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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, pp. 09 - 31, 2006 NATUREZA E CULTURA NAS ORIGENS DA GEOLOGIA ESPANHOLA * Horácio Capel** Tradução por André Geraldo Berezuk*** & Jorge Ulisses Guerra Villalobos**** *Versão revisada do texto da conferência pronunciada no ciclo “Natureza e cultura no pensamento espanhol” , organizado em Barcelona pelo Centro Cultural da Caixa de Pensões, em março de 1986. ** Departamento de Geografia Humana, Faculdade de Geografia, Universidade de Barcelona ***Doutorando em Geografia pela UNESP - Campus Presidente Prudente. E-mail: [email protected] ****Professor Doutor pela Universidade Estadual do Maringá - PR. E-mail: [email protected] RESUMO: O prestigiado geógrafo espanhol Horácio Capel relata os tempos polêmicos da Idade Moderna, onde a questão da ciência e da fé, de onde se encontrava a explicação da criação da Terra, era de fundamental importância para o processo de consolidação da ciência moderna, separando as explicações de cunho científico das de cunho teológico, configurando-se esses tempos como tempos de reflexão de idéias tradicionais com a reformulação de seus conceitos. Nesse período revolucionário da história, onde a história da criação do planeta estava sendo questionada, a geologia era um ponto estratégico nos discursos científicos, e o avanço em seus estudos, incluso na Espanha, significava um avanço também nesses discursos, que certamente entrariam em atrito com os relatos sagrados. PALAVRAS-CHAVE: Criação, geologia, Bíblia, ciência, fé. ABSTRACT: The famous spanish geographer Horacio Capel show the hard times of Modern Age, period of core importance for science consolidation process, setting apart the scientific explanations of theological explanations, showing this times like years of reflection of traditional ideas with its concepts reformulations. At this hot period of history, where the story of Earth Creation had been asked, geology was a turning point of scientific speeches and the development of geology studies, included in Spain, means a progress into Creation discuss too, which certainly would shock against Holy Bible words. KEY WORDS: Creation, geology, Bible, science, faith. A atual divisão entre ciências e humanidades é distinguida tão rigorosamente na opinião pública dos campos do conhecimento que alguns quase chegam a considerar como compartimentos estanques, sendo incluído também o ensino que parece ter aceitado esta divisão, consolidando entre as “ciências” e letras” um divórcio que resulta, sem dúvida, nefasto. É freqüente encontrar hoje cientistas ignorantes das raízes históricas ou das implicações filosóficas e sociais das teorias que usam, e a humanistas que desconhecem praticamente todo o desenvolvimento da ciência e da metodologia, propagando, inclusive, sua ignorância. No entanto, esta divisão radical entre ciência e humanidades é relativamente recente, e procede, na realidade, do século XIX. Durante muito tempo, ciências e letras não estiveram tão dissociadas, nem na prática científica, nem nas

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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 19, pp. 09 - 31, 2006

NATUREZA E CULTURA NAS ORIGENSDA GEOLOGIA ESPANHOLA*

Horácio Capel**

Tradução por André Geraldo Berezuk***&

Jorge Ulisses Guerra Villalobos****

*Versão revisada do texto da conferência pronunciada no ciclo “Natureza e cultura no pensamento espanhol”, organizado emBarcelona pelo Centro Cultural da Caixa de Pensões, em março de 1986.

** Departamento de Geografia Humana, Faculdade de Geografia, Universidade de Barcelona***Doutorando em Geografia pela UNESP - Campus Presidente Prudente. E-mail: [email protected]

****Professor Doutor pela Universidade Estadual do Maringá - PR. E-mail: [email protected]

RESUMO:O prestigiado geógrafo espanhol Horácio Capel relata os tempos polêmicos da Idade Moderna,onde a questão da ciência e da fé, de onde se encontrava a explicação da criação da Terra, era defundamental importância para o processo de consolidação da ciência moderna, separando asexplicações de cunho científico das de cunho teológico, configurando-se esses tempos como temposde reflexão de idéias tradicionais com a reformulação de seus conceitos. Nesse período revolucionárioda história, onde a história da criação do planeta estava sendo questionada, a geologia era umponto estratégico nos discursos científicos, e o avanço em seus estudos, incluso na Espanha,significava um avanço também nesses discursos, que certamente entrariam em atrito com os relatossagrados.PALAVRAS-CHAVE:Criação, geologia, Bíblia, ciência, fé.ABSTRACT:The famous spanish geographer Horacio Capel show the hard times of Modern Age, period of coreimportance for science consolidation process, setting apart the scientific explanations of theologicalexplanations, showing this times like years of reflection of traditional ideas with its conceptsreformulations. At this hot period of history, where the story of Earth Creation had been asked,geology was a turning point of scientific speeches and the development of geology studies, includedin Spain, means a progress into Creation discuss too, which certainly would shock against HolyBible words.KEY WORDS:Creation, geology, Bible, science, faith.

A atual divisão entre ciências ehumanidades é distinguida tão rigorosamentena opinião pública dos campos do conhecimentoque alguns quase chegam a considerar comocompartimentos estanques, sendo incluídotambém o ensino que parece ter aceitado estadivisão, consolidando entre as “ciências” e“letras” um divórcio que resulta, sem dúvida,nefasto. É freqüente encontrar hoje cientistasignorantes das raízes históricas ou das

implicações filosóficas e sociais das teorias queusam, e a humanistas que desconhecempraticamente todo o desenvolvimento da ciênciae da metodologia, propagando, inclusive, suaignorância.

No entanto, esta divisão radical entreciência e humanidades é relativamente recente,e procede, na realidade, do século XIX. Durantemuito tempo, ciências e letras não estiveram tãodissociadas, nem na prática científica, nem nas

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instituições acadêmicas. Há de se recordar queo descobrimento e a assimilação da ciênciaclássica no Renascimento foi uma tarefa dehumanistas que combinavam, por sua vez, umsaber científico e filosófico; e que durante todaa idade moderna foi muito comum que osintelectuais se ocupassem, ao mesmo tempo,de temas científicos, filosóficos e literários. Todoseles aceitavam crenças que não deixavam influirem suas investigações.

A história da ciência exige cada vez maisuma visão unitária e integradora, e obriga atomar consciência destas estreitas relações queexistiam no passado entre os diversos ramosdo saber. Também permite lançar uma visãosobre as relações desse tipo que acontecem naprática científica atual. Mas essa visão, que éalgo cada vez mais aceita, é difícil de seralcançada.

Durante muito tempo, a história dasciências e a história das humanidades têm seformado em campos claramente dissociados. Éo que considera um dos fundadores da modernahistória da ciência, George Sarton, ao definir, em1922, o que deveria ser essa nova área deinvestigação, delimitando-a, claramente, comoo estudo do desenvolvimento das matemáticas,da astronomia, da física, da química, da biologiae das ciências da Terra, excluindo dela,explicitamente, as humanidades, a tecnologiae a medicina, esta última em razão de umatradição histórica independente bem afirmadae institucionalizada.

Na realidade, ao longo do século XX, ahistória da ciência tem sido cultivadaessencialmente em duas grandes linhasdiferenciadas. Desde 1920 têm existidocongressos internacionais de história emedicina, e, desde 1925, congressos de históriada ciência com o conteúdo restritivo antesassinalado, que é também, de certo modo, oque se encontra no “Dictionary of ScientificBiography” (p. 1970 e seguintes) ou em obrasque levam o título de “Histórias da Ciência”,como as de Mieli (p. 1945 e seguintes), Taton(1958), ou, no âmbito espanhol, Vernet (1975).

Essa concepção estreita da história daciência modificou-se profundamente nos últimosanos. Gradativamente, foi se concebendo comoum campo integrado nos diversos ramos doconhecimento científico. Os limites são difíceisde serem mantidos, e as revistas ou asinstituições dedicadas especificamente àhistória da ciência prestam atenção à medicina,uma vez que as revistas e instituições dedicadasà história desta ciência incluem trabalhos sobrea história das ciências físico-matemáticas ousobre tecnologia. Um exemplo paradigmático deaté onde pode chegar hoje este cultivo integradoda história da ciência pode ser o do professorLópez Piñero, que, desde sua cátedra de Históriada Medicina na Universidade de Valência, temrealizado pessoalmente, com seus discípulos ecolaboradores, valiosas contribuições à históriadas ciências físico-matemáticas na Espanha.Talvez, por tudo isso, muitos preferem hoje falarde “História das Ciências”, para superar essadivisão tradicional, e este é, por exemplo, onome que adotou uma nova associação criadana Espanha para impulsionar esse campo dosaber: a Sociedade Espanhola de História dasCiências, criada em 1974.

Porém, nesta revolução, o mais inovadoré a aproximação crescente dos historiadores daciência até campos que até a pouco seconsideravam carentes da prática científica emsentido estrito. Nos referimos diretamente aocampo da filosofia, da história, da literatura edas humanidades em geral. É uma tendênciaque se comprova facilmente examinando-se osartigos publicados nas revistas especializadasem comunicações apresentadas nos congressosde história da ciência. Como exemplo do quedizemos, pode-se citar uma revistarepresentativa como o “British Journal for theHistory of Science”, de onde foi dedicada atençãorecentemente a temas tais como os seguintes:a matéria e o espírito como símbolos na filosofianatural inglesa do século XVIII; atonismo eescatologia: ciência, indústria e ordem social;ou as idéias de Guillermo de Ockham sobre asclassificações das ciências.

Paralelamente, nos Congressos

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Internacionais de história da ciência debatem-se hoje temas que há dois ou três decêniosatrás haviam sido inimagináveis. Assim, porexemplo, no XV Congresso, celebrado emEdinburgh em 1977, de onde esta mudança detendência começou a receber força. Existiramseções científicas ou simpósios sobre temascomo os seguintes: ciência e valores humanos,física e metafísica na revolução científica,histórias das ciências do homem, incluindo apsicologia e historiografia. Mais visivelmenteainda foi possível observar esta evolução noúltimo congresso, o XVII, celebrado em agostode 1985 em Berkeley, Califórnia, de onde seprestou amplamente, e as vezesapaixonadamente, atenção a temas deepistemologia e filosofia, sociologia dascomunidades científicas, inovação tecnológica,implicações sociais da ciência ou às relaçõesentre religião e ciência. Entre as 79 seçõescientíficas que celebraram suas reuniõessimultaneamente houve algumas sobre temascomo os seguintes: biologia e filosofia nosséculos XVII e XVIII; genética e ideologia daevolução, a ciência social antes de 1800; osfundamentos das ciências sociais, a psicologia,os métodos e conceitos na ciência social, asinfluências literárias nas ciências físicas, aepistemologia da revolução científica, revoluçãocientífica: ciência lógica e cognição, revoluçõesna ciência, a inovação tecnológica; ciências ecrenças religiosas, além de outras dedicadas àmedicina e questões etnológicas. Ao mesmotempo, entre os 21 simpósios organizados haviaalguns temas que até há pouco tempo eramescassamente habituais no campo da históriada ciência: genética e sociedade, a transmissãodo conhecimento natural e implicações sociais,a compreensão e o uso da natureza nas culturasnativas americanas; ciência, literatura eimaginação, sociologia histórica da ciência,metodologia, filosofia e história da ciência,história das ciências naturais e humanas; eciência e religião.

Os modernos historiadores da ciência sesentem obrigados a incorporar novos temasporque encontram relações insuspeitáveis entreproblemas aparentemente comuns. As relações

entre o hermetismo e a revolução científica,entre literatura e ciência, entre ciência e arte,entre a história da terra e a história das nações,ou entre religião e ciência, têm sido objetorecente de importantes contribuições por partede prestigiosos especialistas como F. A. Yates,Pacho Rossi ou Elias Trabulse. Ao mesmo tempo,filósofos e historiadores das humanidadesrealizam hoje estudos que não podem serdesconhecidos pelos historiadores da ciênciapara situar corretamente suas investigações:na Espanha os trabalhos de José AntonioMaravall, de José Luis Abellán, de Antonio Bonetou de Antonio Mestre podem ser bemrepresentativos do que dizemos.

É nesta perspectiva crescentementeintegrada da história da ciência e a história dashumanidades, de onde se deve situar o trabalhoda continuação que se apresenta sobre anatureza e cultura nas origens da geologiaespanhola, que sucessivamente iremos exporo conhecimento renascentista da Terra, osestímulos e avanços para um maiorconhecimento da estrutura terrestre, oobstáculo do Gênesis e o processo deracionalização da Bíblia, e as hipóteses queforam propostas no século XVII para explicar aformação e estrutura da Terra.

I- O conhecimento Renacentista da Terra

O Inferno e o Reino de Deus

De certa maneira, poderia ser dito quepara o nascimento de uma reflexão modernasobre a estrutura terrestre era condiçãonecessária – ainda que, como veremos, nãosuficiente – que os intelectuais do Renascimentosofressem o impacto da revolução copernicanae da destruição da ordem cosmológica medieval.No hierarquizado e fechado cosmos medieval,a Terra situava-se no centro dos planetas, nolugar mais impróprio do universo. Comoescreveu, com certa perspicácia, Lovejoy,criticando certas interpretações apressadassobre o impacto da revolução copernicana, aTerra “era o fundo da criação em que se fundiamseus elementos mais baixos e suas ações”.

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(Lovejoy, 1983, p. 128). No interior dela seencontrava o Inferno, o Averno dos clássicos,que, segundo a tradição clássica e medieval,todavia influente no Renascimento, penetravapor rios subterrâneos ou através de profundosabismos conhecidos popularmente como “bocasdo inferno”.

Essa é a concepção que aparece nogrande poema alegórico de Dante, no que oInferno adota a forma de um cone invertido eoco, cujo vértice se situa no mesmo centro daTerra, precisamente no ponto mais distante doReino de Deus. As numerosas especulações queocorreram no Renascimento (ainda mais porparte de cientistas eminentes como Galileo) aoproblema do Inferno e de sua localização e oprolongado eco da concepção de Dante, emparticular, mostram que o conteúdo moral da“Divina Comédia” refletia também um difusoestado de opinião sobre esse tema, comindubitáveis conseqüências sobre as opiniõesacerca da estrutura inferior do nosso planeta.Opiniões que eram apoiadas pela autoridadeda Igreja e que podiam terminar, ainda,claramente demonstradas pelas observaçõesempíricas realizadas sobre o aumento do calornos poços das minas.

A ruptura do cosmos medieval não podiadeixar de afetar a estas crenças. O passo domundo limitado ao universo infinito (Koyré,1957) significava a posição do homem nouniverso, distanciando-o desse centro infernaldo universo e permitindo a situação de umanova dimensão da questão da localização doUniverso e do Inferno.

A concepção heliocêntrica situava emuma posição central o Sol, o corpo que maisclaramente poderia representar a divindade porser a fonte de luz e calor e – como escreviaKepler – o lugar “de que poderíamos julgar queseria merecedor o Altíssimo, se fosse o caso deuma comprovação de uma morada física e de elegerum local de onde habitaria com os bem-aventurados anjos” (Lovejoy, 1983, p. 128). Noentanto, ao mesmo tempo, a Terra seconverteria em um planeta excêntrico, cada vez

mais original, segundo avançava a investigaçãoastronômica dos céus e o descobrimento denovos sóis e planetas, e resultava semelhantea outros em que alguns “espíritos” atrevidosprontamente pensaram que podiam tambémexistir criaturas viventes e racionais.

A estrutura interior da Terra, cujacircunferência se conhecia já de formaindubitável no século XVI e cujas dimensõesaproximadas também eram conhecidas, podiaser agora objeto de uma indagação na qual nãohavia que se incorporar, necessariamente, odebate sobre a localização do inferno. Aindaassim este debate apareceu cuidadosamenterefletido em alguns dos sistemas que sepropunham sobre o mundo subterrâneo, esendo freqüentemente aludido em obrascientíficas que se publicaram durante o séculoXVII. Assim ocorre, por exemplo, na “NuevaDescripción del Orbe de la Tierra” (1681), dogeógrafo valenciano José Vicente del Olmo. Emum dos seus capítulos, dedicado à estruturainterior da Terra, presta-se atenção àsdescrições sobre o interior do planeta quehaviam sido realizados por Dante, Morin,Maluenda, Gaffarel e Kircher, autor que serácitado e cujas cavernas de fogo recordam emtantos aspectos as figuras místicas de Luzbel ede Plutão. Um desses autores, Jecques Gaffarel,havia publicado, a meados do século XVII, obrascomo “De cryptis toto orbe celebribus” (1681) e“Lê Monde sousterrein” ou “Description historiqueet philosophique de tous lês plus beaux antres etde toutes lês belles grottes de la Terre” (Paris,1654), nas quais dividia as cavernassubterrâneas em cinco classes: as “humanas”,habitadas antigamente por gigantes e ascidades subterrâneas; as “bestiais”, habitadaspor feras e outros animais; as “naturais”, comoas grutas e outros depósitos internos cheiosde distintas substâncias como vaporesmetálicos, exalações, águas, fogo, gelo ecristais, dentre outras; as “artificiais”, realizadascuidadosamente e artisticamente para o lazerdo homem; e as “divinas”. Estas últimas sesubdividiam, por sua vez, em várias espécies:“angélicas”, de onde haviam aparecido anjos,como a gruta do Monte Gargano, célebre pela

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aparição de São Miguel; as “eclesiásticas”,essencialmente constituídas por templosescavados em montes ou rochas e ascatacumbas; “purgativas”, referentes aopurgatório e ao limbo; e as “diabólicas” ou“infernais”, situadas nas áreas mais profundasda Terra.

As Fontes do Saber Sobre a Terra

A reflexão sobre a Terra estava afetada,sobretudo, pela aceitação do relato bíblico daCriação, cuja realidade era indubitável por todosos cristãos. Para os europeus do século XVI, omundo havia sido criado por Deus em seis dias,era mantido por Ele e seria destruído no JuízoFinal. A Terra havia sido criada por Deus paramorada do Homem e tudo estava organizadopara a conservação do gênero humano, comoresultado de um sábio, ainda que às vezesincompreensível, plano divino. Tratava-se deuma concepção antropocêntrica e teleológica emque a existência da Terra somente era concebidase relacionada com a do Homem. A História daHumanidade e a do Mundo estava narrada coma das Escrituras. A primeira consistia em umdesenvolvimento linear e progressivo quepreparava a vinda de Cristo para redimir ogênero humano. A segunda, a História doMundo, de fato era inexistente, com exceção dagrande catástrofe do Dilúvio, provocada pelacólera de Javé por causa da maldade humana.Com exceção desse fato, a Terra não podiaexperimentar mudança alguma porque isso teriasignificado que Deus havia errado na concepçãodo plano da Criação. Assim, todos os elementosda superfície terrestre, e, por conseguinte, dointerior terrestre deviam estar bem dispostosdesde o princípio dos tempos, da mesmamaneira que se haviam criado, também, todasas espécies animais e vegetais necessáriaspara a vida do Homem. A antiguidade do mundo,desde o momento da criação, era deduzida pelaleitura dos livros sagrados e ainda que ainterpretação dos Padres da Igreja pudessevariar em detalhes, em nenhum caso para oshomens do renascimento a dita antiguidadesuperava muito mais do que 6.000 anos.

Ainda que para os cristãos a primeirafonte de conhecimento do mundo fosse aEscritura, também o mundo era digno de sercontemplado, como reconhecimento da obra doCriador. A natureza era um livro cuja leituraelevava a Deus. Por isso a mesma Terra,examinada racionalmente, podia ser objeto deatenção, ainda que geralmente sua observaçãose fazia com os olhos da exaltação religiosa ecom a visão limitada que procedia da mesmanarração bíblica.

Porém, os homens do Renascimentopossuíam, além das Escrituras e dainterpretação eclesiástica, outra base para oconhecimento da estrutura terrestre: ainterpretada pela ciência clássica. Aristóteles,Platão, Lucrécio, Plínio, Sêneca e outrosfilósofos e moralistas haviam especulado naantiguidade sobre a natureza terrestre, e seusescritos, transmitidos em uma outra forma aolongo da Idade Média e editados e estudadosavidamente no Renascimento, facilitavamrespostas satisfatórias a muitas das perguntasque os europeus do século XVI puderam fazera essas questões.

Uma parte dessas teorias, asaristotélicas, havia sido bem difundida desde oséculo XIII e, em boa parte, integrada àortodoxia cristã. Com exceção da eternidade domundo, que se opunha à concepção cristã-judaica da criação ex nihilo, o restante das idéiasde Aristóteles sobre a física terrestre podiaincorporar-se facilmente em uma reflexãocientífica cristã sobre a Terra, e de fato seintegraram plenamente, sendo uma prova dissoa obra de São Alberto Magno e de outroscientistas cristãos da Baixa Idade Média.

Estas idéias procedentes da ciênciaclássica e transmitidas já diretamente, idéiasessas influentes nos conceitos dos cientistascristãos baixo-medievais de tradição platônicaou ripatética, incluíam algumas noções sobreorogenia, circulação das águas, terremotos evulcanismo, cavernas subterrâneas e períodosde secas e de inundações.

Da ciência clássica procedia também uma

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teoria dos elementos e de suas transformações,assim como uma idéia pouco precisa sobre oslimites entre os reinos mineral e vegetal: asrochas podiam ser animadas e experimentarprocessos de crescimento. A grande cadeia doser compreendia, mediante valoresimperceptíveis, a todos os objetos da natureza.O estudo dos minerais seguia sendo realizadode acordo com a tradição árabe medieval, eremotamente clássica, dos Lapidários. Trata-sede catálogos em que várias centenas de rochas(337 no Lapidário de Alfonso X e uma cifrapróxima a essa em outros), se ordenavamsegundo os signos do zodíaco e suas virtudesastrológicas, incluindo minerais, corais, algas,cálculos renais e biliares e todos os objetos quepoderiam receber de uma maneira ou outra adenominação de pedras.

Os avanços realizados no século XVI nãosupunham uma mudança decisiva nessaconcepção. No Lapidário de Alfonso X, aenumeração e descrição das virtudes daspedras se fazem “conforme a especial cor quetêm por natureza e segundo os ensinamentos doslivros dos sábios”, com o acréscimo de suasvirtudes mágicas e sua simbologia. As descriçõesse realizam em forma de “histórias” de mineraisnas quais a recopilação erudita de toda ainformação existente sobre cada um deles seune à descrição de suas características externas,seus poderes mágicos e medicinais, suascaracterísticas benignas ou malignas. Assimaparece em obras bem significativas, do queFoucault denominou a “epistemologiarenascentista”, tais como o “De rerum fossiliumlapidum et gemarum” (1565) de Conrad Gesner,ou no “Musaeum metall icum” (publicadopostumamente em 1648) de Ulisse Aldrovandi,ou na obra, renovadora em muitos conceitos,de Georgius Agrícola, “De natura fossilium”. Defato, nessa obra inclui-se descrição de mineraisbaseada na “imitação” e na “similaridade”,discutindo o significado dos nomes que seatribuem às distintas propriedades e utilidadespara o comércio e para as artes (Albury &Oldroyd, 1977). Dentro dessas linhas, pode-secitar, também, com a adaptação espanhola queoriginou, com relação à obra de Agrícola e outros

autores, a afirmação de Bernal Pérez de Vargas:“De Re Metallica”, na qual se tratam muitos ediversos segredos do conhecimento de toda a gamade minerais, de como se devem buscá-los,examiná-los, e beneficiá-los, com ainda outrossegredos e transformações notáveis (Madrid,1569) ou o “Libro de las virtudes e propriedadesmaravillosas de las piedras preciosas” (1605) deGaspar de Morales, livro este que foi proibidopela Inquisição.

II- Estímulos e Avanços para um maiorConhecimento da Estrutura Terrestre

As grandes transformações econômicas,sociais e científicas que se produziram a partirdo século XVI não podiam deixar de afetartambém o desenvolvimento da reflexão sobrea estrutura terrestre, sua história e seuscomponentes físicos. No entanto, o problemada profundidade desse impacto para odesenvolvimento de uma reflexão científicamoderna no campo do que logo se chamou“geologia” estão ainda por ser determinado deforma convincente. A impressão que se tem éque os avanços não foram particularmentesignificativos, com exceção do campo damineração e metalurgia, e que o obstáculo queo Gênesis impôs impediu o avanço de idéiasglobais verdadeiramente alternativas àsconcepções existentes.

O Descobrimento do Novo Mundo

Temos de mencionar necessariamente,em primeiro lugar, o impacto que sobre este tipode conhecimentos puderam ter os grandesdescobrimentos geográficos. Novos ciclos, novasterras e novos mares são conhecidos peloseuropeus a partir do século XVI e não há dúvidade que isso deveria contribuir a modificarprofundamente a imagem da natureza terrestre.Assim ocorre ao que se refere ao conhecimentogeográfico da superfície terrestre, da topografiae das características gerais dos territórios e daspopulações no Novo Mundo e em outras regiõesagora visitadas. Todavia, ainda deve-se estudar,

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qual foi a contribuição precisa dosdescobrimentos geográficos aodesenvolvimento das teorias “geológicas”.

A investigação das novas terrasconhecidas pelos espanhóis iniciou-seimediatamente depois do descobrimento,originando rapidamente as obras em conjuntocomo as de Gonzalo Fernandez de Oviedo (1519e 1526) ou a de Francisco López de Gómara(1552). Mais tarde foi decididamenteimpulsionada pela obra do cosmógrafo JuanLópez de Velasco e, em particular, pelasinstruções que redigiu em 1577 e nas que seenumeravam cuidadosamente as cinqüentaquestões que tinham de ser prioritariamenterecolhidas nos informes elaborados sobre osdiferentes territórios americanos e asiáticos.Tudo isso foi definindo um gênero que seconhece como “crônicas das Índias” e queconstituiu uma contribuição essencial aoconhecimento público das novas terras.

A leitura dessas crônicas das Índias,assim como dos relatos de viagens deportugueses e de outros europeus, se, por umlado, impressiona pela riqueza das novasnotícias e pelo espírito aberto e audaz quedemonstram os narradores, por outro, chama aatenção pela escassez ou ausência deinterpretações novas sobre a estruturaterrestre. As coreografias e as histórias naturaisdas Índias interessam, desde logo, pelo variadoe fascinante mundo vegetal e animal, esurpreendem pela habitabilidade da zonatórrida. Explicam, periodicamente, ascaracterísticas térmicas, as chuvas e os ventos(tão diferentes aos das regiões européias),enumeram os rios e lagos; descrevem ascorrentes marítimas, o fluxo e refluxo dosoceanos, as selvas impenetráveis e asqualidades de cada território para a habitaçãohumana.

Desde o ponto de vista “geológico”,encontramos, também, nessas obras notíciasvaliosas, ainda que limitadas essencialmente aesses três aspectos: 1) a topografia, e emparticular, a assombrosa altura das montanhas;

2) as riquezas minerais e a forma de explorá-las; e 3) o vulcanismo e os terremotos. A obra“La Geografia y Description Universal de las Índias”(1571-1574) do cosmógrafo Juan López deVelasco, a “Historia del Nuevo Mundo” (1653) deBernabé Cobo e a “Histórica relação del Reynode Chile” (1646) de Alonso de Ovalle, podem serum bom exemplo do que dizemos, ainda que,sem dúvida, o tema mereça uma maior atenção,que não podemos dedicar aqui.

As concepções sobre a natureza mineralse viam afetadas, nesses autores, pelas idéiasdominantes. As influências astrais podiam serutilizadas para explicar a abundância de metaisque existiam em certas partes das serrasandinas, tal como diz Juan López de Velasco,uma das grandes personalidades científicas desua época:

A causa de haver mais ouro e metais nasáreas dessas serras voltadas ao ocidente,parece ser, pelo fato dos metais se formaremnas profundezas da terra, de onde a terra émais pura e quase rochosa, e pela maior partede sua superfície ser estéril e pelada, provémda pouca umidade que concede a área, comopor parte daquelas serras que estão maisdescobertas e sem vegetação, por serem maiselevadas, estão mais dispostas a receber ainfluência do céu, manifestando-se maisprontamente a elas. A outra parte dacordilheira que mira o oriente, desde asprovíncias de Quito até o estreito (deMagalhães), por constituir toda a terra plana,encorpada e cheia de árvores e pântanos,não parece tão disposta a formar metais,sendo que no que foi descoberto até agorano Rio da Prata e do Brasil não se têmchegado notícias da existência de metaisnenhum que sejam proveitosos para extração(López de Velasco: Geografia y DescripcíonUniversal de las Índias, 1571 – 1574, poréminédita até fins do século XIX; ed. 1971, p.12).

Durante muito tempo as relações entreos distintos reinos da natureza se seguiramidealizadas segundo analogias que supõem a

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aceitação de uma ordem de correspondênciasem todo o mundo criado. Assim, Acosta, porexemplo, vê as relações entre os distintos reinosda natureza:

Os metais são como plantas encobertas nasprofundezas da terra, e possuem algumasemelhança no modo de produzir-se, pois sevêm também seus ramos, e como tronco deonde saem, que são as veias maiores emenores que entre si têm notável enlace ecombinação, e que de alguma maneira pareceque crescem os minerais como plantas. Nãoporque tenham verdadeira vida interior, poisisso é somente proveniente de plantasverdadeiras, mas porque de tal modo seproduzem nas profundezas da terra porvirtude e eficácia do sol, e de outros planetas,que no decorrer do longo tempo vêm seacumulando, e quase se propagando. Eassim, como os metais são como plantasocultas da Terra, assim também podemosdizer que as plantas são como animais fixosem um lugar, cuja vida se governa do alimentoque a natureza lhes provém em seu próprionascimento (Acosta: História natural e moralde las Índias, 1590, L. IV, cap. I).

A partir daqui, Acosta deduz um sistemade relações “ecológicas” entre os elementos dosdistintos reinos da natureza, uma espécie decadeia eutrófica renascentista que expressa agrande cadeia do ser e cuja maravilhosa ordemde equilíbrio demonstra a ordem divina danatureza, permitindo o louvor e a glória aoCriador:

De sorte que a terra estéril e rude é comomatéria e alimento dos metais, a terra fértil emais desenvolvida é alimento das plantas; asmesmas plantas são alimentos dos animais;e as plantas e os animais são alimento doshomens, servindo sempre a natureza inferiorpara sustento da superior, e a menos perfeitasubordinando-se a mais perfeita (Acosta,Ibidem).

Esta visão tradicional do reino mineralnão é exclusiva do Padre Acosta, mas aparece,também, em outros autores. Seu colega, o

Padre Bartolomé Cobo, dedica grande atençãono livro III de sua “História del Nuevo Mundo”(1653) aos minerais, em um esquematipicamente renascentista que abarca o estudode rochas, minerais, vegetais petrificados,pedras encontradas nas vias digestivas eurinárias de seres vivos e pérolas, explicando agênese de cada uma e suas aplicações e usosna medicina e na indústria.

Relendo as crônicas das Índias, e asrelações de viagens, têm-se a impressão de queseus redatores, como homens de seu tempo,aceitavam as idéias dominantes sobre anatureza física terrestre, sem questioná-las emseu aspecto fundamental, já que esse não erao objetivo de suas obras. Suas grandes dosesde observação e seu espírito livre e audaz sevoltavam, sobretudo, à narração das riquezasnaturais e maravilhas das novas terras, em umadescrição que não freqüentemente se elevavaa indagações de caráter geral sobre a estruturada Terra ou sobre as mudanças que poderiamhaver sido produzidas sobre elas.

É visto que essas indagações parciaissobre a altura e as características de montes evales, sobre os repetidos e sempreimpressionantes fenômenos vulcânicos esísmicos, sobre as jazidas minerais e a formade exploração, sobre a circulação das águasterrestres, sobre a configuração das costas esobre outros aspectos de carátergeomorfológico ou mineralógico têm podidosupor para o desenvolvimento de uma reflexãogeológica da Europa. É urgente que oshistoriadores da ciência, espanhóis e hispano-americanos, iniciem estudos sobre essasquestões que tanto importam à história daciência européia.

Mesmo com o fato de ter sido muito oque esses narradores abordaram, não serádeles que poderemos esperar as maioresinovações, a não ser nas atrevidas conjecturase hipóteses geológicas que alguns formularampara resolver problemas como a localização doparaíso terrestre, o dilúvio ou o povoamentoamericano, interessavam vivamente aos homens

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da época. O exame que se tem realizado daobra do padre Acosta e de outros autores apropósito do povoamento americano me isentade tratar mais amplamente o tema nestaconferência.

A Resolução de Problemas Práticos

Em uma enumeração dos fatores quepuderam incidir no desenvolvimento da reflexão“geográfica”, às notícias sobre as terrasnovamente descobertas, que permitiramampliar a imagem da natureza terrestre e oaparecimento de novos problemas científicos,uniu-se uma série de estímulos que procedemdos esforços para resolver diversasnecessidades práticas.

Neste sentido, devem ser citados aquios trabalhos sobre a prospecção de fontes esobre o problema da circulação fluvial; osestudos sobre as águas termais e sobrebalneários, que interessavam amplamente porsua aplicação médica, e que podiam dar origema indagações sobre a origem de ditas águas, aconstrução de canais, portos e fortificações, queincidentalmente podiam provocar reflexõessobre a dureza dos materiais rochosos ou aevolução das linhas de costa. Outra indagaçãoé com a preocupação pelo aumento dosrendimentos agrícolas, que se introduz noslivros de agricultura, como, por exemplo, a Obrade Agricultura, de Gabriel Alonso de Herrera(1513), a discussão sobre os sinais para seencontrar água, a qualidade das terras, assimcomo os preceitos para conhecer sua fertilidadeou infertilidade ou para melhorá-las casonecessário.

Porém, sobretudo, há que citar,necessariamente, as investigações sobremineralogia e metalurgia, enquadradas entre amineralogia, a geologia, a alquimia e a químicamoderna. Nelas se encontra, sem dúvida, umaimportante linha de reflexão sobre a estruturada terra e a constituição de seus elementos. Oproblema da geração dos metais, a busca deprocedimentos para descobrir as jazidas desses

minérios e a exploração de novos métodos parao benefício desses metais deram origem aogrupo mais importante de obras de caráterpuramente “geológico” que podem ser citadosdo século XVI.

Na Espanha, o florescimento desse tipode obras foi abundante e tem sido devidamentelevantada, já que, na realidade, o aspecto dahistória de geologia hispânica atraiu até agoraa maior atenção dos especialistas (Bargalló,1955; Vernet, 1975, 100 ss; López Piñero, 1979,259 ss). Por sua importância econômica epolítica, as riquezas dos metais preciosos doNovo Mundo e as minas de mercúrio espanholase americanas foram objeto de numerososestudos, aos que se uniram outros de carátergeral, de títulos bem significativos: “Relacíon etestimônio del nuevo benefício de metais” (1587?)de Carlos Corso; “Del benefício de las minas deazougue” (1588) de Bachiller Garci-Sanchez;“Benefício común o Directorio de beneficiadores demetais e Arte de ellos” (1638) do licenciadoFernando Montesinos; “Arte de los metales, emque se enseña el verdadeiro benefício de los deoro e plata por azougue, el modo de fundirlos todose como se han de refinar e apartar unos de otros”(Madrid, 1640) de Álvaro Alonso Barba; “Informedel nuevo benefício que se há dado a los metalesordinários de plata por azougue, e philosophianatural a que se reduce el método y arte de laminéria” (México, 1643) de Luis Berrio deMontalvo; “Tratado de la cualidade manifesta evirtud del azougue, lhamado comúnmente elMercúrio, y por otro nombre el Argentum vivum”(México, 1649) de Hernando de Becerra; “De lageneracíon de los metales e sus compuestos”(1661) de Juan Ramón de Valdárrago; “Notíciasdel mineraje de Índias e de las minas que hay enEspana” (1673?) de Fernando de Contreras;“Forma del nuevo benefício de los minerales deplata” (Lima, 1676) de Juan del Corro Segarra;“Directorio del benefício del azougue de metalesde plata” (1690) de Juan de Alcalá y Amurrio.Estes trabalhos, enumerados a partir da relaçãoque fez Menéndez Pelayo em “La CiênciaEspañola” (III, 240 ss) são alguns dos quepublicaram ao longo dos séculos XVI e XVII eprovam a continuidade e riqueza desta tradição

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minero-metalúrgica no mundo hispânico.

Uma boa parte desta produção técnico-científica pode ser valorizada como expoente deum novo tipo de investigação, próprio darevolução científica do século XVII, pelacapacidade de observação de que dão mostraseus autores; pela experimentação repetitiva,precisa e controlada; pela crítica da erudiçãoinútil; pela preocupação pelos resultados eviabilidade técnica dos procedimentossugeridos. Mas apesar da importância de todosesses trabalhos e dos avanços técnicos a quederam lugar, não é deles de onde surgiu umamelhor compreensão da estrutura terrestre nemo que permitiu descobrir a história da Terra. Seusautores eram técnicos práticos, que usavammétodos empíricos, sem uma base teórica clara,e que em ocasiões estavam relacionados comuma tradição alquímico-hermética, de grandeinfluência no século XVII. Podiam aceitar, comofaz o mesmo Alonso Barba, uma das figuras maisimportantes desta linha de trabalhos, aexistência de uma energia ativa que gera asrochas, a presença de seivas petrificantes, ainfluência dos raios de sol na geração dosmetais, a formação de filões como resultado daforça combinada de um calor interno e de outroastral ou exterior. Em algum caso, partindo depremissas alquímicas, as idéias sobre atransmutação dos metais podiam guiar algumde seus experimentos, ainda que mostravamatuar como homens de uma nova época, ao sercapazes de reconhecer, como afirma o mesmoBarba, que os resultados obtidos se aportavamdos pressupostos iniciais. (Capel, 1980, 10 ss.)

Não há dúvida de que, em conjunto,todos esses trabalhos que supunham avançostécnicos concretos permitiram avançar noconhecimento da natureza terrestre e abriamassim o caminho até o desenvolvimento damoderna geologia. Mas em sua concepção globalacerca da Terra, estas obras podiam ser muitopouco renovadoras, e seguiam mantendo, atéo avançado século XVII, idéias aristotélicas oualquímico-herméticas. Assim ocorre, porexemplo, na obra citada de Berrio de Montalvo,alto funcionário no México e doutor pela sua

universidade, na qual aceita grande número deprincípios alquímicos, assim como a influênciados astros na geração dos metais, idéia estaque já havíamos encontrado em López deVelasco durante o século anterior.

Desde muitos pontos de vista, essasobras técnicas não diferiam muito dasconcepções aceitas por outros autores deformação humanística e que dedicavam eruditashipóteses ao problema das riquezas mineraisda Península. No “Tratado curioso: Descripcíonbreve de las antiguas minas de Espana” (1624)redigido pelo nobre Alonso Carrillo Laso, obrabem típica da erudição humanista, o autorconsidera que a maior parte da Espanha é“monstruosa, estéril e delicada, de ares muitopuros”, meio que considera ideal “para que omovimento, e luz dos céus e das estrelas atuem,e natureza própria para os metais” (Ed. 1770,pág. 199). Sua concepção sobre a geração dosmetais cai bem em manifesto neste parágrafo,que cremos valer a pena reproduzir, já que seconstitui a única obra geral publicada sobre amineração espanhola durante o século XVIII:

De tudo o que havemos dito se observa, quedonde houve minas antigamente, podem serencontradas agora; porque a mesmadisposição tem a terra, que as produziu. Terraque recebeu o ponto de sua formação, dadoque se há uma mesma disposição se dará umasemelhantíssima obra, pelas causasuniversais do movimento e da luz. Pois,recebendo a influência da luz, segundo omodo de que se recebe, sempre se geraráouro de onde houve natural disposição, demodo que, introduzido o Sol, forme os metais.Assim nas circunstâncias do que há,prevendo-as e sazonando-as, nunca estáociosa a natureza, e digerindo os metais, jáque também há lugares onde não os existem,atua em algumas partes com mais dificuldade,mostrando-se o meio a presença de certosraios em vista, determinando, ou volvendoesses mesmos raios propícios à formação dosmetais, ainda que seja depois de muitos anos(Carrillo Laso, 1624; ed. de 1770 junto com aobra de Álvaro Alonso Barba, pág. 225-226).

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A tese da influência astral na geraçãode metais e minerais se manteve durante umaboa parte do século XVI, combinando-se comuma teoria alquímica das reações, e com certosaspectos da concepção aristocrática. Todavia,nas décadas finais do século XVI, se podiaescrever que nesse processo os astros e oscéus concorriam como princípio universal eremoto, o fogo subterrâneo como causa próximae presente, os vapores sulfúreos, salinos e demercúrio como causas materiais, sendo a causafinal a utilidade dos metais e minerais para asnecessidades do gênero humano. Omecanismo, através do qual se produzia ageração dos metais e minerais, pôde ser escritoassim, como o que realiza um geógrafo espanholjá citado anteriormente:

Na massa deste globo terrestre estáconcentrado um jogo harmônico, queparticipando das elementares qualidades ereduzido a vapores com relação à força dosfogos subterrâneos, e distribuído pelas veiase cavidades da terra, de onde haja matrizproporcionada, ali se recolhe e fica por longotempo, até converter-se em aquele metal maispróprio e adequado ao receptáculo e àsglebas terrestres de onde se extrai, queoriginam tanta variedade de pedras e metais,cujas formas se reputam por substâncias,distintas entre si especificamente. Do que serefere, não é levada em consideração amistura dos Elementos; o frio, o calor, aumidade nem a falta desta (que destamaneira se distinguiriam entre siacidentalmente), mas daquele conjunto devapores, que lhes originou, que segundo ascombinações de seus elementos, são tantasas suas variações (José Vicente del Olmo:Nueva descripcíon del Orbe de la Tierra, 1681,págs. 35-36).

As obras gerais se seguiram mantendoconcepções tradicionais sobre a geração dosminerais. Pode-se indicar que os trabalhos dostécnicos não eram utilizados pelos eruditos daépoca, mas também que as idéias dominantessobre este tema não sofreram modificaçõesimportantes ao longo do século XVII em nosso

país. Em qualquer caso, necessitam-se novasinvestigações que, na direção das já iniciadaspor Eugênio Portela, mostrem a relação entre,por um lado, o trabalho empírico no campo damineração e metalurgia e, por outro, aelaboração de uma teoria geral sobre as jazidasminerais e, mais amplamente, sobre aconstituição da Terra.

A impressão que se têm é que ostrabalhos empíricos realizados pelos técnicosespecializados necessitavam de concepçõesglobais prévias para poderem ser interpretados.Em particular, isto é, sem dúvida, assim no quese referem às observações, que davam contadas mudanças na superfície terrestre, elasteriam que vencer previamente um fundamentalobstáculo: a visão da terra que se originava danarração do Gênesis . Voltaremos agoranovamente a ela nossa atenção.

III- O Obstáculo Genesis e o Processo deRacionalização da Bíblia

A interpretação adequada dasobservações empíricas que se iam realizandosobre a natureza terrestre e a possibilidade deelevar-se a uma visão global de sua estruturae de sua evolução chocava-se com o obstáculofundamental da narração bíblica da criação. Odesenvolvimento da moderna geologia científicapromoveu um indispensável debate que permitiua passagem de uma concepção antropocêntrica,teleológica e providencialista à outra que aceitaa idéia de mudança e evolução, que nega ofinalismo e que aceita as leis da física paraexplicar a história e a estrutura da Terra. E essedebate ia unido, em boa parte, ao processo deracionalização do relato bíblico.

Durante a idade moderna, a ideologia, ateleologia e a ciência natural estavam, todavia,intimamente relacionadas, e as idéias de Deus,de seus atributos e perfeições impunhamevidentes questões na concepção científica domundo natural. Sem dúvida, ao longo dessesséculos, o mundo da ciência e o da fé iam seseparando e o estudo deste divórcio, assimcomo o processo de racionalização crescente da

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visão do mundo, é um dos temas maisinteressantes da evolução do pensamentocientífico moderno. Mas se trata de um processoque se efetuou lentamente e de forma laboriosa,e que foi, por vez, muito desgastante para aconsciência de muitos cientistas que eramprofundamente crentes e que viam aparecer àsvezes sérias dificuldades para integrar os dadosda observação empírica no relato oferecido pelaEscritura sobre a História da Terra.

Desde logo, o processo pôde avançarcom ritmo distinto nos países europeus a partirdo momento em que a unidade da Cristandadeocidental se viu ameaçada pela ReformaProtestante. O êxito espetacular da ciênciamoderna nos países afetados pela Reformapodia levar a pensar que existe uma relaçãodireta do sucesso científico, contrapondo-seuma teologia protestante que favorece areflexão científica e outra católica que atuaria,com a Contra-Reforma, em sentido oposto. Oproblema é, sem dúvida, mais complexo porqueimediatamente seriam introduzidas uma grandediversidade de correntes ideológicas nocristianismo reformado contra as oposiçõesteleológicas que existiram por debaixo daaparente uniformidade, no âmbito da contra-reforma eclesiástica, típica do pensamentoreformado, favorecendo, sem dúvida, a reflexãocientífica. Porém, desde logo, as crençasreligiosas seguiam presentes, e em alguns casoso peso da narração bíblica podia ser ainda muitomaior que nos países católicos, de onde sempreestava aberta a possibilidade de umainterpretação alegórica por parte da Igreja. Aopinião de Francis Bacon sobre a nefasta mesclade teologia e filosofia natural e sobre os efeitosperniciosos que teria na ciência a “atençãoreligiosa cega e imoderada” (Novum Organum,1620, LXII e LXXXIX) não era, sem dúvida,compartilhada por todos no mundo reformulado,como mostram muitos episódios da históriaintelectual e política desses países.

No mundo católico da Contra-Reforma,a unidade e a coesão estavam asseguradas pelaautoridade de Roma. Porém, o monopólio eramais aparente que real e era percebido somente

ao inimigo exterior. Debaixo desse aparentepoder existiam tensões agudas e confrontosque refletiam, além de uma luta pelo poder,tradições teleológicas bem contrapostas e cujasraízes podiam remontar a desde os primeirosséculos do cristianismo. Correntes que haviamtido grande vigor no passado, como tambémcorrentes místicas e iluminadas, podiam ficaroficialmente banidas, mas permanecer ativas nailegalidade, com uma grande força que davalugar, em ocasiões extremas, a processosclamorosos. Porém, sobretudo, as distintasordens religiosas podiam ter, desenvolvidas,tradições teleológicas diferenciadas, e nestesentido parece importante a contraposiçãoentre essas ordens que elaboraram sua teologiaseguindo a tradição platônica, através dainfluência de Santo Agostinho (agostinos,franciscanos e capuchinhos) e as quereceberam um impacto decisivo do pensamentode Aristóteles, tal como foi integrado nocristianismo do século XIII (essencialmente osdominicanos).

No mundo católico da Contra-Reforma,a interpretação do relato bíblico não era semprehomogênea e sem polêmicas. Não podiam serdesconsiderados quinze séculos de debateteológico, que havia dado lugar a uma ricaliteratura de caráter exegético, em particularreferente ao relato da Criação. As perguntasque eram feitas eram numerosas, desde a razãopelo qual Deus havia criado o mundo em seisdias até mesmo o sentido pela seqüência. Estassão as questões que abordam o que se conhecehoje como literatura hexameral, por referir-seaos seis dias da Criação. Essa hermenêuticaproduzia resultados muito diversos. Às vezesconduzia à interpretação natural que explicavaas distintas fases da Criação através defenômenos naturais conhecidos. Noutras seapoiava em alguma teoria místico-matemáticados números, e considerava a ordem numéricados elementos sucessivamente criados nos seisdias, para obter daí uma interpretação de seusentido: como afirmou Filón de Alexandria noséculo I, combinando a filosofia religiosa doneopitagorismo e a exegese judaica.

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Também podia realizar-se uma analogiaentre a Criação e a atividade do artesão querealiza sua obra lentamente, e aproveitar aocasião para moralizar sobre o valor do trabalhobem feito e sobre a necessidade de imitar oCriador.

Apoiando-se no texto da Escritura, osprimeiros Padres da Igreja afirmaram, também,claramente, que o homem pode reconhecer oCriador no mundo. Esta posição conduzia,necessariamente, a respeitar e observar anatureza, a qual era considerada como um livrocuja leitura elevava à Deus. A metáfora do livroaparece desde os primeiros tempos docristianismo, e foi desenvolvida, entre outros,por São João Crisóstomo e Santo Agostinho, porSão João Damasceno, no século VII, e por SãoIsidoro de Sevilha. O grande livro da revelaçãodivina, a Bíblia, podia ser assim complementadopor outro livro existente, o da natureza. Semdúvida, esta não revelava tudo sobre Deus, queé um ser transcendente, mas por sua vez, podiaser lida por todos os homens, incluso os infiéis,com somente a sua própria razão. Através dacontemplação e estudo da natureza, o cristãopodia encontrar um caminho até a divindade eseus atributos, fortalecer sua fé mediante acontemplação das obras de Deus.

A larga tradição de especulaçãoteológica no meio do cristianismo explica que,aceitando basicamente a validez do relatobíblico, os distintos autores puderam elevar-sea interpretações racionais sobre algumasquestões do mesmo, as quais podiam dar lugara resultados combinadamente diferentes, degrande interesse, no que aqui nos importa paraa história da geologia. A negação do caos originale a afirmação de que Deus não faz nada emvão, nem tem necessidade de mudar seusplanos, conduz a aceitar que a Terra havia sidocriada de uma vez, com todos os atributosnecessários para seu funcionamento e para avida do homem. De todas as formas, apesar dadeclaração de princípios sobre a imutabilidadeda natureza terrestre, a descrição dos primeirostempos da criação podia fazer avançar algunsautores a suposições que implicavam, de

alguma maneira, a aceitação da mudança nasuperfície terrestre.

O intento da racionalização e explicaçãonatural da narração do Gênesis foi realizadoentre os séculos XVII e XVIII, com a participaçãode diversos eruditos espanhóis,semelhantemente ao que contemporaneamenteempreenderam outros intelectuais europeus,aos quais aludiremos mais adiante nesta mesmaobra, e têm em comum com eles aparticularidade de que eram clérigos, literatos,historiadores e humanistas. Apesar de suaescassa consistência científica, que autoresmais preparados cientificamente se apressarama pôr em evidência, essas interpretaçõeseruditas apresentam um grande interesse, jáque contribuíram de forma importante aquestionar o relato bíblico e a difundir entre oseuropeus a idéia de que a Terra têm uma históriaque é diferentemente narrada na Escritura.

Isto representava uma grande novidade.Essa idéia revolucionária, do mesmo modo queo do retorno cíclico ou da eternidade do mundo,era inaceitável para o pensamento cristão. Parao cristão a natureza era essencialmente estáticae imutável, tal como se deduz na Bíblia. O que aIdade Moderna assinala a isso é odescobrimento da história da Terra. Ao longodo século XVII os europeus vão descobrindoque a natureza tem uma história, e que essahistória não é somente narrada na Bíblia, mastambém que aparece nos vestígios dos fósseise na disposição das rochas. Mas entre essasidéias, o relato bíblico e a história natural, nãopodiam existir discordâncias (Rossi, 1979), e porisso, o esforço inicial de muitos cientistasdurante esse período dirige-se a interpretar aEscritura de modo racional para fins naturais,de forma que fosse possível admitir asconclusões e os resultados obtidos a partir daobservação natural. Esta interpretação eraparticularmente necessária naqueles pontosacerca dos quais a Sagrada Escritura nãofacilitava respostas suficientes. Nem todosaceitavam a necessidade desta racionalização,que para alguns era altamente perigosa.

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Esta atitude de negar as intenções deinterpretar em fins naturais o que é narrado naBíblia apareceu tanto em países católicos comonos protestantes, e era defendida tanto porpessoas de comportamento tradicional oureacionário, como por cientistas de vanguardae crentes que se esforçavam por separarcuidadosamente os campos da fé e da ciência.Em qualquer caso, as discussões sobre tudoisso estiveram profundamente influídas poridéias teológicas e filosóficas de caráter geral,mas guiadas pela observação direta danatureza.

IV - Pensando em Mundos Imaginários

Apesar de todas as limitações derivadasda narração do relato bíblico da Criação, noséculo XVII pôde-se desenvolver uma reflexãocientífica que ofereceu alternativa nova eimaginativa à narração do Gênesis. Algumasdelas se encontram em relação com as evoluçõesmais significativas da revolução científica:renunciam à razão teológica e conduzem aaplicar os princípios da mecânica ao estudo daTerra e da unificação da física celeste e terrestre.A obra de Descartes constitui, neste sentido,um fato particularmente decisivo. Outras, aocontrário, se mantêm próximas ao relato bíblico,mas se esforçam em realizar uma interpretaçãoracional do mesmo tendo em conta os princípiosda nova física e da história natural. Um terceirogrupo, de mentalidade tipicamente humanista,encontra dificuldades graves nos textossagrados e se esforça por propor interpretaçõesnovas e imaginativas dos mesmos. Em qualquercaso, ao longo do século XVII, os europeuspuderam dispor de novas hipóteses queapresentavam uma interpretação global daestrutura e da evolução da Terra. Aludiremosàs diversas linhas de reflexão.

O Sistema de Descartes

A ousadia intelectual de Descartes deveser devidamente valorizada também nestecampo do conhecimento científico. Em seu “Traité

du Monde”, publicado em 1631 e resumidoparcialmente em outras obras posteriores,Descartes se atreve a imaginar, usando as leisda física, a forma como Deus havia criado omundo, e os aspectos necessários daconfiguração que chegou a ter.

Com o fim de expor suas opiniões commaior liberdade e para não ter que refutar asidéias comumentemente admitidas sobre a Terrae o Universo, Descartes imaginava o queocorreria se Deus decidisse criar um mundonovo reunindo nos espaços imagináriossuficiente matéria para compô-lo e, depois dediscutir a forma diversa e sem ordem dasdiversas partes dessa matéria até formar oconfuso caos original que estava na origem dacriação, decidira deixar criar a natureza deacordo com as leis que o mesmo haviaestabelecido.

O resultado desta decisão havia de serum mundo como realmente é, submetido a leisda natureza que podem ser provadas atravésda idéia da infinita perfeição divina, cuja validezé tão universal que “ainda que Deus houvessecriado vários mundos, não poderia originar-se umem que não se concretizasse”.

Descartes mostra como nessa criação “amaior parte da matéria deste caos devia dispor-see relacionar-se em virtude de tais leis de umaforma tal que era similar a de nossos céus; comoalguma das partes desta matéria devia comporuma terra, alguns planetas e constelações”. Tudoo que se deduzia de seu modelo, atuando deacordo com as leis da física, se assemelhava aoque se podia observar no mundo real existente.Enquanto ao nosso planeta, explica que “todasas partes da matéria tenderia exatamente docentro da Terra”, sem que para isso fossenecessário, contrariando a opinião deAristóteles, que Deus houvesse conferido àmatéria nenhuma propriedade de gravidade. Emsua teorização, a Terra adquire uma formaesférica compacta e a existência de água e dear sobre sua superfície deve dar lugarnecessariamente a um fluxo e refluxo“semelhante em todas as circunstâncias ao que

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se observa em nossos mares”, sendo produzida,portanto, também uma certa corrente desteselementos do oriente ao ocidente, similar ao quese observa nos trópicos. Da mesma forma,nessa criação realizada de acordo com as leisda física, “as montanhas, os mares, as fontes eos rios podem formar-se naturalmente”, os metaispodem se formar no interior da terra, por efeitodas forças internas e não como resultado deinfluências siderais, e os compostos seproduzem a partir da mesma substância contidana Terra. Deus havia criado o mundo com umaforça que era a mesma com que o conservava:“portanto, ainda que se houvesse dado, no início,outra forma que a do caos, havendo estabelecidoas leis da natureza e prestando-lhe seu curso paraa criação tal como é habitual, pode opinar-se, semdistorcer o milagre da criação, que todas as coisasque são puramente materiais haviam podido como tempo chegar a ser tal com agora as vemos” (ascitações procedem do Discurso del Método, 1637,5a parte).

Estamos aqui muito distantes do relatodo Gênesis, e não existe neste trabalho a menorpreocupação por partir deste relato paracompreender a formação de nosso planeta.Como escreveu um contemporâneo seu queconheceu pessoalmente, Burman, Descartes“havia renunciado ao propósito de mostrar comosua filosofia era compatível com a forma em quese descreve a criação no Gênesis”, mais ainda,não queria dar explicações “sobre acompatibilidade entre o relato bíblico e a física” ehavia “decidido deixar esse tema aos teólogos”,considerando que a narração da Escritura erade natureza metafórica. Na obra de Descartesse expressa de maneira decisiva a separaçãoentre o mundo da física, próprio da reflexãocientífica, e o da religião, próprio das crenças edas interpretações teológicas; sendo que anarração da criação do mundo que dava aoGênesis pertencia a esse campo alegóricoreservado aos teólogos.

Porém não pôde escapar totalmente aantigas idéias sobre a estrutura interior, como,por exemplo, as que, desde tempos atrás,afirmavam a existência de vastos depósitos de

água sobre os quais flutuavam os continentes,ou as que aceitavam a conexão das águasterrestres e marinhas através de uma circulaçãogeral que era semelhante à dos organismosvivos. Tampouco pôde eludir a narração doGênesis, que para os homens do século XVIIrefletia, ainda mais da palavra de Deus, o relatomais confiável sobre a história da Terra. Odilúvio, por exemplo, não desapareceu de suasexplicações.

Efetivamente, o globo terrestre havia-seformado segundo as leis da física e,seguramente, havia sido primitivamente denatureza semelhante à do Sol, sem diferir destemais do que em seu menor tamanho (Descartes:“Lês príncipes de la Philosophie”, IV, p. 44 e 45).Posteriormente, se produziu um esfriamentoque se iniciou nas capas superficiais e avançouaté o interior, de onde se manteria o estado decalor e fusão da estrela primitiva. Na superfícieapareceriam várias capas cada vez maisrecentes e depósitos interiores de água queformariam uma espécie de oceano interior sobreos quais flutuavam as crostas mais superficiais.No processo de resfriamento, a crosta superficialsofreu contrações e deslocamentos queformaram o relevo dos continentes e quepermitiram a saída das águas interiores.Fenômenos como o dilúvio poderiam assim serexplicados fisicamente, sem necessidade deacudir a um milagre e sem contradizer as leisda natureza.

A obra de Descartes representa, semdúvida, um mito essencial ao caminho à modernageologia. A partir dele existe um sistemaracional, apoiado pelas leis da física, que permiteexplicar a formação da Terra. Supõe umaalternativa científica ao relato da formação domundo facilitado pelo Gênesis. Descartes criticatambém o finalismo e não aceita que tudo haviasido criado por Deus para uso exclusivo dohomem.

Porém a possibilidade desta reflexãolivre e imaginativa sobre a Terra foi negada nospaíses católicos por causa da pena imposta aGalileu em 1632. Descartes decidiu então não

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publicar seu “Traité du monde”, em quedesenvolvia amplamente suas idéias, e selimitou a resumir alguns pontos de suas obrasposteriores. Porém nem sequer essaautocensura e sua indubitável ortodoxia católicaforam suficientes: em 1663 Roma colocou seusescritos no Índice. Os problemas nos paísesprotestantes não faltaram, e na Holanda, quede fato era sua segunda pátria e de onde tinhagrande número de amigos e admiradores, suafilosofia foi proibida em Utrecht (1642), emLeyden (1648) e, finalmente, nos Países Baixos(1656).

A pena de Descartes, como a de Galileu,significava, sem dúvida, uma grave advertência,que não podia passar despercebida nos paísescatólicos e que afetaria, de alguma maneira, alivre reflexão sobre a formação e estrutura daTerra. Sem dúvida, ele tinha que ser cuidadosona reflexão científica sobre estes temas e eraparticularmente perigoso postular universosformados a partir de um caos original esubmetidos a leis naturais estabelecidas porDeus e que nem mesmo Ele poderia modificar.O relato do Gênesis se impunha fortementecomo ponto de partida para explicar a históriada Terra e a ele deveriam adequar-se todas asinterpretações que se realizavam.

A Nova Ciência e o Estudo da Terra

A condenação imposta a Galileu e asobservações ante a obra de Descartes nãopodiam evitar que a nova forma de raciocinar,típica da revolução científica, estivessepresente, também, na reflexão sobre anatureza terrestre e sobre as eventuaismudanças que podia haver-se produzido nela.

Nos países afetados pela Reforma, amaior tolerância doutrinal permitia, às vezes,atrevidas tomadas de posição na linha adotadapor Francis Bacon sobre a necessidade deseparar a ciência e as crenças religiosas, esobre a necessidade de limitar a reflexãocientífica a tudo aquilo que pudesse serobservado e experimentado. A figura do

geógrafo Bernhard Varênio é, neste sentido,particularmente significativa.

Em sua “Geographia generalis”, publicadaem Amsterdam em 1650, Varênio declaradecididamente que “a geografia não se preocupacom as opiniões dos antigos nem tem necessidadede recorrer aos milagres para explicar aspropriedades da Terra” (1650, cap. VII, prop. III)Opondo-se aos que imaginavam sistemasespeculativos, e, neste sentido, tambémexplicitamente a Descartes, defende que a faltade observações impossibilita a asseguração daconstituição interior de nosso planeta (1650, I,VII, prop. V). Na obra de Varênio não existemecos da racionalização teológica ouespeculativa, já que somente aceita a explicaçãoracional e a argumentação do fato observado.Baseado, portanto, nas suas observações, foicapaz de enumerar as distintas camadas daTerra até uma profundidade de 232 pés,aproveitando uma perfuração realizada emAmsterdam (1650, cap. VII, prop. VII), mas seabsteve de extrapolar esses resultados e dededuzir hipóteses sobre os estratos maisprofundos não conhecidos. Por último, comocaracterística também típica do novo espíritocientífico, está também ausente de qualquerinterpretação finalista sobre as característicasdo relevo ou da condensação das nuvens nasmontanhas, mas não pensa que o Criador tenhacolocado estas para produzir tal fenômeno.

Este mesmo espírito científico, quevaloriza a concisão e a claridade e que renegaa erudição e a autoridade dos clássicos, podiaser desenvolvido nos países católicos. A obrado finlandês Nicollas Steensen, ou Stenon, ébem significativa. Em seu “De sólido intra solidumnaturaliter contento” (1669), publicada emFlorença, dedicada ao duque de ToscanaFernando II e publicada com todas as licençasepiscopais e do Santo Ofício, Stenon era outrorepresentante da nova ciência e dá provas deuma grande ousadia intelectual. Sua visão daTerra era quase que completamente moderna,exceto naquelas partes que tocavam aosobstáculos fundamentais derivados do relatobíblico: a limitada cronologia da história terrestre

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e a existência do Dilúvio.

Stenon se opõe à idéia de que todas asmontanhas existiram desde o princípio domundo e possui uma concepção de relevoterrestre extremamente dinâmica: asmontanhas eram formadas por estratos e estespodem elevar-se violentamente como resultadoda combustão de gases ou do vulcanismo, efundir-se por escavação dos estratos inferiores.Neste último caso podem ser adotadasdiferentes posições em razão da diversidade dascavidades subterrâneas: reconheceuclaramente o processo de sedimentação aoafirmar que “os estratos da Terra depositam-sepela ação de um fluído” (Stenon, 1669, 26) ededicou essencialmente sua obra a estudar “ossólidos naturalmente contidos dentro de outrossólidos”, ou seja, os cristais e as petrificaçõesde restos orgânicos que podem observar-se nasformações rochosas, sendo neste sentido ocriador da cristalografia.

A alteração na posição dos estratos é aprincipal causa da formação dos montes e écomprovada, segundo Stenon, por indíciosdiversos, tais como a existência de partesplanas nos cumes de algumas montanhas, afreqüente disposição paralela dos estratos queformam um relevo e a presença desta mesmanos contornos dos vales escavados pelos rios,e a inclinação que às vezes se observa emoutros países. Stenon baseou suas idéias emuma correta observação de diversasparticularidades da crosta terrestre e chegou areferir a existência de uma história da Terraatravés da racionalização indutiva originadapela disposição das rochas. Atreveu-se,inclusive, a aplicar suas teorias a um grandeespaço geográfico concreto, o da região deToscana, como forma de afronta que revela umnovo espírito científico, e a apresentar, sobre aevolução do relevo de dita região, um modelográfico que, por sua claridade e elegância, éplenamente moderno. O fundamento de suaaplicação está expresso com estas concisaspalavras: “de que forma as condições presentesde uma coisa descobrem a condição passada dedita coisa põe-se em manifesto em Toscana, na

qual as desigualdades da superfície observadas emsua aparência atual contêm nelas mesmas ossinais de diferentes mudanças” (Stenon, 1669,67). A figura reproduz dito esquema gráfico eas explicações do mesmo Stenon a cada umadas seis fases que distingue.

A teorização de Stenon énecessariamente catastrófica pela necessidadede aceitar a curta cronologia terrestre baseadana interpretação eclesiástica do relato bíblico.Por outra parte, apesar do rigoroso espíritocientífico e da ousadia intelectual de seu autor,dito relato estava sempre presente como marcode referência inevitável, e Stenon se vêobrigado a justificar sua atrevida interpretação:“porém para que ninguém se alarme da novidadede meu ponto de vista, sendo em poucas palavrasmostradas de acordo com a Natureza e com aEscritura”. Essa condição se refere a cada umadas seis fases de seu esquema evolutivo, e valea pena deter-se em seu raciocínio, porquemostra uma maneira de resolver um grandeproblema intelectual por parte de um grandecientista do século XVII.

Segundo Stenon, em alguns pontos anatureza e a Escritura apresentavam umaexplicita e plena concordância. Assim, comreferência à primeira fase, em que todas ascoisas estavam cobertas pela água, a existênciade um fluído aquoso em movimento, em queanimais e plantas não existiam e que o fluídoaquoso cobria todas as coisas, aparece noGênesis, e, de forma natural, é comprovadapelas camadas geológicas das montanhas, livresde todo material heterogêneo, ou seja, livresde petrificações orgânicas. Outras vezes anatureza é silenciosa; porém a Escritura dizcomo ocorre na segunda fase, em que a Terra éplana e seca. Sobre a terceira fase, nem aEscritura nem a natureza dizem muita coisa; anatureza somente diz que a sua diversidade égrande, já que a Escritura faz menção demontanhas no tempo da inundação; mas sobreo fato de que, no momento da formação de ditasmontanhas e sobre elas os vales, estes teriama mesma profundidade que tinham no começodo dilúvio, nada é relatado nem pela natureza

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nem pela Escritura.

Sobre a quarta fase, quando todas ascoisas tornaram-se novamente água, aconcordância entre a natureza e a Escrituraparece a princípio mais difícil, mas também podeser comprovada: a observação da naturezamostra que existem restos marinhos a váriascentenas de metros acima do nível atual dosoceanos, o que comprova que todas as áreasforam cobertas pelas águas por uma segundavez. Para Stenon, esta inundação se produziuno dilúvio, cuja explicação racional é facilmenteassimilada a partir da aceitação de váriossupostos: que a altura das montanhas que foiimersa pelo dilúvio não era necessariamente amesma que as montanhas atuais, que existemgrandes cavernas subterrâneas que podiamconter água, e que o fogo interior pôde aquecerestes reservatórios e produzir vapor queoriginaria grandes chuvas. De qualquer modo,os vales mais profundos se formariam, então,pela força da circulação das águas, como semostra pela existência de depósitos marinhosem muitos vales interiores afastados do mar.

A quinta fase, em que a terra estava denovo plana e seca após o dilúvio é provada pelanatureza e não negada pela Escritura, já queesta não diz nada sobre a história das naçõesem um período imediatamente posterior àinundação. Sabe-se que os rios enviam a cadaano grandes quantidades de sedimentos ao mar,e que algumas regiões litorâneas anteriormentepantanosas eram secas, como indica otestemunho de muitas histórias gregas. Porúltimo, a sexta fase é evidente aos sentidos.Stenon crê que ainda que não se conheça aevolução da Terra nos últimos 4.000 anos,resulta-se evidente que ela sofreu muitasmudanças, como se comprova, também,parcialmente, pelas notícias e relatos dosantigos.

Com Varênio e Stenon encontramos doiscientistas modernos reflexionando livrementesobre a estrutura e a história da Terra, afetadosde maneiras diversas, não somente no país emque escreviam, mas, sobretudo, pela índole de

sua obra, pelo relato bíblico. A obra deste últimoautor mostra que, apesar da condenação deGalileu e de Descartes, era possíveldesenvolver-se nos países católicos umareflexão sobre a Terra de acordo com o espíritocientífico dos novos tempos.

Cabe perguntar-se, agora, sobre quaispodiam ser os representantes desta linha depensamento na ciência espanhola do séculoXVII. A resposta é, no momento, difícil e exige oinício de investigações sistemáticas sobre ahistória da geologia hispânica deste período. Nasegunda metade desse século, deve-se realizaressa atitude na obra de técnicos que, de algummodo, se vêm obrigados a confrontar-se com aquestão do relevo terrestre, tais como osengenheiros, mineiros, alguns naturalistas,navegadores, geógrafos, e, desde os anos de1680, os membros do movimento inovador queadotam claramente o espírito científico dosnovos tempos, ainda mais no que se refere àssuas idéias sobre a Terra e sistemas imaginadosexternamente, superando a observação própriae original.

Uma Terra Envelhecida por Iniqüidades

As obras dos autores antes citados(Descartes, Varênio e Stenon) mostraram aadiantada aplicação dos princípios da revoluçãocientífica para com a reflexão sobre a Terra,ainda que os obstáculos que opunham a ditareflexão estivessem voltados à validade dorelato bíblico. Na realidade, a importância quepara os europeus do século XVII tinha o sistemade crenças, internamente aceita ouexternamente imposto, determina que osdebates teológicos que tendiam a interpretartal relato tenham uma importância extrema parao desenvolvimento das idéias geológicas.

Dito debate involveu ativamente nãosomente os eclesiásticos, mas também ahumanistas de interesses muito diversos(filósofos, historiadores, juristas, entre outros),assim como a muitos dos mais importantescientistas do momento. As questões eram muito

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numerosas. No caminho até a geologia científica,o debate puramente teológico, as discussõesfilosóficas e históricas e os resultados daobservação empírica aparecemindissoluvelmente associados. Os dadoseruditos ou empíricos reunidos acerca da erosãodo relevo ou do transporte e depósitos desedimentos, assim como a descoberta de restosorgânicos petrificados não podiam sercorretamente interpretados até que existissemnovos e adequados marcos conceituais. Estasquestões foram-se perfilando através dasdisputas entre os conservadores e modernos,o lugar do inferno e do paraíso terrestre, osignificado e o alcance do castigo de Deus aoshomens, o mecanismo através do qual seproduziu o dilúvio e sua extensão ao continenteamericano, a existência de homens gigantes oumuito velhos no passado, a origem dos índiosamericanos ou o conceito de providência e apossibilidade de milagre em um mundo regidopelas leis naturais.

Alguns pontos de vista deste complexodebate, e, em particular, sobre o problema dodilúvio e de seus efeitos sobre a terra pré-diluvial adquiriram uma importância decisiva nahistória da geologia, e se relacionam ademaiscom outros debates intelectuais da época, comopor exemplo, no que se refere ao confrontoentre uma concepção do mundo otimista e outrapessimista.

No século XVII, a tese sobre a Terra emdecadência começou a ter um grande númerode adeptos a partir de pressupostos teológicossobre o significado do pecado dos homens esobre o alcance da misericórdia divina. O centroda polêmica estava na interpretação dosignificado do castigo que Deus havia impostoaos homens pelo pecado dos sucessores deAdão e Eva. Que o dilúvio havia sido enviadopara exterminá-los e que a misericórdia divinasomente havia salvado a Noé e a sua família ea um casal de cada espécie, era indubitável apartir do texto do Gênesis . Porém, cabiaperguntar-se se a mesma terra havia sidotambém alcançada pelo castigo.

Os homens do Renascimento iniciaram aperguntar-se sobre a inundação e seus efeitosreais na superfície terrestre, e o tema seguiupreocupando no século XVII. Antes, apareceu oproblema de sua universalidade e, em particular,o de sua extensão na América, além dos efeitosque se havia produzido no relevo. E é daqui deonde surgiu a necessidade de elaborarinterpretações racionais que, apoiando-se nosdados que então possuíam, deram conta destesefeitos, abrindo uma importante brecha para aaceitação da idéia de dinâmica da superfícieterrestre.

Esse debate científico-teológico seproduziu tanto nos países protestantes comonos católicos, ainda que nestes últimos o debatese fizesse com maiores dificuldades, quando em1686 se condenou as leis de Vosio sobre aespacialidade restringida do dilúvio. Porém naEspanha, em meados do século XVII, o debatepôde-se realizar, surgindo uma teseverdadeiramente revolucionária, que teriagrande impacto nos anos seguintes. Refiro-meà tese do humanista José Antônio González deSalas, exposta, primeiramente, em algunscomentários inseridos em sua tradução do“Compêndio Geográphico” de Pomponio Mela(1644), difundidos mais tarde em toda Europaatravés de sua obra “De duplici viventium Terradissertatio paradoxica” (Leyden, 1650).

O autor acha estranho um texto do livroIV de Esdras, em se que diz que as águas queexistiam no princípio da Criação se retiraram noterceiro dia para ficar em um sétimo da superfíciedo Globo, deixando descobertas e secas asoutras seis partes. A citação de Esdras nãohavia sido um descobrimento original doespanhol. Desde o Renascimento, estapaisagem, que logo seria considerada de umlivro sagrado, era de um lugar comum da Europa,porém, seu interesse não diminui por isto. Estetexto contradizia claramente a tese deAristóteles, que aceitava que o espaço cobertopelas águas era dez vezes maior que o da Terra.O descobrimento da América haviadesvalorizado a opinião de Aristóteles, mas, detodas as maneiras, as proporções terra/água

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não eram as que apontavam o texto bíblico. Anecessidade de aceitar como indubitável apaisagem da Escritura afetava toda a reflexãosobre a estrutura superficial do Globo terrestreou as idéias sobre a história da Terra. Em efeito,somente havia duas soluções: ou existiam terrasdesconhecidas de grande extensão, ou aconfiguração das terras e dos mares haviaexperimentado mudanças. A primeira hipóteseconduzia a aceitar a existência de um grandecontinente não conhecido no globo nohemisfério sul. Desta maneira, a partir do textobíblico, poderia-se concluir a existência de umimenso continente austral, ainda por descobrir.Foi a hipótese apoiada por numerososnaturalistas e geógrafos, que levava no séculoXVIII a Buffon defender a existência desta TerraIncógnita.

A segunda hipótese obrigava areinterpretação da história da Terra, aceitandoa existência de mudanças importantes naconfiguração da superfície. O caminho queseguiu o erudito espanhol em 1644 e que oconduziu a elaborar sua tese sobre as diferençasentre a terra pré e pós-diluvial.

Uma série de argumentos permite aGonzález de Sala concluir que nas vezes queDeus quis castigar os homens “sempre estendeusua indignação também às habitações humanas,procedendo assim de modo tão absoluto que nãodeixava nem mesmo um mínimo vestígio, nemum indício leve, de como houvesse sido o passadohumano”.

Desta maneira castigou Deus no dilúvioos homens e a terra. “Os homens que padeceramentão, não se recuperaram para que se povoasseo Mundo: outros de raízes diferentes se procriaram,precedidos daqueles que foram destinados àságuas”. De maneira semelhante, “outra Terrahavia assim de suceder a primeira, quando seinundasse, descobrindo depois uma nova porção,e sua praga, também assim assinalada, seriaexpulsa de seu mesmo Globo”. Houvera resultadoexcessivo até que “quando seu artíficedeterminava a renovação do Mundo, retornava adar à espécie humana habitação em solo próprio,

ainda em meio a iniqüidades antigas”. Tão poucohavia sido lógico que: “depois de tanto acréscimoda corrupção humana, pôde-se julgar bemprecavido ao perigo da reincidência, volvendo amesma Sabedoria e colocando o homem nashabitações, outra vez podendo comunicar-lhe amaldade que tinha contraído”.

A conclusão desta argumentaçãoteológica é clara: a Terra teria necessariamenteque mudar como resultado do castigo divino. Otrabalho do erudito madrilenho se dedica a umatarefa que pode parecer-nos surpreendente,mas que serve para apoiar sua tese. Trata-seda tentativa de reconstruir a geografia domundo por Adão e Eva e seus descendentes. Aobra de González de Salas demonstra que afidelidade ao relato bíblico podia ser unida a umadiscussão racional do mesmo, e que aargumentação erudita podia conduzir àracionalização de caminhos inesperados. Outroexemplo interessante disto é a realizaçãotambém de discussões que se davam em tornoda localização exata do paraíso terrestre, nasquais foram temas de importantes hipóteses deautores espanhóis como León Pinelo (Capel,1985).

A Teoria Sacra da Terra

No final do século XVII, a tese dadecadência da Terra formulou-se de maneiraexplícita e decidida acentuando a importânciada destruição. A Terra pós-diluvial converte-seem ruína. Foi na Grã-Bretanha e na EuropaCentral onde mais claramente se elaborou, nosdecênios finais dos seiscentos e no primeiro dossetecentos, esta interpretação da históriaterrestre em que o dilúvio mosaico se converteem um fator de ruína e destruição irreversívelpara o nosso planeta.

A polêmica do dilúvio, de sua produçãonatural e de seus efeitos converteu-se, nessemomento, em um problema científico de primeiramagnitude. A obra do clérigo inglês, ThomasBurnet, “Telluris Theoria Sacra” (Londres, 1681),propôs a idéia de uma terra plana pré-diluvial

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transtornada pelo dilúvio, tese que tem diversosprecedentes na Espanha do século XVI.

A tentativa dos que, como Burnet e antesDescartes, se esforçavam por interpretarclaramente a história da Terra teria perigosinsuspeitáveis. A ênfase nas causas mecânicaspodia apoiar a posição dos ateus, porargumentos a favor do mundo eterno, de ummundo formado por causas materiais com aintervenção do azar. Por isso, apesar docomportamento eclesiástico do autor, o sistemade Burnet não tardou em ser identificadojuntamente com o das correntes ímpias,materialistas e atéias que exaltavam “o cegomecanicismo e o cego acaso”, em Palavras deRichard Bentley dedicadas precisamente acaracterizar a concepção burnetiana.

Não é estranho, por tudo isso, que ateoria de Burnet dera lugar imediatamente auma grande polêmica científico-teológica na Grã-Bretanha. Em dez edições de sua obra, émostrado o êxito da interpretação de Burnet,que foi inclusive aprovada por Newton em 1680,antes de sua publicação. Desde logo, ainterpretação de Burnet não foi única, e nos anosfinais desse século, com o calor das polêmicasque se suscitou, apareceram outrasinterpretações como a de John Woodward e ade William Whiston. Ainda que esta últimadiferisse no detalhe da explicação, coincidia coma de Burnet em referir-se ao relato bíblico e empropor uma interpretação científica e racional.Para Whiston, a narração bíblica não é um relatovulgar, mas que precisava ser substituída poruma interpretação científica mais rigorosa. A suainterpretação foi a de uma terra formada peloresfriamento de uma nebulosa e de um dilúvioprovocado pela proximidade da Terra com acauda de um cometa, que originaria a elevaçãodas águas interiores e marinhas; e a aceitaçãodo possível desaparecimento da Terra no futurocom o choque de um outro cometa.

As reações ante essas interpretaçõesracionais da história da Terra foram de doistipos: a dos eclesiásticos, que mostravam aincompatibilidade dessas teses com o relato

bíblico; e a dos cientistas, que punham emmanifesto o pouco rigor científico de suas idéias,pedindo respeito ao relato bíblico. Ointeressante agora é destacar que estescientistas eram nada menos que os ligados aocírculo de Newton; os quais, liderados pelopróprio Newton, coincidiam suas idéias com ados eclesiásticos em defender a validade dorelato bíblico, e a existência de um Ser criadordo universo, se opondo à idéia de que aEscritura podia ser uma simples descrição fictícia.O relato bíblico, com toda sua carga deacontecimentos milagrosos, expôs-se contra oslivre-pensadores ingleses que aceitavam odestino ou postulavam um mundo existentedesde toda a eternidade. Frente às concepçõesque aceitavam a existência de um caos originalou de uma decadência progressiva, defendeu-se a concepção de um mundo harmoniosoplanejado pelo Criador. Os círculos newtonianosenfrentaram-se abertamente à tese de Burnet,tanto no que se refere à sua concepção dahistória da Terra, como às pretensões que teriao clérigo de interpretar livre e racionalmente orelato bíblico. Apareceu, assim, no final do séculoXVII, na Grã-Bretanha, um bom número depublicações contra Burnet, defendendo averacidade e presença da narração do Gênesis,e defendendo Moisés.

Tratava-se, também, de defender areligião e mostrar a validade do relato bíblico,cuja racionalização se consideravadesnecessária e impossível. Assim, seconsiderava que o caráter milagroso do dilúviodemonstrava-se pelo fato de que foratotalmente impossível de ser produzido porcausas naturais. Era algo maligno aplicar aciência à religião, já que, se não se aceitavaque Deus podia livremente realizar açõesmilagrosas como o dilúvio, abria-se a idéia datese de que Deus era supérfluo, incentivando oateísmo. A isto se unia, como novo elemento deseparação da ciência e da religião, a aceitaçãode alguns cientistas de uma visão teleológica eantropomórfica do mundo, ausente em Burnete em Whiston: a Terra não podia ser produtodo acaso, mas o resultado de um plano divino eproduto de Sua onipotência e sabedoria, para

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melhor serviço do homem. Tratava-se, por suavez, de uma luta entre posições científicas e nadefesa da fé. E o sistema de Burnet estava nocentro dessas polêmicas porque pareciacolaborar, de forma particularmente perigosa, àimpiedade e ao ateísmo, concentrando suaênfase na ruína da Terra, opondo-se à noçãode um mundo harmonioso criado para a moradado homem.

A tese da ruína da Terra pelo Dilúvio nãoapareceu somente na Grã-Bretanha. Nosmesmos anos em que escrevia Burnet, tudo,inclusive a Bíblia, começa a ser submetido aoexame da razão. Alguns se atrevem a insinuarque a Sagrada Escritura está escrita emlinguagem alegórica ou fabulosa, e que é precisointerpretá-la racionalmente. Até fins do séculoXVII, muitos protestantes e, também, algunscatólicos se lançam ao desafio de realizar estainterpretação, de examinar as contradições dostextos sagrados, de separar o que correspondepropriamente à palavra divina.

Não é estranho que neste ambientesurgira também o desejo de elaborar uma “físicasagrada ou história natural da Bíblia”, ou seja,uma interpretação do relato bíblico à luz dosconhecimentos científicos da época. Esta foi atarefa à qual se dedicou o médico e engenheirosuíço Johann J. Scheuchzer (1672-1733),professor de matemáticas em Zurich, em umamagna obra que continua em muitos aspectosa da literatura hexameral. Sua “Physica Sacra”(1721) recorre às experiências acumuladas peloautor nos cursos dedicados a explicar os textosda história sagrada à luz dos princípios dafilosofia moderna. Em aspectos bemsignificativos, o exame a que se submeteuScheuchzer o texto sagrado, contrastando-ocom com suas próprias observações nasmontanhas dos Alpes, o fez chegar à conclusãoda ruína do mundo por meio do dilúvio.

A Especulação Humanista Sobre a Estrutura da Terra

A discussão sobre a universalidade dodilúvio e seus efeitos sobre a superfície da Terra

consolidou-se nos países católicos com muitomenor liberdade do que como se havia efetuadonos países protestantes.

Algo semelhante ocorreu com as tesesde Burnet e de outros cientistas ingleses a quenos havemos referido. Uma interpretação daBíblia tão livre, como a proposta por algunsdesses autores, não era aceitável para a Igrejade Roma, e disto eram bem conscientes oscientistas católicos. Muito mais na Espanha, deonde a presença da Inquisição era mais severa,provocando uma cuidadosa autocensura nosintelectuais que refletiam sobre temasindiscutivelmente conflitivos.

Na Espanha, as teses de Burnet,associadas geralmente às de Woodward, e logodepois, também às de Whiston, foram objetogeralmente de uma oposição formal por partedos poucos cientistas que aludiram a elasdurante a primeira metade do século XVIII. Comfreqüência, as referências que possuíamtambém eram indiretas e procediam de outrosautores que as haviam resumido, como porexemplo, Buffon. Mas, apesar destas limitações,pôde-se afirmar que existiu um debate sobreessas teses na Espanha nas primeiras décadasdo século XVIII (Capel, 1985, p. 120), limitadopela forte influência da censura religiosa.

Maior eco teve em nosso país outrasteorizações que não afetavam diretamente anarração bíblica. Referimo-nos às especulaçõesrealizadas nos países católicos sobre aestrutura interior da Terra.

No princípio do século XVII o astrônomofrancês Jean Baptiste-Morin havia dedicadoatenção ao tema em sua “Nova Mundi sublunarisanatomia” (Paris, 1610), na qual criticava a teoriaaristotélica dos elementos. Distinguia trêspartes da esfera terrestre: a superior, contíguaao ar, que teria uma espessura de 80 exapodos,sendo que podiam chegar a 100 ou até 150,segundo as características do terreno nasuperfície; a região intermediária, cujaespessura era indeterminável, sendo que astemperaturas aumentavam consideravelmente;e a inferior, situada na parte central do globo, e

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que por estar proposta à região do ar, que équente e úmida, devia ser fria e seca, e tambémestéril e incapaz de geração alguma de vida.Desta tese repercutiu na Espanha José Vicentedel Olmo, em sua “Nueva descripción del Orbe dela Tierra” (1681), ainda que a título puramenteerudito e ilustrador, já que sua opinião parecetender mais para o sistema do padre Kircher.

Este último coincidia suas idéias com asde outros autores espanhóis, já que o sistemade Kircher foi seguramente o mais influentesistema na Espanha dos últimos três decêniosdo século XVII e dos primeiros do século XVIII.

O “Mundus subterraneus” (1665), dojesuíta Athanasius Kircher, combina asconcepções organicistas, de tradição platônicae hermética, com um bom conhecimento dafilosofia aristotélica, tão importante na “RatioStudiorum” jesuíta, e com uma vasta erudiçãotípica do humanismo do século XVII e do espíritopolimático de seu autor, em uma das maisambiciosas tentativas que se realizou nesseséculo para apresentar um sistema coerente daestrutura interior de nosso planeta e seuspirofilácios, hidrofilácios e aerofilácios,apresentados belamente em um sistema deidéias gráficas, que se converteram em umprestigioso modelo da constituição terrestre(Capel, 1980 e Sierra, 1981). Sua obra foiamplamente conhecida na Espanha, nãosomente através de seus irmãos de religião, mastambém por outros cientistas como Caramuelou membros do movimento renovadorvalenciano. Todavia, em 1724 Diego de Torres eVillaroel util izaram suas idéias, tomadas,

sobretudo, de outra obra de Kircher, o “IterExctaticum celeste et terrestre” (1654), paraapresentar uma ampla síntese de suas idéiasem um livro de grande aceitação popular.

Final

Chegamos, assim, ao final deste trabalhoe, sem dúvida, deixamos diversas questões quepodiam haver sido também oportunas, taiscomo, dentre outras, a concorrência pelaspetrificações ou, então, a questão do azar e daprovidência no mundo, que são de grandesimplicações para o desenvolvimento da modernageologia.

Porém não se trata de esgotar o tema,mas, sim, de mostrar algumas linhas através dasquais se desenvolveu a reflexão sobre a Terrano período compreendido pelo Renascimento ecomeços do século XVIII, mostrando, ao mesmotempo, de que forma o debate científico estáintimamente relacionado com as crençasreligiosas e com as idéias filosóficas herdadasda antiguidade ou propostas nesses anos.Através de um longo debate, que por sua vezera filosófico, teológico, filológico, histórico ecientífico, os Europeus dos séculos XVI e XVIIcomeçaram a aceitar que a Terra teria umahistória e que esta não estava narrada naEscritura, que podia ser reconhecida nos“vestígios” e “monumentos” da natureza. Umaterminologia que já, por si mesma, mostra aíntima relação que existia naquela época entrea história civil e a história natural.

CAPEL, H. Naturaleza y cultura en los orígenes de la geología española In: LAFUENTE, A. & SALDAÑA, J.J. Historia de las ciencias. Madrid : Consejo superior de investigaciones cientificas, 1987. pp. 167 – 195.

Bibliografia

??Trabalho enviado em fevereiro de 2006

Trabalho aceito em março de 2006

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