o niilismo em nietzche e a ambivalencia em baumann

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – CCE/FAED MESTRADO EM EDUCAÇÃO E CULTURA O NIILISMO EM NIETZSCHE E A AMBIVALÊNCIA EM BAUMAN: Uma leitura possível do modelo civilizatório ocidental. SANDRO LUIZ BAZZANELLA Florianópolis, SC 2003.

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC

    CENTRO DE CINCIAS DA EDUCAO CCE/FAED

    MESTRADO EM EDUCAO E CULTURA

    O NIILISMO EM NIETZSCHE E A AMBIVALNCIA EM BAUMAN: Uma leitura possvel do modelo civilizatrio ocidental.

    SANDRO LUIZ BAZZANELLA

    Florianpolis, SC

    2003.

  • 2

    SANDRO LUIZ BAZZANELLA

    O NIILISMO EM NIETZSCHE E A AMBIVALNCIA EM BAUMAN: Uma leitura possvel do modelo civilizatrio ocidental.

    Dissertao apresentada ao colegiado do Mestrado em Educao e Cultura do Centro de Cincias da Educao, Universidade Estadual de Santa Catarina, para obteno do ttulo de Mestre em Educao e Cultura.

    Orientador: Prof. Dr. Selvino Jos Assmann

    Florianpolis, SC

    2003.

  • 3

    O NIILISMO EM NIETZSCHE E A AMBIVALNCIA EM BAUMAN: Uma leitura possvel do modelo civilizatrio ocidental.

    Por

    SANDRO LUIZ BAZZANELLA

    Dissertao apresentada ao colegiado do Mestrado em Educao e Cultura, do Centro de Cincias da Educao da Universidade Estadual de Santa Catarina, aprovada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:

    Orientador: ___________________________________ Prof. Dr. Selvino Jos Assmann

    ____________________________________

    Dr. Andr Luiz Antunes Netto Carreira

    _____________________________________ Dr. Srgio Schmitz

    ______________________________________ Dr. Gersolina A. de Avelar Lamy (Suplente)

    Florianpolis, de de 2003.

  • 4

    NDICE

    RESUMO ..................................................................................................................... ABSTRACT ................................................................................................................. INTRODUO............................................................................................................ CAPTULO I - O DILOGO POSSVEL ENTRE FRIEDRICH WILHELM

    NIETZSCHE E ZYGMUNT BAUMAN SOBRE O MODELO CIVILIZATRIO OCIDENTAL MODERNO. ...........................................................................................................

    CAPTULO II O NIILISMO EM NIETZSCHE ................................................. 2.1 NIILISMO PASSIVO.............................................................................................2.2 NIILISMO REATIVO............................................................................................2.3 NIILISMO ATIVO................................................................................................. CAPTULO. III MANIFESTAES DO NIILISMO NO MODELO

    CIVILIZATRIO OCIDENTAL MODERNO.................. 3.1 CRTICA FILOSOFIA DA HISTRIA ........................................................... 3.2 CRTICA AOS IDEAIS ASCTICOS ................................................................. 3.2.1 Filosofia e niilismo ............................................................................................. 3.2.2 Cristianismo e niilismo ....................................................................................... 3.2.3 Cincia e niilismo ............................................................................................... 3.3 NIILISMO ESTADO E DEMOCRACIA ............................................................. 3.4 NIILISMO IGUALDADE E SOCIALISMO......................................................... CAPTULO IV A AMBIVALNCIA EM ZYGMUNT BAUMAN ................... CAPTULO V MODERNIDADE NIILISTA E CONTEMPORANEIDADE

    AMVIALENTE............................................................................. 5.1 DA ORDEM MODERNA AO CAOS CONTEMPORNEO: Modernidade sem

    Iluses..................................................................................................................... 5.2 A DINMICA TRGICA DA VIDA NUMA PERSPECTIVA

    AMBIVALENTE................................................................................................... 5.3 INDIVIDUALIDADE OU PRIVATIZAO DAS INCERTEZAS

    EXISTENCIAIS..................................................................................................... 5.4 EU MORAL OU MORALIDADE DE MERCADO ............................................ 5.5 O MUNDO DOS ESPECIALISTAS OU RESISTNCIA INTELECTUAL........ CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .....................................................................

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    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, Ana e Angelo (in memorian) pela oportunidade da vida.

    A Margarete, companheira, esposa, pelo apoio ao longo da pesquisa.

    A Sandra Eloisa, que nasceu em meio a esta caminhada, pelo seu sim afirmativo e incondicional vida; condio sem conceito, nos ensinando muito mais do que talvez possa aprender conosco.

    Ao Professor Selvino Jos Assmann, estilo prprio dos grandes pensadores. Agradeo-o de forma especial por ter-me

    desorientado , oportunizando a possibilidade do despertar de meus sonhos dogmticos, ortodoxos e ascticos.

    Ao Pe. Luiz Bazzanella, pelas suas colaboraes no campo lingstico ao longo deste trabalho.

    Ao irmo Andr pelas manhs e tardes de estudos, de debates, de perplexidades diante do mundo, da existncia, da condio

    humana.

    Enfim, meu sincero agradecimento a todas aquelas pessoas que de forma direta ou indireta contriburam no debate, no desenvolvimento e materializao desta pesquisa.

  • 6

    Fiz um acordo de coexistncia pacfica com o tempo: nem ele me persegue,

    nem eu fujo dele. Um dia a gente se encontra .(Mario Lago).

    Vivo no presente. O futuro, no o conheo.

    O passado, j no o tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro com a

    realidade de nada. No tenho esperana nem saudades... que posso presumir da minha

    vida amanh, Seno que ser o que no presumo, o que no quero, o que me

    acontece de fora, at atravs da minha vontade... no quero mais da vida do que senti-

    la perder-se nestas tardes imprevistas .(Fernando Pessoa).

    O segredo da existncia humana consiste no somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver (Dostoivski).

    Viver ?... repelir constantemente para longe de ns tudo aquilo que deseja morrer.

    Viver ?... ser cruel, impiedoso, para tudo que envelhece e enfraquece em ns e mesmo alm . (Nietzsche).

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    RESUMO

  • 7

    O esforo terico/prtico de pesquisa, materializado ao longo deste trabalho parte, num primeiro momento, do estudo do niilismo apontado por Friedrich W. Nietzsche nas origens e ao longo da constituio do modelo civilizatrio ocidental, com suas contradies e contribuies condio humana. Num segundo momento, a pesquisa enfoca o conceito contemporneo de ambivalncia a partir das reflexes de Zygmunt Bauman, com a inteno de nos apossarmos de alguns pressupostos bsicos presentes na civilizao ocidental em sua fase moderna, ampliando nossa compreenso sobre alguns dos desafios que se apresentam condio humana na atualidade. Portanto, o trabalho vai se cotejar da questo das construes metafsicas, ontolgicas, teleolgicas presentes na origem do modelo civilizatrio ocidental como forma de extirpar o caos, a desordem, a tragdia da vida humana. Abordar o esforo moderno na busca da ordem e da segurana presentes nos ideais utpicos de construo de um mundo previsvel, debatendo a partir do niilismo e da ambivalncia, o fracasso das promessas de paz e de felicidade, a emergncia do caos e da insegurana, a perda das referncias totalizantes e as possibilidades que estas perspectivas contemporneas apresentam condio humana.

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    ABSTRACT

  • 8

    El esfuerzo terico/prtico de investigacin materializado a lo largo de este trabajo

    parte, en un primer momento del estudio del niilismo indicado por Friedrich W. Nietzsche en los orgenes y a lo largo de la constitucin del modelo civilizatrio occidental, con sus contradiciones y contribuciones a la condicin humana. En un segundo momento, la investigacin enfoca el concepto contemporneo de ambivalncia a partir de las reflexiones de Zygmunt Bauman, con la intencin de toma de posesin de algunas presuposiciones bsicas presentes en la civilizacin occidental en su fase moderna, ampliando nuestra comprensin de algunos desafios que se presentan a la condicin humana en la actualidad. Por conseguinte, el trabajo se concentrar en el tema de las constitucciones metafisicas, ontolgicas, teleolgicas presentes en el origen del modelo civilizatorio occidental como forma de extirpar el caos, el desorden y la tragedia de la vida humana. Abordar el esfuerzo moderno en la bsqueda del orden y la seguridad presentes en los ideales utpicos de construccin de un mundo previsible, discutiendo a partir del niilismo y de la ambivalencia, el fracaso de las promesas de paz y felicidad, la emergencia del caos y de la inseguridad, la perda de las referencias totalizantes y las posibilidades que estas perspectivas contemporneas presentan a la condicin humana.

    INTRODUO

  • 9

    O contexto existencial vivenciado nos tempos atuais apresenta-se desafiador

    condio humana. Numa leitura generalizada e pontual, presente na maioria das anlises

    cotidianas, constatam-se transformaes em todos os campos da atividade humana. Nestas

    leituras encontram-se a revoluo tecnolgica e cientfica das ltimas dcadas do sculo XX,

    aplicada ao setor produtivo, elevando os ndices de produtividade a esferas nunca dantes

    alcanadas em outros perodos. Esta revoluo possibilita o livre trnsito do capital

    financeiro, atravs do deslocamento em tempo e espao virtual de quantias vultuosas de

    capital, impondo sua supremacia sobre as outras formas de organizao do capital, bem

    como seu carter determinante s decises de mbito da poltica. O desenvolvimento da

    cincia e o domnio tcnico de conhecimentos proporcionam uma sensao de vitria do

    homem sobre a morte; o aumento da produo de alimentos pela manipulao gentica de

    animais e vegetais e a rapidez dos meios de transporte vencem distncias mundiais em

    intervalos de tempo cada vez mais curtos. Os sistemas de comunicao, televiso,

    computadores, satlites, interligados proporcionam comunicao instantnea entre

    continentes, povos e indivduos; As transformaes prosseguem aceleradas em outras esferas,

    com o definhamento e a conseqente perda de espao e controle social por parte de

    instituies, que, durante longo perodo mostravam-se slidas, incontestveis, tais como: o

    Estado , a Igreja, a Famlia, a Escola. Valores tradicionais inegociveis em outros tempos

    perdem sentido, alteram-se constantemente. Nas palavras de Marx, tudo o que slido

    desmancha no ar!

    A primeira impresso que se apresenta nesta leitura que a vida vai se libertando de

    antigas amarras, de blocos monolticos que a oprimiam, limitando suas fronteiras, sua

    cosmoviso, proporcionando um futuro promissor na medida em que dispomos e

    conseguirmos dominar os meios cientficos e tecnolgicos para tal fim.

    Porm, ao observarmos atenciosamente esta multiplicidade de manifestaes, ou, como

    reagem as pessoas em diferentes recantos e situaes existenciais, constatamos espanto,

    incertezas, frustraes, insatisfaes, paradoxos significativos neste contexto civilizatrio

    ps-moderno para alguns autores, ou, modernidade tardia para outros. Situaes que

    denunciam o aumento da produtividade pelas novas tecnologias, ao mesmo tempo em que o

    desemprego alcana cifras assustadoras no planeta, acompanhado da sensao/convico de

    que no h soluo para o desemprego. Nota-se o aumento significativo da riqueza global,

    mas ao mesmo tempo o alargamento do fosso na distribuio desta riqueza. Com a tecnologia

    dos meios de comunicao, o mundo foi reduzido a uma aldeia global, mas por outro lado

    aumentam a solido, a incomunicabilidade entre as pessoas, a intolerncia entre etnias, povos

    e naes. H compresso do tempo e do espao pela velocidade dos meios de transporte,

  • 10

    porm, a distncia e as barreiras tornam-se cada vez maiores entre as pessoas, os grupos

    religiosos, culturais, econmicos e at entre os pases. Existe a diminuio do poder

    coercitivo do Estado sobre o indivduo e, por outro lado, o aumento da tirania de mercado

    sobre o consumidor. O poder deixa de ser local, regido pela poltica, para tornar-se

    extraterritorial, regido pelo mercado financeiro. A morte elevada condio de espetculo

    cotidiano pela violncia urbana, no trnsito, em guerras eletrnicas, pela contaminao

    alimentcia, pela subnutrio. Paradoxos com os quais a condio humana se depara

    diariamente e que se estendem s questes ecolgicas, educacionais, institucionais, enfim em

    todas as esferas da cultura humana.

    Em meio a este conjunto catico de paradoxos e situaes existenciais, a condio

    humana depara-se com o fracasso das revolues que se propunham redentoras das

    desigualdades e das misrias sociais. Perdem fora as utopias de construo de um mundo

    melhor. As ideologias no conseguem mais motivar as massas para grandes causas de

    interesse pblico. A impresso de que reina absoluto o salve-se quem puder e o tirar

    vantagem de tudo. Causa alguma merece o empenho pessoal. O cidado, o sujeito histrico,

    transforma-se no indivduo, categoria essencial pertencente totalidade mercadolgica que

    busca sua razo de ser na eternidade dos instantes de consumo.

    Como conseqncia desta conjuntura, apresenta-se impactante em nosso meio um

    sentimento de mal-estar , de falta de um princpio legislador, de ordenao da realidade, que

    d conta da justia, da segurana, de termos alguma garantia terica ou prtica de que, se algo

    vai mal, possvel superar a situao de uma autoridade, seja ela cientfica, religiosa, poltica

    ou familiar, que aponte o melhor caminho, a opo mais confivel. Enfim, que construa

    algumas certezas necessrias condio humana neste contexto. H, em meio a este turbilho

    de transformaes, um sentimento de cansao, de impotncia diante dos desafios da vida em

    sua dinamicidade. Tal cansao revela-se, por um lado, na euforia do consumo, na

    eternidade do instante, vivido pelo indivduo consumidor a partir de uma moral imposta

    pela transcendncia do mercado. Por outro lado, apresenta-se um ressentimento em relao

    vida, de que no existe causa alguma que valha esforo ou empenho pessoal, pois apodera-se

    das pessoas a sensao de no haver mais possibilidade de salvao, uma vez que todas as

    propostas societrias fracassaram em suas promessas. Este sentimento esta presente na viso

    de que os problemas existenciais que vivemos so insolveis e que, neste contexto, somente

    resta uma sada: conviver com os problemas, mas encontrando uma sada apenas individual.

    A vida apresenta-se como uma sucesso de eventos desconexos, comprimida pela acelerao

    tecnolgica das categorias de tempo e espao.

  • 11

    diante deste cenrio repleto de paradoxos, de riscos em que se encontra a vida, a

    condio humana, que se desenvolveu esta pesquisa. O esforo terico/prtico realizado nesta

    caminhada objetivou o questionamento sobre as bases em que a existncia humana foi

    alicerada ao longo do desenvolvimento da proposta civilizatria ocidental e os custos

    exigidos contemporaneamente condio humana diante dos fracassos, das promessas de um

    mundo de felicidade e paz.

    Portanto, a necessidade desta pesquisa coloca-se no fato de contribuir com a

    possibilidade de empreender, a partir das contribuies tericas de Friedrich W. Nietzsche e

    Zygmunt Bauman, um olhar atento, investigativo, paciente, genealgico, s bases do modelo

    civilizatrio ocidental, no sentido de encontrar as razes deste sentimento de mal-estar, de

    cansao, de ressentimento existencial que vivenciamos no contexto atual. Longe da pretenso

    de propor novas utopias, caminhos necessrios transformao do modelo civilizatrio

    ocidental em sua fase moderna na busca de um futuro melhor, esta pesquisa coloca-se na

    perspectiva de um possvel reencontro com a vida em sua dinmica trgica, de perceber a

    condio humana em sua fragilidade, em sua contingncia e parcialidade participantes de um

    jogo movido pela liberdade humana, mesmo que limitada pelas fronteiras gregrias da vida

    em sociedade; de darmo-nos conta de que talvez o mundo no tenha a finalidade que o

    modelo civilizatrio ocidental construiu e exige para sua manuteno, ao mesmo tempo em

    que nos possibilita perceber que as insatisfaes experimentadas atualmente so tambm fruto

    do esforo terico e prtico que se fizeram na construo de um projeto utpico,

    exclusivamente pautado na racionalidade, com a pretenso de ordenar e solucionar

    questionamentos e problemas existenciais. Este esforo terico/prtico justifica-se tambm, na

    medida em que nos damos conta de que o que nos sobra de todas essas experincias

    civilizatrias a possibilidade de pensarmos que possa haver ainda alguma possibilidade de

    sobrevivncia, de tolerncia, de tica, em nossas relaes sociais, na medida em que nos

    dermos conta da necessidade de diminuirmos o grau de nossa arrogncia cognitiva diante do

    mundo, da existncia, assumindo a vida em seu niilismo ativo, em suas manifestaes

    ambivalentes.

    Diante destas perspectivas, esta pesquisa esfora-se em conduzir tal debate a partir de

    cinco captulos articulados em torno da temtica central.

    No primeiro captulo, apresentamos as possibilidades de um dilogo entre Friedrich

    W. Nietzsche e Zygmunt Bauman sobre o modelo civilizatrio ocidental moderno. Tratando-

    se de dois pensadores que vivem em contextos temporais diferentes, Nietzsche sculo XIX e

    Bauman, pensador do sculo XX e, em intensa atividade reflexiva, o que justifica a

  • 12

    possibilidade deste dilogo, o pensar sobre a condio humana inserida na proposta

    civilizatria ocidental presente nos dois pensadores, com suas respectivas diferenas.

    O segundo captulo parte do estudo do conceito de Niilismo presente no pensamento

    de Nietzsche, como possibilidade de uma investigao genealgica das bases do modelo

    civilizatrio ocidental, descortinando as contradies, os equvocos, as verdades que

    fundamentam as construes onto-teolgicas, metafsicas, transcendentes e essenciais,

    presentes na racionalidade ocidental, bem como na moral judaco-crist que se tornaram

    hegemnicas na construo da proposta civilizatria ocidental. a possibilidade de deparar-

    se com a construo humana dos valores que se tornaram essncias e, consequentemente,

    parmetro de julgamento, de ressentimento em relao dinmica trgica da vida em sua

    perspectiva imanente. Em Nietzsche o niilismo denunciado na estrutura da proposta

    civilizatria, tambm se apresenta como anncio da possibilidade da morte do homem

    civilizado e de seus deuses, o que possibilitaria uma nova postura diante da vida, de sua

    dinmica trgica, em consonncia com os valores fisiolgicos e cosmolgicos, participantes

    das vontades de poder manifesta em toda e qualquer estrutura vital. a possibilidade de

    assumir a vida em sua dinmica ldica, participando intensamente em cada jogada do lance

    de dados da existncia.

    O terceiro capitulo dedica-se a partir das contribuies de Nietzsche uma

    investigao genealgica s bases do modelo civilizatrio ocidental, no sentido de deparar-se

    com manifestaes niilistas passivas e reativas. Tais manifestaes apresentam-se na

    concepo de histria enquanto expresso temporal linear entre passado, presente e futuro,

    conferindo finalidade existncia humana. O niilismo se manifesta atravs de ideais ascticos

    como nica possibilidade de alcance da verdade, da virtude e da felicidade. Entre eles est a

    filosofia, o cristianismo e a cincia. O niilismo que se manifesta na construo das estruturas

    de ordenao da sociedade ocidental, como decorrncia de uma perspectiva de historicidade,

    de conhecimento, de verdade que aliceraram utopias e promessas de um mundo livre das

    imperfeies entre elas o Estado, a democracia, a igualdade, o socialismo.

    O quarto captulo um estudo do conceito de ambivalncia presente em Zygmunt

    Bauman como possibilidade de entendimento dos imensos esforos humanos na construo de

    estruturas ordenadoras e doadoras de sentido condio humana, presente no modelo

    civilizatrio ocidental em sua fase moderna. A partir deste conceito, Bauman nos possibilita

    tambm a constatao das frustraes, dos desencantos, do cansao existencial do homem

    civilizado moderno diante do fracasso das promessas utpicas de uma humanidade rumo ao

    progresso e perfeio. A percepo de que os custos humanos exigidos pela proposta

    civilizatria ocidental moderna so injustificveis e que em todo esforo ordenador

  • 13

    desenvolvido pela modernidade as contradies, as ambigidades, as ambivalncias estavam

    presentes, denunciando silenciosamente o sem sentido de tais arquiteturas.

    O quinto captulo uma proposta. Talvez, muito mais: uma tentativa de

    questionamento das possibilidades apresentadas condio humana no contexto

    contemporneo marcado pela descrena, pelo cansao, pela sensao de impotncia, pela

    fragmentao das verdades essenciais e das transcendncias, pela queda dos muitos Muros

    de Berlim, que amparavam solidamente a existncia na base do modelo civilizatrio

    ocidental. Portanto, neste captulo, a partir do niilismo denunciado e anunciado por Nietzsche,

    das ambivalncias apontadas por Bauman, preservadas as diferenas presentes entre os dois

    pensadores no modo de conceber e participar do jogo da vida, nos perguntamos: O que isto

    pode significar condio humana? Quais as possibilidades que se apresentam vida neste

    contexto ? O que significa o homem superar-se a si mesmo ? possvel assumir a vida como

    um jogo e correr o risco das decises quotidianas que temos que tomar ? O que representa

    neste contexto perceber que o sentido da existncia est exatamente em livrar-se das verdades,

    das certezas e das convices que nos amparavam e conferiam uma finalidade mesma ?

    CAPTULO I - O DILOGO POSSVEL ENTRE FRIEDRICH WILHELM

    NIETZSCHE E ZYGMUNT BAUMAN SOBRE O MODELO CIVILIZATRIO OCIDENTAL MODERNO1.

    1 O desenvolvimento da temtica neste captulo permeado por traos biogrficos dos autores em questo. Tal opo justifica-se didtica e metodologicamente, a partir do entendimento que um enfoque caracterizado unicamente pela objetividade, exigiria ater-se somente aos elementos centrais que aproximariam ou

  • 14

    Ao nos defrontarmos com a proposta de um dilogo entre Nietzsche e Bauman, surge

    um questionamento que vital para a viabilidade desta pesquisa: possvel estabelecer um

    dilogo entre estes autores (Friedrich Wilhelm Nietzsche e Zygmunt Bauman) em torno da

    crtica ao modelo civilizatrio ocidental moderno?

    Num primeiro momento fundamental admitirmos que no uma tarefa simples e,

    conseqentemente, fcil estabelecer um dilogo entre dois pensadores da potencialidade e da

    genialidade de Nietzsche e Bauman. Qualquer tentativa que desconsidere estes pressupostos

    poder estar incorrendo no risco de resultar em reducionismo de idias, mas, principalmente

    na perda inestimvel de oportunidade de encontrar-se com tudo aquilo que contingente,

    provisrio, passageiro na existncia, de percebermos a dinmica e a multiplicidade de foras

    que impulsionam quotidianamente a vida e que nos proporcionam a experincia da existncia.

    Entendemos que o dilogo possvel, apesar de estarmos diante de dois pensadores

    que no so contemporneos. Friedrich Wilhelm Nietzsche2 um homem do sculo XIX,

    possibilitariam o dilogo filosfico entre estes dois autores. Neste sentido, entendemos que seria um reducionismo terico, limitando as possibilidades de adentrarmos nas perspectivas que moveram e movem a intensidade das reflexes destes dois pensadores. Tal atitude epistemolgica, traria prejuzos, limitaria as possibilidades de nos darmos conta, de perceber, que todo esforo terico resultante de uma prtica vital, de que os conceitos somente podem ser apreendidos se concebidos a partir das prticas antropomrficas que os construram. Tambm optamos por no desenvolver esta temtica por quadros comparativos das principais teses dos dois autores, uma vez que entendemos que o filosofar no se presta a resumos esquemticos e simplificaes deste gnero, o que seria de certa forma privar o leitor da possibilidade de fazer o esforo filosfico por prpria conta e risco na interpretao das idias aqui desenvolvidas. 2 Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Rcken , na localidade prxima a Leipzig. Karl Ludwig, seu pai, pessoa culta e delicada, e seus dois avs eram pastores protestantes; Em 1849, seu pai e seu irmo faleceram. A me mudou-se com a famlia para Naumburg, onde Nietzsche cresceu em companhia da me, duas tias e a av. Criana feliz, aluno modelo, dcil e leal, seus colegas de escola o chamavam pequeno pastor; 1858 - Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na ento famosa escola de Pforta, onde haviam estudado o poeta Novalis e o filsofo Fichte (1762-1814). 1864 - Iniciou a carreira acadmica na Universidade de Bonn onde se dedicou aos estudos da filosofia e teologia, 1865 - por influncia de seu professor predileto Ritschl, desistiu destes estudos e passou a residir em Leipzig, dedicando-se filologia. A filosofia somente passou a interess-lo a partir da leitura de O mundo como Vontade e Representao, de Schopenhauer (1788-1860). 1867 incorporado ao servio militar, sofre um acidente de montaria e dispensado voltando a se dedicar aos estudo em Leipzig, onde consegue o cargo precoce de professor em Filologia Clssica na Universidade de Leipzig. Ainda em Leipzig conhece Richard Wagner onde a notvel influncia deste homem o faz dedicar-se msica e poesia. 1869 Nomeado professor de Filologia Clssica na Universidade da Basilia, na Sua. 1870 Devido guerra entre Alemanha e Frana convocado ao servio militar como enfermeiro, permanecendo por pouco tempo, pois adoece ao contrair difteria e desinteria. Essa doena parece ter sido a origem das dores de cabea e de estmago que acompanharam o filsofo durante toda a vida. Retorna Basilia a fim de prosseguir seus cursos. No perodo entre 1871 a 1888, Nietzsche escreve e redige suas principais obras, entre elas: O nascimento da tragdia no esprito da msica (1871); A filosofia na poca trgica dos gregos, Verdade e mentira no sentido extra-moral, David Strauss, o devoto e o escritor (1873); Segunda Considerao Extempornea; Da utilidade e desvantagem da histria para a vida, Terceira considerao extempornea: Schopenhauer educador (1874); Quarta considerao extempornea: Richard Wagner em Bayreuth (1876); Humano demasiado humano (1878); O andarilho e sua sombra (1880); Aurora (1881); Gaia Cincia (1882); Assim falou Zaratustra (1884); Para alm do bem e do mal (1886); O caso Wagner, Crepsculo dos dolos,

  • 15

    envolto num contexto histrico, social, poltico, econmico e filosfico em grande parte

    precursor do sculo XX em que vive Zygmunt Bauman3. A partir deste contexto inicial, a

    convergncia dialgica entre estes dois pensadores pode se dar em torno da condio humana

    e suas perspectivas, presentes na origem do modelo civilizatrio ocidental e seus

    desdobramentos e exigncias para com a existncia humana na fase moderna do modelo

    civilizatrio ocidental.

    Portanto, outro aspecto que se apresenta neste possvel dilogo entre Nietzsche e

    Bauman a necessidade e a conseqente dificuldade em conceituar e recortar adequadamente

    o que entendemos nesta pesquisa por modelo civilizatrio ocidental e modelo civilizatrio

    ocidental moderno. Conceitos a partir dos quais buscamos a compreenso das contribuies

    destes dois pensadores e que deram viabilidade ao desenvolvimento das reflexes presentes

    nesta pesquisa. Neste sentido, tomando como base a vida e a obra de Nietzsche e procurando

    manter um mnimo de coerncia com o filsofo, talvez, teramos que abandonar nossas

    pretenses conceituais e histricas, uma vez que para o pensador da filosofia a marteladas,

    passado e futuro so fortes sintomas de decadncia decorrentes do prprio modelo

    civilizatrio ocidental. Qualquer assunto que valha mais do que eu e tu nos pe no passado

    (ou no futuro, o que pior). por isso que Nietzsche repelia o passado e o futuro, tempos em

    que a vida, para ele, se perdia. (RODRIGUES, 2000, p. 293).

    Nietzsche contra Wagner (1888); Ecce Homo, Ditirambos Dionisacos, O Anticristo e Vontade de Potncia s aparecem depois de sua morte. Depois de 1888, Nietzsche passou a manifestar com maior intensidade os efeitos de sua enfermidade, revelando-se em cartas estranhas aos amigos. Segundo diagnsticos da poca tratava-se de uma doena orgnica do crebro com carter de paralisia, onde constatou-se a loucura. 1889 Em Turim, no auge da enfermidade, passa a assinar as suas cartas ora como Dioniso, ora como o crucificado. Internado numa clnica psiquitrica na Basilia, com o diagnstico de paralisia progressiva. 1890 Deixa a clnica ficando sob a tutela da famlia. 1900 Morre no dia 25 de agosto em Weimar, vitimado por uma pneumonia. A irm refere a hora do seu passamento, precedido de uma grande trovoada, o que a fez supor que ele partira deste mundo entre relmpagos e troves. 3 Os dados biogrficos que possumos deste pensador contemporneo so escassos e parciais at o presente momento. Porm, mesmo com esta deficincia possvel visualizar alguns traos marcantes de sua trajetria pessoal e intelectual. Zygmunt Bauman nasceu em Poznan na Polnia em 1925 de uma famlia hebria. 1939 Diante da invaso da polnia pelas tropas alems, foge para a Rssia onde se junta a um corpo de voluntrios poloneses na luta contra a ocupao nazista. 1954 Torna-se professor da Faculdade de Cincias Sociais da Universidade de Varsvia. 1968 Tem artigos e livros censurados e afastado da Universidade de Varsvia pelo regime comunista instalado no ps-guerra na Polnia. Diante desta situao emigra para o Canad, Estados Unidos e Austrlia reconstituindo sua carreira intelectual. 1971 tornou-se professor titular de sociologia na Universidade de Leeds na Gr-Bretanha permanecendo nesta atividade at recentemente. 2001 Torna-se professor emrito de Sociologia na Universidade de Leeds. Intelectual de uma simplicidade e elegncia prpria dos grandes pensadores, detentor de uma profusa e questionadora obra que se compe de artigos, entrevista e livros. No Brasil Bauman possui, at o momento, 8 (oito) obras publicadas: Modernidade e Holocausto (1989); tica ps-moderna (1997); O Mal-estar da ps-modernidade (1998); Modernidade e Ambivalncia (1999); Globalizao: as conseqncias humanas 1999); Em busca da poltica (2000); Modernidade Lquida (2001); Comunidade: a busca por segurana no mundo atual (2003).

  • 16

    Porm, ciente das perspectivas metodolgicas e cientficas da pesquisa acadmica e

    no sentido de possibilitar ao leitor a compreenso em torno destas categorias, faz-se

    imperativo que construamos uma definio do que entendemos por modelo civilizatrio

    ocidental e modelo civilizatrio ocidental moderno, que apesar de precria, contingente,

    possa colocar-se como possibilidade de orientao a quem necessitar.

    A partir de um recorte temporal, entendemos o Ocidente como algo que caracteriza

    os ltimos 2.500 anos e que partindo do desenvolvimento da racionalidade como meio de se

    chegar ao conhecimento da verdade, da virtude e do alcance da felicidade, nasceu na Grcia

    Clssica, tomando conta posteriormente do Imprio Romano na fuso das culturas, criando a

    cultura helnica. Sobreviveu alicerando o pensamento dos povos que viriam compor a

    Europa e, conseqentemente, expandindo-se com o impulso colonizador destes por volta do

    sculo XIV ao novo mundo, chegando desta forma ao sculo XXI. Portanto, o modelo

    civilizatrio ocidental caracteriza-se por um arcabouo racional, conceitual, cientfico, tico,

    moral, religioso que foi sendo construdo ao longo destes dois mil e quinhentos anos e que so

    a base da organizao do mundo natural e social em que vivemos. Ou seja, as formas e os

    contedos a partir dos quais nos relacionamos conosco enquanto indivduos, enquanto

    coletivos que formam uma estrutura gregria chamada de sociedade, em nossas relaes com

    algo transcendente (Deus), com a natureza, com o mundo.

    Entendemos por modelo civilizatrio ocidental moderno o adjetivo moderno

    refere-se a um enfoque especfico, a partir de um recorte histrico (prprio da lgica

    moderna) que divide o modelo civilizatrio ocidental linearmente entre Idade Antiga, Idade

    Mdia e Idade Moderna - o estgio que a sociedade ocidental vive nestes ltimos quinhentos

    anos, nomeado Idade Moderna, caracterizando-se pelo avano, domnio e pela supremacia de

    uma racionalidade cientfica e tecnolgica que alimentou o esforo utpico de construo de

    uma ordem social pautada em leis universais, princpios de regularidade advindos do mundo

    natural. Este perodo caracteriza-se tambm pelo esforo na construo de totalidades

    mantenedoras da ordem e doadoras de sentido existencial, amparando as contradies

    prprias da condio humana, suprimindo toda e qualquer manifestao ambivalente.

    Assim, lanar um olhar s bases do modelo civilizatrio ocidental a partir de

    Nietzsche e Bauman uma volta s razes, fazer uma viagem s origens, onde encontramos os

    alicerces, as bases do conhecimento, da moral, dos valores, da cultura, da religio... que

    configuram o mundo ocidental em que vivemos. uma situao que exige habilidade,

    equilbrio emocional e pessoal, pois podemos nos deparar com o sem sentido do modelo

    civilizatrio ocidental moderno, com o absurdo, com a falcia aceita pela grande maioria das

    pessoas e que perdura h mais de dois mil anos.

  • 17

    E a tarefa que Nietzsche reivindica para si mesmo, sua misso e destino, consiste em procurar por tudo o que estrangeiro e problemtico na existncia, por tudo aquilo que foi exilado pela moral. A sua tarefa, misso e destino Nietzsche chama de filosofia do meio-dia, filosofia experimental, filosofia dionisaca. Com a filosofia do meio-dia, ele aponta o fim do mais longo erro. Contrapondo-se a 2 mil anos de histria, no admite que exista outro mundo alm deste em que nos achamos; no tolera que haja outra vida alm desta tal como a vivemos. (MARTON, 2000, p. D 05).

    Diante de todos estes desafios, o dilogo possvel que pretendemos entre Friedrich

    Wilhelm Nietzsche e Zygmunt Bauman deve levar em conta algumas especificidades da vida

    e da obra de cada pensador, com nfase maior vida e obra de Nietzsche, na medida em

    que dispomos de uma quantidade maior de fontes e sistematizaes, o que ocorre em menor

    quantidade na vida e obra de Zygmunt Bauman. Porm, apesar destas dificuldades,

    entendemos como fundamental esta aproximao conceitual entre os autores, possibilitando-

    nos perceber as afinidades, as aproximaes, as divergncias nas anlises e os entendimentos

    do modelo civilizatrio ocidental e, conseqentemente, as diferenas entre as duas propostas

    diante das exigncias da condio humana na atualidade.

    Em Nietzsche vida e obra se confundem. A relao entre as duas instncias de uma

    intensidade abissal, a potencialidade de seu pensamento na leitura, interpretao e crtica do

    modelo civilizatrio ocidental, do qual filho, recebendo conceitos, verdades, conhecimentos,

    cultura, formas de ser e estar neste mundo e ao question-las, p-las prova

    contundentemente como o fez, exigiu-lhe um preo, pago com uma vida atribulada, de poucos

    amigos, no correspondida afetivamente, incompreendida entre o populacho, mal recebida e

    interpretada nos crculos de intelectuais e artistas da poca, at aos dias atuais. Mesmo em

    seus momentos finais e, de forma mais explcita aps sua morte (25 de agosto de 1900), seus

    escritos foram adulterados por sua irm, possibilitando outras interpretaes, o que lhe

    garantir, a partir da opinio de parte de seus leitores, detratores e intrpretes, os mais

    variados, a pecha de alicerce do pensamento anti-semita. Outros ainda o consideraram um

    reacionrio defensor dos valores burgueses. Houve ainda quem visse no seu pensamento

    possibilidades revolucionrias ou apocalpticas. Afinal, o homem civilizado, o grande

    rebanho, a humanidade ocidental no via com bons olhos a ovelha desgarrada, a ameaa

    constante de zombar, de ridicularizar, de gritar aos quatro ventos o sem sentido da existncia,

    do esforo ordeiro, racional, metafsico a erigir brilhantemente apologias s essncias

    fundantes de um mundo supra-sensvel, de uma natureza humana, da modernidade em seus

    esforos ordenadores e planejadores do caos da existncia. De tudo o que se escreve, aprecio

  • 18

    somente o que algum escreve com o seu prprio sangue. Escreve com sangue e aprenders

    que o sangue esprito. (NIETZSCHE, 1998/A, p. 56)4.

    A obra de Nietzsche sua prpria vida. a vontade de poder, enquanto manifestao

    da vontade de vida que transborda em cada pensamento, que transparece a cada linha, que

    extravasa em cada aforismo. Assim como a vida (por mais que a racionalidade moderna se

    esforce) que, talvez possamos pens-la e viv-la destituda, desprovida de toda e qualquer

    possibilidade de previsibilidade, de lgica, de determinismo, de verdade, de racionalidade

    ordenadora, sua obra aforismtica, assistemtica, contraditria, pulsante em relao vida.

    Nietzsche, de forma alguma tem a inteno de construir um "sistema de

    pensamento" coeso, lgico, formalmente prximo perfeio, com a pretenso de determinar

    a totalidade do real e a multiplicidade do mundo, da existncia, da vida. Os sistemas

    filosficos, segundo Nietzsche, contriburam significativamente para o aprisionamento do

    homem, sua domesticaco e negao da vontade de vida em nome de perspectivas

    transcendentes, de uma vida para alm desta e de ideais coletivizadores, de salvao pela

    sociedade atravs de suas utopias. "Desconfio de todos os sistemticos e me afasto de seus

    caminhos. A vontade de sistema uma falta de retido." (NIETZSCHE, 2000/C, p. 13).5

    [...] Nietzsche no tm o carter de obras em que as idias se encadeiam para formar um todo, obras que ofeream um pensamento que se desenvolve medida que progride. Constituem antes recolhas de aforismos. Nietzsche, que estava impedido de trabalhar escrivaninha por perodos prolongados devido a uma doena dos olhos, fez do aforismo uma obra de arte. Mas seria deciso precipitada querer explicar o estilo aforstico de Nietzsche unicamente pela circunstncia exterior da doena ocular e acreditar que ele apenas soube tirar partido da necessidade. O aforismo antes adequado ao estilo de pensamento de Nietzsche, pois permite a breve e ousada formulao que renuncia apresentao de razes. Nietzsche pensa como que por rasgos de pensamento mais do que segundo a forma laboriosa da exposio abstracta, constituda por longas cadeias de conceitos. O seu pensamento intuitivo, processa-se por imagens, e dotado de uma inaudita capacidade de criar smbolos. Os aforismos de Nietzsche, fortemente expressivos, assemelham-se a pedras polidas. E, no entanto, no se encontram isolados, pois constituem, na sua sucesso, na unidade de um livro, um todo singular. (FINK, [20-], p. 12).

    4 Em funo de serem citadas ao longo da pesquisa duas obras de Friedrich Wilhelm Nietzsche, editadas em 1998, passaremos a utilizar junto ao ano de edio uma nomenclatura a partir das letras A e B para diferenci-las. Portanto, a letra A refere-se a obra: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ningum. Traduo de Mario da Silva. 9 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. A letra B refere-se a obra: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polmica. Traduo e notas de Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. 5 Assim como na nota n 4, em funo de serem citadas ao longo da pesquisa trs obras de Friedrich Wilhelm Nietzsche, editadas em 2000, passaremos a utilizar junto ao ano de edio uma nomenclatura a partir das letras C,D e E para diferenci-las. Portanto, a letra C refere-se a obra: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepsculo dos dolos, ou , como filosofar com o martelo. Traduo Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2000, 119 p. (Conexes; 8). A letra D refere-se a obra: _________. Ecce Homo: como cheguei a ser o que sou.. Traduo de Pietro Nassetti. So Paulo: Ed. Martin Claret, 2000. A letra E refere-se a obra:_________. Humando demasiado humano: um livro para espritos livres. Traduo, notas e posfcio Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.

  • 19

    Em alguns de seus escritos, Nietzsche intitula-se um extemporneo, algum que

    efetivamente no pertence ao seu "tempo", inoportuno ao contexto em que vive. Est frente,

    enxerga aquilo que os outros no conseguem ver, mas que vivem no seu dia-a-dia. O

    extemporneo est mais no tempo do que qualquer outro na medida em que se coloca

    firmemente contra esse tempo e seu esprito de poca, buscando estar acima de seu tempo,

    refletindo as deficincias do tempo presente e, simultaneamente, neste exerccio existencial,

    vislumbrar um tempo por vir. So caractersticas que o diferenciam do sujeito contemporneo

    que vive imerso, entranhado em seu tempo e espao cotidianos, impossibilitado de ver para

    alm da linha do horizonte.

    Mas no encontrei a minha ptria em parte alguma; errante sou eu em todas as cidades e um decampar de diante de todas as portas de cidades. Estrangeiros, so para mim, e motivo de escrnio, os homens do presente, para junto dos quais meu corao, de pouco tempo, me arrastou; e sou expulso de todas as terras ptrias e mtrias. (NIETZSCHE, 1998/A, p.133.).

    nesta perspectiva que o Nietzsche extemporneo tambm um excntrico, na

    medida em que procura afastar-se, tomar distncia do centro, do clamor das plebe vil e

    rumorejante, dos aplausos da platia, dos rudos da multido na praa pblica, do pensar,

    fazer e reproduzir o cotidiano dos valores culturais presentes na cosmoviso do grande

    rebanho que a sociedade. Este carter de excentricidade buscado por Nietzsche lhe

    possibilita outros ngulos de anlise e vivncia: a possibilidade de alterar o ponto de vista,

    estar sempre a caminho, evitando cristalizar convices e cosmovises.

    Ora, extemporneo o que vem ou est fora do tempo prprio; o que no prprio do tempo em que se encontra. Excntrico o que se desvia ou afasta do centro; o que no tem o mesmo centro do que o rodeia. Assim definidos, estes termos parecem designar algo ou algum que constitui exceo. Mas extemporneo no eqivale a anacrnico ou proftico; remete a uma certa maneira de relacionar-se com o agora. Excntrico no o mesmo que desencaminhado ou extraviado; aponta para uma certa forma de relacionar-se com o aqui. [...] intimamente ligado ao mundo em que vive, est, pois, em condies de lhe dirigir uma crtica radical. Numa palavra, um homem no seu tempo, portanto contra ele.(MARTON, 2000, p. 34).

    Esta extemporaneidade lhe traz problemas, incompreenses de toda ordem e, entre

    elas, o silncio em torno de seus escritos. Nietzsche vivencia as dificuldades em encontrar

    interlocutores, algum que queira travar com ele um combate altura de sua reflexo crtica.

    Os crculos da intelectualidade alem de sua poca se fecham diante de sua obra. Sua vida e

    obra so atacadas com o descaso, o desinteresse e a incompreenso. neste sentido que

    levado a pensar e afirmar a existncia da desproporo entre sua obra e seus contemporneos.

    Neste sentido teria nascido extratemporal.

  • 20

    Na previso de que dentro de pouco tempo me vejo obrigado a impor humanidade a mais dura exigncia que at agora se lhe imps, creio indispensvel dizer-lhe antes QUEM SOU EU. Na realidade pouca falta faria esta explicao, porque tenho dado testemunhos de sobejo acerca de minha personalidade. Entretanto, a desproporo entre a grandeza de minha alma e a PEQUENEZ dos meus contemporneos se evidenciou no fato de que no fui ouvido, nem sequer compreendido. (NIETZSCHE, 2000/D, p. 31).

    Ao lanarmos o olhar sobre a vida de Nietzsche constatamos que este pensador

    vivenciou como poucos a experincia da solido. A incompreenso de seus escritos pelos seus

    contemporneos, os pouqussimos amigos, a sade precria que lhe exigiu a suportabilidade

    da dor e o fez pedir demisso da Universidade da Basilia na Sua em 1879, lanando-se

    numa vida errante, percorrendo em intervalos de tempos a Sua, a Itlia, a Frana e a

    Alemanha, na busca das melhores condies climticas para o tratamento de seus males. Vida

    errante que o acompanhou at a perda da razo. Amores no correspondidos, pedidos de

    casamento recusados. A incompreenso de sua obra por seus contemporneos se expressava

    no desinteresse dos editores da poca na publicao de suas ltimas obras, obrigando-o a

    custe-las do prprio bolso. a partir desta experincia da solido que Nietzsche retira foras

    para continuar vivendo, reconhecendo o valor de suas obras, de sua trajetria existencial.

    Nesse dia perfeito em que tudo se sazona, no somente a uva que se doura... um raio de sol caiu em minha vida: olhei dentro de mim, olhei para fora- nunca vi tantas e to belas coisas de uma s vez. No foi em vo que sepultei hoje o meu quadragsimo quarto ano; eu podia MUITO BEM sepult-lo; o que havia nele de Vida se conserva, imortal... (NIETZSCHE, 2000/D, p. 35). A partir destas perspectivas possvel constatar que a solido e o silncio ocupam

    lugar privilegiado na vida e na obra de Nietzsche. Torna-se condio de preservao de si

    mesmo, de sua originalidade em pensar, interpretar e anunciar as mais recnditas construes

    metafsicas, onto-teolgicas, verdades e essncias, integrantes da viso de mundo do homem

    civilizado, do animal de rebanho. O exerccio da filosofia a golpes de martelo sobre tudo

    aquilo que se apresentou e se apresenta com estranho, como violentao da condio humana,

    solicita o silncio como perspectiva preventiva, permitindo-lhe o afastamento do desenrolar

    dos acontecimentos quotidianos, conferindo-lhe uma situao privilegiada ao lanar seu olhar

    investigativo, questionador sobre seus contemporneos.

    [...]. Determinante em suas vivncias, a solido proporciona a Nietzsche o alento necessrio para refazer-se das prprias incurses em seu tempo. Ele entra em contato com toda e qualquer sorte de mentiras, embuste ou ideal, sem se envenenar, lida com todo e qualquer tipo de dcadents, sem se corromper. Sadio no fundamento, no se deixa abater. [...]. Condio para o seu pensar, a solido torna possvel a Nietzsche distinguir-se dos homens do presente, diferenciando-se da maneira que tm de avaliar. Assim que ele se prope a criticar a metafsica, a combater a religio crist, a atacar a moral do ressentimento. Espera subverter termos comumente empregados; conta desestabilizar modos habituais de

  • 21

    raciocinar, pretende pr em cheque de forma contundente valores estabelecidos. (MARTON, 2001, p. 166). Neste sentido ao lanarmos um olhar trajetria em que se inscreve a vida e a obra

    de Nietzsche, possvel dar-se conta da necessidade da solido, do silncio, como condio

    de aguar os sentidos, ampliar, aprofundar e restaurar a viso que tinha de si mesmo, sobre as

    bases conceituais, fisiolgicas e cosmolgicas na qual estava inscrita sua existncia. Porm,

    Nietzsche desafiava e continua a desafiar a todas aqueles que entram em contato com sua obra

    existencial, a fazer esta incmoda experincia de olhar para si prprio, de silenciar, apenas

    ouvindo as diversas tonalidades sonoras que a vida imprime em sua dinmica existencial, de

    perceber as prprias enfermidades manifestas em crenas utpicas, em verdades

    transcendentes, no alm-mundo, no sentido ideal da existncia, o que permite desencadear

    formas de valorizar, julgar, reprimir a vida. Neste sentido, a experincia da solido e do

    silncio em Nietzsche assume a perspectiva da criao, da coragem necessria ao homem

    reinventar-se a cada momento no dinmico jogo existencial, o extravasar da abundncia de

    vida, pois na solido que cada um tem que tornar-se o que , a exemplo do andarilho e sua

    sombra.

    Mas eu tenho necessidade de solido, isto , de curar-me, de tornar a ser o que fui, de respirar uma atmosfera livre, leve, forte... Todo o meu Zaratustra no mais do que um ditirambo solido ou, se fui bem compreendido, pureza... Felizmente, no pura insensatez... Quem tem olhos para ver as cores dir isso de diamante. O nojo aos homens, laia, foi sempre o meu maior perigo... Quereis ouvir as palavras com as quais Zaratustra fala da sua libertao do asco: Que teria acontecido? Como me curei da averso? Quem rejuvenesceu meus olhos? Como remontei s alturas onde j no h canalha sentada beira das fontes? A minha prpria averso me deu asas e foras anunciadoras dos mananciais? Na verdade tive que voar aos pncaros para tornar a encontrar a fonte da alegria. Oh! Encontrei-a, meus amigos! Aqui, no mais alto, brota para mim a fonte da alegrai! E h uma vida em que se pode haurir a sede sem a canalha![...] Ns, os solitrios, tecemos o ninho rvore do futuro; as guias nos traro no bico o sustento necessrio. Por certo, no ser um sustento de que possam compartilhar os impuros! Porque os impuros julgariam que devoram fogo e que as faces se lhes abrasavam. No preparamos aqui, em verdade, manses para os impuros! A vossa ventura pareceria glacial aos seus corpos e aos seus espritos! E ns queremos viver acima deles, como ventos fortes, vizinhos das guias, rentes ao sol: assim vivem os ventos impetuosos. E, semelhana do vento, quero soprar entre eles um dia e cortar a respirao ao seu esprito; assim exige o meu futuro. Zaratustra, em verdade, um vento forte para todas as terras baixas, e d estes conselhos ao seus inimigos e a quantos escarram e expectoram: Livrai-vos de cuspir para cima!. (NIETZSCHE, 2000/D, p. 48). Talvez esta seja, salvaguardadas as diferenas, a saga que viveram e vivem muitos

    dos grandes combatentes do pensamento ocidental: ser reconhecido e valorizado apenas

    postumamente. nesta perspectiva pstuma que Nietzsche reconhecido em sua

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    extemporaneidade em nossos dias, levando em considerao o que paira sobre este pensador

    na atualidade: todo tipo de interpretaes pejorativas, ranos acadmicos dos arautos doutores

    fronteirios da verdade, dos guardies da veracidade cientifica. Interpretaes carregadas de

    ambigidades, presentes em nmero cada vez maior de entusiasmados adolescentes e jovens

    que o lem incentivados pelo folclore, pelo impacto de seus aforismos contra o

    cristianismo, contra a religio. Interpretado como ateu por alguns, anarquista,

    revolucionrio, aristocrtico e conservador por outros, ou at mesmo, como uma filosofia

    muito doida. Mas, por outro lado, h tambm os leitores jovens que sentem em Nietzsche

    possibilidades de entendimento da vida, de sua dinmica, de seu vir-a-ser. Sua vida e obra

    desestabilizam muitos ascetas da verdade do conhecimento. Diante da intensidade de sua obra

    possvel afirmar que se torna precria qualquer anlise do modelo civilizatrio ocidental.

    Nietzsche um pensador astuto e sagaz na leitura e na crtica do niilismo, na medida em que,

    para faz-la, lana-se nas profundezas abissais do modelo civilizatrio. No est interessado

    na compreenso superficial da civilizao, expressa em suas estruturas econmicas, polticas,

    sociais, culturais, em suas instituies, mas na arquitetura conceitual, racional, metafsica,

    religiosa que conformam e do sentido aos questionamentos ontolgicos ocidentais. Os

    homens pstumos eu, por exemplo so pior compreendidos do que os homens ligados ao

    seu prprio tempo, mas melhor ouvidos. Mais exatamente: nunca somos compreendidos e

    da que provm nossa autoridade... (NIETZSCHE, 2000/C, p. 11).

    Nietzsche caracteriza-se como o pensador que viveu, sentiu e anunciou a

    multiplicidade de possibilidades de manifestaes da vida, e nesta perspectiva podemos

    consider-lo em sua atualidade, na medida em que nos apresenta o homem civilizado e a

    negao de sua vontade de potncia, de vida, que percebeu a vida sendo privada, tolhida do

    pulsar dos instintos, das necessidades da sobrevivncia, da vontade de poder, em funo da

    constituio de uma cultura que atua como camisa de fora sobre o homem, aprisionando e

    negando a manifestao da vontade de vida em toda sua potencialidade e exuberncia. Nesta

    perspectiva civilizacional o homem levado a estabelecer um contrato social6 que limita as 6 [...], os homens no tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrrio, um enorme desprazer), quando no existe um poder capaz de manter a todos em respeito. [...] De modo que na natureza humana encontramos trs causas principais de discrdia. Primeiro, a competio; segundo, a desconfiana; e o terceiro, a glria. A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a Segunda, a segurana; e a terceira a reputao. [...], durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condio a que se chama guerra; e uma guerra que de todos os homens contra todos os homens. [...] todo homem inimigo de todo homem [...]. E dado que a condio do homem [...] uma condio de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua prpria razo, e no havendo nada, de que possa lanar mo, que no possa servir-lhe de ajuda para a preservao de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que, numa tal condio, todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, no poder haver para nenhum homem [...] a segurana de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. Conseqentemente um preceito ou regra geral da razo: Que

  • 23

    possibilidades de vida. O contrato social, criao do homem, necessria vida em

    sociedade. Mas, esquecido por ele (homem) como criao sua, assumindo valor

    transcendente, para alm de suas foras instintivas, transformando-o num animal

    domesticado, doente, repleto de verdades e convices que sustentam e fornecem o sentido de

    sua existncia.

    A leitura crtica do modelo civilizatrio ocidental, suas mazelas, determinismos e

    verdades essenciais so uma das possibilidades de deparar-se com a contribuio de Nietzsche

    para nossos dias. Esta contribuio se amplia, ganha novos contornos, na medida em que

    Nietzsche nos coloca diante das fragilidades, contingncias e parcialidades de um mundo

    humano demasiado humano, o que de certa forma nos angustia, mas ao mesmo tempo

    incita a pensar, olhar e, talvez, muito mais, sentir a existncia por prpria conta e risco.

    Percorres o teu caminho da grandeza: tornou-se o teu derradeiro refgio, agora, aquilo que, at aqui, era o teu derradeiro perigo ! Percorres o teu caminho da grandeza; que seja, agora, a tua melhor coragem no teres mais nenhum caminho atrs de ti!. (NIETZSCHE, 1998/A, p. 161).

    Quanto a Zygmunt Bauman as parcas informaes biogrficas de que dispomos nos

    colocam diante de um pensador cuja trajetria se constri a partir das situaes existenciais

    vivenciadas no sculo XX. Sua anlise est pautada em consideraes sobre a trajetria do

    modelo civilizatrio ocidental moderno, o esforo de pensadores, legisladores,

    administradores... os quais dedicaram suas vidas na construo de uma lgica ordenadora do

    mundo, da existncia. Fazendo uma leitura impactante, contundente do desenrolar da

    tragdia da existncia humana, Bauman questiona o modelo civilizatrio ocidental moderno,

    suas ambies, suas conquistas, seus equvocos e o preo a ser pago pelo homem moderno.

    Bauman um estudioso da sociedade, mas no frio, nem amorfo, desligado ou estril. Os

    sofrimentos das pessoas humanas, suas humilhaes compem o ncleo central de sua

    reflexo e de sua participao. (ZOLI, 2003, p. 1).7

    todo homem deve esforar-se pela paz, na medida em que tenha esperana de consegui-la e, caso no a consiga, pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. [...]. Desta lei fundamental de natureza mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde quando outros tambm o faam, e na medida em que tal considere necessrio para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas , contentando-se, em relao aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relao a si mesmo. [...].Renunciar ao direito a alguma coisa o mesmo que privar-se da liberdade de negar ao outro o benefcio de seu prprio direito mesma coisa. [...]. A transferncia mtua de direitos aquilo que se chama contrato. HOBBES, Thomas. Leviat ou Matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. Traduo de Joo Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2 edio. So Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores), p. 75, 78,79,80). 7 Bauman uno studioso della societ, ma non freddo, distante, asettico. Le sofferenze degli uomini, le loro umiliazioni sono al centro della sua riflessione e de sua partecipazione. ZOLI, Serena. Bauman: devo tutto a Gramnsci e Calvino. Disponvel em: http://www.swif.uniba.it/lei/rassegana/021013.htm. Acesso em: 04.04.2003.

  • 24

    Zygmunt Baumam, pensador de origem polonesa, viu seu pas ser invadido por

    tropas alems no incio da segunda guerra mundial, levando-o ao longo do conflito a

    incorporar grupos de compatriotas que desenvolviam uma luta de resistncias s tropas

    alems que haviam ocupado a Polnia. Aps o trmino do conflito que marcou

    significativamente a civilizao ocidental moderna, iniciou seus estudos e sua carreira na

    Universidade de Varsvia, onde ocupou a ctedra de sociologia geral. Em 1968 teve artigos e

    livros censurados sendo afastado da universidade,por conta do regime comunista de

    alinhamento sovitico que havia se instalado naquele pas ao final da guerra. Assim como

    Nietzsche, Bauman viveu a saga dos pensadores sem ptria, emigrando da Polnia para

    Canad, Estados Unidos e Austrlia, reconstruindo neste percurso sua carreira. Em 1971

    tornou-se professor titular de sociologia na Universidade de Leeds na Gr-Bretanha,

    permanecendo nesta atividade por vinte anos.

    Zygmunt Bauman caracteriza-se por ser um pensador articulado, portador de

    habilidade e sensibilidade como poucos intelectuais contemporneos na leitura e interpretao

    das perspectivas civilizatrias que se constituram ao longo da modernidade, bem como seus

    impactos e suas conseqncias na contemporneidade. Entre outros fatores prprios da

    condio humana de Bauman, talvez tais caractersticas tenham sido resultado da contribuio

    e influncia que alguns pensadores exerceram na constituio de seu pensamento, entre eles:

    Albert Camus, Gramsci, Italo Calvino e Borges.

    [...]. Zygmunt Bauman elenca um panteo de mestres todo particular. Camus, Gramsci, Calvino, Borges. [...]. Albert Camus? Ensinou-me a rebeldia. a sensibilidade para com a justia que o prevenir que as pessoas sofram. Veja esta afirmao de Camus: Existe a beleza e existem os humilhados. Qualquer dificuldade que apresente o empreendimento (a tarefa): eu jamia quereria ser infiel aos humilhados e nem beleza. [...]. Antonio Gramsci ? Sou-lhe muito agradecido. Proporcionou-me a possibilidade de me afastar honrosamente da ortodoxia marxista. Sem pejo por ter participado dela e sem o dio de tanto ex. De que maneira foi um iluminador? Ele recusa o determinismo pelo qual, no marxismo oficial, os homens so apenas bolinhas de bilhar, pies da histria. Mostra uma viso flexvel sobre as pessoas: ns somos criados pela histria e, ao mesmo tempo, artfices da histria. Aqui se pode encontrar tambm Borges: A histria um livro que estamos escrevendo e, ao mesmo tempo. somos escritos. talo Calvino? [...]. o maior filsofo entre os narradores e o maior narrador entre os filsofos. O seu (livro) Le Citt invisibili (As Cidades Invisveis) o melhor texto de sociologia at ento escrito. Aprendi mais com este livrinho do que com inmeros volumes. Cada citt (cidade) revela um argumento sociolgico e em duas pequenas pginas faz a anlise mais aguda possvel. Por exemplo, em Lenia, fortuna e felicidade so medidas na base da quantidade dos rejeitos que se jogam fora sem d nem choro. o prottipo de hoje em dia: uma vida feliz se for a perpetuidade de novos comeos. A durao sempre tem sido um valor desde que o mundo mundo, enquanto que, hoje em dia, pela primeira vez, constituem-se em valores a transitoriedade, o descartvel rpido, o no conservar porque o

  • 25

    que se mantm pode roubar o lugar de coisas sempre novas e melhores. (ZOLI, 2003, p.1)8 Bauman, revela-se na extenso e na profundidade de sua obra uma das vozes

    destoantes neste mar de certezas globais e de crenas inabalveis nas possibilidades da

    racionalidade moderna de nos conduzir a um mundo de paz, harmonia e perfeio. Talvez,

    algum que ainda mantm a ousadia de pensar por prpria conta e risco a existncia, diante

    das verdades e certezas de um mundo organizado e delimitado pelas fronteiras reduzidas dos

    especialistas modernos. Algum que percebeu o desconforto e a fragmentao da filosofia

    diante de sua exausto, ao dar-se conta de que seus melhores esforos de construo de

    sistemas explicativos da vida e do cosmos, pouco contriburam na superao das contradies

    presentes em suas origens e que acompanham a civilizao, que perseguem o homem em sua

    longa aventura na terra. De perceber que talvez a filosofia no tenha mais nada de novo ou

    diferente que possa ser afirmado, sustentado e categorizado filosoficamente em sua

    totalidade.

    Um pensador que longe de ser apocalptico, faz sua aposta na vida, na

    possibilidade de o homem civilizado assumi-la em sua dinmica ambivalente, de aprender a

    conviver com suas inconsistncias, com suas contingncias, com o risco das opes a serem

    feitas quotidianamente. Isto confere vida a possibilidade da constante renovao. Nesta

    perspectiva, Zygmunt Bauman, percebeu o vazio das pretenses da universidade moderna, o

    azio de suas cincias, o excesso de cientificidade ordenadora aplicada existncia, ao mundo.

    [...]. Os especialistas so tudo, menos pessoas desenraizadas. [...]. Suas tarefas so especficas, decorrentes de problemas especficos. Colocados numa seo bem definida e institucionalizada de uma diviso geral do trabalho, eles no tm tempo para a antiga querela entre nativistas e universalistas e nenhuma utilidade para a luta entre as verdades eternas e ceticismo moderno. Sua prxis como especialistas no gera nem nsia de certeza nem inclinaes relativistas. Quando nada, invalida as duas coisas e, acima de tudo, o conflito entre elas e a necessidade de escolha. Ao contrrio dos imensos jardins do tamanho de sociedades vistos com cobia pelos intelectuais flutuantes, cada um dos pequenos lotes

    8 [...] Zygmunt Bauman elenca un suo particolare pantheon di maestri. Camus, Gramsci, Calvino, Borges. [...]. Albert Camus? Mi h insegnato la ribellione. E la sensibilit alla giustizia, che il prevenire che la gente soffra. Senta questa frase di Camus: C la bellezza e ci sono gli umiliati. Qualunque difficolt presenti limpresa, non vorrei mai essere infedeli n ai secondi n alla prima. [...] Antonio Gramsci? Gli sono molto grato. Mi h permesso di congedarmi onorevolmente dallortodossia marxista. Senza vergogna per averla condivisa e senza lodio di tanti ex. In che modo Gramsci stato illuminante? Rifiuta il determinismo per cui, nel marxismo ufficiali, gli uomini sono solo biglie, pedine della storia. Porta una visione flessibile degli uomini: noi siamo creati dalla storia e, insieme, artefici della storia. Qui si pu incontrare anche Borges: la storia un libro che stiamo scrivendo e al tempo stesso veniamo scritti. Italo Calvino? [...] E il pi grande filosofo trai i narratori e il maggior narratore tra i filosofi. Il suo Le citt invisibili il miglior texto di sociologia mai scritto. Ho imparato pi da questo libriccino che da tanti volumoni. Ogni citta riguarda um argomento sociologico e in due paginette c lanalisi pi acuta possibile. Per esempio, a Leonia fortuna e felicit sono misurate in base alla quantit di rifiuti che si gettano via sensa rimpianto. E il modello di oggi: una vita felice se una perpetuit di nuovi inizi. La durata sempre stata un valore da che mondo mondo, mentre oggi per la prima volta sono valori la transitoriet, lo scarlo veloce, il nono conservare perch quel che si conserva pu rubare il posto a cose sempre nuove e migliore. Idem.

  • 26

    cultivados pelos especialistas deve acomodar uma autoridade planificadora bem considervel (e absoluta) sem fazer de suas prprias fronteiras confinantes um problema.(BAUMAN, 1999, p.105).

    Portanto, o dilogo possvel entre estes dois pensadores aparentemente distantes no

    tempo e no espao, mas de uma proximidade existencial mpar, se estabelece na profundidade

    com que captam o esprito do modelo civilizatrio ocidental moderno em sua lgica

    primordial de purificao e higienizao da vida, de sua ensandecida necessidade de

    construo de verdades, de certezas, de uma ordem para o caos da existncia. Na busca de

    uma teleologia sem a qual a proposta da civilizao no conseguiria conter a multiplicidade e

    a diversidade de foras presentes no mundo e que conferem um colorido especial vida.

    O dilogo entre Nietzsche e Bauman aprofunda-se na medida em que ambos

    denunciam o cansao, a exausto, o descrdito do homem civilizado moderno diante das

    promessas de eternidade, de uma vida harmoniosa e feliz no concretizada. A partir do

    momento em que se construram utopias revolucionrias, positivistas, liberais, marxistas,

    anarquistas, neoliberais, elas foram apresentadas como panacia diante das angstias e

    pretenses segurana humana, mas, no decurso da modernidade mostraram-se inviveis,

    frgeis, fragmentadas, contingentes. Ou seja, na percepo de que o preo exigido ao homem

    pela proposta civilizatria ocidental tem custos impagveis humanamente, exigindo-lhe o

    abandono da sua vontade de vida, de sua vontade de poder. Na percepo de que quanto

    maior a necessidade de segurana, de certezas e verdades, menor a possibilidade de

    liberdade de agir e pensar, de tolerncia com tudo aquilo que no se enquadrar nos princpios

    prescritos pela civilizao.

    O que Friedrich W. Nietzsche e Zygmunt Bauman nos proporcionam em seu dilogo

    quase que extemporneo, uma vez que as verdades transcendentes dos especialistas e do

    mercado assumiram a hegemonia de crebros e coraes , entre outras coisas, a possibilidade

    de nos estranharmos, de percebermos nosso enraizamento em crenas na possibilidade da

    verdade, mas ao mesmo tempo de perceber que verdade e mentira participam de um mesmo

    jogo, de que uma mentira poder se transformar numa verdade na medida em que passa a ser

    aceita como explicao verdadeira pelas pessoas diante de determinadas situaes. Na

    percepo de que verdade e mentira habitam um mesmo teto e que suas construes

    dependem dos interesses e da habilidade em justific-las que se confrontam em jogo. Ou

    seja, o mundo no to verdadeiro quanto veracidade que a civilizao quer imprimir-lhe,

    que, talvez, a contingncia, a precariedade e a ambivalncia esto muito mais presentes em

    nossas articulaes e construes do que queremos de fato admitir.

    Portanto, para Nietzsche, assim como para Bauman, a percepo deste carter

    fragmentrio, contingente, passageiro, ambivalente da existncia e do saber humano, talvez

  • 27

    seja nossa nica chance diante do limite, da exausto existencial em que vivemos. No se

    trata simplesmente de acusar a proposta civilizatria ocidental moderna como fonte de todos

    os males, muito menos de participar de sua lgica em busca de superao de contradies

    rumo s verdades essenciais que so vendidas como possibilidade de alcance da felicidade.

    Mas de assumir a prpria existncia em sua concretude finita, passageira, contraditria

    exercendo, apesar de tudo isto, a vontade de vida em seu carter ldico.

    A vida como um jogo, imprevisvel em seu resultado, talvez aquilo que menos

    interesse, a no ser pela possibilidade nica de estar jogando, e jogar da melhor forma

    possvel com as cartas que se tm em mos, de que viver a experincia de jogo onde no h

    regras previamente definidas, eternas, imutveis, determinando verdades e certezas aos

    jogadores sobre o que deve ser feito, mas regras que se constroem no decorrer do prprio

    jogo, podendo mudar a qualquer momento. Jogo existencial que, juntamente com o privilgio

    de estar jogando, torna-se imprescindvel a tolerncia, preservando a permanncia dos outros

    jogadores, uma vez que na multiplicidade de foras em ao que se do o colorido e o sabor

    da existncia.

    importante reafirmarmos o que, de certa forma est implicitamente presente ao

    longo do texto, que o dilogo possvel entre Nietzsche e Bauman que nos propomos nesta

    pesquisa, no tem a pretenso de enfocar o pensamento de Zygmunt Bauman como um

    atualizador das teses de Friedrich W. Nietzsche no contexto existencial atual do modelo

    civilizatrio ocidental moderno.

    Para alm dos distanciamentos impostos pelo tempo, Nietzsche (sculo XIX) e

    Bauman (sculo XX), existem diferenas nas propostas filosficas destes dois pensadores em

    relao vida no contexto civilizatrio ocidental moderno. A preservao destas diferenas na

    interpretao da existncia, do mundo e, conseqentemente, no posicionamento de cada

    pensador como proposta condio humana, que confere a este debate a riqueza de

    possibilidades filosficas, existenciais e cosmolgicas existncia humana.

    Diante das amarras impostas pelo modelo civilizatrio ocidental manifestao da

    vontade de potncia como fora dinamizadora da vida, Nietzsche prope a transvalorao de

    todos os valores, a superao do homem pelo alm-do-homem, ou seja, assumir a vida numa

    perspectiva niilista ativa, que implica o homem livrar-se da moral de rebanho, do peso das

    instituies, da sociedade, do esforo reflexivo como exerccio de punio da intuio, do

    corpo como grande razo, dos instintos, em nome da busca do conhecimento, da verdade e da

    virtude. Ou seja, a capacidade de o homem reconhecer a Morte de Deus, de suas verdades,

    certezas, transcendncias, do alm-mundo, assumindo a vida em seus valores fisiolgicos e

    cosmolgicos, participando de sua dinmica trgica, de sua alegria dionisaca. Portanto, o

  • 28

    homem tenha a coragem de assumir a vida em seu devir, participante da vontade de potncia

    presente no jogo de foras do prprio mundo.

    Bauman denuncia no modelo civilizatrio ocidental moderno os esforos, os custos

    exigidos pela civilizao em sua necessidade de erigir uma ordem no caos da existncia e da

    vida. Na medida em que denuncia esta construo da ordem como aprisionamento do homem

    a uma lgica ordenadora, anuncia a ambivalncia que a acompanha. Ou seja, quanto maior o

    esforo de ordenao da existncia e do mundo, tornam-se tambm maiores as contradies, o

    entulho e o refugo daquilo que estava sendo ordenado. diante da constatao deste

    princpio de coexistncia entre ordem e caos, limpeza e sujeira, guerra e paz, que o homem

    civilizado comea a se dar conta dos altos custos exigidos em vidas humanas pela proposta

    civilizatria moderna, do sem sentido de seus esforos ordenadores. a constatao da

    ambivalncia como experincia vivenciada individualmente, ou seja, se as totalidades

    ordenadoras do caos da existncia no respondem mais s angstias e incertezas do homem

    civilizado, cabe a ele assumir a prpria existncia, ciente dos riscos, das incertezas e das

    inmeras possibilidades que se apresentam a ele.

    Porm, se para Nietzsche o niilismo ativo a opo individual do homem que se

    supera, que se livra das imposies metafsicas, teleolgicas e escatolgicas, para Bauman a

    experincia da ambivalncia se d num primeiro momento de forma individual, tendo a

    possibilidade de resultar, a partir desta perspectiva, num eu moral consciente de sua

    participao na dinmica social ambivalente em que est inserida a condio humana, ou seja,

    de participar de uma sociedade onde a tolerncia s diferenas, s diversidades existenciais, se

    tornam pressuposto bsico de manifestao da vida em sua multiplicidade de manifestaes.

    Talvez estas sejam algumas das possibilidades que Nietzsche e Bauman podem nos

    proporcionar em seu dilogo possvel em torno do modelo civilizatrio ocidental moderno.

    CAPTULO II O NIILISMO9 EM NIETZSCHE10

    9 (Do latim nihil, nada) Doutrina segundo a qual o absoluto no existe, como j afirmam na Antigidade o sofista Grgias e, de uma maneira geral, os cticos gregos. No sculo XIX, o niilismo constitui a princpio uma corrente de pensamento professada principalmente por intelectuais russos por volta de 1860-1870 (Dobrolioubov, Tchernychewski, Pisarev) caracterizada pelo pessimismo metafsico no prolongamento do positivismo de Comte, e, pelo ceticismo com relao aos valores tradicionais (morais, teolgicos, estticos), o todo acompanhado pelo projeto de se construir a sociedade sobre bases cientficas. Prximo da frmula de Dostoievski: Se Deus no existe, tudo permitido e tirando conseqncias disso, o niilismo confunde-se mais tarde com o individualismo anarquista que visa destruio do Estado. DUROZOI, Grard, ROUSSEL Andr. Dicionrio de Filosofia. 2 ed. Traduo Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1996, p. 343.

  • 29

    A partir dos pressupostos delineados no captulo anterior, importante termos

    presente que as reflexes aqui desenvolvidas sobre o niilismo em Nietzsche no tm a mnima

    pretenso de abarcar exausto as inmeras perspectivas que esta temtica assume ao longo

    da obra e da vida do filsofo. A potencialidade, a perspiccia e a perspectiva de seu

    pensamento inviabilizam a pretenso de se chegar ao conhecimento da totalidade, a um fim

    determinado, como se bastasse apreender um conjunto lgico, coerente e sistemtico de

    idias que dariam conta e explicariam a realidade. Mas, mesmo diante destas dificuldades,

    penso que possvel nos depararmos, a partir de Nietzsche, com alguns aspectos

    significativos do niilismo que se abateu sobre o homem ocidental a partir de suas construes

    metafsicas, essencialistas e transcendentais.

    Outro aspecto de crucial importncia constatar que o niilismo pensado, denunciado

    e anunciado por Nietzsche no se coloca apenas como uma crtica de impacto decadncia do

    modelo civilizatrio ocidental, pois se Nietzsche assim o tivesse realizado, estaria fazendo

    parte da lgica moderna que tanto combateu, que se coloca no sentido de buscar sua

    superao, buscar alternativas diante de suas limitaes. Portanto, a crtica apenas como

    denncia do fracasso do modelo civilizatrio ocidental seria sua possibilidade de auto-

    superao e continuidade.

    Ento, a partir destes pressupostos que o niilismo em Nietzsche assume contornos

    de denncia do vazio de sentido comeando pelo desmascaramento de Deus, de suas verdades

    e essncias, como demiurgo ordenador do universo, do mundo e da vida. O homem encontra-

    se aflito, perturbado, pois no sabe a quem apelar, onde encontrar um princpio unitrio

    organizador que lhe aponte o caminho, amenize suas angstias existenciais. Sente-se lanado

    num mundo incompreensvel e estranho, em constante combate de foras vitais que requerem

    a participao da condio humana no presente existencial.

    Nietzsche distingue trs formas psicolgicas. Em primeiro lugar, o desespero, resultante de um esforo vo para descobrir um sentido, um sentido final na Histria. Em segundo lugar, a perturbao por no se chegar a descobrir uma forma de dominao, uma unidade organizadora do todo, por no se chegar a penetrar na construo do mundo e a encontrar ai indicada a situao do homem no cosmos. O niilismo tambm o sentimento de se sentir lanado num mundo labirntico e incompreensvel, sem se saber donde se vem e para onde se vai, a sensao paralisante de completa estranheza, o sentimento opressivo de perplexidade no meio de uma situao impenetrvel em que nos assemelhamos a dipo, que assassinou o pai e partilhou o leito da me. (FINK, [20-?], 165).

    10 Na abordagem que realizamos sobre o niilismo em Nietzsche, categorizamos o niilismo em trs estgios: passivo, reativo e ativo. Apesar de Nietzsche no utilizar diretamente estas categorias e estgios, entendemos que se tornam necessrias na articulao das idias desenvolvidas ao longo do texto, e principalmente na segunda parte do trabalho quando se estabelece o dilogo com Zygmunt Bauman a partir do conceito de ambivalncia como elemento constitutivo da modernidade.

  • 30

    Porm, o niilismo denunciado e anunciado por Nietzsche apresenta-se tambm como

    nica sada do homem civilizado, onde a vontade de vida apresenta-se em sua multiplicidade

    de situaes e opes, manifestando-se e assumindo-se a si mesma como participante ativa

    do jogo das foras fisiolgicas e cosmolgicas, ou seja, para alm de suportes existenciais

    ordenadores e doadores de sentido existncia. o homem que se coloca na perspectiva de

    assumir a vida em seu conjunto de possibilidade e riscos.

    [...], profundamente afins, Nietzsche e Heidegger procuram construir perante a herana do pensamento europeu, que eles colocam radicalmente em discusso recusando-se no entanto a propor sua superao crtica, pela boa razo de que isso significaria permanecer prisioneiro da lgica de desenvolvimento desse mesmo pensamento.(VATTIMO, 1987, p. 08).

    Captar o que significa o niilismo exige que o pensemos em ato11, como manifestao

    do desenrolar dirio da existncia, do presente existencial humano. Neste sentido, seria um

    equvoco procurar, segundo o pensamento de Nietzsche, fazer uma reconstruo da trajetria

    do niilismo, como se tivesse efeito cumulativo a partir do qual seria possvel reconstruir uma

    caracterizao histrica e filosfica do mesmo. [...]. O niilismo existe em acto, no se pode

    fazer dele um balano, mas pode-se e deve-se procurar entender a que ponto e como que nos

    diz respeito, a que escolhas e atitudes nos convoca. (VATTIMO, 1987, p. 21).

    As causas do niilismo, conforme Nietzsche, no podem ser buscadas na superfcie do

    modelo civilizatrio ocidental, ou seja, na degenerao de suas estruturas e instituies

    sociais, como exemplo do que ele vivenciou e que vivenciamos em tempos atuais como a

    crise da Famlia, do Estado, da Escola, da corrupo dos valores ticos e morais etc.

    Tampouco podem ser atribudas s desigualdades sociais e a suas nefastas conseqncias, a

    violncia generalizada no tecido social, a morte como fato e espetculo corriqueiro, a fome, a

    misria e o abandono de bilhes de esquelticas carcaas humanas perambulando nos

    chamados pases pobres. Logo, estas so conseqncias vivenciadas no sculo XIX pela

    sociedade alem e europia da qual Nietzsche fez parte, e que esto presentes no sculo XXI

    na forma do desconforto que sentimos frente a estas questes, na angstia que presenciamos

    no rosto das pessoas diariamente, no cansao existencial que acompanha o estresse do homem

    moderno. Um tempo de decadncia, de desencanto, de exausto que somente pode ser

    compreendido a partir de um olhar genealgico em dupla perspectiva: voltando-nos s origens

    temporais do modelo civilizatrio ocidental e, simultaneamente, observando no tempo em que 11 (...) Aristteles chega descoberta dos princpios de ato e potncia, que so uma aplicao das noes de matria e forma em escala mais ampla. Potncia qualquer realidade que, como a matria, tem como propriedades ser indeterminada, ser passiva e ser capaz de assumir vrias determinaes. Ato toda realidade que, como a forma, tem como caractersticas ser determinado, finito, perfeito, completo. As noes de ato e potncia constituem a maior descoberta, a mais profunda intuio metafsica de Aristteles.

  • 31

    nossas existncias se constituem, as razes dos acontecimentos que se desdobram diariamente.

    O niilismo est porta: de onde nos vem esse mais sinistro de todos os hspedes? Ponto de

    partida: um erro remeter a estados de indigncia social ou degenerao fisiolgica ou

    at mesmo corrupo, como causa do niilismo. (NIETZSCHE, 1978, p. 379).

    2.1. NIILISMO PASSIVO

    Para Nietzsche, o niilismo est na base do modelo civilizatrio ocidental, mais

    precisamente na interpretao socrtico-crist do mundo e do homem. Nesta perspectiva, a

    caracterstica marcante deste primeiro momento niilista da ocidentalidade, seria a passividade

    do homem frente dinmica da vida, da existncia. Sente-se seguro, confortavelmente

    acomodado, na medida em que uma determinada forma de racionalidade se instaurava,

    possibilitando ao homem construir uma arquitetura conceitual que lhe permitia disfarar a

    tragdia humana, suas contradies, fragilidades prprias ao jogo da vida. Enfim, a

    racionalidade como possibilidade e caminho para o alcance da virtude, da felicidade, do bem-

    estar nasce na Grcia clssica. a filosofia nascente estabelecendo princpios racionais para

    as contingncias e contradies prprias da condio humana.

    Creio que se pode falar de uma inveno da razo. E, para compreender como a filosofia pode surgir como gnero culturalmente novo, vou referir-me a uma situao privilegiada: a Grcia Clssica. No quer dizer que eu pense que toda a filosofia seja grega. Mas claro que a Grcia viveu, por motivos contingentes, histricos, determinados acontecimentos que levaram os homens a produzir esse gnero original que no tinha equivalente na poca. Esse gnero se imps em um debate com outros gneros culturais que tambm buscavam a preeminncia. E acontece que, por outros motivos contingentes [...], ele teve um sucesso surpreendente. (CHATELET, 1994, p.15).

    A crtica que Nietzsche faz afirmao da racionalidade socrtica na base do modelo

    civilizatrio ocidental, se coloca na medida em que esta racionalidade pretende a construo

    de uma totalidade ordenadora da vida, a partir dos pressupostos da razo em si, desvinculada

    do mundo, da vida como nica doadora de sentido e finalidade existncia. Nesta

    perspectiva, despreza o corpo, os instintos, a terra, os valores fisiolgicos, que se estabelecem

    a partir de um conjunto conflitivo de relaes, manifestaes prprias da vontade de poder,

    participante da vontade de potncia, inerentes vida, integrantes de uma racionalidade

    envolta na tragdia da existncia. Racionalidade que se estabelece na perspectiva de afirmar

    um sentido para o sem-sentido da existncia, uma finalidade para o jogo das foras csmicas

    que participam no contnuo combate da existncia. MONDIN, Batista. Curso de Filosofia. So Paulo Traduo do italiano de Benni Lemos; reviso de Joo

  • 32

    Se fizermos uma volta s origens gregas do pensamento ocidental, nos deparar-nos-

    emos, nesta caminhada, com os filsofos pr-socrticos e sua busca cosmolgica atravs de

    uma filosofia afirmadora da vida, integrada e participante da Physis12. A vontade de vida se

    afirmava por ela mesma, em meio tragdia existencial na qual o homem estava inserido. O

    jogo da existncia era partilhado entre homens e deuses. A vida afirmava-se por ela mesma,

    sem petrechos ou suportes de verdades, essncias, pressupostos metafsicos transcendentes .

    [...]. Os deuses olmpicos no foram criados como uma maneira de escapar do mundo em nome do alm-mundo, nem ditam um comportamento religioso baseado na ascese, na espiritualidade, no dever; so as expresses de uma religio da vida, inteiramente imanente, religies da beleza como florao e no como falta que diviniza o que existe.(MACHADO, 1999, p.18).

    Ainda no desenrolar do pensamento filosfico grego, encontramos os sofistas13,

    entre eles destacam-se Protgoras de Abdera (480 a 410 a.C.), creditando ao homem a

    necessidade de assumir a prpria existncia, de perceber-se doador de sentido ao seu mundo,

    s suas verdades contingentes, passageiras, fragmentadas, caticas, presente na clebre frase:

    [...] o homem a medida de todas as coisas, isto , que as coisas so como lhe aparecem;

    no, porm, como aparecem ao homem, em geral, mas como aparecem ao homem hic et nunc:

    verdadeiro e bem o que aparece como tal e qual e a cada momento. (PADOVANI e

    CASTAGNOLA, 1961, p.57). Nesta mesma perspectiva, merecedor de considerao o

    pensamento do sofista Grgias de Leontini (487-380 a.C.) na medida em que apresenta a

    impossibilidade do conhecimento humano como algo estvel, definitivo sobre o mundo e a

    multiplicidade das manifestaes da existncia: [...] nada existe; e se algo existisse, seria

    incognoscvel; e mesmo se se pudesse conhecer, seria incomunicvel. (PADOVANI e

    CASTAGNOLA, 1961, p.57). Sendo assim, o conhecimento humano no passa de um

    antropomorfismo da physis. o homem que atribui valor, que d forma ao mundo. O mundo