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Natureza e identidade nacional nas Américas Com as independências e o surgimento das novas nações latino-americanas, no século XIX – os Estados Unidos já tinham obtido a sua no século anterior –, procurou-se afirmar que um novo período da história do continente começava. Aumentou o interesse de cientistas e artistas em torno de sua natureza, e sobre ela construíram discursos ou plasmaram-na em imagens e símbolos, nos quais natureza e política se relacionaram intensamente, como afirma a historiadora Maria Ligia Coelho Prado: A natureza apresenta-se como uma tela em branco sobre a qual se constroem discursos científicos ou se desenham imagens e símbolos. Na perspectiva do historiador, a natureza pode ser entendida como um objeto sobre o qual se elaboram representações que carregam visões de mundo e contribuem para a gestação de imagens e ideias que vão compor repertórios diversos, entre eles, os constitutivos da identidade do território e da nação. (PRADO, 1999, p.180) O século XIX é marcado pela triunfante e otimista visão da ciência. Alicerçados nesses princípios, viajantes europeus deslocaram-se pelo mundo em busca de regiões desconhecidas tidas como exóticas. Ali, iriam observar, medir e classificar a flora, a fauna, as rochas, as montanhas, os rios... A história natural conferia uma certa identidade a um país ou região, marcando suas singularidades e identificando um ser distinto, autônomo e original. Eram esses atributos que despertaram o interesse dos estudiosos europeus pelo continente americano. Dentre eles, destacamos Alexandre von Humboldt, que combatia a ideia da imaturidade do continente americano. Com olhos encantados descreveu montanhas, rios, vales, a flora, a fauna e as exuberantes paisagens da América Espanhola. Procurava entender as especificidades de cada ambiente e suas relações. Humboldt tinha uma postura preconceituosa sobre a condição “embrutecida” dos índios em face da civilização europeia. Se nos Estados Unidos a valorização da natureza prefigura a marcha para o Oeste, a conquista e a formação de um novo homem e de uma nova civilização, em vários países latino- americanos essa mesma natureza identificava-se com a barbárie. Um exemplo clássico dessa visão negativa da natureza é o livro do argentino Domingo Faustino Sarmiento “Facundo o Civilizacion y barbarie”. Nessa obra o autor enfatiza a estreita ligação entre política e natureza. O autor vê os pampas argentinos como responsáveis pelo isolamento do gaúcho, que se encontra desamparado, sem participação política, sujeito ao despotismo, o que o leva a contar somente com suas próprias forças, transformando-o em um bárbaro. Essa visão negativa de Sarmiento sobre a sociedade argentina no período é em parte explicada pelas longas lutas políticas que marcaram a formação e consolidação do Estado nacional argentino. Ao contrário dessa visão, nos Estados Unidos a defesa da natureza coincide com o período da construção do Estado Nacional. Os autores que abordam o tema da natureza exaltam as terras puras e virgens e suas possibilidades de expansão ilimitadas. Na América do Norte tudo era superior à Europa – ideia de grandiosidade, pureza, juventude, terra privilegiada. Em oposição

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Page 1: Natureza e identidade nacional nas Américassga.uniube.br/aulas/ftp/c700/d700082/a03/pdf/Natureza_e_identidad… · Natureza e identidade nacional nas Américas Com as independências

Natureza e identidade nacional nas Américas

Com as independências e o surgimento das novas nações latino-americanas, no século XIX – os

Estados Unidos já tinham obtido a sua no século anterior –, procurou-se afirmar que um novo

período da história do continente começava. Aumentou o interesse de cientistas e artistas em

torno de sua natureza, e sobre ela construíram discursos ou plasmaram-na em imagens e

símbolos, nos quais natureza e política se relacionaram intensamente, como afirma a

historiadora Maria Ligia Coelho Prado:

A natureza apresenta-se como uma tela em branco sobre a qual se constroem

discursos científicos ou se desenham imagens e símbolos. Na perspectiva do

historiador, a natureza pode ser entendida como um objeto sobre o qual se

elaboram representações que carregam visões de mundo e contribuem para a

gestação de imagens e ideias que vão compor repertórios diversos, entre eles,

os constitutivos da identidade do território e da nação. (PRADO, 1999, p.180)

O século XIX é marcado pela triunfante e otimista visão da ciência. Alicerçados nesses

princípios, viajantes europeus deslocaram-se pelo mundo em busca de regiões desconhecidas

tidas como exóticas. Ali, iriam observar, medir e classificar a flora, a fauna, as rochas, as

montanhas, os rios... A história natural conferia uma certa identidade a um país ou região,

marcando suas singularidades e identificando um ser distinto, autônomo e original. Eram

esses atributos que despertaram o interesse dos estudiosos europeus pelo continente

americano. Dentre eles, destacamos Alexandre von Humboldt, que combatia a ideia da

imaturidade do continente americano. Com olhos encantados descreveu montanhas, rios,

vales, a flora, a fauna e as exuberantes paisagens da América Espanhola. Procurava entender

as especificidades de cada ambiente e suas relações. Humboldt tinha uma postura

preconceituosa sobre a condição “embrutecida” dos índios em face da civilização europeia.

Se nos Estados Unidos a valorização da natureza prefigura a marcha para o Oeste, a conquista

e a formação de um novo homem e de uma nova civilização, em vários países latino-

americanos essa mesma natureza identificava-se com a barbárie. Um exemplo clássico dessa

visão negativa da natureza é o livro do argentino Domingo Faustino Sarmiento “Facundo o

Civilizacion y barbarie”. Nessa obra o autor enfatiza a estreita ligação entre política e natureza.

O autor vê os pampas argentinos como responsáveis pelo isolamento do gaúcho, que se

encontra desamparado, sem participação política, sujeito ao despotismo, o que o leva a contar

somente com suas próprias forças, transformando-o em um bárbaro. Essa visão negativa de

Sarmiento sobre a sociedade argentina no período é em parte explicada pelas longas lutas

políticas que marcaram a formação e consolidação do Estado nacional argentino.

Ao contrário dessa visão, nos Estados Unidos a defesa da natureza coincide com o período da

construção do Estado Nacional. Os autores que abordam o tema da natureza exaltam as terras

puras e virgens e suas possibilidades de expansão ilimitadas. Na América do Norte tudo era

superior à Europa – ideia de grandiosidade, pureza, juventude, terra privilegiada. Em oposição

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ao velho e desgastado mundo europeu, os norte-americanos descobriram a jovem e pura

“wilderness” (selva, floresta). A natureza ganhava tratamento sagrado, inspiradora de uma

grande cultura. Comparada aos Jardins do Éden, as paisagens intocadas representavam a

revelação divina – “Destino Manifesto”. Essa visão da natureza privilegiada por Deus alinhava-

se a ideia de nascimento da nação as florestas americanas simbolizavam o berço da nação.

Nesse contexto, surgiu a Escola do Rio Hudson, cujo grupo de pintores norte-americanos

retratava paisagens dos vales e montanhas em torno do Rio Hudson, no nordeste dos EUA.

Caracterizou-se pela absorção de padrões técnicos e gostos europeus para a construção de

imagens nacionais por meio das paisagens pintadas. Segundo Maria Ligia C. Prado:

As paisagens na pintura dessa escola tinham algumas características

peculiares. Os homens possuíam uma pequena dimensão diante da natureza

não-domesticada. As paisagens eram grandiosas, inatingíveis, intocadas,

cheias de mistério, de grande beleza e originalidade. [...] A análise dessas

pinturas mostra que contribuíram para a elaboração de imagens constitutivas

de uma identidade nacional. (PRADO, 1999, p.192)

Em síntese...

As interpretações de Sarmiento e Turner passam pelos mesmos temas natureza selvagem e

construção de uma identidade nacional

Mas as visões são opostas:

A natureza nos EUA:

signo de um país grandioso, para o qual o destemido colono, expandindo a fronteira,

traria a prosperidade e a riqueza

A natureza na Argentina:

signo do atraso político e econômico do país, no qual o “bárbaro” gaúcho dos pampas

produz o despotismo e os aspectos negativos da sociedade

Os diferentes modos de ver e interpretar a ideia de natureza em relação à América que

apresentamos exemplificam a complexa relação da mesma com uma identificação, ora

positiva, ora negativa, da própria imagem das novas sociedades independentes.

A seguir, observe algumas pinturas que fazem a representação da natureza norte-americana

(imagens 1, 2 e 3) e da natureza argentina (imagens 4 e 5):

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Imagem (1): Manhã Ensolarada no Rio Hudson. Thomas Cole. 1827.

Imagem (2): Os Jardins do Éden. Thomas Cole. 1828.

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Imagem (3): Espíritos Afinados ou Almas Gêmeas. Asher B. Durand. 1849.

Imagem (4): Estância sobre o Rio São Pedro. Emeric Essex Vidal. 1816.

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Imagem (5): Vista de uma parte de Buenos Aires, Tomada desde o Matadouro do Sudoeste. Emeric

Essex Vidal. 1816.

Referências:

PRADO, Maria Ligia Coelho. América Latina no Século XIX: Tramas, Telas e Textos. São Paulo: Editora

da USP; Bauru: EDUSC, 1999.

SILVA, Francisco José Lyra. Natureza e identidade nacional na América nos séculos XVIII e XIX.

Revista Múltipla, Brasília, 5(9): 81-93, dez/2000.