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MOVIMENTO ESCOLANOVISTA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ESPÍRITO SANTO: ATTÍLIO VIVACQUA, DEODATO DE MORAES E ADOLPHE FERRIÈRE Regina Helena Silva Simões Universidade Federal do Espírito Santo [email protected] Rosianny Campos Berto Universidade Federal do Espírito Santo [email protected] Palavras-chave: Formação de professores. Movimento escolanovista. Attilio Vivacqua. Introdução Este texto busca investigar a presença do movimento escolanovista no Espírito Santo entre os anos 1928 e 1930, quando Attilio Vivacqua esteve à frente da Secretaria da Instrução do Estado e comandou a reforma educacional durante o governo de Aristeu Borges de Aguiar. As nossas análises focalizam, especialmente, as estratégias que constituíram a formação docente como elemento fundamental da reforma. Para isso, mobilizamos uma documentação que consideramos capaz de contribuir para a compreensão dos encontros possíveis na circulação das ideias da escola activa. Nesse conjunto, tomamos como fonte principal o número 67 do periódico Pour L’Ère Nouvelle, publicado em 1931. Nosso objetivo é acompanhar o “encontro” produzido entre dois textos publicados nesse impresso: o artigo do professor paulista Deodato Moraes sobre a reforma da instrução pública no Espírito Santo, intitulado L’École active brésilienne d’Espirito Santo e o artigo do pedagogo suíço Adolphe Ferrière, L’Éducation nouvelle au Brésil, que ao falar sobre as iniciativas de renovação educacional no Brasil, enfatiza a experiência capixaba. Pedro Deodato de Moraes 1 havia sido convidado por Attilio Vivacqua, em 1929, para colaborar com a reforma da instrução capixaba. A Deodato cabia a função técnica de aplicar os princípios da escola nova por meio do processo de formação de professores que comandaria, especialmente, do Curso Superior de Cultura Pedagógica (CSCP), criado com o intuito de formar um grupo selecionado de professores capixabas dentro dos preceitos da

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Movimento da Escola Nova 1932

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Page 1: Movimento Escolanovista

MOVIMENTO ESCOLANOVISTA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO ESPÍRITO SANTO: ATTÍLIO VIVACQUA, DEODATO DE MORAES E ADOLPHE

FERRIÈRE

Regina Helena Silva Simões Universidade Federal do Espírito Santo

[email protected]

Rosianny Campos Berto Universidade Federal do Espírito Santo

[email protected]

Palavras-chave: Formação de professores. Movimento escolanovista. Attilio Vivacqua.

Introdução

Este texto busca investigar a presença do movimento escolanovista no Espírito Santo

entre os anos 1928 e 1930, quando Attilio Vivacqua esteve à frente da Secretaria da Instrução

do Estado e comandou a reforma educacional durante o governo de Aristeu Borges de Aguiar.

As nossas análises focalizam, especialmente, as estratégias que constituíram a formação

docente como elemento fundamental da reforma.

Para isso, mobilizamos uma documentação que consideramos capaz de contribuir para

a compreensão dos encontros possíveis na circulação das ideias da escola activa. Nesse

conjunto, tomamos como fonte principal o número 67 do periódico Pour L’Ère Nouvelle,

publicado em 1931.

Nosso objetivo é acompanhar o “encontro” produzido entre dois textos publicados

nesse impresso: o artigo do professor paulista Deodato Moraes sobre a reforma da instrução

pública no Espírito Santo, intitulado L’École active brésilienne d’Espirito Santo e o artigo do

pedagogo suíço Adolphe Ferrière, L’Éducation nouvelle au Brésil, que ao falar sobre as

iniciativas de renovação educacional no Brasil, enfatiza a experiência capixaba.

Pedro Deodato de Moraes1 havia sido convidado por Attilio Vivacqua, em 1929, para

colaborar com a reforma da instrução capixaba. A Deodato cabia a função técnica de aplicar

os princípios da escola nova por meio do processo de formação de professores que

comandaria, especialmente, do Curso Superior de Cultura Pedagógica (CSCP), criado com o

intuito de formar um grupo selecionado de professores capixabas dentro dos preceitos da

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escola activa, os quais seriam os propagandistas dos novos métodos de ensino entre os

professores do Estado.

Naquele mesmo ano, Deodato de Moraes concedeu à Revista Brasileira de Educação

uma entrevista que foi traduzida para o francês e publicada na revista Pour L’Ère Nouvelle.

No mesmo número, Adolphe Ferrière tece comentários sobre a entrevista de Moraes.

Com base na análise desses dois textos, buscamos compreender iniciativas de cunho

escolanovista desenvolvidas na tensão entre ideais de modernização da escola que circulavam

internacionalmente e condições locais que circundaram as experiências capixabas. Nesse

sentido, lançamos nosso olhar para a formação de professores como ponto chave da reforma

escolanovista capixaba.

O periódico Pour L’Ère Nouvelle - Revue Internationale d’Éducation Nouvelle, que

em 1931 estava em seu décimo ano,2 era um órgão da Liga Internacional para a Educação

Nova, sob administração do Grupo Francês da Educação Nova (Museu Pedagógico, Paris).

Tinha, naquele momento, como redator chefe, o pedagogo suíço Adolphe Ferrière, e

formavam o comitê de redação o Professor de Ciência da Educação e de Sociologia da

Sorbonne, Paul Fauconnet e o Professor de Psicologia da Criança da Universidade de

Bruxelas, Ovide Décroly.

Esse periódico é analisado neste texto numa relação com uma parte da documentação

produzida no Espírito Santo durante o período de reforma da instrução pública, a qual é

mencionada em Pour L’Ère Nouvelle. Trata-se de uma entrevista de Attilio Vivacqua

publicada no jornal governista Diário da Manhã e, posteriormente, publicada sob a forma de

brochura e, da Mensagem de Governo de 1929, proclamada pelo presidente do Estado Aristeu

Borges de Aguiar. Ambas abordam a reforma da Instrução Pública no Espírito Santo, ocorrida

entre 1928 e 1930.

Para o desenvolvimento das análises, tomamos como ponto de partida as ideias de

Ginzburg (2002) que, fundamentado em Walter Benjamin (1994), compreende que as fontes

precisam ser analisadas a contrapelo, sempre em busca das intenções daqueles que as

produziram. Para isso, no cruzamento dessas fontes, levamos em conta os contextos de

produção dos documentos, ao mesmo tempo em que buscamos fazer a leitura dos textos em

suas dobras, sem perder de vista o hors texte, ou seja, aquilo que está fora do texto, pois os

textos têm fendas.

Consideramos, assim, que as fontes analisadas fazem parte de um conjunto de

produções e de textos que focalizavam um ideário de escola nova e de escola activa em

Page 3: Movimento Escolanovista

circulação na cena internacional, mas, também, na cena local, que precisam ser analisadas em

seus encontros possíveis e nas tensões que provocam.

Escola activa capixaba e formação de professores: encontros entre as ideias de Adolphe

Ferrière e Deodato de Moraes

Entre os artigos publicados no número 67 de Pour L’Ère Nouvelle, em 1931, o

primeiro, assinado por Adolphe Ferrière, é construído com base em observações e

comentários sobre a escola nova no Brasil, enaltecendo as contribuições de Fernando de

Azevedo para o desenvolvimento da escola nova brasileira. Nesse texto, Ferrière pontua,

também, outras experiências de renovação educacional no Brasil, entre as quais a do Espírito

Santo. O texto de Deodato de Moraes, por sua vez, focaliza a reforma da instrução pública

capixaba a partir da influência escolanovista.

Inicialmente, Ferrière (1931, p. 85, tradução nossa) mostrou-se surpreso em “[...]

encontrar no Brasil uma das formas mais completas da educação nova! [e com os caminhos

da educação nova neste país que, do ponto de vista pedagógico, considerava] um dos mais

atrasados do mundo”.3 Destacando o enorme contraste entre a escola de “hoje” e a escola de

“amanhã”, chegou a vaticinar que “[...] se algum obstáculo não surgisse, a educação brasileira

seria uma das mais avançadas do mundo” (p. 85, tradução nossa).

Atribuía a Fernando de Azevedo – diretor da instrução pública no Distrito Federal e,

também, um dos articulistas desse número do periódico – a autoria do “milagre” que teria sido

produzido no campo da renovação educacional brasileira. Ferrière comparava Azevedo a um

Hércules capaz de erigir a escola “[...] inteiramente nova [na luta contra] a hidra de cem

cabeças do verbalismo” (FERRIÈRE, 1931, p. 86, tradução nossa).4

Após elogiar a proposta educacional de Azevedo, o próprio autor reconhece não ter

dados para falar da sua aplicação prática,5 mas não se furta a tomar como “inegável” o

entusiasmo dos professores, pelo menos da maioria deles, no acolhimento do ideário

renovador da educação. Nas palavras de Ferrière (1931), os mestres brasileiros haviam

encontrado o seu mestre em Azevedo.6

O pedagogo suíço comenta que a reforma promovida por Fernando de Azevedo havia

se espalhado por outras localidades além do Distrito Federal. Entre elas cita São Paulo, Bahia,

Pernambuco, Porto Alegre e Espírito Santo, Estado em que Deodato de Moraes dirigia uma

Page 4: Movimento Escolanovista

“Escola Normal” que Ferrière situava entre as mais bem concebidas da sua época: “[...] parmi

les mieux conçues qui existent” (FERRIÈRE, 1931, p. 88).

Fomos, assim, surpreendidas pelos elogios ao trabalho desenvolvido pelo educador

Deodato de Moraes no Estado do Espírito Santo. Um personagem que nos era familiar, tendo

em vista o seu envolvimento na instituição da reforma da instrução pública promovida por

Attilio Vivacqua no Espírito Santo entre 1928 e 1930, dentro dos princípios da escola activa.

Ao comentar em seu texto a Reforma realizada por Attilio Vivacqua no Espírito,

tomando como base a descrição de Deodato de Moraes publicada na Revista Brasileira de

Educação, Ferrière cita o trecho da entrevista que se assemelha muito ao que se encontra em

outros documentos, chegando a reproduzir partes de relatórios de Attilio Vivacqua sobre a

reforma da instrução, como o que foi publicado na Mensagem de Governo de 1929:

Em primeiro logar, a titulo de orientação do professorado, houve uma intensa propaganda das directrizes e processos da educação activa, tendo encontrado nessa phase preparatoria, enthusiastico acolhimento da parte do magistério estadual, cuja intelligencia e adeantamento, a par de seu reconhecido amor á causa do ensino, assegura um feliz exito ás iniciativas do governo (ESPÍRITO SANTO, 1929, p. 86).7

A narrativa apresentada por Ferrière, indicando a citação direta do relato de Moraes,

registra que a escola activa começou a ganhar lugar privilegiado no Espírito Santo por meio

das iniciativas de seus idealizadores de propagandear, entre os professores, os princípios da

escola activa. Eles seriam os sujeitos da transformação que se pretendia para o ensino.

Após essa fase, o investimento do Estado recaiu, especialmente, sobre o Curso

Superior de Cultura Pedagógica, aprovado pelo Decreto nº 9.297 de 22 de fevereiro de 1929,

para o qual se inscreveram além dos inspetores, professores e candidatos estranhos à

Secretaria, entre os quais professores de escolas particulares.

O curso foi criado juntamente com a Escola Activa de Ensaio, ambos instalados no

Grupo Escolar “Gomes Cardim”. Tratava-se de uma escola de aplicação destinada à prática

dos alunos do Curso Superior de Cultura Pedagógica, que constituiu uma das iniciativas de

maior destaque da reforma escolanovista no Espírito Santo. Nela aconteciam as aulas práticas

e técnicas do curso, por meio das quais os professores e inspetores em formação colocavam

em prática os preceitos aprendidos para, posteriormente, levá-los às escolas capixabas. A

intenção era que essa escola modelar passasse, mais tarde, de uma escola transitória para uma

escola modelo permanente, chegando a ser conhecida como Escola Activa Brasileira de

Victoria.

Page 5: Movimento Escolanovista

Em um de seus relatórios, Attilio Vivacqua já anunciava a importância da formação de

professores que pudessem colaborar com a causa da reforma. Ao citar Fernando de Azevedo,

o secretário capixaba argumentava:

O problema da educação [...] é objectivamente um problema de organização e substancialmente um problema de formação do professorado, em cada uma das funcções especializadas ou não que lhe estejam reservadas na variedade solidária das instituições escolares (VIVACQUA, 1930, p. 29, grifo nosso).

Com vistas a solucionar esse problema investiu-se em um programa de formação

extenso que se dividia em quatro partes: Pedagogia científica, Didática, Escola activa e

“Questões técnicas e sociais. O programa, publicado pela Resolução nº. 257, em 31 de agosto

de 1929, estava organizado da seguinte maneira:

Programa do Curso Superior de Cultura Pedagógica Pedagogia Scientifica

Noções geraes sobre pedagogia; Exame anamnésico; Exame somático; Exame physio-psycologico; Exame psycologico; Psycologia do insconsciente; principios do prazer e do real; A censura; cadeias associativas; Affectividade; Sublimação; Tests; Psycotechnica; Higyene escolar e pedagogica; Educação Physica; Escolas ao ar livre

Didactica Fins, principios e meios do ensino; Modos de ensino; Methodos de ensino; Formas de ensino; Processos de ensino

Escola Activa Velhos e novos systemas educativos; A escola como fundamento social e democratico; Tendencias instictivas e latentes; Impulsos e emoções; A escola do trabalho; Typos de escolas do trabalho; A escola funccional ou activa; Typo de escola activa; A escola Activa de Decroly; Varios typos de escola activa americana; A escola e a communidade; Liberdade e individualidade na escola activa; A escola activa como funcção social; A escola activa e a saude; A escola activa e o sentimento de brasilidade; O problema da saude na escola activa brasileira; Educação physica e hygiene mental na escola activa; Educação da saude nos jardins de infancia; escolas elementares, complementares, normaes e superiores; Inspecção de saude; Educação intellectual na escola activa; Publicações escolares; Educação esthetica na escola activa; Educação do sentimento na escola activa; Educação manual na escola activa; Educação economica; A leitura e a linguagem; Como ensinar gramatica na escola activa; O estudo da natureza; Museus, Laboratorios; Ensino primario agricola; Como ensinar geographia e historia na escola activa; o ensino activo da arithmetica e da geometria

Questões Technicas e Sociaes

A Escola Normal; O primeiro contacto do professor com o mundo e as autoridades escolares; O professor no bairro, nas villas e nas cidades; Cooperação da escola e da familia na obra educativa; A educação do caboclo, do indio e do immigrante; A inspectoria escolar; Ensino technico profissional; Ensino secundario; A organização dos quadros nacionaes; Associações nacionaes e internacionaes de professores

Quadro 1: Programa do Curso Superior de Cultura Pedagógica Fonte: VIVACQUA, Attilio. Escola Activa brasileira: sua aplicação no Estado do Espírito Santo. Vitória: Separata do Boletim de Educação da Secretaria da Instrucção do Estado do Espírito Santo, 1930. p. 6-11.

Desenvolviam-se aulas teóricas, práticas e técnicas. As primeiras aconteciam em

conferências públicas e tomavam como referência uma “documentação científica” baseada em

gráficos, diagramas, esquemas e projeções cinematográficas. Dessas aulas poderiam participar

Page 6: Movimento Escolanovista

outras pessoas, mesmo que não tivessem vinculação com o Curso ou com a Secretaria de

Educação (VIVACQUA, 1930).

Figura 1 – Momento de aula do Curso Superior de Cultura Pedagógica Fonte: Moraes (s/d, p. 14).

Ao elogiar as reformas conduzidas no Brasil, dentre elas a do Espírito Santo (1927-

1930), Adolphe Ferrière ressaltava essa centralidade da formação docente na condução das

mudanças no campo da educação: “[...] de fato é na preparação de professores que se

encontra, no Brasil como em outros lugares, a chave de toda a reforma. Com ela o sucesso

está assegurado, sem ela, é o caos irremediável” (FERRIÈRE, 1931, p. 88, tradução nossa;

grifo nosso). Desse modo Vivacqua, Deodato e Ferrière compartilhavam a mesma “crença”

que era, também, o motor da reforma capixaba.

No Espírito Santo, apostava-se fortemente na formação de professores como base para

a “[...] preparação de um corpo nuclear de propagandistas e aplicadores da escola nova”

(VIVACQUA, 1930, p. 29). Os professores seriam “guias zelosos”, amigos solícitos capazes

de aconselhar os alunos e dar bons exemplos.

Partindo desses princípios, o Curso Superior de Cultura Pedagógica, pensado e

ministrado por Deodato de Moraes, teve duração de dez meses durante os quais os

participantes, cuja frequência era obrigatória, dedicavam-se a cinco horas diárias de estudos.

Page 7: Movimento Escolanovista

Para participar do curso, inspetores e professores eram dispensados de suas ocupações e

recebiam uma gratificação.

No CSCP se ensinava, segundo Moraes (apud Ferrière, 1931, p. 88, tradução nossa):

“[...] antropologia pedagógica, anatomia e psicologia humana, psicologia experimental,

psicotécnica, algumas noções de psicanálise, didática, princípios biogenéticos de escola activa

e questões sociais”. Conhecimentos que confeririam à escola activa capixaba a carga

científica que se pretendia dar a ela.

Figura 2 – Exame technico-scientifico na Sala de Saude da Escola Activa de Ensaio. Fonte: Vivacqua (1930, s/p).

A entrevista de Deodato de Moraes, transcrita em Pour L’Ère Nouvelle, aprofunda as

intenções do Curso Superior de Cultura Pedagógica e aborda as iniciativas de Attilio

Vivacqua em busca da criação de uma faceta particular da escola activa no Espírito Santo.

Para Attilio, era preciso dar à escola activa uma fisionomia brasileira.

A ‘Escola Activa’ como está sendo praticada na Europa, onde se originou, para attender a uma angustiosa circumstancia do momento europeu, não se enquadraria, integralmente adaptada, no actual momento brasileiro, trabalhado por uma tão forte e tão varonil tendencia de brasilidade. No interesse nacional era preciso modifical-a dotando-a de todas as inovações capazes de interpretar, com intelligencia, as necessidades sociaes brasileiras (VIVACQUA, 1929, p. 8-9).

Page 8: Movimento Escolanovista

Assim, Attilio enfatizava a importância de dar à escola activa capixaba uma

configuração que respondesse às necessidades locais. Mais do que isso, para ele, seria preciso

conferir aos novos preceitos educacionais nuances que atendessem as necessidades não

somente do Estado, mas dos diferentes lugares onde a escola activa viesse a se instalar.

O CSCP, no modo como Deodato o apresenta em sua entrevista, tinha intenções mais

amplas do que a formação daqueles que o frequentavam. A função do primeiro corpo de

professores e inspetores formados por ele seria intervir diretamente nas instituições em que

atuavam e propagandear o que haviam aprendido nas instituições pelas quais passassem.

No encontro entre a entrevista de Deodato, os comentários de Ferriére e os

documentos produzidos no Espírito Santo é possível ler pistas e indícios (GINZBURG, 2003)

da movimentação de ideias em torno da renovação educacional. Por se tratar de uma

publicação da Liga Internacional para a Educação Nova, o periódico Pour L’Ère Nouvelle

estava profundamente engajado na defesa de uma escola nova, inclusive porque, seu redator

chefe era ninguém menos do que Adolphe Ferriére, chamado de profeta, advogado entusiasta

e apóstolo da educação nova (PERES, 2002). Consideramos, também, que o texto de Ferrière

dialoga com a entrevista de Moraes sobre pressupostos e princípios da reforma da educação

capixaba, a qual, um ano antes da publicação do periódico analisado, havia sido interrompida

pela revolução de 1930 (SOARES, 1998).8

Em linhas gerais, o educador suíço avaliava positivamente o movimento de renovação

educacional e os pressupostos que orientavam as reformas empreendidas em diferentes

Estados brasileiros para transformar a educação escolar. E, como estabelecemos

anteriormente, no Estado do Espírito Santo, Deodato de Moraes foi peça chave na reforma

promovida pelo secretário da instrução pública ao final da década de 1920.

No recorte proposto neste texto, portanto, interessou-nos acompanhar, por meio do

texto que é fruto da entrevista de Moraes (1931) os pressupostos que orientaram a reforma da

instrução pública no Espírito Santo, e do texto de Ferrière (1931) que trata do movimento

escolanovista no Brasil, destacando na experiência capixaba, a circulação de visões da

renovação educacional, baseadas, principalmente, na formação científica dos professores,

como encontro produzido entre os dois textos, uma vez que a formação docente era

compreendida como uma espécie de “garantia” para as mudanças educacionais.

Dessa forma, operando a partir das interlocuções abertas por esses textos que

dialogavam com leituras escolanovistas9 expressas na reforma educacional realizada no

Espírito Santo, ao final da década de 1920, e relatadas por um dos seus condutores, buscamos

Page 9: Movimento Escolanovista

conhecer processos de circulação de ideias de renovação educacional no Espírito Santo

tomando como eixo de análise as estratégias desenvolvidas para a formação de professores.

Em busca de compreendermos que aspectos da renovação educacional brasileira

pareciam mais ou menos atraentes do ponto de vista de Ferrière, observamos, por exemplo,

que o autor ressalta a centralidade da formação docente na condução das mudanças no campo

da educação: “[...] de fato é na preparação de professores que se encontra, no Brasil como em

outros lugares, a chave de toda a reforma. Com ela o sucesso está assegurado, sem ela, é o

caos irremediável” (FERRIÈRE, 1931, p. 88, tradução nossa).

Outro ponto destacado por Ferrière com relação ao Brasil era a seriedade na condução

das ações educacionais renovadoras, que partiam “[...] da matéria viva: crianças, sociedade,

profissões e indústrias do país [...]” (FERRIÈRE, 1931, p. 89, tradução nossa). Respaldado

pelos seus próprios escritos, sai em defesa da educação pensada a partir da vida local de cada

sociedade, criticando, porém, traduções fortemente nacionalistas da adaptação dos preceitos

da escola nova a diferentes contextos, quando “[...] o ‘nacionalismo’ de certos mestres

algumas vezes chega longe demais e beira o cômico” (p. 89).

Entendemos que a reforma no Espírito Santo combina ambos os elementos acima

descritos por meio de um programa ambicioso de formação de professores e as diretrizes

escolares em que as questões técnico-pedagógicas (leia "pedagogia científica" e "didática")

misturavam-se com temas técnicos e sociais, tais como ideais de nacionalismo, reforma

educacional e coesão social, como foi possível observar no quadro 1.

Assim, no texto de Moraes lemos tanto aquilo que encantava Ferrière, ou seja o

trabalho com professores e alunos – que ele fez questão de citar diretamente no texto que

escreveu sobre a escola nova no Brasil –, ou como intenções nacionalistas claramente visíveis

no artigo redigido diretamente pelo brasileiro. A descrição de Moraes não disfarçava o ardor

nacionalista, chegando a falar do programa de ensino capixaba no contexto de um amplo

esforço “[...] enérgico e tão viril para despertar o espírito nacional” (MORAES, 1931, p. 96,

tradução nossa).

De alguma forma a crítica dirigida por Ferrière, ainda que vagamente dirigida a

“certos mestres”, resvala no forte sentimento nacionalista expresso no programa descrito por

Moraes. Entre a cópia servil de modelos importados, a necessidade de adaptações locais e o

“nacionalismo” que parecia incomodá-lo, o pedagogo suíço não perdeu a oportunidade de

questionar possíveis afinidades psicológicas dos brasileiros com os latinos da Europa (citando

nominalmente Montessori e Decroly), em detrimento dos anglo-saxões “[...] ultra

individualistas em um sentido e, em outro, ultra conservadores como na América do Norte”

Page 10: Movimento Escolanovista

(FERRIÈRE, 1931, p. 89). Ferrière condenava sectarismos em torno de “verdades” teóricas e

metodológicas tomadas como elementos unificadores em qualquer escala. Para ele, “[...] o

nacionalismo estendido aos limites do continente [seria comparável a] uma bolha de sabão”

(p. 89, tradução nossa).

Considerações finais

Na leitura desses encontros, entendemos que a tensão entre a importação de modelos,

a necessidade de adaptação local das ideias importadas e o sentimento nacional(ista) em torno

do qual buscavam-se adesões ao projeto educacional renovador como alavanca para o

progresso, expressa no encontro dos textos de Ferriére e Deodato de Moraes, inevitavelmente

atravessava a reforma da instrução pública no Espírito Santo de 1928 a 1930, comandada por

Attilio Vivacqua.

Deve-se observar que na história brasileira, as décadas de 1920 e 1930 constituíram

momentos marcados tanto pela afirmação da brasilidade, por meio de manifestações culturais

deflagradas pela Semana de 1922, como pelas convicções nacionais desenvolvimentistas

empunhadas pela Revolução se 1930.

Situada nessa tensão, a reforma educacional proposta para o Espírito Santo deve ser

entendida na mistura de sentimentos de brasilidade, em ardores cívicos que facilitavam

adesões de segmentos sociais mais amplos, e de postulados de ordem “científica” no processo

de adaptação dessas orientações à realidade local.

Nesse processo de adaptação, os textos de Ferrière e de Moraes acerca da reforma

capixaba, afirmam como ponto comum o recurso à formação científica de professores capazes

de traduzir, em suas lições, uma educação nova. Em outras palavras, reformas ainda que

pensadas a partir de lideranças como, por exemplo, Fernando Azevedo – a quem Ferrière

atribuía força hercúlea capaz de derrotar “a hidra de cem cabeças” do atraso na educação –

insurgem, na outra ponta, legiões de professores/as anônimos trabalhando em condições

extremamente desfavoráveis em escolas brasileiras.

Entendemos, assim, a existência de pelo menos duas maneiras de interpretar a

centralidade da formação de professores nas reformas da educação: a primeira, que reconhece

como indispensável o envolvimento e a preparação docente para atender aos objetivos das

mudanças propostas e; a segunda, que subtende as mudanças entendidas como consequência

Page 11: Movimento Escolanovista

imediata de programas de treinamento, ou seja, a formação docente por si só vem a ser

entendida como materialização da mudança.

Na tensão entre esses dois modos de perceber a docência, pela via da leitura das fontes

a contrapelo (BENJAMIN, 1994, GINZBURG, 2001, 2002), legiões de professores/as

anônimos/as, cujo trabalho tem sido realizado – no passado e no presente – em condições de

precariedade, invadem as fendas dos textos. Compreendemos que, na medida em que essas

legiões desfilam no filme rebobinado da história da educação no Espírito Santo (BLOCH,

2001), a leitura de scripts familiares, ainda que irrepetíveis, podem provocar no presente,

como queria Walter Benjamin, o relampejar da história em momentos de perigo da profissão

de professores.

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1). ESPIRITO SANTO (Estado). Decreto nº 9.750, de 30 de agosto de 1929. Secretaria do Interior. Leis votadas pelo Congresso Legislativo do Estado do Espírito Santo: sessão ordinária de 1929. Victoria: Officinas do “Diário da Manhã”, 1930. FERRIÈRE, Adolphe. L’Éducation nouvelle au Brésil. Pour L’Ère Nouvelle. Revue Internacionalle d’Education Nouvelle. Paris: Musée Pedagogique, 1931. p. 85-90. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. MORAES, Deodato de. L’École active brésilienne d’Espirito Santo. Pour L’Ère Nouvelle. Revue Internacionalle d’Education Nouvelle. Paris: Musée Pedagogique, 1931. p. 96-99. PERES, Eliane Teresinha. O diabo inventou a escola? A escola ativa na visão de Adolphe Ferrière. In: 25 Reunião Anual da ANPEd, 2002. Anais... Caxambu: 1. CD-ROM. SOARES, Renato Viana. A escola activa antropofágica que a “revolução” de 30 comeu. São Paulo: Lei Rubem Braga-Darwin, 1998.

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VIVACQUA, Attilio. Escola ativa brasileira: sua aplicação no Estado do Espírito Santo. Separata do Boletim de Educação, da Secretaria de Instrucçao do Estado do Espírito Santo. Vitória, 1930. VIVACQUA, Attilio. O ensino público no Espírito Santo. Entrevista concedida ao Diário da Manhã. 1929. 1 Deodato de Moraes era um pedagogo paulista. Foi professor de Pedagogia e de Psicologia Experimental da Escola Normal de São Paulo, além de Inspetor Escolar do Distrito Federal e membro do conselho diretor da Associação Brasileira de Educação. De acordo com Monarcha (2009), era herdeiro das ideias de Oscar Thompson e frequentou o Curso de Alta Cultura Psicológica ministrado pelo médico-pedagogista italiano Ugo Pizzoli, e realizado na Escola Normal da Praça, de São Paulo. Para o autor, Deodato estava ligado com as ideias escolanovistas em circulação naquele começo dos anos 1920, especialmente com os pressupostos de uma escola ativa. Ele fazia parte de “[...] uma intelligentsia envolvida com o internacionalismo e a reflexão inovadora” (MONARCHA, 2009, p. 147, grifo do autor). 2 Pour L’Ère Nouvelle. Abr. Ano 10, abr./Mai. 1931, n. 67. 3 “Quelle surprise de rencontrer au Brésil une des formes les plus completes de I’ Education nouvelle! Hier encore, e’était au point de vue pédagogique un des pays les plus arriérés du monde” (FERRIÈRE, 1931, p.85). 4 “L’hydre aux cent têtes du verbalisme renaissait toujours. Il fallait un Hercule pour lui plonger l’épée dans le coeur et mettre sur pied une école entièrement neuve. Cet Hercule, ce fut M. Fernando de Azevedo” (FERRIÈRE, 1931, p. 86). 5 Ferrière chegou a visitar a América do Sul, a convite da seção da Ligue Internacional pour L’Éducation Nouvelle do Chile, mas ao aportar no Brasil o seu desembarque foi obstado pelos acontecimentos Revolução de 1930 (PERES, 2002). 6 “Mais ce qui prouve que la réforme est autre chose et plus qu’un règlement imprimé et approuvé par les autorités, ce qui donne pleine confiance en I’avenir, c’est le fait qu’un bel enthousiasme s’est empire du corps enseignant lui-même. Les maîtres ont trouvé leur Maître, le chef ideal qui doit les conduire au success, et avec eux, les enfants, la nation elle-même” (FERRIÈRE, 1931, p. 85). 7 No texto de Ferrière lê-se: “En première lieu, à titre d’orientation du corps enseignant, le secrétariat de l’Instruction publique a fait une propagande intense em favoeur des directives et méthodes de l’éducation nouvelle. Puis, on a entrepris la reforme par la base em soumettant le corps des inspecteurs à un concours rigoureux de pédagogie, psychologie, didactique, hygiène et questions sociales, selectionnant ainsi les éléments de son quartier general” (FERRIÈRE, 1931, p. 88). 8 Foi a mesma Revolução de 1930 que impediu o desembarque, no Porto do Rio de Janeiro, de Adolphe Ferrière, que estava em viagem pelas Américas. Ferrière pretendia conhecer o modo como a Escola Nova estava sendo praticada no Brasil. Diz ele: “A Rio, nous devions être les hôtes du Ministères des Affaires étrangères. Oui dà ! Personne au bateau. Nos messages par avion avaient été interceptes. Téléphone. On nous dit : ‘Rembarquez-vous, la révolution va éclater ici.’ Et em effet, le lendemain, um radio reçu sur le vaisseau, nous informait que le gouvernement était renversé. Ce son de petits ‘grains’ auxquels il faut s’attendre quand on voyage dans les Ameriques” (FERRIÈRE, 1931, p. 90). 9 Attílio Vivacqua (1930, p. 22, grifo nosso) inseria a reforma promovida no Espírito Santo na cena “[...] do grande movimento de renovação pedagógica, imposto como imperativo categórico da civilização hodierna [...]”. Salientava a expansão mundial do escolanovismo, destacando a experiência da Turquia que “[...] sahida ontem dos escombros de uma velha civilização, commissiona John Dewey e Adolphe Ferrière, dois apóstolos da escola nova [...]” para promover mudanças na educação local.