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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ AMERÍNDIOS NA EUROPA: A POSSE DE TERRITÓRIOS E INDIVÍDUOS NO SÉCULO XVI Curitiba 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

AMERÍNDIOS NA EUROPA: A POSSE DE TERRITÓRIOS E INDIVÍDUOS NO

SÉCULO XVI

Curitiba

2011

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ANA CLAUDIA MAGALHÃES PITOL

AMERÍNDIOS NA EUROPA: A POSSE DE TERRITÓRIOS E INDIVÍDUOS NO

SÉCULO XVI

Monografia apresentada como requisito parcial

para conclusão do Curso de Licenciatura e

Bacharelado em História, do Setor De Ciências

Humanas Letras e Artes, da Universidade Federal

do Paraná.

Orientadora: Profa. Dra. Andréa Doré.

Junho

2011

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“O bom historiador se parece com o ogro da

lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali

está a sua caça.”

Marc Bloch

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço a meus pais, que dedicaram a mim todo o amor e

atenção. Para eles a importância deste trabalho vai muito além da obtenção de um

diploma de graduação. Ele simboliza mais uma vitória do casal que saiu de uma área

rural no interior do Estado do Paraná, e apesar de muitas dificuldades, conseguiu ver

mais um de seus filhos cursando o ensino superior. Dedico a vocês todo meu esforço e

agradeço por vocês terem sempre me apontado as direções certas, mas nunca me

obrigado a escolhê-las. Devo também agradecer aos meus irmãos que tornam minha

vida mais divertida e que sempre estiveram ao meu lado quando precisei.

Gostaria de agradecer a minha orientadora Andréa Doré. Suas disciplinas e

indicações de leitura fizeram com que as idéias, inicialmente vagas e desconexas, se

tornassem um trabalho realizado. Além disso, a possibilidade de participar como sua

orientanda do Programa de Iniciação Científica (2009/2010 – UFPR/TN e 2010/2011 –

PIBIC/CNPq) me permitiram colocar em prática os ensinamentos adquiridos na

graduação. Obrigado, professora, por sua dedicação em todas as reuniões lendo e

corrigindo trabalhos, relatórios, resumos e cada capítulo desta monografia. Muito mais

do que pesquisar, pude aprender nesses anos a seu lado, como se deve ensinar.

Devo lembrar também das queridas amigas Andréa, Camilla, Kellen e Ellen:

companheiras de estágio, de vários cafés na cantina, de trabalhos em grupo.

Verdadeiras parceiras, em todos os momentos. Sempre estiveram dispostas a partilhar

experiências e a auxiliar quando surgiam dúvidas e dificuldades. Amigas, vocês

tornaram as disciplinas mais fáceis, mais agradáveis e me ensinaram a trabalhar em

equipe.

Por fim, não posso deixar de agradecer ao MAE - UFPR (Museu de

Arqueologia e Etnologia da UFPR). O trabalho ali realizado, durante a graduação,

permitiu contatos, leituras e experiências muito válidas para a monografia e a vida.

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SUMÁRIO

Resumo............................................................................................................................ 6

Introdução....................................................................................................................... 7

Capítulo1: O aprisionamento representacional: historiografia e história.............. 16

1.1. Visões do paraíso: Diferentes formas de narrar o encontro com o

Novo Mundo...................................................................................................... 22

1.2. O enquadramento da realidade americana nos parâmetros europeus: a

política indigenista portuguesa e espanhola............................................ 28

Capítulo 2: O aprisionamento físico: o transporte de ameríndios para o Velho

Mundo............................................................................................................................ 38

Conclusão...................................................................................................................... 54

Fontes ............................................................................................................................ 56

Referências bibliográficas ........................................................................................... 57

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RESUMO

O objetivo deste trabalho foi analisar alguns documentos produzidos durante o século

XVI e XVII sobre as Américas Portuguesa e Espanhola a fim de verificar a realização

do embarque de indígenas para a Europa. Estes embarques são evidências de que a

posse da América pelos europeus não se restringiu aos territórios, abarcando também os

grupos humanos. Em um contexto maior relacionam-se com a discussão sobre as

maneiras pelas quais os europeus apossaram-se do Novo Mundo, através de rituais e de

suas formas de representação, como a escrita e a imagem. Estas transferências são

entendidas como práticas através das quais os europeus expressam sua dominação sobre

os nativos. A exposição dos indígenas levados para a Europa foi cotejada com a de

outros tipos considerados como monstruosos ou exóticos nas cortes européias, o que

possibilitou uma visão hipotética da forma como os indígenas eram ali observados e

exibidos. À margem geográfica do mundo e da cultura considerada civilizada, suas

vozes foram utilizadas para a elaboração de um discurso europeu do que era a América.

O aprisionamento dos indígenas no plano físico foi acompanhado por um

aprisionamento no plano representacional, ações que se alimentavam mutuamente.

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INTRODUÇÃO

Um fato histórico não existe a priori, ele é construído pelo historiador. Através

de suas escolhas e seus interesses ele define e seleciona aquilo que julga dever ser

levado em consideração na história que produz. A partir da temporalização do problema

colocado por ele, os fatos, assumem uma existência “concreta”: “aconteceram” em um

determinado momento do passado.

Se as presenças marcantes de determinados temas ou assuntos são fruto de

escolhas, os silêncios acerca de outras temáticas também o são muitas vezes. Nem

sempre consciente, esse silêncio historiográfico pode ser motivado pela ausência de

documentos que possam garantir a pesquisa, inviabilizando-a. Além disso, o contexto

do próprio pesquisador muitas vezes acaba por conduzí-lo a determinados temas, em

detrimento de outros.

Os deslocamentos de indígenas americanos para a Europa são um exemplo dessa

questão. Eles ocorreram desde o início dos contatos entre os europeus e o Novo Mundo

e podem ser encontrados diversos documentos que os comprovam. No entanto, poucas

são as referências bibliográficas que tratem deste assunto em especial, sendo ele muitas

vezes citado, como um lugar comum na bibliografia sobre o Brasil e a América

coloniais, sem que conste ao menos uma referência sobre a fonte das informações.

Essa ausência de referências pode ter dois significados: ou esta seria uma

discussão banal que não mereceria atenção, ou algo ainda a ser explorado. Sendo assim,

pode-se questionar como foi a trajetória desses personagens indígenas e se foram

levados como cativos ou por vontade própria. Os questionamentos que deram origem a

essa pesquisa surgiram após a leitura do capítulo “O índio brasileiro na França”, do

primeiro volume da coleção O Brasil dos Viajantes – o imaginário do Novo Mundo,

organizada por Ana Maria de Moraes Belluzo.1 Este capítulo tratava sobre a entrada do

Rei Henrique II e de Catarina de Médicis na cidade normanda de Rouen, do qual

participaram cinqüenta índios brasileiros, em 1550. Nessa ocasião, estes indígenas,

provavelmente alguns tupinambás, juntamente com alguns marujos normandos

1 BELLUZO, Ana Maria de Moraes (org). “O índio brasileiro na França”. In: O Brasil dos viajantes. O

imaginário do Novo Mundo. Vol. 1. São Paulo: Fundação Odebrecht/ Edição Metalivros, 1994.

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apresentaram algumas cenas da vida indígena brasileira, com o intuito de mostrar ao rei

Henrique II como eram seus domínios no Brasil.2

Durante a pesquisa pode-se perceber que não seria possível reconstruir as

trajetórias destes indígenas devido à ausência de fontes que pudessem trazer as

perspectivas indígenas do encontro entre Velho e Novo Mundo. Sabe-se, contudo, um

pouco sobre seus destinos, uma vez fora de sua terra natal: como representantes do

exotismo que se descortinava aos olhos do Velho Mundo foram apresentados nas Cortes

e levados para serem educados nos moldes europeus. Muitos não resistiram à longa

viagem e ao contato morrendo antes da chegada.

Um número considerável de vestígios nos permite vislumbrar esses

personagens e, embora tal documentação seja lacunar, aponta a captura e o transporte

desses nativos para a Europa, o que é um indício da recorrência destes atos. Essas

evidências são encontradas, em geral, em documentos que tratam do descobrimento e da

conquista de espaços americanos, a começar pelo diário da primeira viagem de

Colombo a América. A autora Leyla Perrone-Moisés é bastante otimista ao afirmar que,

na França, em meados do século, “ter índios brasileiros em casa, como valetes, era uma

moda já transformada em hábito”.3 Embora os vestígios documentais não nos permitam

concordar com esta autora, sabe-se que, após o embarque do primeiro indígena, outros

foram levados e seus destinos foram vários. Além de Colombo, outros viajantes,

ingleses (como John Guy, Michael Lok e George Best), franceses (Paulmier de

Gonneville e Jacques Cartier) e espanhóis (Hernando De Soto, Cortez e Bernal Díaz)

deixaram relatada a ida de indígenas para o Velho Mundo. Mas diversos outros

poderiam ser citados. O historiador Affonso Arinos aponta que os portugueses levavam

regularmente escravos indígenas para a Europa, exportação que só passou a ser proibida

pela Coroa em 1570.4

Perrone-Moisés também generaliza um pouco a presença indígena em

espetáculos como o encenado em Rouen, quando afirma que tornaram-se uma moda na

Europa, de forma que “todo o cortejo real tinha de contar com alguns ameríndios, ou

2 Domínios incipientes é preciso que seja dito. Neste momento, nem mesmo a França Antártica era uma realidade. Os domínios de França aqui referem-se a um forte em Itamaracá no qual os Normandos

realizavam trocas com os nativos. Os indígenas presentes em Rouen provavelmente eram provenientes

dessa região. 3 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vinte Luas. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 168.

4 FRANCO, Affonso Arinos de Mello. “Viagens de índios brasileiros à Europa”. In: O índio brasileiro e

a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937, p. 35-37.

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pelo menos com personagens vestidas „à americana‟, isto é, usando saiote de penas e

cocar”.5 Também desta vez não existem tantos documentos que permitam alimentar este

otimismo mas, de acordo com o historiador Dietrich Briesemeister, além de Rouen

outras três cidades francesas realizaram festividades nas quais estavam presentes nativos

americanos.6 Porém, o espetáculo encenado em Rouen, tanto por seu caráter oficial,

quanto pela encenação da alteridade sem precedentes que ali se realizou, nos legou uma

maior quantidade de vestígios, tanto imagéticos como textuais. Além do manuscrito

anônimo elaborado para servir de guia para o espetáculo, L’entree du très magnanime

très puissant et victorieux roy de France Henry deuxième de ce nom en sa noble cité de

Rouen (1550), outros dois relatos, estes impressos, documentam o acontecimento: o de

Robert Masselin, L’ Entree Du Roy nostre sire en sa ville de Rouen (1550), e o de

Robert le Hoy e Jean du Gord, intitulado C’est la dedvction du sumptuex ordre plaisantz

Spetacles et magnifiques theatres dresses, et exhibes par les citoiens de Rouen ville

Metropolitaine du pays de Normandie (1551). Rouen ecoará ainda no século XIX, na

obra de Ferdinand Denis, Une fête brésilienne célébrée à Rouen en 1550, onde o autor

descreve os acontecimentos com base no relato de Robert le Hoy e Jean du Gord.7 Doze

anos depois do espetáculo, Montaigne encontra-se com alguns indígenas nesta cidade, e

em 1580 no seu ensaio, “Dos Canibais”, descreve o diálogo que travou com um dos

indígenas ali presentes.8

Muito antes dos tupinambás de Rouen terem pisado em solo francês, um outro

indígena, carijó, já havia realizado a travessia do Atlântico e aportado na França. A

Relação da viagem do Capitão de Gonneville às Novas Terras das Índias (1503-1505)

relata a viagem do comerciante francês Paulmier de Gonneville que esteve no início do

século XVI em terras brasileiras. Entrando em contato com os carijós passou alguns

meses no Brasil e no retorno levou consigo dois índios, Esomericq, filho do cacique

5 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 168. 6 BRIESEMEISTER, Dietrich. “Uma „festa brasileira‟ celebrada em Rouen (1550) por motivo da entrada solene do Rei Henrique II da França e de Catarina de Médicis. Disponível em:

//www2.crb.ucp.pt/biblioteca/rotas/rotas/dietrich%20briesemeister%20139a161%20p.pdf 7 DENIS, Ferdinand. Uma festa brasileira. Rio de Janeiro: EPASA, 1944. Denis também apresenta a

fonte que analisa, “A Suntuosa Entrada”, edição de Robert Le Hoy e Jean du Gord. 8 MONTAIGNE, Michel de. “Dos Canibais”. Tradução de Luiz Antonio Alves Eva. Revista de Humanas,

n. 7-8, Curitiba, Editora da UFPR, 1998-99.

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carijó Arosca, e Namoa. Tentou também capturar dois tupinambás que, no entanto,

conseguiram fugir antes da partida.9

Não só os franceses levaram indígenas brasileiros para a Europa. Quanto aos

portugueses, conforme aponta Affonso Arinos, as cartas de doação das capitanias

faziam menção à possibilidade de entrada de nativos brasileiros em Portugal. Os

donatários poderiam mandar 24 escravos índios a cada ano, livres de direitos de entrada.

Esse envio só foi proibido em 1570, período em que, segundo o historiador, essa

exportação já devia ser quase nula.10

Um documento anônimo, datado de 1514,

intitulado A Nova Gazeta da Terra do Brasil, aponta que os indígenas embarcavam no

navio por vontade própria e muitos foram levados pelos portugueses.11

Em terras espanholas, como já mencionado, os embarques se iniciaram após o

primeiro contato, como fica explícito nos Diários das viagens de Cristovão Colombo

(1492-1502). Esses documentos relatam as viagens do navegador realizadas no período

de 1492 à 1502. Desde o primeiro contato ele manifestou o desejo de levar nativos para

a Europa a fim de que pudessem aprender o espanhol, e leva nativos para a Espanha

nesta viagem e nas posteriores.12

Outro espanhol que também deixou registrados o

cativeiro e o embarque de indígenas para a Europa foi Bernal Díaz de Castillo, em

Historia Verdadera de la Conquista Española (1632). Ao narrar as três expedições

espanholas ao Yucatán das quais afirma ter participado - a de Francisco Hernández de

Córdoba, em 1517; a de Juan de Grijalva, em 1518 e, por fim, a de Cortés, em 1519 –

Bernal Díaz nos permite visualizar a existência desses cativos indígenas, como se

efetivava a posse sobre eles e sua utilização.

Pode-se questionar a validade da pesquisa tendo estes sujeitos como objeto, uma

vez que não dispomos de fontes produzidas pelos próprios indígenas. Como afirma

Carlo Ginzburg em O queijo e os vermes, não podemos “jogar a criança fora junto com

a água da bacia” por “medo de cair no famigerado positivismo ingênuo, unido à

9 Relação da viagem do Capitão de Gonneville às Novas Terras das Índias. In: PERRONE-MOISÉS, op.cit. 10 FRANCO, op.cit., p. 36-37. 11 A Nova Gazeta da Terra do Brasil. In: Anais da Biblioteca Nacional, vol 33. Rio de Janeiro, 1911.

Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervodigital/anais/anais.htm. Acessado em: 13 de outubro de 2010. 12 COLOMBO, Cristovão. Los cuatro viajes del Almirante y su testamiento. Buenos Aires: Espasa –

Calpe Argentina, 1947.

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exasperada consciência da violência ideológica que pode estar oculta por trás da mais

normal e, à primeira vista, inocente operação cognitiva”.13

Se refletirmos a partir da hipótese levantada por Jean Claude Schmitt de que

“uma sociedade se revela por inteiro no tratamento de suas margens”, é possível pensar

no lugar que estes indígenas tiveram neste contexto e partir de suas histórias para tentar

entender as práticas européias de posse.14

Se não podemos averiguar o que a travessia

atlântica e o estabelecimento em um local completamente estranho significou para os

indígenas, é possível buscar resposta para outras perguntas, como por exemplo, qual o

significado que tinham para os europeus. Dessa forma, as experiências indígenas vão

nos falar mais dos europeus do que dos próprios indígenas.15

Podem nos permitir

entender como o grupo que se julga dominador ou superior no contato estabelecido com

o outro, demonstravam seu poder, expressavam sua vitória e a dominação daqueles que

subjugavam. Essas viagens, então, são vistas como uma das formas através das quais

pode se efetuar a apropriação física e simbólica do “outro” americano pelos europeus.

A historiografia sobre este tema preocupou-se principalmente com os índios

brasileiros levados para a França. Em Vinte Luas, Leyla Perrone-Moisés explora a

Relação da viagem do Capitão de Gonneville às Novas Terras das Índias, datada de

1505. A autora realiza uma análise textual da Relação e uma comparação entre esta e a

Carta de Pero Vaz de Caminha, uma vez que estes são os primeiros documentos que

retratam o contato dos europeus com os indígenas brasileiros. Além disso, a autora

analisa o contato cultural que se dá através da figura do índio Essomericq, levado para a

França por Gonneville.

O levantamento de dados sobre outros relatos de indígenas levados para a

França presente na obra de Perrone-Moisés segue o trabalho pioneiro realizado a esse

respeito por Affonso Arinos de Melo Franco, em O índio Brasileiro e a Revolução

Francesa. Nesta obra, o autor procura mostrar a influência que a imagem do indígena

13 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela

Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 16. 14 SCHMITT, Jean-Claude. “A história dos marginais”. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. São

Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 285. 15 De acordo com Schmitt esses documentos sobre os marginais produzidos pelo centro devem ser

considerados pelo historiador como “depoimentos sobre o próprio 'centro', sobre o lugar em que foram

prestados. Porque é uma contribuição essencial da história da marginalidade ter não somente preenchido

as margens da história, como ter possibilitado também uma releitura da história do centro”. Ibid., p. 285.

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brasileiro teve junto aos pensadores franceses do século XVI até o XVIII. Arinos dedica

um capítulo às “Viagens de índios brasileiros à Europa”. 16

O caso de Rouen está presente em ambos os levantamentos e, logicamente, não

passou despercebido aos olhos de outros historiadores. Dietrich Briemeister discorre

sobre o acontecimento num artigo intitulado “Uma „festa brasileira‟ celebrada em

Rouen (1550) por motivo da entrada solene do Rei Henrique II da França e de Catarina

de Médicis”. O autor analisa o repertório de procedimentos de visualização e

configuração cênicas do Novo Mundo a partir das fontes sobre Rouen e de mapas,

produzidos tanto na França quanto fora dela. Neste artigo mostra como o espetáculo se

enquadra em uma nova percepção de mundo que tem origem com os descobrimentos.17

Frank Lestringant se dedica a um documento que também evidencia a presença

de indígenas na França durante o século XVI, o ensaio “Dos Canibais”, de Michel de

Montaigne. 18

Neste ensaio, o filósofo descreve um diálogo travado com um nativo

brasileiro que se encontrava em Rouen. Entretanto, para Lestringant, o diálogo

estabelecido entre Montaigne e o indígena não é o foco principal, e sim como suas

respostas são usadas pelo filósofo na crítica que faz à sua sociedade. Outros autores

como Gerard Defaux e Edwin M. Duval também debruçaram-se sobre este ensaio

procurando discutir outros aspectos antropológicos entre Montaigne e os indígenas.19

Em geral o interesse por este ensaio não se concentra sobre a presença indígena na

França apontado por ele.

Em relação aos nativos americanos de outros pontos do continente que também

passaram por esta experiência de deslocamento, uma obra que aponta questões

interessantes é Possessões Maravilhosas, de Stephen Greenblatt. O autor explora

documentos de diversas origens, como fontes de conquistadores e comerciantes

16 FRANCO, op. cit, p. 36 e PERRONE-MOISÉS, op.cit. 17 O trabalho de Briesemeister compõe um conjunto com outros artigos apresentados no colóquio “Os

Descobrimentos Portugueses na Rota da Memória”, realizado na Faculdade de Letras da Universidade

Católica Portuguesa, entre fevereiro de 1999 e outubro de 2000. O artigo pode ser encontrado para

download em: //www2.crb.ucp.pt/biblioteca/rotas/rotas/dietrich%20briesemeister%20139a161%20p.pdf. 18 LESTRINGANT, Frank. Le Huguenot et Le Sauvage. Paris: Aux Amateurs de Livres, 1990.

LESTRINGANT. O Canibal. Grandeza e Decadência. Brasília: Ed. Da UNB, 1997. LESTRINGANT, F.

“O Brasil de Montaigne”. In: Revista de Anropologia, São Paulo, USP, 2006, v. 49, n° 2. Acesso em www.scielo.br, em 09 de fevereiro de 2010. 19 DEFAUX, Gerard. “Un Cannibale en Haut de Chausses: Montaigne, la Différance et la Logique de

l‟Identité”. In: Modern Language Notes, vol. 97, n°4, 1982, p. 919-957. Acesso em:

http://www.jstor.org/stable/2905872, 29/04/2010. DUVAL, Edwin M. “Lessons of the New World:

Design and Meaning in Montaigne‟s „Des Cannibales‟ (III: 31) and „Des Coches‟ (III: 6)”. In: Yale

French Studies, n° 64, 1983, p. 95-112. Acesso em: http://www.jstor.org/stable/2929953, 29/04/2010.

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espanhóis, ingleses e franceses, que passaram por vários pontos das Américas e

embarcaram nativos. Embora seu enfoque não sejam as viagens propriamente, e sim as

formas de representação utilizadas pelos europeus para se apossar das novas terras,

Greenblatt mostra ao longo da obra um conjunto considerável de documentos que

relatam o embarque de indígenas.20

Em The Myth of Sauvage, a historiadora Olive Patricia Dickason tem como

objetivo entender como os indígenas viram a Europa e como foi sua reação ao Velho

Mundo. Dickason analisa a vida quotidiana dos europeus, as cidades e o campo do

século XVI e traça paralelos com a realidade indígena, buscando entender como os

indíos podem ter visto a Europa.21

Por fim, outra obra que trata dos embarques de indígenas para a Europa,

embora este não seja seu objetivo principal, é Red Gold - The conquest of the Brazilian

Indians, de John Hemming. Este livro amplamente conhecido pela estimativa

apresentada pelo autor da quantidade de habitantes da América Portuguesa quando

descoberta, trata do processo de conquista e colonização da terra e da concomitante

destruição das populações nativas. Em meio a sua análise, o transporte de indígenas

brasileiros para a Europa é citado.22

O transporte de nativos americanos para a Europa se inscreve em uma segunda

ausência e em uma temática ainda mais ampla, a historiografia sobre cativos na

expansão ultramarina iniciada no século XV. Esta é uma temática que tem despertado

interesse recentemente na historiografia: os marginais da expansão, os cativos.

Marginais pois sua captura demonstra a fragilidade do grupo a que pertencem e, dessa

forma, no caso europeu, não se enquadram nos planos de conquista.

Alguns autores tem se dedicado ao estudo desses personagens feitos cativos na

Ásia, África ou nas Américas. O trabalho de Lisa Voigt, Writing captivity in the Early

Modern Atlantic. Circulations of knowledge and authority in the Iberian and English

Imperial Worlds, permite perceber as relações que se estabelecem entre cativeiro e

20 GREENBLATT, Stephen. Possessões Maravilhosas. São Paulo: Edusp, 1996. 21 DICKASON, Olive Patricia. The Myth of Sauvage. Edmonton: The University of Alberta Press, 1984. 22 HEMMING, John. Red Gold – The conquest of the Brazilian Indians. London: Macmillan, 1978.

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poder.23

Nessa obra, a autora explora o papel do cativeiro na produção de conhecimento,

identidade e autoridade a partir dos relatos escritos pelos cativos.

Como já apontado, percebe-se claramente uma ausência de trabalhos

historiográficos que tenham essas transferências indígenas como tema específico, e isto

não pode ser justificado pela falta de documentos. Assim, este trabalho busca suprir

uma parcela, mínima, desta lacuna sobre a história da América visando demonstrar que

a posse européia sobre o território americano alcançava também a seus habitantes

nativos. Estes não foram somente tomados como escravos no Novo Mundo, como uma

farta bibliografia tem demonstrado, mas tornaram-se um objeto de posse européia,

passível do transporte assim como os animais e plantas exóticos encontrados no Novo

Mundo.

Neste trabalho, essas viagens, então, são vistas como uma das formas através

das quais pode se efetuar a apropriação física e simbólica do “outro” americano pelos

europeus. Essa perspectiva parte da consideração de que nos conflitos entre portugueses

e holandeses no século XVII, o grupo que se considerava vitorioso no confronto,

violento ou não, exerce sua vitória através de diversas práticas de punição e

incorporação.

Dessa maneira, coloca-se em evidência que ao tratar de dois grupos

antagônicos, europeus e indígenas, estes não estão sendo apontados como grupos

homogêneos. Quanto aos europeus, apesar de suas diversas origens, existiam vários

aspectos em comum que devem ser levados em conta. Diante da extrema alteridade dos

ameríndios, os europeus reconheciam um “outro” diferente dos seus companheiros e

também dos seus inimigos. Tanto católicos quanto protestantes, os europeus sentiram-se

no direito de se apropriar dos indígenas. Essa apropriação, porém, não precisava se

concretizar através da escravização, ou pelo menos, não somente. Os conquistadores

sentiram-se imbuídos da missão de transformar o “outro” e o mundo em que vivia e isso

se efetuou de diversas formas, desde a destruição de impérios e seu ajuste às

necessidades européias, até a catequização. Nesse sentido, também os embarques dos

nativos americanos para a Europa são demonstrativos desse processo. Não podemos

descartar a hipótese de que muitos podem ter ido por vontade própria, no entanto, não

23 VOIGT, Lisa. Writing captivity in the Early Modern Atlantic. Circulations of knowledge and authority

in the Iberian and English Imperial Worlds. Chicago: University of Chicago Press, 2009.

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podiam imaginar o que os esperava do outro lado do Atlântico, e essa vontade não

elimina o uso que foi feito deles.

Da mesma forma, os grupos indígenas com os quais os europeus entraram em

contato também não eram homogêneos. Todas estas diferenças nos alertam para o fato

de que quando colocados esses grupos como vencedores ou vencidos, não se pode fixar

tais posições, sem que tenham se alterado ao longo do tempo. Nos conflitos colocavam-

se em jogo interesses europeus e também indígenas. Tendo esta reflexão em mente ao

analisar os documentos, buscou-se entender de que forma os europeus, ao julgarem-se

vencedores nos conflitos com os indígenas, explicitavam sua vitória, punindo-os ou

incorporando-os, sem que uma ação exclua a outra.

Na busca por entender de que forma se dava tal processo, utilizou-se como

base a obra de Stephen Greenblatt, Possessões Maravilhosas. Em sua discussão sobre a

utilização das práticas representacionais européias na efetivação da posse dos territórios

do Novo Mundo o autor aponta algumas ações empregadas neste sentido. Vestidos com

novas roupas, batizados, e aprendendo uma nova língua, os nativos, na ótica européia,

perdiam sua condição de índio e tornavam-se civilizados.

Neste contexto também são levados em consideração os debates suscitados

pela radical diferença encontrada no continente americano e que fizeram parte dos

conflitos apresentados pelas fontes, legitimando-os ou não. Tais debates foram pautados

por questões morais, religiosas e econômicas. Nos países ibéricos, Igreja e Coroa

caminhavam juntas no processo de expansão, o que Greenblatt classifica como

imperialismo cristão, viabilizado pela instituição do padroado régio.24

No caso de

Portugal, a religião foi mesmo um dos motores da expansão.25

Para as Coroas

portuguesa e espanhola, era necessário conciliar suas necessidades econômicas e a

ganância dos colonos com as questões teológicas e morais, uma vez que o que concedia

legitimidade à posse dos territórios americanos era o compromisso com a evangelização

dos pagãos.

24 GREENBLATT, op.cit, p. 96-97. 25 Ver THOMAZ, Luís Filipe. “Expansão portuguesa e expansão européia – reflexões em torno dos

Descobrimentos”. In: De Ceuta a Timor. Difel, 1994.

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CAPÍTULO 1

O aprisionamento representacional: historiografia e história

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Este trabalho versa sobre a maneira pela qual europeus se apossaram da

América e dos americanos. Os europeus, sem dúvida, acreditavam em seu direito de

governar, mas esta semelhança não nos permite homogeneizá-los. Os diversos grupos

de origem européia que aportaram na América partilhavam uma plataforma tecnológica

e ecológica26

. Mais ainda, diante da extrema alteridade indígena, os europeus

reconheciam um “outro” diferente de seus companheiros e também de seus inimigos.

Independentemente das diferenças que podiam ter entre si,

“sua cultura se caracterizava por uma confiança absoluta na própria centralidade, por uma

organização política baseada nos princípios do comando e da submissão, por uma

disposição a empregar a violência coercitiva tanto contra estrangeiros quanto contra

compatriotas e por uma ideologia religiosa plasmada numa infindável proliferação de

representações de um torturado e assassinado deus de amor”.27

Porém existiam diferenças entre os europeus, assim como existiram diferenças

nos meios de criação de autoridade no Novo Mundo. Isso pode ser percebido nos

documentos aqui analisados: são diversos os tratamentos dados aos indígenas tomados e

levados para o Velho Mundo, assim como também difere o tratamento dado aos nativos

na própria América. A própria imagem dos indígenas também poderia diferir,

dependendo de aspectos como a procedência do observador e sua religião. Este capítulo

busca apontar as diferenças entre espanhóis, portugueses e franceses em suas tomadas

de posse na América durante o século XVI. O ponto de partida desta discussão são os

trabalhos de Patrícia Seed, Stephen Greenblatt e Anthony Pagden.28

Além disso, a

discussão de Certeau sobre a colonização através da escrita também foi referência

importante.29

Segundo Patrícia Seed, o domínio colonial dependia de práticas cerimoniais

que precedia ou sucedia a conquista militar. Nos documentos que descrevem estas

cerimônias não são explicadas as razões das ações efetuadas para a tomada de posse.

Essas ações baseavam-se em discursos familiares que poderiam ser entendidos por seus

26 SEED, Patrícia. Cerimônias de Posse na conquista européia do Novo Mundo (1492-1640). São Paulo: Editora UNESP, 1999. 27 GREENBLATT, op. cit. 28 De Pagden, utiliza-se: “Conquest e Settlement”. Lords of all the World. Ideologies of Empire in Spain,

Britain and France, c.1500-c.1800. Yale University Press. 29 CERTEAU, Michel de. “Etno-grafia. A oralidade ou o espaço do outro: Léry”. In: A escrita da

História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.

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compatriotas, mas o significado nem sempre era óbvio para os outros europeus.30

A

autora busca entender porque estas convicções pareceram razoáveis para os membros de

um grupo e não para outros grupos. A própria maneira como cada língua exprime a

idéia de “posse”, aponta para diferenças entre o que cada grupo entendia por possuir e

como essa posse podia ou não ser sancionada.31

Nos relatos franceses é comum aparecer a aprovação da população nativa à

presença francesa, seguindo-se a isso os rituais de posse política: a procissão e a

colocação de uma cruz. No Relatório de Gonneville é descrita a cerimônia da

chantadura da cruz:

“Dizem também que, desejando deixar, no dito país, marcas de que ali haviam chegado

cristãos, foi feita uma grande cruz de madeira, alta de trinta e cinco pés ou mais, bem

pintada; a qual foi plantada num outeiro com vista para o mar, em bela e devota cerimônia,

tambor e trombeta soando, em dia bem escolhido, a saber, o dia de Páscoa de mil

quinhentos e quatro. E foi a dita cruz carregada pelo Capitão e pelos principais do navio,

todos descalços; e ajudavam-nos o dito chefe Arosca e seus filhos e outros índios notáveis,

que para tanto foram convidados de honra; e eles se mostravam alegres. Seguia a tripulação

armada, cantando a ladainha, e um grande povo de índios de todas as idades, aos quais há

muito fazíamos festa, quietos e muito atentos ao mistério.”32

Ao contrário de Seed, que também aponta a Relação da viagem de Gonneville

como uma cerimônia de posse, Leyla Perrone-Moisés não visualiza neste acontecimento

uma tentativa de possuir. Na cruz gravou-se a data em que o evento foi realizado, o

nome do papa, Alexandre VI, no momento em que eles tinham deixado a Europa; do

rei, Luís XII; e do Almirante de França, Louis Mallet de Graville. Para Perrone-Moisés

a gravação na cruz é indicativa de que o que os franceses desejavam era apenas firmar

uma associação com os indígenas, um tratado de aliança. Não pretendiam se instalar-se

e colonizar o Brasil, mas apenas “estabelecer boas relações com os índios, visando

presentes e futuros negócios. A terra não é por eles batizada, e o nome do Rei da França

aí figura não como o de seu dono, mas, juntamente com o do Papa e o do Almirante, na

qualidade do Superior a que os normandos prestam obediência e homenagem”.33

30 SEED, op. cit, p. 12-23. 31 Ibid, p.17. 32 Relação, op. cit, p. 23. 33 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 60.

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Para Seed, a cruz funcionava como um símbolo da aliança e da vontade dos

nativos de abraçar o cristianismo.34

Logo, mesmo que existam diferenças entre as

inscrições da cruz colocada pelos normandos no Brasil e as que foram colcadas por

Jacques Cartier no Canadá, onde figuravam um escudo com a flor-de-liz, a inscrição

“Vive le Roi de France”, e as armas de França, a chantadura da cruz tem os mesmos

objetivos em ambos os casos.35

As cerimônias realizadas na América refletiam rituais políticos familiares aos

normandos: as entradas reais e cerimônias de coroação. Como a monarquia francesa não

era hereditária, a cerimônia de unção era necessária para permanência da ordem política

legitimando o poder político. As entradas nas cidades funcionavam como uma

demonstração visual da legitimidade, estabilidade e ordem do poder político francês. As

cerimônias tornavam a posse válida.36

A participação popular era importante, pois era

uma demonstração de seu consentimento. Da mesma maneira, participando da

cerimônia de colocação da cruz, na percepção dos normandos, os próprios indígenas

criavam os direitos franceses sobre a colônia.37

Nessa perspectiva, a presença dos

índigenas brasileiros na entrada de Henrique II na cidade de Rouen seria a confirmação

da posse do rei não só da cidade mas da América, na presença de seus habitantes.

Patrícia Seed aborda as cerimônias de posse espanholas a partir do

Requerimiento e isto abre uma brecha temporal em seu estudo, pois, Colombo tomou

posse das terras em 1492 em nome dos reis de Espanha, o Requerimiento surge em

1512. Esta lacuna permite problematizar a afirmação da autora de que os espanhóis

criavam seu direito de posse pela conquista e não pelo consentimento como os

franceses.38

A autora encontra na ocupação islâmica que ocorreu na Península Ibérica as

raízes do Requerimiento, apontando que mesmo após a Reconquista, a cultura islâmica

deixou marcas na Espanha. Porém, muito antes da criação e utilização deste documento

na América, as marcas da Reconquista haviam sido deixadas na América através de

34 SEED, op. cit, p. 66. 35 A cerimônia realizada por Cartier é descrita por PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 62 e comentada por

SEED, op. cit, p. 69. 36SEED, op. cit, p. 76-77. 37 Ibid, p. 78. 38 Ibid, p. 102. Obviamente, estamos falando da expectativa francesa de que os indígenas dessem seu

consentimento. Isso pode nunca ter realmente ocorrido por parte dos indígenas, e estamos inclinados a

afirmar que realmente nunca ocorreu, porém, os franceses tomavam seu gestos como gestos de

assentimento e assim eram encarados.

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Colombo. A Espanha estava envolvida na Reconquista quando Colombo vai buscar o

caminho para encontrar o Gran Cã, e este encontro visava objetivos comerciais mas

também religiosos. Quando o navegador desfralda o estandarte real na América e

menciona a grande vitória alcançada pelos reis de Espanha, nos remete a um relato de

batalha. Porém, a isso seguem-se diversos atos discursivos: um pregón através do qual

Colombo toma posse das ilhas que são batizadas neste momento. Porém, não só o ato

denota a forma como a posse deveria ser realizada, isto também fica claro no registro da

ação.

“Como a cultura de Colombo não confia inteiramente em testemunhos verbais, como os

procedimentos jurídicos dessa cultura requerem provas escritas, ele trata de executar seus

atos discursivos na presença do escrivão da frota”. Os papéis “ajudam a produzir a

„verdade‟ e a „legalidade‟, assegurando-se de que as palavras de Colombo não desapareçam

uma vez proferidas, de que a memória da descoberta seja fixada e de que não existam

versões passíveis de concorrer com o que aconteceu naquela praia a 12 de outubro”.39

A “operação escriturária” realizada por Colombo acontece a revelia dos

nativos, que seriam a outra parte interessada na questão, apesar de estarem na praia e

dos espanhóis terem conhecimento de sua presença. 40

Como aponta Greenblatt “as

cerimônias tomam o lugar dos contatos culturais; os rituais de posse fazem as vezes dos

contratos negociados”.41

Contudo, um detalhe do registro chama a atenção. Colombo

afirma que tomou posse das terras e não foi contestado. Obviamente, Colombo sabe que

não seriam os espanhóis ali presentes que iriam contestá-lo, mas sim os indígenas. Pode

parecer uma brincadeira, imaginar que os nativos presentes ali na praia poderiam

contestar o navegador, se não sabiam quem era, o que fazia ali e o que suas palavras

queriam dizer. Porém, como aponta Greenblatt Colombo “leva a sério o „fato‟ de não ter

sido contestado”. Sabemos que os arauaques não poderiam contestar Colombo, pois

seus universos de discurso eram completamente distintos, mas para o genovês não era a

possibilidade ou não de entendimento que estava em jogo, mas sim a possível

contestação:

39 GREENBLATT, op. cit, p. 81. 40 CERTEAU, op. cit, p. 214. 41 GREENBLATT, op. cit, p. 82.

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“essa formalidade, evidentemente, invoca a possibilidade de uma contradição, uma

contradeclaração àquele que reivindica a posse. É essa ocasião formal que deve ser

observada, e não a contingência pela qual a ocasião formal deve ter sido originariamente

concebida. Cumprir as formalidades é o bastante: o que seríamos tentados a descartar como

mera formalidade é, para Colombo e para os espanhóis a quem ele serve, o cerne da

questão.”42

Assim podemos entender também a importância da leitura do Requerimiento,

apontada por Seed, no momento da conquista. A declaração escrita cumpria seu papel -

avisar as populações nativas que deveriam submeter-se, caso contrário estaria declarada

a guerra – independentemente, dos nativos poderem compreendê-la ou não. Porém, é

preciso ponderar que mesmo entre os espanhóis, ao longo do século XVI, aparece a

consciência da disparidade entre os universos de discurso espanhol e indígena. Essa é

uma denúncia, entre outras, realizada por Las Casas.

Quanto aos portugueses, Seed afirma que a descoberta e o estabelecimento da

latitude de um lugar estabeleciam o dominio português sobre uma região. Os

portugueses reivindicavam o direito de controlar o acesso a lugares que só podiam ser

alcançados com as técnicas que desenvolveram. Quando aportam no Brasil, ao contrário

dos espanhóis e franceses, nenhum símbolo da soberania européia é desfraldado e, a

descoberta é registrada por dois documentos: a Carta de Caminha e o relato escrito por

Mestre João, onde é descrita a latitude da descoberta com base no sol e nas estrelas.43

Os portugueses também colocaram pilares de pedra e cruzes, porém, a autora

explica que o significado da cruz mudava entre os europeus. O maior intuito era marcar

um ponto, uma localização. Assim a colocação de padrões destinavam-se a outros

europeus e não aos nativos. Embora a análise de Seed no que diz respeito aos

portugueses tenha algumas incongruências e deixe alguns aspectos sem muita

explicação, aponta para um ato de posse recorrente entre os europeus, e analisado por

Greenblatt: a nomeação de suas descobertas e o registro escrito. Como veremos adiante,

nem mesmo os indígenas escapavam desta prática denominativa.

Para Anthony Pagden o desejo de expansão europeu foi compelido por um

código de valores aristocráticos, que teve papel crucial na formação dos impérios

ultramarinos. A expansão ultramarina permitia uma promoção social, através do

42 Ibid, p. 84. 43 SEED, op. cit, p. 146-147.

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comércio, da possível obtenção de metais preciosos e de glória, que até metade do

século XVIII não poderia ser adquirida por outros meios.44

Mas a forma pela qual cada

potência européia estabeleceu seu domínio foi diferente.

Sérgio Buarque de Holanda contrapõem a colonização portuguesa, preocupada

mais em “feitorizar uma riqueza fácil e quase ao alcance da mão”, com a espanhola,

dedicada à construção de cidades. Segundo o autor, as cidades espanholas construídas

na América, demonstrar o “triunfo da aspiração de ordenar e dominar o mundo

conquistado”.45

Contudo, para além das maneiras através das quais os europeus dominaram

suas colônias, um fato foi recorrente: a posse se estabeleceu sobre os seres humanos que

aí habitavam e as transferências desses nativos para a Europa são exemplos disto.

Greenblatt procura demonstrar como a possedo Novo Mundo se deu através das formas

de representação européias, entre elas a narrativa. Próximo a essa interpretação

encontra-se a de Certeau, da colonização através da escrita. Porém, antes mesmo que a

narrativa e a escrita atingissem seu alcance como agentes da posse, já havia ocorrido a

tomada dos nativos americanos e seu embarque para a Europa, num processo que se

aliou àquele realizado pela narrativa e pela escrita. Rouen é, literalmente, um exemplo

vivo do que se quer dizer aqui. Lá estavam participando do espetáculo, a representação

do indígena americano, ou seja, todas as informações que já haviam se espalhado pela

Europa, disseminadas pelos relatos dos viajantes. Mas, quem as encenava eram os

próprios indígenas.

Antes, porém, de conhecer as histórias desses nativos americanos levados para

o Velho Mundo, é preciso buscar conhecer as visões construídas em torno dos indígenas

nos primeiros anos do Descobrimento e procurar pontuar as diferenças e semelhanças

entre os diversos discursos sobre os ameríndios.

1.1 Visões do paraíso: diferentes formas de narrar o encontro com os habitantes do

Novo Mundo

Os diferentes discursos acerca dos indígenas estão ligados à transformações

pelas quais passou a forma dos europeus interagirem com o mundo no período dos

44 PAGDEN, op. cit, p. 63-64. 45 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 95-96.

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Descobrimentos. Como afirma João Rocha Pinto, nesse período, “houve uma rotação

nas prioridades da hierarquia dos sentidos e a visão foi-se progressivamente impondo à

audição, como resposta a uma necessidade crescente de se operar com o espaço e em

função dele”.46

Esta mudança não ocorreu repentinamente ou da mesma forma com

todos os que entraram em contato com a realidade americana. No início dos contatos

entre Velho e Novo Mundo, “ouvir valia mais do que ver, os olhos enxergavam

primeiro o que se ouvira dizer, tudo quanto se via era filtrado pelos relatos de viagens

fantásticas, de terras longínquas, de homens monstruosos que habitavam os confins do

mundo conhecido.”47

A interpretação de Colombo, o descobridor do continente, era

influenciada por suas crenças e por todo o repertório mental sobre o Oriente, onde

pensou estar ao chegar na América. Não se preocupava em entender melhor a realidade

que via, pois já sabia de antemão o que ia encontrar. Dessa forma, no caso de Colombo

fica claro que, a autoridade ainda era mais importante do que a experiência.48

Tendo em mente as transformações apontadas por Rocha Pinto, para entender

as diferentes visões acerca dos indígenas americanos caberia analisar além de Colombo,

outros dois documentos que narram contatos primeiros com as populações americanas:

a Carta de Pero Vaz de Caminha e a Relação da Viagem do Capitão de Gonneville às

Novas Terras das Índias.49

Estes documentos permitem ver como neste primeiro

momento as visões acerca dos indígenas e a forma de entender a realidade americana

poderiam ser distintas, sendo distintos os observadores. Produzidas no mesmo contexto,

com pouquíssimos anos de diferença, as narrativas apresentam diferenças interessantes

na forma de apresentar os habitantes do Novo Mundo. Tais diferenças não derivam de

46

ROCHA PINTO, João. A viagem. Memória e Espaço. A literatura portuguesa de viagens. Os

primitivos relatos de viagem ao Índico. 1497-1550. Lisboa: Sá da Costa, 1989, p. 220. Em Para um novo

conceito de Idade Média, Jacques Le Goff afirma que “ao contrário das pessoas do Renascimento, as da

Idade Média não sabem olhar, mas estão sempre prontas a escutar e a acreditar tudo o que se lhes diz.

Ora, durante suas viagens embebedam-nos com relatos maravilhosos, e eles crêem ter visto o que sem

dúvida souberam no local, mas por ouvir dizer (LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade

Média. Tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1980). A mesma perspectiva é

apontada por Todorov em A Conquista da América na análise dos diários de Colombo (TODOROV,

Tzvetan. A Conquista da América. A questão do Outro. São Paulo: Martins Fontes, 2010). Leyla Perrone-

Moisés utiliza a proposta de Rocha Pinto em sua comparação entre a Carta escrita por Caminha e a Relação de Gonneville. 47 MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no

Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.34. 48 TODOROV, op. cit, p. 22-23. 49 CAMINHA, Pero Vaz de. A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: LP&M, 1987. Relação, op.

cit.

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uma superação total da autoridade pela experiência, mas são pautadas também na

origem dos autores e no tipo dos documentos, de naturezas diferentes.

Segundo Rocha Pinto, Caminha escreveu um “auto dos sentidos”, tendo o

cuidado de relatar aquilo que experimentou diretamente, demonstrando um apego

aristotélico aos dados sensoriais.50

Em um dado momento, durante um dos primeiros

encontros com os nativos brasileiros, Caminha narra as diversas tentativas de descobrir

entre os pertences europeus o que os índios reconhecem:

“Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão

e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.

Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.

Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão.

Depois lhe pegaram, mas como espantados.”51

Essa é a narrativa de uma experiência motivada pelo desejo de dialogar com os

ameríndios. Na continuação da experimentação o escrivão português afirma que um

dos indígenas viu um rosário e pediu que o dessem. Segundo Caminha, que já havia dito

que os indígenas deram sinais da existência de ouro em terra, o indígena apontava para

as contas do rosário e para a terra como que querendo dizer que dariam ouro por aquilo.

Porém, Caminha reconhece como esta comunicação podia ser falha, talvez

demonstrando um reflexo da experiência obtida pelos portugueses em outras terras, pois

afirma que “isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele

queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por

que lho não havíamos de dar!”.52

Ao longo de toda a Carta, é possível perceber o

cuidado tomado por Caminha ao separar as experiências que ele mesmo vivenciou

daquelas vivenciadas por outros membros da tripulação. Também toma “precauções

discursivas” utilizando expressões que demonstram que não tinha certeza absoluta sobre

determinados assuntos tratados e que o que estava sendo apresentado era apenas um

parecer seu.53

Em diversas passagens do documento, Caminha aponta objetos encontrados

nas novas terras que, acreditava, seriam levados para o Rei de Portugal. Mas, ao

50 ROCHA PINTO, op. cit, p. 220. 51 CAMINHA, op. cit, p. 20. 52 Ibid, p. 23. 53 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 91.

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contrário de Colombo, o capitão não leva os homens para que Sua Alteza os conheça.

Na comparação com o relato de Colombo, a absoluta falta de espanto que perpassa toda

a carta chama a atenção.54

Muito distante da aparente ausência de espanto de Caminha,

está a postura de Colombo. O genovês é tomado pelo maravilhamento diante do novo,

embora veja em tudo somente aquilo que estava preparado para ver. Por essa razão,

deseja levar tudo o que puder. Como afirma Todorov,

“Colombo não tem nada de um empirista moderno: o argumento decisivo é o argumento da

autoridade, não o de experiência. Ele sabe de antemão o que vai encontrar; a experiência

concreta está aí para ilustrar uma verdade que se possui, não para ser investigada de acordo

com regras pré-estabelecidas, em vista de uma procura de verdade.”55

A idéia de levar os homens, porém, é cogitada pelo capitão-mor português que,

reunido com os outros capitães, perguntou “se seria bem tomar aqui por força um par

destes homens para os mandar a Vossa Alteza”, deixando no lugar deles dois

degredados. Ainda que os indígenas se mostrassem dispostos a ir as naus, decidiram

que:

“não era necessário tomar por força homens, porque costume era dos que assim à força

levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e

muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui

deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende. Nem

eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o

não digam quando cá Vossa Alteza mandar.”56

Aqui quem fala é a experiência portuguesa no contato com outros povos

adquirida durante a expansão. Era importante, neste momento, não tomar nenhum índio

54 Em Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda explica: “O gosto da maravilha e do mistério, quase

inseparável da literatura de viagens na era dos grandes descobrimentos marítimos, ocupa espaço

singularmente reduzido nos escritos quinhentistas dos portugueses sobre o Novo Mundo. Ou porque a

longa prática das navegações do Mar Oceano e o assíduo trato das terras e gentes estranhas já tivessem

amortecido neles a sensibilidade para o exótico, ou porque o fascínio do Oriente ainda absorvesse em

demasia os seus cuidados, sem deixar margem a maiores surpresas, a verdade é que não os inquietam,

aqui, os extraordinários portentos, nem a esperança deles” (HOLANDA, Sérgio Buarque. Visão do Paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense/

Publifolha, 2000, p. 1). 55 TODOROV, op. cit, p. 23. 56 CAMINHA, op. cit, p. 21. Em diversas passagens é possível perceber o interesse indígena em subir a

borso dos navios. Durante a permanência dos portugueses, em três ocasiões alguns “mancebos” dormem

nas naus.

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à força, ou “fazer escândalo” para “os amansar e apaziguar”.57

Esta decisão é tomada

com vistas a futuros contatos com as populações da região, pois neste momento ainda

não se podia saber quais as possibilidades de exploração econômica das novas terras.58

Caminha realizou um trabalho de etnógrafo, que não pode ser encontrado nos

relatos deixados por Colombo. Segundo Rocha Pinto:

“o homem tem mais dificuldades, enquanto observador, em devassar (ver) paisagens não

habitadas do que em penetrar a paisagem humanizada. Daí que a descrição do espaço-

natural seja mais difícil de concretizar do que narrar e descrever a humanidade que os

ocupa. Nesta dificuldade radica o facto de Caminha se ter voltado primeiramente para a

observação da nova humanidade, deixando num plano secundário o espaço geográfico

brasileiro, ainda que não o desdenhasse.”59

No caso de Colombo o maravilhamento não se dá somente pelos índios. Aliás,

ele se dá pela natureza como um todo e os nativos são, dessa forma, assimilados a ela. A

descrição dada por Colombo sobre os índios segue as mesmas regras utilizadas por ele

para descrever a natureza.60

Dessa forma, os nativos são observados como curiosidades

a serem colecionadas, assim como amostras da fauna e da flora da região:

“Luego que amaneció vinieron a la playa muchos de estos hombres, todos mancebos, como

dicho tengo, y todos de buena estatura, gente muy fermosa: los cabellos no crespos, salvo

corredios e gruesos, como sedas de caballo, y todos de la frente y cabeza muy ancha más

que otra generación que fasta aquí haya visto, y los ojos muy fermosos y no pequeños, y

ellos ninguno prieto, salvo de la color de los canarios.”61

No entanto, não se pode confrontar a postura de Colombo com a de Caminha,

acreditando que o apego do escrivão português à “objetividade” da visão permitiu que

compreendesse mais a realidade dos índios ou lhes desse mais importância. Caminha

avaliou somente “as características civilizacionais aparentes do oponente e,

essencialmente, fizera-se o reconhecimento do espaço pelo seu valor estratégico e

econômico, relegando o seu ocupante para um segundo plano de interesses imediatos”.62

57 Ibid, p. 21. 58 Ibid, p. 22. 59 ROCHA PINTO, op. cit, p. 230. 60 TODOROV, op. cit, p. 47-48. 61 COLOMBO, op. cit, p. 31. 62 ROCHA PINTO, op. cit, p. 234.

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A experiência portuguesa, acima mencionada, apesar da suposta política de

sigilo empregada pela Coroa, alcançava diversos pontos da Europa. O porto de Lisboa

era um ponto de contato entre marinheiros portugueses e europeus de outras regiões do

continente. Segundo a Relação de Gonneville foi desta forma que se iniciou o

empreendimento que acabou por trazer a expedição francesa ao Brasil:

“vistas as belas riquezas de especiarias e outras raridades que chegavam àquela cidade por

navios portugueses vindos das Índias Orientais, há alguns anos descobertas, combinaram de

lá enviar um navio, depois de bem se informarem junto a alguns que tinham feito tal

viagem e de contratarem por alto salário dois portugueses que de lá tinham voltado, um

chamado Bastião Moura, o outro Diogo Couto, para que, no caminho das Índias, eles o

ajudassem com seu saber.”63

Assim como Colombo, o objetivo da expedição era alcançar o Oriente.

Segundo as informações prestadas por Gonneville na Relação, durante a viagem o

capitão faleceu e “foi essa infelicidade seguida de outra, a saber, rudes tormentas, tão

veementes que obrigados foram a se deixarem ir, por alguns dias, ao sabor do mar, ao

abandono; e perderam a rota; o que muito os afligia, dada a necessidade que tinham de

água e de se refrescarem em terra”.64

O navio francês alcançou a costa do Brasil, no

ponto onde é o atual estado de Santa Catarina e aí entrou em contato com os índios

carijós.

Na Relação a ausência de espanto também existe. Como observa Perrone-

Moisés, o encontro com os habitantes nem sequer é narrado.65

Ele já é apresentado no

início da terceira parte do documento, intitulada “Estada nas novas Terras das Índias”,

no passado: “conversavam cordialmente com as gentes dali, depois que elas foram

cativadas pelos cristãos por meio das festas e pequenos presentes que estes lhes

faziam”.66

A ausência de espanto de Gonneville, e também de Caminha, pode ser

explicada “pela informação acerca da experiência de Colombo e outros, que já corria

solta nos portos europeus. A isso se acresceria, do lado português, o longo tratado com

povos diversos, na África e na Ásia, que os predisporia a encarar naturalmente a

63 Relação, op. cit, p. 16. 64 Ibid, p. 20. 65 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 83. 66 Relação, op. cit, p. 21.

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aparição de outros gentios.”67

Experiência portuguesa possivelmente compartilhada com

os franceses pelos portugueses presentes na expedição.

Assim como Caminha, a opinião de Gonneville sobre os índios é muito

favorável. Os indígenas são “gente simples, que não pediam mais do que levar uma vida

alegre sem grande trabalho; vivendo da caça e da pesca, e do que lhes dá de per si, e de

alguns legumes e raízes que plantam”.68

De acordo com Perrone-Moisés, o adjetivo

simples, empregado para os índios, tanto no documento francês quanto no português, é,

ao mesmo tempo, gentil e depreciativo: “simples quer aí dizer „simplório‟, e portanto

facilmente dominável”.69

Mas se não podemos olhar a simpatia de Caminha e Gonneville de forma

idealizada, também não podemos fazer o contrário. Ao analisar esses documentos

juntamente com os de Colombo, por exemplo, podemos perceber que apresentam uma

abertura para a alteridade. “Ambos manifestam uma grande abertura na observação do

Outro, que lhes interessa para além das intenções práticas; eles o olham com toda a

objetividade possível, sem o sobrecarregar com demasiados julgamentos ou

interpretações”.70

Porém é preciso ter em mente o momento em que os encontros se dão e os

relatos são produzidos. Os indígenas ainda são vistos como habitantes de um Paraíso,

criaturas inocentes e gentis. Não são ainda “o inimigo a vencer, o escravo a subjugar, o

empecilho a eliminar”.71

1.2 O enquadramento da realidade americana nos parâmetros europeus: a política

indigenista portuguesa e espanhola

O posicionamento ante os indígenas foi muito variado entre os observadores

europeus e sofreu modificações ao longo do tempo e a partir dos desdobramentos

gerados pelos contatos. Ainda que as intenções dos europeus que aqui aportavam não

fossem as mesmas - colonização, comércio, saque – era necessária uma intervenção para

obter dos nativos aquilo que se desejava. Da escravidão dos índios, justificada por sua

67 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 93. 68 Relação, op. cit, p.21. 69 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 97. 70 Ibid, p. 97. 71 Ibid, p. 95.

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barbárie, à catequese, necessária à salvação das suas almas, várias foram as intervenções

realizadas pelos europeus na realidade indígena. Para legitimar estas intervenções,

iniciaram-se debates sobre a questão da natureza indígena e também das novas terras

descobertas.

Inicialmente, os relatos apontavam os nativos americanos como tábulas rasas,

seres mansos e dóceis, os quais seriam com facilidade tornados cristãos. Colombo, no

relato de sua primeira viagem, afirma que “elles deben ser buenos servidores y de buen

ingenio, que veo que muy presto dicen todo lo que les decía, y creo que ligeramente se

harían cristianos; que me parecióque ninguna secta tenían”.72

E Caminha, em um trecho

clássico de sua Carta, escreve:

“parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa,

seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as

aparências. (...) E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma

vez que Nosso senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos

para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja

acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com

pouco trabalho seja assim!”73

Em ambos os relatos, percebe-se a intenção de tornar os ameríndios cristãos.

Uma vez que a expansão da religião era o que legitimava o processo de expansão e

posse dos territórios descobertos, assegurado pelas bulas papais, espanhóis e

portugueses não isolavam a questão religiosa da empresa ultramarina. De acordo com

Luís Filipe Thomaz, o espírito de cruzada presente entre os ibéricos deve ser apontado

como um dos motivos que impulsionaram a expansão marítima portuguesa. O autor

afirma que:

“o confronto que desde o século VII se dá no Mediterrâneo não é meramente o choque

entre duas religiões, mas a rivalidade entre dois blocos políticos, culturais e econômicos,

organizados cada um em torno de seu credo. E é inegável que é esse credo o fecho de

abóbada da sua solidariedade intrínseca. Lutar pela religião não é, pois, lutar por algo de

ideal e exterior à sociedade, mas pelo elemento central da sua própria individualidade

cultural – logo, pela sua subsistência como entidade coletiva. Esse espírito de cruzada tinha

mais que em qualquer outra parte hipóteses de manter a vitalidade na Península – onde

72 COLOMBO, op. cit, p. 31. 73 CAMINHA, op. cit, p. 25.

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estava ainda incompleta a Reconquista, cuja imagem era na consciência nacional dos

estados dela originados elemento relevante.”74

As esferas econômica e religiosa, não se encontravam separadas. Como afirma

Todorov a respeito de Colombo, “a necessidade de dinheiro e o desejo de impor o

verdadeiro Deus não se excluem. Os dois estão até unidos por uma relação de

subordinação: um é meio, e o outro, é fim”.75

Segundo Laura de Mello e Souza, “propagava-se a fé, mas colonizava-se

também”.76

Esta relação ia muito além de dois processos que eram colocados em prática

simultaneamente. Propagar a fé era colonizar e vice-versa, pois a fé católica portava

com ela a civilização e esta só podia existir no seio do catolicismo, para espanhóis e

portugueses.

Com a intensificação dos contatos entre indígenas e europeus a imagem da

tábula rasa começa a apresentar fraturas, pois começa a ficar cada vez mais claro que o

processo de conversão não seria tão fácil, como Colombo e Caminha imaginaram. Os

discursos elaborados por ambos não apresentam “um „conhecimento real‟, mas a

construção de uma imagem do índio que se pauta por „uma certa inocuidade‟”.77

Em Portugal, a imagem do bom selvagem apresentada na Carta de Caminha

quase não teve difusão e, as relações não pacíficas que se estabeleceram entre colonos e

ameríndios contribuíram para a criação de um juízo de valor negativo sobre os

indígenas por parte dos portugueses.78

O modo de vida dos indígenas lançava um

desafio a todos os europeus que, então, buscavam simplificar este quadro a algo

inteligível. Recorria-se a um “método de contraste”, apontando nos indígenas somente o

que faltava em comparação à sociedade européia.79

Os ameríndios eram bárbaros,

canibais, homens sem alma e sem razão. As características negativas mais fortemente

apontadas são a antropofagia, a inimizade contínua entre as tribos, a falta de instituições

sociais, jurídicas e políticas indígenas.80

Para os religiosos, durante os séculos XVI e

74 THOMAZ, op. cit, p. 11. 75 TODOROV, op. cit, p.10. 76 MELLO E SOUZA, op. cit, p. 49. 77 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 95. 78 THOMAS, Georg. Política indigenista dos portugueses no Brasil. 1500-1640. São Paulo: Edições

Loyola, p. 18. 79 MONTEIRO, John Manuel. “As populações indígenas do litoral brasileiro no século XVI:

transformação e resistência”. In: DIAS, Jill R (org.). Brasil nas vésperas do mundo moderno. Lisboa:

CNCDP, 1992, p. 121. 80 THOMAS, op. cit, p. 20-21.

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XVII, os indígenas haviam sofrido um processo de degeneração em razão de seu

afastamento da civilização, porém a conversão poderia reverter tal processo. Indício de

que a imagem do indígena não possui uma forma fixa no imaginário europeu, mudando

conforme mudam os interesses, é o discurso produzido por alguns iluministas acerca

dos indígenas. Ao produzir a crítica à sociedade européia os índios foram retomados

como exemplos de construtores de sociedades felizes e igualitárias, antes de serem

corrompidos pelos europeus.81

Denegrir os homens autóctones, ressaltando seu primitivismo e sua

incapacidade de cuidar de si mesmos justificaria a cristianização e a escravidão.82

Segundo Ronald Raminelli, estudioso das imagens de indígenas produzidas no século

XVI, esta interpretação não é suficiente para explicar os significados expressos pela

imagem do índio. De acordo com este autor, a representação do indígena obedecia a um

programa importante para a consolidação e manutenção do domínio europeu na

América.83

Neste discurso, o indígena era aproximado dos elementos ameaçadores e

negativos da cultura européia. Para João Adolfo Hansen, na monstruosidade do índio

“pode se ler, pelo avesso, o recalcado das fobias” européias.84

A Europa quinhentista e seiscentista era fascinada pela temática do

monstruoso.85

Esse fascínio se circunscrevia a um tipo específico: os monstros humanos

81 RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização. A representação do índio de Caminha a Vieira. São Paulo/ Rio de Janeiro: Edusp/ Fapesp/ Jorge Zahar, 1996, p. 34. Porém, é preciso ter em conta que antes

dos Iluministas, no século XVI, um filósofo como Montaigne já havia se utilizado dos povos americanos

para realizar sua crítica sobre a sociedade européia. No século XVIII, para citar apenas dois textos

clássicos pode-se apontar o Suplemento a Viagem de Boungainville (1772) de Diderot e o Discurso sobre

a origem e os fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1755) de Rousseau. Diderot se aproveita

do relato da viagem realizada por Boungainville ao Taiti, e cria um texto ficional no qual aponta o

constraste entre os costumes corrompidos dos europeus e a sociedade haitiana regida pela lei natural. Já

Rousseau em seu Discurso remonta as origens da humanidade para afirmar que, o homem, em seu estado

natural vivia na igualdade. A instituição da propriedade privada e da desigualdade moral, originadas pelo

progresso e a civilização trouxeram para o seu meio as desigualdades. 82 Laura de Mello e Souza, referindo-se a Colombo, declara que “para justificar a necessidade de cristianização, havia que denegrir os homens autóctones. Denegrindo-os, estava justificada a escravidão”

(MELLO E SOUZA, op. cit, p. 53). E Georg Thomas afirma que “o juízo sobre a raça americana parece,

pois, ter sido ditado antes pelo interesse de tipo econômico em encontrar motivos justificativos para a

escravização do indígena” (THOMAS, op. cit, p. 23-24). 83 RAMINELLI, op. cit, p. 16. 84 HANSEN, João Adolfo. “A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro. In:

NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. MINC Funarte/ Cia. Das Letras, 1998, p.

347. 85 Le Goff aponta que no imaginário medieval sobre o Oceano Índico os sonhos de riqueza e abundância

ligavam-se ao de exuberância. O Índico é povoado de homens monstruosos e de animais fantásticos.

Segundo o autor este sonho “se expande na visão de um mundo da vida diferente, onde a extravagância

segrega uma impressão de libertação, de liberdade. Perante a moral acanhada imposta pela Igreja,

expande-se a sedução perturbadora de um mundo de aberração alimentar onde se pratica a coprofagia e o

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individuais, a categoria em que se enquadravam os homens selvagens. “A humanidade

monstruosa exprimia marginalidade geográfica, constituindo representação concêntrica

do mundo. As representações do monstruoso e o selvagem uniram-se e, os ameríndios

poderiam pertencer a ambas representações. Porém, com o tempo:

“o homem selvagem acabou prevalecendo, sem contudo abandonar de todo a sua carga

monstruosa. A monstruosidade achava-se muito ligada ao desconhecido geográfico, que a

experiência das navegações e dos descobrimentos acabaram lançando por terra. Já o

homem selvagem não dependia do desconhecido, mas da representação hierárquica da

sociedade cristã. Justificava a empresa colonial como tentativa de dar cultura e religião aos

que não tinham, durando, portanto, tanto quanto o sistema colonial.”86

Os ameríndios eram diferentes dos homens selvagens concebidos pelo

imaginário europeu medieval.87

O homem selvagem era aquele que vivia no isolamento

e sem leis, pertencendo mais ao mundo da natureza do que ao da racionalidade. O

homem bárbaro possuía algumas leis, ainda que falsas, como eram os indígenas para os

europeus. Esta proximidade era o que causava terror quando começou a se disseminar a

imagem do indígena canibal.

Homens que comiam carne humana, que viviam no pecado e na anomia

poderiam ser evangelizados? Segundo Hansen, esta discussão sobre o indígena gerou

duas intervenções na América: a dos que afirmavam que o indígena era um “escravo por

natureza” e a dos que afirmam que ele era humano, porém selvagem e devia ser

convertido e integrado como subordinado. De qualquer forma, como animal sem alma

ou como alma selvagem, o índio, nestes discursos, passou a estar submetido às

instituições européias. 88

Saber se os indígenas eram portadores de razão e de almas era muito

importante para definir o posicionamento a ser tomado com relação a eles e legitimá-lo,

principalmente entre espanhóis e portugueses com relação a suas colônias americanas.

Mas, outros europeus também formavam seus juízos de valor com relação aos

americanos. Os contatos mais efêmeros dos franceses com os grupos nativos da costa

canibalismo , da inocência corporal, onde o homem liberto do pudor do vestuário reencontra o nudismo, a

liberdade sexual, onde o homem, desembaraçado da indigente monogamia e das barreiras familiares, se

entrega à poligamia, ao incesto, ao erotismo” (LE GOFF, op. cit., p.276). 86 MELLO E SOUZA, op. cit, p. 78-79. 87 Ibid, p. 81. 88 HANSEN, op. cit, p. 350.

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brasileira parecem indicar que não fizeram juízo de valor dos índios, encarando-os

apenas como parceiros comerciais como outros quaisquer. Não tendo os problemas que

portugueses e espanhóis tiveram relativos a conquista e manutenção dos territórios, ou a

preocupação com a catequisação das populações, o relacionamento entre franceses e

indígenas foi diferente, porém, isso não os torna isentos da elaboração de juízos sobre

os indígenas.

Como já explicado, o ritual de posse francês implicava uma aceitação nativa.

Estabelecia-se então uma aliança, que não precisava necessariamente implicar paridade,

mas apenas a garantia de uma obrigação mútua. Diferentemente do que ocorreu entre

espanhóis e portugueses, a aliança firmada entre indígenas e franceses estabelecia um

tipo distinto de subordinação política, não transformando os nativos automaticamente

em súditos.89

Mas, como já afirmado, a aliança não pressupõem necessariamente

paridade. Dessa forma, não podemos pensar nos franceses como aliados dos indígenas,

no sentido de que estabeleceram-se somente relações amistosas e iguais entre esses

grupos, enquanto, que com portugueses e espanhóis, somente houve a dominação e a

destruição dos grupos indígenas.

As diferenças religiosas também propiciavam olhares diferentes sobre as

populações nativas. A descrição dos tupinambás realizada por Jean de Léry, vem a

mente como um exemplo da positividade da observação protestante em relação aos

nativos americanos, principalmente, quando comparada com a descrição elaborada pelo

franciscano Thevet. Porém, essa é exatamente uma das intenções do autor francês. Além

disso, Léry escreve sua obra vinte anos depois de sua estada entre os índios brasileiros e

essa distancia lhe permite ordenar e esquematizar sua visão sobre eles.90

Jean de Léry

nasceu em 1534, em La Margelle, França. De origem simples, filho de burgueses

simpáticos ao calvinismo, Léry não era um intelectual.91

Quando do seu nascimento, a

França encontrava-se já agitada pelos questionamentos religiosos e a Reforma fazia

progressos na França: o Parlamento e a Universidade reclamavam uma Igreja Nacional

e a própria Coroa simpatizava com o reformismo mesmo que não declaradamente.

89 SEED, op. cit, p. 87-88. 90 LESTRINGANT, Frank. “Jean de Léry ou a obsessão canibal”. In: O Canibal. Grandeza e decadência.

Brasília: Editora da UNB, 1997, p. 103. 91 LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Martins e EDUSP,

1972, p. XV. Esta edição inclui um texto de Sérgio Milliet sobre Jean de Léry, e as notas biográfica e

bibliográficas de Paul Gaffarel (edição de 1880). Todas as páginas antes do início da dedicatória de Léry

são numeradas em algarismos romanos.

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Mesmo não tendo durado muito tempo este estado de paz, a perseguição aos reformistas

ainda não era forte para impedi-los de agir. Neste contexto, Calvino, em Genebra funda

uma “teocracia democrática” 92

, e convoca os missionários que ali quiserem se instalar.

Léry é um desses missionários, que se encontram em Genebra, aí começará seus estudos

de teologia.

Sua viagem para a América decorre da convocação de Durand de

Villegagnon93

, numa carta escrita a Calvino, na qual solicita pessoas que possam

auxiliá-lo na tarefa de fundar uma França americana, na qual seus compatriotas

pudessem seguir livremente a religião reformada sob a autoridade da Metrópole. Uma

vez estando no novo continente, Léry e alguns de seus companheiros desentendem-se

com Villegagnon por motivos religiosos e se retiram do Forte de Coligny, construído

por ele com ajuda dos franceses, para o litoral onde travaram contatos mais íntimos com

os Tupinambá.

Mas soma-se a questão religiosa o tipo de interesse que os europeus tinham na

América. Não se pode negar que no caso do francês Gonneville os interesses iniciais na

América não eram de colonização mas de comércio. O francês calvinista Jean de Léry

que esteve no Brasil, no entanto, estava envolvido com um empreendimento

colonizador. Porém, esta era uma empresa particular, e não diretamente motivada por

uma Coroa, que elencava entre seus objetivos a catequese indígena e, com isso a

salvação de suas almas e a expansão da fé católica, como nos casos português e

espanhol. O objetivo maior da fundação da França Antártica era ter um lugar no qual os

calvinistas pudessem seguir livremente sua religião.

Dentro da missão cristã de que se sentiam imbuídas estas Coroas, o tratamento

dado aos nativos tinha grande importância, pois ele legitimava a posse do território. A

posição das Coroas e a dos colonos que vinham para a América eram muitas vezes

conflitantes. Era necessário definir se o cativeiro indígena iniciado nos primeiros

contatos era legítimo e, caso fosse, sob que condições.

Existem diferenças entre Espanha e Portugal. Neste não apareceram as

polêmicas teóricas de vulto sobre o assunto que surgiram naquela.94

A tese da servidão

92 Ibid, p. XIX. 93 Durand de Villegagnon, cavaleiro de Malta e vice-almirante da Bretanha, era um ativo viajante e sua

fama corria pela Europa e pela África. Foi o fundador de uma colônia francesa no Rio de Janeiro (Ibid, p.

XX). 94 HANSEN, op. cit, p. 360.

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natural, baseada na Política de Aristóteles, que afirma que é próprio do inferior

subordinar-se ao superior, foi defendida por Sepúlveda, em seu Tratado das justas

causas da guerra contra os índios, de 1550. De acordo com Sepúlveda, a fraqueza de

entendimento, como a que se encontrava entre os nativos da América, levava à servidão.

Dessa forma, os indígenas eram escravos por natureza.95

Outros religiosos viam a situação de forma radicalmente diferente. Francisco

de Vitória, em sua Relectio de Indis, de 1539, defende a liberdade que os indígenas

tinham para crer, sendo esta liberdade entendida como escolha para o Bem de Deus.

Como os indígenas eram ignorantes do Bem deviam ser levados a conhecê-lo e, caso

recusassem, poderia ser movida guerra contra eles e ela seria justa e o cativeiro

condição necessária para que o índio alcançasse sua liberdade.96

A atuação dos jesuítas vai ao encontro da posição de Vitória. Os padres

reconheciam a organização das sociedades indígenas, porém o fato de estarem

corrompidas por seus costumes bárbaros impunha o dever de convertê-los ainda que

pela força.97

Dessa forma, a guerra movida contra os tapuias que resistiam à

catequisação e atacavam os colonos era justa. Porém, os missionários apontam que a

ganância dos colonos acabava por transformar povos amistosos nos primeiros contatos

em inimigos. Em carta destinada ao Rei de Portugal o padre Antônio Vieira conta sobre

a tentativa de pacificação dos índios Nhengaíbas, nome atribuído aos povos que

habitavam uma ilha no Rio Amazonas, e afirma que:

“Ao principio receberam estas nações aos nossos cõquistadores em boa amisade, mas

depois q a larga experiecia lhe foy mostrado q o nome da falsa paz cõ q entravam se

cõvertia em declarado cativeiro, tomaram as armas em defesa da liberdade, & começáram a

fazer guerra aos portugueses em toda a parte.”98

Embora a Coroa e os missionários, por um lado, e os colonos, por outro,

tivessem posicionamentos diferentes e conflitantes em relação aos índios ambos se

utilizaram do conceito de bárbaro para justificar suas ações. Para catequisar ou

95 Ibid, p. 364. 96 Ibid, p. 368. 97 Ibid, p. 352-353. 98 VIEIRA, Padre Antonio. Copia de huma carta para El Rey N. Senhor sobre as missões do seará, do

Maranham, do Pará, & do grande Rio das Almasónas. Coleção Barbosa Machado. CEDOPE. UFPR.

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escravizar este bárbaro era necessário uma teorização ético-jurídica que justificasse o

domínio europeu.

A discussão sobre a aplicabilidade da noção de guerra justa é anterior à

expansão ultramarina. Este conceito, no contexto dos embates entre a cristandade e o

Islamismo, unia-se ao de cruzada e legitimava a guerra dirigida contra os infiéis. Porém,

no caso americano, o ideal de cruzada não podia ser aplicado, pois, os nativos não

tinham conhecimento do Evangelho, logo, não podiam tê-lo renegado tornando-se

infiéis, anteriormente ao contato.99

O conceito de guerra justa foi utilizado para definir a

legitimidade do cativeiro indígena.

Existem diferenças entre as políticas indigenistas da Coroa Ibérica. De acordo

com Georg Thomas, isso decorre do fato de que, ao contrário do que ocorreu na

América Espanhola, a descoberta do Brasil não foi seguida de ocupação imediata.

Naquele momento os interesses comerciais portugueses estavam voltados para o

Oriente. Somente quando seu domínio neste espaço começou a declinar é que Portugal

volta seus olhos com mais atenção para a colônia americana.100

Porém, Portugal sabia

que, embora num primeiro momento não existissem muitos atrativos comerciais nas

novas terras, era necessário buscar um bom relacionamento com a população nativa,

tendo-a como aliada, principalmente, em decorrência da presença francesa na costa

brasileira.101

Dessa forma, em 1511, a Coroa apresenta seu primeiro decreto real sobre a

política indigenista, proibindo que os marinheiros levassem para a Europa indígenas que

subissem aos navios.102

Após o início da colonização efetiva do Brasil, a primeira lei sobre a liberdade

indígena protegia os índios aldeados, não permitindo que fossem escravizados, ao

mesmo tempo que fornecia justificativas jurídicas para os colonos guerrearem,

capturarem e escravizarem índios não aldeados, sob a alegação de que cometiam

antropofagia, por exemplo.103

O cativeiro indígena continuava ocorrendo por um lado,

por que era praticamente impossível à Coroa evitar a escravidão dos nativos, uma vez

que a pressão dos colonos por mão-de-obra crescia cada vez mais e o desenvolvimento

99 PIMENTEL, Maria do Rosário. “A expansão ultramarina e a lógica da guerra justa”. In: MENESES,

Avelino de Feitas, COSTA, João Paulo Oliveira e (coords.). O reino, as ilhas e o mar-oceano. Estudos em homenagem a Artur Teodoro de Matos. Porto Delgado/ Lisboa: Universidade dos Açores/ CHAM, 2

vols., 2007, p. 301 e 308-309. 100 THOMAS, op. cit, p. 28. 101 Ibid, p. 32. 102 Ibid, p. 30. 103 HANSEN, op. cit, p. 359

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da colônia dependia disso. Por outro lado, principalmente em Portugal, não se colocava

em questão a escravidão, somente a legalidade e legitimidade da posse dos escravos.104

Além disso, na hierarquia social da monarquia, os indígenas tinham “a liberdade de

integrar-se como membros subordinados, pois então a liberdade dos indivíduos e do

todo do reino é entendida, paradoxalmente, como subordinação hierárquica à cabeça

mandante, o rei”.105

No caso português, a Coroa buscava através de sua legislação disciplinar os

colonos no seu relacionamento com os índios, pois a garantia da posse e o

desenvolvimento econômico da colônia tinham que contar com a colaboração indígena.

Assim sendo,

“a guerra e a violência gerada pelos colonos deveria ser controlada, ao mesmo tempo que se

procederia à adesão física e mental do índio através dos princípios veiculados pelo

cristianismo. Há aqui uma necessidade real que a nova teoria da guerra sustenta plenamente

cruzando a violência com a benevolência no duplo propósito de cristianizar e civilizar”.106

A Metrópole apenas indicava as linhas mestras da política indigenista, ficando

a cargo dos governadores e das Câmaras a realização efetiva das leis. Essas instituições

possuiam autonomia e por vezes interpretavam de forma arbitrária a legislação. Sendo

assim, é preciso enquadrar a política indigenista da Coroa portuguesa dentro da política

local da colônia, campo em que era exercida a pressão dos colonos.107

104 Ibid, p. 359. THOMAS, op. cit, p. 36. 105 HANSEN, op. cit, p. 350. 106 PIMENTEL, op. cit, p.312. 107 THOMAS, op. cit, p. 7.

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Capítulo 2

O aprisionamento físico: o transporte de ameríndios para o Velho Mundo

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A posse da América ia além das terras e dos bens materiais aí encontrados,

incluía-se também no butim da conquista os próprios americanos. Dessa forma, as

viagens de ameríndios para a Europa podem ser entendidas como uma das formas

através das quais pode se efetuar a apropriação física e simbólica do “outro” americano

pelos europeus. Essa perspectiva parte da consideração de que nos conflitos entre

portugueses e holandeses no século XVII, o grupo que se considerava vitorioso no

confronto, violento ou não, exerce sua vitória através de diversas práticas de punição e

incorporação:

“o exercício da vitória se desdobra em diferentes práticas de punição dos grupos

derrotados, assim como em formas de incorporação de elementos desses grupos pelos

vencedores e que foram realizadas durante a expansão portuguesa, tenham sido elas

protagonizadas ou não por portugueses. Em outras palavras, verificam-se práticas da vitória

com diferentes significações materiais e simbólicas.”108

Utilizando-se dessa idéia, pode-se afirmar que, no contexto americano, tais

práticas foram realizadas tanto por europeus, de diversas origens, quanto pelos

indígenas com os quais entraram em contato. Podem ser tidas como práticas da vitória a

antropofagia, realizada por alguns grupos indígenas, como também, a catequese,

imposta aos índios pelos jesuítas. Trata-se da maneira, através da qual o grupo vencedor

em um conflito, que não precisa necessariamente envolver um choque violento, trata o

grupo vencido. No que toca ao objetivo específico deste trabalho as viagens também são

vistas como práticas estabelecidas pelos europeus que dispunham dos ameríndios para

diversas atividades, não somente em solo americano como também em solo europeu.

Nos diversos conflitos ocorridos desde o primeiro momento do encontro entre

Velho e Novo Mundo, participantes de ambos os lados eram feitos prisioneiros e esta

era a fonte principal dos indígenas levados para à Europa. Mas, alguns documentos

permitem sugerir, que os confrontos diretos não eram necessários para que o ritual da

vitória se consumasse.

Em 1514, um escritor anônimo que viajava com os portugueses Nuno e

Christovão de Haro que aportaram “na terra do Brasil, por falta de vitualhas”, escreveu

um panfleto intitulado A Nova Gazeta da Terra do Brasil. Neste documento o autor

108 DORÉ, Andréa Carla. “Charles Boxer, novas perguntas e os butins de guerra nos espaços portugueses

no século XVII”. In: VAINFAS, Ronaldo e MONTEIRO, Rodrigo B. (orgs.). Império de várias faces.

Relações de poder no mundo ibérico da Época Moderna. São Paulo: Alameda, 2009, p. 212.

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aponta que diversos indígenas subiam aos barcos e deixavam-se levar pelos

portugueses. Porém, percebe-se que os indígenas, embora embarcados de livre e

espontânea vontade, não são levados a Portugal como visitantes, pois foram negociados

pelos portugueses da mesma forma como o foi o Pau-Brasil.

“Assim tendes a gazeta das novas notícias. O navio está, sob a coberta, carregado de páu

brasil e na coberta está cheio de rapazes e raparigas comprados. Pouco custaram aos

portugueses, pois na maior parte foram dados por livre vontade, porque o povo de lá pensa

que seus filhos vão para a terra promettida”.109

Analisando o Regimento do Navio Bretoa, Thomas Georg aponta que a

tripulação estava proibida de levar indígenas que por vontade própria quisessem

embarcar, pois intranquilizavam as tribos, que percebendo que aqueles que iam em

busca da terra prometida não retornavam, sentiam que haviam sido enganadas. No

entanto, o comércio de escravos não ficava totalmente impedido, pois o Regimento

aponta que a aquisição de escravos dependia do consentimento do capitão e ordenava

que o escrivão do navio registrasse todos os escravos levados.110

Mas, dentre os indígenas que foram por vontade própria para a Europa, um

caso merece especial atenção.111

Sua história se desprende da massa de indígenas sem

nome levados para a Europa pois teve um registro e alguns desdobramentos

importantes. A viagem de Gonneville, realizada entre 1503 e 1505, alcançou o litoral

brasileiro onde hoje é o atual estado de santa Catarina e entrou em contato com os

índios carijós. Ao que tudo indica o contato foi muito pacífico conforme lê-se no relato:

“porque é costume daqueles que chegam às novas terras das Índias levarem delas à

Cristandade alguns índios, tanto se fez, com tal gentileza, que o dito chefe Arosca consentiu

que um de seus jovens, o qual se dava bem com os do navio, viesse à Cristandade, já que se

prometia ao pai e ao filho trazê-lo de volta dentro de vinte luas ao mais tardar; pois assim

eles contavam os meses.”112

109 A Nova Gazeta da Terra do Brasil, op. cit, p. 119. 110 THOMAS, op. cit, p. 35. 111 Entenda-se a expressão embarcou por "vontade própria" aqui como embarcou sem coerção física. Não

se pode medir até que ponto o embarque ocorreu por livre e espontânea vontade do indígena, como

veremos adiante. 112 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 24.

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Esse trecho nos dá uma indicação de que Gonneville, que é o autor do relato, e

talvez, os outros tripulantes do navio também, já haviam visto ou escutado sobre

indígenas levados para a Europa., pois isso é tratado como um "costume". É uma

possíbilidade que, se outras expedições francesas não haviam levado indígenas ainda

para a França, ou Gonneville não tivesse conhecimento disso, os portugueses faziam

parte da tripulação do navio, pudessem saber deste transporte de indígenas para

Portugal.113

De qualquer forma, fica claro que o embarque foi consentido pelo chefe do

grupo. Porém, foram levados dois indígenas: Essomericq, filho do chefe Arosca, e

Namoa. De acordo com Leyla Perrone-Moisés, com base em estudos antropológicos, a

etnia de Essomericq explicaria porque ele e seu pai estavam convencidos da

conveniência da viagem. Os grupos guaranis, ou guaranizados, como eram os carijós,

centravam sua cultura na busca da “terra sem mal” e assim a viagem era algo para o

qual estavam pré-dispostos.114

Esta característica nos alerta para o fato de que ambos os grupos tratados neste

trabalho, europeus e indígenas, devem ser pensados como heterogêneos. Pois, os

franceses fizeram uma segunda tentativa de levar mais indígenas para a Europa, quando

seguindo pela costa encontram alguns tupinambás. Ocorre uma escaramuça e dois

índios são aprisionados, porém, fogem.

No entanto, existem elementos substanciais que nos permitem colocá-los em

contraposição, sempre ponderando suas diferenças internas. Assim também quando

apresentados como vencedores ou vencidos, não se pretende colocar tais posições como

fixas, sem que tenham se alterado ao longo do tempo. Pelo contrário, e retomando

novamente as palavras de Doré, “o que se quer enfatizar é a alternância nessas

categorias e a forma como as práticas que envolvem a comemoração da vitória, a

punição dos que são vencidos ou a apropriação de elementos dos grupos subjugados se

sucedem”.115

No caso dos tupinambás fica claro que o embarque foi em decorrência de um

confronto. Os índios, vencidos, aprisionados, seriam levados á força, se não tivessem

obtido êxito na fuga. Mas, no caso de Essomericq, em que a viagem foi consentida, foi

uma vitória para quem? Dos franceses ansiosos por levar naturais da terra à Cristandade,

113 Gonneville é católico, então, não soaria estranho que se sentisse parte da mesma "Cristandade" dos

portugueses. 114 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 161. 115 DORÉ, op. cit, p. 201.

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ou dos índios? Estes foram convencidos pelos europeus de que aos que fossem com eles

“ensinariam a artilharia; o que eles desejavam intensamente, para poderem dominar seus

inimigos: como também a fazer espelhos, facas, machados e tudo o que viam e

admiravam dos cristãos; o que era prometer-lhes tanto como prometer a um cristão

ouro, prata e pedrarias, ou ensinar-lhe a pedra filosofal.”116

Estas razões, aliadas às

motivações fornecidas pela cultura guarani, indicam que algumas dessas viagens podem

mesmo ter sido motivadas pelos interesses indígenas despertados no encontro com os

europeus.

Porém, é preciso ter em conta quem produziu o documento em questão: a

Relação foi apresentada por Gonneville no retorno dos navios franceses a Rouen,

"conforme requerido pela gente do Rei".117

Assim os interesses indígenas pelas

maravilhas européias podem ser fruto da própria presunção européia de que possuíam

tudo aquilo de mais interessante e necessário à vida e, que era natural aos carijós, de

tudo desprovidos, que se interessassem por isso. Dessa forma, até mesmo o discurso que

traduz o desejo indígena pode se referir ao orgulho europeu que se expressava ante o

encontro com os americanos.

Eis o grande problema do historiador que gostaria de estudar os indígenas

americanos: a ausência de relatos produzidos por eles. Não é necessário retomar aqui a

discussão realizada sobre as implicações disto na historiografia, realizada na Introdução

deste trabalho, mas é preciso tratar da utilização da voz do Outro por esse discurso

europeu. Em Writing captivity in the Early Modern Atlantic, Lisa Voigt aponta que os

relatos de europeus cativos em outros continentes concediam a seus autores privilégios

e autoridade quando retornavam a sua terra natal. Isso ocorria em razão do desejo de

obter testemunhos oculares das novas terras para estender o domínio territorial e

comercial nestes locais.118

No entanto, quanto aos índios não existem relatos. Poucos

são os documentos que apresentam a voz do indígena e os que o fazem a apresentam de

forma filtrada. Porém, se não deixaram relatos, os indígenas eram os próprios relatos.

Seus corpos e sua língua eram a expressão da diferença cultural e do exotismo do Novo

Mundo.

116 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 24. 117 Relação, op. cit, p. 118 VOIGT, op.cit., p. 1.

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Isso pode ser observado em um outro documento que permite que nos

encontremos com esses indígenas na Europa, o famoso ensaio "Dos Canibais" de

Montaigne. Esse texto é importante pois nele os indígenas falam. Esse diálogo é travado

em Rouen, onde Montaigne encontra três indígenas americanos. Não se sabe de que

ponto da América vieram, nem quem os trouxe até Rouen. Mas, pode-se ao menos ter

uma idéia de quando o encontro ocorreu: “à época em que o rei Carlos IX lá estava”.

Na verdade, poderíamos questionar até mesmo a realização deste encontro

entre o filósofo e os indígenas, embora, Pierre Villey, estudioso da obra de Montaigne,

confirme que este encontrava-se realmente na corte, em Rouen, no momento

mencionado. Porém, a menção à nativos americanos em solo europeu, sugere a

ocorrência destas viagens e uma certa normalidade no acontecimento. Dessa forma, não

seria mesmo absurdo que Montaigne encontra-se ameríndios em terras normandas e

com o auxílio de algum marinheiro consegui-se conversar com os visitantes. Sobre o

consentimento dos indígenas na viagem para a Europa, existe uma pista. O autor afirma

que três indígenas “ignorando o quanto custará, um dia, a seu repouso e à sua felicidade

o conhecimento das corrupções de cá, que desse comércio nascerá sua ruína, a qual

suponho já avançar; bem miseráveis de se deixar encantar pelo desejo da novidade e

terem deixado a doçura de seu céu para virem ver o nosso, foram a Rouen”.119

A

maneira como fala, sugere que os indígenas fizeram uma escolha. Apesar da

ambiguidade da frase pode-se imaginar que caso os indigenas tivessem sido levados á

força para a Europa e Montaigne soubesse disso, dada a postura crítica que estabelece

no ensaio, manifestaria seu posicionamento. Mas é preciso considerar também que se o

objetivo do filósofo era estabelecer uma crítica à sua sociedade a partir da contraposição

com o Outro, é natural que enalteça o lugar onde esse outro vive.

À parte todas essas dúvidas, os personagens ameríndios de Montaigne

permitem que conheçamos sobre a crítica do autor a sociedade européia e não sobre eles

mesmos. Não nos dizem nada que o próprio filósofo não poderia ou não desejaria dizer.

São utilizados pelo discurso do autor para corroborar sua crítica. A voz do Outro

apresenta-se somente para confirmar tudo que o filósofo já havia dito, como na resposta

que dão ao rei sobre o que acharam de mais admirável na cidade:

119 MONTAIGNE, op. cit, p. 87.

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“Disseram que acharam, em primeiro lugar, muito estranho que tantos grandes homens,

barbados, fortes e armados, que estavam em volta do rei (é verossímel que falassem dos

suíços de sua guarda), submetessem-se a obedecer uma criança e não escolhessem, em vez

disso, um dentre eles para comandar. Em segundo lugar (eles possuem um modo tal de

dizer que chamam os homens „metades‟ uns dos outros), que haviam percebido haver entre

nós homens satisfeitos gozando de toda a espécie de comodidades, enquanto suas metades

mendigavam às suas portas, descarnados de fome e de pobreza, e acharam estranho que

essas metades tão necessitadas pudessem sofrer uma tal injustiça sem pegar os outros pelo

pescoço ou atear fogo a suas casas.”120

A história de Essomericq coloca em questão os interesses indígenas nestas

viagens. Na maioria dos documentos este interesse não é expresso, deixando implícita a

possibilidade de que tais indígenas foram tomados à força. No entanto, em outros

momentos o próprio interesse indígena foi gerado por um ato de violência, como fica

explícito no Diário de Colombo. Em 12 de novembro de 1492, Colombo decide “tomar

algunas personas” e levá-las à Espanha com o objetivo de que aprendessem o espanhol

para que quando voltassem pudessem ser “lenguas de los cristianos”.121

Até este

momento já haviam sido aprisionados alguns índios, e desta vez são trazidas sete

mulheres e três crianças. Posteriormente, o navegador escreve:

“Esta noche vino a bordo en una almadía el marido de una de estas mujeres y padre de tres

fijos, un macho y dos fembras, y dijo que yo le dejase venir con ellos, y a mí me aplogó

mucho, y quedan agora todos consolados con el que deben todos ser parientes, y él es ya

hombre de cuarenta y cinco años.”122

Analisando essa documentação podemos perceber uma certa recorrência

quanto às formas através das quais a posse sobre esses seres humanos se realizava: o

batismo, a troca das vestes nativas pelas européias e a aprendizagem das línguas dos

conquistadores.

A descoberta de novas terras como um presente concedido por Deus aos

cristãos implicava um batismo, ou seja, o cancelamento dos nomes indígenas e a

atribuição de novas identidades. Esta prática denominadora era bem comum entre os

europeus que aportavam na América, a começar por Colombo. A ilha na qual primeiro

120 Ibid, p. 88. 121 COLOMBO, op.cit, p. 59. 122 Ibid, p.60-61.

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desembarcou, e que afirma ser conhecida pelos índios como Guanahani, passou a

chamar-se San Salvador. Com este ato, o navegador deixava claro que não estava

batizando uma terra nunca antes nomeada, mas cancelando nomes existentes e fundando

o processo de conquista através de um batismo.123

Da mesma maneira, a renomeação

realizava-se com os indígenas aprisionados em escaramuças com os europeus, como é

possível perceber na História de la Conquista de la Nueva España, de Bernal Díaz de

Castillo. O autor não se preocupa em escrever os nomes originais de Júlian e Melchor,

os nativos aprisionados no conflito com os espanhóis no Yucatán e batizados.124

O próprio Essomericq não deixou de ser batizado. Durante a viagem à França,

ele e o outro carijó que o acompanhava na travessia do Atlântico adoeceram

gravemente, e nesta situação os demais embarcados no navio discutiram sobre o dever

de batizá-los ou não. Segundo a Relação, foi proposto que não batizassem os indígenas

pois estes não poderiam entender o sacramento que lhes era administrado. O

companheiro de Esssomericq faleceu e este acontecimento fez com que os franceses

chegassem à conclusão de que era melhor batizá-lo, pois antes receber o batismo sem

entendê-lo do que ser condenado eternamente em caso de morte.125

Neste caso se

questiona a percepção do indígena quanto ao sacramento que lhe é imposto, já na

História de Bernal Díaz não há sinal deste questionamento.

Tomada de posse e atribuição de uma nova identidade estavam juntas.126

Podemos considerar que o primeiro ato neste sentido pode ter ocorrido com a atribuição

da designação dada aos habitantes da terra: o nome “índios”. Inicialmente, um erro,

pois, como se sabe, Colombo acreditou ter chegado às Indias, acabou por tornar-se a

categoria definidora do habitante americano, sendo utilizada ainda atualmente. Tal

categoria é supra-étnica, não trazendo em si nenhum traço específico dos grupos que

abarca.127

O termo uniformizou os nativos e anulou a diversidade étnica do continente.

Colombo e os que com ele chegaram à Ilha Hispaniola, em 1492, não tinham noção do

alcance que teria o uso do termo, mesmo porque entraram em contato com um grupo

indígena somente, naquele primeiro momento. Não poderiam imaginar a diversidade

123 GREENBLATT, op. cit, p. 111. 124 CASTILLO, op. cit, p. 6. 125 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 90. 126 GREENBLATT, op. cit, p. 111 e 122. 127 BATALLA, Guillermo Bonfil. “El concepto de índio em America: uma categoria de La situacion

colonial”. Identidad y pluralismo cultural en America Latina. Editorial de La Universidad de Puerto Rico,

p. 30.

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que os aguardava continente adentro. A permanência do termo mesmo depois de outros

contatos e outras descobertas pode nos dizer muito sobre a homogeneização das

populações americanas.128

O batismo pode ser tomado como o primeiro passo da posse. Ele inclui um

processo que o segue: a cristianização. Esta, por sua vez, transcendia os limites do

religioso, pois portava consigo a própria civilização. Isto independia da fé do

conquistador, pois se para católicos os protestantes eram bárbaros e vice-versa, cada um

acreditava no potencial civilizatório de sua religião.

Logo após o batismo era comum que os nativos recebessem roupas à moda

européia. Um verniz de civilização cobria assim o indígena. Atribuía-se um poder de

transformação às roupas, como se estas pudessem realmente transformar a identidade

nativa, assim como muitas vezes se percebe que o batismo era tido como um ato que

sozinho convertia os batizados à nova fé. A atitude tomada pelo índio Melchor, um dos

indígenas aprisionados pelos espanhóis no Yucatán, apresenta um quadro do que

significavam as novas vestimentas para os que eram forçados a usá-las e o espanto

europeu quando estas eram negadas. Aproveitando-se de um descuido espanhol,

Melchor “foi-se com o povo de Tobasco e sucedeu que um dia antes deixou as roupas

espanholas que lhe tinham sido dadas suspensas no bosque das palmeiras".129

Não

estando mais entre os espanhóis, o índio podia retomar seus costumes.

Segundo Stephen Greenblatt, o batismo e a troca de roupas podem ser tomados

como parte de um movimento da ignorância para o conhecimento, ou seja, o

enquadramento da nova realidade dentro do universo de discurso europeu para que

pudesse ser compreendido. Os europeus buscavam com isso colocar a experiência sob o

controle do discurso. No entanto, “a representação dos nativos como deslocadas auto-

representações européias não conduz à identificação com o outro, mas a uma vontade

implacável de possuir”.130

Esse comportamento europeu também pode ser percebido com relação à

natureza do novo continente, à religião dos nativos e às tentativas iniciais de

128 Porém, é preciso ter em conta que na prática colonos e jesuítas faziam distinções entre os povos com

os quais conviviam. Os portugueses, por exemplo, faziam distinções entre tupis e tapuias, e esses termos

distinguiam claramente entre índios teoricamente pacíficos e outros mais belicosos. Porém, mesmo entre

os intratáveis tapuias, pode-se perceber na documentação que existiam grupos mais intratáveis que outros. 129 CASTILLO, op. cit, p. 74. 130 GREENBLATT, op. cit, p. 138.

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comunicação com eles. Nos diários de Colombo, os diálogos e as falas indígenas não

passam de suposições criadas a partir de gestos e a partir desses “diálogos”, que muitas

vezes, não passavam de rústicas trocas de sinais, o navegador chega a grandes

conclusões. Em um trecho do Diário da Primeira Viagem refere-se aos habitantes das

terras a que chegou:

“Ellos deben ser buenos servidores y de buen ingenio, que veo que muy presto dicen todo

lo queles decía, y creo que ligeramente se harían cristianos; que me pareció que ninguna

secta tenían. Yo, placiendo a Nuestro Señor, levaré de aquí al tiempo de mi partida seis a V.

A. para que deprendan fablar.”131

Obviamente, os índios sabiam falar, ainda que não fosse a língua de Colombo.

A primeira idéia foi a de fazer com que os nativos aprendessem a língua espanhola, e

não o contrário. Já no Diário de Colombo, e confirmado em documentos posteriores,

fica claro que o problema linguístico criado então não podia ser resolvido de outra

forma que não utilizando intérpretes. Assim, a aprendizagem das línguas européias

completava a transformação do indígena e a posse. O processo de aprendizagem

linguística demonstra de que forma os europeus se colocavam em relação aos indígenas.

Para os conquistadores era necessário que os indígenas aprendessem sua língua tanto

por uma questão utilitária, para serem usados como intérpretes na conquista, quanto por

uma questão civilizatória, aprender a língua civilizada. Embora possa ser notado nos

documentos que os exploradores se frutrassem com a dificuldade de comunicação,

geralmente, não há nenhuma tentativa na direção de aprender os idiomas nativos,

diferente do que ocorre com os missionários. Greenblatt explica esta contradição

afirmando que "aprender uma língua talvez seja um passo na direção do domínio, mas

estudar essa língua é pôr-se em situação de dependência, de submissão. Além disso, não

entender a fala indígena permite uma liberdade até certo ponto agradável de interpretar

os sinais do outro".132

Essas lacunas na interpretação poderiam ser interessantes para os

conquistadores mas não o eram para os missionários, por isso era necessário em um

primeiro momento se submeter, aprendendo as línguas nativas, para depois, como

implica o ethos cristão, transcender, ou nesse caso, dominar.

131 COLOMBO, op. cit., p. 33. 132 GREENBLATT, op. cit, p. 144. Grifo no original.

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Uma vez tomada a posse é preciso se perguntar qual a utilização dada a esses

seres humanos. Na América, sem os intérpretes a conquista teria sido impossível,

embora saibamos que os serviços prestados pelos indígenas foram além da simples

tradução. Uma vez transportados para a Europa os indígenas serviram a outros fins, que

podemos classificar em duas categorias: o serviço e a exibição. Sem que um excluísse o

outro, esses foram os destinos mais frequentes desses nativos, ainda que seja preciso

afirmar que existem algumas trajetórias individuais que complexificam esse panorama.

A exibição de maravilhas e curiosidades de lugares longínquos não estava

relacionada somente á indígenas. Como já apresentado, a Europa quinhentista e

seiscentista era fascinada por monstros e maravilhas, como os que são apresentados no

livro de Ambroise Pairé.133

Na segunda metade do século XVI, a corte de Henrique II

recebeu a família Gonsalvus, que com exceção da mãe, sofria de uma doença que fazia

crescer pelos por todo o corpo. A filha do casal, Tognina, foi exibida na corte e aí

“„desaprendeu seus costumes selvagens e aprendeu as belas-artes e o latim‟”.134

Os

Gonsalvus eram solicitados como espécimes por diversos cientistas e artistas. Tognina

foi exibida em diversas cortes e para vários tipos de públicos, assim como de ter

ocorrido há muitos indígenas levados para a Europa: “anfiteatros de anatomistas,

apresentada em reuniões de gente sofisticada, convidada a palácios e mansões de

veraneio”.135

A doença da família Gonsalvus os tornava um exemplo de como a natureza

maligna invadia a civilização. Sua diferença era visível nos pêlos que cobriam todo seu

corpo e faziam com que se assemelhassem a mistura de um humano com um animal. Os

indígenas não causavam o mesmo espanto pela presença de pêlos no corpo. Aliás, um

dos detalhes da descrição da célebre carta escrita por Caminha menciona esse aspecto.

O que tornava os indígenas monstros ou curiosidades a serem exibidas não eram

diferenças físicas mas sim culturais. Além, é claro, do fato de serem habitantes de terras

longínquas. Visto como homem selvagem, a imagem construída pelos europeus sobre o

indígena estava relacionada com as diferentes concepções acerca da natureza: ora

133 Nascido em Bourg-Hersant, na França do século XVI, Ambroise Pairé, destacou-se por diversas contribuições a medicina. Em seu livro “On Monsters and Marvels”, uma reunião de observações que fez

ao longo de sua vida, o autor levanta explicações para a existência dos monstros. Nesse período, a idéia

do maravilhoso divino, caminha lado a lado com a figura do monstruoso. 134 MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das

Letras, 2001. 135 Ibid, p. 119.

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perfeição, ora ameaça e desregramento. Assim “os selvagens, por vezes, eram sábios,

pois se pautavam nas leis naturais, ou eram animalescos por desconhecerem as leis

divinas”.136

Dessa forma, assim como Tognina Gonsalvus, eles também são vistos como

“avisos de outro mundo, exemplares do que é perigosamente estrangeiro, maravilhas de

regiões sujeitas às leis caprichosas da natureza, (...) irrupções que servem para nos

lembrar, na condição de habitantes de uma sociedade, daquilo que resolvemos

abandonar para sobrevivermos”.137

Os europeus acreditavam que ao deixar alguns conterrâneos em terras

americanas, estes não se deixariam assimilar pelos povos nativos. Porém, muitas vezes

esta assimilação ocorreu para espanto europeu. Bernal Díaz nos permite encontrar tais

personagens. Segundo ele, Cortéz soube da existência de dois espanhóis, Jerônimo de

Aguillar e Gonçalo Guerrero, que haviam naufragado na península do Yucatán e aí

viviam como escravos. Pensando em obter intérpretes junto aos nativos da região

enviou-lhes uma carta anexando um resgate, na forma de contas de vidro. Aguillar

aceitou a libertação, Guerrero no entanto optou por ficar entre os indígenas, afirmando:

“Irmão Aguillar, sou casado e tenho três filhos. Em tempos de guerra, os índios me

consideram cacique e capitão. Vai com Deus, mas eu, com este rosto tatuado e estas orelhas

furadas, que diriam os espanhóis vendo-me em tal estado? E olha como são bonitos os

meus filhos...”138

Guerrero representa para os espanhóis o exemplo do fracasso completo da

obstrução, ou seja, a barreira colocada pelos europeus contra culturas estranhas,

exemplificada principalmente pela substituição dos símbolos nativos pelos espanhóis.139

Assim como ocorreu à Aguillar e Guerrero, ao longo do século XVI outros europeus

passaram por este processo de “descivilização”. Pode-se apresentar como um primeiro

exemplo a famosa história do português Diogo Alvares Caramuru que tendo naufragado

na costa nordeste do Brasil foi poupado e assimilado por um grupo indígena. Casou-se

136 RAMINELLI, op. cit, p.90. 137 Ibid, p. 130-131. 138 CASTILLO, op. cit, p. 45. 139 GREENBLATT, op. cit, p. 182.

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com a filha do cacique e passou posteriormente a ocupar uma posição de liderança.140

Sua esposa, Paraguaçu também encarna um exemplo famoso, fazendo o caminho

inverso de seu esposo. Em 1547, foi apresentada à corte francesa.

Segundo Perrone-Moisés, um número grande de franceses se “selvagizavam”

no Brasil voluntariamente. Suspeita-se mesmo de que já embarcavam com o intento de

“perderem-se na natureza” deixando para trás o horror das guerras religiosas. Essa

predisposição para os chefes das expedições francesas foi o maior problema enfrentado

pela França Antártica, pois os franceses que eram enviados para cativar os índios,

“ficavam espontaneamente na selva, fundavam família com índias e, para horror de seus

chefes, e para execração dos missionários portugueses, às vezes eram reencontrados,

nus, pintados e antropófagos”.141

No entanto, esses europeus nus e pintados puderam ser vistos na própria

Europa, juntamente com os cinquenta tupinambás levados a Rouen, por ocasião da

entrada de Henrique II na cidade, em 1550.142

Com exceção da hospedaria na qual

foram alojados, nada mais se sabe sobre o destino desses índios. Não se sabe também

como chegaram à Rouen, quem os trouxe, em que condições, se o embarque foi

consentido ou não e se houve retorno ao Brasil.

Os indígenas foram, literalmente, “importados do país” para exibição.

Juntamente com os nativos foram trazidos diversos tipos de animais e também foram

dispostas no cenário diversas árvores imitando as existentes no Brasil. Buscou-se deixar

o cenário e a encenação o mais próximos da realidade e por fim o autor afirma que

vários franceses que já haviam estado no Brasil “ atestaram de boa fé que o efeito da

figuração procedente era o simulacro certo da verdade”.143

A imagem primitiva da América e do índio demonstram que “o próprio mundo

europeu define-se com base em diferenças relativamente so mundo „bárbaro‟ e vai-se

legitimando pela delimitação do outro”. No espetáculo encenado na cidade normanda,

140 TREECE, David. Exilados, aliados, rebeldes. O movimento indianista, a política indigenista e o

Estado-Nação imperial. São Paulo: Edusp/ Nankin editorial, 2008, p. 88. 141 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 169. 142 Note-se que Tognina Gonsalvus e sua família também foram exibidos na corte de Henrique II. E

Rouen era uma cidade na qual devia ser algo considerado normal a chegada de indígenas, pois

anteriormente aos indígenas do espetáculo de Rouen, já havia aportado ali Essomericq e os indígenas do

ensaio de Montaigne. 143

MASSELIN, Robert e GORD, Jean du, op.cit., p. 22.

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europeus e indígenas representam a vida dos selvagens e ensaiam a oposição

fundamental entre campo e civilização e barbárie. Segundo Briesemeister,

“nesta projeção de imagens vivas sobre um cenário ao ar livre não só dão curso solto à

fantasia, mas aqui presenta-se também a ocasião carnavalesca que permite experimentar

sem vergonha nem castigo, com desenvoltura e ao natural, tudo aquilo que os primeiros

relatos sobre o país tão diferente e remoto tinham vituperado como moralmente chocante e

ofensivo das convenções sociais e tabus morais. No jogo imitativo verossímil suspendem-se

por um breve lapso do tempo as próprias normas e mecanismos de controlo.”144

Rouen não foi um caso isolado e original. Anteriormente, eventos semelhantes

haviam ocorrido em Lião (1548), Troyes e Paris (1549) e integravam um contexto dos

rituais políticos franceses.145

Essa tradição política estava ligada à origem da realeza

francesa, uma monarquia sucessória não hereditária. Os rituais legitimavam o poder

político, mantendo a ordem política. No início do século XIV, sob a Dinastia Valois,

realizou-se a primeira entrada do rei em uma cidade importante do reino marcada por

uma cerimônia. A partir do século XV, as entradas passaram a ser acompanhadas por

peças, semelhantes a ocorrida em Rouen. Nessas cerimônias, os discursos dos líderes

municipais estabeleciam a submissão de uma determinada cidade à Coroa, pedindo a

confirmação das liberdades municipais e a preservação dos direitos.146

A resposta

popular à entrada do Rei era de alegria, o que indicava o assentimento do povo ao novo

monarca.147

Porém, é preciso, também, considerar as especificidades da cidade de

Rouen para entender o espetáculo ali realizado e entender a presença indígena ali. O

espetáculo também era uma forma de propaganda. Não só Rouen, mas outras cidades

normandas como Le Havre, Harfleur, Honfleur e Dieppe, em razão do comércio de pau-

brasil, alcançaram uma prosperidade econômica relevante. Porém, com a proibição

portuguesa de que barcos franceses invadissem suas águas demarcadas pelo Tratado de

Tordesilhas, era preciso convencer o rei francês da importância do comércio realizado

pelos normandos. O teatro, no qual figuravam os tupinambás, aliados franceses na

144 BRIESEMEISTER, op. cit, p. 153. 145 Ibid, p. 146. 146 SEED, op. cit, p. 74-75. 147 Ibid, p. 83.

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América, carregando pau-brasil, era uma maneira de “demonstrar ao rei o alcance vital

dos negócios ultramarinos com um enorme dispêndio propagandístico”.148

Não podemos compartilhar o otimismo de Perrone-Moisés, quando afirma que

tornou-se um costume na França não só a exibição de indígenas em espetáculos como o

de Rouen, mas também o uso de indígenas como valetes nas casas. Porém, existem

evidências para afirmar que havia uma recorrência nos embarques de nativos

americanos para a Europa, não só entre franceses, mas também entre portugueses e

espanhóis. Nas cartas-forais dadas pela Coroa Portuguesa aos capitães donatários era

estabelecido um limite para a exportação de nativos. Segundo o documento, o capitão

tem direito a “resgatar escravos em número indeterminado, podendo enviar a cada ano

39 para Lisboa (e não para outra parte) e dispor deles livremente, sem pagar imposto

algum; e além daqueles quanto mais houver para marinheiros e grumetes de seus

navios”.149

No caso de Colombo, porém, não foi necessária nenhuma ordem ou

regulamentação da Coroa para que o navegador se sentisse autorizado a levar indígenas

para a Espanha. As capturas foram motivadas principalmente pela busca de intérpretes,

comportamento que se tornou rotineiro nas expedições espanholas que se seguiram.

Porém, mesmo antes de inicirem a travessia do Atlântico os nativos são utilizados

prestando informações e como guias em terra.

Embora a Coroa espanhola tenha se colocado a favor da proteção dos indígenas

desde o início, o difícil equilíbrio entre seus interesses e os dos colonizadores, ansiosos

por fazer fortuna, favoreceu a escravidão e o extermínio indígenas, como denunciou Las

Casas.150

Como vimos no capítulo anterior, a descoberta da América gerou um intenso

debate visando entender o “outro” ali descoberto e qual postura a ser tomada diante

dele. No entanto, é preciso frisar que a apropriação não se concretizava exclusivamente

através da escravização, ou pelo menos, não somente. Os conquistadores sentiram-se

imbuídos da missão de transformar o “outro” e o mundo em que vivia. Essa

transformação se efetuou de diversas formas, desde a destruição de impérios e seu ajuste

148 BRIESEMEISTER, op. cit, p. 156-157. 149 Carta – foral. In: CASTRO, Therezinha de. História Documental do Brasil. Rio de Janeiro: Record,

1968, p. 47. Affonso Arinos de Mello Franco se refere as cartas-forais, e aponta uma quantidade menor de

indígenas a serem levados. No entanto, não é possível saber se o autor se refere a essa carta aqui utilizada

especificamente (FRANCO, op. cit, p. 36). 150 O envio de escravos para a Europa iniciado por Colombo foi reprimido pelos reis católicos até que

teólogos e juristas provassem a liceidade moral da escravidão.

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às necessidades européias, até a catequização.151

Nesse sentido, os embarques dos

nativos americanos para a Europa são entendidos aqui como demonstrativos desse

processo.

Mesmo diante do caso de um índio como Essomericq, que embarcou por

vontade própria, é necessário ponderar que seu interesse não anula o interesse francês.

Batizado no navio, recebeu o nome do capitão Gonneville e ao que tudo indica passou a

ser tratado como um filho. Posteriormente, ele se casou e constituiu uma família.

Essomericq atravessou a fronteira que separava seu grupo dos europeus, passando a

viver como um cristão civilizado. Porém algumas questões são suscitadas por essa

história. Em primeiro lugar, Essomericq deveria retornar em Vinte Luas, e não o fez.

Segundo a pesquisa de Perrone-Moisés, ele nunca mais pisou em terras brasileiras.

Porque não houve o retorno? Teria sido porque Essomericq não quis, ou não teve

condições? E Gonneville, que havia feito a promessa tanto ao pai quanto ao filho,

porque não a cumpriu? Os documentos apresentados aqui não permitem responder a

essas questões, mas elas não deixam de ser oportunas para o alcance dos objetivos deste

trabalho. Como já apontamos, uma das razões da viagem de Essomericq é localizada

por Perrone-Moisés em questões culturais. De acordo com a autora, “os carijós tinham

uma cultura centrada na busca da „terra sem mal‟, que implicava viagem e

perda/destruição de sua sociedade real, a qual correspondia à „terra com mal‟. Os

guaranis situavam a „terra sem mal‟ ora a leste, para além das montanhas, ora a oeste,

para além mar”.152

Porém, Arosca, pai de Essomericq permitiu a viagem “já que se

prometia (...) trazê-lo de volta dentro de vinte luas ao mais tardar”, ou seja, o retorno era

a condição que viabilizava a viagem.153

151 De acordo com Angel Rama a consciência racionalizadora dos espanhóis pretendia não somente

organizar os homens dentro do espaço, mas também moldá-los com destino a um futuro em obediência as

exigências colonizadoras. Em relação à construção das cidades no Novo Mundo, o autor explica que as novas terras abriam a possibilidade de se iniciar uma empresa que não era uma mera transposição do

passado e sim a realização de um novo período. Aqui poderiam estabelecer a ordem que não era possível

nas cidades da Metrópole (RAMA, Angel. “A cidade ordenada”. In: _____. A cidade das letras. Rio de

Janeiro: Brasiliense, 1985). 152 PERRONE-MOISÉS, op. cit, p. 64. 153 Ibid, p. 65.

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CONCLUSÃO

Como este trabalho visou mostrar os embarques de ameríndios para a Europa

são evidências de que a posse da América pelos europeus não se restringiu aos

territórios, abarcando também os grupos humanos. Em um contexto maior, essas

transferências relacionam-se com a discussão sobre as maneiras pelas quais os europeus

apossaram-se do Novo Mundo, através de rituais de posse e de suas formas de

representação, como a escrita e a imagem.

Neste trabalho, esses deslocamentos foram entendidos como práticas através

das quais os europeus expressaram sua dominação sobre os nativos. Apesar da

heterogeneidade das fontes foi possível separá-las em dois grupos que nos permitem

observar aspectos diferentes dos embarques indígenas para o Velho Mundo. Os relatos

que descrevem viagens ao continente americano e sua conquista permitiram observar

como se davam a captura e o embarque dos indígenas e sua incorporação, através do

batismo, da troca das roupas nativas ou a imposição de seu uso e, por fim, a

aprendizagem das línguas européias. Outras fontes mostram os índios em solo europeu e

permitiram perceber sua utilização, principalmente para exibições, como, por exemplo,

a Suntuosa entrada (1552), edição do opúsculo anônimo que descreve o teatro encenado

por indígenas em Rouen, França, em 1550.

A exposição dos indígenas foi cotejada com a de outros tipos considerados

como monstruosos ou exóticos nas cortes européias, o que possibilitou uma visão

hipotética da forma como os indígenas eram observados e exibidos na Europa. Além

disso, esse segundo tipo de documentação possibilitou pensar a condição marginal dos

ameríndios embarcados para a Europa. À margem geográfica do mundo e da cultura

considerada civilizada, suas vozes foram utilizados para a elaboração de um discurso

europeu do que era a América. Este discurso teve implicações em solo americano, como

nas políticas indigenistas luso-espanholas, e, europeu, na crítica à civilização e a

colonização. O aprisionamento dos indígenas no plano físico foi acompanhado por um

aprisionamento no plano representacional, ações que se alimentavam mutuamente.

Não se pretendeu aqui escrever uma história, na qual os indígenas americanos

se submeteram sem reação, assistindo passivos a todas as ações européias em seu meio.

A história do índio carijó Essomericq nos leva a refletir que, fossem suas motivações as

religiosas, ou fomentadas pelo interesse em aprender coisas úteis a seu povo, ele usou a

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viagem a seu favor. No entanto, isso não anula o fato de que aqueles que o levaram

também fizeram o mesmo e como situações semelhantes a de Essomericq foram pouco

documentadas, ou poucos foram os vestígios que nos sobraram, pode-se acreditar que

essas travessias atlânticas indígenas foram muito mais uma expressão das vontades

européias de possuir.

Por fim, é preciso ressaltar que esta pesquisa visa uma continuidade, pois

existem outros documentos que apresentam estas transferências indígenas a serem

explorados e outras questões a serem respondidas. Porém, neste primeiro momento, este

trabalho pretendeu dar alguma dimensão, ainda que mínima, a este tema ainda pouco

explorado, porém, recorrente na documentação.

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