~flcil' e l l ! soutien dn Mil1i.l'fheFral1fai.I' J(',\' Affaires Etrungeres, de l'Ambassudede France WI Br~,\'il t'( t i t ' /( 1 M " i: w n de, France dr Rio dehmmu .. '.Estc livro, publicado IHl ambi to do programa de pa rlicipa rra o a publicacilo, cnntou com 0 apoio tin MiruxtcrioFrances dux RCitH;flCS Extcriorcs, da Ernbnixada da Franca no Brasil c da Maison-de France tin Rill de Janeiro.Ollvragt' /Jllhlit; avec I'oide till Ministvre Francais Clwrg/ de /a Culture - Centre Nutionul rill Livre.Ohra publicuda com u ajuda do Minixtcrio Frances du Cuhura - Centro Nacional do Livru.

    Foto da capa: Jacques Robert

    Clft-Brasil. Catulugacilo-na-IontcSindicato Nacional dns Editorcs de Livros. RJ.FX6a FlJUCilUh,Michel, 1926-1984

    Arqucologia das cidncias c hisuiria dos sistemas de pcnsamcnto/MichclFoucault: orgunizacflo c sclccao de tcxtos, Manuel Barros da Moua: traducno.Elisa Monteiro. - Rio de Janeiro: Forcnsc Univcrsiulria, 20()().

    (DilOS C cscritox; II)Traducao de: Oils ct centsISBN X5-2IX-0276-51. Tcoria do conhecimento. 2. Cicncias - H~"'h)ri'L I. Titulo. Il. S e n e .

    00-1531. CDD 121CDU 1