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6433 O USO DE MÚLTIPLAS LINGUAGENS NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES REFLEXIVOS Maria Candida Varone de Morais CAPECCHI, Universidade Federal do ABC. Marissel MARQUES, Universidade Federal do ABC. Relato de Experiência FAPESP/CnPQ [email protected] 1.Introdução A reflexão sobre a experiência de ensino que será apresentada neste artigo compreende as aulas da componente curricular Questões Atuais no Ensino de Ciências, comum aos Cursos de Licenciatura em Biologia, Filosofia, Física, Matemática e Química e aos Bacharelados Interdisciplinares da Universidade Federal do ABC e oferecida com trinta vagas no terceiro quadrimestre letivo de 2014. A Universidade Federal do ABC está localizada no município de Santo André, Estado de São Paulo - Brasil. Esta instituição, criada em 2005, tem um enfoque tecnológico e interdisciplinar, apresenta uma nova proposta para a educação superior brasileira, baseada na visão sistêmica que visa à integração das diversas áreas do conhecimento (Projeto Pedagógico da UFABC; 2006, p.2). A universidade é composta pelos Centros: Centro de Ciências Naturais e Humanas; Centro de Matemática, Computação e Cognição e Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. O acesso é através dos Bacharelados Interdisciplinares, com a opção para o Curso de Bacharelado em Ciência e Tecnologia ou o Bacharelado em Ciências e Humanidades. Sendo que o estudante somente após concluir a formação em um do Bacharelados é aceito na candidatura de estudante para as Licenciaturas, no entanto a seleção é feita através de regime interno. As Licenciaturas tem como missão “Promover o avanço do conhecimento através de ações de ensino, pesquisa e extensão, tendo como fundamento básico a interdisciplinaridade, a excelência e a inclusão social.” (Projeto Pedagógico da Licenciatura em Ciências Biológicas; UFABC, 2006, p.6). A estratégia da estrutura curricular dos Bacharelados e das Licenciaturas confere a cada curso uma matriz curricular contendo disciplinas obrigatórias, disciplinas de opção limitada, específicas para determinados cursos, e disciplinas livres, que compreendem todas as disciplinas oferecidas a cada quadrimestre por todos os cursos e atividades extracurriculares, que contemplam o estágio e a participação em atividades acadêmico/científico e culturais. Dessa maneira, o currículo possibilita uma mobilidade para a composição dos créditos entre as disciplinas livres e atividades extracurriculares

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O USO DE MÚLTIPLAS LINGUAGENS NA FORMAÇÃO INICIAL DE

PROFESSORES REFLEXIVOS

Maria Candida Varone de Morais CAPECCHI, Universidade Federal do ABC.Marissel MARQUES, Universidade Federal do ABC.

Relato de ExperiênciaFAPESP/CnPQ

[email protected]

1.Introdução

A reflexão sobre a experiência de ensino que será apresentada neste artigo

compreende as aulas da componente curricular Questões Atuais no Ensino de Ciências,

comum aos Cursos de Licenciatura em Biologia, Filosofia, Física, Matemática e Química

e aos Bacharelados Interdisciplinares da Universidade Federal do ABC e oferecida com

trinta vagas no terceiro quadrimestre letivo de 2014.

A Universidade Federal do ABC está localizada no município de Santo André,

Estado de São Paulo - Brasil. Esta instituição, criada em 2005, tem um enfoque

tecnológico e interdisciplinar, apresenta uma nova proposta para a educação superior

brasileira, baseada na visão sistêmica que visa à integração das diversas áreas do

conhecimento (Projeto Pedagógico da UFABC; 2006, p.2). A universidade é composta

pelos Centros: Centro de Ciências Naturais e Humanas; Centro de Matemática,

Computação e Cognição e Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais

Aplicadas. O acesso é através dos Bacharelados Interdisciplinares, com a opção para o

Curso de Bacharelado em Ciência e Tecnologia ou o Bacharelado em Ciências e

Humanidades. Sendo que o estudante somente após concluir a formação em um do

Bacharelados é aceito na candidatura de estudante para as Licenciaturas, no entanto a

seleção é feita através de regime interno. As Licenciaturas tem como missão “Promover o

avanço do conhecimento através de ações de ensino, pesquisa e extensão, tendo como

fundamento básico a interdisciplinaridade, a excelência e a inclusão social.” (Projeto

Pedagógico da Licenciatura em Ciências Biológicas; UFABC, 2006, p.6).

A estratégia da estrutura curricular dos Bacharelados e das Licenciaturas confere

a cada curso uma matriz curricular contendo disciplinas obrigatórias, disciplinas de opção

limitada, específicas para determinados cursos, e disciplinas livres, que compreendem

todas as disciplinas oferecidas a cada quadrimestre por todos os cursos e atividades

extracurriculares, que contemplam o estágio e a participação em atividades

acadêmico/científico e culturais. Dessa maneira, o currículo possibilita uma mobilidade

para a composição dos créditos entre as disciplinas livres e atividades extracurriculares

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conforme a vocação e o interesse de cada estudante, o que torna única a trajetória de

cada um na universidade.

A proposta da disciplina aqui relatada, de opção limitada para os cursos de

Licenciatura da UFABC e opção livre para os demais, foi voltada para a reflexão sobre

diversos temas, com a finalidade de fornecer um panorama sobre a produção atual das

pesquisas nas áreas de Ensino de Ciências e Matemática publicados em anais de

eventos e periódicos dessas áreas. Os temas foram: a interdisciplinaridade; abordagens

investigativas; analogias; argumentação; história da ciência; avaliação; conhecimento dos

professores; materiais didáticos; modelos e visualizações e natureza do conhecimento

científico, todos no âmbito do ensino de ciências e matemática.

Pretendíamos através da experiência criar condições para a produção e

construção de conhecimento, incitar a reflexão por meio da integração em um espaço

que favorecesse a expressividade, reiterada a reflexão à necessidade da ética, para se

produzir novas visões sobre as relações entre professor-aluno.

Consideramos que as aulas dessa disciplina configuraram-se como um espaço

privilegiado devido às práticas e procedimentos adotados, que compreenderam o uso de

múltiplas linguagens para se apresentar os temas acima descritos, e que este relato

poderá fomentar uma discussão sobre o processo pedagógico de ensino-aprendizagem,

pois, mesmo que de forma inicial, promoveu-se, entre os participantes, a autonomia para

a pesquisa, essencial para uma formação de professor; a reflexividade, que ocorreu por

meio do debate em sala de aula, pelas respostas dos estudantes sobre cada tema

apresentado pelas equipes e pela autoavaliação; fomento ao trabalho interativo e, sendo

esta a faceta mais importante, o estímulo à criatividade, por meio do uso de múltiplas

linguagens para se tratar os diversos conteúdos propostos.

2.Perspectiva para se alcançar a autonomia e a consciência na formação inicial

do professor

Como a disciplina Questões Atuais no Ensino de Ciências configurava-se como

disciplina livre da grade horária de vários dos bacharelados interdisciplinares da UFABC,

tínhamos uma diversidade de formação entre os participantes, contávamos com alunos

dos cursos de engenharia: robótica, biomédica, aeroespacial, materiais; de ciências

biológicas, de matemática, de gestão, de física, de ciências econômicas, dentre outros, o

que possibilitava, a cada aula da disciplina, reflexões heterogêneas sobre os temas

abordados. Sobretudo, as diversas interpretações e contribuições de cada participante

provenientes das diversas áreas de conhecimento criavam um espaço de convivência

fértil à construção de significados acerca dos temas propostos e à dinamicidade de cada

encontro.

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Logo no primeiro dia de aula, os participantes foram envolvidos por uma

atmosfera de invenção, que relacionava a aparência com múltiplas verdades. Com o

intento de fazer a apresentação, cada presente escolheu uma pessoa que não

conhecesse, para então olhá-la e adivinhar o nome, qual área que ela cursava, qual o

seu passa tempo predileto, seguido de um porquê. Os pares se dirigiam até a frente da

sala já com seus palpites em mãos, falavam sobre o colega para todos, para então a

pessoa se apresentar de fato.

A dinâmica das aulas tinha o intuito de mobilizar a apreensão de conhecimentos

por meio da participação de forma criativa e reflexiva, numa pratica de relacionar os

múltiplos eventos que ocorriam ao redor e dentro de cada um, de maneira a configurar a

experiência a um significado, ou a vários.

Dentre as perspectivas teóricas tínhamos em vista a a/r/tografia que é uma

metodologia de pesquisa voltada essencialmente para a pesquisa em arte e ensino de

arte. A a/r/tografia desloca, intencionalmente, o modo de produção de conhecimento

priorizando as categorias: incerteza, imaginação, ilusão, introspecção, visualização e

dinamismo. A metodologia da a/r/tografia possui um carácter de Pesquisa Viva, de pratica

viva, é uma busca para se viver poeticamente, do ponto de vista que:

investigações impregnadas de práticas não são apenas agregadas à

vida de alguém, mas são a própria vida deste, de modo que ‘quem se é

torna-se completamente emaranhado naquilo que se sabe e faz’(...) É

uma Pesquisa Viva porque se trata de estar atento à vida. (IRWIN, 2013.

p. 28-9)

Para Fayga Ostrower (1978; p.9) os processos de pensar e sentir o evento se

tornam conscientes na medida que são expressos, pois, há uma ordenação interna da

apreensão das formas que se configuram de maneira singular para ser externalizadas:

“de certo modo somos nós o ponto focal de referência, pois ao relacionarmos os

fenômenos nós os ligamos entre si e os vinculamos a nós mesmos.”

Buscamos nos apoiar, para a estruturação das aulas, no relatório para a UNESCO

da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI (DELLORS, 2010), que

apresenta quatro pilares para se construir o saber: aprender a conhecer, aprender a

fazer, aprender a conviver e aprender a ser. A linha que separa cada um desses pilares é

muito tênue, sendo difícil especificar onde termina um e onde se inicia o outro, como na

imagem de uma cobra que segura seu próprio rabo, tornando-se quase imperceptível a

transição entre eles. Desta forma, observamos cada um deles em quase todo o processo,

porém buscaremos especificá-los aqui.

Para as aulas, formaram-se equipes, sendo que cada uma delas tinha a

responsabilidade de preparar uma atividade que possibilitasse discutir um dos temas

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propostos. Os temas foram apresentados por meio de artigos extraídos de anais de

eventos científicos ou periódicos de pesquisa (TEXTO A), definidos no cronograma da

disciplina.

O primeiro pilar, aprender a conhecer, caracterizado pela necessidade de uma

escola que venha a formar o indivíduo com todos os elementos de uma educação básica

de qualidade, foi contemplado pelo fornecimento desses artigos como referenciais de

base para a discussão de cada tema da ementa, selecionados dentre artigos da

produção atual das pesquisas publicadas em anais, eventos e periódicos de pesquisa

reconhecidos por sua excelência na área.

Para incentivar cada jovem ao gosto e ao prazer de aprender, a capacidade de

aprender a aprender, além da curiosidade intelectual, voltada para um aprender

permanente, isto é, uma educação ao longo da vida, referente ao primeiro pilar, a cada

semana se sorteava a equipe que seria responsável pela condução da aula, assim como

um recurso didático que deveria ser usado para se planejar a atividade de discussão.

Tínhamos, assim, o elemento surpresa para cada aula, quase como jogo de sorte ou

azar, já que alguns temas eram tidos como mais fáceis que outros pelo senso comum,

assim como os recursos disponíveis, que compreendiam diferentes formas de expressão.

Com isso evitava-se que determinados grupos fossem prejudicados por problemas de

calendário e, também, se buscava estimular que todos os alunos, em algum momento,

tivessem papel protagonista no curso.

Consiste no segundo pilar, aprender a fazer, que seja desenvolvida uma formação

para uma profissão, com princípios de uma aprendizagem continuada, principalmente

para profissão da docência. No entanto, que não se restrinja à profissão, mas que se

desenvolvam as competências necessárias para lidar com os problemas da realidade

dinâmica e concreta da vida, para poder conviver com as mudanças e incertezas, uma

educação que possibilite uma visão abrangente e real a respeito da vida e do mundo.

No relatório da UNESCO é apresentada também a necessidade de se formar para

a autonomia nas tomadas de decisões, sob um ponto de vista crítico, com uma

capacidade para julgar e agir. Para Contreras (2012), a autonomia é um exercício da

responsabilidade e da moral que propicia a reflexão. Portanto, espera-se por uma

capacitação à responsabilidade e discernimento pelos impactos das ações pessoais no

meio ambiente e no destino coletivo, segundo Dellors. (2010)

A exigência de que cada equipe criasse e conduzisse uma atividade que

possibilitasse a condução da discussão de um dado tema estimulava o terceiro pilar,

aprender a conviver. A equipe responsável pela dinâmica de cada semana deveria fazer

uma pesquisa sobre o tema definido e disponibilizar outro artigo (TEXTO B) para a turma,

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com cinco dias de antecedência. A responsabilidade pela escolha dos textos, implicava

que todos os participantes do curso dependeriam de cada equipe em algum momento.

O terceiro pilar é compreendido pela necessidade de se entender melhor o outro,

conhecer e respeitar aos outros e ao mundo por meio do trabalho colaborativo e pela

interação. Tendo em vista os fatores que compõem cada biografia, as diversas histórias,

as tradições e a espiritualidade, são tais aspectos que influenciam indiretamente o

envolvimento e o reconhecimento de determinados elementos, com efeito cada pessoa

salienta em suas falas e ações de modo a tornar evidente tais elementos.

Dellors (2010) defende que há a necessidade de se criar um novo espírito que

potencialize a troca de conhecimento e a análise compartilhada dos saberes. Também de

se assumir os riscos, os desafios e principalmente a responsabilidade da condução à

realização de projeto. Além da necessidade de desenvolver pessoas para propiciar a

gestão inteligente e apaziguadora dos inevitáveis conflitos. De modo que se furte o

cinismo e a resignação notado nas relações de poder.

Para a formulação da atividade de discussão de um dado tema, cada grupo

deveria utilizar um recurso específico, que selecionamos: jogos; reportagens; maquetes;

instalações artísticas; esculturas; vídeos; fotografia; experimentos; textos literários;

músicas; colagens e jogos teatrais.

Temática Recurso1. Apresentação dos alunos e da disciplina Dinâmica 2.Interdisciplinaridade no Ensino de Ciências Vídeo3. Abordagens investigativas no Ensino de Ciências Música4.Analogias no Ensino de Ciências Colagem5.Argumentação no Ensino de Ciências Meios de comunicação/ reportagem6.Aspectos históricos no Ensino de Ciências Poesia e/ou texto literário7.Avaliação no Ensino de Ciências Condução da discussão pela docente8.Conhecimento dos professores no Ensino de Ciências Instalação, maquete ou escultura9.Materiais didáticos no Ensino de Ciências Audiovisual10.Modelos e visualização no Ensino de Ciências Jogos teatrais 11.Natureza da Ciência (NOS) no Ensino de Ciências Jogos12.Auto avaliação e avaliação da disciplina Dramatizações

Quadro 1 - Temas abordados nas aulas e recursos usados pelos grupos para conduzir a discussão

Consideramos que, devido ao uso de diversas linguagens nos recursos indicados

para a criação das atividades, essas proporcionaram aos estudantes o contato com

diferentes formas de expressão, verbal e não verbal, havendo um considerável

enriquecimento na maneira de cada grupo expor os conteúdos programáticos da

disciplina, sobretudo nas diversas interações entre os participantes.

A criatividade foi um elemento indispensável para a execução das atividades dos

grupos em cada aula da disciplina. Está relacionada ao quarto pilar, aprender a ser, para

Dellors (2010) é o pilar mais importante, pois visa o desenvolvimento da personalidade e

da capacitação para a autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Para isso a

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educação deve levar em consideração todas as potencialidades de um indivíduo:

memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se.

Ostrower (1978) considera o ato criativo intrinsecamente relacionado a

intencionalidade. A intenção pressupõe uma mobilização consciente para se ordenar o

que se deseja expressar, portanto, envolve a necessidade de compreender-se a si

mesmo minimamente, a ponto de reconhecer o desejo e/ou a emoção. Em outras

palavras, para se expressar é necessário selecionar e organizar o conteúdo. No entanto,

somente quanto se está atento, é possível inspecionar esse fenômeno da percepção

sobre a ação confrontada com a presença, interrogando e interpretando as condutas e o

estado de consciência propriamente dito. Neste sentido, Sartre (2014) propõem que a

consciência existe na medida exata à consciência objetivamente percebida, portanto,

requer um continuo exercício para se delimitar um círculo na percepção do sujeito.

Para o Professor Rafael Laboissière, pesquisador do CNRS (Centre National de la

Recherche Scientifique) da França, nos seus estudos transdisciplinares sobre a fala e

sobre o controle motor humano, em palestra sobre o tema: Neurociência, Fala e

Linguagem, proferida no Encontro Transdisciplinares: 2010, no Instituto de Estudos

Avançados Transdisciplinares, na UFMG, a fala e a linguagem são o que diferencia o

Homo Sapiens de todos os outros primatas. Em sua apresentação, apoiada nos estudos

da neurociência, mostrou uma comparação entre as áreas acionadas no cérebro do lado

esquerdo para se realizar um movimento, confrontando com as áreas acionadas no

cérebro do mesmo lado para se obter a fala. Apontou que para se executar um

movimento é necessário o envolvimento de praticamente todas as áreas do cérebro

desse lado, pois são acionadas diversas áreas sensoriais, sendo essas: a visão; a

espacialidade; a audição; percepção da posição dos membros do corpo; integração

multissensorial; os comandos motores; a coordenação dos movimentos, o que torna o

movimento fator essencial para que o Homo Sapiens tenha alcançado o desenvolvimento

das suas aptidões, sendo assim, o próprio desenvolvimento do cérebro. Para o

pesquisador o sistema nervoso é igual a movimento. Em comparação com a fala, são

observados impulsos nervosos, em movimento, entre duas áreas do cérebro, localizadas

especificamente no lado esquerdo. Em sua exposição, abandona por completo a ideia de

que o pensar é o responsável pelo desenvolvimento do córtex humano.

O uso dos diversos recursos nos mostrou que a expressividade, verbal e não

verbal, possibilitou uma experiência inédita para se promover a construção dos

conteúdos programáticos da disciplina, o uso do corpo como linguagem foi um dos

recursos de certa forma mais desafiador, como por exemplo a mímica. Outra evidência

com certo grau de espanto foi o fator sociabilidade, pois nas diversas interações

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estabelecidas entre os participantes nas aulas, esses passaram a se conhecer e

reconhecer na figura do outro.

Essa constatação ficou evidente na décima segunda aula, em que foi realizada

uma avaliação do processo desenvolvido ao longo do quadrimestre letivo,

compreendendo as seguintes dimensões: auto avaliação de cada participante, avaliação

do processo grupal vivenciado na disciplina e avaliação da metodologia adotada pela

professora. Essa avaliação, que será descrita mais adiante, foi inserida no processo com

a intenção de fechar um ciclo e ensino-aprendizagem voltado para uma formação crítico-

reflexiva dos envolvidos, tanto alunos, quanto professora. Consideramos o envolvimento

dos alunos em avaliações desse tipo um processo delicado, que deve ser construído e

aprofundado aos poucos. Para que chegássemos ao formato de avaliação adotado foi

fundamental identificar um processo de amadurecimento dos alunos ao longo das aulas,

que gerou as condições necessárias para a realização de uma conversa franca e

aprofundada sobre o papel de cada um dos envolvidos no processo vivido, ponderando

sobre suas contribuições e limitações, assim como, formas de aprimoramento futuro.

Em todas as aulas, os artigos de referência eram discutidos por meio de

atividades propostas e conduzidas pelos alunos, em que relacionavam os temas

discutidos com conhecimento prévios sobre o assunto e vivências pessoais, sempre com

suporte da professora da turma e da estagiária. De certo modo, foi possível confrontar

visões pré-concebidas com novas visões sobre a atuação de professores de ciências e

matemática e as várias maneiras de se introduzir um tema científico. Ainda, para alguns

temas, foi solicitado aos participantes da disciplina, que respondessem uma pergunta

elaborada de forma a relacionar, direta ou indiretamente, suas vidas acadêmicas e o

tema estudado, o que visava um aprofundamento na reflexão iniciada em sala. Para a

equipe responsável por uma dada aula era necessário que individualmente fizesse uma

análise de um dos artigos de referência adotados.

Assim, a medida que as aulas foram transcorrendo, os grupos foram se tornando

cada vez mais desenvoltos em suas propostas, surgindo evidências de que um processo

de maior amadurecimento e compreensão do trabalho criativo que deles era esperado,

mais próximo do lúdico e da interação, estava em andamento.

Os primeiros grupos mostraram-se com dificuldades para sair do modelo canônico

de seminário em suas propostas de condução das discussões acerca dos artigos de

referência, além de demonstrar um parco repertório artístico. De certa forma, tal situação

foi condizente com a falta de familiaridade dos estudantes com a proposta da disciplina,

já que os pré-supostos acima estavam subjacentes à componente curricular, que os

colocava em posição de maior autonomia diante da forma de condução das discussões e

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também trazia recursos em muitos casos bem distantes das práticas realizadas em seus

cursos de origem.

Para orientá-los tivemos que encaminhar as aulas com um maior rigor nas

intervenções realizadas pela professora da turma, como forma de evitar que os recursos

criativos utilizados se tornassem apenas formas de distração e alienação divertida, com

debates superficiais, inconsistentes e sem responsabilidade ética. Para tanto, foram

estipuladas orientações para a participação nas discussões em aula: delimitação do

tempo que o grupo condutor da aula tinha para desenvolver a atividade disparadora da

discussão com os colegas e exigência de que a participação de todos os alunos nas

discussões fosse sempre referenciada a trechos dos textos de referência.

Uma das propostas que bem evidenciou o amadurecimento das formas de

condução das aulas desenvolvidas pelos grupos e os resultados alcançados foi a que

utilizou o recurso instalação, realizada pelo sétimo grupo a conduzir uma discussão, na

oitava aula da disciplina. O tema era “Conhecimento dos professores no ensino de

ciências”, tendo sido adotados como referência para a discussão textos sobre “PCK”.

A equipe fez um varal que cruzava a sala de um

lado ao outro, em que prenderam papéis coloridos com

pregadores de roupa. Cada papel continha uma palavra

chave relacionada a um dos textos. Também trouxeram

um boneco que representava um professor/cientista.

Solicitaram aos participantes que selecionassem uma

palavra do varal e a colassem no boneco, de modo que

esta se relacionasse a uma parte do corpo do cientista.

Por exemplo, a palavra razão foi colada na cabeça. Em

seguida, os integrantes da equipe iniciaram uma

reflexão sobre cada palavra e a associação com o

membro do corpo escolhido, incitando a participação

dos colegas com perguntas e criando outras

associações para relacionar as palavras-chave com os

artigos utilizados como referência para a discussão.

Para finalizar esse relato, gostaríamos de descrever a décima segunda aula da

disciplina, que teve como tema a avaliação do processo e foi muito significativa, nos

motivando a compartilhar tal experiência.

A aula iniciou com a proposição por parte da professora de realização de alguns

jogos teatrais com o intuito de promover uma discussão sobre o processo vivenciado por

todos, enfatizando o caráter construtivo da avaliação. Depois de afastadas as cadeiras e

formada uma roda no espaço aberto, iniciamos o jogo de integração, atenção e agilidade

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chamado de “ZAP”, bastante conhecido no universo de aulas de teatro. O jogo ocorreu

em meio a muitas risadas, algumas de constrangimentos, e, entre falas às vezes

contraditórias, como: “Vamos fazer certo!” e “Não existe errado!”.

Após o jogo, os participantes foram convidados a caminhar livremente pelo

espaço, ocupando-o da forma ampla possível. Ao som de um bater de palmas emitido

pela professora passariam a andar em duplas, lado a lado, se despedindo ao som de um

novo sinal e voltando a andar sozinhos. Por meio desse processo, foram formados trios e

quartetos. Em seguida foi solicitado que, nos pequenos grupos, retomassem suas

memórias sobre as aulas passadas e escolhessem uma delas para representar por meio

uma imagem corporal. Essa imagem deveria ter um nome e seria apresentada para a

turma. Para alguns grupos, as imagens eram compostas não somente por esculturas

corporais, mas, também, por movimentos, o que acabou transformando-as em pequenas

cenas.

A primeira imagem se chamou: O abacaxi e a ferrari!. Esta remetia a um

comentário de um aluno do curso de engenharia na aula voltada para o tema

Interdisciplinaridade, uma das primeiras do curso, em que comparou o uso de recursos

naturais com a ineficiência e desperdício envolvidos, a imagem foi o uso de suco de

abacaxi como combustível para uma ferrari. Esse comentário gerou bastante

estranhamento da turma na ocasião em que foi emitido, por seu caráter tecnológico, e

aqui foi relembrado pelo grupo.

A segunda cena foi denominada pelo grupo como Mímica e ligação química. Aula

a que se relacionava teve como tema Modelos e visualizações no ensino. Segundo

comentário do grupo, esta aula foi bastante divertida, pois enquanto uma pessoa tinha

que fazer mimica para representar um modelo, os outro participavam tentando adivinhar.

A terceira, O homem com post-it!, referiu-se à proposta da instalação descrita

acima. Segundo a explicação dos alunos, nesta aula houve uma interação na classe,

onde todos tiveram que se comunicar para dizer o que consideravam mais importante

nas relações estabelecidas pelas palavras e pelas partes do corpo representada no

boneco.

A quarta imagem foi chamada Aquamen! e retomava uma história contada por um

dos alunos, em uma das discussões realizadas em aula, sobre uma professora que

convenceu todos seus alunos de que o homem surgiu da água.

A quinta cena, Entrevista, referia-se à maneira diferente de apresentação da

turma, feita em duplas no primeiro dia de aula.

A sexta imagem, A poesia e o conhecimento, trouxe à tona a forma marcante com

que um dos membros de grupo declamou uma poesia na aula sobre Aspectos históricos

no ensino de ciências.

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A sétima imagem, Interdisciplinaridade, trouxe a representação do semicírculo

formado pelos alunos durante todas as aulas para discussão dos temas, indicando

interdisciplinaridade como tema que entrelaçava praticamente todos os demais.

Após a apresentação das imagens e os comentários realizados tanto por aqueles

que estavam na posição de plateia, indicando suas interpretações sobre o que era

mostrado, e por aqueles que as construíram, indicando suas intenções de comunicação,

seguimos para as perguntas da auto-avaliação, avaliação do processo vivido e avaliação

da docente. A turma organizou-se numa roda de conversa e uma cestinha contendo

questões passava de mão em mão, enquanto uma música tocava. Quando a música

parava, a pessoa que estava com o cesto pegava um dos papéis, lia para todos da sala e

falava sobre a questão levantada durante 1 minuto. Havia a opção de responder a uma

pergunta por meio de dança.

A criação de imagem está atrelada à criatividade humana, para se formar uma

imagem no cérebro há uma combinação de aspectos intangíveis, como: o tempo, espaço,

a plasticidade da imagem; a apreciação, a contemplação e a percepção do indivíduo.

Havia uma complexidade do exercício acima descrito, pois os trios e quartetos deveriam

formar imagens com um tema ou situação que lembrasse aos demais um dos encontros.

3.Considerações finais

Tendo formulado tal perspectiva teórica, que adota em primeiro plano o criar, o

formar, e tendo compreendido que o gesto é uma ação singular, salientamos a

perspectiva de entendimento da construção do saber que valoriza o estimulo à criação

para o desenvolvimento da sensibilidade humana, sob os aspectos da necessidade de se

pensar numa nova educação, num novo mundo. Pois, somente quando se integra a

consciência com a sensibilidade é que podemos alcançar uma visão mais abrangente

para se construir uma cultura pautada na dignidade humana.

Tratar as habilidades pessoais como a criatividade; a intuição; a improvisação e as

tentativas humanistas como componentes ‘artísticos’ torna-se descortês aos artistas

intelectuais e de uma irracionalidade insustentada.

De acordo com Schön (1983, apud CONTRERAS; 2013) o dilema que carrega o

uso de procedimentos artísticos no ensino consiste que tais procedimento não

possibilitam se obter uma única situação (resposta), pois tratam de categorias como a

complexidade, a instabilidade e a incerteza, impossibilitando a aplicação do critério de

rigor ou relevância na avaliação. Tais categorias, ainda, fragilizam a condição de

autoridade da posição do professor, que detêm o conhecimento inquestionável, da

decisão unilateral para analisar situações como fixas e estáveis, próprio do Iluminismo,

em confronto com o desconforto de seus próprios preconceitos e das suas limitações,

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que o obrigariam a assumir a sua incompletude e a necessidade de uma continua análise

e revisão de sua prática.

O componente artístico é a forma criativa e espontânea para se responder de

maneira singular às diversas situações incertas e complexas da prática docente, já que

tais situações, frequentemente, estão relacionadas ao imprevisto, à incerteza e aos

dilemas, que são da ordem de conflito de valores, dentro de uma perspectiva em que se

interpreta e avalia de maneira pessoal e se valoriza as sensibilidades em detrimento das

autoridades e das regras normativas. Assim, tal componente, possibilita que as relações

se humanizem, de maneira que se estabeleça um contrato invisível entre os pares, em

que cada um assumi a responsabilidade das suas escolhas, transferindo o foco para a

experiência e para as relações e tornando o compromisso entre as pessoas o fator de

maior relevância.

Para Schön (1983, apud CONTRERAS; 2013) as atividades espontâneas da vida

diária, distinguem-se entre o “conhecimento na ação” e a “ reflexão na ação”. Quando

realizamos uma ação espontaneamente, sem compreender quais são as motivações

implícitas no fazer, o conhecimento não precede a ação, mas está na ação. Por outro

lado, em algumas ocasiões o pensar sobre o fazer, ou ainda enquanto se faz algo é

interativo, isto é, há uma análise sobre a ação em relação à situação. A análise da ação é

a maneira que possibilita o profissional, a partir do contexto da prática, reconhecendo-se

em suas escolhas, ao mesmo tempo que avalia a singularidade da situação. Assim a

reflexão na ação dirige o papel profissional dentro do contexto institucional e social de

maneira mais ampla, em contraposição à postura de apenas resolver os problemas de

acordo com determinados fins. “Nesse caso, a prática é em si um modo de pesquisar, de

experimentar com a situação para elaborar novas compreensões adequadas ao caso, ao

mesmo tempo que se dá a transformação da situação.” (CONTRERAS; 2013, p. 123)

Desta maneira a reflexão fomenta novos conflitos e discussões não só para

compreender a ação, mas também para questionar as instituições que abrangem o

contexto social, no qual está inserida a questão problema, gerando um diálogo entre a

ação e a reação manifesta. Neste sentido, o profissional é integrado à realidade e não

alheio a ela.

Dentro desse contexto, por que não dizer que podemos construir uma cultura

enraizada na sabedoria, que integra o conhecimento à vida, tomando a sabedoria não

apenas destinada a eruditos, mas para todos nós. Assim como a sensibilidade que não é

apenas privilégio de artistas, mas um estado desperto para se perceber as sensações?

Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, Nicolas. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

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CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2012.

DELLORS, J. Educação - Um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da

Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. 2010. Disponível em:

<http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001095/109590por.pdf> Acesso em: dez/2014

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