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MÚLTIPLAS, DIFERENTES E CONFLITUOSAS LINGUAGENS: UM ESTUDO SOBRE LINGUAGEM E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO NA EDUCAÇÃO INFANTIL Gabriel de Andrade Junqueira Filho * Resumo O presente estudo analisa duas publicações na área da educação infantil que trazem o conceito de linguagem como central ou fundamental, a saber: Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998) e As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância (1999). As perguntas que este estudo se propõe a responder são: Os referidos autores trabalham com a mesma concepção de linguagem? Em que medida essas publicações deixam clara a fundamentação teórica sobre sua abordagem em relação à linguagem? Quais os desdobramentos dessas diferentes abordagens em relação à organização do trabalho na educação infantil? Consequentemente, o que revelam sobre a função social da educação infantil, as concepções de criança e infância, a concepção de conteúdo, o planejamento e o papel do professor nesta etapa da escolaridade? Concluí que, apesar de ambas significarem linguagem como expressão e comunicação humanas; em ambas, é ambíguo o referencial teórico de onde esta concepção foi extraída. Além disso, os desdobramentos desta concepção de linguagem em relação à organização do trabalho, em cada uma delas, são, inclusive, antagônicos e conflituosos. Palavras-chave: Educação infantil Linguagens Currículo Formação de professores * Gabriel de Andrade Junqueira Filho. Pedagogo, Mestre e Doutor em Educação pela PUCSP. E-mail para contato: [email protected]. Professor Associado da Faculdade de Educação da UFRGS, Área de Educação Infantil. Integrante da linha de pesquisa Estudos sobre infâncias (PPGEDU/UFRGS). Pesquisa sem financiamento.

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Page 1: Múltiplas, diferentes e conflituosas linguagens um estudo sobre linguagem e organização do trabalho

MÚLTIPLAS, DIFERENTES E CONFLITUOSAS LINGUAGENS: UM ESTUDO

SOBRE LINGUAGEM E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Gabriel de Andrade Junqueira Filho*

Resumo

O presente estudo analisa duas publicações na área da educação infantil que trazem o conceito

de linguagem como central ou fundamental, a saber: Referencial Curricular Nacional para

a Educação Infantil (1998) e As cem linguagens da criança: a abordagem de Reggio Emilia

na educação da primeira infância (1999). As perguntas que este estudo se propõe a responder

são: Os referidos autores trabalham com a mesma concepção de linguagem? Em que medida

essas publicações deixam clara a fundamentação teórica sobre sua abordagem em relação à

linguagem? Quais os desdobramentos dessas diferentes abordagens em relação à organização

do trabalho na educação infantil? Consequentemente, o que revelam sobre a função social da

educação infantil, as concepções de criança e infância, a concepção de conteúdo, o

planejamento e o papel do professor nesta etapa da escolaridade? Concluí que, apesar de

ambas significarem linguagem como expressão e comunicação humanas; em ambas, é

ambíguo o referencial teórico de onde esta concepção foi extraída. Além disso, os

desdobramentos desta concepção de linguagem em relação à organização do trabalho, em

cada uma delas, são, inclusive, antagônicos e conflituosos.

Palavras-chave: Educação infantil – Linguagens – Currículo – Formação de professores

* Gabriel de Andrade Junqueira Filho. Pedagogo, Mestre e Doutor em Educação pela PUCSP. E-mail para

contato: [email protected]. Professor Associado da Faculdade de Educação da UFRGS, Área

de Educação Infantil. Integrante da linha de pesquisa Estudos sobre infâncias (PPGEDU/UFRGS). Pesquisa

sem financiamento.

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INTRODUÇÃO

O presente estudo analisa diferentes concepções – ou seriam apropriações? – do

conceito de linguagem e suas articulações à ação pedagógica na educação infantil. Trata-se da

continuidade e atualização de estudos iniciados por ocasião da pesquisa de doutoramento e

que, neste momento, procura analisar, mais detidamente, as diferenças entre estas abordagens

sobre linguagem e seus desdobramentos em relação à organização do trabalho nesta etapa da

escolaridade, e, consequentemente, também, em relação à função social da educação infantil,

às concepções de criança e infância, à concepção de conteúdo, ao planejamento e ao papel do

professor.

O referido estudo, originalmente, estende-se à análise de outros três autores e

documentos que não os que serão objeto deste artigo1 que, devido aos desafios de produção de

uma síntese em dez páginas, selecionou as seguintes publicações: Referencial Curricular

Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, MEC/SEF, 1998), e As cem linguagens da

criança: a abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância (EDWARDS;

GANDINI; FORMAN, 1999). A escolha desses documentos se dá, basicamente, pela

diversidade de abordagens em relação à linguagem e também por se tratarem de obras de

grande circulação.

As perguntas que este estudo se propõe a responder são: Os referidos autores

trabalham com a mesma concepção de linguagem? Em que medida essas publicações deixam

clara a fundamentação teórica sobre sua abordagem em relação à linguagem? Quais os

desdobramentos dessas diferentes abordagens em relação à organização do trabalho na

educação infantil? O que elas revelam sobre a função social da educação infantil, as

concepções de criança e infância, a concepção de conteúdo, o planejamento e o papel do

professor nesta etapa da escolaridade?

Um começo em duas etapas

É possível afirmar que o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil

(RECNEI) (1998) é, no Brasil, a publicação na área de Educação Infantil que apresentou e

1 Refiro-me a Elvira Souza Lima (2003), A criança pequena e suas linguagens; Adriana Friedmann (2005),

O universo simbólico da criança e; Gabriel de Andrade Junqueira Filho (2005), Linguagens geradoras:

seleção e articulação de conteúdos em educação infantil.

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provocou a ressignificação em massa do termo linguagem, articulado, até então, geralmente,

no singular, referindo-se restritivamente à oralidade e à escrita; entretanto, a partir desse

documento, o termo aparece no plural, linguagens, arrolando também as linguagens não

verbais: movimento, desenho, pintura, modelagem, colagem, música, dança, brincadeira,

escultura, construção, fotografia, ilustração, cinema. Além disso, a publicação especifica os

elementos constituintes de algumas destas linguagens, como, por exemplo, na linguagem

musical, o som e o silêncio, a altura (graves ou agudos), a duração (curtos ou longos), a

intensidade (fracos ou fortes), o timbre “(característica que distingue e “personaliza” cada

som)” (vol. 3, p. 59). Na linguagem visual, os elementos são: o ponto, a linha, a forma, a cor,

o volume, o espaço, o contraste, a luz, as texturas etc. Nesse documento, é possível afirmar

que as linguagens não são apenas significadas como formas de interação, socialização,

expressão e comunicação humanas, mas também como produtos culturais dos seres humanos,

como importantes formas de conhecer e representar o mundo. No Volume 3, relativo ao

âmbito de experiência Conhecimento de Mundo, vamos encontrar os conteúdos organizados a

partir de seis eixos de trabalho “orientados para a construção das diferentes linguagens pelas

crianças e para as relações que estabelecem com os objetos de conhecimento” (p. 7), a saber:

Movimento; Música; Artes Visuais; Linguagem Oral e Escrita; Natureza e Sociedade e, por

fim, Matemática. Nesse Referencial, creches e pré-escolas são consideradas instituições

educativas, cujo projeto político-pedagógico estrutura-se pelo tripé educar, cuidar e brincar, já

a criança, como todo ser humano, é concebida como “um sujeito social e histórico e faz parte

de uma organização familiar que está inserida em uma sociedade, com uma determinada

cultura, em um determinado momento histórico. É profundamente marcada pelo meio social

em que se desenvolve, mas também o marca”. O referencial também coloca que: “As crianças

possuem uma natureza singular, que as caracteriza como seres que sentem e pensam o mundo

de um jeito muito próprio” (v. 1, p. 21).

Esse projeto quer que as crianças conheçam a si e ao mundo, portanto, nele, o

planejamento do trabalho, pelo professor, tem papel fundamental:

As diferentes aprendizagens se dão por meio de sucessivas

reorganizações do conhecimento, e este processo é protagonizado pelas

crianças quando podem vivenciar experiências que lhes forneçam conteúdos

apresentados de forma não simplificada e associados a práticas sociais reais.

É importante marcar que não há aprendizagem sem conteúdos. [...]

Nesta perspectiva, este Referencial concebe os conteúdos, por um

lado, como a concretização dos propósitos da instituição e, por outro, como

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um meio para que as crianças desenvolvam suas capacidades e exercitem sua

maneira própria de pensar, sentir e ser, ampliando suas hipóteses acerca do

mundo ao qual pertencem e constituindo-se em um instrumento para a

compreensão da realidade. Os conteúdos abrangem, para além de fatos,

conceitos e princípios, também os conhecimentos relacionados a

procedimentos, atitudes, valores e normas como objetos de aprendizagem. A

explicitação de conteúdos de naturezas diversas aponta para a necessidade de

se trabalhar de forma intencional e integrada com conteúdos que, na maioria

das vezes, não são tratados de forma explícita e consciente (RCNEI, 1998, p.

48-49).

Para dar cabo dessa tarefa, é preciso um professor que

tenha uma “competência polivalente”, ou seja, “cabe a ele trabalhar com conteúdos de

naturezas diversas que abranjam desde cuidados básicos essenciais até conhecimentos

específicos provenientes das diversas áreas do conhecimento” (v. 3, 1999, p. 41), além de

organizar situações de aprendizagens orientadas ou que dependam de uma intervenção direta

dele. No entanto, estas aprendizagens “devem estar baseadas não apenas nas propostas dos

professores, mas, essencialmente, na escuta das crianças e na compreensão do papel que

desempenham a experimentação e o erro na construção do conhecimento” (v. 1, 1999, p. 30).

Mas, voltemos às relações entre linguagem e os eixos de trabalho. Parece que esse

Referencial considera os eixos de trabalho Movimento, Música, Artes Visuais e Linguagem

Oral e Escrita como linguagens – verbais e não verbais –, mas não considera os eixos

Natureza e Sociedade e Matemática como linguagens. Levanto essa hipótese uma vez que não

identifiquei, nos textos relativos a estes dois eixos do trabalho, nenhuma referência que

pudesse significá-los também como linguagens. Diante disso, ficam algumas dúvidas: do

ponto de vista dos autores deste documento, seriam os eixos Natureza e Sociedade e

Matemática objetos de conhecimento e não linguagens? Seriam os demais eixos –

Movimento, Música, Artes Visuais e Linguagem Oral e Escrita – apenas linguagens e não

objetos de conhecimento? As linguagens não são também objetos de conhecimento ou seriam

apenas formas de expressão humanas para representar os objetos de conhecimento? Estariam

as linguagens a serviço dos objetos de conhecimento? Ou, em outras palavras, seriam as

linguagens estratégias para explorar e representar conteúdos da Matemática, como números e

sistema de numeração, grandezas e medidas, espaço e forma, por exemplo? Ou para explorar

e representar conteúdos do eixo Natureza e Sociedade, como os seres vivos, os lugares e suas

paisagens e os fenômenos da natureza, por exemplo? Outra dúvida: as linguagens estariam

associadas restritivamente à cultura e às formas de expressão e comunicação humanas e não à

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natureza? Ilustro minhas dúvidas e hipóteses tanto pela classificação dos eixos de trabalho,

quanto a partir, por exemplo, de uma passagem do texto referente ao eixo Natureza e

Sociedade:

Nesse processo, as crianças vão gradativamente percebendo relações,

desenvolvendo capacidades ligadas à identificação de atributos dos objetos e

seres, à percepção de processos de transformação, como nas experiências

com plantas, animais ou materiais. Valendo-se de diferentes linguagens

(oral, desenho, canto etc.), nomeiam e representam o mundo, comunicando

ao outro seus sentimentos, desejos e conhecimentos sobre o meio que

observam e vivem (v. 3, p. 171).

Penso que tais dúvidas, hipóteses e ambiguidades poderiam ser esclarecidas caso o

referido documento – mais precisamente o Volume 3 – apresentasse, mais objetivamente, seja

ao longo do texto, seja na bibliografia, autores e referenciais teóricos sobre a concepção de

linguagem adotada. No que diz respeito à oralidade e à escrita está claramente indicada a

filiação a partir de autores como Emilia Ferreiro, Ana Teberosky e Liliana Tolchinsky, entre

outros; entretanto, no que diz respeito às linguagens não verbais, fica uma lacuna que,

acredito, pode trazer prejuízos à apropriação do documento como um todo, uma vez que o

mesmo trata de modo desigual as teorias e as indicações sobre as práticas delas decorrentes.

Ao me colocar no lugar do leitor – seja ele professor, coordenador pedagógico, diretor

de escola, aluno ou professor universitário de curso de Pedagogia – que quer entender as

orientações desse documento, de modo a incorporar as ideias nele veiculadas à sua prática

cotidiana, ou analisá-las junto aos acadêmicos, com um viés mais teórico – e não quero com

este exemplo indicar dissociação entre teoria e prática, academia e escola –, considero que, no

que diz respeito à concepção de linguagem, pelo tratamento dedicado a ela, fico mais com

hipóteses sobre a intenção dos autores do documento do que com a transparência conceitual

deste termo e a(s) teoria(s) que o fundamenta(m). O que podemos pensar dessa lacuna ou

ambiguidade conceitual no que diz respeito à formação dos professores, o público alvo deste

documento? Essa lacuna não foi percebida pelos autores do Referencial? Será que foi

intencional, pois talvez eles estejam avaliando que as chances de influência para formação e

as transformações das práticas cotidianas dos professores que atuam ou atuarão diretamente

com as crianças dar-se-ão mais a partir de documentos cujas características explorem e

indiquem mais o como fazer do que as bases teóricas do como fazer? Lembrando a não

neutralidade em educação, persistem as dúvidas e as hipóteses sobre as políticas de formação

de professores a partir de documentos oficiais.

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Mesmo que o RECNEI (1998) seja organizado a partir de conteúdos apresentados nos

eixos de trabalho – relativos aos âmbitos de experiência Formação Pessoal e Social e

Conhecimento de Mundo –, portanto, dando ênfase, mas, ao mesmo tempo, hierarquizando as

linguagens num plano inferior em relação aos eixos de trabalho, considero-o o grande

responsável, no Brasil, por ressignificar e expandir a concepção de linguagem com a qual

vínhamos tradicionalmente trabalhando (restrita à oralidade e escrita). A partir dele, a

comunidade de profissionais da Educação Infantil é provocada a pensar linguagem como

linguagens – verbais e não verbais –, abrindo caminho para, um ano depois, em 1999, sermos

apresentados a uma outra publicação a partir da qual linguagem passa a ser entendida

definitivamente como linguagens, e, dessa vez, na centralidade da organização do trabalho da

Educação Infantil – estou me referindo a As cem linguagens da criança: a abordagem de

Reggio Emilia para a educação da primeira infância, de Carolyn Edwards, Lella Gandini e

George Forman.

Essa obra já indica no título a multiplicidade de linguagens, bem como sua relação

com a expressão e comunicação humanas, mais especificamente da criança – as cem

linguagens da criança. Tal qual o RECNEI, parece não entender a natureza como linguagem,

o que se confirma ao longo da obra. Faz do poema de Lóris Malaguzzi – “Ao contrário, as

cem existem” (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 5) – epígrafe e bandeira dos

princípios de trabalho das escolas públicas municipais de Reggio Emilia, cidade do norte rico

e desenvolvido da Itália: “A criança é feita de cem. (...) A criança tem cem linguagens (e

depois cem cem cem) mas roubaram-lhe noventa e nove. (...) Dizem-lhe: que as cem não

existem. A criança diz: ao contrário, as cem existem”. Esse poema tem sido repetido como

mantra em publicações, dissertações, teses e entre profissionais que atuam na educação

infantil, chamando atenção para os estragos que a escola formal tem causado às crianças,

separando “a cabeça do corpo”, por exemplo. Chamam a atenção para um projeto de escola

infantil ao contrário, em que as crianças manifestam, expressam e registram suas ideias,

entendimentos, observações, recordações, sentimentos, em todas as suas vozes – em cem cem

cem linguagens –, apresentando-as e fazendo com que as crianças sejam (re)conhecidas em

“níveis surpreendentes de habilidades simbólicas e de criatividade” (EDWARDS; GANDINI;

FORMAN, 1999, p. 21):

Essa abordagem incentiva o desenvolvimento intelectual das crianças

por meio de um foco sistemático sobre a representação simbólica. As

crianças pequenas são encorajadas a explorar seu ambiente e a expressar a si

mesmas através de todas as suas “linguagens” naturais ou modos de

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expressão, incluindo palavras, movimentos, desenhos, pinturas, montagens,

esculturas, teatro de sombras, colagens, dramatizações e música.

Enfatizando a aprendizagem e não o ensino, investe num perfil de professor como

aquele que não ensina e sim organiza e sugere modos de ajudar as crianças a construir sua

aprendizagem. Na abordagem de Reggio Emilia – assim nomeada pelo “conjunto singular e

inovador de suposições filosóficas, currículo e pedagogia, método de organização escolar e

desenho de ambientes” (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 21) – as linguagens

gráficas têm um papel central, uma vez que são utilizadas, enfaticamente, “para explorar os

conhecimentos, reconstruir algo que já conheciam e construir em conjunto conhecimentos

revisitados dos tópicos investigados” (p. 38). Ao que tudo indica, a concepção de linguagem

na abordagem de Reggio Emilia é a mesma que a do RCNEI brasileiro, uma vez que a ênfase

no emprego do termo linguagem recai sobre a representação e a expressão, pelas crianças,

através de muitos meios simbólicos. Talvez por isso, na abordagem de Reggio Emilia, a Arte

e a estética tenham um papel tão central e um emprego muito singular. Segundo Debbie

LeeKeenan e John Nimmo (EDWARS; GANDINI; FORMAN, 1999, p. 254):

A arte e a estética são vistas como uma parte central da maneira como

as crianças percebem e representam seu mundo. A arte não é vista como uma

parte separada do currículo, mas ao invés disso é vista como uma parte

integral da aprendizagem cognitiva/simbólica plena da criança em

desenvolvimento. O trabalho das crianças não é casualmente criado, mas é o

resultado de uma exploração guiada de temas e eventos relevantes para a

vida das crianças e da comunidade mais ampla [...]

Quando levanto a hipótese de que a concepção de linguagem é a mesma nos dois

documentos, estou me referindo restritivamente à concepção de linguagem e não aos

princípios e às orientações para a organização do trabalho dela decorrentes, de um e de outro

documento. Penso que essa hipótese tem algum sentido na medida em que, em artigo de Ana

Lúcia Goulart de Faria (2005), Sons sem palavras e grafismo sem letras. Linguagens,

leituras e pedagogia na educação infantil, encontramos uma crítica da autora, contrapondo

a proposta do RCNEI (1998) à do “currículo em construção”, da rede pública municipal de

educação infantil de Campinas, ao que parece, organizada, a partir dos princípios de Reggio

Emilia:

[...] quero fazer essa propaganda porque é justamente uma tentativa diferente

do Referencial Nacional Curricular da Educação Infantil (RCNEI) elaborado

pelo MEC, que é um projeto meio esquisito, esse que veio lá de Brasília. O

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de Campinas não é para uma escola, nem para um hospital, nem para uma

casa (2005, p. 133).2

Defensora da abordagem de Reggio Emilia, Faria (2005) chama a atenção não só para

a necessidade de garantir os direitos fundamentais das crianças na escola infantil, como

também para a especificidade do trabalho das professoras nesta etapa da educação escolar das

crianças (não sei se a autora diria “da educação escolar das crianças”, diante dos comentários

já referidos), que de modo algum deve ser confundido com as características do trabalho

realizado mais insistentemente pelos anos iniciais do ensino fundamental, evitando, dessa

maneira, sua antecipação para a educação infantil. Argumenta a autora:

É democrático oferecer as oportunidades para as crianças aprenderem

a ler e a escrever, não tenho dúvida. Mas é democrático também oferecer

oportunidades de trabalhar as outras 99 linguagens, que não é função da

escola. A função da escola é trabalhar com a leitura e a escrita. Nessa

direção vai outra provocação: pensar uma pedagogia da educação infantil

sem conteúdo escolar. Poderiam objetar: “Ah, pedagogia da educação

infantil sem conteúdo? Isso é o espontaneísmo, é o laissez-faire, cada um vai

fazer o que quer!”. Não é isso. Há um conteúdo, apenas não é escolar. É um

conteúdo sobre o que nós, que fizemos magistério, pedagogia, aprendemos

muito pouco.” (FARIA, 2005, p. 126).

Na continuidade da apresentação de seus argumentos, a autora pergunta e responde:

O importante é sempre perguntar: como funciona essa educação, que

não precisa antecipar ou reproduzir nem a casa, nem a escola, tampouco o

hospital? Faz parte da política nacional da educação infantil, definida pelo

MEC (e ainda hoje é uma referência para a gente poder trabalhar essa

pedagogia da educação infantil que não é nem casa, nem escola, nem

hospital), que o professor não dá aula e que a criança não é aluno, que a

pedagogia não é centrada no professor, embora ele tenha uma participação

ativa na (des)organização do tempo e do espaço para a criança construir as

dimensões humanas e as culturas infantis (FARIA, 2005, p. 130).

Apesar de estender-me, penso que é importante seguir apresentando os argumentos da

autora, que invoca outro documento oficial produzido pelo MEC, os Critérios para um

atendimento em creche que respeite os direitos fundamentais das crianças. Diz a autora,

referindo-se a esses direitos (FARIA, 2005, p. 130):

Nossas crianças têm direito à brincadeira; a uma atenção especial; a

um ambiente aconchegante, seguro e estimulante; ao contato com a natureza;

2 Este artigo da autora funciona como as Considerações Finais do livro O mundo da escrita no universo da

pequena infância, que, juntamente com o livro Linguagens infantis: outras formas de leitura, compõe a

publicação em dois volumes dos debates que integraram o III Seminário Linguagens na Educação Infantil,

por ocasião do 14º Congresso de Leitura do Brasil (COLE), ambos os volumes organizados por Ana Lúcia

Goulart de Faria e Suely Amaral Mello (2005).

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à higiene e saúde; à alimentação sadia; a desenvolver a sua curiosidade,

imaginação e capacidade de expressão; ao movimento em espaços amplos; à

proteção, ao afeto e à amizade; a expressar seus sentimentos; a uma especial

atenção durante seu período de adaptação; a desenvolver a sua identidade

cultural, racial e religiosa [...]

A partir deles, esclarece um pouco mais sobre como vislumbra a organização do

trabalho para essa anti-escola da educação das crianças pequenas:

Com isso, com cada um desses itens referindo-se a cada um dos direitos

das crianças, a gente pode programar uma série de atividades, com a

diversidade da cultura brasileira, com a nossa imaginação, com a imaginação

das crianças (FARIA, 2005, p. 130. Grifo meu).

Diante de tais argumentos, pergunto-me se a autora está propondo que os direitos das

crianças sejam considerados os conteúdos não escolares da pedagogia da educação infantil

que ela anuncia, a serem trabalhados a partir de “uma série de atividades” programadas. Se

sim, onde se encaixariam as 99 linguagens a que se referiu? Seriam os direitos das crianças

algumas dessas 99 linguagens? Seriam as 99 linguagens os conteúdos não escolares dessa

nova pedagogia? Ou, ao contrário, seriam as linguagens estratégias para as crianças

manifestarem, expressarem e registrarem suas idéias, entendimentos, observações,

recordações, sentimentos, a partir de “uma série de atividades” programadas para trabalhar,

explorar, desenvolver os direitos das crianças?

No que diz respeito à concepção de linguagem, mais especificamente, continuo, em

relação a As cem linguagens da criança (1999) e à leitura de Faria (2005) sobre a abordagem

de Reggio Emilia, com as mesmas dúvidas, hipóteses e ambiguidades já indicadas em relação

à concepção de linguagem do RCNEI (1998). Chego a pensar que a sociolinguística é a teoria

de fundo para a fundamentação da concepção de linguagem trabalhada nesta abordagem,

quando leio, por exemplo, em entrevista de Lóris Malaguzzi a Lella Gandini (EDWARDS;

GANDINI; FORMAN, 1999, p. 97): “(...) observamos o trabalho sociolinguístico sobre como

os adultos e crianças constroem em conjunto contextos de significado (...)”. No entanto, não

tenho segurança em afirmar categoricamente que é dela que se trata. Principalmente, porque,

nessa mesma entrevista, Lóris Malaguzzi deixa muito claro seu ponto de vista sobre teoria e

prática no processo de elaboração da referida abordagem, bem como, um pouco mais sobre a

concepção de professor:

Quando começamos a falar sobre a teoria e a prática da educação,

podemos falar indefinidamente. Concordo com Wilfred Carr (1987) quando

ele diz que é bom evitar a discussão demasiada das teorias, porque existe

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risco de privá-las de seu aspecto prático. Na verdade, uma teoria é legítima

se lida com problemas que emergem da prática da educação e que podem ser

solucionados pelos educadores. A tarefa da teoria é ajudar para que os

professores entendam melhor a natureza de seus problemas. Desta forma, a

prática torna-se um meio necessário para o sucesso da teoria. [...] David

Hawkins observou: “O conhecimento dos profissionais é significativamente

mais profundo que qualquer [conhecimento] encontrado no pensamento de

muitos pesquisadores acadêmicos; portanto, o professor deve ser tratado não

como um objeto de estudo, mas como intérprete de fenômenos educacionais”

[...]. Essa validação do trabalho prático do professor é o único “livro-texto”

com o qual podemos contar no desenvolvimento de nossas reflexões sobre a

educação. Além disso, o trabalho de professores, quando não abandonado a

si mesmo, quando não deixado sem o apoio de instituições e das alianças

com colegas e famílias, é capaz não apenas de produzir experiências

educacionais diárias, mas também é capaz de se transformar no sujeito e

objeto de reflexão crítica (MALAGUZZI, 1999, p. 97-98).

Com defensores e antagonistas igualmente contundentes, As cem linguagens da

criança, seguido de inúmeras publicações que, pouco a pouco, vão caracterizando a

abordagem de Reggio Emilia, guardam e propõem um conjunto de princípios que vem sendo

denominado pelos que a defendem e divulgam de “pedagogia da infância”, que pode também

ser entendida como uma “pedagogia anti-escolar”, num embate que contrapõe o que

denominam de uma “cultura da infância” a uma cultura escolar “tradicional” (ARCE, 2004,

154). Alessandra Arce (2004, 2009, 2010) tem posição definida a respeito e, num esforço de

síntese e crítica, chama a atenção para o que está por trás dessa abordagem de trabalho na

educação infantil que se apresenta a partir das cem linguagens da criança:

[...] o foco do trabalho educativo na aprendizagem provinda das construções

individuais; a inversão da ideia de que o adulto humaniza a criança, portanto,

a infância passa a ser a portadora de todas as virtudes e de todas as forças

que humaniza os adultos; o princípio de que o lúdico, isto é, o prazeroso,

deve ser o eixo central da prática educativa; a ausência de planejamento, a

criança dita o ritmo do trabalho e o professor apenas a segue; a crença de que

trazer a comunidade e a cultura local para dentro da escola tornará a criança

um cidadão melhor no futuro; a crença de que o conhecimento provindo da

prática e retirado do cotidiano das crianças e professores vale mais do que

qualquer livro; a defesa do lema “aprender a aprender”, ou seja, o professor

não ensina, apenas acompanha, orienta, estimula, partilha; a inexistência de

um conhecimento universal, sendo este substituído por múltiplos

significados, frutos de múltiplas leituras do cotidiano que devem ser

negociados entre professores e alunos; a negação da repetição como recurso

pedagógico; a ênfase nas múltiplas formas de comunicação que se

diferenciem da “tradicional” transmissão verbal do conhecimento etc

(ARCE, 2004, p. 153-154).

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Diante de tais perspectivas, Arce (2004) provoca, perguntando nesse mesmo artigo:

afinal, trata-se de uma pedagogia da infância ou de um fetichismo da infância, típico do

caráter alienante da sociedade capitalista contemporânea? A autora continua sua provocação

em dois outros livros organizados por ela e Lígia Márcia Martins,3 deixando claros os

conflitos e a tensão entre os partidários da abordagem de Reggio Emilia e aqueles que

defendem que a educação infantil é escola – que creches e pré-escolas são instituições

educativas, “o que implica, obviamente, afirmar o ensino como eixo diretivo das práticas que

realiza”, sendo comprometido com “a socialização do patrimônio cultural humano e a serviço

do desenvolvimento histórico-cultural das crianças pequenas” (ARCE; MARTINS, 2010, p.

7-8):

Nesta direção, concebendo a escola como instituição de ensino e

aprendizagem para além dos domínios pragmáticos requeridos pela vida

cotidiana, afirmamos que a essencialidade da escola de educação infantil não

se garante pela suposta superação, articulação ou resolução entre cuidar e

educar.

Partimos do pressuposto de que para o desenvolvimento de um projeto

político-pedagógico em educação infantil, é premente que se desloque o foco

de atenção do desenvolvimento infantil (em suas acepções naturalizantes)

para a aprendizagem que o promove. É preciso que esse projeto se organize

mediante objetivos representativos de uma intencionalidade deliberada de

promover o desenvolvimento das complexas habilidades humanas pela

mediação da aprendizagem escolar.

Nos limites deste texto, interrompo – longe de concluir – as considerações sobre os

documentos até então em análise. Espero que este breve exercício tenha contribuído para

revelar um pouco mais os universos e perspectivas destas duas possibilidades de organização

do trabalho na educação infantil, em que as linguagens têm um papel, senão central,

fundamental. Espero que o profissional da educação infantil, principalmente o que atua

cotidianamente na creche e pré-escola, sinta-se desafiado e estimulado a participar deste

debate sobre as diferentes concepções de linguagem, questionando-se, questionando cada uma

delas, tomando partido, trazendo também ele contribuições a este debate, que continua, em

eventos como este, e nos embates da prática, junto às equipes de trabalho, às crianças e seus

familiares, qualificando a profissionalização e o atendimento nessa etapa da educação escolar

das crianças.

3 Refiro-me a Ensinando aos pequenos de zero a três anos e Quem tem medo de ensinar na educação

infantil?)

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REFERÊNCIAS

ARCE, Alessandra. Pedagogia da infância ou fetichismo da infância? In: DUARTE, Newton

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