múltiplas, diferentes e conflituosas linguagens um estudo sobre linguagem e organização do...
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MÚLTIPLAS, DIFERENTES E CONFLITUOSAS LINGUAGENS: UM ESTUDO
SOBRE LINGUAGEM E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Gabriel de Andrade Junqueira Filho*
Resumo
O presente estudo analisa duas publicações na área da educação infantil que trazem o conceito
de linguagem como central ou fundamental, a saber: Referencial Curricular Nacional para
a Educação Infantil (1998) e As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia
na educação da primeira infância (1999). As perguntas que este estudo se propõe a responder
são: Os referidos autores trabalham com a mesma concepção de linguagem? Em que medida
essas publicações deixam clara a fundamentação teórica sobre sua abordagem em relação à
linguagem? Quais os desdobramentos dessas diferentes abordagens em relação à organização
do trabalho na educação infantil? Consequentemente, o que revelam sobre a função social da
educação infantil, as concepções de criança e infância, a concepção de conteúdo, o
planejamento e o papel do professor nesta etapa da escolaridade? Concluí que, apesar de
ambas significarem linguagem como expressão e comunicação humanas; em ambas, é
ambíguo o referencial teórico de onde esta concepção foi extraída. Além disso, os
desdobramentos desta concepção de linguagem em relação à organização do trabalho, em
cada uma delas, são, inclusive, antagônicos e conflituosos.
Palavras-chave: Educação infantil – Linguagens – Currículo – Formação de professores
* Gabriel de Andrade Junqueira Filho. Pedagogo, Mestre e Doutor em Educação pela PUCSP. E-mail para
contato: [email protected]. Professor Associado da Faculdade de Educação da UFRGS, Área
de Educação Infantil. Integrante da linha de pesquisa Estudos sobre infâncias (PPGEDU/UFRGS). Pesquisa
sem financiamento.
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INTRODUÇÃO
O presente estudo analisa diferentes concepções – ou seriam apropriações? – do
conceito de linguagem e suas articulações à ação pedagógica na educação infantil. Trata-se da
continuidade e atualização de estudos iniciados por ocasião da pesquisa de doutoramento e
que, neste momento, procura analisar, mais detidamente, as diferenças entre estas abordagens
sobre linguagem e seus desdobramentos em relação à organização do trabalho nesta etapa da
escolaridade, e, consequentemente, também, em relação à função social da educação infantil,
às concepções de criança e infância, à concepção de conteúdo, ao planejamento e ao papel do
professor.
O referido estudo, originalmente, estende-se à análise de outros três autores e
documentos que não os que serão objeto deste artigo1 que, devido aos desafios de produção de
uma síntese em dez páginas, selecionou as seguintes publicações: Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, MEC/SEF, 1998), e As cem linguagens da
criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância (EDWARDS;
GANDINI; FORMAN, 1999). A escolha desses documentos se dá, basicamente, pela
diversidade de abordagens em relação à linguagem e também por se tratarem de obras de
grande circulação.
As perguntas que este estudo se propõe a responder são: Os referidos autores
trabalham com a mesma concepção de linguagem? Em que medida essas publicações deixam
clara a fundamentação teórica sobre sua abordagem em relação à linguagem? Quais os
desdobramentos dessas diferentes abordagens em relação à organização do trabalho na
educação infantil? O que elas revelam sobre a função social da educação infantil, as
concepções de criança e infância, a concepção de conteúdo, o planejamento e o papel do
professor nesta etapa da escolaridade?
Um começo em duas etapas
É possível afirmar que o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
(RECNEI) (1998) é, no Brasil, a publicação na área de Educação Infantil que apresentou e
1 Refiro-me a Elvira Souza Lima (2003), A criança pequena e suas linguagens; Adriana Friedmann (2005),
O universo simbólico da criança e; Gabriel de Andrade Junqueira Filho (2005), Linguagens geradoras:
seleção e articulação de conteúdos em educação infantil.
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provocou a ressignificação em massa do termo linguagem, articulado, até então, geralmente,
no singular, referindo-se restritivamente à oralidade e à escrita; entretanto, a partir desse
documento, o termo aparece no plural, linguagens, arrolando também as linguagens não
verbais: movimento, desenho, pintura, modelagem, colagem, música, dança, brincadeira,
escultura, construção, fotografia, ilustração, cinema. Além disso, a publicação especifica os
elementos constituintes de algumas destas linguagens, como, por exemplo, na linguagem
musical, o som e o silêncio, a altura (graves ou agudos), a duração (curtos ou longos), a
intensidade (fracos ou fortes), o timbre “(característica que distingue e “personaliza” cada
som)” (vol. 3, p. 59). Na linguagem visual, os elementos são: o ponto, a linha, a forma, a cor,
o volume, o espaço, o contraste, a luz, as texturas etc. Nesse documento, é possível afirmar
que as linguagens não são apenas significadas como formas de interação, socialização,
expressão e comunicação humanas, mas também como produtos culturais dos seres humanos,
como importantes formas de conhecer e representar o mundo. No Volume 3, relativo ao
âmbito de experiência Conhecimento de Mundo, vamos encontrar os conteúdos organizados a
partir de seis eixos de trabalho “orientados para a construção das diferentes linguagens pelas
crianças e para as relações que estabelecem com os objetos de conhecimento” (p. 7), a saber:
Movimento; Música; Artes Visuais; Linguagem Oral e Escrita; Natureza e Sociedade e, por
fim, Matemática. Nesse Referencial, creches e pré-escolas são consideradas instituições
educativas, cujo projeto político-pedagógico estrutura-se pelo tripé educar, cuidar e brincar, já
a criança, como todo ser humano, é concebida como “um sujeito social e histórico e faz parte
de uma organização familiar que está inserida em uma sociedade, com uma determinada
cultura, em um determinado momento histórico. É profundamente marcada pelo meio social
em que se desenvolve, mas também o marca”. O referencial também coloca que: “As crianças
possuem uma natureza singular, que as caracteriza como seres que sentem e pensam o mundo
de um jeito muito próprio” (v. 1, p. 21).
Esse projeto quer que as crianças conheçam a si e ao mundo, portanto, nele, o
planejamento do trabalho, pelo professor, tem papel fundamental:
As diferentes aprendizagens se dão por meio de sucessivas
reorganizações do conhecimento, e este processo é protagonizado pelas
crianças quando podem vivenciar experiências que lhes forneçam conteúdos
apresentados de forma não simplificada e associados a práticas sociais reais.
É importante marcar que não há aprendizagem sem conteúdos. [...]
Nesta perspectiva, este Referencial concebe os conteúdos, por um
lado, como a concretização dos propósitos da instituição e, por outro, como
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um meio para que as crianças desenvolvam suas capacidades e exercitem sua
maneira própria de pensar, sentir e ser, ampliando suas hipóteses acerca do
mundo ao qual pertencem e constituindo-se em um instrumento para a
compreensão da realidade. Os conteúdos abrangem, para além de fatos,
conceitos e princípios, também os conhecimentos relacionados a
procedimentos, atitudes, valores e normas como objetos de aprendizagem. A
explicitação de conteúdos de naturezas diversas aponta para a necessidade de
se trabalhar de forma intencional e integrada com conteúdos que, na maioria
das vezes, não são tratados de forma explícita e consciente (RCNEI, 1998, p.
48-49).
Para dar cabo dessa tarefa, é preciso um professor que
tenha uma “competência polivalente”, ou seja, “cabe a ele trabalhar com conteúdos de
naturezas diversas que abranjam desde cuidados básicos essenciais até conhecimentos
específicos provenientes das diversas áreas do conhecimento” (v. 3, 1999, p. 41), além de
organizar situações de aprendizagens orientadas ou que dependam de uma intervenção direta
dele. No entanto, estas aprendizagens “devem estar baseadas não apenas nas propostas dos
professores, mas, essencialmente, na escuta das crianças e na compreensão do papel que
desempenham a experimentação e o erro na construção do conhecimento” (v. 1, 1999, p. 30).
Mas, voltemos às relações entre linguagem e os eixos de trabalho. Parece que esse
Referencial considera os eixos de trabalho Movimento, Música, Artes Visuais e Linguagem
Oral e Escrita como linguagens – verbais e não verbais –, mas não considera os eixos
Natureza e Sociedade e Matemática como linguagens. Levanto essa hipótese uma vez que não
identifiquei, nos textos relativos a estes dois eixos do trabalho, nenhuma referência que
pudesse significá-los também como linguagens. Diante disso, ficam algumas dúvidas: do
ponto de vista dos autores deste documento, seriam os eixos Natureza e Sociedade e
Matemática objetos de conhecimento e não linguagens? Seriam os demais eixos –
Movimento, Música, Artes Visuais e Linguagem Oral e Escrita – apenas linguagens e não
objetos de conhecimento? As linguagens não são também objetos de conhecimento ou seriam
apenas formas de expressão humanas para representar os objetos de conhecimento? Estariam
as linguagens a serviço dos objetos de conhecimento? Ou, em outras palavras, seriam as
linguagens estratégias para explorar e representar conteúdos da Matemática, como números e
sistema de numeração, grandezas e medidas, espaço e forma, por exemplo? Ou para explorar
e representar conteúdos do eixo Natureza e Sociedade, como os seres vivos, os lugares e suas
paisagens e os fenômenos da natureza, por exemplo? Outra dúvida: as linguagens estariam
associadas restritivamente à cultura e às formas de expressão e comunicação humanas e não à
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natureza? Ilustro minhas dúvidas e hipóteses tanto pela classificação dos eixos de trabalho,
quanto a partir, por exemplo, de uma passagem do texto referente ao eixo Natureza e
Sociedade:
Nesse processo, as crianças vão gradativamente percebendo relações,
desenvolvendo capacidades ligadas à identificação de atributos dos objetos e
seres, à percepção de processos de transformação, como nas experiências
com plantas, animais ou materiais. Valendo-se de diferentes linguagens
(oral, desenho, canto etc.), nomeiam e representam o mundo, comunicando
ao outro seus sentimentos, desejos e conhecimentos sobre o meio que
observam e vivem (v. 3, p. 171).
Penso que tais dúvidas, hipóteses e ambiguidades poderiam ser esclarecidas caso o
referido documento – mais precisamente o Volume 3 – apresentasse, mais objetivamente, seja
ao longo do texto, seja na bibliografia, autores e referenciais teóricos sobre a concepção de
linguagem adotada. No que diz respeito à oralidade e à escrita está claramente indicada a
filiação a partir de autores como Emilia Ferreiro, Ana Teberosky e Liliana Tolchinsky, entre
outros; entretanto, no que diz respeito às linguagens não verbais, fica uma lacuna que,
acredito, pode trazer prejuízos à apropriação do documento como um todo, uma vez que o
mesmo trata de modo desigual as teorias e as indicações sobre as práticas delas decorrentes.
Ao me colocar no lugar do leitor – seja ele professor, coordenador pedagógico, diretor
de escola, aluno ou professor universitário de curso de Pedagogia – que quer entender as
orientações desse documento, de modo a incorporar as ideias nele veiculadas à sua prática
cotidiana, ou analisá-las junto aos acadêmicos, com um viés mais teórico – e não quero com
este exemplo indicar dissociação entre teoria e prática, academia e escola –, considero que, no
que diz respeito à concepção de linguagem, pelo tratamento dedicado a ela, fico mais com
hipóteses sobre a intenção dos autores do documento do que com a transparência conceitual
deste termo e a(s) teoria(s) que o fundamenta(m). O que podemos pensar dessa lacuna ou
ambiguidade conceitual no que diz respeito à formação dos professores, o público alvo deste
documento? Essa lacuna não foi percebida pelos autores do Referencial? Será que foi
intencional, pois talvez eles estejam avaliando que as chances de influência para formação e
as transformações das práticas cotidianas dos professores que atuam ou atuarão diretamente
com as crianças dar-se-ão mais a partir de documentos cujas características explorem e
indiquem mais o como fazer do que as bases teóricas do como fazer? Lembrando a não
neutralidade em educação, persistem as dúvidas e as hipóteses sobre as políticas de formação
de professores a partir de documentos oficiais.
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Mesmo que o RECNEI (1998) seja organizado a partir de conteúdos apresentados nos
eixos de trabalho – relativos aos âmbitos de experiência Formação Pessoal e Social e
Conhecimento de Mundo –, portanto, dando ênfase, mas, ao mesmo tempo, hierarquizando as
linguagens num plano inferior em relação aos eixos de trabalho, considero-o o grande
responsável, no Brasil, por ressignificar e expandir a concepção de linguagem com a qual
vínhamos tradicionalmente trabalhando (restrita à oralidade e escrita). A partir dele, a
comunidade de profissionais da Educação Infantil é provocada a pensar linguagem como
linguagens – verbais e não verbais –, abrindo caminho para, um ano depois, em 1999, sermos
apresentados a uma outra publicação a partir da qual linguagem passa a ser entendida
definitivamente como linguagens, e, dessa vez, na centralidade da organização do trabalho da
Educação Infantil – estou me referindo a As cem linguagens da criança: a abordagem de
Reggio Emilia para a educação da primeira infância, de Carolyn Edwards, Lella Gandini e
George Forman.
Essa obra já indica no título a multiplicidade de linguagens, bem como sua relação
com a expressão e comunicação humanas, mais especificamente da criança – as cem
linguagens da criança. Tal qual o RECNEI, parece não entender a natureza como linguagem,
o que se confirma ao longo da obra. Faz do poema de Lóris Malaguzzi – “Ao contrário, as
cem existem” (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 5) – epígrafe e bandeira dos
princípios de trabalho das escolas públicas municipais de Reggio Emilia, cidade do norte rico
e desenvolvido da Itália: “A criança é feita de cem. (...) A criança tem cem linguagens (e
depois cem cem cem) mas roubaram-lhe noventa e nove. (...) Dizem-lhe: que as cem não
existem. A criança diz: ao contrário, as cem existem”. Esse poema tem sido repetido como
mantra em publicações, dissertações, teses e entre profissionais que atuam na educação
infantil, chamando atenção para os estragos que a escola formal tem causado às crianças,
separando “a cabeça do corpo”, por exemplo. Chamam a atenção para um projeto de escola
infantil ao contrário, em que as crianças manifestam, expressam e registram suas ideias,
entendimentos, observações, recordações, sentimentos, em todas as suas vozes – em cem cem
cem linguagens –, apresentando-as e fazendo com que as crianças sejam (re)conhecidas em
“níveis surpreendentes de habilidades simbólicas e de criatividade” (EDWARDS; GANDINI;
FORMAN, 1999, p. 21):
Essa abordagem incentiva o desenvolvimento intelectual das crianças
por meio de um foco sistemático sobre a representação simbólica. As
crianças pequenas são encorajadas a explorar seu ambiente e a expressar a si
mesmas através de todas as suas “linguagens” naturais ou modos de
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expressão, incluindo palavras, movimentos, desenhos, pinturas, montagens,
esculturas, teatro de sombras, colagens, dramatizações e música.
Enfatizando a aprendizagem e não o ensino, investe num perfil de professor como
aquele que não ensina e sim organiza e sugere modos de ajudar as crianças a construir sua
aprendizagem. Na abordagem de Reggio Emilia – assim nomeada pelo “conjunto singular e
inovador de suposições filosóficas, currículo e pedagogia, método de organização escolar e
desenho de ambientes” (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 21) – as linguagens
gráficas têm um papel central, uma vez que são utilizadas, enfaticamente, “para explorar os
conhecimentos, reconstruir algo que já conheciam e construir em conjunto conhecimentos
revisitados dos tópicos investigados” (p. 38). Ao que tudo indica, a concepção de linguagem
na abordagem de Reggio Emilia é a mesma que a do RCNEI brasileiro, uma vez que a ênfase
no emprego do termo linguagem recai sobre a representação e a expressão, pelas crianças,
através de muitos meios simbólicos. Talvez por isso, na abordagem de Reggio Emilia, a Arte
e a estética tenham um papel tão central e um emprego muito singular. Segundo Debbie
LeeKeenan e John Nimmo (EDWARS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 254):
A arte e a estética são vistas como uma parte central da maneira como
as crianças percebem e representam seu mundo. A arte não é vista como uma
parte separada do currículo, mas ao invés disso é vista como uma parte
integral da aprendizagem cognitiva/simbólica plena da criança em
desenvolvimento. O trabalho das crianças não é casualmente criado, mas é o
resultado de uma exploração guiada de temas e eventos relevantes para a
vida das crianças e da comunidade mais ampla [...]
Quando levanto a hipótese de que a concepção de linguagem é a mesma nos dois
documentos, estou me referindo restritivamente à concepção de linguagem e não aos
princípios e às orientações para a organização do trabalho dela decorrentes, de um e de outro
documento. Penso que essa hipótese tem algum sentido na medida em que, em artigo de Ana
Lúcia Goulart de Faria (2005), Sons sem palavras e grafismo sem letras. Linguagens,
leituras e pedagogia na educação infantil, encontramos uma crítica da autora, contrapondo
a proposta do RCNEI (1998) à do “currículo em construção”, da rede pública municipal de
educação infantil de Campinas, ao que parece, organizada, a partir dos princípios de Reggio
Emilia:
[...] quero fazer essa propaganda porque é justamente uma tentativa diferente
do Referencial Nacional Curricular da Educação Infantil (RCNEI) elaborado
pelo MEC, que é um projeto meio esquisito, esse que veio lá de Brasília. O
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de Campinas não é para uma escola, nem para um hospital, nem para uma
casa (2005, p. 133).2
Defensora da abordagem de Reggio Emilia, Faria (2005) chama a atenção não só para
a necessidade de garantir os direitos fundamentais das crianças na escola infantil, como
também para a especificidade do trabalho das professoras nesta etapa da educação escolar das
crianças (não sei se a autora diria “da educação escolar das crianças”, diante dos comentários
já referidos), que de modo algum deve ser confundido com as características do trabalho
realizado mais insistentemente pelos anos iniciais do ensino fundamental, evitando, dessa
maneira, sua antecipação para a educação infantil. Argumenta a autora:
É democrático oferecer as oportunidades para as crianças aprenderem
a ler e a escrever, não tenho dúvida. Mas é democrático também oferecer
oportunidades de trabalhar as outras 99 linguagens, que não é função da
escola. A função da escola é trabalhar com a leitura e a escrita. Nessa
direção vai outra provocação: pensar uma pedagogia da educação infantil
sem conteúdo escolar. Poderiam objetar: “Ah, pedagogia da educação
infantil sem conteúdo? Isso é o espontaneísmo, é o laissez-faire, cada um vai
fazer o que quer!”. Não é isso. Há um conteúdo, apenas não é escolar. É um
conteúdo sobre o que nós, que fizemos magistério, pedagogia, aprendemos
muito pouco.” (FARIA, 2005, p. 126).
Na continuidade da apresentação de seus argumentos, a autora pergunta e responde:
O importante é sempre perguntar: como funciona essa educação, que
não precisa antecipar ou reproduzir nem a casa, nem a escola, tampouco o
hospital? Faz parte da política nacional da educação infantil, definida pelo
MEC (e ainda hoje é uma referência para a gente poder trabalhar essa
pedagogia da educação infantil que não é nem casa, nem escola, nem
hospital), que o professor não dá aula e que a criança não é aluno, que a
pedagogia não é centrada no professor, embora ele tenha uma participação
ativa na (des)organização do tempo e do espaço para a criança construir as
dimensões humanas e as culturas infantis (FARIA, 2005, p. 130).
Apesar de estender-me, penso que é importante seguir apresentando os argumentos da
autora, que invoca outro documento oficial produzido pelo MEC, os Critérios para um
atendimento em creche que respeite os direitos fundamentais das crianças. Diz a autora,
referindo-se a esses direitos (FARIA, 2005, p. 130):
Nossas crianças têm direito à brincadeira; a uma atenção especial; a
um ambiente aconchegante, seguro e estimulante; ao contato com a natureza;
2 Este artigo da autora funciona como as Considerações Finais do livro O mundo da escrita no universo da
pequena infância, que, juntamente com o livro Linguagens infantis: outras formas de leitura, compõe a
publicação em dois volumes dos debates que integraram o III Seminário Linguagens na Educação Infantil,
por ocasião do 14º Congresso de Leitura do Brasil (COLE), ambos os volumes organizados por Ana Lúcia
Goulart de Faria e Suely Amaral Mello (2005).
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à higiene e saúde; à alimentação sadia; a desenvolver a sua curiosidade,
imaginação e capacidade de expressão; ao movimento em espaços amplos; à
proteção, ao afeto e à amizade; a expressar seus sentimentos; a uma especial
atenção durante seu período de adaptação; a desenvolver a sua identidade
cultural, racial e religiosa [...]
A partir deles, esclarece um pouco mais sobre como vislumbra a organização do
trabalho para essa anti-escola da educação das crianças pequenas:
Com isso, com cada um desses itens referindo-se a cada um dos direitos
das crianças, a gente pode programar uma série de atividades, com a
diversidade da cultura brasileira, com a nossa imaginação, com a imaginação
das crianças (FARIA, 2005, p. 130. Grifo meu).
Diante de tais argumentos, pergunto-me se a autora está propondo que os direitos das
crianças sejam considerados os conteúdos não escolares da pedagogia da educação infantil
que ela anuncia, a serem trabalhados a partir de “uma série de atividades” programadas. Se
sim, onde se encaixariam as 99 linguagens a que se referiu? Seriam os direitos das crianças
algumas dessas 99 linguagens? Seriam as 99 linguagens os conteúdos não escolares dessa
nova pedagogia? Ou, ao contrário, seriam as linguagens estratégias para as crianças
manifestarem, expressarem e registrarem suas idéias, entendimentos, observações,
recordações, sentimentos, a partir de “uma série de atividades” programadas para trabalhar,
explorar, desenvolver os direitos das crianças?
No que diz respeito à concepção de linguagem, mais especificamente, continuo, em
relação a As cem linguagens da criança (1999) e à leitura de Faria (2005) sobre a abordagem
de Reggio Emilia, com as mesmas dúvidas, hipóteses e ambiguidades já indicadas em relação
à concepção de linguagem do RCNEI (1998). Chego a pensar que a sociolinguística é a teoria
de fundo para a fundamentação da concepção de linguagem trabalhada nesta abordagem,
quando leio, por exemplo, em entrevista de Lóris Malaguzzi a Lella Gandini (EDWARDS;
GANDINI; FORMAN, 1999, p. 97): “(...) observamos o trabalho sociolinguístico sobre como
os adultos e crianças constroem em conjunto contextos de significado (...)”. No entanto, não
tenho segurança em afirmar categoricamente que é dela que se trata. Principalmente, porque,
nessa mesma entrevista, Lóris Malaguzzi deixa muito claro seu ponto de vista sobre teoria e
prática no processo de elaboração da referida abordagem, bem como, um pouco mais sobre a
concepção de professor:
Quando começamos a falar sobre a teoria e a prática da educação,
podemos falar indefinidamente. Concordo com Wilfred Carr (1987) quando
ele diz que é bom evitar a discussão demasiada das teorias, porque existe
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risco de privá-las de seu aspecto prático. Na verdade, uma teoria é legítima
se lida com problemas que emergem da prática da educação e que podem ser
solucionados pelos educadores. A tarefa da teoria é ajudar para que os
professores entendam melhor a natureza de seus problemas. Desta forma, a
prática torna-se um meio necessário para o sucesso da teoria. [...] David
Hawkins observou: “O conhecimento dos profissionais é significativamente
mais profundo que qualquer [conhecimento] encontrado no pensamento de
muitos pesquisadores acadêmicos; portanto, o professor deve ser tratado não
como um objeto de estudo, mas como intérprete de fenômenos educacionais”
[...]. Essa validação do trabalho prático do professor é o único “livro-texto”
com o qual podemos contar no desenvolvimento de nossas reflexões sobre a
educação. Além disso, o trabalho de professores, quando não abandonado a
si mesmo, quando não deixado sem o apoio de instituições e das alianças
com colegas e famílias, é capaz não apenas de produzir experiências
educacionais diárias, mas também é capaz de se transformar no sujeito e
objeto de reflexão crítica (MALAGUZZI, 1999, p. 97-98).
Com defensores e antagonistas igualmente contundentes, As cem linguagens da
criança, seguido de inúmeras publicações que, pouco a pouco, vão caracterizando a
abordagem de Reggio Emilia, guardam e propõem um conjunto de princípios que vem sendo
denominado pelos que a defendem e divulgam de “pedagogia da infância”, que pode também
ser entendida como uma “pedagogia anti-escolar”, num embate que contrapõe o que
denominam de uma “cultura da infância” a uma cultura escolar “tradicional” (ARCE, 2004,
154). Alessandra Arce (2004, 2009, 2010) tem posição definida a respeito e, num esforço de
síntese e crítica, chama a atenção para o que está por trás dessa abordagem de trabalho na
educação infantil que se apresenta a partir das cem linguagens da criança:
[...] o foco do trabalho educativo na aprendizagem provinda das construções
individuais; a inversão da ideia de que o adulto humaniza a criança, portanto,
a infância passa a ser a portadora de todas as virtudes e de todas as forças
que humaniza os adultos; o princípio de que o lúdico, isto é, o prazeroso,
deve ser o eixo central da prática educativa; a ausência de planejamento, a
criança dita o ritmo do trabalho e o professor apenas a segue; a crença de que
trazer a comunidade e a cultura local para dentro da escola tornará a criança
um cidadão melhor no futuro; a crença de que o conhecimento provindo da
prática e retirado do cotidiano das crianças e professores vale mais do que
qualquer livro; a defesa do lema “aprender a aprender”, ou seja, o professor
não ensina, apenas acompanha, orienta, estimula, partilha; a inexistência de
um conhecimento universal, sendo este substituído por múltiplos
significados, frutos de múltiplas leituras do cotidiano que devem ser
negociados entre professores e alunos; a negação da repetição como recurso
pedagógico; a ênfase nas múltiplas formas de comunicação que se
diferenciem da “tradicional” transmissão verbal do conhecimento etc
(ARCE, 2004, p. 153-154).
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Diante de tais perspectivas, Arce (2004) provoca, perguntando nesse mesmo artigo:
afinal, trata-se de uma pedagogia da infância ou de um fetichismo da infância, típico do
caráter alienante da sociedade capitalista contemporânea? A autora continua sua provocação
em dois outros livros organizados por ela e Lígia Márcia Martins,3 deixando claros os
conflitos e a tensão entre os partidários da abordagem de Reggio Emilia e aqueles que
defendem que a educação infantil é escola – que creches e pré-escolas são instituições
educativas, “o que implica, obviamente, afirmar o ensino como eixo diretivo das práticas que
realiza”, sendo comprometido com “a socialização do patrimônio cultural humano e a serviço
do desenvolvimento histórico-cultural das crianças pequenas” (ARCE; MARTINS, 2010, p.
7-8):
Nesta direção, concebendo a escola como instituição de ensino e
aprendizagem para além dos domínios pragmáticos requeridos pela vida
cotidiana, afirmamos que a essencialidade da escola de educação infantil não
se garante pela suposta superação, articulação ou resolução entre cuidar e
educar.
Partimos do pressuposto de que para o desenvolvimento de um projeto
político-pedagógico em educação infantil, é premente que se desloque o foco
de atenção do desenvolvimento infantil (em suas acepções naturalizantes)
para a aprendizagem que o promove. É preciso que esse projeto se organize
mediante objetivos representativos de uma intencionalidade deliberada de
promover o desenvolvimento das complexas habilidades humanas pela
mediação da aprendizagem escolar.
Nos limites deste texto, interrompo – longe de concluir – as considerações sobre os
documentos até então em análise. Espero que este breve exercício tenha contribuído para
revelar um pouco mais os universos e perspectivas destas duas possibilidades de organização
do trabalho na educação infantil, em que as linguagens têm um papel, senão central,
fundamental. Espero que o profissional da educação infantil, principalmente o que atua
cotidianamente na creche e pré-escola, sinta-se desafiado e estimulado a participar deste
debate sobre as diferentes concepções de linguagem, questionando-se, questionando cada uma
delas, tomando partido, trazendo também ele contribuições a este debate, que continua, em
eventos como este, e nos embates da prática, junto às equipes de trabalho, às crianças e seus
familiares, qualificando a profissionalização e o atendimento nessa etapa da educação escolar
das crianças.
3 Refiro-me a Ensinando aos pequenos de zero a três anos e Quem tem medo de ensinar na educação
infantil?)
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REFERÊNCIAS
ARCE, Alessandra. Pedagogia da infância ou fetichismo da infância? In: DUARTE, Newton
(org.). Crítica ao fetichismo da individualidade. Campinas: Autores Associados, 2004.
ARCE, Alessandra; MARTINS, Lígia M. (orgs.). Ensinando aos pequenos de zero a três
anos. Campinas: Alínea, 2009.
__________ . Quem tem medo de ensinar na educação infantil? Em defesa do ato de
ensinar. Campinas: Editora Alínea, 2010.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.
Referencial curricular nacional para a educação infantil / Ministério da Educação e do
Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. 3 volumes.
Volume 1: Introdução; volume 2: Formação pessoal e social; volume 3: Conhecimento de
mundo.
EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George. As cem linguagens da criança:
a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1999.
FARIA, Ana Lúcia G. De; MELLO, Suely A. (orgs.). Linguagens infantis: outras formas de
leitura. Campinas: Autores Associados, 2005.
__________ . O mundo da escrita no universo da pequena infância. Campinas: Autores
Associados, 2005.
FRIEDMANN, Adriana. O universo simbólico da criança: olhares sensíveis para a infância.
Petrópolis: Vozes, 2005.
JUNQUEIRA FILHO, Gabriel de A. Linguagens geradoras: seleção e articulação de
conteúdos em educação infantil. Porto Alegre: Mediação, 2005.
LIMA, Elvira S. A criança pequena e suas linguagens. São Paulo: Sobradinho, 2003.