na marca do penalti

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NA MARCA DO PENALTI Paulo Volker Quando ele pegou a bola com as mãos e levou até a marca do pênalti, todos ficaram parados. A torcida ficou calada, como se o silêncio de 90 mil pessoas fosse um silêncio mais calado e mais profundo do que o silêncio de uma só. Todos olhares voltados para aquela figura ofegante, até então, um ídolo que gerava fanatismo, fazendo com que sua imagem, seus jeitos e trejeitos se tornassem mania nacional. Nesse jogo, a final de um campeonato, zero a zero, o que estava sendo decidido não era apenas um volume respeitado de dinheiro. Parecia que vidas e destinos dependiam dessa partida, que se reduzia à capacidade daquele ídolo de fazer um gol. Metade dos torcedores gritaram seu nome durante todo o primeiro tempo e nesses 20 minutos finais. Agora estavam calados. Outra metade, temerosos, gritava a sua desgraça, como se as pragas pudessem atingir aquelas pernas mágicas e estatelar aquela figura que tinha tudo para decidir o resultado da partida. Agora, estavam calados. Nos dias que tinham antecedido ao jogo, uma imensa onda de pressões espremia o ídolo. As

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Um texto sobre os enganos e as complexidades da mente.

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Page 1: NA MARCA DO PENALTI

NA MARCA DO PENALTIPaulo Volker

Quando ele pegou a bola com as mãos e levou até a marca do pênalti, todos ficaram parados. A torcida ficou calada, como se o silêncio de 90 mil pessoas fosse um silêncio mais calado e mais profundo do que o silêncio de uma só. Todos olhares voltados para aquela figura ofegante, até então, um ídolo que gerava fanatismo, fazendo com que sua imagem, seus jeitos e trejeitos se tornassem mania nacional.

Nesse jogo, a final de um campeonato, zero a zero, o que estava sendo decidido não era apenas um volume respeitado de dinheiro. Parecia que vidas e destinos dependiam dessa partida, que se reduzia à capacidade daquele ídolo de fazer um gol.

Metade dos torcedores gritaram seu nome durante todo o primeiro tempo e nesses 20 minutos finais. Agora estavam calados. Outra metade, temerosos, gritava a sua desgraça, como se as pragas pudessem atingir aquelas pernas mágicas e estatelar aquela figura que tinha tudo para decidir o resultado da partida. Agora, estavam calados.

Nos dias que tinham antecedido ao jogo, uma imensa onda de pressões espremia o ídolo. As câmeras e os olhares dos jornalistas seguiam todos os seus passos, como se cada gesto pudesse conter os sinais que indicariam o momento de uma jogada genial, a potencia de um chute mortal, a ginga de um drible desconcertante.

Em casa a pressão não diminuía, a mulher, os filhos, os amigos, os parentes, todos enfim, perguntavam, falavam, aconselhavam, cobravam. Ele entrava no banheiro, abria todas as torneiras, para esconder os chamados que vinham de fora, deitava na banheira e fechava os olhos. Gostava de sonhar com o campo vazio, infinito no seu verde, se perdendo no horizonte, absolutamente vazio de tudo, trazendo apenas a pequena marca do pênalti e a bola branca, flutuando a poucos centímetros da marca. Para ele, a bola flutuar significava a distância daquela vida que esmurrava a porta, perguntando o que

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estava acontecendo. A bola flutuava sobre a marca de pênalti porque aquele era um mundo de silêncio, de paz, de solidão.

Agora ele carregava a bola, sentindo o imenso prazer do silêncio de 90 mil pessoas, que olhavam para ele estarrecidos. Ele ajoelha perto da marca e vai levando a bola para aquela distância de flutuação, onde, no sonho, ela rodava sem encostar na grama.

Sentia suas mãos suarem, como depois daquele seu famoso gol, quando ele entrou com a bola e estufou as redes, depois de deixar cinco adversários caídos, inclusive o goleiro. Ele tinha agarrado aquela bola e jurado que nunca mais iria salta-la. Aquele gol e aquela bola tinham transformado-o em um ídolo. Cedo, muito cedo, tinha apenas 18 anos. Desde então sua vida tinha se tornado um foguete, um rojão que explode em dia de clássico. Tudo era festa, fogo, gols, farra, espetáculo.

Mas sua alma tinha perdido os silêncios e o êxtase das flutuações. A flutuação de uma gangorra que vai e vem, furando os ares, debaixo de uma mangueira, lá na roça, de onde era a sua família. A flutuação de um pulo do barranco, aquele salto no azul, antes das águas frias do rio. A flutuação de uma gargalhada de felicidade, entre os amigos, naquela esquina, onde as lágrimas corriam de felicidade.

Agora, as mão suadas, a bola sobre a marca de pênalti – “ela precisa flutuar meu Deus !”.

Solta a bola. A bola cai. Quando toca no chão um barulho ensurdecedor fere seus ouvidos. 90 mil pessoas gritam. Ouve o apito do juiz, que corre em sua direção, apontando a marca do pênalti. Seus companheiros o envolvem, num misto de surpresa e ódio. O outro time comemora.

Na manhã seguinte os jornais estampam manchetes garrafais : “Ídolo internado depois de pegar bola com as mãos na própria área”.