montaigne - dos canibais

Upload: marcos-dos-santos-albuquerque

Post on 16-Jul-2015

144 views

Category:

Documents


4 download

TRANSCRIPT

104MONTAIGNECAPITULO XXXIDos cmib:aisQuando0 Rei Pirro cntrounaItalia, e verificou a formacao de combate do exercitoromano, disse:" Nao sci queespecie debarbarossaoestes (pois as grcgos assimchamavamatodasasnaesestrangeiras), masaforma-erao de combate, que os vejo rcalizar, nada terndebarbaro". A mesma caisa diziam os gregosdoexercitoqueaseupaisFlaminioconduziu.EFiJipe assimfalou igualmente, aoperceberdo alto de urn outeiro a bela ordenac;ao doacampamentodaqueleque, sob PUblioSulpi-cia GaJba, acabava de cntrar emseu reino.Isso mostra aque pontodevemosdesconfiardaopiniaopublica. Nossarazao, enao0 quedizem, deve inOuir em nosso julgamento.Durante muitotempolive a mcu ladournhomemQue permanecera dez au doze anosnessaparte doNovoMundodescobertonesteseculo, no lugar emque tomou pe Villegaignone a que deu 0 nome de "Francra Antartiea".Essadeseobertadeurnimensopais pareeedegrande aleanee e presta-se a serias renexoes.Tantos personagens eminentes se enganaramacerca desse descobrimento que nao sabereidizer0 futuronos reservaoutros de igualilnportancia. Sejacomofor, receioquetenha-mososolhos maioresdoqueabarriga, maiscuriosidade do quemeios deacrao. Tudoabra-cramos mas nao apertainos senao.ventoJ27.Platii.omostra-nos SOlonafirmandoter ou-vido dos Sacerdotes de Sais, no Egito, queantes do diluvioexistia emfrentede Gibraltarlima grande ilha chamada Atlantida, maisextensadoque a Africaea Asiareunidas eque os reis dessa regiao nao possuiam apenas ai1ha masexerciamigualmente suaautoridadetao longe, emterra firme, que ocupavamaAfricaate 0 Egitoea EuropaateaToscana.Que haviam empreendidoir atea Asia e subju-garas nacroes doMediterraneoate0 golfofor-madopelomar Negro; que para tanto haviamatravessadoaEspanha, aG3..Iia. a ItaJia e che-gadDaGreciaondeos atenienses sustaramaarremetida; que algum tempo depois sobre-viera0 diluvioque osafogara juntamente comos atenienses e sua ilha.J27 Quem tudo abarca nada aperta. (N. do T.)Emuitoprovavelquenessecataclismo hor-nvel asaguas tenhamprovocado modificac;:6esinimaginaveis emtodos os paises habitados daterra. Assim equeseatribui aacrao dasaguasdo mar ada Sicilia coma It31ia:"Dizem que essas regioes, outTOra urns6 conti-nente, foram violentarnente separadas pela das aguas"J 2 8; e a da ilha de ChiprecomaSiria ea da deNegroponto comaterrafirmedaBe6cia. Emalhures, 0mar teria juntadoterras separadasporestrei-lOS queforamaterrados por limo e areia:"urnpantanal hamuitoesteril, equepercorriama'remo, alimenta hoje as cidades vizinhas econhece 0 arado fecundo do lavrador"J2 9.Nao ha muitos indlcios entretantode queseja a Atlantida 0 NovoMundo queacabamosde descobrir, poisquase tocava a Espanhaeseriaefeito incrlvel da inundar.;:aote-Iatrans-portado a distancia, emque se encontra, demais de mil e duzentas leguas. Ademais osnavegadoresmodemos jii verificaramnaotra-tar-sedeumailha. mas deurncontinente con-tiguo asIndias Orientais, por urnlado, eporoutroas terrasdospOlos; esedestesseachaseparada e por tao pequeno estreito que nao sedeve tampouco considera-Ia uma ilha.Creio que ocorreramnessas grandes massasmovimentos semelhantes aos que se constatamemnossas regtOes, naturais uns, acidentais eviolenlOs outros. Quando observoaexer-cidapelorioDordonha, nodecurso deminhaexistencia, abaixodecasa, na margemdireita;quandovejoquantoemvinte anosconquistoude terras, e 0 que solapou de alicerces dasconstrucOes erguidas a sua margem, concluoquenaosetratadeurnfatonormal. Se, comefeito, assimtivessesidosempre, ouque issodevesse cominuar, a configuraIYaodo mundoacabaria por mudar. Mas esses movimentosnaosao constantes: oraasaguas se expandempor urnlado, ora por outro; e orR paramoNaofalo aqui das cheias slibitas cujas causasconhecemos. Na regiao de Medoc, junto aomar, tern meu irmao, Sr. de Arzac, uma de32. Virgilio.32! Horacio.Michel de Montaigne. Ensaios. Trad. Srgio Milliet. SP: Abril Cultural, 1972.ENSAlOS-I105suastcrrasenterradassobas areias que0 marIhevai jogando em cima. as te!hados de algu-mashabit3c;:3es scveemainda eessaproprie-dade e suas culturas transformaram-se em bernmagras pastagens. Dizem os habitantes que deunstempospara caavanr;3 0mar laorapida-mente que ja perderam quatro de terras.Essas areias sao sellS arautos; como uma espe-ciede dunasmovedic;:asprecedem-nodecercademeia econquistaminsensivelmcntearegiao.Outro testemunho da antiguidade, que sequer aplicar aessedescobrimento, seencoo-trariaemArist61eles. sefor de suaautoriaaobraintitulada "MaravilhasExtraordinacias".Nelasecontaquealgunscanagineses, tendo-se aventurado pelo Atlantica afora, alemdoestreito de Gibraltar, tcriam acabado, ap6surna longa por descobrir urnagrande ilhafertil, cobertadebosques, regadapor grandes e profundos rios, e muito afastadada terra firme. Eque alraidos, eleseoulrosmais tarde, pela qualidade e fertilidade do solo,paraali teriamlransportadosuas mulheres efilhos, nela se fixando. De taJ amplitude serevestiraessa queasautoridades deCartagoteriamproibidoexpressamenteesobpena de morte que emigrassem quaisqueroutros. Eteriamexpulso dailhaosqueali jaresidiam, comreceiode que semultiplicassemapontodesuplantarearruinar 0 dominiodametr6pole. Esta narrativa de Arist6teles, talqual a deS6lon, naodevereferir-seasnossasnovas terras.ohomemque tinha a meu servi.;:o, equevoltavado Novo Mundo, erasimplesegros-seiro de espirilo, 0 que da mais valor a seutestemunho. As pessoas dotadas de finuraobservammelhore commaiscuidadoaseoi-sas, mas comentam0 que veeme, a fimdevalorizar suae persuadir, naopodemdeixar dealterar urnpoueoaverdade.unca relatam pura e simplesmente 0 queviram, e para dar eredito a sua maneira deapreeiar, deformame ampliamos fatos. Aobjetivan6s aLemosdas pessoasmuilO eserupulosas oumuitosimples, que naotenham parainventar e justificarsuase igualmente que nao sejamsectarias. Assimera0 meuinformante,0qual,ademais, meapresentoumarinheirose comer-eiantes que eonheeera na viagem, 0 que meinduza aeredilar emsuas informaCDes semmepreocupar 'demasiado com a opiniao doscosm6grafos. Foraprecisoencontrartop6gra-fos330que nos falassem em particular dosno Exploradores.lugares por ondeandaram. Mas, porque levamsobren6savantagemdetervistoaPalcstina,reivindicam0 privilegio de contar 0 que sepassanorestodomundo. Goslariaquecadaqual escrevesse 0que sabe e sem ultrapassar oslimites de seus conhecimentos; e isso naosO namateriaem mas emtodasasmaterias.Hi!. quemtenhaalgumconhecimentoespecialou experiencia do curso de urn riacho, semsaberderestomais doque qualquerurn, enoentantoparavalorizarsuapitadadeerudicao.atira-se alarcfade escrever urntratadoacercada domundo. Este defeitomuitocomum acarreta graves inconvenientes.- Mas, voltandoaoassuOlo, naovejo nada debarbara ou selvagemnoquedizemdaquelespovos; e, na verdade, cada qual considera bar-baro 0 quenaosepratieaemsuaterra. Eenatural, porquesOpodemos julgar daverdadeeda razaodeserdas coisas peloexemploepelaideia dos usos e costumes do pais em quevivemos. Nesteareligiao e sempre amelhor, aadrninistracaoexeelente,etudo0 rnaisperfei-to. Aessa gente chamamos selvagens como- denominamos selvagensosfrotosqueanatu-reza produz semdohomem. Noentantoaos outros, aqueles quealteramosporprocessos de cullura e cujodesenvolvimentonatural modificamos, eque deveriamos aplicaro eptteto. As quaJidades e propriedades dosprimeiros sao vivas, vigorosas, autenticas,uteis e naturais; nao fazemos scnao abastardilas nos oulros a fim de rnelhor as adaptar anosso gosto corrompido. Entretanto, em certasespecies defrutosdessasregiDes, achamos urnsabor eurna dclicadeza scmpar e que os lOrnadignos de rivalizar comos nossos. Nao hirazaopara que a ane sobrepuje em suas obrasa natureza, nossa grande e poderosa mae.Sobrecarregamos de tal modo abeleza e rique-zadeseusprodutoscomas nossasque a abafamos completamente. Mas, ondepermaneceu intata" e se mostra como e real-mente, ela ridicularizanossos vaos efrivol osempreendimentos: "a hera cresce ainda melhorscmcuidados; 0 medronheironuncaseapre-sentataobelocomonos antros solitariose0cantodos passaroseassimtaosuaveporquenatural"33 1" Nemapelando para todas as nos-sas e osnossostalentosseriamoscapa-zes de reproduzir 0 ninho do passaro maisinsignificantc, comsuacontexturaesuabele-za, nemde0 tornar adcquadoaousoa que sedestina; e nao saberiamos tampouco tecer ateiadeurnamirradaaranha. Todasascoisas,disse Platao, produzem-nas a natureza ou 0]] 1 Propercio.106 MONTAIGNEaeaso, ouaarte. Asmaisbel ase grandessao[rutos das duas primeiras causas; as menores emais irnperfeitas, da ultima.Esses povosnaDmeparecem, pois, merecero qualificativode se)vagens somentepor naoterem side senaa muita poueo modificadospela ingerencia do espirito humane e nao have-remquase"adaperdidode sua simplicidAdeprirnitiva. As leis da natureza, naD ainda- pervertidas pela dos nossos, regem-nos ateagoraemantiveram-setaopurasquelamento por vezes nao as tenha 0 nosso mundoconhecidoantes, quandohaviahomenscapa-zes de aprecia-Ias. Lamento que Licurgo e Pla-tao nao te"ham Qllvido [alar del as, pais sou deopiniao que 0 que vemos praticarem essespavos, nao somente ultrapassa as magnificasquenosdeuapocsiada idadedeouro, etudo0queimaginoucomosuscetivelde reatizar afelicidadeperfeitasabreaterra,mas tambemase aspiraesdafilosofia. inguemconcebeu jamaisumasim-plicidadenatural elevadaatal grau, nemninguemjamais acreditau pudesse a saciedadesubsistircomtaopoucosartificios. Eurnpais,diria eu a Platao, onde nao ha comerciodequalquer natureza, nemliteratura, nemmate-rna-ticas; ondenaoseconhecescquerde nomeurn magislrado; onde nao existe hierarquiapolitica, nem domesticidade, nem ricas epobres. Contratos, sucessao, partilhas ai 'saodesconhecidos; em materia de trabalha s6sabemda ociosidade;0 respeito aos parentes eomesmoquededicamatodos; 0vestuirio, aagricultura, 0trabalhodos mClais ai seigno-ram; naousamvinho nemtrigo; as propriaspalavrasqueexprimemamentira, atraic;:ao, adissimula(j:ao, aavareza, ainveja, acalunia, 0perdao, s6excepcionalmenteseouvem. Quan-to a Republica que irnaginava Ihe parecerialonge de tamanha perfeic;:ao ! ISao homens quesaemdasmaos dos deuses"332. uComo essas,foramas primeiras leis da natureza"333.Aregiaoemqueessespovoshabitarn e derestamuitoagrada-vel. 0 clima etemperadoaponlode, segundominhas teslemunhas, raramente se encontrar urn enfermo. Afirrnarammesmo nunea terem visto algum epileptic033 4,remeloso, desdentadooucurvadopela idade.Aregiao estendese abeira-mar e eIimitada dolado daterrapor platoseattasmontanhas. acerea de cern leguas, 0 que representa aprofundidadedeseusterritorios. TernpeixeecarneemabundAncia, edeexcelentequal ida-ll2 seneca.ll3 Virgilio.33. Notexto"aueuntremblant", 0 quesupomosrererirse aepilepsia. (N. do T.)de, contentandosc com os grelhar para oscomer. 0primeiroindividuo que viram a cava-10inspirou-Ihes tal pavor queembora jahou-vessem eSlado com ele de outras feitas, 0 mata-rama flechadas e sOentao0 reconheceram.Suas residencias constituemse de barracc3escom capaeidade para duzentas a trezentas pessoas, e sao edificadas com troncos e galhos33 6de grandes 3..rvores enfiados no solo e seapoiandounsnosoutrosna cumeada, Iiseme-ihanc;:a de certos celeiros nossos eujos tetosdescemale 0 chao fechando os lados. Possuemmadeiras tao duras que comelas fabrieamespadas e espetos para grelhar os aJimentos.Seus leitos. formados de eordinhas de algodao,suspendem-se ao leta, como nos nossos navios.Cadaqual tern 0 seu. dormindoas mulheresseparadas dos maridos. Levanlarn-se com 0 solelogomerendam, naofazendooutrarefeir;aodurante 0 resto do dia. Nao bebemao sealimentarem, agindo nesse ponta, segundo Sui-das, comooutros povos. Fora das refeic;:Oes,bebemquanto equandoquerem. Suabebidaextraisc de cerla raiz; lema cor de nossos cla-retes e s6 a tomarnmorna. Conservaseapenasdoisoutresdias, comurngoSloalgopicanle,scm espurna. Edigesliva e laxativa para os quenao estao acostumados e muito agradavel paraquem se habitua a eia. Em lugar de pao,comemuma substancia branca parecida com 0coentro cozido. Experimentei,e doce e algoinsosso. Passam0 dia adanc;:ar; os jovens vanade animais grandes contra os quaisempregarn0arcounicamente. Enquantoisso,uma parte dasmulheresdiverte-secomprepa-rar a bebida, a que constitui sua principalocupa:;ao.Todasasmanhiis, antes queiniciemarefeic;:ao, urnanciao percorre0barracao, queternberncernpassosdecomprimento, epregaaosocupantes sem eessar as mesmas coisas: valen-tia diantedoinimigoeamizadeasuas rnulhe-res. E nunea esquecem, aofazer estaultimareeomendac;:ao, de Ihes lembrar que saoelasQuerabricama bebidaeaconservammorna.Podemver-se emmuitos lugares, em particularemminhacasa, esses leitas, cordas, espadas,pulseiras de madeira que Ihes protegem 0 pulsonocombate. e10ngoscani(j:os furados deurnladoque tocampararilmar suas danc;:as. Cor-tamos pelostodoseseescanhoammelhor doquen6s, usandoapenas navalhasdemadeiraoupedra_Acreditamnaimortalidade da alma.AsquemereceramaprOVal;aOdosdeusesalajamsenoceudolado donascente;asamaldic;:oadas do lado do poente.33S 0texto diz "ecorses", mas deve ttatar-se, pelade troneos. (N. do T.)ENSAIOS-I107TernDaD sci quetipos de sacerdotes aupro-[etas que aparecemraramente e mOTamnasmontanhas. Quandosurgem, ha grandes festase realiza-se lima assembleia solene a que seapresentamtodas as aJdeias. Carla uma dashabit3crQes a que me referi forma uma al-deia33' e distarnuma daDutracercadeumalegua deFranc;a. 0 profeta fala-lhesempubli-co, exortando-os a virtude, e ao dever. SuaTiloral resume-seemdais pontos: valentianaguerra e afei930 por suas mulheres. Predittambem0 futuro eo que devem esperar de seusempreendimentos, incitando aguerra au adesaconselhando. Mas importa que diga certo,pois docontrario. se 0 pegarn, e condenadocomo falso profeta e esquartejado. Por issoDaD se reve jamais quemuma vez errau. Adi-vi-nhar edam de Deus, enganar euma imposturamerecedora de castigo. Entre os citas, parexemplo, quandoos adivinhos seenganavamemsuas previs3es, jogavam-nos, pes e maosa1gemados, denuo de urn carro de boi cheio degravetos aquedeitavamfogo. Osquetern aseucargodirigirasfatoscometidos asagaci-dadehumana, saodesculpaveisserecorrerema todos as meios a seu alcance. Mas naodevemser punidos os outros, pela sua impcstu-ra, asque nos iludemapresentando-secomodonasdeumafaculdadeextraordinariae forado nosso conhecimento?Esses povosguerreiamos quese encontramalemdas montanhas, na terra firme. Fazem-nointeiramente nus, tendo como armas apenasseusarcosesuasespadasdemadeira, pontia-gudascomoasnossasE eadmiravel aresoluyaocomqueagemnessescombates .quesempre terminamcomefusao desangue e mor-tes, paisignoramaflJgae0 medo. Comotro-feu, trazcadaqual a doinimigotrucidado, a qual pendurama entrada de suasresidencias. Quanto aos prisioneiros, guar-dam-nos durante a1gum tempo, tratando-osbernefornecendo-Ihes tudodeque precisamate 0 diaemque resolvemacabar comeles.Aquelea quem pertence0 prisioneiro convocatados os seus amigos. No momentopropicio,amarraaurndosbrayos davitimauma cordacujaoutra extremidade elesegura nas maos, 0mesmo fazendo com0 outroqueficaentreguea seumelhoramigo. de modoaman-ter 0 condenadoafastadode alguns passoseincapazdeIssofeito, ambos 0 moemde bordoadasas vistasdaassistencia. assan-do-o emseguida, comendo-o c presenteando osamigosausentescom davitima. Naoofazementretamo parasea1imentarem, comoafaziam os antigos citas, massim emsinal de:u. Taba, scm duvida. (N. do T.)vinganya. e a prova esta em que, tendo visto asportugueses, aliadosdeseus inimigos, empre-garempara com eles, quando os aprisionavam,outro genera de morte, que consistia ementer-ra-Ios ate a cintura, crivando de nechas a parteforadaterra e enforcando-os depois, imagina-ram que essa geote da mesma origem daquelesseus vizinhos que haviam espalhado0 conheci-mentodetantosvicios, queessagente, muitosuperiora eles no mal, nao devia ter escolhidoscmrazaourntal processo de vinganera.0 qualporissoadotaram. porque 0 acreditavammaiscruel, e abandonaram seu sistema tradicional.Nao me parece excessivojulgar barbarostaisatos de crueldade, mas que0 fatode con-denar tais defeitos nao nos levea cegueiraacerca dosnossos. Estimo que emais barbaracomerurnhomemvivodo que acomer depoisdemorto; e e pior esquartejar urn homem entresuplicios etormentas e0 queimar 'aos poucos,au entrega-lo acaese porcos, a pretextodedevoyaoere, comonaosomente0 lemosmasvimosocorrerentrevizinhosnossosconterra-neos; eissoemverdade ebernmaisgravedoque assar e comer urn homempreviamenleexecutado.CrisipoeZenao, chefes da escola estoica,admiliamnao haver mal emlirar partidodenossos cadaveres se necessaria, nemmesmoemnos alimentarmos deles como 0 fizeramnossos antepassados que, assediados porCesaremAlesia, resolveram, a timdeprosse-guir resistindo, matar a fome comendo osvelhos, as mulheres etodos osque nao fossemuteis ao combate: "dizem que os gasc6esprolongaramavida valendo-se de semelhantesalimentos"337. E os medicos nao temememprega-Ios emtoda especie de usos internos eexternos embeneficio de nossa saude. Mas naoseouviujamaisninguemquelivesse0 julgamento moralassaz pervertido para desculpar atraiy3.o, adeslealdadc, a tirania, .acrueldade,nossos defeitos ha.bituais. Podemos portantoqualificar esses povos como barbaros emdando apenas ouvidos it inteligencia, masnuneaseoscompararmosanosmesmos, queos excedemos em lada sorte de barbaridades.Fazemaguerradeurnmodonobree gene-roso e ela eneles desculpavel e bela na medidaemquepodeserdesculpavelebela essa doen-da humanidade. pois nao tern entre e1esoutracausasenaoada invejadavirtude33.aoentramemconnito a timdeconquistarnovos terriL6rios, porquantogozamaindadeumauberdadenatural quesemlrabalhosnemfac!igasIhesfornceetudodequenecessitarne:u1 Juvenal.33. No caso, a virlude da valentia.108MONTAIGNEemtal abundancia que nao teriam motivo paradesejar ampliar suas teTras. Tern ademais afelicidadedeIimitar sellSdesejosaoque exigea satisfac;:ao de suas necessidades naturalS,tudo0que as excede Ihes parecendo superfiuo.Tratam-se rnutuamente por irmaos quando saoda mesma idade, e aDsmaisjovenscbamamfilhos; e pais aDs velhos, indistintamente.Quando morremestes. passamos sellSbensaDs herdeiros naturais; as heranc;:as nao saodiVididas, conservandotodosospanicipamesa possedotodo, semDutrotituloque 0 queIhes da a natureza ao cria-Ios. Se os povos vizi-nhosdescemdas monlanhaspara osatacaresaovitoriosos. 0beneficiadesuaviloriacon-sisleunicamentenagl6riaqueauferemdel a enavantagemdeseteremmoslradosuperioresemvalentiae coragem, pois naosaberiamquefazer dos bens dos vencidos. Voltam para suasterras onde nada Ihes falta e onde podem gozara felicidade de saber contentar-se comsua condi9aO. Sc sao vencidos, seus inimigos proce-demdeigual maneira. Aos prisioneiros naoseexige senaoque se confessemvencidos. Masnao se encontraurn56, em um seculo, que naoprefira a morte a assumir urna atitudeou aproferir urna palavra suscetiveis de desmen-liremurnacoragemquetimbramemostentaracima de tudo. Naose ve nenhum que nao pre-firaser matadoecomidoapedir merce. oaoIhesinteiraIiberdade, afimde que avidaIhesseja mais cara, c nao cessarn de cntrete-Iosacerca da mone" que os esperabrevemente, dastOTlurasqueexperimentarao, dospreparativospara0 supllcio, deseusmernbrosdecepadosedo festimque fadio comeles. Tude issonointuito de Ihes arrancar alguma palavra dequeixa oufraqueza, ou de os levar it fuga, comoque mostram te-Ios apavoradoetriunfado desua firmeza de animo. Nisso, emverdade, e s6nissoconsisteavitoria: "Avit6riaverdadeirae a que constrange 0 inimigo a confessar-sevencido"33!1.Os himgaros, quesaomuitobelicosos, DaOprosseguiam na guerra senao ate que 0 inimigose rendesse; logoque se confessava vencido,deixavam-noir sem0 molestar, nem exigir res-gate. Apenas queriam que prometesse DaOmais pegar emarmas contra eles. Quando ven-cernos nossos inimigos, deverno-Io antes a van-tagens ocasionais e naD a nosso rnerito exclusi-vo. Terbrayosepemas56lidoseapanagio docarregador e nao da virtude; independe de nOs,eec6isatodafisica, ter boasaude. Eegolpede sorte abalar 0 inimigo ou conscguir comque tenha 0 sol nos olhos e seofusque. E etao-sornenteprovadehabilidadeetreino, que3:J!I Claudio.podeoferecer igualrnente urn covardeouurnplebeu, sabermanejar0 norete. 0 valor deurnhornern, eaestima quenosinspira, medemsepeloseucarater e for9ade vontade. A valentianao deeorre do vigor fisico e sim da frrmeza deanimo e da coragem;naoconsiste nasuperio-ridadedenossamomariaedenossas armas,mas na nossa. Quemsueumbe scmque suacoragemseabata;"quem, secai, combatedejoelho"J4 0; quem, apesar das ameayas demorte nao perde sua altivez; quem, agonizante,pcrrnanece impassivel e com0 olhar desafiaainda0 inimigo, nao epor n6sabatidoesimpelodestino. Morremasscmser vencido. Osmais valentes sao por vezes os mais infelizes,0quefazcomquehajaderrotasrnaisgloriosasdoqueas vit6rias. Asquatrobrilhantes vito-riasdeSalamina, Plateia, MicaleeSicilia, asmaisbel asquetesternunhou0 sol, seraomaisgloriosas do que a que eonquistou0 Rei LeOni-dasnas Term6pilas?Quem jamais preparouavilOria com mais cuidado da gloria e maisardentedesejodeveneer, doqueIscholassuaderrota?Quempreparouasuasalvayaornaisengenhosa eestranhamentedoqueelea suaperda?Fora encarregado de defender urna passagem do Peloponeso contra os arcades.Compreendendoqueosnaopoderiarechayar,emvirtudeda topografia local eda inferior i-dade numerica de suas foryas; certo de quetudo 0 que se opusesse ao inimigo seriadestruido; julgandoparoutroladoin-dignodesua propria corageme de sua grandeza dealma, tantoquantodeurnlaeedemonio, faltaraodever, entreduas resoluyOes extremas esco-Iheuurna que as conciliasse: dispensou os maisjovensevigorososdatropa, afimdeos c o n ~servar para a defesado pais, e, comosquemenosfaltadeviamfazer, resolveudefender apassagementregue a sua guarda, eobrandoeomamOfte dos defensores0 mais caro possi-vel avilOria doinimigo. Foi 0 queaconteceu:logoeercados delOdos os lados pelos arcades,Ischolas e os seus sueumbiram e foramlevadosaofiodeespada ap6s verdadeiracarnificina.Quetrofeuassinalado aos vencedores naD foraantesdevidoavencidosdessaordem? Aver-dadeira vilOria reside na maneira por que eom-batemosenaonoresultadofinal. Enaoconsiste a honra emvencer mas em combater.Voltemos a nossa hist6ria. Comtudo issoqueIhesfazern, naDconseguemnemdelongeque os prisioneiros cedam; ao contrario,durante os dois outres meses que permanecempresos. afetamalegria eincitamseussenhoresaseapressarememsubmete-Iosasprovacraescomque os ameayam. Desafiam-nos e os inju-140 seneca.ENSAIOS-I109riam, censurando-Ihesa covardia eIhes recor-dando os combates queperderamemautTasocasioes. Tenhoemmeupeder 0 canto deurndesses prisioneiros. Eis 0 que diz: "Que seaproxirnemtodes comcorageme sejuntempara come-Io; em0 fazendocamerao seus paiseseusavosque jaserviramdealimentoacleproprioedelcs seucorposeconstituiu. Estesmusculos. esta carne, estasveias, diz-Ihes. saovossas, pobres laucos. NaG reconheceis a subs-tancia dos membros de vossos antepassadosquenoeolantoaindaseencootTamemmim?Saboreai-os atentamente, sentireis 0 gostodevossa pr6pria carne." Havera alga barbaranest aOsqueIhesdescrevcmossuplicios e os rcpresentam no momento em quesao esbordoados. pintam-nos cuspindo norostodosqueastrucidamemmeioaearctas.E, comefcito, atecxalarem0 ultimosuspiro,naoparamdedesafiar osinimigos tantopelasatitudcscomopelosprop6sitos_Porcerto, emrelaerao a nos sao real mente selvagens, poisentresuasmaneirase asnOSSaSha tao grandediferen"ra que ou0 sao ou0 somos nos.Os homens tern varias mulheres, emtantomaior numero quanto mais farnosos e valentes.Particularidadequenaocarecedebeleza, nes-seslaresaciume, queentrenosimpele nossasesposasaimpedir quebusquemos aamizade eas boas gra"rasdeoutrasmulheres, entreelesas induzaarranjaremoutras paraseusmari-dos. A honra deste primando entre lOdas as de-rnais considera"r0es, pOemelastodo acuidadoemter0 maior numero posslvelde companhei-ras, paisessenumerocomprova a coragem doesposo. Entrenos falariamdemilagre. Naosetrata disso e sim da virtude matrimonial eleva-da ao maximo. Nao nos mostra a Biblia,Sara341eas mulheresdelaOO, Liae Raquei,pando SuaS serventes a disposierao de seusmaridos? NaoauxiliouLivia, contraseuinte-resse, asatisfaeraodosdesejosdeAugusto? EEstratonice, mulherdeDejotaro, naosomenteemprestouaomaridoumadesuasmaisbelasserventes, paraqueausasse comoentendesse,masaindaeducouosfilhos daconcubina e osajudoua sucederaopai. E naose imagine quesetratedaobservaeraoservil de urncostume,imposta pela autoridade dos costumes tradi-cionais,e queseapliquesemmaior discussao,porquantosaoosselvagens demasiadoesrupi-dos para se rebelarem. Eis algunstraerosquedemonstram0 contrario. Transcrevi aqui urnde seuscantosguerreiros: pois tenhotarnbCmuma caneraode arnor: "Serpente, para; para,J'" Notexto: "Lia, Rachel eSarah, femmes deJacob", mashaconfusaoporquantoSaraeramu-Iher de Abraao. (N. do T.)scrpente, a timde que minha irma copie ascores comque te enfeitas; a fimde que eu faeraurn colar para dar a rninha amante; que tua be-leza e tuaeleganciasejamsempre preferidasentre as das demais' serpentes." E a primeiraestrofe e0estribilho da canerao; ora, eu conhe-erobastanteapoesiapara julgar queeste pro-dutodesuaimagina