montaigne, michel de. sobre a vaidade

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Sobre a Vaidade Montaigne fácio de André COJnt~-Sponville Martins Fontes

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Page 1: MONTAIGNE, Michel de. Sobre a Vaidade

Sobre a Vaidade

Montaignefácio de André COJnt~-Sponville

Martins Fontes

Page 2: MONTAIGNE, Michel de. Sobre a Vaidade

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SOBRE A VAIDADEMontaigne

Prefácio

ANDRÉ COMTE-SPONVILLE

TraduçãoIVONE CASTILHO BENEDETTI

Martins FontesSão Paulo 1998

Page 3: MONTAIGNE, Michel de. Sobre a Vaidade

\

Prefácio

Esta obra foi puhlicado origina/mente em ji-ancês como título DE LA VANITÉ.

Copyright © Éditions Rivages, Paris, 1989.

Copyright © Livraria Marfins Fontes Editora Ltda.)

São Paulo, 1998, para a presente edição.

l. Ética 2. Filosofia francesa 3. Orgulho e vaidade I. Título. 11.Série.

Ia ediçãooutubro de 1998

TraduçãolVONE C. BENEDEIT1

Título original: De Ia vanité.ISBN 85-336-0952-3

Evidentemente, o melhor é ler os Ensaios por intei­ro. Mas é uma leitura difícil, às vezes árdua, e de lon­go fôlego para nossos tempos de impaciência ... Aliás,não é imprescindível começar pelo livro I, que é o me­nos original, o menos pessoal, o menos profundo, e noqual o leitor contemporâneo poderá ver apenas umcatálogo, muitas vezes tedioso, de anedotas ou cita­ções ... O próprio exemplo de Montaigne deve deixar­nos à vontade: ele mesmo, que foi grande leitor, não seachava obrigado a seguir um autor da primeira à últi­ma página, e preferia folhear os livros ao acaso, "semordem nem desígnio, em pedaços descosidos ... ". Porque não faríamos o mesmo com ele? Ser-lhe respeitosoem demasia é ser-lhe infiel, e ele seria o primeiro aincentivar em nós uma familiaridade mais espontânea.

Contudo, não é autor que se preste a fragmentosescolhidos: nele há uma continuidade de pensamento,mesmo com solavancos, que dificilmente suporta cor­tes, e ele mesmo viu perfeitamente que seus primeiroscapítulos, curtos demais, interrompiam e dissolviam aatenção, como diz, antes mesmo de ela nascer. Sua com­posição, caprichosa, tem um encanto inimitável, por

,'I

CDD-194

Revisão técnica

Luís Felipe Pondé

Revisão gráficaMaria Cecília de Moura Madarás

Solange Martins

Produção gráficaGeraldo Alves

Paginação/Fotolitos

Studio 3 Desenvolvimento Editorial (6957-7653)

Índices para catálogo sistemático:1. Filosofia francesa 194

Todos os direitos para a língua por)guesa reservados àLivraria Marfins Fonteildüora LIdo.Rua Conselheiro Ramalho, 330/34001325-000 São Paulo SP Brasil

Tel. (011) 239-3677 Fax (011) 3105-6867

e-mail: [email protected]

http://www.martinsfontes.com

Dados Internacionais de Cataiogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Montaigne, Michel de, 1533-1592.

Sobre a vaidade / Montaigne ; tradução Ivone C. Benedetti. - São

Paulo: Martins Fontes, 1998. - (Clássicos)

98-3936

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ele muito bem definido: "Aprecio o andamento poético,com saltos e cabriolas. Como diz Platão, é uma arte leve,volúvel, demoníaca [isto é, divina] Meu estilo e meuespírito vão assim vagabundeando " Romper-lhe o fioseria empobrecê-Io. O melhor, então, será tomar umcapítulo, nele mergulhar, nele perder-se talvez, e avan­çar. Mas que capítulo?Aos amigos que queriam iniciar­se em Montaigne sempre aconselhei ler primeiro - vis­to que cumpre começar - o capítulo 9 do livro III. Ainiciativa hoje tomada pelas edições Rivages, de publi­cá-Io à parte, pareceu-me, pois, muito feliz e capaz deangariar para Montaigne, que já tem tantos leitores,mais alguns talvez. Este pequeno livro não tem outraambição, mas essa já basta para justificá-Io.

Esse capítulo 9, como notava Villey\ tem uma im­portância excepcional: ele "domina -todo o terceirolivro", que domina os Ensaios. Como Montaigne do­mina - ao lado de alguns outros - a literatura france­sa, não há risco em afirmar que estamos diante de umtexto maior. Uma obra-prima? É dizer pouco e ao mes­mo tempo demais: esse texto, um dos mais belos quetemos, um dos mais verdadeiros, é também o menospretensioso, o menos pontificante, o menos artificialde todos. Se é uma obra-prima, como de fato é, issose deve um pouco ao acaso, ou melhor, a essa neces­sidade imprevisível a que hoje damos o nome de

gênio e que outra coisa não é, em se tratando de Monjtaigne, senão o próprio Montaigne, com seu gosto e~tremo pela verdade, com o desprezo pelo artifício e

1. Em sua edição dos Essaís, 1924, reed. PUF, 1978, p. 944.

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__________. Sobre a vaidade

com a liberdade sem igual de atitude e tom... Sim: ogênio de Montaigne é Montaigne, e isso, que talvez sejao essencial de sua mensagem, torna-o, parece-me,mais próximo de nós e mais fraterno que qualqueroutro dos grandes escritores que ele admirava ou queaqueles, mais numerosos ainda, que o admiraram. To­dos conhecem as belas palavras de Nietzsche: "O fatode tal homem ter escrito realmente aumenta o prazer deviver nesta terra!" Como é verdade isso, e como é raro,e como é precioso!

Nosso ensaio, pois, chama-se Sobre a vaidade. Nãose deve esperar um tratado segundo as formas habituais,que analise ou discuta essa noção. Somos tentados adizer que nele se fala de tudo, até - mas não só nemsobretudo - da vaidade ... Montaigne explicou-se: "Os

nomes de meus capítulos nem sempre abarcam a ma­téria de que tratam ",e especialmente no livro III seriapossível multiplicar os exemplos eIlI-5, I1I-6, I1I-l1...).Em se tratando do capítulo 9, porém, não é absoluta­mente certo que o título não convenha, apesar de tudo,em termos de profundidade. É verdade que só se falaem vaidade quatro ou cinco vezes, sempre com brevi­dade, muito menos, por exemplo, que de morte, deviagens ou das desgraças do tempo ... Mas é precisoreler o seu começo. Logo depois do título, Montaignecomeça: "Talvez não haja vaidade mais clara do quesobre ela escrever de maneira tão vã. "Esse é um mo­do de nos advertir que o discurso será adequado a seuobjeto, mesmo quando - e talvez principalmente quan­do - ele der a impressão de tê-Io esquecido. Falar devaidade com excessiva seriedade seria confundir ascoisas ou deixar-se confundir. E na evocação da Bí-

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blia: "O que a divindade tão divinamente exprimiu ... "trata-se evidentemente do famoso versículo do Ecle­siastes: "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade ... "Mas,se tudo é vaidade, pode-se falar de tudo o tempo todoestando-se a falar dela, e é isso o que faz Montaignenes,se capítulo e, em certo sentido, em todos os ou­tros. Vaidade da literatura ( "escrevinhação "O, vaidadedas leis e das revoluções, vaidade das viagens e damorte, vaidade mesmo da sabedoria e de todos os dis­cursos sobre a vaidade ... Montaigne é nosso Eclesias­tes até certo ponto, salvo pelo fato de não detestar avida, pelo contrário, e de suportar, sem esquivar-se, avisão do nada que nos faz viver e que nós somos. Nos­so Ec1esiastes, portanto, e ao mesmo tempo seu remé­dio. Quem, como Montaigne, quer olhar-se com aten­ção só vê "miséria e vaidade", é certo, mas isso émelhor do que aí nada ver: a lucidez nos liberta pelomenos de nossas ilusões sobre nós mesmos - estamos

"cheios de inanidade e futilidade" - e deixa-nos namelhor disposição possível em face da vida, que é ade nada esperar dela e de gostar dela, portanto, do mo­do como ela vem. "Não busco nada além de passar",escreve ele, e nisso tem certeza de que será bem-suce­dido. Dirão que é um objetivo sem grandeza, e isso àsvezes é o que Montaigne parece confessar: "Contento­me em usufruir o mundo sem muito ardor, em viveruma vida tão-somente desculpável, e que só não pesepara mim nem para outrem. "É um objetivo - respon­deria eu de bom grado - tão válido quanto outros eque, pelo menos, não impele a massacres.

Mas a verdade é que não se trata de um objetivo.Quando escreve essas linhas, Montaigne não tem mais

VIII

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_______________ Sobre a

idade, nem gosto, para "grandes esperanças", comodiz, e pouco lhe importa dar lições. Engana-se quemqueira ver nele um moralista: ele não diz o que é pre­ciso fazer, mas o que se faz, não o bom mas o real,não a sabedoria mas a vida. E aí está no que ele é filó­sofo, diga ele o que disser por vezes, e sábio a seu mo­do, e mais filósofo que nossos sofistas, e mais sábioque os sábios - e os houve - que levaram a sabedoriademasiadamente a sério para perceberem, e aí vamosnós de novo, a sua vaidade ... Não há objetivo, não háfinalidade, ou então eles são todos vãos. "A vida é amira de si mesma"; não vai para parte alguma; passa,simplesmente passa, sem coerência nem progresso: "Éum movimento de bêbado titubeante, vertiginoso, in­forme, ou dos juncos que o ar maneja casualmente(isto é, ao acaso), a seu bel-prazer ... "A singularidadede Montaigne é aderir a esse movimento, descrevê-Io,narrá-Io: "Os outros formam o homem; eu o recito ...Não ensino, conto ... "

Ora, o que tem ele para contar? A tristeza? A an­gústia? O horror do nada ou de tudo? Ao contrário, enisso refuta o Ec1esiastes e Pasca1. A visão clara da vai­dade das coisas e do eu liberta o espírito de suas ob­sessões, e o torna disponível - sem remorsos e quasesem esperanças - para o maravilhoso prazer de viveresta vida passageira e imperfeita, tão vã e - para quemaceite "servi-Ia segundo sua vontade" - tão agradável!

Sabedoria trágica, houve quem dissesse.2 Pode ser.Porém mais próxima, pelo menos segundo a imagem

2, Ver Mareei Conehe, Montaigne et Ia philosophie, Éditions deMégare, 1987 Ceap. IV: Le pari tragique).

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que ele tem, de Demócrito que de Heráclito: "Demó­crito e Heráclito foram dois filósofos: oprimeiro, achan­do vã e ridícula a condição humana, só saía em públicocom semblante gozador e rindo; Heráclito, por ter pie­dade e compaixão dessa mesma condição nossa, tinhao semblante continuamente triste e os olhos repletos delágrimas L . .J Agrada-me mais a primeira disposiçãoL,,]" Na verdade, o que ele reencontra é a sabedoriaepicurista, ou melhor, aquilo que há de epicurista em todasabedoria: "É preciso estender a alegria, mas cerceartanto quanto possível a tristeza. "Pascal, que soube tãobem ler e admirar Montaigne, não lhe perdoará essasabedoria "familiar, ingênua, chistosa, jovial", que des­denha a graça e só inspira nos homens "uma salvaçãoindolente, sem temor e sem arrependimento" ... Mas édisso que gostamos nele, do fato de esse "desespero",como diz ainda Pascal, ser a tal ponto jovial e sereno!Trata-se apenas de ir passando, mas voluptuosamente,e toda a felicidade de viver está nessa passagem indo­lente e fugaz ...

É por isso que Montaigne gosta tanto das viagens,imagem da vida, não pelo fato de irem para algum lu­gar (o objetivo não é essencial à viagem, e até se viajamelhor quando não se tem nenhum), mas simples­mente pelo fato de irem: o mestre de Montaigne é ovento, "mais sábio que nós", explica ele, que não vaia lugar algum, mas que "gosta de soprar e agitar-se" ...Vento: vaidade. "O vento parte para o sul, volta para onorte, dizia o Eclesiastes, gira, gira e vai, e sobre seutrajeto retorna o vento ... " Assim faz Montaigne: "Se otempo é feio à direita, viro à esquerda!. ..J Deixei algopor ver atrás de mim? Volto;é sempre o meu caminho ... "

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Sobre a vaidade

Objetam-lhe sua idade: "Nunca voltará de tão longo ca­minho. - Que me importa! Não o empreendo nem paradele voltar, nem para o perfazer,' empreendo-o apenaspara me mexer (isto é, me mover), enquanto o movi­mento me agradar. Epasseio por passear ... Meu destinoé divisível por todas as partes; não se funda em gran­des esperanças, cada jornada constitui seu termo. E aviagem de minha vida é conduzida do mesmo mo­do ... "Vaidade da sabedoria, dizia o Eclesiastes, e Mon­

taigne concorda. Mas acrescenta com o vento: sabedo­ria da vaidade.

O que faço aqui é apenas indicar de passagem umfio condutor que cada um poderá seguir ou encontrar agosto. Esse ensaio é tão diversificado, tão fantastica­mente heterogêneo, como ele diz a respeito de Platão,que seríamos levados a sugerir muitos outros. Sobre amorte, sobre a arte de morrer até, nele há páginas quesempre me apertaram a garganta, não de angústia masde emoção, de pura e fraterna emoção de mortal. Sobrea política, páginas que bem valem um Maquiavel; sobre aamizade, o casamento, as mulheres, sobre Paris e Ro­ma, sobre a moral, sobre a velhice, sobre a solidão ... ,mil observações de passagem que suscitam mais refle­xões que muitos tratados pretensiosos. Finalmente, so­bre a literatura, sobre os Ensaios, sobre Montaigne, pá­ginas alucinantes de beleza, simplicidade, lucidez ... "Ogênio absolutamente livre de Montaigne", como diziaainda Pascal, libera-se aqui por inteiro, e é maravilhososegui-Io, que digo?, acompanhá-Io!

Numa frase sutil, uma confissão surpreendente.Montaigne, tão sociável, tão experimentado em amiza­des (mas La Boétie morreu: algo se rompeu, e aí Mon-

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taigne talvez tenha nascido), verifica que em todas assuas viagens (ele foi a cavalo não só para Paris, váriasvezes, mas também para a Suíça, a Alemanha, a Itá­lia...) faltou-lhe um companheiro que o amasse e com­preendesse, com o qual pudesse compartilhar pensa­mentos, descobertas e admirações ... Solidão de Mon­taigne. É também essa a razão de ele escrever comoquem lança uma garrafa ao mar, para tocar "algumhomem de bem" antes de morrer, explica ele, e assim,quem sabe, ganhar um amigo... Que eu saiba, isso nãoaconteceu. Os amigos de Montaigne, inúmeros, são defato seus leitores, alguns dos quais famosos (Shakes­peare, Goethe, Stendhal, Nietzsche, Gide, Alain, StefanZweig...), outros obscuros, mas todos, de algum mo­do, amigos póstumos. Não estou certo de que estaúltima expressão seja contraditória, mas Montaignepor certo é uma das raríssimas pessoas capazes de lhedar conteúdo. Não tanto por ter escrito que cabe-noscultuar os mortos, quanto por nos dar a mesma coisaque teria dado a esse amigo, e que encontramos - in­felizmente raras vezes! - nos nossos, que é a sinceri­dade sem máscara, a solidão compartilhada, a intimida­de, a simplicidade que não mente ... E constata que aesse amigo que invoca em desejo está dando, por meiode seus Ensaios, "muito chão palmilhado ": "Tudo oque um longo conhecimento e grande familiaridadepoderiam lhe propiciar em vários anos, ele vê em trêsdias neste registro, e com mais segurança e exatidão."E acrescenta: "Engraçada fantasia: tantas coisas queeu não gostaria de dizer a ninguém, digo-as ao povo,e sobre meus mais secretos conhecimentos ou pensa­mentos remeto a uma loja de livreiro meus amigos maisleais... "Milagreda literatura,quando é verdadeira. Mila-

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Sobre a vaidade

gre dos Ensaios. Onde um homem se entrega, se nãopor inteiro (Montaigne não ignora o pudor nem asconveniências), pelo menos sem fingimento, sem afe­tação, com o desembaraço soberano de quem só pro­cura ser veraz, ou melhor, não procura, é, e é isso queele chama de ingenuidade sua, que é uma espécie denudez da alma, mais conturbadora que a dos corpos,mais difícil, e que só Montaigne, parece, sabe praticarbrincando ...

Outros autores me impressionaram; alguns atémais do que Montaigne; mas nenhum me seduziu tan­to, nenhum me pareceu tão próximo, tão familiar, tãosimpático (a palavra é fraca, mas a coisa não), tão jus­to, tão fraterno e amigo. É o mestre dos mestres, po­rém muita coisa mais. Ele, que queria fazer da amiza­de uma arte, o que a morte ou o destino impediram,fez da arte uma espécie de nova ocorrência da amiza­de, tão preciosa quanto a outra, tão rara quanto a ou­tra, mas simplesmente, contra a morte ou o tempo, umpouco - só um pouco - menos frágil... Tolstoi, ao par­tir para morrer, levou consigo os Ensaios. Não se podeimaginá-lo levando consigo Memórias do além-túmu­10 ou Crítica da razão pura, grandes livros, m~s queprecisam de um futuro, e que são remetidos pela pro­ximidade da morte a um futuro derrisório. Montaigne,que mantinha facilmente "confidências com o mor­rer", não precisa de nada, e agrada ainda mais quan­do o futuro se furta. Por isso ele é de todos os tempos

e, em erPecial, do nosso.Insp?stituível Montaigne! Tantas vezes grave, ja­mais serio, tantas vezes ligeiro, jamais derrisório... En­controu, para dizer a vida - a vida bem mais que amorte! - as palavras necessárias, simples e verdadei-

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______________ Montaigne

ras, que nos legou como uma nova maneira de habi­tar o silêncio ou de compartilhar a solidão. Ele, quenão se quis nem sábio nem fazedor de livros, apesardisso reconciliou - como talvez nunca antes ou depoisdele - filosofia e literatura, colocando-as em seu lugar,que não é o primeiro (este livro sobre a vaidade falatambém da vaidade dos livros), mas que está numa al­tura tal que ninguém superou e que poucos, desdeentão, atingiram ... Mas de que servem as comparações?Montaigne basta-se, e basta lê-Io.

Uma última palavra, antes de lhe passar a palavra.Penso no leitor que vai descobri-Io, no jovem que tal­vez tudo ignore dele, fora estes poucos fragmentosque arremato ... Fico impaciente por ele, mas tambémum pouco preocupado. Não irá ele se cansar, deixar­se vencer por essa língua, incrivelmente saborosa, éverdade, mas por vezes arcaica, por esse pensamentotão sutil e móvel? ... Será isso o suficiente? Não sei. Nobelo livro que dedicou a Montaigne, Stefan Zweig ob­servava que "para reconhecer seu verdadeiro valor nãose deve ser jovem demais, virgem demais de experiên­cias e decepções".3 Acho que isso é verdade, o que ex­plica minha preocupação e estes prolegômenos. Massei também que experiências e decepções logo che­gam, e por isso não fico demasiado apreensivo: o tem­po trabalha a favor de Montaigne, e as decepções nosconduzem a ele, que não decepciona.

Coragem, leitor, e bons ventos o conduzam!

André COMTE-SPONVILLE

3. Montaígne, trad. fr., Paris, PUF, 1982 (Coll."Perspectives cri­tiques").

XIV

Cronologia

1533, 28 de fevereiro. Nascimento de Michel no caste­lo de Montaigne. Ele abandonará o sobrenomepatronímico Eyquem, conservando apenas o dapropriedade.

1539(?)-46. Estuda no colégio de Guyenne, em Bor­deaux.

1554. É conselheiro na Cour des Aides* de Périgueux.1557, dezembro. Ingressa no Parlamento de Bordeaux,

ao qual foi incorporada a Cour des Aides de Pé­rigueux.

1558-59. Contato com Étienne de La Boétie, seu colegano Parlamento. Estabelece com ele uma estreitaamizade que exercerá uma grande influência so­bre seu pensamento e sua vida.

1559. Montaigne vai a Paris e acompanha o rei Fran­cisco 11.

1561-62. Nova viagem à Corte.1562, 12 de junho. Montaigne presta sermão de fide­

lidade à religião çatólica para poder ocupar sua

cadeira no par~ento de Paris.

* Corte que julgava processos relativos às taxas e aos impostosdo Antigo Regime. (N. do T.)

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Page 9: MONTAIGNE, Michel de. Sobre a Vaidade

1565, 23 de setembro. Casamento de Montaigne comFrançoise de Ia Chassaigne, que pertencia a umafamília de burgueses ricos e de parlamentaresde Bordeaux.

1568, junho. Morte de Pierre Eyquem de Montaigne,pai de Michel: ele herda o sobrenome e a pro­priedade.

1569. Montaigne publica a tradução da TeologiaNatu­ral, de Sebon.

1570, 24 de julho. Cede seu cargo de Conselheiro noParlamento.

1570-71. Vai a Paris e publica os opúsculos de La Boétie,precedidos de dedicatórias suas.

1572-73 (cerca de). Começa a escrever sua obra.1576, fevereiro. Montaigne manda cunhar uma meda­

lha com sua efígie, na qual se lê seu lema: "Quesei eu?".

1577-80. Os ensaios II XVI-XXXVI parecem ter sido com­postos durante este período.

1579, início de 1580. Composição dos ensaios I XXVI; IXXXI; II VII; II X; ao menos uma parte de II XVII; IIXXXVII.

1580-81. Viagem de Montaigne à Europa central e Itália.1581, 1º de agosto. Montaigne é eleito prefeito de

Bordeaux por dois anos.1582. Segunda edição dos dois primeiros livros de

Ensaios.

1583, 1º de agosto. Montaigne é reeleito prefeito deBordeaux.

1588, 10 de julho. Em Paris, Montaigne é preso na Bas­tilha pelos partidários da Liga. Na mesma noite,a pedido da rainha-mãe, ele é solto.

1592, 13 de setembro. Morte de Montaigne.

XVI

SOBRE A VAIDADE

Ensaios, Livro IIl, capítulo 9

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Talvez não haja vaidade mais clara do que sobreela escrever de maneira tão vã. O que a divindade tãodivinamente exprimiu! deveria ser cuidadosa e conti­nuamente meditado pelas pessoas de entendimento.

Quem não vê que tomei um caminho pelo qual,sem fim e sem trabalho, irei enquanto houver tinta epapel no mundo? Não posso fazer registro de minhavida por meio de minhas ações: a fortuna* as põe bai­xas demais; faço-o por meio de minhas fantasias. Co­nheci um fidalgo que só comunicava sua vida por meiodas operações de seu ventre: em sua casa veríeis, àmostra, uma ordem de bacias de sete ou oito dias; eraseu estudo, seus discursos; qualquer outra proposiçãolhe fedia. Aqui estão, um pouco mais civilmente, ex­crementos dum velho espírito, ora duro, ora frouxo, esempre indigesto. E quando me cansarei de represen-

l.Ver supra, Prefácio, p. V.

• "Fortuna" é um conceito filosófico presente em outros autoresdos sécs. XV, XVI e XVII (como Pascal e Maquiavel) e que nos remeteà idéia do que é incomensurável na vida e no mundo (próximo a "des­tino insondável", "sorte ou azar", "acaso", "contingência"). (N. do R. T.)

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Montaigne _

tar a contínua agitação e mutação de meus pensamen­tos, seja qual for a matéria em que incidam, se Dio­medes encheu seis mil livros falando apenas de gra­mática? O que não produzirá a tagarelice, se o balbu­ciar e o desatar-se da língua sufocou o mundo comtão horrível carga de volumes? Tantas palavras apenaspara palavras!Ó Pitágoras2, quanto conjuraste essa tem­pestade!

Acusava-se um Galba do tempo passado de viverociosamente; ele respondeu que cada um devia darsatisfação de seu agir, e não de sua estada. Enganava­se, pois a justiça toma conhecimento e reprova tam­bém os que folgam.

Mas deveria haver alguma coerção das leis contraos escritores ineptos e inúteis, como há contra os va­gabundos e vadios. Pelas mãos de nosso povo sería­mos banidos eu e mais cem outros. Não é troça. A es­crevinhação parece ser algum sintoma dum século dis­soluto. Quando escrevemos nós tanto quanto desdeque temos transtornos?Quando os romanos tanto quan­to durante a ruína? Outrossim, não sendo a purificaçãodos espíritos o mesmo que prudência em sociedade,essa ocupação ociosa provém de que cada um estáfrouxamente preso aos deveres de seus cargos, e as­sim deles se exime.

A corrupção do século é feita da contribuição pes­soal de cada um de nós: uns lhe conferem a traição, ou­tros a injustiça, a irreligião, a tirania, a avareza, a cruel­dade, se forem mais poderosos; os mais fracos confe-

2. Pitágoras impunha um silêncio de vários anos a seus discípulos.

4

_____________ Sobre a vaidade . _

rem-lhe a tolice, a vaidade, a ociosidade, e entre estesestou eu. Parece que o tempo das coisas vãs é aqueleem que o que é nocivo nos pressiona. Num tempo emque o obrar maldosamente é tão comum, só obrar inu­tilmente chega a ser louvável. Consola-me ser dos últi­mos sobre os quais cumpra deitar a mão. E enquantoestiverem provendo aos mais prementes, cuidarei deemendar-me. Pois me parece que seria contrário à ra­zão perseguir os inconvenientes miúdos, quando nosinfestam os graúdos. E disse o médico Filotimo a al­guém que lhe apresentava o dedo para um curativo,em quem ele reconheceu, pelo semblante e pelo háli­to, uma úlcera pulmonar: Meu amigo, não é hora de tedivertires com tuas unhas.

No entanto, soube, há alguns anos, que uma pes­soa cuja memória tenho em alta consideração, emmeio a nossos grandes males, porquanto não havia lei,nem justiça, nem magistrado que cumprisse seu mis­ter, tanto quanto no presente, foi publicar não sei quemesquinhas reformas sobre vestuário, cozinha e rabu­lice. São recreações com que alimentam um povo mal­tratado, para dizerem que ele não foi de todo esque­cido. Fazem o mesmo aqueles que se detêm a proibir,a todo instante, formas de falar, danças e jogos, paraum povo arruinado por toda espécie de vícios execrá­veis. Não é hora de lavar-nos e limpar-nos quando nosafeta uma boa febre. Só os Espartanos punham-se apentear-se e enfeitar-se os cabelos quando estavam aponto de se lançarem a algum risco extremo de vida.

Quanto a mim, tenho outro costume pior, que setenho um escarpim trocado, deixo também de revés acamisa e a capa: não faço caso de emendar-me pela

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Montaigne _____________ Sobre a vaidade _

metade. Quando estou em má situação, agarro-me aomal; entrego-me por desespero e deixo-me ir para aqueda, e jogo, como se diz, o cabo atrás do machado;obstino-me na piora e não mais me julgo digno demeus cuidados: ou tudo bem ou tudo mal.

É um favor que a desolação deste Estado coincidacom a desolação de minha idade: suporto mais facil­mente que meus males sejam assim agravados do quese meus bens tivessem sido antes prejudicados. Aspalavras que dirijoà desdita são de despeito; minha co­ragem se alça em lugar de se rebaixar. E, ao revés dosoutros, vejo-me mais devoto na boa que na má fortuna,seguindo o preceito de Xenofonte, se não seus moti­vos; e volvo aos céus olhos mais dóceis para agrade­cê-Io do que para suplicar-lhe. Cuido mais de aumen­tar a saúde quando ela me sorri do que em restabele­cê-Ia depois que a perdi. As prosperidades me servemde disciplina e instrução, como aos outros as adversi­dades e os castigos.Como se a boa fortuna fosse incom­patível com a boa consciência, os homens só se tor­nam gente de bem na má fortuna. A felicidade é paramim singular aguilhão para a moderação e a modéstia.A súplica me conquista, a ameaça me enfada; o favormedobra, o medo me entesa.

Dentre as condições humanas esta é bastante co­mum: a de nos agradarem mais as coisas alheias que asnossas e de gostarmos do movimento e da mudança.

Ipsa dies ideo nos grato perluit haustuQuod permutatis hora recurrit equis.3

3. A própria luz do dia só nos dá uma sensação agradável por­que as horas retomam em novos corcéis. (Petrônio, Fragmento 678.)

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Assim sou eu também. Os que seguem o outro ex­tremo, de se agradarem de si mesmos, de julgarem oque têm superior ao resto e de não reconhecerem ne­nhuma forma mais bela que a que estão vendo, se nãosão mais avisados que nós, são na verdade mais feli­zes. Não lhes invejo a sabedoria; invejo-Ihes, sim, asua boa fortuna.

Esse humor ávido de coisas novas e desconhecidasajuda a nutrir em mim o desejo de viajar, mas muitasoutras circunstâncias para isso concorrem. Esquivo-mede bom grado do governo de minha casa. Há algumacomodidade em dar ordens, nem que seja numa granja,e em ser obedecido pelos seus, mas esse é um prazerdemasiado uniforme e débil. E ademais está necessaria­mente misturado a várias preocupações desagradá­veis: ora sois afligido pela indigência e a opressão dopovo, ora pelo litígio entre vizinhos, ora pela usurpa­ção destes sobre vós:

Aut verberatae grandine vineae,Fundusque mendax, arbore nunc aquasCulpante, nunc torrentia agrosSidera, nunc hyemes iniquas\

e por apenas seis meses Deus enviará uma estação quecontentará plenamente vosso recebedor; e que ela, emservindo às vinhas, não prejudique os pastos:

4. É o granizo que devasta as vinhas; a terra é enganadora: asárvores ora acusam a chuva, ora o céu que queimou os campos, orao inverno cruel. (Horácio, Odes, III, I, 29.)

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Page 13: MONTAIGNE, Michel de. Sobre a Vaidade

_ Montaigne _

Aut nimiis torret fervoribus aetherius sol,Aut subiti perimunt imbres, gelidaeque pruinae,Flabraque ventorum violento turbine vexant.S

Junte-se a isso o sapato novo e bem afeiçoado da­quele homem dos tempos passados, que vos machu­ca o pé6, e o estranho não entende quanto vos custanem quanto pagais para manter a aparência dessa or­dem que se vê em vossa família, e que talvez compreispor preço altíssimo.

Dei-me tarde à administração doméstica. Aquelesque a natureza trouxera à vida antes de mim dela medesobrigaram por muito tempo. Eu já havia assumidooutros pendores, mais de acordo com meu feitio. To­davia, pelo que vi, é uma ocupação mais impeditivaque difícil: quem tiver capacidade para outra coisaterá facilmente para essa. Se estivesse à procura de en­riquecer, esse caminho me pareceria longo demais;teria servido aos reis, que é tráfico mais fértil que qual­quer outro. Como só pretendo adquirir a reputação denada ter adquirido, e tampouco dissipado, de confor­midade com o resto de minha vida, imprópria a fazerbem e a fazer mal, e como só procuro ir passando,posso fazê-Io, graças a Deus, sem grande atenção. Nopior dos casos, corra-se com o corte de despesas adian-

5. Ou o sol ardente queima as culturas, ou chuvas súbitas e friasgeadas as destroem, ou violentos turbilhões de vento as devastam.(Lucrécio, V, 216.)

6. Alusão a uma anedota de Plutarco (Vida de Paulo Emílio, 3).

Um romano, a quem censuravam o fato de ter repudiado a mulherjovem e bonita, respondeu: "Vejam este sapato: é novo e bem feito;mas só eu sei onde ele machuca ..."

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____________ Sobre a vaidade _. _

te da pobreza. É o que espero fazer, reformando-meantes que a isso ela me force. Não obstante, estabele­ci para mim mesmo alguns degraus para contentar-mecom menos do que aquilo que tenho; e digo conten­tar-me com satisfação. Non aestimatione census, verumvictu atque cultu, terminatur pecuniae modus.7 Minhasnecessidades não ocupam todos os meus haveres comtanta justeza que a sorte não tenha onde me mordersem me deixar em carne viva.

Minha presença, por mais ignorante e desdenhosaque seja, dá grande respaldo a meus negócios domés­ticos; neles me empenho, mas contrariado. Além dis­so, tenho em mim que, se queimo o meu lado da vela,o outro lado não se deverá poupar de nada.

As viagens só me aborrecem pelas despesas, quesão grandes e superam minhas forças; acostumadoque estou a fazê-Ias com criadagem não somente ne­cessária, mas também decente, devo por isso fazê-Iascada vez mais curtas e menos freqüentes, nelas em­pregando apenas sobras e minha reserva, temporizan­do e retardando segundo a que me chega. Não queroque o prazer do passeio estrague o prazer do repou­so; ao contrário, entendo que se nutrem e favorecemmutuamente.

Ajudou-me a fortuna porque, visto ser minha prin­cipal ocupação nesta vida viver molemente e com maisnegligência que azáfama, isentou-me ela da necessida-

7. Não é pelos rendimentos que se deve calcular a fortuna dealguém, mas por seus hábitos e pelo seu gênero de vida. (Cícero,Paradoxos, VI, 3.)

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de de multiplicar riquezas para prover a uma multidãode herdeiros. Para um só, se não lhe bastar aquilo quetão copiosamente me bastou, pior; sua imprudêncianão merece que eu lhe deseje mais.

E cada um, a exemplo de Fócion, provê do sufi­ciente os filhos, e estes já proverão do suficiente aospais se a eles se assemelharem. Em nada seria eu doparecer de Crates. Ele deixou o dinheiro com um ban­queiro, sob a condição de que este deveria dá-Io aosseus filhos se eles fossem tolos; se fossem hábeis, queo distribuísse aos mais simples do povo. Como se ostolos, por serem menos capazes de viver sem rique­zas, fossem mais capazes de usá-Ias.

Assim é que o prejuízo resultante de minha ausên­cia não me parece merecer, enquanto eu tiver comque o .suster, que eu recuse aceitar as ocasiões que seapresentem de me subtrair a essa assistência penosa.Há sempre alguma coisa errada. Os negócios, sejamduma casa ou doutra, nos enredam. Tudo é visto mui­to de perto; vossa perspicácia vos faz mal, como fazem muitos outros lugares. Furto-me às ocasiões de mezangar, e esquivo-me de tomar conhecimento das coi­sas que vão mal; e se tanto não puder fazer, que pelomenos não esteja a topar em casa o tempo todo emencontros que me desgostam. E as maroteiras quemais me escondem são as que melhor conheço. Ocor­re que, para causar menos mal, nós mesmos somosobrigados a escondê-Ias. Vãos desgostos, vãos porvezes, porém sempre desgostos. Os impedimentosmais miúdos e delgados são os mais penetrantes; e as­sim como as letras miúdas ofendem e cansam mais osolhos, também os pequenos casos nos pungem mais.

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_ . Sobre a vaidade _

A turba de pequenos males ofende mais que a violên­cia dum só, por maior que seja. Por serem bastos efinos, esses espinhos domésticos nos mordem commais agudeza e sem fazer ameaças, surpreendendo­nos facilmente de modo imprevisto.

Não sou filósofo: os males me oprimem segundo opeso que têm; e pesam segundo a forma e segundoa matéria, e muitas vezes mais. Tenho deles mais co­nhecimento que o vulgo; contudo, tenho mais paciên­cia. Enfim,se não me ferem, magoam-me. É coisa deli­cada a vida, fácil de melindrar. Uma vez que eu tenhavoltado o rosto para o pesar, nemo enim resistit sibicum coeperit impelli8, e por mais tola que seja a causaque a isso me impele, excito o humor desse lado, quese realimenta e exaspera com seu próprio movimento;atraindo e amontoando matéria sobre matéria, de quese nutre.

Stillicidicasuslapidemcavat.9

Essas gotas ordinárias me devoram.Os inconvenientes ordinários nunca são leves. São

contínuos e irreparáveis, mormente quando nascemdos membros da casa, contínuos e inseparáveis.

Quando considero meus negócios de longe e emgrosso, acho, talvez por não ter deles memória exata,que até então foram prosperando além de minhas con­tas e razões. Parece-me que deles retiro mais do que

8. Ninguém consegue opor resistência quando começa a ceder.(Sêneca, Epístola 13.)

9. A água que cai gota a gota cava a pedra. (Lucrécio, I, 314.)

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Montaigne _

há; seu sucesso me trai. Mas quando me ponho dentroda lida, e vejo caminharem todas as suas partes,

Tum vero in curas animum diducimur omnes.IO

mil coisas me dão motivos de desejos e temor. Aban­doná-Ias de todo é-me facílimo; dedicar-me a elas sempenas, dificílimo. É lástima estar num lugar onde tudoo que se vê assoberba e preocupa. E parece-me quegozo com mais alegria os prazeres duma casa estra­nha, e que nisso tenho um gosto mais singelo. Dióge­nes respondeu como eu, a quem lhe perguntou queespécie de vinho achava melhor: o alheio.

A meu pai aprazia construir Montaigne, onde nas­cera; e em toda essa política de que fazeres domésticosgosto de ater-me a seu exemplo e a suas regras, e ne­las empenharei meus sucessores no que puder. Semais pudesse por ele, mais faria. Glorifico-me de quesua vontade se exerça ainda e aja por meu intermédio.Agrade a Deus que eu não deixe falecer entre minhasmãos nenhuma imagem de vida que eu possa prestara tão bom pai. Sempre que me pus a arrematar algu­ma velha parede e a consertar algum trecho de cons­trução mal aplainado, por certo foi mais em sua inten­ção que para meu contentamento. E acuso minha pre­guiça se não fui além de terminar os belos começosque ele deixou em sua casa; sobretudo porque tudoindica que serei o seu último proprietário varão e oúltimo a nela pôr as mãos. Pois, quanto à minha apli­cação pessoal, nem esse prazer de construir, que dizem

10. Então nossa alma é dilacerada pelas preocupações. (Virgílio,Eneida, V. 720.)

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_ Sobre a vaidade _

ser tão atraente, nem a caça, nem os jardins, nem essesoutros prazeres da vida recolhida conseguem divertir-memuito. É coisa que pouco me satisfaz, assim como quais­quer outras opiniões que me sejam incômodas. Não mepreocupa tanto tê-Ias vigorosas e doutas, mas sim de­sembaraçadas e cômodas para a vida: serão suficiente­mente verdadeiras e sãs se forem úteis e agradáveis.

Os que, ouvindo-me falar de minha insuficiêncianas ocupações domésticas, vão-me soprando aos ouvi­dos que isso é arrogância, e que estou deixando de co­nhecer os instrumentos da lavoura, suas estações, suaordem, como são feitos meus vinhos, como se enxerta,e de saber o nome e a forma das ervas e dos frutos,bem como o preparo das carnes de que me alimento eo nome e o preço dos tecidos com que me visto, parasaber de cor alguma ciência mais elevada, esses mematam. Isso é tolice, e mais estultícia que glória. Gosta­ria mais de ser bom escudeiro que bom lógico:

Quin tu aliquid saltem potius quorum indiget usus,Viminibus mollique paras detexere junco?l1

Atulhamos nossos pensamentos com o geral e comas causas e condutas universais, que se conduzem mui­to bem sem nós, e deixamos para trás o que nos con­vém e Michel*, coisas que nos tocam muito mais de per-

11. Por que não te ocupas com alguma coisa útil?Trançar cestosde junco macio? (Virgílio, Bucõlicas, II, 71.)

* Referência do autor a si mesmo na 3ª pessoa, hábito freqüen­te na época. Montaigne, particularmente, muitas vezes é consideradoextremamente "centrado em si mesmo". Chega a afirmar que a meta­física de que trata é a dele. (N. do R. T.)

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_______ ___Montaigne _

to que o homem. Ora, fico bem em casa no mais das ve­zes, porém gostaria de comprazer-me nela mais queem outros lugares.

Sit meoe sedes utinam senectae,Sit modus lasso maris, et viarum,

Militiaeque.12

Não sei se conseguirei. Gostaria que, em lugar dealguma outra herança, meu pai me tivesse legado esseapaixonado amor que em seus velhos anos sentia pelolar. Tinha a grande felicidade de combinar desejos esorte, e de saber satisfazer-secom o que tinha. De pou­co adiantará a filosofia política apontar a baixeza e aesterilidade de minha ocupação, se eu puder pelo me­nos uma vez sentir o mesmo prazer que ele sentia. Éminha opinião que a mais honrosa ocupação é servirao público e ser útil a muitos. Fructus enim ingenii etvirtutis omnisque praetantiae tum maximus accipitur,cum in proximum quemque conjertur.13 Quanto a mim,renuncio: em parte por consciência (pois, sempre queme apercebo do peso de tais cargos, também perceboos parcos meios que tenho de exercê-Ios;e Platão, mes­tre obreiro em qualquer governo político, não deixoude abster-se deles), e em parte por covardia. Conten­to-me em usufruir o mundo sem muito ardor, em viver

12. Possa eu aqui passar minha velhice, possa eu aqui encontraro repouso depois de tantas travessias, tantas viagens e tantos comba­tes! (Horácio, Odes, lI, VI, 6.)

13. Saboreamos mais os frutos do gênio, da virtude e da supe­rioridade quando os dividimos com nossos próximos. (Cícero, DeAmí­cítía, 19.)

____________ Sobre a vaidade _

uma vida tão-somente desculpável, e que só não pesenem para mim nem para outrem. Nunca ninguém sesubmeteu mais plena e negligentemente aos cuidadose ao governo dum terceiro do que eu me submeteria,se tivesse a quem.

Um de meus desejos presentes seria encontrar umgenro que soubesse cevar comodamente meus velhosanos e embalá-Ios,entre cujasmãos eu depositasse comtotal soberania a condução e o uso de meus bens, quedeles fizesse o que faço e ganhasse o que ganho, con­tanto que a tal se dedicasse com ânimo realmente reco­nhecido e amigo. Qual nada!Vivemosnum mundo ondese desconhece a lealdade dos próprios filhos.

Quem tem a guarda de minha bolsa em viagemtem-na pura e sem vigilância: e mesmo que eu fizesseas contas, poderia muito bem enganar-me; e, se nãofor um diabo, obrigo-o a bem obrar com tão dilatadaconfiança. Multi jallere docuerunt, dum timent jalli, etaliis jus peccandi suspicando jecerunt14• A medida desegurança mais comum que tomo com meus homensé o desconhecimento. Só presumo os vícios depois deos ver, e confio mais nos jovens, que considero menosestragados pelo mau exemplo.

Prefiro ouvir, ao cabo de dois meses, que gasteiquatrocentos escudos, a ter as orelhas marteladas to­das as noites com três, cinco, sete escudos. Nem por is­so fui mais atingido que qualquer outra pessoa poressa espécie de furto.

14. Muitos ensinaram a enganar por medo de serem enganados,e, com suas suspeitas, justificaram a fraude dos outros (Sêneca, Epís­tolas, 3).

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É verdade que minha ignorância é proposital: es­tou cônscio de que alimento de algum modo a obs­curidade e a incerteza sobre o conhecimento de meudinheiro; até certo ponto fico contente por poder du­vidar dele. É preciso deixar um pouco de espaço àdeslealdade ou à imprudência do lacaio. Se de modogeral nos sobra o suficiente para causar boa impres­são, deixemos um pouco mais à sua própria mercê esseexcesso de liberalidade da sorte: é a parte do respiga­dor. Afinal, não prezo tanto a lealdade de meus ho­mens quanto desprezo seu perjúrio. Ó vil e tolo estu­do é esse de estudar o próprio dinheiro, comprazer-seem manipulá-Io, pesá-Io e recontá-Io. É por aí que co­meça o assédio da avareza.

Durante os dezoito anos em que administro bensnão consegui impor-me o dever de examinar nem títu­los nem meus principais negócios, que necessariamen­te precisam passar por meu conhecimento e minhaatenção. Não é desprezo filosófico pelas coisas transi­tórias e mundanas; não tenho gosto tão apurado, eprezo-as ao menos pelo que valem, mas decerto é porpreguiça e negligência inescusáveis e pueris. O quenão preferiria fazer a ter de ler um contrato, a andarsacudindo a papelada poeirenta, servo de meus negó­cios? Ou, o que é pior, do negócio dos outros, comofazem tantos, a preço de dinheiro? Nada me é maiscustoso que os cuidados e o sofrimento, e só procurodesleixar e relaxar.

Acredito que seria mais apto a viver da fortuna deoutrem, se isso fosse possível sem obrigações nem ser­vidão. E, examinando de perto, não sei se, talvez portemperamento e por minha condição, o que me cabe

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____ ~ ~~~~ Sobre a vaidade_~ _

agüentar dos negócios, dos servos e dos criados não émais abjeto, importuno e acerbo do que pertencer aoséquito de alguém que, sendo mais que eu por nasci­mento, me guiasse um pouco segundo a minha vonta­de. Servitus obedientia estfracti animi e abjecti, arbi­trio carentis suâ5• Crates fez pior, ao entregar-se à li­berdade da pobreza para desfazer-se das indignidadese dos cuidados da casa. Isso eu não faria (odeio a po­breza tanto quanto a dor), mas trocaria, sim, esta es­pécie de vida por outra menos heróica e atarefada.

Ausente, despojo-me de todos esses pensamen­tos, e sentiria menos o esboroar-se duma torre do que,estando presente, sinto a queda duma ardósia. De lon­ge, minha alma desenreda-se facilmente, mas de pertoela sofre como a de um vinhateiro. Um arreio atraves­sado em meu cavalo, um loro de estribo que fique ba­tendo em minha perna me deixarão preocupado umdia inteiro. Sou capaz de elevar meu ânimo o suficien­te para afastá-Io dos inconvenientes; os olhos, nãoconsigo.

Sensus, o superi, sensus.16

Em casa, respondo por tudo o que vai mal. Pou­cos senhores - e falo dos de condição mediana, comoé a minha, e, em acontecendo isso, são mais felizes ­podem apoiar-se tanto num subalterno que se exi­mam de boa parte da carga. Isso por certo tolhe de

15. A servidão é a sujeição da alma débil e abjeta, que carece dearbítrio próprio. (Cícero, Paradoxos, V, 1.)

16. Os sentidos! Ó deuses, os sentidos!

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algum modo minha cortesia no tratamento das pes­soas que me visitam (e se porventura retive alguma foimais por minha cozinha que por minha graça, comofazem os enfadonhos) e tolhe muito do prazer que emcasa me deveria dar a visitação e a reunião de meusamigos. A mais ridícula atitude dum homem em suacasa é ser visto a enredar-se na marcha de sua admi­nistração, a falar ao ouvido de um lacaio, a ameaçaroutro com o olhar; tudo deve fluir insensivelmente eparecer um curso normal. E acho feio entreter os hós­pedes a falar do tratamento que lhes dispensamos, sejapara escusar-nos, seja para gabar-nos. Agradam-me aordem e a limpeza,

et cantharuse lanxOstenduntmihi me17,

mesmo à custa da abundância; em casa atenho-mecom rigor à necessidade e pouco à ostentação. Se emcasa alheia um lacaio briga ou um prato cai, a únicacoisa que fazeis é rir; dormis enquanto o dono da casaorganiza com o despenseiro as coisas para vos servirno dia seguinte.

Falo por mim, não deixando de avaliar, em geral,o agradável entretenimento que certas naturezas en­contram numa administração tranqüila, próspera, con­duzida segundo regras bem organizadas, sem quereratribuir à coisa meus próprios erros e inconvenientes;tampouco desejo contradizer Platão, para quem a mais

17. E as taças e os pratos devolvem-me [minha imageml a mim.(Horácio, Epístolas, I, V, 23.)

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~~. Sobre a vaidade ~~_

feliz ocupação de cada um é entregar-se a seus pró­prios afazeres sem injustiça.

Quando viajo, só preciso pensar em mim e no em­prego de meu dinheiro, o que se guia por preceito úni­co. Para juntar o dinheiro são muitas as partes necessá­rias: e eu nada entendo disso. De gastos e de criar gas­tos entendo um pouco, e esse na verdade é o principaluso do dinheiro. Mas dos gastos eu espero resultadosdemasiado ambiciosos, o que torna minhas despesasdesiguais e desconformes, e ademais imoderadas numou noutro aspecto. Quando surgem e me servem deixo­me levar sem reservas, como me fecho também semreservas se não brilham e não me agradam.

Seja o que for, artifício ou natureza, isso que nosimprime a condição de viver da comparação com ou­trem, faz-nos muito mais mal que bem. Privamo-nosdaquilo que nos é útil para atender às aparências e àopinião dos outros. Não nos importa tanto saber o queé nosso ser em si e em efeito quanto saber o que é elepara o conhecimento público. As próprias riquezas doespírito e a sabedoria nos parecerão infrutíferas se sóforem desfrutadas por nós, se não forem produzidaspara a vista e a aprovação alheia. Há aqueles cujo ou­ro escorre aos borbotões por lugares subterrâneos,imperceptivelmente; outros o expõem em lâminas efolhas; se, para uns, tostões valem escudos, para ou­tros é o contrário, e o mundo estima o emprego e ovalor apenas segundo o que se vê. Todo zelo excessi­vo em torno das riquezas recende avareza; o mesmose pode dizer de sua prodigalização e da liberalidadeordenada e artificial demais; as riquezas não valem aspenas da atenção e da solicitude extremas. Quem quergastar com justeza, gasta com estreiteza e constrangi-

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mento. Guardar ou gastar são em si coisas indiferentes,e só adquirem coloração de bem ou de mal segundoa aplicação de nossa vontade.

Outra causa que me incita a essas viagens é o de­sacordo com os costumes presentes de nosso Estado.Eu me conformaria facilmente com essa corrupção noque diz respeito ao interesse público,

pejoraque saecula ferriTemporibus, quorum sceleri non invenit ipsaNomen, et a nullo posuit natura metallo/8

mas no que diz respeito ao meu, não. Nesse parti­cular, é grande minha preocupação. Pois nesta socieda­de, devido ao longo desregramento das guerras civis,envelhecemos numa forma de Estado tão dissoluta,

Quippe ubi fas versum atque nefas,19

que na verdade causa espanto que ele ainda se man­tenha.

Armati terram exercent, semperque recentesConvectare juvat praedas et vivere rapto.20

Enfim, percebo pelo nosso exemplo que a socie­dade dos homens agüenta e persevera a qualquer pre-

18. Esses tempos piores que os séculos de ferro, para cujos cri­mes não ocorre sequer um nome, e que a natureza não consegue maisdesignar por metal algum. 0uvenal, XIII, 28,)

19. Onde o justo e o injusto se confundem. eVirgílio, Geórgicas,I, 505.)

20. Trabalha-se a terra armado, todos se comprazem em viver derapina e em amontar novos butins. eVirgílio, Eneida, VII, 748_)

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____________ Sobre a vaidade . _

ço. Seja qual for a base em que os homens são assen­tados, eles se empilham e arranjam, empurrando-se eamontoando-se, assim como certos corpos mal unidosque metemos sem ordem no alforje encontram por simesmos o modo de se unir e se colocar uns entre osoutros, muitas vezes melhor do que se disporiam porforça da arte. O rei Filipe juntou um magote dos ho­mens mais malvados e incorrigíveis que conseguiuencontrar e alojou-os todos numa cidade que para issomandou construir, e que ganhou esse nome!. Acreditoque tenham erigido com os próprios vícios uma estru­tura política e uma cômoda e justa sociedade.

O que vejo não é uma ação, ou três, ou cem, mascostumes usados e aceitos que são tão monstruosospor desumanidade, sobretudo, e deslealdade (sendoessa para mim a pior espécie de vício) que não tenhocoragem de concebê-Ios sem horror, e os admiro qua­se tanto quanto os detesto. O exercício dessas malva­dezas insignes contém tanto a marca do vigor e da for­ça da alma quanto a do erro e do desregramento. Anecessidade combina os homens e os reúne. Essa cos­tura fortuita constitui-se depois em leis; pois as houvetão atrozes que não poderiam ser concebidas por ne­nhuma opinião humana, e contudo conservaram emseu corpo tanta saúde e longevidade quanto consegui­riam as de Platão e Aristóteles.

E por certo todas essas descrições de sociedade,forjadas pela arte, são consideradas ridículas e inaptasà prática. Essas dilatadas e longas altercações sobre amelhor forma de sociedade e sobre as regras maisconvenientes para nos congregar são apropriadas ape-

21. Trata-se de Ponerópolis, "a cidade dos malvados".

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nas ao exercício de nosso espírito; assim como se en­contram em artes vários assuntos que têm sua essênciana agitação e na disputa, fora das quais não têm vidaalguma. Tal descrição de sociedade seria válida numnovo mundo, mas lidamos com homens já submetidose conformados a certos costumes; não os engendra­mos como Pirra ou como Cadmo. Seja qual for o meioque empreguemos a corrigi-Ios e organizá-Ios de novo,não poderemos endireitar o viés a que já se acostuma­ram sem tudo romper. Quando perguntaram a Sólonse ele tinha instituído as melhores leis possíveis paraos atenienses, ele respondeu: Sim, entre as que elesteriam aceito. Varrão escusa-se de modo semelhante:se tudo que ele tivesse de escrever sobre religião fossenovo, falaria aquilo em que acredita, mas, sendo ela jáaceita e conformada, falará mais segundo o uso quesegundo a natureza.

Não é uma questão de opinião, porém de verda­de, que a política excelente e a melhor para cada naçãoé aquela à qual ela está acostumada. Sua forma e suaconveniência essencial estão ligadas aos usos. Des­gosta-nos facilmente a condição presente. Mas afirmoque ficar desejando o comando de homens de baixacondição num Estado popular, ou ficar desejando namonarquia outra espécie de governo, é erro e sandice.

Ayme l'estat teI que tu o vois estre:S'il est rayal, ayme a rayauté;S'il est de peu, ou bien communauté,Ayme l'aussi, car Dieu t'y a faict naistre.22

22. Ama o estado tal qual ele é: se é real, ama a realeza; se é dopovo ou da comunidade, ama-o também: Deus te fez nele nascer (Guydu Faur de Pibrac [1529-1584], Quatraíns.)

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~_~ ~Sobre a vaidade ~ _

Ó meu bom senhor de Pibrac, que acabamos deperder, espírito tão gentil, opiniões tão sãs, costumestão gentis. Essa perda e a do senhor de Foix, ocorridana mesma época, são importantes para nossa coroa.Não sei se resta em França quem possa substituir essesdois gascões em sinceridade e suficiência no conselhode nossos reis.

Eram almas diversamente belas e por certo, nesteséculo, raras e belas, cada uma a seu modo. Mas quemas teria acolhido nestes tempos, tão desconformes e dis­cordantes eram de nossa corrupção e de nossas agruras?

Nada perturba tanto um Estado quanto a inova­ção: só a mudança dá forma à injustiça e à tirania.Quando alguma peça se desmantela, podemos refor­çá-Ia: podemos opor-nos a que a alteração e a dege­neração naturais a todas as coisas nos afastem de ma ­siado de nossos começos e princípios. Mas empreen­der a refundição de tão grande massa e a mudança dasfundações de tão grande edifício é obra de quem, pa­ra limpar, apaga tudo, de quem quer corrigir os errosparticulares por meio duma confusão universal e curaras doenças com a morte, non tam commutandarumquam evertendarum rerum cupidi23• O mundo é inca­paz de curar-se; fica tão impaciente com o que o per­turba que só tem em vista desfazer-se do incômodo, aqualquer preço. Mil exemplos mostram-nos que elede ordinário se cura à sua própria custa: o alívio domal presente não é cura, se de modo geral não há cor­reção de condição.

23. Menos desejosos de mudar o governo que de destruí-Ia.(Cícero, De O./ficíís, II, 1.)

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A finalidade do cirurgião não é matar a carne ruim:isso não passa de etapa do tratamento. Ele vê além:permitir que renasça a carne natural e devolver a partedevida ao ser devido. Quem propõe tão-somente ex­pulsar o que o ofende, pára no meio do caminho, poiso bem não sucede necessariamente ao mal: outro malpode suceder-lhe, e pior, como aconteceu aos assassi­nos de César, que levaram a coisa pública a tal pontoque tiveram motivos para se arrepender de se teremmetido. A muitos, de então a esta data, aconteceu omesmo. Os franceses meus contemporâneos sabem doque se trata. Todas as grandes mutações abalam o Es­tado e o desorganizam.

Quem visar diretamente à cura e a tentar antes dequalquer outra obra logo se arrependerá disso. PacuviusCalavius corrigiu esse erro com um exemplo notável.Seus concidadãos se haviam insurgido contra os magis­trados. Ele, personalidade de grande autoridade na cida­de de Cápua, encontrou um dia um meio de prender ossenadores no palácio e, convocando o povo na praça,disse ter chegado a hora de, com toda a liberdade, pode­rem vingar-se dos tiranos que os haviam oprimido portanto tempo, e que ele mantinha à sua mercê, isolados edesarmados. Combinou-se que, por ordem de sorteio,eles iriam saindo um a um, decidindo-se sobre cada umem particular e mandando-se executar de imediato aque­le sobre o qual assim se decretasse, contanto que, namesma hora, cuidassem de escolher algum homem debem para ficar no lugar do condenado, a fim de que seuposto não ficasse vago. Mal tinham ouvido o nome dumsenador quando se elevou um clamor de descontenta­mento geral contra ele. Estou vendo, disse Pacuvius, queé preciso livrar-se deste: é um perverso; cabe escolher

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_____ ~ ~_ Sobre a vaidade ~

em troca alguém que seja bom. Fez-se silêncio absoluto,pois todos sentiam empecilhos para a escolha; quando oprimeiro mais atrevido disse um nome, elevaram-se to­das as vozes em uníssono para recusá-Io, pois havia cemimperfeições e justas razões para rejeitá-Ia. Como essasdisposições contraditórias se tornassem acaloradas, piorainda aconteceu com o segundo senador, e com o tercei­ro: havia tanta discórdia para a eleição quanta concórdiahavia para a rejeição. Cansando-se com aquele tumulto,começaram, uns aqui, outros acolá, a afastar-se aos pou­cos da assembléia, todos levando na alma a resolução deque o mal mais velho e mais conhecido sempre é maissuportável que o mal recente e não experimentado.

Para nos vermos assim tão lastimavelmente ator­

mentados, o que não fizemos?

Eheu cieatricum et seeleris pudet,Fratrumque: quid nos dura refugimusAetas? quid intactum nefastiLiquimus? unde manus juventusMetu Deorum continuit? quibusPepercit aris?24

não direi de pronto e resolutamente:

ipsa si velit Salus,Servare prorsus non potest hane familiam.25

24. Ai, nossas cicatrizes, nossos crimes, nossas guerras fraticidasnos envergonham. O que nos poupou esta nossa era cruel? O quedeixamos ao abrigo de nossos excessos? O temor dos deuses terádetido as mãos da juventude? Que altares terá ela respeitado? (Horá­cio, Odes, I, XXXV,33.)

25. Nem que a própria deusa Salus quisesse, seria impotente parasalvar essa família. (Terêncio, Adelphoe, IV, VII, v. 43.)

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Talvez não tenhamos chegado ao nosso últimoperíodo. A conservação dos Estados é coisa que pro­vavelmente supera nosso entendimento. Como diz Pla­tão, é coisa poderosa e de difícil dissolução a organi­zação civil. Muitas vezes sobrevive às doenças mortaise internas, à agressão das leis injustas, à tirania, aosexcessos e à ignorância dos magistrados, à dissoluçãoe à sedição dos povos.

Em todas as nossas vicissitudes, comparamo-nos aquem está acima de nós e olhamos para os que estãomelhor; comparemo-nos ao que está abaixo: não háninguém tão desazado que não encontre mil exem­plos em que se consolar. É nosso vício preferir ver oque está à nossa frente a ver o que nos vem atrás. As­sim, dizia Sólon, se alguém fizesse um amontoado detodos os males, ninguém haveria que não preferissecarregar consigo seus próprios males a dividir legiti­mamente com todos os outros homens esse amontado

e tomar posse de seu quinhão. Nossa sociedade passamal, mas houve doentes mais graves que não morre­ram. Os deuses brincam conosco como se fôssemos bo­las, e nos agitam em todos os lanços:

Enimvero Dii nos homines quasi pilas habent. 26

Os astros destinaram fatalmente o Estado de Roma

para servir de exemplo do que são capazes nessas coi­sas. Em si, ele contém todas as formas e vicissitudes

26. Os deuses nos usam como bolas. (Plauto, Captivi, Prólogo,v. 22.)

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Sobre a vaidade

que atingem um Estado: tudo aquilo que podem a or­dem e a desordem, a ventura e a desventura. Quem de­sesperará de sua condição ao ver os abalos e os movi­mentos com que foi agitado e que suportou? Se a ex­tensão dos domínios é sinal da saúde dum Estado (comque não concordo de modo algum, e agrada-me o quelsócrates ensina a Nícocles: não invejar os príncipesque têm vastos domínios, mas os que sabem conser­var os que lhes couberam), aquele nunca esteve tãosaudável quanto no tempo em que esteve mais doen­te. A pior de suas formas foi-lhe a mais afortunada.Mal se reconhece a imagem de alguma administraçãono tempo dos primeiros imperadores: é a mais horrívele densa confusão que se possa conceber. Todavia, su­portou-a e perdurou, conservando não uma monar­quia fechada em seus limites, mas tantas nações tãodiversas, afastadas, desafeiçoadas, desordenadamentecomandadas e injustamente conquistadas;

nec gentibus ullisCommodat in populum terrae pelagique potentem,Invidiam fortuna suam.27

Nem tudo o que balança cai. A estrutura de tãogrande corpo só depende de mais de um prego. Eleagüenta até mesmo pela antiguidade: como os velhosedifícios, cujas fundações a idade solapou, que nãotêm reboco nem cimento, mas que vivem e se susten­tam com o próprio peso,

27. A fortuna não confia a nenhuma nação o cuidado de vingá­Ia dum povo que seja senhor da terra e do mar. (Lucano, I, 82.)

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nec jam validis radicibus haerens,Pondere tuta suo est.28

Ademais, não é bom procedimento verificar ape­nas o flanco e o fosso: para julgar a segurança dumapraça-forte, é preciso ver por onde se pode a ela che­gar, em que estado está o sitiante. Poucos navios afun­dam devido ao próprio peso e sem violência alheia.Ora, olhemos para todos os lados: tudo se esboroa aonosso redor; em todos os grandes Estados, seja da cris­tandade, seja alhures, que conheçamos, olhai e vereisuma evidente ameaça de mudança e de ruína;

Et sua sunt illis incommoda, parque per omnesTempestas.29

Pouco adianta os astrólogos nos advertirem, comofazem, de grandes alterações e mutações próximas: suasadivinhações são presentes e palpáveis, não é precisorecorrer aos céus para isso.

Não nos cabe apenas buscar consolo nessa socie­dade universal de mal e ameaça, mas também algumaesperança quanto à duração de nosso Estado, por­quanto - o que é natural - nada cai quando tudo cai.A doença universal é a saúde particular; a conformida­de é qualidade inimiga da dissolução. Quanto a mim,não caio em desespero, e parece-me enxergar cami­nhos de salvação;

28. É sustentado por raízes fracas; dura graças ao próprio peso.(Lucano, I, 138.)

29. Todos têm suas doenças, e tempestade semelhante ameaçaa todos. (Baseado em Virgílio, Eneida, XI, 422.)

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_ Sobre a uaidade

Deus haec fortasse benignaReducet in sedem vice.30

Quem sabe se Deus não quer que aconteça comoaos corpos que se purgam e ficam em melhor estadograças a longas e graves enfermidades, que lhes de­volvem uma saúde mais íntegra e mais fulgente que asaúde que lhes haviam roubado? O que mais me abor­rece é que, ao contar os sintomas de nosso mal, vejotantos males naturais, enviados pelos céus e propria­mente seus, quantos são os que nosso desregramentoe a imprudência humana nos conferem. Parece que ospróprios astros dizem que duramos além do termoordinário. E também me causa pesar que o mal quemais de perto nos ameaça não seja a alteração na mas­sa integral e sólida, mas sua dissipação e divulsão, onosso medo extremo.

Enquanto assim cogito temo a traição de minhamemória, que por inadvertência talvez me faça regis­trar a mesma coisa duas vezes. Detesto ter de retratar­me, e só retorno a contragosto àquilo que porventurame tenha escapado. Ora, aqui nada estou dizendo queseja novo. São cogitações comuns, e, feitas talvez umascem vezes, temo tê-Ias já arrolado. A repetição é sem­pre aborrecida, nem que seja em Homero, mas é de­sastrosa para as coisas de feição superficial e passagei­ra. Desagrada-me o inculcar, mesmo das coisas úteis,como em Sêneca, e não gosto do costume de sua es­cola estóica, de sobre cada assunto repetir de todos os

30. Talvez um deus nos devolva aquela prosperidade. (Horácio,Epodos, XII, 7.)

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modos possíveis os princípios e as pressuposições deuso geral, e de sempre alegar de novo os argumentose as razões comuns e universais. Minha memória pioradia a dia,

Pocula Lethaeos ut si ducentia somnosArente fauce traxerim.31

Doravante - pois graças a Deus até agora não hou­ve falha -, em vez de, como os outros, buscar tempoe ocasião de pensar no que compete dizer, precisofurtar-me aos preparativos, para não ficar preso a al­guma obrigação da qual acabe dependendo. Sinto-meperdido se obrigado a ater-me a instrumento tão frágilquanto a memória, ou a dele depender.

Há uma história que nunca leio sem pesar, sem umressentimento verdadeiro e natural. Lincestes, acusadode conjuração contra Alexandre, no dia em que foiapresentado ao exército, segundo o costume, para fa­zer sua defesa, levava de memória um discurso prepa­rado, do qual pronunciou algumas palavras a hesitar egaguejar. Como ficasse cada vez mais confuso, embo­ra lutasse com sua memória e tentasse despertá-Ia, foiacusado e morto a golpes de lança pelos soldados maispróximos dele, convencidos estes de que sua culpaestava provada. Seu assombro e seu silêncio serviram­lhe de confissão: como na prisão tivera tanto tempopara preparar-se, na opinião deles não era a memóriaque lhe faltara, mas sim a consciência que lhe refreara

31. Como se, com a garganta seca, eu tivesse bebido a água so­nífera do Letes. (Horácio, Epodos, XIV, 3.)

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a língua, tolhendo-lhe a força. Verdadeiramente, isto ébem posto. O lugar, a assistência, a expectativa assus­tam, sempre que a única ambição é bem falar. O quefazer quando do discurso depende uma vida?

Quanto a mim, o simples fato de estar preso àqui­10 que devo dizer serve para me soltar. Uma vez com­prometido com minha memória e a ela inteiramentevotado, pendo-lhe tanto que a esmago, e ela se apavo­ra com o peso. Ao lhe transferir meus encargos, po­nho-me fora de mim, a ponto de comprometer minhaposição; e de certa feita me vi em dificuldades para dis­simular a servidão na qual me enleara, quando meuobjetivo, ao falar, era dar a impressão de profunda ne­gligência e usar movimentos fortuitos e não premedita­dos, como se nascidos da ocasião presente; por isso, émelhor nada dizer que equivalha a mostrar que viemospreparados para bem falar, coisa que não assenta bemsobretudo a gente de minha profissão, e coisa que criagrandes obrigações para quem não pode correspon­der: os preparativos fazem esperar mais do que sãocapazes de dar. Há quem se vista tolamente de gibãopara não pular melhor do que se estivesse com saio.

Nihil est his qui placere volunt tam adversariumquam expectatioY Conta-se em texto escrito sobre oorador Cúrio que, propondo a distribuição das peçasde seu discurso em três, quatro ou mais argumentos erazões, muitas vezes lhe acontecia esquecer alguma ouacrescentar uma ou duas. Sempre evitei esse inconve­niente, odiando essas premissas e prescrições: não só

32. Nada há de mais perigoso para quem quer agradar do que aexpectativa. (Cícero, Acadêmicas, II, 4.)

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por não confiar em minha memória, mas também por­que essas formalidades apequenam o engenho. Sim­pliciora militares decent.33 Fiz-me a promessa de nãomais aceitar falar em lugares de cerimônia. Pois, quan­to a ler o discurso, além de ser coisa monstruosa, trazgrandes desvantagens a todos quantos, por natureza,tivessem alguma capacidade de ação. E, quanto a ficarà mercê de minha invenção do momento, muito me­nos, pois a minha é lenta e confusa, não sabendo aten­der às necessidades súbitas e importantes.

Deixe portanto o leitor correr mais um pouco esteensaio e este terceiro prolongamento do restante daspeças de minha pintura. Acrescento mas não corrijo.Em primeiro lugar porque entendo que quem hipote­cou ao mundo sua obra já não tem direito a ela.

Que ele, se puder, fale melhor em outro lugar, e nãoestrague a mercadoria que vendeu. De tais pessoas só sedeveria comprar alguma coisa depois de mortas. Deve­riam pensar bem antes de produzir. Por que pressa?

Meu livro é sempre o mesmo. A não ser que, queà medida que dele saiam novas edições, para que ocomprador não se vá com as mãos totalmente vazias,eu me dê o direito de acrescentar-lhe, qual marcheta­ria mal unida, algum emblema supranumerário. Nãopassarão de contrapeso incapaz de condenar a primei­ra forma e capaz de conferir algum preço especial acada uma das seguintes, por pequena sutileza ambi­ciosa minha. Disso advirá facilmente, todavia, que semisture alguma transposição de cronologia, já que a

33. Aos soldados convêm coisas mais simples. (Quintiliano, Ins­tituição oratória, XI, I.)

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posição de meus capítulos será resultado da oportuni­dade, e nem sempre da data.

Em segundo lugar, no que me diz respeito, temoperder com a mudança: meu entendimento nem sem­pre anda para a frente, anda também para trás. Nãoconfio nas fantasias que me cheguem em segundo outerceiro lugar mais do que nas primeiras, nem maisnas presentes que nas passadas. Muitas vezes nos cor­rigimos com tanta estultícia quanto corrigimos os ou­tros. Minhas primeiras edições foram de 1580. Transcor­rido tanto tempo, envelheci, mas por certo não ganheimais nenhuma polegada de sabedoria. É verdade queeu agora e eu então somos dois; mas qual é o melhornão sei dizer. Seria bonito envelhecer se só caminhás­

semos para a correção. Mas o movimento é de bêba­do: titubeante, vertiginoso, informe; ou dos juncos, queo ar maneja ao acaso, segundo sua vontade.

Antíoco escrevera com veemência a favor da Aca­

demia; nos anos da velhice passou a ter outra opinião.Seguir qualquer um dos dois não seria sempre seguirAntíoco?

Estabelecida a dúvida, o querer estabelecer a cer­teza das opiniões humanas porventura não seria esta­belecer a dúvida, e não a certeza, demonstrando-seassim que, a prolongar-se a vida, sempre haveria dis­posição para novas mudanças, nem sempre melhoresque as outras?

O favor público deu-me um pouco mais de ousa­dia do que esperava, porém o que mais temo é a sa­ciedade: prefiro desapontar a cansar, como fez um sábiode meu tempo. O louvor é sempre agradável, venha dequem vier, mas para apreciá-Io com justeza é preciso

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estar informado de sua causa. As próprias imperfeiçõestêm quem as defenda, e o julgamento vulgar e comumé pouco feliz nesse sentido; posso estar enganado, mas,nestes tempos, são os piores textos os mais favoreci­dos pelos ventos populares. Agradeço aos homens debem que se dignam ser benevolentes com meus débeisesforços. Não há outro lugar onde as falhas de criaçãoapareçam tanto quanto numa matéria que por si nadatenha de atraente. Que o leitor não me queira mal pe­las falhas aqui introduzidas pela fantasia ou inadver­tência de outras pessoas: cada mão, cada trabalhadorcontribui com as suas. Não me meto em questões deortografia (só ordeno que eles sigam a antiga) nem emquestões de pontuação: sei tão pouco duma quantodoutra. Quando eles destroem totalmente o sentido,pouco me preocupo, pois ao menos ninguém me po­de imputar a culpa; mas, quando o substituem por ou­tro errado, como ocorre com freqüência, e desviam oque eu disse segundo sua própria concepção, arruí­nam-me. Todavia, quando a frase não se ajustar à mi­nha feição, o homem de bem deverá recusá-Ia comominha. Quem souber quão pouco laborioso eu sou,como é particular o meu feitio, acreditará mais que eupreferiria ditar de novo outros tantos ensaios a aceitarrefazer estes, para uma correção pueril.

Dizia eu portanto que, plantado que estou na maisprofunda mina deste novo metal, não somente estouprivado de grande familiaridade com pessoas de cos­tumes e opiniões diferentes dos meus, graças aos quaissão unidas por um laço que escapa a qualquer outrolaço, como também não deixo de correr riscos entrepessoas para as quais tudo é igualmente lícito, e cuja

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maioria não conseguiria piorar ainda mais a situaçãoem que estão perante nossa justiça, donde nasce o ex­tremo grau de sua licença. Contando todas as particula­res circunstâncias que me dizem respeito, não vejohomem dos nossos a quem a defesa das leis custe, emlucros cessantes e em prejuízos emergentes (como di­zem os especialistas), mais que a mim. E aqui me refi­ro aos valentes em entusiasmo e veemência, que nobalanço final fazem muito menos do que eu. Casa desdesempre livre, totalmente acessível e sempre ao disporde todos (pois nunca me deixei induzir a fazer delaum instrumento de guerra, da qual tomo mais conhe­cimento quanto mais distante estiver de minha vizi­nhança), minha casa mereceu bastante afeição popu­lar, e seria difícil que alguém me repreendesse de cons­truir sobre o lodo; ademais, considero um exemplomilagroso que ela ainda esteja virgem de sangue e desaques, sob tão prolongada tormenta, com tantas mu­danças e agitações pelas proximidades. Pois, a bem daverdade, a um homem de minha feição seria possívelescapar de forma constante e contínua, qualquer quefosse ela; mas as invasões e as incursões adversas bemcomo as alternâncias e vicissitudes da sorte ao meu

redor até agora exasperaram mais que abrandaram asdisposições de minha terra, e me oneram com dificul­dades invencíveis. Escapo, porém - e isso me aborre­ce -, mais por sorte e até mesmo por minha prudên­cia que propriamente por justiça, e desgosta-me estarsem a proteção das leis e sob outra salvaguarda quenão a delas. Do modo como vão as coisas, vivo mor­mente por favor alheio, o que me cria obrigações. Nãoquero dever minha segurança nem à bondade e à be-

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nignidade dos grandes, aos quais agradam minha obser­vância às leis e minha liberdade, nem à condescen­dência minha e de meus predecessores. Pois queaconteceria se eu fosse diferente? Se minha conduta ea franqueza de minha conversação empenhassem meusvizinhos ou parentes, seria cruel que eles pagassempermitindo-me viver, e que pudessem dizer: Nós con­denamos a continuação do livre serviço divino na ca­pela de sua casa, uma vez que todas as igrejas dos ar­redores foram abandonadas e arruinadas por nós, econdenamos o uso que faz de seus bens e de sua vida,porquanto retém nossas mulheres e nossos bois emcaso de necessidade. De há muito em minha casa pres­tamos homenagem a Licurgo,ateniense que era generaldepositário e guardião das bolsas de seus concidadãos.

Ora, acredito que se deve viver por direito e auto­ridade, e não por recompensa nem por graça. Quan­tos homens ilustres preferem perder a vida a devê-Ia!Fujo a qualquer espécie de obrigação, mas sobretudoà que me liga por dever de honra. Nada me parecemais caro do que aquilo que me foi dado e aquilo peloque minha vontade permanece empenhada a título degratidão, e prefiro os serviços que estão à venda.Creio que por estes só dou dinheiro; pelos outros dou­me eu mesmo. O laço que me prende pela lei da ho­nestidade parece-me bem mais apertado que o da leicivil. Padeço menos com o garrote de um notário doque com um que seja meu. Não será razoável queminha consciência fique muito mais empenhada pelofato de simplesmente terem confiado nela? Aliás, mi­nha fiança nada significa, já que ninguém lhe confe­riu nada; que busquem fiança e garantias fora de mim.

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Preferiria romper a prisão das muralhas e das leis aromper a da palavra. Sou exigente no cumprimento depromessas a ponto de ser supersticioso, e, em todos osassuntos, as que faço são incertas e condicionais. Àsque não têm peso algum, confiro o peso da observân­cia de minhas normas: estas me constrangem e one­ram por si mesmas. Assim, nos meus empreendimen­tos próprios e livres parece-me que, dizendo o quepretendo, prescrevo-me uma obrigação, e que dar ciên­cia deles a outrem é o mesmo que comprometer-me acumpri-Ios; parece-me estar prometendo quando ape­nas estou dizendo. Assim, manifesto pouco minhas in­tenções.

A condenação que faço a mim mesmo é mais vivae rígida que a dos juízes, que só me vêem pelo aspec­to da obrigação comum, mas as injunções de minhaconsciência são mais estritas e severas. Sigo negligen­temente os deveres para os quais me arrastariam se eunão fosse a eles. Hoc ipsum ita justum est quod rectefit, si est voluntarium.51 Se a ação não tiver nenhumlustro de liberdade, não terá estima nem honra.

Quod me jus cogit, vix voluntate impetrent.35

Naquilo para que a necessidade me compele, agra­da-me relaxar a vontade, quia quicquid imperio cogi­tur, exigenti magis quam praestanti acceptum refer-

34. Mesmo uma ação justa só será realmente justa se for volun­tária. (Cícero, De Officiis, I, 9.)

35. Aquilo a que o dever obriga só se obtém a duras penas daminha vontade. (Terêncio, Adelphoe, III, V, v. 44.)

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tur.36 Sei de quem siga este provérbio até a injustiça:dão em vez de devolver, emprestam em vez de pagar,e fazem com parcimônia o bem a quem devem fazer.Não chego a isso, mas confino.

Gosto tanto de desonerar-me e desobrigar-me queàs vezes conto em meu proveito ingratidões, ofensas eindignidades que recebi daqueles para com quem, pornatureza ou acidente, eu tivesse algum dever de ami­zade, aproveitando a ocasião em que falham para qui­tar-me e livrar-me da dívida. Ainda que continue a pa­gar-Ihes os serviços por via da razão pública, sinto quepoupo muito ao fazer por justiça o que antes fazia porafeição e ao aliviar-me um pouco da atenção e solici­tude imposta pela minha vontade (est prudentis susti­nere ut cursum, sic impetum benevolentiae)37, que éum tanto urgente e premente naquilo a que me dedi­co, pelo menos para alguém que, como eu, não querser instado; e essa economia me serve de consolo paraas imperfeições daqueles que me atingem. Desgosta­me que valham menos, mas pelo menos poupo algu­ma parte da minha dedicação e do meu empenho paracom eles. Aprovo quem ama menos o filho por sertinhoso ou corcunda, e não apenas quando é malva­do, mas também quando é infeliz e mal nascido (Deusmesmo descontou isso de seu apreço e estima natu­rais), desde que nessa sua frieza ponha moderação eexata justiça. Para mim, a proximidade não mitiga osdefeitos; antes, agrava-os.

36. Pois seja qual for a obrigação, dá-se mais crédito a quem aordenou do que a quem a cumpriu. (Valério Máximo, lI, lI, 6.)

37. É prudente reter a corrida do cavalo, e assim também o ím­peto da belevolência. (Cícero, De Amicitia, 17.)

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Ao fim das contas, pelo que entendo da ciência dobem fazer e do reconhecimento, que é ciência sutil ede grande utilidade, não vejo ninguém mais livre nemmenos endividado que eu até agora. O que devo, de­vo por obrigações comuns e naturais. Aliás, ninguémhá que esteja mais quite,

nec sunt mihi nota potentumMunera.3K

Os príncipes muito me dão quando nada me ti­ram, e fazem-me bem quando não me fazem mal; étudo o que deles espero. Como sou grato a Deus porter recebido imediatamente de Sua graça tudo o quetenho, por ter Ele ficado com toda a minha dívida! Co­mo suplico instantemente à Sua santa misericórdianun­ca ter de dever um favor essencial a ninguém!

Bem-aventurada independência, que me condu­ziu tão longe. Que dure para sempre. Tento não pre­cisar expressamente de ninguém. In me omnis spes estmihi.39 Isso é algo que todos podem em si mesmos,mas que é mais fácil para aqueles que Deus pôs aoabrigo das necessidades naturais e urgentes. É lastimá­vel e arriscado depender de outra pessoa. Nem mes­mo quando dependemos só de nós - o que é mais jus­to e mais seguro - temos suficientes garantias. Nadapossuo senão a mim mesmo, e essa é uma posse em

38. Tampouco conheço os presentes dos grandes. (Imitado deVirgílio, Eneida, XII, 519.)

39. Todas as minhas esperanças estão em mim. (Imitado de Te­rêncio, Adelphoe, m, V, v. 9.)

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parte imperfeita e emprestada. Cultivo-me e encorajo­me, o que me deixa mais forte, e também em fortuna,para ter com que me satisfazer em caso de ser por to­dos abandonado.

Hípias, de Élis, não se alimentava apenas de ciên­cia para, no regaço das musas, afastar-se alegrementede qualquer outra companhia ou necessidade, nemapenas de conhecimentos filosóficos, para ensinar suaalma a satisfazer-se consigo mesma e a prescindir co­rajosamente das comodidades externas quando o des­tino assim dispusesse; também aprendeu a cozinhar, acortar-se os cabelos, a fazer sua própria roupa, seussapatos, seus anéis, para bastar-se o mais que pudes­se e não ter de recorrer a estranhos.

Desfrutamos com muito mais liberdade e alegriaos bens que nos são emprestados quando não somosa isso obrigados e constrangidos pela necessidade,quando temos, por vontade e fortuna, os meios de po­der passar sem eles.

Conheço-me bem. Mas é difícil imaginar a mais pu­ra liberalidade de alguém, a hospitalidade mais franca egratuita que não me parecessem desfavoráveis, tirâni­cas e reprováveis se fossem impostas pela necessidade.

Assim como dar é qualidade ambiciosa e de prer­rogativa, aceitar é qualidade de submissão. Demons­tração de injúria e motivo de litígio foi a recusa de Ba­jazet em aceitar os presentes que Tamerlão lhe envia­va. E os presentes oferecidos ao imperador de Calicutda parte do imperador Solimão deixaram-no profun­damente enraivecido: não só os recusou rudemente,dizendo que nem ele nem seus predecessores tinhampor costume aceitar e que seu ofício era dar, como

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também mandou meter numa masmorra os embaixa­dores enviados para esse fim.

Quando, segundo Aristóteles, Tétis lisonjeia Júpi­ter, e quando os lacedemônios lisonjeiam os atenien­ses, não o fazem refrescando-Ihes a memória com osbenefícios que lhes fizeram, o que é sempre odioso, massim com os benefícios que deles receberam. Aqueles quecom facilidade se comprometem e empenham não ofariam se pesassem, como deve pesar a um homem pru­dente, o penhor duma obrigação: que por vezes sepaga, mas que nunca se dissolve.

Cruel garrote para quem gosta de agir com liber­dade em todos os sentidos. Meus conhecidos, tanto osque estão acima quanto os que estão abaixo de mim,bem sabem que nunca viram ninguém que pese me­nos para os outros. Se escapo totalmente aos exem­plos modernos, não é de espantar, pois para isso con­tribui muito o meu temperamento: um pouco de brionatural, a impaciência que me causam as recusas, apeculiaridade de meus desejos e objetivos, a inabilida­de em qualquer tipo de negócio, bem como minhasqualidades favoritas: ócio e liberdade. Por tudo issosinto um ódio mortal de prender-me a outra pessoa ouque me prenda outra pessoa que não seja eu mesmo.Empenho-me vivamente no que puder para prescindirda beneficência dos outros antes de aceitá-Ia em qual­quer ocasião, seja esta de alegria ou de pesar. Meus ami­gos me importunam desmedidamente quando solici­tam que eu solicite para eles os favores dum terceiro.E me parece tão custoso livrar das dívidas aqueles queme devem quanto empenhar-me por eles junto a quemnada me deve. Excluídas essa situação e qualquer ou­tra em que exijam de mim coisas de negócios e cuida-

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dos (pois declarei guerra aberta a todos os cuidados),dou cômodo acesso às necessidades de todos. Mastambém nesse caso procuro mais fugir de receber doque de dar, o que é mais fácil, segundo Aristóteles. Odestino pouco ensejo me deu de fazer bem a outrem,e o pouco que ensejou distribuiu parcamente. Se asorte me tivesse destinado por nascença a altos postosentre os homens, minha ambição seria a de fazer-meamar, e não temer ou admirar. Como exprimir isso demodo mais direto? Eu visaria tanto a agradar quanto aser útil. Ciro, com grande sabedoria, pela boca dumótimo capitão e filósofo melhor ainda, estima que suabondade e seus benefícios estão muito acima de suavalentia e de suas conquistas bélicas. E o primeiro Ci­pião, sempre que quer evidenciar seu valor, dá maispeso à sua magnanimidade e humanidade do que àsua audácia e a suas vitórias, estando sempre a profe­rir estas gloriosas palavras: que deu aos inimigos tan­tos motivos para ser amado quantos deu aos amigos.

Quero pois dizer que, se for preciso dever algumacoisa, que seja por razões mais legítimas do que aque­las de que estou falando, às quais a lei desta miserávelguerra me obriga, e que não seja dívida tão grandequanto a da conservação da vida, que é esmagadora.Mil vezes em minha casa adormeci imaginando queseria traído e assassinado naquela noite, fazendo votosde que tal acontecesse sem pavor e sem sofrimentoprolongado. E exclamava após o meu pai-nosso:

Impius haee tam eulta novalia miles habebit!40

40. Algum ímpio soldado possuirá estas terras tão bem cultiva­das! (Virgílio, Églogas, I, 71.)

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__________________ Sobre a vaidade _

Que remédio? É minha terra natal, da maioria dosmeus ancestrais, que lhe deram amor e nome. En­rijecemos em tudo aquilo a que nos acostumamos. Enuma miserável condição, como é a nossa, é uma dá­diva da natureza o acostumar-se, que entorpece nos­sos sentimentos em face do sofrimento causado portantos males. As guerras civis são piores que as outrasguerras porque transformam cada casa numa guarita,

Quam miserum porta vitam muroque tueri,Vixque suae tutum viribus esse domusY

É fato de extrema gravidade ser ameaçado no pró­prio lar e durante o repouso doméstico. O lugar ondemoro é sempre o primeiro e o último no embate de nos­sas conturbações e onde o rosto da paz nunca se mos­tra por inteiro,

Tum quoque eum pax est, trepidant formidine belli.4Z

Quoties paeem fortuna laeessit,Hae iter est bellis. Melius, fortuna, dedisses

Orbe sub Eoo sedem, gelidaque sub Areto,Errantesque domos.43

Às vezes extraio um meio de me tornar mais fortecontra essas considerações da negligência e da covar-

41. Como é triste proteger a vida com uma porta e algumas pa­redes, e estar inseguro, apesar da solidez da casa! (Ovídio, Tristia, IV,1,69.)

42. Mesmo na paz tremem de medo da guerra. (Id., lbid., m, X, 67.)43. Cada vez que o destino rompe a paz, a guerra passa por aqui.

Ó destino, seria melhor que me desses um lugar no Oriente, ou entãomorada errante no norte glacial! (Lucano, I, 255 e 251.)

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dia: elas nos levam a alguma resolução. Ocorre-me nãoraro imaginar com certo prazer os perigos mortais eesperá-los: mergulho de cabeça estupidamente na mor­te, sem a considerar e reconhecer, como numa pro­fundeza muda e obscura que me engolisse num saltoe prostrasse no mesmo instante num sono irresistível,cheio de insipidez e indolência. E nessas mortes cur­tas e violentas, a conseqüência que prevejo me dá maisconsolo que aflição. Dizem que, embora nem semprea melhor vida seja a longa, a melhor morte é a curta.Já não me causa tanta estranheza o fato da morte setenho confidências com o morrer. Embrulho-me e re­

cubro-me em meio a esta tormenta, que deverá cegar­me e arrebatar-me na fúria dalguma investida pronta einesperada.

E se é verdade, como dizem alguns jardineiros,que as rosas e as violetas crescem mais perfumadasperto de alhos e cebolas, porquanto estes sugam e re­tiram para si o que há de mau odor na terra, que assimtambém as naturezas depravadas sorvessem todo oveneno do meu ar e da atmosfera, tornando-me dessemodo, graças à sua proximidade, melhor e mais puropara que nem tudo estivesse perdido. Isso não acon­tece, mas há alguma verdade em se dizer que a bon­dade é mais bela e atraente quando é rara, e que acontrariedade e a adversidade fortalecem e contêm

em si o bem obrar, inflamando-o com o zelo da opo­sição e com a glória.

Os ladrões não me querem mal de modo especial.E eu a eles? Seria preciso querer mal a muita gente.Tais consciências albergam, sob diversos tipos de apa­rência, formas semelhantes de crueldade, deslealdade,

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.~ .. ~. Sobre a vaidade

ladroíce, que são piores porque covardes, acobertadase obscurecidas que são pela sombra das leis. Odeiomenos a injúria confessa que a traiçoeira, a guerreiraque a pacífica. A febre atacou nosso corpo mas nãopiorou seu estado: o fogo já estava lá, agora as chamasdominam; o ruído é maior, o mal pouco aumentou. Aquantos me perguntem a razão de minhas viagens cos­tumo responder que sei muito bem do que fujo, masnão o que busco. Se me dizem que entre os estrangei­ros poderá haver tanta insalubridade, e que seus cos­tumes não são melhores que os nossos, respondo, emprimeiro lugar, que isso é difícil,

Tam multae scelerum facies!44

e, em segundo lugar, que sempre é vantagem trocaruma situação ruim por uma incerta, e que os malesalheios não devem ferir-nos tanto quanto os nossos.

Não quero esquecer que, por mais que me revol­te contra a França, nunca deixo de ter bons olhos paraParis: ela tem meu coração desde a infância. E paramim passou a ser uma das coisas excelentes da vida:quanto mais 'conheço outras belas cidades, mais a be­leza desta cresce e ganha em minha afeição. Amo-a porsi mesma, e mais na simplicidade do seu ser do que napompa que lhe é estranha. Amo-a com ternura, amoaté seus defeitos e suas nódoas. Não sou francês se­

não graças a essa grande cidade: grande pelo seu po­vo, grande pela beleza do lugar, mas incomparável emvariedade e diversidade de comodidades, a glória da

44. Tantas são as faces do crime! (Virgílio, Geórgicas, I, 506.)

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Montaigne

França e um dos mais nobres ornamentos do mundo.Que Deus dela afaste nossas dissensões! Íntegra e uni­da, vejo-a imune a violências. Advirto que, de todosos caminhos, o pior será aquele que lhe crie discórdias.E temo por ela em si mesma. E temo por ela comouma das partes deste Estado. Enquanto ela existir, te­rei onde retirar-me para meus últimos dias, o que mebasta para não sentir saudade de nenhum outro lugar.

Não porque Sócrates tenha dito, mas porque naverdade assim penso, talvez não sem grande exagero,considero todos os homens meus compatriotas, e abra­ço um polonês como se fosse um francês, transferin­do essa ligação nacional para a universal e comum.Não morro de amores pelas amenidades da comu­nhão natal. Os conhecimentos novos e pessoais pare­cem-me valer os outros, fortuitos e comuns propicia­dos pela proximidade. As amizades puras que adqui­rimos são necessariamente superiores àquelas às quaisa comunhão de clima ou sangue nos unem. A nature­za nos pôs no mundo livres e desligados; nós nos apri­sionamos em limites estreitos: como os reis da Pérsia,que se impunham a obrigação de jamais beber outraágua que não fosse a do rio Coaspez, renunciando porestultícia ao direito de uso de todas as outras águas, oque tornava o restante do mundo seco para eles.

Acredito que nunca me sentiria tão apegado nemtão habituado à minha terra que fizesse o que Sócratesfez no fim da vida, de considerar uma condenação aoexílio pior que a sentença de morte. Essas vidas celes­tes têm imagens que abraço mais por admiração quepor afeição. E algumas são tão elevadas e extraordiná­rias que nem por admiração as posso abraçar, por­quanto não as posso conceber.

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I,

Sobre a vaidade ._. _

Essa decisão foi bastante delicada para um homemque considerava o mundo sua pátria. É verdade quedesprezava as viagens e que nunca pusera os pés forado território da Ática. Apesar disso, rejeitou o dinhei­ro dos amigos, que lhe resgataria a vida, e recusou-se asair da prisão pela intervenção de terceiros, para nãodesobedecer às leis, num tempo em que elas estavam,aliás, tão corrompidas. Esses exemplos são de primeiraplana para mim. De segunda são outros que se pode­riam encontrar nessa mesma personalidade. Alguns deseus raros exemplos superam minha força de ação, masoutros superam também minha capacidade de julgar.

Além dessas razões, acredito que viajar seja um exer­cício proveitoso. A alma vive continuamente excitadapela observação de coisas desconhecidas e novas, e,como já disse várias vezes, não conheço melhor esco­la para formar a vida do que propor incessantemente adiversidade doutras vidas, modos de pensar e usos, epermitir que ela saboreie tão imensa variedade de for­mas da nossa natureza. Nas viagens, o corpo não ficaocioso nem atormentado pelo trabalho, e essa agitaçãomoderada dá ,lhe novo alento. Ando a cavalo sem des­

montar, nem quando acometido por cólicas, e sem meaborrecer, durante oito a dez horas.

Vires ultra sorternque senectae.45

Nenhuma estação me é hostil, a não ser a canícula,pois as umbelas que em Itália são utilizadas desde os

45. Além das forças e das condições da velhice. (Virgílio, Enei­da, VI, 114.)

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antigos romanos cansam mais os braços do que des­cansam a cabeça. Gostaria de saber que artifício usa­vam os persas, em tempos antigos, quando nascia oluxo, para criarem vento fresco e sombras onde esti­vessem, como conta Xenofonte. Gosto da chuva e dalama como os patos. A mudança de ar e de clima nãome afeta; para mim, o céu é um só. Só me abatem asalterações internas que produzo em mim mesmo, emesmo estas são menos freqüentes em viagem.

É-me difícil sair do lugar, mas uma vez em caminhoando enquanto for mister. Afadigo-me tanto nos pe­quenos acometimentos quanto nos grandes, e a apres­tar-me para uma visita de um dia a um vizinho ou parauma viagem propriamente dita. Aprendi a fazer jorna­das à espanhola, duma só tirada: grandes e considerá­veis jornadas; no calor extremo, faço-as à noite, dopôr-do-sol ao amanhecer. O outro modo, de dar pastoaos animais em caminho, com grande tumulto, e dejantar apressadamente, sobretudo nos dias curtos, é in­cômodo. Meus cavalos merecem coisa melhor. Nunca

um cavalo que comigo tivesse feito a primeira jornadafalhou. Dou-Ihes água em todos os lugares, e cuidosempre que o caminho que lhes reste pela frente sejaapenas suficiente para consumir a água que beberam.A preguiça em levantar-me dá a quem me segue tem­po de jantar à vontade antes de partir.46 Nunca comotarde demais: o apetite chega enquanto como, e nuncadoutro modo; só sinto fome à mesa.

Certas pessoas lamentam que me dê prazer conti­nuar esse exercício, mesmo sendo casado e velho. Es-

46. Jantava-se então por volta das onze horas da manhã.

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Sobre a vaidade

tão erradas. A melhor época para abandonar a famíliaé quando já lhe demos condições de continuar semnós, quando a deixamos numa ordem que não desmin­ta sua situação passada. Há bem mais imprudência emnos afastarmos quando deixamos em casa uma vigi­lância menos fiel e que tenha menos cuidado em pro­ver às nossas necessidades.

A mais útil e honrosa ciência e ocupação duma mu­lher é a Economia Doméstica. Vejo algumas avarentas,econômicas pouquíssimas. Esta é a principal qualidadedelas, e que se deve buscar acima de qualquer outra,como o único dote que consegue arruinar ou salvar nos­sas casas. Digam o que disserem, por tudo o que apren­di exijo duma mulher, acima de qualquer outra virtude,a da economia do lar. Deixo a minha a cômodo quan­do, ausentando-me, ponho em suas mãos todo o gover­no da casa. Vejo com pesar certos lares em que o senhorretorna irritado e descontente com as dificuldades dosnegócios, cerca de meio-dia, e a senhora ainda está àsvoltas com pentear-se e enfeitar-se em seus aposentos.Isso é coisa de rainhas, ou que sei eu. É ridículo e injus­to que a ociosidade de nossas mulheres seja sustentadapelo nosso trabalho e nosso suor. Não sucederá que eupossibilite a ninguém fazer uso mais líquido, tranqüilo edesobrigado de meus bens do que eu mesmo. Se o ma­rido fornece matéria, quer a própria natureza que elasforneçam forma.

Quanto aos deveres da amizade marital, que mui­tos acreditam ser afetados por essa ausência, não ocreio. Ao contrário, é o entendimento que costuma ar­refecer-se com a convivência demasiado contínua, eque a assiduidade prejudica. Toda mulher estranha nos

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parece boa. E todos sentem por experiência que a con­tinuidade do ver-se não pode igualar o prazer que sen­timos quando nos separamos e nos reunimos a interva­los. Essas interrupções me enchem de amor renovadopelos meus e fazem parecer mais agradável o uso deminha casa: a alternância excita meu apetite por uma edepois por outra possibilidade. Sei que a amizade tembraços bastante longos para perseverar e unir dum can­to ao outro do mundo; e com mais razão esse tipo deamizade, em que a contínua comunicação de deveresaviva a recordação da obrigação assumida. Os estóicosdizem bem que há tão grande aliança e relação entre ossábios que, jantando um em França, alimenta o compa­nheiro no Egito; e, se um deles estender nem que sejaum dedo, todos os sábios que estejam sobre a terra ha­bitável sentirão sua ajuda. O gozo e a posse pertencemprincipalmente à imaginação. Ela abraça com mais caloro que vai buscar do que aquilo que mais tocamos e maisamiúde. Observai vossos entretenimentos diários e ve­

reis que estais mais distante de vosso amigo quando eleestá presente: sua assistência relaxa vossa atenção e dáa vosso pensamento a liberdade de ausentar-se a todahora e por qualquer motivo.

Da distância de Roma, mantenho e governo mi­nha casa e as comodidades que ali deixei: vejo crescerminhas muralhas, minhas árvores e minhas rendas, eas vejo decrescer de cerca de dois dedos, como quan­do estou ali:

Ante occulos errat domus, errat forma locorum.47

47. Diante de meus olhos flutua minha casa e a imagem doslugares. (Ovídio, Tristia, III, 4, 57.)

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_________ Sobre a vaidade _

Se só nos desse prazer aquilo que tocamos, o queseria de nossos escudos quando estão em nossas ar­cas, e de nossos filhos quando vão à caça? Desejamosmaior proximidade. O pomar é longe? Meia jornadade caminho? E dez léguas? É perto ou longe? Se é per­to, que tal onze, doze, treze? E assim passo a passo.Realmente, da mulher que prescreve ao marido em quepasso termina o perto e qual passo dá início ao longe,eu diria que ela o detém entre dois pontos:

excludat jurgia finis.Utor permisso, caudaeque pilas ut equinaePau latim vello, et demo unum, demo etiam unum,Dum cadat elusus ratione ruentis acervi48;

e que recorre astutamente à filosofia; o que poderiaser reprovável, pois ela não vê nenhuma das extremi­dades da junção entre o demasiado e o pouco, o lon­go e o curto, o leve e o pesado, o perto e o longe, poisnão identifica nem seu começo nem seu fim; diria queela faz um juízo bem impreciso do meio. Rerum ratu­ra nullam nobis dedit cognitionemfinium.49 Não serãoelas mais mulberes e amigas dos finados, que não es­tão no extremo pertencente a este mundo, mas no ou­tro? Abraçamos os que foram e os que não são ainda,

48. Que um número exclua qualquer contestação. Se não, apro­veitarei a liberdade e, assim como quem arranca crina por crina o rabodum cavalo, separo uma unidade, depois outra, até que nada fique etu sejas vencido pela força de meu raciocínio. (Horácio, Epístolas, lI,I, 38 e 45.)

49. A natureza não nos deu nenhum conhecimento do fim dascoisas. (Cícero, Acadêmicas, lI, 29,)

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tanto quanto os ausentes. Em nos casando, não con­tratamos que ficaríamos continuamente grudados umao outro, como certos animaizinhos que vemos oucomo os enfeitiçados de Caríntia, à maneira dos cães.E não deve uma mulher ter os olhos tão reprovadora­mente fixados no que está à frente do marido que dei­xe de ver o que lhe está por trás, sempre que houvernecessidade.

Mas as seguintes palavras dum pintor excelente doshumores femininos não seriam aqui legítimas para re­presentar a causa das queixas das mulheres:

Uxor, si cesses, aut te amare cogitat,Aut tete amari, aut potare, aut animo obsequi,Et tibi bene esse soU, cum sibi sit male.50

Ou será que só se entretêm e alimentam com aoposição e a contradição, e que só se acomodam quan­do nos incomodam?

Na verdadeira amizade, que conheço bem, dou­me ao amigo mais do que dele tiro. Não só prefirofazer-lhe bem, e não ele a mim, como também prefi­ro que ele se faça o bem, em vez de a mim; o maiorbem que ele me pode fazer é fazê-Io a si mesmo. E sea ausência lhe for agradável ou útil, ser-me-á bem maisgrata que sua presença; e não há propriamente ausên­cia quando há algum meio de comunicar-se. Outroratirei proveito e prazer de nosso distanciamento. Preen-

50. Se te ausentas, tua mulher acha que amas outra, ou que ésamado, ou que bebes, ou que te divertes, e que só tu estás bem, en­quanto ela está mal. CTerêncio, Adelphoe, I, I, 7.)

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_____ ~ __" Sobre a vaidade

chíamos e dilatávamos mais nosso viver quando nosseparávamos: eleS!vivia, apreciava e via as coisas pormim, e eu por ele, de maneira tão plena quanto se es­tivesse presente. Uma parte ficava ociosa quando está­vamos juntos: nós nos confundíamos. A separação dolugar tornava mais rica a conjunção de nossas vonta­des. Essa fome insaciável da presença física denunciaum pouco a fraqueza na fruição das almas. Quanto à

velhice que me imputam, ao contrário, é próprio dajuventude submeter-se à opinião comum e deixar-seconstranger por outrem. Os jovens podem atender aopovo e a si: nós temos coisas demais para fazer a nósmesmos. À medida que nos faltam as facilidades natu­rais, cumpre apoiar-nos nas artificiais. É injusto des­culpar a juventude por guiar-se pelos prazeres e vedarà velhice procurá-Ios. Jovem, eu cobria de prudênciaminhas alegres paixões; velho, soluciono as tristes dis­traindo-me. As leis platônicas proíbem as viagens an­tes dos quarenta ou cinqüenta anos, para torná-Ias maisúteis e instrutivas; concordo mais com o segundo arti­go das mesmas leis, que as proíbem depois dos ses­senta. - Mas na vossa idade nunca voltareis de tão lon­

go caminho. - Que me importa? Não o empreendo nempara dele voltar, nem para o perfazer; empreendo-oapenas para me mexer, enquanto o movimento meagrada.- E passeio por passear. Quem corre atrás delucro ou de uma lebre não corre; corre quem brincade pega-pega e quem se exercita na corrida.

Meu destino é divisível por todas as partes; não sefunda em grandes esperanças, cada jornada constitui

51. Evidentemente, trata-se de La Boétie.

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seu termo. E a viagem de minha vida é conduzida domesmo modo. Vi, porém, bastantes lugares distantesonde desejei que me tivessem deixado. Por que não,se Crísipo, Cleantes, Diógenes, Zenão, Antipater, tan­tos homens sábios da seita mais carrancuda52 abando­naram sua terra sem motivo de arrependimento, tão­somente para gozar outros ares?É verdade que o maiordesgosto de minhas viagens é não poder decidir-me aestabelecer moradia onde bem me agrada, e precisarsempre voltar, para conformar-me às disposições co­muns. Se temesse morrer em outro lugar que não mi­nha terra natal, se me parecesse penoso morrer longedos meus, custar-me-ia sair de França; sequer sairiasem grande medo de minha paróquia. Sinto a morte aapertar-me continuamente a garganta ou a cintura.Mas meu feitio é outro: para mim, a morte é a mesmaem todos os lugares. Se, todavia, me coubesse esco­lher, acho que preferiria morrer a cavalo a morrer nacama, fora de casa e longe dos meus. É mais aflitivoque consolador despedir-se dos amigos. Facilmente es­queço esse dever social, pois entre os preceitos da ami­zade esse é o único desagradável, e também de bomgrado deixaria de dizer esse grande e eterno adeus.

Se é que existe algum conveniente nessa assistên­cia, há mil inconvenientes. Vi muitos moribundos las­timavelmente molestados por toda essa afluência: talinsistência os sufoca. É contrariar os preceitos e dartestemunho de pouca afeição e de pouca atenção dei­xar que alguém morra em paz: este lhe atormenta osolhos, outro os ouvidos, outro ainda a boca; não há

52. Os estóicos.

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_____________ Sobre a vaidade _

sentido ou membro que não lhe esfrangalhem. O cora­ção se confrange de piedade ao ouvir as lamentaçõesdos amigos, e de raiva ao ouvir porventura outras la­mentações fingidase dissimuladas.Quem sempre teve ogosto delicado e frágil tê-Io-á mais ainda então. Emocasião de tão grande necessidade precisamos de mãoafetuosa e ajustada a nossos sentimentos para nos pas­sar ungüento onde dói, ou para não tocar o local emabsoluto. Se precisamos da habilidade da parteira paranos pôr no mundo, precisamos contar com um homemainda mais hábil que nos ajude a dele sair. À pessoaassim, e amiga, deveríamos pagar preço altíssimo, paraos serviços de tal ocasião.

Ainda não atingi aquele vigor desdenhoso que sefortaleceem si mesmo, que dispensa ajuda e não se per­turba; estou um ponto abaixo. Procuro acaçapar-me efurtar-me a essa passagem, não por medo, mas porastúcia. Não é minha intenção nessa ocasião dar provaou demonstração de coragem. Para quem? Terá cessa­do então o direito à reputação e o interesse que tenhopor ela. Contento-me com uma morte recolhida, quie­ta e solitária, só minha, adequada à minha vida retira­da e privada. Contrariando a superstição romana, queconsiderava infeliz quem morresse sem falar e sem apresença dos próximos a lhe fecharem os olhos, pen­so que' estarei bastante ocupado a consolar-me para terde consolar os outros, terei pensamentos bastantes nacabeça para que as circunstâncias me arranjem outros,e matéria suficiente a entreter-me para pedir assuntoaos outros. Esse é um papel que não cabe à socieda­de: é o ato duma pessoa só. Procuremos viver e folgarentre os nossos, mas morrer e rezingar entre desco-

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nhecidos. Pagando, encontramos quem nos vire a ca­beça e nos esfregue os pés, quem se mostre solícito sóna medida da nossa vontade, apresentando um sem­blante indiferente, deixando-nos a nos entreter e la­muriar à nossa moda.

Discorrendo, desfaço-me todos os dias dessa dis­posição pueril e desumana, que consiste em desejardespertar com nossos males a compaixão e o pesarem nossos amigos. Damos a nossos achaques valordesmedido, para provocar seu pranto. E, a firmeza quelouvamos nos outros em suportar sua má fortuna, incri­minamos e reprovamos nos próximos quando o desti··no é o nosso. Não nos satisfaz que se ressintam comnossos males, se porventura não se mostrarem aflitos.É preciso dilatar a alegria, mas cercear tanto quantopossível a tristeza. Quem se faz lastimar sem razão éhomem que não deverá ser lastimado quando razãohouver. E nunca encontrará compadecimento quemsempre está a falar do seu padecer, condoendo-se tantode si mesmo que ninguém mais dele se condói. Quemse faz de morto em vida está sujeito a ser tomado porvivo em morrendo. Vi alguns que se exasperavam selhes diziam que estavam com bom semblante e pulsomoderado, que continham o riso para não demonstrara cura, e odiavam a saúde por não ser esta lastimável.E o mais importante: não eram mulheres.

No mais das vezes represento minhas doenças talqual são, e evito palavras de mau prognóstico e excla­mações compungidas. Se não a alegria, pelo menosum comportamento sereno dos assistentes é o que con­vém junto a um enfermo sensato. Não é por se ver emestado contrário que será hostil à saúde; agrada-lhe

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contemplá-ia em outra pessoa que esteja forte e intei­ra, e desfrutá-ia nem que seja por companhia. Não épor se sentir definhar que rejeitará os pensamentos devida ou fugirá às conversações. Quero estudar a doen­ça enquanto estiver são; a presença dela produz im­pressão assaz real, mesmo sem a ajuda de minha ima­ginação. Preparamo-nos de antemão para as viagensque empreendemos e decidimos: chegada a hora demontar a cavalo, nós a comunicamos aos que nos cer­cam e a prorrogamos caso lhes convenha.

Percebo um inesperado proveito na divulgação demeus costumes: serve-me um pouco de regra. Por ve­zes me ocorre que não me é lícito trair a história deminha vida. Esta declaração pública obriga-me a nãosair do caminho e a não desmentir a imagem de minhascondições, de ordinário menos desfiguradas e contra­ditórias do que levam a crer a malevolência e a mor­bidez dos julgamentos de hoje em dia. A uniformida­de e a simplicidade de meu temper;;lmento produzema impressão de que é fácil interpretá-lo, mas, por serum tanto nova e insólita, a maneira como é apresenta­do dá ensejo à maledicência. Verdade é que, a quemquiser injuriar-me lealmente, parece-me que forneçoimperfeições confessas e notórias em número sufi­ciente para que me mordam e se saciem, sem que pre­cisem inventar. Se, ao ocupar-me pessoalmente com aindigitação e a descoberta dessas imperfeições, pareçoarrancar os dentes a quem quer morder-me, este terámotivos para procurar ampliar e estender seus direitos(a ofensa arroga-se direitos que vão muito além da jus­tiça), e de transformar em árvores os vícios cujas raízesaponto em mim, utilizando para isso não só os que me

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possuem de fato como também os que só me amea­çam. Vícios infamantes em qualidade e número: é poreles que deverei ser atacado.

Eu acataria de braços abertos o exemplo do filó­sofo Díon. A Antígono, que queria espicaçá-Io com alu­sões à sua origem, ele deu a seguinte resposta irretor­quível: sou filho de um servo, magarefe estigmatizado,e duma prostituta com que meu pai se casou pela bai­xeza de sua condição. Ambos foram punidos por al­gum delito. Um orador, achando-me agradável, com­prou-me ainda criança, e, ao morrer, deixou-me todosos seus bens, que eu trouxe para esta cidade de Ate­nas, onde me dediquei à filosofia. Que os historiado­res não se empenhem em buscar novidades em mim;direi tudo como de fato é. A confissão generosa e livredesnerva a crítica e desarma a injúria.

Fato é que, somando tudo, parece-me que tantome louvam quanto me desprezam além da conta. Co­mo também me parece que, desde a infância, tantoem condição social quanto em honrarias deram-meuma posição que está mais acima do que abaixo da­quilo que me cabe.

Sentir-me-ia melhor numa terra onde essas orde­

nações fossem regulamentadas ou desprezadas. Entreos homens, se tiver mais de três réplicas, a altercaçãosobre as prerrogativas da condição social já é incivil.Não tenho medo de ceder ou preceder unicamentepara escapar a tão importuna contestação, e jamaisninguém cobiçou o meu direito à precedência semque eu lha tenha concedido.

Além desse proveito que aufiro ao escrever sobremim mesmo, espero outro: se ocorrer que minha dis-

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- ----- -- Sobre a vaidade _

posição de espírito agrade e se ajuste a algum homemde bem antes que eu morra, que ele procure unir-se anós; posso dar-lhe muito chão palmilhado, pois tudoo que um longo conhecimento e grande familiaridadepoderiam propiciar em vários anos vê-se em três diasneste registro, e com mais segurança e exatidão. Sin­gular fantasia: tantas coisas que eu não gostaria dedizer a ninguém, digo-as ao povo, e sobre meus maissecretos conhecimentos ou pensamentos remeto auma loja de livreiro meus amigos mais leais.

Excutienda damus praecordia.53

Se, por provas irrefutáveis, soubesse de algumque se me apropriasse, iria buscá-Io onde estivesse,pois a meu ver não há preço que pague o prazer du­ma companhia adequada e agradável. Ó um amigo!Como é verdadeira a frase antiga segundo a qual a pri­vança dum amigo é mais necessária e agradável que ouso da água e do fogo! Mas voltando ao que dizia, nãohá, portanto, grande inconveniente em morrer distan­te e isolado. Se achamos que nos devemos retirar pararealizar ações naturais menos feias e hediondas queessa ... Ademais, aqueles que chegam a essa ocasiãodepois ~e se arrastarem enfermiços por toda a vida,não deveriam desejar ocupar com sua miséria umagrande família. Em certa província da Índia, conside­rava-se justo matar quem viesse a encontrar-se em talnecessidade; noutra província, abandonavam-no, para

53. Expomos o fundo do coração à perscrutação. CPérsio, V, 22.)

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que se salvasse como pudesse. A quantos não se tor­narão eles, afinal, molestos e insuportáveis? Os deve­res comuns não chegam a tanto. Ensinamos forçosa­mente a crueldade a nossos melhores amigos, empe­dernindo mulher e filhos pelo longo tempo que pas­sam sem mais sentir e lastimar os nossos males. Osgemidos provocados pela minha cólica não comovemmais ninguém. E se porventura nos dava algum prazercom eles conversar, o que nem sempre acontece, vistoque a disparidade das condições costuma produzirdesprezo ou invejapara alguma das partes, não será de­mais abusar disso por tempo ilimitado? Quanto maisos visse sinceramente constrangidos por mim, mais eulamentaria a dor que sentissem. É mister que nos apoie­mos, e não que nos deitemos pesadamente sobre osoutros, escorando-nos em sua ruína. Como aquele quemandava degolar criancinhas para, tomando o san­gue delas, curar-se de doença sua. Ou aquele outro, aquem forneciam jovens raparigas que aquecessem seusvelhos membros à noite e misturassem a doçura deseu hálito ao dele, acre e pesado. Eu escolheria de bomgrado Veneza, para recolher-me em tal condição edebilidade da vida. A decrepitude é qualidade solitá­ria. Sou sociável ao excesso. Por isso me parece razoá­vel subtrair da vista das pessoas a minha importunida­de para incubá-Ia sozinho, e encolher-me e recolher­me em minha carapaça, como as tartarugas. Aprendoa ver os homens sem a eles me agarrar: isso seria umultraje quando o passo é tão cambaleante. Essa é ahora de dar as costas às companhias. - Mas, em tãolonga viagem, ficareis miseravelmente retido sob umatolda, onde tudo faltará. - A maioria das coisas neces-

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sárias carrego comigo. E, depois, não é possível evitaro destino quando ele resolve nos correr no encalço.Não preciso de nada de extraordinário quando estoudoente: o que a natureza não puder fazer em mimnão quero que uma pílula faça. Assim que começamminhas febres e as doenças que me prostram, quandoainda estou lúcido e próximo da saúde, reconcilio-mecom Deus por meio dos derradeiros ofícios cristãos,e com isso me sinto mais livre e aliviado, parecendo­me que assim consigo vencer a doença. De notários econselhos preciso menos que de médicos. Os negóciosque eu não tiver acertado com saúde, não espere nin­guém que eu acerte na doença. O que eu tiver de fazerpara o serviço fúnebre já estará feito: eu não ousariaatrasá-Io um só dia. E, se não houver nada feito, signi­ficará que ou a dúvida retardou-me a escolha, pois àsvezes é boa escolha nada escolher, ou que eu não quisnada fazer.

Escrevo meu livro para poucos homens e poucosanos. Se fosse matéria duradoura, precisaria recorrer auma língua mais sólida54• Pela variação contínua que anossa até agora demonstrou, quem pode esperar quesua forma presente ainda seja usada daqui a cinqüen­ta anos? Ela"escorre todos os dias entre nossos dedos,e desde que nasci já mudou pela metade. Dizemosque agora está perfeita. É isso o que cada século dizda sua. Não pretendo fixá-Ia onde está enquanto con­tinuar mudando e deformando-se como faz. Cabe aostextos bons e úteis assentá-Ia, e o crédito dela depen-

54. o latim.

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derá da sorte de nosso Estado. Contudo, não temo nelainserir vários termos especiais, que têm uso correnteentre os homens de hoje, e que dizem respeito à ciên­cia particular de alguns, que neles enxergarão mais quea inteligência comum. Não quero, ao final das contas,como muitas vezes vejo tratarem a memória dos quejá morreram, que se fique discutindo: ele pensava evivia assim; queria tais coisas; se tivesse falado poucoantes de morrer, teria dito isto, teria designado aquilo;eu o conhecia melhor que ninguém. Ora, dentro doslimites do decoro, exponho aqui minhas inclinações eafeições, mas posso fazê-Ia com mais liberdade e maisà vontade pessoalmente a quem deseje ser informado.Fato é que nestas memórias, olhando-se bem, ver-se-áque eu disse tudo, que indiquei tudo. O que não pos­so dizer aponto com o dedo:

Verum animo satis haec vestigio parva sagaciSunt, per quae possis cognoscere caetera tute.55

De mim nada deixo por desejar e adivinhar. Semister for que alguém se entretenha, quero que sejade modo verdadeiro e justo. Voltaria até do outro mun­do para desmentir quem quer que de mim fizesse ima­gem diferente do que sou que fosse para homena­gear-me. Mesmo de quem está vivo, percebo que sem­pre se fala de modo diferente daquele que é. E, se comgrande esforço não tivesse salvaguardado um amigo

55. Estes pequenos indícios são suficientes aos espíritos sagazes,e por eles poderás conhecer todo o resto. (Lucrécio, I, 403.)

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que perdi, tê-Ia-iam dilacerado em mil facetas contra­ditórias.

Para terminar de descrever minhas disposições maisdébeis, confesso que, em viagem, não entro em esta­lagem alguma sem que fique a imaginar se lá me seriapossível permanecer a cômodo, estando eu doente oumoribundo. Desejo ficar hospedado em lugar bem pri­vado, sem ruídos, que não seja sujo, esfumaçado ouabafado. Procuro lisonjear a morte com essas frívolascircunstâncias, ou, melhor dizendo, procuro livrar-mede qualquer outra ocupação, para que a única coisaque tenha por fazer seja esperá-Ia, pois ela já me pesa­rá bastante sem outra sobrecarga. Quero que ela tam­bém participe do bem-estar e da comodidade de mi­nha vida, pois é um bocado grande e importante dela,que espero não desminta o meu passado.

Algumas mortes têm formas mais agradáveis queoutras, e assumem diversas qualidades segundo afantasia de cada um. Entre as naturais, a que provémdo enfraquecimento e do derreamento me parece lân­guida e doce. Entre as violentas, imagino com maisperturbação cair num precipício que ser esmagadopor escombros, um golpe cortante de espada que umtiro de arcabuz; e preferiria tomar a poção de Sócratesa ferir-me como Catão. E, ainda que dê na mesma, naminha imaginação há uma diferença como da morteà vida em lançar-me numa fornalha ardente ou numbraço de rio remansoso. É assim que, estultamente,nosso medo se atém mais ao meio que ao efeito. É ape­nas um instante, mas de tal peso que de bom gradodaria vários dias de minha vida para passá-Ia a meumodo.

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E como a fantasia de cada um vê nela maior oumenor agrura, e como cada um pode ter alguma pre­dileção quanto às formas de morrer, tentemos encon­trar um pouco mais adiante alguma que seja de todoisenta de desprazer. Seria possível torná-Ia voluptuo­sa, como os comorientes"6Antônio e Cleópatra? Aquinão considerarei os esforços produzidos pela filosofiae pela religião, austeros e exemplares. Mas, entre ho­mens não tão importantes, conheceram-se alguns,como Petrônio e Tigilino em Roma, empenhados emdar-se a morte, aos quais ela chegou como o sonopela languidez de seus preparativos. Fizeram-na es­coar e deslizar entre a molície de seu passatempo ha­bitual, entre mulheres e bons companheiros: nenhu­ma frase de consolo, nenhuma menção de testamen­to, nenhuma afetação ambiciosa de coragem, nenhumdiscurso sobre sua condição futura, mas sim entrejogos, festins, facécias, entretenimentos comuns e po­pulares, com música e versos de amor. Não podería­mos nós imitar essa resolução com conduta mais de­cente? E, visto que há mortes boas para sandeus eboas para sábios, busquemos alguma que seja boapara quem está entre estes dois extremos. Minha ima­ginação apresenta-me alguma de rosto complacente e,visto que cumpre morrer, até desejável. Os tiranos ro­manos acreditavam dar a vida ao criminoso a quemconcediam a escolha da morte. Mas Teofrasto, filósofotão sensível, modesto e sábio, porventura não foi for-

56. Quem morre juntamente com outro. "Os comorientes, expli­ca Villey, formavam uma associação em que a morte era festejadacom banquetes."

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çado pela razão a ousar proferir estes versos latiniza­dos por Cícero:

Vitamregit fortuna,non sapientia57.

Quanto contribui a sorte para facilitar minha vidacolocando-me em tal ponto que ela não faz falta nemsobra para ninguém! Essa é uma situação que eu aca­taria em qualquer momento de minha existência, masnessa ocasião, de entrouxar meus trens e enfardarbagagem, sinto ainda mais prazer em não dar prazernem desprazer a ninguém por morrer. Assim, graças auma arguta compensação, aqueles que podem preten­der algum fruto material de minha morte recebem,aliás, junto com ela uma perda material.

A morte muitas vezes nos pesa por pesar aosoutros, e nos faz sentir as perdas alheias quase tantoquanto com as nossas, e às vezes mais e unicamente.

Na comodidade que busco nas estalagens, não in­cluo a pompa e a amplidão, que aliás odeio, mas cer­to asseio singelo, que no mais das vezes se encontranos lugares de menos artifício, que a natureza honracom uma graça toda sua. Non ampliter sed munditerconvivium."8 Plus salis quam sumptus.59

E depois, só a quem, instado pelos negócios, en­vereda em pleno inverno pelos Grisões ocorre ser sur-

57. O que rege a vida é a sorte, não a sabedoria. (Cícero,Tusculanae disputationes, V, 9.)

58. Uma refeição mais limpa que abundante. (Poema citado porNônio, XI, 19.)

59. Mais alegria que luxo. (Comélio Nepos, Vida de Ático, 13.)

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preendido em caminho por tal situação extrema. Eu,que no mais das vezes viajo por prazer, não me doutão mal. Se o tempo é feio à direita, tomo a esquerda;se não me sinto bem a cavalo, paro. E, assim fazendo,na verdade não vejo nada que não seja tão agradávele cômodo quanto minha casa. É verdade que acho asuperfluidade sempre supérflua, e demonstro embara­ço no requinte e na abundância. Porventura deixeialgo para trás?Volto; é sempre meu caminho. Não tra­ço linha alguma, reta ou curva. Não encontro porven­tura aonde vou aquilo que me indicaram? Como acon­tece amiúde que os julgamentos de outrem não se ajus­tam aos meus, e muitas vezes os descobri errôneos,não lamento o tempo perdido; fico sabendo que aqui­lo de que me falaram não existe.

Tenho constituição físicaadaptável e gosto comum,como homem do mundo que sou. A diversidade demodos de ser entre uma nação e outra só me impres­siona pelo prazer da variedade. Cada uso tem sua ra­zão. Sejam os pratos de estanho, de madeira, de terra­cota, cozidos ou assados, com manteiga ou azeite denozes ou oliva, quentes ou frios, tudo dá no mesmo,se bem que, envelhecendo, reprovo-me essa generosafaculdade, e seria preciso que a delicadeza e a seleçãopusessem fim à indiscrição de meu apetite e porven­tura me aliviassem o estômago. Sempre que, fora deFrança, alguém por cortesia me perguntou se eu que­ria ser servido à francesa, trocei e procurei as mesasmais cheias de estrangeiros.

Fico envergonhado quando vejo franceses enlea­dos na tolice de exasperar-se com costumes contráriosaos seus: parece que estão fora de seu elemento quan-

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do estão fora de sua aldeia. Onde quer que estejam,ficam presos a seus costumes e abominam os estran­geiros. Se encontram um compatriota na Hungria, fes­tejam o acontecimento, e eis que se aliam e se juntampara condenar quantos costumes bárbaros vejam. Porque não seriam bárbaros, se não são franceses? Esentem-se ainda mais argutos porque os reconhece­ram, para deles falar mal. A maioria dos francesessó viaja para poder voltar. Viajam encobertos e encer­rados por uma prudência taciturna e incomunicável,defendendo-se do contágio dos ares desconhecidos. Oque deles estou dizendo me traz à memória, por coi­sas semelhantes,aquilo que por vezes percebi em algunsde nossos jovens cortesãos. Só se atêm a gente de suaespécie e nos olham como gente do outro mundo, comdesdém ou piedade. Que não lhes consintam as con­versações segredos as da corte, e eles serão peixe forad'água, tão inexperientes e inábeis para nós quanto osomos para eles. Bem se diz que o homem perfeito é() homem afeito.

Eu, ao contrário, viajo farto de nossos costumes,não procurando gascões na Sicília(já os terei deixadoem casa), mas de preferência gregos e persas, que fre­qüento e considero; é aí que me disponho e me esme­ro. E digo mais: não me parece ter encontrado costu­mes que não valham os nossos. Não afirmo com cer­teza, pois nunca me afastei o suficiente para perder devista os meus cata-ventos.

Não obstante, a maioria das companhias fortuitasque encontrais pelo caminho causam mais desagra­do que prazer: não me apego a elas, muito menos agora,que a velhice me aparta e afasta um tanto dos hábitos

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comuns. Vós sofreis por causa do outro, ou o outropor vossa causa; ambos os inconvenientes são graves,mas o último me parece ainda pior. É acontecimentoraro, porém consolo inestimável, encontrar um ho­mem de bem, de conhecimentos sólidos e costumesconformes aos vossos, que goste de vos seguir. Sentiextrema falta disso em todas as minhas viagens. Mastal companhia compete escolher e angariar já em casa.Para mim, nenhum prazer tem gosto sem comunica­ção. Não me acorre um único pensamento espirituososem que me sinta agastado de tê-Io produzido sozi­nho, não tendo a quem o oferecer. Si cum hac excep­tione detur sapientia, ut illam inclusam teneam necenuntiem, rejiciam.60 O outro subiu mais um tom edisse: Si contigerit ea vita sapienti ut, omnium rerumagluentibus copiis, quamvis omnia quae cognitionedigna sunt summo ofio secum ipse consideret et con­templetur, tamen si solitude tanta sit ut hominem vide­re non passit, excedat e vita.61 Agrada-me a opinião deArquitas, de que se desagradaria do próprio céu e depassear por esses grandes e divinos corpos celestes senão contasse com a presença dum companheiro. Masainda é melhor estar só que em companhia tediosa einepta. Aristipo gostava de viver como estrangeiro emtodos os lugares.

60. Recusarei a sabedoria se ela me for dada com a condição deguardá-Ia para mim e de não a proclamar. (Sêneca, Epístola 6)

61. Se o sábio tivesse tal vida que, na abundância de todas ascoisas, ele considerasse e contemplasse em extremo ócio tudo e sÓconsigo mesmo tudo o que é digno de se conhecer, e se sua solidãofosse tal que não pudesse ver homem algum, melhor seria abandonara vida. (Cícero, De O.fficiis, I, 43.)

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Me si fata meis paterentur dueere vitamAuspiciis,62

eu escolheria passar a vida com o traseiro sobre a sela:

visere gestiens,Qua parte debaeehentur ignes,Qua nebulae pluviique rores.63

Não haverá passatempo mais fácil?O que vos fal­ta? Vossa casa não estará porventura em lugar bonitoe clima salubre, não será suficientemente abastecida emais ampla que o necessário?

A majestade real nela pôde alojar-se mais dumavez com toda pompa.64 Porventura vossa família nãotem sob sua autoridade mais gente do que tem acimade si em eminência? Haverá no local motivo para algu­ma preocupação extraordinária e indigerível, capaz devos causar uma úlcera?

Quae te nune eoquat et vexet sub peetore fixa?65

Onde cuidais poder estar sem empeços e transtor­nos? Nunquam simpliciter fortuna indulget.66 Vede,

62. Se o destino me permitisse levar a vida segundo meus dese­jos. (Virgílio, Eneida, IV, 340.)

63. Feliz por ver os lugares onde o sol é tórrido e aqueles ondeabundam nuvens e chuvas. (Horácio, Odes, III, III, 54,)

64. Montaigne recebeu o rei Henrique de Navarra em 1584 e 1587.65. Que, presa ao vosso peito, vos atormente e vos vexe. (Ênio,

em Cícero, De Senectute, I.)66. A sorte nunca condescende sem opor dificuldades. (Quinto

Cúrcio, IV, 14.)

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pois, que sois o único empeço a vós mesmos, que emtodos os lugares sereis vossa própria companhia, eque em todos os lugares vos lamentareis. Porque nes­te mundo só encontram satisfação as almas brutais oudivinas. Quem não se contenta com tão justa situação,onde se contentará? Para quantos milhares de pessoasa condição que tendes não parecerá a suprema meta?Reformai-vos, portanto, pois é isso o que podeis fazer,visto que em relação ao destino só vos cabe terpaciência. Nulla placida quies est, nisi quam ratio com­posuit.67

Entendo a razão dessa advertência, e entendo mui­to bem, mas teria sido mais pertinente que me disses­sem apenas isto: recobrai o juízo. Esta resolução estáalém do bom juízo: é sua obra e sua produção. Assimage o médico que não pára de bradar a um pobredoente debilitado para que se alegre; o seu conselhoseria um pouco menos inepto se ele dissesse: reco­brai a saúde. Quanto a mim, sou apenas um homemcomum.

De fato é um preceito salutar, correto e de fácilentendimento: Contentai-vos com o que tendes, istoé, com o razoável. Sua execução, porém, é tão difícilpara os mais prudentes quanto para mim. Trata-se dedito popular, mas tem terrível alcance. O que não abar­cará? Em tudo cabe discernimento e modificação. Seique, tomando-se ao pé da letra, esse prazer de viajaré demonstração de inquietação e irresolução. No entan-

67. Não há verdadeira tranqüilidade, a não ser a produzida pelarazão. (Sêneca, Epístola 56.)

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to, essas são nossas principais qualidades, e as predo­minantes. Sim, confesso que não enxergo nada, nemque seja em cogitações e desejos, a que me possaprender; só a variedade e a diversidade me conten­tam, se é que alguma coisa me contenta. Em viagemsatisfaz-me o fato de poder parar sem nada perder, ede poder mudar o rumo à vontade. Gosto da vida pri­vada, porque gosto por opção, e não para me opor àvida pública, que talvez também se conforme a meumodo de ser. Sirvo com mais alegria ao meu príncipeporquanto essa é livre escolha de meu juízo e deminha razão, sem obrigação particular, e porque aisso não sou relegado nem constrangido por inaceitá­vel e malquisto em qualquer outro partido. O mesmoquanto ao resto. Odeio os bocados que a necessida­de corta para mim. Qualquer comodidade de que fos­se obrigado a depender ficaria entalada em minha gar­ganta:

Alter remus aquas, alter mihi radat arenas.68

Uma corda só nunca me segura o suficiente. - Oque há é vaidade, dizeis, nesse divertimento. - E ondenão há? E esses belos preceitos vaidade são, e é vaida­de toda a sabedoria.

Dominus novit cogitationes sapientium, quoniamvanae sunt.69

68. Que um remo roce a água e o outro as areias. (Propércio, III,III, 23.)

69. O Senhor sabe que os pensamentos dos sábios não passamde vaidade. (Salmos XCIII, lI, e Epístolas aos Coríntios, l, III, 20.)

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Essas sutis argúcias ajustam-se apenas ao púlpito:são discursos que nos querem enviar bem domestica­dos para o outro mundo. A vida é um movimento ma­terial e físico, ação imperfeita e sem regras de sua pró­pria essência; empenho-me em servi-Ia como ela é.

Quisque suos patimur manes.70

Sic estfaciendum ut contra naturam universamnihil contendamus; ea tamen conservata, propriamsequamur7J •

De que servem esses elevados cumes da filosofiasobre os quais nenhum ser humano pode assentar-see essas regras que excedem nossos usos e nossa força?Vejo que amiúde nos são propostas imagens de vidaque nem o proponente nem o ouvinte têm qualqueresperança ou, o que é mais grave, vontade de obser­var. Do mesmo papel onde acaba de escrever a sen­tença de condenação de um adúltero, o juiz tira umpedacinho para mandar uma mensagem amorosa à

mulher do amigo. Aquela mesma a quem porventuraacabásseis de vos roçar ilicitamente, gritaria mais quePórcia, até mesmo em vossa presença, se presencias­se falta semelhante numa companheira. E há aqueleque condena homens a morrer por crimes que elemesmo não tem por faltas. Em minha juventude vi umhomem galante apresentar ao povo, com uma das

70. Cada um de nós tem o seu sofrimento. (Virgílio, Eneida,VI, 743.)

71. Devemos agir de tal modo que não contrariemos as leis uni­versais da natureza; mas, uma vez observadas, devemos seguir nossaprópria natureza. (Cícero, De Oificiis, I, 31.)

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mãos, versos excelentes em beleza e dissolução, e coma outra, no mesmo instante, a mais violenta reformateológica com que o mundo já se tenha repastado.

São assim os homens. Deixamos que as leis e ospreceitos sigam seu caminho; nós ficamos em outro:não apenas por devassidão, mas amiúde por opiniãoe por julgamento contrário. E, se ouvis a leitura dumdiscurso de filosofia, sua invenção, eloqüência e per­tinência impressionam incontinenti vosso espírito evos comovem; nele nada há que lisonjeie ou insultevossa consciência; não é a ela que estão falando, nãoé verdade? Assim, dizia Aríston que uma estufa e umensinamento não têm utilidade alguma se não limpa­rem e purificarem.

Podemos deter-nos na casca, mas só depois de re­tirar o miolo, assim como só depois de engolirmos umbom vinho numa bela taça é que nos pomos a consi­derar suas gravuras e seu lavor.

Em todas as escolas da filosofia antiga veremosque um mesmo obrador publica regras de temperançae ao mesmo tempo escritos de amor e devassidão. EXenofonte, no regaço de Clínias, escreveu contra a vo­luptuosidade de Aristipo. Não é que ondas de conver­são milagrosa os transformem de tempos em tempos,mas é que Sólon se nos aparece ora como ele mesmo,ora na forma de legislador, ora a falar para a multidão,ora por si; e para si toma as regras livres e naturais,logrando saúde firme e íntegra.

Curentur dubii medicis majoribus aegri.72

72. Que os doentes mais graves sejam tratados por grandesmédicos. (Juvenal, XIII, 124.)

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Para Antístenes, o sábio pode amar e fazer a seumodo tudo o que achar oportuno, sem se ater às leis,porquanto tem mais tino e mais conhecimento da vir­tude do que elas. Seu discípulo Diógenes dizia opor arazão às conturbações, a confiança à sorte, a naturezaàs leis.

Para os estômagos delicados, é preciso prescre­ver disciplina e remédios. Os bons estômagos obser­vam simplesmente as prescrições de seu apetite natu­ral. Assim fazem nossos médicos, que comem melão ebebem vinho novo enquanto obrigam o paciente a to­mar xarope e caldo de miolo de pão.

Não sei que livros escrevem - dizia a cortesã Laís-,qual é sua sapiência e sua filosofia, mas esses homensvêm bater à minha porta com a mesma freqüência queos outros. Uma vez que nossa licença sempre nos levapara além daquilo que nos é lícito e permitido, muitasvezes os preceitos e as leis de nossa vida foram muitomais estreitados do que os limites da razão universal.

Nemo satis credit tantum delinquere quantumPermittas.73

Seria de se desejar que houvesse mais proporçãoentre mandamentos e obediência, e parece injusto to­do alvo que não possa ser atingido. Não há homem debem que submeta ao exame das leis todas as suasações e seus pensamentos, havendo mesmo quem

73. Ninguém acha que delinqüiu mais do que é permitido.0uvenal, XIV,233.)

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seja passível de condenação à forca dez vezes na vida,mas que seria lamentável e injusto punir e perder.

Olle, quid ad teDe cute quid faciat ille, vel illa sua?74

E poderia haver até quem não ofendesse as leis,mas que nem por isso merecesse ser louvado comohomem virtuoso, e a quem a filosofia com justiça dariavergastadas. Tanto essa relação é obscura e desigual.Não temos a menor intenção de ser gente de bem se­gundo as leis de Deus; não o somos nem segundo asnossas. A sabedoria humana nunca chegou aos deve­res que prescreveu para si mesma e, se tivesse chega­do, prescreveria outros além, pondo-os onde semprea eles aspirasse ou pretendesse, tanto nossa condiçãoé inimiga da consistência. O homem dispõe para si oestar necessariamente em falta. Não há nenhuma pers­picácia em talhar as próprias obrigações pela razão deoutro ser. E para quem estará prescrevendo quemprescreve sem esperar que alguém cumpra? Será injus­to deixar de fazer o que é impossível fazer?

As leis que nos condenam a não poder são asmesmas que nos inculpam por não termos podido. Nopior dos casos essa monstruosa liberdade de apresen­tar-se por dois lados, um das ações, outro dos discur­sos, é lícita àqueles que falam das coisas, mas nãopode ser lícita àqueles que falam de si, como estoufazendo: preciso conduzir-me pela pluma como me

74. Ollus, que te importa o que aquele ou aquela fazem de suaprópria pele? (Marcial, VII, IX, I.)

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conduzo por meus pés. A vida do homem comumdeve comparar-se a outras vidas. A virtude de Catãotinha um vigor que superava as medidas de seu sécu­lo; e dum homem que se aventurava a governar osoutros, devotado ao serviço comum, poder-se-ia dizerque a sua justiça, se não injusta, era pelo menos vã efora de tempo. Meus próprios costumes, que não che­gam a distar uma polegada dos costumes correntes,mesmo assim me tornam de certo modo intratável einsociável para o meu século. Não sei se me desgostosem razão com o mundo em que vivo, mas sei bemque não teria razão se me queixasse de ele se desgos­tar comigo tanto quanto eu com ele.

A virtude prescrita para as coisas do mundo é umavirtude cheia de pregas, dobras e curvas, para adaptar­se e unir-se à fraqueza humana, confusa e artificial, enão reta, nítida, constante, nem pura e inocent~. Osanais reprovam até hoje um de nossos reis por ter-sedeixado levar com demasiada simplicidade pelas cons­cienciosas persuasões de seu confessor. Os negóciosde Estado têm preceitos mais ousados:

exeat aula

Qui vuIt esse pius.75

Outrora tentei pôr a serviço dos negócios públicosopiniões e normas de vida tão rudes, novas, impolidasou impolutas quanto tinham sido por mim concebidasou em minha educação aprendidas, normas que utilizo,

75. Deixe a corte aquele que quiser ser honesto. (Lucano, VIII, 4.)

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se não comodamente, pelo menos com segurança navida privada, uma virtude escolásticae cândida. Achei-asineptas e perigosas para o caso. Quem anda em meio àmultidão precisa mudar de rumo, cerrar-se os cotove­los, recuar ou avançar, às vezes até sair do caminhoreto, segundo aquilo com que tope; precisa viver nãotanto segundo ele mesmo quanto segundo os outros,não segundo o que ele se propõe mas segundo o quelhe propõem, de acordo com o tempo, de acordo comos homens, de acordo com os negócios.

Platão diz que é por milagre que alguém sai comas bragas limpas do manejo do mundo. E diz tam­bém que, quando põe um filósofo como governan­te, não está pensando numa sociedade corrompidacomo a de Atenas; muito menos como a nossa, coma qual a própria sabedoria estaria a perder o seu latim.Assim como é mais fácil a erva transplantada parachão muito diferente do de sua condição conformar-sea ele em vez de mudá-Io em seu favor, sinto que, setivesse de entregar-me totalmente a tais ocupações,precisaria de muita mudança e reparo. E, mesmo quetivesse esse poder sobre mim (e por que não o teria,com tempo e cuidado?), não o desejaria. Com o pou­co que tentei em tal cargo desgostei-me o suficiente.Sinto por vezes atear-se na alma alguma tentaçãoambiciosa; mas me enrijo e obstino em contrário:

At tu, Catulled, obstinatus obdura.76

76. E tu, Catulo, persevera obstinadamente. (Catulo, VIII, 19.)

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Quase não me chamam, e eu pouco compareço.A liberdade e a ociosidade, que são minhas principaisqualidades, são qualidades diame traImente contráriasa esse métier*. Não sabemos distinguir as faculdadesdos homens; elas têm divisões e limites delicados e de

difícil escolha. Concluir pela suficiência na vida públi­ca a partir da suficiência na vida privada é concluirmal: há quem se conduza bem mas não conduza bem

os outros, e faz ensaios quem não saberia produzirefeitos; há quem arme bem um cerco mas armaria mal

uma batalha, e discorre bem privadamente quem dis­cursaria mal para um povo ou um príncipe. Talvez omais comum seja ver-se que quem é capaz duma coisanão é da outra, e não o contrário. Acho que os espíri­tos elevados são tão pouco aptos para as coisas baixasquanto os espíritos baixos para as elevadas.

É de se acreditar que Sócrates pudesse dar aosatenienses motivo de riso, por nunca ter sido capaz decontar os sufrágios de sua tribo e fazer um relatório ao

conselho? Certo está que, venerando eu tanto as per­feições desse homem, é legítimo que sua sorte propi­cie um magnífico exemplo para escusar minhas prin­cipais imperfeições.

Nossa suficiência reparte-se em pedaços miúdos.A minha não tem largueza e é escassa em número. Sa­turnino disse aos que lhe haviam outorgado o coman­do total: Companheiros, perdestes um bom capitãopara dele fazerdes um mau general. Quem se gaba,

• Métier comumente não é utilizado em português exatamentecom o mesmo sentido do francês. (N. do R. T.)

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em tempos insalubres como estes, de empregar a ser­viço da sociedade uma virtude ingênua e sincera, ounão a conhece, visto que as opiniões se corrompemcom os costumes (se não, ouvi como a pintam, ouvi co­mo a maioria se vangloria de seus costumes dissolutose cria suas próprias regras: em vez de pintarem a vir­tude, pintam a injustiça pura e o vício, apresentando­a assim falsa à educação dos príncipes), ou, se a co­nhece, gaba-se deslealmente, e, diga o que disser, fazmil coisas de que sua consciência o acusa. Eu acredi­taria de bom grado em Sêneca no que se refere à ex­periência que teve em semelhante ocasião, desde queele falasse de coração aberto. A mais honrosa marcade bondade em tais condições é reconhecer livremen­te o próprio erro e o alheio, respaldar e retardar comtodas as forças a inclinação para o mal, trilhar essependor ao revés, esperar e desejar coisas melhores. Per­cebo nesses desmembramentose nessas divisões queem França nos atinge que todos trabalham na defesade sua própria causa, mas até os melhores com dissi­mulação e mentira. Quem sobre isso escrevesse aber­tamente estaria escrevendo de maneira temerária e

repreensível. Por mais justa que seja uma facção, aindaé membro dum corpo carcomido e bichado. Mas de talcorpo o membro menos doente é tido por sadio, e comjustiça, porquanto nossas qualidades só são distingui­das por comparação.

A candura civil é medida segundo os lugares e ostempos. Gostaria de ver em Xenofonte um louvor doseguinte feito de Agesilau: diante da solicitação de umpríncipe vizinho, com o qual já estivera em guerra, deque o deixasse passar por suas terras, ele anuiu, per-

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mitindo-Ihe a passagem através do Peloponeso; e nãosó não o aprisionou nem envenenou, mantendo-o àsua mercê, como também o acolheu cortesmente, semque este sofresse nenhum agravo. Sobre esse tipo deconduta nada se diria; em outros lugares e em outrostempos, farão caso da franqueza e da magnanimidadede uma tal ação. Aos fedelhos broncos de hoje servi­ria de motivo de zombaria, tão pouco a inocência es­partana inspira os costumes franceses.

Não deixamos de ter homens virtuosos, mas se­gundo nossos conceitos. Quem se guia por princípiossuperiores aos do seu século deverá torcer e embotarsuas normas ou - o que é preferível - que se ponhaa salvo e não se misture conosco. O que ganhariacom isso?

Egregium sanctumque virum si cerno, bimembriHoc monstrum puero, et miranti jam sub aratroPiscibus inventis, et foetae comparo mulae.77

Podemos sentir saudade dos tempos melhores,mas não podemos fugir aos de hoje; podemos desejaroutros magistrados, mas temos de obedecer a estes. Etalvez haja mais mérito em obedecer aos maus queaos bons. Enquanto luzir em algum rincão a imagemdas antigas e acatadas leis desta monarquia, aqui esta­rei eu. Mas se por infelicidade elas vierem a contradi-

77. Se vejo um homem eminente e íntegro, comparo esse"monstro" a uma criança de duas cabeças, ou a peixes que, espanto­samente, fossem encontrados sob uma charrua, ou a uma mula pre­nhe. CJuvenal, XIII, 64.)

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zer-se e desmentir-se, produzindo duas facções entreas quais a escolha seja duvidosa e difícil,minha esco­lha será a de escapar e furtar-me a tal tormenta; entre­mentes a natureza poderá estender-me sua mão, ouentão os imprevistos da guerra.

Entre César e Pompeu ter-me-ia declarado comfranqueza. Mas entre os três ladrões78 que vieram de­pois, ou caberia mais esconder-se, ou seguir o vento; oque me parece lícito,quando a razão não mais nos guia.

Quo diversus abis?79

Esta digressão está um pouco fora de meu tema.Desgarro-me, mais por licença que por desatenção.Minhas fantasias se perseguem, mas às vezes de lon­ge, e se enxergam, mas de esguelha. Passei os olhospor um diálog080 de Platão, que é partido ao meio poruma fantástica disparidade: a parte da frente para oamor e toda a parte de baixo para a retórica. Eles nãotemem essa variação e com maravilhosa graça dei­xam-se assim levar pelos ventos, ou assemelhá-Ios. Osnomes de meus capítulos nem sempre abarcam amatéria de que tratam; amiúde a denotam apenas poralguma marca, como estes: Ândria, o Eunuc081, ou es­tes outros nomes: Sila,Cícero, Torquato. Aprecio o an­damento poético, com saltos e cabriolas. Como dizPlatão, é uma arte leve, volúvel, demoníaca. Plutarco

78. Antônio, Otávio e Lépido.79. Aonde vais assim desgarrado? (Virgílio, Eneida, V, 166.)80. Fedra.81. Títulos de Terêncio.

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tem obras em que esquece o tema, em que a expres­são do argumento só se encontra incidentalmente,abafada por matéria estranha: vede como procede emDemônio de Sócrates. Ó Deus, como são belas essasescapadas brilhantes e toda essa variação, e mais ain­da quando puxam para o negligente e o fortuito. É oleitor indiligente que perde de vista meu tema, não eu;em algum canto, sobre ele sempre se encontrará algu­ma palavra que não deixará de ser suficiente, aindaque lacônica. Vou mudando, com inconstância e de­sordem. Meu estilo e meu espírito também vão assimvagabundando. Precisará de um pouco de loucuraquem não quiser mais estupidez, dizem os preceitosde nossos mestres e ainda mais os seus exemplos. Milpoetas arrastam-se e languescem num modo prosai­co, mas a melhor prosa antiga, que por aqui semeioindiferentemente como versos, resplandece com o vi­gor e a audácia da poesia, e traz em si os ares do seufuror. Cabe-nos outorgar-lhe o domínio e a preemi­nência no falar.

É a língua original dos deuses. O poeta, diz Pla­tão, assentado no tripé das musas, despeja com ímpe­to tudo o que lhe vem à boca, como a gárgula dumafonte, sem ruminar nem pesar, escapando-lhe coisasde cores diversas, substância contraditória e fluxo rom­pido. O próprio Platão é bem poético, e dizem os sá­bios que a velha teologia é poesia, e é a primeira filo­sofia. Entendo que a matéria tratada se distingue porsi mesma. Mostra o suficiente onde muda, onde se con­clui, onde começa, onde é retomada, sem o entrelaça­mento de palavras, ligações e costuras introduzidaspara atender a ouvidos fracos ou desleixados, e sem

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que precise glosar-me a mim mesmo. Quem não pre­fere deixar de ser lido a que o leiam dormindo ou cor­rendo? Nihil est tam utile, quod in transitu prosit.82 Se terlivros nas mãos fosse o mesmo que tê-Ios na mente, ese vê-Ios fosse o mesmo que olhá-Ios, e se folheá-Iosfosse o mesmo que entendê-Ios, eu estaria errado emdizer que sou tão ignorante quanto digo que sou.

E, se não posso prender a atenção do leitor pelopeso, menos mal* se acontecer que a prenda pela mi­nha embrulhada. - Vaiver como se arrependerá depoisde tanto se divertir.- Pode ser, mas pelo menos se terádivertido. Ademais, há pessoas de tal feitio que desde­nham a clara compreensão, que me terão em melhorconta quanto menos entenderem o que digo: conclui­rão pela profundidade do que penso graças à obscuri­dade,que, a bem da verdade, detesto com todas as mi­nhas forças, e evitaria se tanto soubesse. Aristóteles sejacta em algum lugar de afetá-Ia; reprovável afetação.

Como a divisão tão freqüente dos capítulos, a querecorria no princípio, pareceu-me desviar e dissolver aatenção antes mesmo de despertá-Ia, desdenhando elaem tão pouco repousar e recolher-se, comecei a fazê­los mais longos, o que exige propósito e dedicação detempo. Quem não quiser dar uma hora sequer a talocupação, é porque nada quer dar. E não está fazen­do nada por ninguém aquele que só faz algo fazendo(lutra coisa.

82. Nada é tào útil que seja útil a quem passa correndo. (Sêneca,"iJÍstola 2.)

* Em latim no original, manco male. (N. do R. T.)

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Junte-se a isso que eu talvez tenha alguma obriga­ção particular de só dizer as coisas pela metade, dedizê-Ias confusamente, de dizê-Ias com discordâncias.

Devo dizer que não gosto da razão desmancha­prazeres, nem dos projetos extravagantes que dificul­tam a vida e das opiniões esmeradas, que contêm al­guma verdade, pois esta me parece árdua e trabalho­sa. Pelo contrário, empenho-me em fazer valer a pró­pria vaidade e a asnice se me dão prazer, e deixo-melevar por minhas inclinações naturais sem as vigiar detão perto.

Em outros lugares vi casas, estátuas, e céu e terraem ruínas; são sempre os homens. Tudo isso é verda­de; por isso não deixo de rever sempre o que resta decidade tão grande e poderosa sem que a admire e re­verencie. Cabe-nos cultuar os mortos. Ora, desde ainfância sou com eles alimentado; fiquei conhecendoos assuntos de Roma antes dos de minha casa: conhe­ci o Capitólio e sua planta antes de conhecer o Lou­vre, e o Tibre antes do Sena. Ficaram em minha men­te mais as condições e a sorte de Lúculo, Metelo eCipião do que as de alguns dos nossos. Eles estão mor­tos. Assim também meu pai, e tanto quanto eles, poisestá afastado de mim e da vida há dezoito anos tantoquanto eles o estão há mil e seiscentos; no entanto,não deixo de reverenciar a memória de meu pai e depraticar seus preceitos de amizade e sociedade, emperfeita e viva união.

É meu costume ser mais diligente para com osmortos, que não se defendem mais; parece-me quepor isso mesmo precisam muito mais de minha aju­da. É aí justamente que a gratidão se mostra em todo

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o seu esplendor. O benefício é menos notório quan­do há retrogradação e reflexão. Arcesilau, ao visitarCtesíbio que estava doente, vendo-o em estado depobreza, pôs-lhe sob a cabeceira da cama boa quan­tia de dinheiro em doação, e, escondendo-lhe o ato,desobrigava-o de mostrar-se grato. Aqueles que demim mereceram amizade e reconhecimento nunca osperderam por terem deixado de existir: paguei-Ihesmais e com mais atenção por estarem ausentes e des­conhecerem meus atos. Falo com mais afeição demeus amigos quando eles não têm meios de saber oque eu disse.

Ora, travei cem batalhas pela defesa de Pompeu eem favor de Bruto. Essa intimidade ainda perdura en­tre nós; as próprias coisas presentes só se fazem pre­sentes pela nossa fantasia. Achando-me inútil a esteséculo, relego-me ao outro, e fico tão alheado que mesinto cativado e apaixonado pelo modo como era aque­la antiga Roma livre, justa e florescente (pois não meagradam nem seu nascimento nem sua velhice). Peloque, por mais amiúde que reveja os leitos de suasruas, as fundações de seus edifícios e aquelas ruínas\;\0 profundas que chegam aos antípodas, nunca dei­xo de ficar enlevado. Será por natureza ou por ilusãoda fantasia que a vista dos lugares que sabemos teremsido freqüentados e habitados por pessoas cuja me­lll<>riareverenciamos nos comove mais do que ao ou­virmos a narrativa dos seus feitos ou ao lermos seus('scritos?83

H3. Cícero, De Finibus, V, r. (P. V,)

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Tanta vis admonitionis inest in locis. Et id quidemin hac urbe infinitum: quacunque enim ingredimur,in aliquam historiam vestigium ponimus.81 Compraz­me imaginar-Ihes os rostos, o porte e os trajes; remôoentre os dentes aqueles grandes nomes e deixo-os re­tinir aos meus ouvidos. Ego illos venerar et tantis nomi­nibus semper assurgo.85 Das coisas que em alguma par­te são grandes e admiráveis, admiro mesmo as partesque são comuns. Quisera vê-Ios a conversar, passear ecear! Seria ingratidão desprezar as relíquias e as ima­gens de tantos homens probos e valorosos, que viviver e morrer, e que tão boas lições nos dariam pormeio de seus exemplos, se pelo menos os soubésse­mos seguir.

Ademais, essa mesma Roma que agora vemosmerece nosso amor, Roma há tanto tempo e por tan­tos motivos aliada de nossa coroa: única cidade

comum e universal. O magistrado soberano que nelatem o comando é reconhecido igualmente em outroslugares: é a cidade metropolitana de todas as naçõescristãs; lá, espanhóis, franceses, todos estão em casa.Para ser príncipe naquele Estado, basta pertencer àcristandade, seja de onde for. Não há por aquelasplagas lugar que o céu tenha abraçado com tal influ­xo de favor e constância. Sua própria ruína é glorio­sa e pomposa,

84. É muito grande o poder de evocação existente nestes luga­res, e nesta cidade ele é infinito: em qualquer lugar que entremos,estamos pisando sobre história. (Cícero, De Finibus, VI, I.)

85. Venero esses grandes homens e levanto-me sempre queouço seus nomes. (Sêneca, Epístola 64.)

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Laudandis preciosior ruinis.86

Mesmo no túmulo, conserva marca e imagem deimpério. Utpalam sit uno in loco gaudentis opus essenaturae.87 Algumas pessoas se condenariam e se in­surgiriam contra si mesmas por sentirem esse vãodeleite. As disposições de nossa alma não serão vãsse nos derem prazer: sejam elas quais forem, se de­rem motivo constante de contentamento para umhomem capaz de senso comum, não seria eu a las­timá-Io.

Devo muito à sorte por até agora não me ter insul­tado, ao menos não além de minhas forças. Não seriaesse seu modo de deixar em paz aqueles que não aimportunam?

Quanto quisque sibi plura negaverit,A Diis plura feret. Nil cupientiumNudus castra peto ...

...Multa petentibusDesunt multa.88

Se ela assim continuar, partirei daqui contente esatisfeito,

86. Mais preciosa por suas louváveis ruínas. (Sidônio Apolinário,(;antos, XXIII, 62.)

87. Está claro que neste lugar inigualável a natureza rejubilou-sel'Om sua obra. (Plínio, História natural, III, 5.)

88. Quanto mais coisas recusarmos, mais nos será dado pelosdeuses. Apesar de pobre, estou no campo daqueles que nada dese­j;lIlJ. A quem muito pede muito falta. (Horácio, Odes, III, XVI, 21.)

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nihil supraDeos lacesso.89

Mascuidado com os embates. Milhareshá que nau­fragam no porto. Não sinto muito pesar pelo queacontecerá aqui quando eu não mais estiver; as coisaspresentes já me ocupam bastante,

fortunae caetera mando90.

Tampouco estou atado pelos fortes laços que di­zem ligar os homens ao futuro através dos filhos nosquais estão depositados seu nome e sua honra; na si­tuação presente desejo tê-Ios ainda menos, se é quesão desejáveis. Já estou por demais apegado ao mun­do e à vida por mim mesmo.

Já acho bastante estar nas mãos do destino pelascircunstâncias propriamente necessárias a meu ser, semdilatar ainda mais sua jurisdição sobre mim; e nuncaachei que não ter filhos fosse um defeito que tornassea vida menos completa e feliz. A esterilidade tambémtem suas vantagens. Os filhos estão entre aquelas coi­sas que não têm motivos fortes para serem desejadas,sobretudo nesta hora, em que seria tão difícil torná-losbons, Bana jam nec nasci licet, ita corrupta sunt semi­na91, e que dão justas razões de sofrimento a quem asperde depois de as ter adquirido.

89. Nada mais pedirei aos deuses. (Id., Ibid., lI, XVIII, lI.)90. O resto deixo por conta do destino. (Ovídio, Metamorfoses,

lI, 140.)

91. Nada pode nascer de bom, tão estragadas estão as sementes.(Tertuliano, Apologética.)

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Aquele que me legou os encargos de minha casaprognosticava que eu a arruinaria, considerando mi­nhas disposições tão pouco caseiras. Enganou-se: nelaestou como nela entrei, se não um pouco melhor, por­quanto sem obrigações ainda que sem benefícios.

Não obstante, se a sorte nunca me ofendeu de mo­do violento e extraordinário, tampouco me agraciou.Todas as dádivas que dela recebemos datam de maisde cem anos antes de meu nascimento. Não conto ne­nhum bem essencial e sólido que se deva à sua libe­ralidade. Fez-me ela alguns favores ventosos, honrase títulos sem substância; e na verdade não mos con­cedeu, e sim ofereceu, Deus bem sabe! A mim, que soude todo material, que só me satisfaço com a realidade,e que seja bem maciça, a mim que, se ousasse confes­sar, diria que não acho a avareza muito menos descupá­vel que a ambição, nem a dor menos evitávelque a ver­gonha, nem a saúde menos desejável que o saber, oua riqueza menos desejável que a nobreza.

Entre seus vãos favores, não vejo nenhum outroque agrade tanto a este tolo humor que em mim se nu­tre quanto uma autêntica bula que de mim fez cidadãoromano e que me foi outorgada da última vez em quelá estive, pomposa em selos e letras douradas e con­cedida com total e graciosa liberalidade. E como elassão concedidas em estilo diferente, que pode ser maisou menos favorável, e como, antes de vê-Ia, teria fica­do muito grato se ma tivessem mostrado em formulá­rio, quero aqui, para satisfazer a alguém que porven­tura tenha uma curiosidade tão doentia quanto a mi­nha, transcrevê-Ia em todos os seus termos:

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QUOD HORATIUS MAXIMUS, MARTIUS CECIUS,ALEXANDER MUTUS, ALMAE URBIS CONSERVATO­RES, DE ILLUSTRISSIMO VIRO MICHAELE MONTA­NO, EQUITE SANCTI MICHAELIS ET A CUBICULOREGIS CHRISTIANISSIMI, ROMANA CIVITATE DO­

NANDO, AD SENATUM RETULERUNT, S.P.Q.R. DE EARE ITA FIERI CENSUIT:

Cum veteri more et instituto cupide illi semper stu­dioseque suscepti sint, qui, virtute ac nobilitate praes­tantes, magno Reip. nostrae usui atque ornamentofuissent vel esse aliquando possent, Nos, majorum nos­trorum exemplo atque auctoritate permoti, paeclaramhanc Consuetudinem nobis imitandam ac servandamfore censemus. Quamobrem, cum Illustrissimus Michael

Montanus, Eques sancti Michaelis et a Cubiculo RegisChristianissimi, Romani nominis studiosissimus, etfa­miliae laude atque splendore et propriis virtutummeritis dignissimus sit, qui summo Senatus PopuliqueRomani judicio ac studio in Romanam Civitatem ads­ciscatur, placere Senatui PQ.R. Illustrissimum Michae­lem Montanum, rebus omnibus ornatissimum atquehuic inclyto populo charissimum, ipsum posterosque inRomanam Civitatem adscribi ornarique omnibus etpae­miis et honoribus quibus illifruuntur qui Cives Patritii­que Romani nati aut jure optimo facti sunt. 1n quo cen­sere Senatum PQ.R. se nontam illu jus Civitatis largiriquam debitum tribuere, neque magis beneficium darequam ab ipso accipere qui, hoc Civitatis munere acci­piendo, singulari Civitatem ipsam ornamento atquehonore affecerit. Quam quidem Se. auctoritatem iidemConservatores per Senatus PQ.R. scribas in acta referriatque in Capitolii curia serva ri, privilegiumque hujus-

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modi fieri, solitoque urbis sigillo communiri curarunt.Anno ab urbe condita CXCCCCXXXI post Christumnatum M.D LXXX, 111.1dus Martii.

HORATIUS FUSCUS,sacri SPQ.R. scriba.VINCEN MARTHOLUS, sacri SPQ.R. scriba.92Não sendo cidadão de cidade alguma, tenho o pra­

zer de sê-Ia da mais nobre que já existiu e existirá. Seos outros se olhassem atentamente, como me olho,ver-se-iam como me vejo, cheios de inanidade e nece­dade. Do que não me posso desfazer sem que me des­faça de mim mesmo. Somos todos assim feitos, tantouns quanto outros, mas os que se apercebem têm umpouco mais de vantagem, quem sabe.

A opinião e o costume de se estar sempre a olharpara outros, e não para nós mesmos, atende muitobem às nossas necessidades: trata-se de objeto que só

92. Com base no relatório feito ao Senado por Orazio Massimi,Marzo Cecio, Alessandro Mutti, conservadores da cidade de Roma,sobre a concessão do direito de cidadania romana ao I1ustríssimoMichel de Montaigne, cavaleiro da ordem de São Miguel e Gentil­homem da Câmara do Cristianíssimo Rei, o Senado e o Povo romanosdecretaram:

Considerando que, por antigo uso, sempre foram adotados en­Ire nós com ardor e diligência aqueles que, distinguindo-se em virtu­des e nobreza, tenham servido e honrado nossa república ou o pos­sam fazer um dia, Nós, cheios de respeito pelo exemplo e pela auto­ridade de nossos ancestrais, acreditamos dever imitar e conservarl'sse louvável costume. Em vista disso, sendo o I1ustríssimo Michel deMontaigne, Cavaleiro da Ordem de São Miguel e Gentil-homem da(::lmara do Cristianíssimo Rei, diligentíssimo para com o nome roma­no, e sendo, pela honra e esplendor de sua família e por suas quali­d:ldes pessoais, mui digno de ser admitido ao direito de cidadania ro­Ill:lIlapelo supremo julgamento e sufrágio do Senado e do Povo Ro­Ill:lllO,aprouve ao Senado e ao Povo Romano que o I1ustríssimo

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nos dá descontentamento, pois ao olharmos só vemosmiséria e vaidade. Para não nos deixar aflitos, a natu­reza fez bem em restringir ao lado de fora a nossa açãode enxergar. Vamos para a frente quando a correntezanos leva, mas trilhar nosso caminho ao contrário, emnossa direção, é movimento penoso; o mar assim seperturba e confunde quando é compelido contra simesmo. Olhai, dizem, os movimentos do céu, olhai opúblico, os litígios deste, o pulso daquele, o testamen­to daquele outro; olhai para cima e para baixo, paraos lados, para a frente, para trás. Era paradoxal o man­damento daquele antigo deus em Delfos: Olha paradentro de ti, conhece-te, volve-te para ti mesmo; de­volve para si mesmos o teu espírito e a tua vontadeque se consomem alhures; vê que te escoas e dissipas;

Michel de Montaigne, ornado de todos os méritos e caríssimo a estenobre povo, seja inscrito como cidadão romano, tanto por ele quantopor sua posteridade, e convidado a gozar de todas as honras e van­tagens reservadas a quantos nasceram cidadãos e patrícios de Romaou assim se tornaram por excelentes razões. Pelo que o Senado e oPovo Romano pensam que o direito de cidadania concedido ao su­pradito Montaigne é menos uma concessão e mais o resgate dumadívida, e que é menor o serviço que lhe prestam do que aquele quedele recebem, quando este aceita o direito de cidadania, honrando eglorificando esta cidade. Decisão que os conservadores fizeram redi­gir em forma de ata pelos secretários do Senado e do Povo Romano,que será conservada nos arquivos do Capitólio, apondo-se sobre ditoPrivilégio o selo comum da cidade. Ano 2331 da fundação de Romae ano 1581 do nascimento de Cristo, dia 13 de março.

Orazio FoscoSecretário do sagrado Senado e Povo Romano.

Vincente MartoliSecretário do sagrado Senado e Povo Romano.

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rccolhe-te em ti mesmo, arrima-te em ti mesmo; estássendo traído, dissipado, furtado a ti mesmo. Não vêsque este mundo mantém-se com as vistas obrigatoria­mente voltadas para dentro, com os olhos abertos paraa autocontemplação? Tudo é vão para ti, dentro e fora,mas a vaidade é menor quando menos extensa. E di­zia aquele deus: com exceção de ti, homem, cada coisaestuda-se a si mesma em primeiro lugar e tem, segun­do sua necessidade, limites para seus trabalhos e de­sejos. Não há uma única coisa tão vazia e carentequanto tu, que abraças o universo: és o escrutador semC( >Ilhecimento,o magistrado sem jurisdição e, ao final,o hobo da farsa.

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