lestringant, frank. “o brasil de montaigne”

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O Brasil de Montaigne Frank Lestringant Universidde de Paris IV – Sorbonne RESUMO: Este artigo propõe uma nova leitura dos célebres ensaios dedi- cados por Montaigne à América e a seus povos, inicialmente à luz da forma retórica da declamação, neles adotada. A comparação entre os Ensaios “ame- ricanos” permite ainda evidenciar o lugar privilegiado do Brasil, e de seus Canibais, na reflexão de Montaigne acerca do Novo Mundo, e a composi- ção de uma imagem de todos os seus povos como ao mesmo tempo confor- mada ao modelo edênico dos Tupinambá e elevada à dignidade dos grandes homens da Antiguidade – “tupinambizada” e “romanizada”. PALAVRAS-CHAVE: Montaigne, ameríndios, declamação, primitivismo, Tupinambá, Bom Selvagem, relativismo cultural, filosofia da história O mundo em movimento Poderia ser um paradoxo; não é. Para nós, hoje, a data de 1492 repre- senta o limiar dos tempos modernos, a alvorada de uma época de mu- tações e progressos em todos os campos – tecnológico, econômico, político, espiritual e artístico. Mas nada disso toca o pensamento de Montaigne. Já que os antigos ignoravam essa metade do mundo que igualmente os ignorava do outro lado do oceano, pode-se pensar que essa descoberta não é nada, comparada ao que permanece escondido e que está por descobrir. “Temo, escreve Montaigne, que tenhamos os

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  • O Brasil de Montaigne

    Frank Lestringant

    Universidde de Paris IV Sorbonne

    RESUMO: Este artigo prope uma nova leitura dos clebres ensaios dedi-cados por Montaigne Amrica e a seus povos, inicialmente luz da formaretrica da declamao, neles adotada. A comparao entre os Ensaios ame-ricanos permite ainda evidenciar o lugar privilegiado do Brasil, e de seusCanibais, na reflexo de Montaigne acerca do Novo Mundo, e a composi-o de uma imagem de todos os seus povos como ao mesmo tempo confor-mada ao modelo ednico dos Tupinamb e elevada dignidade dos grandeshomens da Antiguidade tupinambizada e romanizada.

    PALAVRAS-CHAVE: Montaigne, amerndios, declamao, primitivismo,Tupinamb, Bom Selvagem, relativismo cultural, filosofia da histria

    O mundo em movimento

    Poderia ser um paradoxo; no . Para ns, hoje, a data de 1492 repre-senta o limiar dos tempos modernos, a alvorada de uma poca de mu-taes e progressos em todos os campos tecnolgico, econmico,poltico, espiritual e artstico. Mas nada disso toca o pensamento deMontaigne. J que os antigos ignoravam essa metade do mundo queigualmente os ignorava do outro lado do oceano, pode-se pensar queessa descoberta no nada, comparada ao que permanece escondido eque est por descobrir. Temo, escreve Montaigne, que tenhamos os

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    olhos maiores do que a barriga, e mais curiosidade do que capacida-de (Montaigne, 1965, I, 31, p. 203). E parafraseando o Eclesiastes:Abarcamos tudo, mas s pegamos vento. Essa constatao desiludida,formulada em 1580, no captulo Dos Canibais, ter eco preciso oitoanos mais tarde, no captulo Dos coches: Nosso mundo acaba de en-contrar um outro mundo (e que nos indaga se o ltimo de seus irmos,j que os Demnios, as Sibilas e ns o ignorvamos at o momento?)(id., III, 6, p. 908). Aqui o importante o parntese. Mesmo vozes ins-piradas, como as dos demnios e as das sibilas, nada disseram do NovoMundo. O que pensar, ento, das de simples mortais? Que importnciadar opinio corrente? Passada a surpresa da descoberta, instala-se advida de que essa seja realmente a ltima, e que contribua de mododecisivo para o conhecimento que temos do mundo e de ns mesmos.

    A imagem do mundo em movimento expressa perfeitamente o esta-do de esprito de Montaigne diante das profundas transformaes desua poca. A imagem da terra jamais havia exibido tal instabilidade.Por culpa, em primeiro lugar, das grandes navegaes, que estilhaaramo mundo fechado da Idade Mdia. J no h mais um nico continen-te, envolvendo o Mediterrneo central, tero confortvel onde seabrigavam as certezas dos antigos, mas uma poeira de ilhotas, arquip-lagos, lascas de terra, que vogam deriva num oceano desmesuradamen-te ampliado.

    A figurao mais precisa da descoberta da Amrica e das transforma-es que provocou talvez seja a pgina do captulo Dos Canibais emque Montaigne fala de sua Dordonha e da invaso do Mdoc pelasdunas. Aparentemente, trata-se de tudo menos do Novo Mundo. Mas a que a topografia mostra sua pertinncia. Pela extrema ateno dadaao detalhe local, pela agudeza de um olhar voltado para a paisagem pr-xima e concentrado nela, Montaigne pode compreender o que se passanuma escala totalmente diversa, em terras longnquas. O Rio Dordonha

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    roendo suas margens, o Mdoc afogado na areia, esses fenmenos fami-liares, contanto que sejam considerados com a inteligncia necessriae sem perder, evidentemente, o senso de proporo, informam mais doque as longas viagens acerca do sesmo ocorrido a milhares de lguas,quando da conquista da Amrica pelos espanhis.

    apenas nessa escala aproximada que se pode apreender um objeto.No consigo fixar meu objeto, escreve Montaigne algures: Ele andaincerto e cambaleante, naturalmente brio. Tomo-o neste ponto, como, no instante em que me distraio com ele (id., III, 2, p. 805). Ao mundoem movimento do sculo XVI corresponde o movimento incessante dainvestigao, saltando de uma singularidade para outra, de um momentopara outro. A coincidncia entre os dois movimentos sempre fugidia.Reduz-se ao instante. A apreenso transitria, a fixao, momentnea.O percurso dos Ensaios se assemelha a uma navegao alinhando ancora-gens provisrias, seguindo rotas sinuosas e quase sempre imprevisveis.

    Montaigne est sempre pronto a recorrer a lugares retricos, quenunca so nele mais do que balizas transitrias, flutuantes, abandona-das quase que imediatamente aps terem sido consideradas. Em vez deterem por funo reduzir o desconhecido ao conhecido e o escandalosoao familiar, mitos como os da Atlntida, da idade de ouro, da repblicaideal ou do filsofo nu, evocados em Dos Canibais, servem apenas,finalmente, para provar o carter irredutvel de uma alteridade inditae, a bem dizer, impossvel de apreender. Todos contm uma poro li-mitada de verdade, e uma vasta poro de mentira. Todos so teis parapensar o impensvel. Mas nunca passam de aproximaes, que precisocorrigir aps terem sido expressas e que, de todo modo, se contradizeme se anulam quando postas em seqncia, como Montaigne se comprazem fazer. Os topoi valem, assim, pelo que so, fices engenhosas quepermitem representar o real, ou melhor, imagin-lo, por aproximaessucessivas. Logo esses pontos de apoio se tornam obstculos para um

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    pensamento em movimento. Como um navio carregado por uma fortederiva, eis que o texto arrasta sua ncora ou rompe sua corrente.

    A experincia brasileira de Montaigne

    Para quem o l de modo superficial,1 Montaigne parece pender cons-tantemente para o devaneio primitivista.2 Os Canibais de que nos falaMontaigne no caso, os Tupinamb do Rio de Janeiro, cujos ferozesfeitos haviam sido divulgados por Thevet e depois Lry alguns anos antes ignoram todas as invenes e, portanto, todos os males que caracteri-zam nossa sociedade. Como tantos outros antes dele, poetas e viajantes,de Ovdio a Ronsard e de Marco Polo a Cristvo Colombo, e comoShakespeare, mais tarde, que nele se inspirar em A tempestade, pela vozdo velho Gonzalo, Montaigne expe a srie privativa da idade de ouro:

    Trata-se de uma nao, diria eu a Plato, na qual no existe nenhuma es-

    pcie de comrcio; nenhum conhecimento das letras; nenhuma cincia dos

    nmeros; nenhum magistrado ou superioridade poltica; nenhuma vas-

    salagem, riqueza ou pobreza; nenhum contrato, nenhuma sucesso, ne-

    nhuma partilha; nenhuma ocupao que no seja ociosa; nenhuma consi-

    derao do parentesco, a no ser o de todos; nenhuma roupa; nenhuma

    agricultura; nenhum metal; nenhum vinho ou po. As prprias palavras

    que significam mentira, traio, dissimulao, avareza, inveja, maledicn-

    cia ou perdo lhes so desconhecidas. (Montaigne, I, 31, p. 206)

    E eis os Canibais elevados categoria de tipo ideal, assemelhadosa todas as pinturas com que a poesia aformoseou a idade de ouro.Nada de muito novo nessa litania. Mas Montaigne no se deixa enganarpelo lugar-comum. Sabe muito bem que, na verdade, esses ndios prati-

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    cam a agricultura, fiam e tecem algodo, praticam escambo, possuemum sistema de parentesco extremamente complexo etc. De resto, naseqncia do captulo, ele no fica preso negao inicial que faz doselvagem, o no-civilizado absoluto. Ainda que, para a decepo de so-nhadores e poetas, ele reconstrua a figura positiva do Brasileiro, convo-cando todas as circunstncias materiais que faro com que ele apareacorporificado na trama do ensaio: sua rede e suas armas, sua comida esua bebida feita de uma certa raiz e da cor de nossos vinhos claretes,seu basto de ritmo, e tambm sua dana, seus gestos e posturas, suamsica, e uma poesia lrica digna das graas anacrenticas.

    Ou seja, o lugar-comum primitivista no passava de mera etapa noraciocnio, assim como a referncia repblica ideal de Licurgo e Plato.A frmula negativa representa o momento da tbula rasa, a partir doqual se torna possvel a reconstruo antropolgica. Pois Montaigne es-tabelece um quadro de referncia apenas para extrapol-lo e escapar dele.A deriva supe um ponto de apoio inicial. Se quisermos negar as idiaspreconcebidas, preciso comear por retom-las, como lembrana ecomo baliza.

    O fato de Montaigne listar lugares-comuns, para melhor afastar de-les em seguida seu prprio pensamento, no deve levar a concluir que setrata de puro gosto pela destruio de falsas evidncias pela descons-truo, diriam hoje em dia. Nesses deslocamentos e nessa viagem cont-nua do pensamento existe, sim, a busca de uma terra firme do sentido.At ento, a inteligncia se move em solo instvel, terra movedia oumar mvel.

    Ao faz-lo, Montaigne no volta as costas para o real. O Novo Mun-do, nele, no nem fico nem mera alegoria. Pois existe, de fato, umaexperincia brasileira de Montaigne, indireta, mas ainda assim experin-cia, que passa pelos cinco sentidos. Montaigne tem a experincia doBrasil, de certo modo, por meio de testemunhos e objetos.

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    No terceiro andar da torre redonda onde costumava ficar, sentado editando enquanto controlava com o canto do olho a criadagem, sua li-vraria, isto , sua biblioteca, abria-se em crculo a todos os horizontes.Ao sul, estava a Espanha, a leste, a Itlia, ao norte, a Frana, pas peri-goso, sempre agitado por guerras civis, e a oeste, Bordeaux e o oceano.Foi nesse refgio, que era ao mesmo tempo um observatrio, que eleleu os relatos do Brasil feitos pelos viajantes franceses Andr Thevet eJean de Lry, e tambm os cronistas espanhis Francisco Lopez de Go-mara e Gonzalo Fernandes de Oviedo, e, sobretudo, a Brevssima rela-o da destruio das ndias, do dominicano Bartolom de las Casas,requisitrio inflamado contra os crimes da Conquista e profeciaapocalptica da destruio da Espanha. boa distncia do Novo Mun-do, mas de frente para ele, por assim dizer, Montaigne ocupava o melhorposto de observao possvel, com o distanciamento necessrio em rela-o ao objeto, tanto em termos cronolgicos quanto espaciais. Menosde um sculo o separava de Colombo, meio-sculo de Cortez e Pizarro.Apenas um oceano e trs meses de travessia se interpunham entre ele e acosta do Brasil.

    Afora isso, alm dos livros, havia outras ligaes entre as duas mar-gens do Atlntico. Um dos criados do castelo de Montaigne tinha esta-do no Brasil na juventude, uns dez ou doze anos entre os Tupinamb,na poca em que Villegagnon fundava, na entrada da Baa de Guana-bara, uma efmera Frana Antrtica. Montaigne costumava interro-gar esse homem simples e grosseiro, cuja ausncia de preconceitos otornava apto a fornecer [um] testemunho verdadeiro. Para corroborarseus dizeres, o gabinete do castelo de Montaigne guardava uma coleoinvejvel de americana: ao lado de redes e fios de algodo, havia ali espa-das-bordunas de ponta espalmada e afiada e pulseiras de madeira comque eles cobrem os pulsos em combate. E bastes de ritmo, caniosocos com que os danarinos batiam no cho para marcar a cadncia, os

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    quais Montaigne o primeiro a descrever com certa preciso, sugerindoque funcionavam como ressoadores.

    Essa realidade longnqua, tornada presente em traos e fragmen-tos, realidade sinedquica depositada entre as paredes de Saint-Michelde Montaigne, entra em jogo em Dos Canibais com a retrica dadeclamao.

    A declamao dos Canibais

    A declamao o espao indefinido em que o pensamento pode darlivre curso a si mesmo, e Montaigne adota a labilidade, a liberdade detom e de movimento da retrica da declamao. Termo ao mesmo tem-po mais amplo e mais tcnico do que paradoxo (ver Dandrey, 1997,pp. 137-73),3 declamao designa o exerccio de desenvolvimentooratrio acerca de um tema dado que os retores recomendavam para aformao ou para a prtica do orador. O real irreal, esse o objetopsicolgico, judicirio e retrico do declamador (Quignard, 1990, cap.III, p. 15). Na declamao, as duas noes essenciais, interligadas, soa de exerccio e a de fico (Chomarat, 1981, II, p. 935). A declamaose define por sua completa liberdade, o que faz dela o instrumento pri-vilegiado para uma reflexo moral sem preconceitos. Seu ponto de vista mvel, a identidade do locutor, sempre fugaz.

    Por razes ligadas instabilidade do perodo, s profundas transfor-maes que o conturbam e enorme resistncia que enfrentam as novasidias, o Renascimento fez da declamao um de seus modos de expres-so favoritos. A declamao irriga toda a literatura do sculo XVI, doElogio da loucura de Erasmo aos Ensaios de Montaigne. Thomas More,na Utopia, escreveu uma declamao com suporte geogrfico. A obra deFranois Rabelais marcada por declamaes: o elogio das dvidas por

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    Panurgo, o hino erva chamada Pantagrulion, os elogios de senhorGaster, primeiro mestre em artes do mundo. tienne de la Botie, oamigo falecido de Montaigne, comps, no Discurso da servido volunt-ria, uma declamao oratria febril, de lgica implacvel (Lafond, 1984,p. 736).4 Vrios captulos e fragmentos de captulos dos Ensaios so de-clamaes (Tournon, 1983, pp. 203-28), entre os quais podem ser men-cionados o elogio da gravela, em Da experincia (Montaigne, 1965,III, 13), e o caso mais picante do arrazoado em favor do membro ind-cil, em Da fora da imaginao (id., I, 21). Mas o melhor exemplode declamao em Montaigne , sem dvida, Dos Canibais, apologiados antropgafos livres do Brasil, nos quais revivem a idade de ouro dosantigos e a repblica ideal sonhada por Plato e Plutarco.

    A extenso do gnero e sua plasticidade se prestam a todas as aud-cias, bem como a todas as esquivas. sombra temvel dos Canibais, esta grande figura da Loucura. Uma linha de loucura liga Erasmo aMontaigne, atravs de um sculo XVI que dela viu outras muitas for-mas, muitas mais virulentas e mais trgicas. A loucura erasmiana bran-da, crtica, supe o desdobramento e o jogo teatral (ver Fumaroli, 1972,pp. 92-8). Ora, o selvagem tem muito a ver com o louco.5 E, justamen-te, entre o Elogio da loucura e Dos Canibais, existe um intermedirio,La pazzia (em italiano, a loucura), tratado bastante agradvel em for-ma de Paradoxo. Essa obra annima, publicada em Veneza em 1540,introduz, bem antes de Montaigne, os povos nus do Novo Mundo noespao crtico da declamao. Como em Erasmo, a Loucura tem a pala-vra. E pode dizer tudo, a comear por contrariar o senso comum. E noteme desmentir os mais eruditos, afirmando, por exemplo, que o povorecentemente descoberto na ndia Ocidental vivia feliz, sem leis, semletras, e sem nenhum sbio. Bem-aventurados, eles desprezavam o ouroe as jias preciosas, no conheciam nem a avareza, nem a ambio,nem qualquer outra arte. Alimentando-se dos frutos que a terra pro-

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    duzia sem artifcio [...] tinham, como na Repblica de Plato, todas ascoisas em comum, inclusive as mulheres e as criancinhas, que desde onascimento eles alimentavam e criavam em comunidade, como se fos-sem todos seus prprios.6

    A concordncia pontual com Plato no o impede de se contraporquele que desejara que os filsofos fossem reis, ou, no mnimo, que osreis se tornassem filsofos. La Pazzia o contradiz abertamente: A isso,eu responderia que no, que seria para toda gente a pior infelicidade, amaior calamidade, o ver-se cair nas mos de tais filosofastros e homenssabidos demais.7 Prova disso so os espanhis, que, com seu exagera-do saber, seus grandes refinamentos e suas insuportveis leis e ditos,encheram de milhares de males, pesares e fadigas aquela terra antesabenoada pelos deuses.

    O estilo da declamao se evidencia em Montaigne pelas hiprboleslaudativas e sentenas sem rplica, como a frmula que se tornou o slogando relativismo: Cada qual chama de barbrie o que no de seu costu-me. Pode ser reconhecido sobretudo na desenvoltura com que o mun-do extico calcado no mundo clssico, desenvoltura essa que se dirige,novamente, a Plato: Trata-se de uma nao, diria eu a Plato, na qual[...] Plato, transportado ao pas dos canibais, certamente perderia seugrego. No mnimo se surpreenderia diante do fato de uma sociedadepoder, contrariamente quela que ele havia imaginado, manter-se comto pouco artifcio e solda humana (Montaigne, 1965, I, 31, p. 206).Desmentido contundente, feito em nome da experincia, erudita ecomplexa arquitetura da Repblica. Essa incongruncia calculada traz amarca de La Pazzia. Nesse sentido, Todorov no est longe da verdadequando fala em burla a propsito desse captulo de Montaigne. Esteapenas atenuou a ironia um tanto pesada de seu modelo, realando-a natirada final a respeito da falta de calas. O veredicto a respeito da hist-ria recente, por sua vez, retoma, de modo mais srio, o do annimo

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    veneziano: com a conquista da Amrica, o artifcio triunfou sobre a na-tureza, para a grande desgraa dos povos do Novo Mundo.

    O estilo da declamao se revela com toda fora em Montaigne,finalmente, no espantoso dilogo entre o rei da Frana e os selvagensque conclui o ensaio. A palavra j no pertence Loucura nem a Plato,mas ao Canibal. Um Canibal triplicado, superlativo, de certo modo:

    Trs deles, ignorando o que custaria um dia a seu repouso e felicidade o

    conhecimento das corrupes de c, e que esse contato geraria sua runa,

    que suponho j avanada (pobres deles que se deixaram levar pelo gosto da

    novidade e deixaram a brandura de seu cu para vir ver o nosso), estiveram

    em Rouen, quando ali estava o finado rei Carlos IX: o rei falou longamente

    com eles, foram-lhes mostrados nossos modos, nossa pompa, a forma de

    uma bela cidade e, depois disso, algum lhes pediu sua opinio, querendo

    saber deles o que haviam nisso considerado mais admirvel. Eles respon-

    deram trs coisas.

    Montaigne ama as trades (Starobinski, 1982, p. 159). Nos Ensaiosh trs livros e pode-se distinguir neles trs estratos de redao e trspocas. Vrios de seus captulos baseiam-se no nmero trs, como Detrs mulheres (Montaigne, 1965, II, 35) e De trs comrcios (id.,III, 3). A biblioteca de Montaigne se encontrava no terceiro e ltimoandar de uma torre,8 que possui trs vistas de rica e ampla perspectiva(ibid.). Entre essas trs aberturas, antigamente, trs grandes estantes co-briam as paredes. No teto da biblioteca, trs vigas cobertas de inscriesdelimitam trs espaos, separados por duas vigas mestras igualmenteinscritas.9 Em Rouen, diante do jovem rei Carlos IX, h trs Canibais,e esses Canibais, interrogados, fornecem trs respostas.

    O nmero trs, que talvez seja, em Montaigne, uma herana das dis-putas escolsticas, abre a possibilidade de uma escapatria: permite su-

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    perar o antagonismo congelado e inviabiliza qualquer julgamento mani-questa. Isso posto, as circunstncias da entrevista so as mais vagas.Como de seu costume nos Ensaios, Montaigne evita indicar uma dataprecisa. A frmula em Rouen, quando ali estava o finado rei CarlosIX leva a supor o outono de 1562, logo aps a retomada da cidade aosprotestantes, durante a primeira guerra de Religio.

    Das trs respostas que os trs Canibais formulam que na verdadeso questes , duas foram conservadas por Montaigne, que esqueceu aterceira. como que um convite dirigido ao leitor, chamado a cooperare imaginar a resposta que falta. Jean-Jacques Rousseau prope uma nofinal do Discurso sobre a origem da desigualdade. O esquecimento deMontaigne, quer seja real ou simulado, tem por efeito paradoxal inten-sificar a presena de uma cena talvez inventada, certamente idealizada(Montaigne, 1965, I, 31, p. 214),10 do mesmo modo que a interposio,entre os selvagens e ele, de um intrprete bronco e lento na traduo impedido por sua idiotice, reclama ele, de captar minhas conjeturas.

    De qualquer modo, as duas observaes restantes bastam, e no re-querem nenhuma seqncia ou complemento. Na verdade, trata-se domesmo escndalo denunciado duas vezes, primeiro em seu aspecto po-ltico o rei criana de que se lembra Pascal e, em seguida, em seuaspecto econmico os pobres morrendo de fome porta dos ricos.Essas duas respostas constituem duas variaes sobre o paradoxo daServido voluntria. Tal como foi exposto por La Botie em seu Ensaio,o paradoxo pode assim ser resumido: impossvel para um homem so-zinho, nu e abatido, sujeitar todo um povo se esse povo no se sujeitarprimeiro por si mesmo. o povo que se sujeita, que corta a prpriagarganta, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sualiberdade e aceita o jugo. La Botie analisa em seguida os meios espe-cialmente a pirmide dos interesses de que o tirano se vale para semanter no poder e fazer com que o corpo social, de cumplicidade em

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    cumplicidade, acorrente-se por conta prpria. O objeto do Discurso ,fundamentalmente, a poltica enquanto tal (ver Clastres & Lefort, 1976,pp. 229-307). Definitivamente, La Botie se espanta com o espetculoda obedincia. Os Canibais com quem Montaigne se encontrou emRouen tambm.

    Entre a primeira e a segunda respostas dos Canibais, observa-se apassagem da surpresa clera, cabendo ao qualificativo estranho, de-liberadamente repetido, refletir ambos os sentimentos. Inicialmente, osembaixadores do Novo Mundo exprimem seu espanto diante dos ho-mens grandes, barbados, fortes e armados que se sujeitam a obedecera um meninote, referindo-se a Carlos IX, rei adolescente, ento com12 anos, cercado pelos slidos Suos de sua guarda. A passagem lem-bra, de forma mais contida, e tambm mais irnica, a indignao orat-ria da Servido voluntria diante do vcio, ou melhor, malfadado v-cio, que faz com que um sem nmero de pessoas suporte a tirania deum s homnculo, nas mais das vezes o mais covarde e efeminado danao (La Botie, 1987, p. 35).11

    Paradoxo poltico de que decorre, na ordem social, o que est conti-do na segunda resposta do Canibal. Na verdade, trata-se de um ato deacusao claramente formulado:

    [...] segundo, que eles tinham percebido que havia entre ns homens gor-

    dos e fartos de todas as espcies de comodidades, e que suas metades (eles

    possuem um modo em sua lngua que diz serem os homens metade uns

    dos outros) mendigavam porta destes, consumidos pela fome e pela po-

    breza; e achavam estranho que essas metades to necessitadas aceitassem

    sofrer tamanha injustia, e no agarrassem os outros pelo pescoo ou ateas-

    sem fogo em suas casas. (Montaigne, 1965, I, 31, p. 214)

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    Com Dos Canibais, Montaigne inventa o que Michel de Certeauchamou de heterologia, isto , um discurso do outro, que ao mesmotempo discurso sobre o outro e discurso em que o outro fala. Na base daoperao etnogrfica, a heterologia uma arte de jogar com dois luga-res, um modo de estimar num lugar o que falta no outro (Certeau,1985).12 A heterologia prov um espao intermedirio, um palco rever-svel, em que a ltima palavra no pertence necessariamente ao sujeitoprimeiro do discurso, e a crtica no poupa o enunciador, ele mesmoatingido por ricochete. Ora, a declamao , em essncia, uma hetero-logia. Ocupa um intervalo, fabrica um afastamento, em que o risco doefeito bumerangue da palavra livre plenamente assumido.

    Os direitos que nos deu a natureza, para retomar uma expresso deLa Botie (1987, p. 41),13 e que deveriam inclinar os homens a umafraterna afeio, obrigam-nos a levar a srio as ameaas dos trs selva-gens, escandalizados, primeiro, pelo rei-criana cercado por sua guardaarmada e, segundo, pela desigualdade gritante que observam nas ruasde Rouen. Sua concluso , no mnimo, atemorizante: a perspectiva deum levante popular, com os pobres pulando no pescoo dos ricos e in-cendiando-lhes as casas.

    Uma tal eventualidade nada tinha de improvvel. Montaigne aindase lembrava da revolta da gabela,14 no reinado de Henrique II, e da ferozrepresso que acarretou, especialmente em Bordeaux, que talvez seencontre na origem das frases inflamadas de La Botie.15 Torna-se entonecessria a boutade final sobre as calas para dissipar a ameaa. Assim,at na virulncia oratria que a anima, a declamao dos Canibais seapresenta como parente prxima do Discurso da servido voluntria.

    Mas a declamao dos Canibais possui tambm um alcance reli-gioso. Tratando de um tema delicado, o captulo inflete a antropofagiaritual dos Tupinamb no sentido de um canibalismo de honra, trocaverbal, mais do que carnal, entre a assemblia dos comensais e o prisio-

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    neiro imolado.16 Diante da evidncia simblica da refeio de carnehumana, sugere-se um paralelo entre o sacrifcio em terras selvagens e ateofagia sagrada dos cristos, de modo implcito, nas palavras desafiado-ras do prisioneiro logo antes de morrer: Estes msculos, diz ele, estacarne e estas veias so os vossos, tolos que sois; no percebeis que a subs-tncia dos membros de vossos ancestrais a permanece: saboreai bem, eencontrareis o gosto de vossa prpria carne (Montaigne, I, 31, p. 212).Inveno, conclui Montaigne, que em nada sabe a barbrie. O pri-sioneiro retido pela corda se expressa um pouco como Jesus Cristo noCenculo, quando da consagrao do po e do vinho. Verifica-se aqui omesmo uso do ditico que na instituio da Ceia Isto meu corpo,ou melhor, neste caso, o vosso corpo , a mesma insistncia na subs-tncia nutriz e salvadora do corpo ofertado e compartilhado. Comoobserva George Hoffmann, num artigo instigante, no se pode afastaruma ligeira inteno pardica nessa fala transcrita em estilo direto(Hoffmann, 2002, pp. 207-21).

    Ao fazer isso, Montaigne vai mais longe do que os protestantes, que,embora releguem os catlicos adeptos da transubstanciao categoriados Canibais, evitam sugerir a analogia entre o prisioneiro tupinamb beira da morte e Cristo na vspera da Paixo. Montaigne completa oparalelo com uma imagem que se afasta da iconografia dos viajantes.Hans Staden, Andr Thevet e Jean de Lry, todos de acordo nesse pon-to, representavam o prisioneiro com uma corda amarrada em torno dacintura, com os demais movimentos liberados, e lanando pedras e to-cos contra a multido, que s vezes chegava a ferir nesse simulacro decombate. Montaigne, ao contrrio, apresenta uma vtima subjugada eimpotente, com os braos amarrados em cruz:

    O dono do prisioneiro [...] amarra-lhe uma corda num dos braos, [C]

    cuja ponta segura a uma distncia de alguns passos, para evitar ser atin-

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    gido, [A] e d a seu melhor amigo o outro brao, para segurar do mesmo

    modo; e ambos, diante de toda a assemblia, matam-no a bordunadas.

    (Montaigne, 1965, I, 31, p. 209)

    Se bem compreendemos a descrio de Montaigne, o prisioneiro temos braos amarrados e mantidos em posio cruciforme. Falha de me-mria ou inteno deliberada de transformar o documento etnogrficopara aproxim-lo da Crucificao? Embora pequena, a transformaoparece efetivamente revelar uma inteno e sugerir a analogia entre ossacrifcios praticados em culturas afastadas no espao e no tempo.17

    Montaigne, no entanto, no dessacraliza de modo algum a Eucaris-tia, como tampouco retira a substncia do canibalismo ritual dos Brasi-leiros. Sua seduo analgica toma uma via original, muito diferentedaquela adotada pelos calvinistas, que identificavam catlicos e canibaispara melhor reduzir o sacramento reformado a puro smbolo de aliana,signo sem significante. Montaigne, ao contrrio, insiste na presena realdo sacrificante-sacrificado, que coincidem no Cristo e, em larga medi-da, tambm no prisioneiro tupinamb, enfatizando assim a proximida-de das substncias.

    Mas tudo isso permanece implcito, mais sugerido do que dito, e so-bretudo alheio a qualquer inteno polmica, numa descrio de apa-rncia (falsamente) objetiva, que se situa nos antpodas da invectiva.

    Dos Canibais e Dos coches: duas declamaes em eco

    Nada mais natural do que aproximar os dois captulos dos Ensaios dedi-cados descoberta e explorao do Novo Mundo, Dos Canibais e Doscoches. Menos de uma dcada os separa: 1580-1588.18 No intervalo,Montaigne viajou para a Alemanha, a Sua e a Itlia. E leu os franceses

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    FRANK LESTRINGANT. O BRASIL DE MONTAIGNE

    e os espanhis: depois de Lry e Thevet, Gomara e Las Casas. Com orecuo, a conquista da Amrica assume suas verdadeiras dimenses decataclisma: dezenas de milhes de mortos, povos aniquilados de um diapara o outro, civilizaes brilhantes definitivamente destrudas. Cata-clisma de causas puramente humanas, que constitui um dos maiores es-cndalos da Histria. Montaigne enfatiza, numa enumerao vertigino-sa, a desproporo entre meios e fins: Tantas cidades arrasadas, tantasnaes exterminadas, tantos milhes de povos massacrados, e a mais ricae mais bela parte do mundo destruda em nome do negcio de prolas epimenta: mecnicas [=vis] vitrias!. A inflexvel lei do capitalismo co-mercial, a louca corrida pelos metais preciosos, a explorao sem limitesdas populaes indgenas, escravizadas de fato, quando no de direito,foram responsveis por uma catstrofe mpar na Histria.

    Dos Canibais tratava da idade de ouro dos livres Brasileiros do li-toral atlntico. Dos coches denuncia a destruio do Novo Mundopelos Espanhis, em particular a runa total dos imprios asteca e inca.O encadeamento entre um captulo e o outro torna mais evidente ocontraste entre a gnese e o apocalipse, entre os primrdios serenos daHistria e seus tumultos e acidentes brutais. Nesse sentido, o den bra-sileiro em Dos Canibais e o Inferno da Conquista espanhola, tal comoduramente descrita em Dos coches, formam um dptico.19

    A aproximao se impe ainda mais na medida em que autorizadapor Montaigne, que em Dos coches remete explicitamente ao exem-plo dos Canibais prova disso so meus Canibais (Montaigne, 1965,III, 6, p. 911). O que est em questo, nessa passagem, a resposta dosndios brutalidade verbal dos conquistadores, convencidos de seus di-reitos e cinicamente confiantes na superioridade de suas armas.

    Os dois captulos seguem caminhos paralelos. Para retomar a expresode Roger Caillois a respeito das Cartas persas de Montesquieu, a mesmarevoluo sociolgica se opera nos dois ensaios (Caillois, 1947, I,

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    p. v). A palavra passa do observador para o observado, e o suposto br-baro torna-se juiz do europeu. Esse refluxo da palavra para o emissor seopera segundo modalidades ligeiramente diferentes em cada caso. A re-verso do ponto de vista ilustrada, em Dos Canibais, pela inversooral, e, em Dos coches, apresentada no encontro entre os ndios daterra firme e os conquistadores.

    Tal como descrito por Montaigne, o Canibal possui o estranhohbito de falar mais do que comer, proferir mais do que ingerir. Provadisso so as rplicas firmes que ope s frreas certezas do europeu naentrevista em Rouen, que conclui o ensaio I, 31. Prova disso tambmso as palavras desafiadoras que os guerreiros, prestes a serem imoladospara a fome de vingana de seus inimigos, pronunciam beira da mor-te: eles os desafiam, injuriam-nos, acusam-nos por sua covardia e pelasbatalhas perdidas contra os seus (Montaigne, 1965, I, 31, p. 212). Maisainda, segundo Montaigne, que folheou Thevet e Lry e contemplou asgravuras que ilustram as descries do Brasil, os que os descrevem nomomento da morte representam-nos cuspindo no rosto daqueles queos matam e fazendo caretas.20 Vrias gravuras mostram o prisioneiroamarrado pela cintura, ameaando com gestos e palavras a assembliados vencedores, que se mantm prudentemente a distncia no exato ins-tante em que a borduna empenada e pintada vai se abater sobre sua cabe-a (Staden, 1557, II, p. 29; De Bry, 1592, p. 125; 1593, p. 85).21 Estra-nho Canibal esse, que faz caretas, vocifera e cospe na hora de morrer!

    A atividade oral do antropfago brasileiro , portanto, invertida.O movimento natural que leva o alimento de fora para dentro torna-seprojeo centrfuga, que afasta do corpo selvagem a ameaa mortal e acusparada. A violncia encarnada no Canibal se separa dele, por inter-mdio de uma palavra livre e verdica, e atinge em cheio o observadoreuropeu, cuja sociedade civil, atravessada pelo antagonismo entre ricose pobres, est ameaada de rompimento. Na derrota triunfante

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    FRANK LESTRINGANT. O BRASIL DE MONTAIGNE

    (Montaigne, 1965, I, 31, p. 211)22 do Canibal agonizante, cercado porseus inimigos, que ele domina do alto de seu desprezo e de sua coragem,como na profecia incendiria que trs de seus irmos, no meio de umabela cidade, dirigem ao jovem rei Carlos IX e corte em visita a Rouen, a mesma palavra vingativa e devastadora que reflui, lanada pela vti-ma sobre o agressor.

    O captulo Dos coches repete esse movimento de reviravolta peladescrio da intimao ou requerimiento. Esse rito jurdico, por inter-mdio do qual os conquistadores espanhis intimavam os ndios diantede si, na presena de um notrio, a se converterem e a se submeterem(ver Bataillon, 1959, pp. 353-67), constitui o eixo de inverso do olhare da palavra. Palavra que, proferida com arrogncia pelos conquistado-res, passa para seus ouvintes, e imediatamente captada por essas crian-as nuas e desarmadas que os admoestam, exibindo uma eloqncia derara energia. Ao tomar emprestada de Lpez de Gomara a decrio des-se rito caricatural, Montaigne reverte em favor das vtimas um texto quevisava apologia dos algozes. So os prprios cronistas espanhis quelhe fornecem os meios de devolver a palavra aos ndios.

    Em Gomara, a coisa acaba mal para os ndios eloqentes demais nesse caso, ndios da provncia de Zenu, encontrados pelo doutorEnciso em 1509, e que tiveram a infelicidade de lhe resistir. No final,todos foram massacrados ou escravizados (Lopez de Gomara, 1587,pp. 234-5v). Em lugar desse eplogo, em tudo conforme a lgicasangrenta da Conquista, Montaigne corta, insere uma tirada irnica Eis a um exemplo do balbuciamento dessa infncia e conclui com aderrota dos espanhis. Estes, na realidade, quando no encontraramouro, pelo menos conseguiram escravos e alimento.

    Dos coches remete, tanto quanto Dos Canibais, retrica dadeclamao. Em ambos os captulos, uma mesma proposio paradoxale hiperblica ora sustentada por uma leve ironia, ora por um tom

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    oratrio e solene. Tambm aqui a veemncia do estilo atinge seu paro-xismo gradativamente, e culmina numa queda abrupta. Mais uma vez,a posio relativista de Montaigne no exclui a condenao moral, opathos que acompanha a passagem da argumentao imprecao:

    A resposta foi a seguinte: que, quanto a serem pacficos, no aparentavam

    s-lo, se que o eram. Quanto ao seu rei, j que perguntavam, devia ser

    um indigente, e necessitado, e aquele que havia feito tal distribuio, ho-

    mem afeto s dissenses, que dera a um terceiro algo que no era seu, para

    coloc-lo em questo contra os antigos possuidores. Quanto aos vveres

    que lhes forneceriam: ouro tinham pouco, e era coisa que no valorizavam

    nada, j que era intil para a sua vida, que todo seu cuidado estava to-

    somente em pass-la de modo feliz e agradvel; mas que o que pudessem

    encontrar, excetuando o que era empregado a servio de seus deuses, que o

    tomassem ousadamente. Quanto a um s Deus, haviam apreciado o dis-

    curso, mas no queriam mudar sua religio, que to bem lhes servira por

    tanto tempo, e que tinham o costume de s aceitar conselhos de seus ami-

    gos e conhecidos. Quanto s ameaas, que era sinal de insensatez sair ame-

    aando gente cujos recursos e natureza lhes eram desconhecidos. Assim,

    que se apressassem em deixar imediatamente sua terra, pois no costu-

    mavam levar por bem os julgamentos e condenaes de gente armada e

    estrangeira; ou fariam com eles como com os outros, mostrando-lhes as

    cabeas de uns homens punidos em volta de sua cidade. (Montaigne, 1965,

    III, 6, p. 911)

    O efeito bumerangue da declamao em Dos Canibais expressodo modo mais preciso e mais concreto concebvel na cano de agoniado prisioneiro: Estes msculos, esta carne e estas veias, que ireis co-mer, so os vossos, retruca o canibal expectorante aos vencedores dodia (id., I, 31, p. 212). De passagem, como observamos acima, ele pare-

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    FRANK LESTRINGANT. O BRASIL DE MONTAIGNE

    ce parodiar Jesus Cristo no Cenculo, no momento da consagrao dopo e do vinho. Mas, em vez de anunciar um evangelho de paz e amor,insufla a guerra e clama pela vingana contra seus algozes, que logo seri-am eles mesmos aprisionados pelo ciclo do sacrifcio, tornados vtimasda violncia que haviam detonado. A ameaa que se dirige em seguidaaos habitantes de Rouen e corte em visita no puramente formal. Elacontm a possibilidade de uma reviravolta.

    Em Dos coches, a reviravolta potencial, significada pela indicaodas cabeas de uns homens punidos em volta de sua cidade, empur-rada para o fim da Histria e para fora dela. Pois, nem bem termina acena da intimao, uma chuva de calamidades despenca sobre o NovoMundo, precocemente envelhecido pela brutalidade dos conquistado-res. A sobriedade do relato, de quatro longas pginas, acentua o efeitocumulativo da catstrofe. O prprio excesso gera um desequilbrio marcado pela imagem-chave na ltima frase do captulo, do Inca cain-do de seu trono de ouro. Esse desequilbrio acusador prepara o caminhopara uma reviravolta moral. Na verdade, as agonias gmeas de Atahualpa,o Inca martirizado aps seu batismo, e de Cuhautmoc, o imperadorasteca que sucedeu Montezuma e cujas pernas Cortez mandou queimar,repetem a do prisioneiro triunfante do primeiro ensaio. Dignos dosmagnnimos soberanos que ambos foram, seus finais so eloqentes.Denunciam a iniqidade do suplcio e fazem prever uma reparao pelosangue. Os tesouros extorquidos, que foram engolidos pelo oceano, e amorte dos algozes em guerras civis com que se comeram entre si fecham o ciclo das violncias, com uma ltima troca entre o carrasco esua vtima. Mais uma vez, a voracidade oral serve para expressar a vio-lncia voltando-se contra si mesma. Os conquistadores que praticaramem Cuhautmoc a culinria do vivo, j denunciada em Dos Canibais,so por sua vez comidos, engolidos pelas vagas do mar ou devoradospor seus companheiros.

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    Contudo, a vingana no pode mais se efetivar num plano horizon-tal. Ela precisa de um termo transcendente, ausente do captulo DosCanibais. Deus, de que esta a nica manifestao no dptico ameri-cano dos Ensaios, permitiu merecidamente que essas grandes pilhagensfossem absorvidas pelo mar no transporte, ou nas guerras civis. O quesignifica que a reversibilidade da violncia j no se d no seio da Hist-ria, que consagrou o triunfo dos algozes. Seria necessrio sair dela parareencontrar, no plano da vingana divina, o equilbrio perdido. Mas umtal recurso seria concebvel? V-se de que modo Dos coches, conti-nuando Dos Canibais, inflete a lio da histria num sentido pessi-mista (Bataillon, 1974, p. 45).

    A Amrica nasce do Brasil

    preciso render-se evidncia, ainda que contradiga a cronologia dasgrandes descobertas: a Amrica, no Renascimento, nasce do Brasil. Pou-co importa que Colombo tenha tocado o Novo Mundo nas Bahamas eque se tenha obstinado em reconhecer uma por uma as Grandes e asPequenas Antilhas, antes de se dirigir Terra Firme. do Brasil, visita-do anos depois por Vespcio, que surge a princesa nua e emplumada,com os braos carregados de membros sanguinolentos, que faz sua en-trada na galeria prosopogrfica dos continentes.23 Ao longo de todo oclassicismo, a alegoria da Amrica, montada num jacar ou na carapaade um tatu gigantesco, brasileira.

    O desconhecimento do conjunto das viagens de Colombo e a fortu-na correlativa de Amrico Vespcio explicam parcialmente essa preemi-nncia simblica do Brasil sobre o restante da Amrica, incluindo o Perue o Mxico. Alm disso, a voga dos ndios Tupinamb dessa regio, queso os Canibais de Montaigne, deve-se, na Frana, a razes especficas.

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    FRANK LESTRINGANT. O BRASIL DE MONTAIGNE

    Desde o incio do sculo, e imediatamente aps Pedro Alvares Cabral,dezenas de navios normandos, guiados por pilotos portugueses com-prados por altas somas, chegavam a cada ano costa do Brasil para car-regar a madeira vermelha de mesmo nome que se empregava notingimento de tecidos. Esse comrcio ilegal provia as necessidades daindstria txtil de Rouen, e seu lucro era negociado na bolsa de Anvers.24

    A entrada solene do rei Henrique II em Rouen, a 1de outubro de 1550,pretexto para a exibio, beira do Sena, das riquezas da vida selvagem,com a ajuda de 50 ndios e de 250 marujos, igualmente nus e pintadoscom jenipapo, apresentou uma festiva demonstrao dessa familiaridadej antiga com o Novo Mundo.25 Acrescentou-se a esse relacionamentoconstante, entre os anos 1555 e 1560, a aventura da Frana Antrtica,instalada na entrada da Baa de Guanabara, com suas fecundas decor-rncias literrias. Testemunhos da qualidade das Singularidades da Fran-a Antrtica, de Andr Thevet (1557), e da Histria de uma viagem, deJean de Lry (1578), a respeito do Brasil e de seus habitantes, no seencontram nessa poca em nenhuma outra literatura europia.

    Essa j longa tradio explica o fato de Montaigne abordar o con-tinente americano, em 1580, por um povo aparentemente dos maisrudes e menos importantes da Amrica, antes de dedicar s brilhantescivilizaes do Mxico e do Peru as pginas repletas de admirao docaptulo Dos coches, e as terrveis observaes que concluem, em1588, o captulo Da moderao.

    Nos Ensaios, o Brasil antropfago no apenas precede o Mxico aste-ca e o Peru inca, como tambm informa a descrio destes. Produz-seento, em Montaigne, um fenmeno anlogo ao que se observa, na mes-ma poca, na iconografia das grandes descobertas. Um fenmeno decontaminao, que o antroplogo William Sturtevant qualificou detupinambizao, estende para todo o continente traos tnicos ou cul-turais prprios dos ndios Tupinamb: o machado de pedra polida,

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    a espada de ponta circular chata e cortante, o escudo de casco de tatue as diversas penas com que os Tupi se enfeitam para suas festas inva-dem o mapa da Amrica, acompanhando as guerras e danas dos Astecas,dos Peruanos e at dos Huron (Sturtevant, 1976 e 1988). O melhorexemplo dessa uniformizao dos Amerndios, segundo o modelo bra-sileiro, a coleo das Grandes viagens de Thodore de Bry. Nos catorzevolumes fartamente ilustrados dessa srie, cuja publicao se estendeupor quase meio sculo, de 1590 at 1634, a imagem do Canibal nu,emplumado e tonsurado, com faces e lbios cobertos de incises, queencontra sua justificao plena na Terceira parte, consagrada ao Brasilde Hans Staden e Jean de Lry, dissemina-se para as regies mais afas-tadas do Novo Mundo, cruzando os Andes com os conquistadores es-panhis e subindo pelo Panam at os planaltos do Novo Mxico.26

    Ao termo do processo, o Brasileiro o Americano.A tupinambizao que se percebe em Montaigne, na passagem en-

    tre Dos Canibais e Dos coches, muito menos visvel. Montaigne,como apontamos, possua em seu castelo no Prigord uma coleo deamericana redes, ibirapemas, bastes de ritmo, todos objetos prove-nientes do Brasil, e ele sabia disso. Assim, ele no transporta tais artefatosmodestos para o meio dos esplendores de Cuzco e Mxico. A tupinam-bizao dos mexicanos e peruanos, sem dvida mais discreta, nem porisso menos real.

    Ela se revela imediatamente na juventude e no estado de inocentenudez que so os atributos primeiros do Novo Mundo. Passa-se, a, doprprio ao figurado, e de um tipo particular, o Canibal do Brasil, para oAmerndio em geral. A ausncia de calas elevada ao plano da alego-ria: trata-se, a partir de ento, de um mundo-criana, nu no ventrede sua me (Montaigne, 1965, III, 6, p. 908), e no mais deste ou da-quele entre seus habitantes naturais. Mas o comeo da seo americanade Dos coches, por si s, revelador. Montaigne v a Amrica como

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    um todo por meio do paradigma brasileiro, bem conhecido por ele des-de 1580. A retomada da frmula negativa entre um ensaio e outro nem letras, nem pesos, nem medidas, nem roupas, nem trigo, nem vi-nhas (ibid.) mostra que a dimenso primitivista permanece na basedesse novo captulo americano.

    Mais adiante, muito embora tenha acabado de louvar a indstriarefinada dos mexicanos, expressa em sua ourivesaria, em sua tecelagem,em suas pinturas e em seus quadros de penas, Montaigne emprega semtransio a expresso povos nus em relao aos ndios que enfrentamespanhis vestindo armaduras e armados dos ps cabea (id., p. 909).Tais soldados nus so, evidentemente, soldados sem armas, ou to pou-co armados que acabam impotentes diante dos cristos possuidores deuma pele brilhante e dura, guerreiros da idade do ferro. Mas a nuanceque Montaigne imediatamente introduz no quadro, ao precisar que ainveno de um tecido de algodo chegou a certos lugares do NovoMundo,27 indica claramente que ele considera a nudez em sua acepomais literal.

    O contraste entre nu e vestido, na iconografia relativa Conquista,representa um verdadeiro topos plstico, que remonta primeira metadedo sculo. J aparente na Paisagem das ndias Ocidentais, do holan-ds Jan Mostaert, e de sada carregado de intenes alegricas,28 foi maistarde sistematizado na coleo das Grandes viagens, de Thodore de Bry.29

    Esse contraste dramtico entre a carne indefesa e o ferro assassino costu-ma ocorrer sobre um fundo de tranqilidade, em que passeiam livre-mente os animais do den. Em Montaigne, ele inseparvel da visoprimeira do mundo-criana no seio materno e leva naturalmente, naseqncia do ensaio, imagem da natureza selvagem, que os europeus,como bons pedagogos, deveriam ter-se esforado em polir e desbas-tar. Conformada figura idealizada do Brasileiro, a alegoria da Am-rica, nua e inocente, informa por sua vez a representao homogenei-

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    zada de todas as naes que a povoam. O Americano, terreno novo re-pleto de boas sementes que a natureza a tinha produzido (Montaigne,1965, III, 6, p. 910),30 caracteriza tanto a sociedade dos Canibais, mui-to prxima de sua simplicidade original, quanto o mundo-criana deAstecas e Incas.

    A tupinambizao, obtida por associao e fuso entre os exemplosacima, pode igualmente resultar de uma seleo do material etno-hist-rico. O melhor exemplo de censura apresentado pela religio dos Aste-cas, sanginria e cruel, refinada e demonstrativa. Para respeitar a eco-nomia de seu requisitrio contra os excessos da Conquista, Montaigneisola esses elementos incmodos, presentes em fontes (Cortez, Goma-ra) utilizadas por ele em Dos coches, relegando-os ao fim do captuloDa moderao num longo acrscimo redao, mais ou menos damesma poca (id., I, 30, p. 201). esse o preo da preservao da uni-dade das novas terras, puras e ainda virgens em comparao com asnossas (ibid.).

    V-se, assim, como a discreta tupinambizao operada por Montaignelogra unificar o Novo Mundo. Entretanto, essa unidade histrica, geo-grfica e antropolgica no desemboca numa simplificao da imagemdo ndio, nem tampouco na eliminao completa de suas contradies.Muito pelo contrrio. O Novo Mundo tanto uno quanto contradit-rio. O modelo do livre e orgulhoso Canibal se generaliza a toda a reaamerndia, mas tambm passa a conter traos dspares, antitticos at,tal como sobriedade e luxo, ignorncia e competncia admirvel, nudeze ricas vestimentas, casas rsticas cobertas de palha e monumentais ci-dades de pedra, com palcios e jardins, cujas rvores, frutos e grama sode ouro.

    No momento em que Montaigne compunha o captulo Dos co-ches, existia, no entanto, uma grade classificatria que lhe teria permi-tido resolver essas flagrantes contradies. Em 1588, justamente, foi

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    FRANK LESTRINGANT. O BRASIL DE MONTAIGNE

    publicado em Salamanca o De procuranda Indorum salute, do jesuta Josde Acosta, tratado de missiologia que distingue trs categorias de br-baros, segundo seu grau de convertibilidade. Os brbaros selvagensdo Brasil e do Caribe, que vivem nus e em bandos, devem ser duramen-te combatidos, de modo que seus corpos abatidos sirvam de tbula rasapara a inscrio da verdade do Evangelho. Por outro lado, as naes maispoliciadas do Mxico e do Peru, cuja organizao poltica notvel, masque desconhecem a escrita, recebero tratamento mais clemente. Final-mente, os pagos que possuem civilizaes brilhantes e tradio escritasero trazidos religio crist pela brandura e pela persuaso.31 Aindaque ele tivesse lido Acosta, rapidamente divulgado em toda a Europa, pouco provvel que Montaigne recorresse a essa tipologia simplificado-ra, cujo desgnio manifesto era a reduo do outro ao idntico, ou seja,seu aniquilamento.

    Roma e Mxico

    Em Montaigne, a tupinambizao tem como corretivo e contrapeso aromanizao desses mesmos americanos, o que aumenta a complexi-dade do que acabamos de descrever. Na verdade, at agora no conside-ramos o captulo Dos coches como um todo, destacando arbitraria-mente sua seo final, relativa conquista e destruio do Novo Mundo,o que equivale a menos de um tero do conjunto. Mas o captulo fala deoutra coisa: primeiramente, dos meios de transporte, veculos de todotipo, como indica seu ttulo. Da idia de locomoo, designada obli-quamente pelo ttulo, passa-se, no decorrer do ensaio, para a experin-cia da instabilidade, mal-estar fsico agravado em angstia diante dastransformaes do mundo e, ento, recomposto, feito indignao con-tra seus agentes histricos (Tournon, 1988, p. 925).

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    Dos coches, isto , Dos veculos; pode-se dizer que Montaigneos coleciona. Dos coches uma coleo de automveis, uns mais ex-cntricos que os outros. O ensaio, em suas primeiras pginas, e se nosativermos a uma leitura superficial, remete aos catlogos de invenessingulares, to apreciados pelo pblico do sculo XVI. Essa moda dosinventores, que deu origem ao gnero da heurematografia, cuja ex-presso mais completa e mais rica o De inventoribus do humanista Poli-doro Virglio (ver Copenhaver, 1978), remonta Antiguidade. Snecaj denunciava, em De brevitate vitae, essa busca insensata por um saberintil, doena, segundo ele, herdada dos gregos:

    H alguns dias, escutei uma apresentao acerca do que cada um dos ge-

    nerais romanos fora o primeiro a fazer: Dullius foi o primeiro a obter uma

    vitria naval; Curius Dentatus, o primeiro a desfilar com elefantes em seu

    triunfo. [...] Parece-te oportuno preocupar-se em saber que Sila foi o pri-

    meiro a soltar lees na arena, quando antes eles permaneciam amarrados,

    e que o rei Bocus mandou arqueiros para mat-los? Ainda isso, que seja.

    Mas saber que Pompeu foi o primeiro a oferecer como espetculo um com-

    bate de circo opondo dezoito elefantes a condenados, pode isso ter alguma

    conseqncia feliz? [...] Pois admitindo que contm de boa-f todas essas

    histrias e se apresentem como testemunhas, os descaminhos de quem,

    afinal, podero elas atenuar? [...] Nosso grande Fabiano reconhecia que,

    por vezes, se perguntava se no seria prefervel a tais inpcias no se dedi-

    car a estudo algum. (Sneca, 1995, XIII, 3-9, pp. 125-6)

    Essa lista de invenes contestveis faz pensar no catlogo de carroscom atrelagens estranhas que Montaigne apresenta no incio do captu-lo Dos coches: Marco Antonio foi o primeiro a ser conduzido emRoma, com uma rapariga-menestrel, por lees atrelados a um coche.Heliogabalus fez mais tarde o mesmo, dizendo-se Cibele, a me dos

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    FRANK LESTRINGANT. O BRASIL DE MONTAIGNE

    deuses, e tambm atrelados por tigres, imitando o deus Baco (Mon-taigne, 1965, III, 6, p. 901) etc.

    Em seguida, introduzidos pela meno s feras subjugadas, vm osjogos do circo, ou seja, exatamente o exemplo utilizado por Sneca pararidicularizar o intil saber dos inventores. Mas Montaigne no seescandaliza demais com a estranheza de tais invenes (id., p. 902).Muito pelo contrrio, ainda que condene o gasto exagerado, no podedeixar de admirar o espetculo:

    Era contudo uma bela coisa levar e plantar na praa das arenas uma gran-

    de quantidade de rvores grandes, frondosas e bem verdes, representando

    uma grande floresta densa, disposta em bela simetria, e, no primeiro dia,

    lanar nela mil avestruzes, mil cervos, mil javalis e mil gamos, deixando-os

    pilhar o povo. E no dia seguinte, fazer espancar em sua presena cem lees

    grandes, cem leopardos e trezentos ursos, para no terceiro dia fazer com-

    bater at a morte trezentos pares de gladiadores, como fez o imperador

    Probus. Eram tambm coisa bela de se ver os grandes anfiteatros, com o

    exterior recoberto de mrmore, lavrado de obras e esttuas, com o interior

    reluzente de raros ornamentos. (id., p. 905)

    Em Montaigne, como em Justo Lipsio, autor de De Amphiteatro, emque essa passagem se inspira diretamente,32 admirao a palavra deordem. o que escusa a pesquisa intil que Sneca lamentava:

    Se algo escusvel em tais excessos, reside no que a inveno e a novidade

    motivam em termos de admirao, no no gasto. (id., p. 907)

    Fteis, Justo Lipsio e Montaigne? Insensatos, seu gosto pelo catlo-go e sua busca apaixonada dos fatos admirveis dos antigos? Na verda-de, em ambos os casos, a admirao inseparvel de uma meditao

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    acerca da Histria. A viso de um anfiteatro em runas uma boa entradapara meditar acerca do teatro do mundo, lugar-comum que goza de umavoga extraordinria no final do sculo XVI. O tratado dialogado de Jus-to Lipsio, que uma visita guiada pelo Coliseu, ornamentada com cita-es de autores antigos, cujas afirmaes so corrigidas quando o caso,comea, assim, por um lamento sobre as runas de Roma, logo transfor-mado em exerccio de admirao. Nicolau Florentius, em vez de selamuriar, convida seu interlocutor a ver nos vestgios a presena aindaviva da Roma Antiga.33 De modo que, no decorrer desse passeio melan-clico, o desgosto inicial vai pouco a pouco dando lugar ao entusiasmo.

    Para Montaigne, tampouco a Antiguidade est morta. Ainda respiranos livros, e nas cidades do Novo Mundo, recentemente pilhadas e arra-sadas pelos conquistadores. Aqui, porm, a relao entre melancolia eadmirao toma o caminho inverso: a admirao pelos Antigos pri-meira, sua superioridade, atestada por historiadores e poetas, da ordemda evidncia. Montaigne diz isso, alis, no captulo Da grandeza roma-na (id., II, 24, pp. 686-7), por exemplo, e repete-o aqui. Dizer queMontaigne adere sem reservas s afirmaes de Justo Lipsio pouco:Nessas mesmas vaidades descobrimos o quanto aqueles sculos eramfrteis de espritos diferentes dos nossos (id., III, 6, ad loc). A admi-rao pelos Antigos leva depreciao dos Modernos, e, mais alm, clara indignao diante deles. Os Modernos no apenas so incapazesde rivalizar em engenho com Gregos e Romanos, como exterminarame destruram povos que reviviam a generosidade e a grandeza destes.Da a famosa exclamao em que se encontram a Antiguidade e o NovoMundo, o afastado no tempo e o afastado no espao:

    Antes tivesse cabido a Alexandre ou aos antigos gregos e romanos to no-

    bre conquista, e to grande mutao e alterao de tantos imprios e po-

    vos, em mos que teriam delicadamente polido e desbastado o que havia

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    FRANK LESTRINGANT. O BRASIL DE MONTAIGNE

    de selvagem e teriam protegido e estimulado as boas sementes que a natu-

    reza ali tinha produzido. (id., p. 910)

    Montaigne viu o Coliseu em sua viagem Itlia, mas no diz umapalavra a esse respeito em Dos coches. muito provvel que, aocompor esse captulo, tivesse diante dele as pranchas gravadas do trata-do de Justo Lipsio, que representam com grande luxo de detalhes oanfiteatro de Tito em seu antigo esplendor, quando, em volta do altarde Jpiter, tinham lugar combates de gladiadores e justas eqestres, esua aparncia atual, de runa coberta de arbustos e sobrevoada por ps-saros.34 Seu pensamento no contudo guiado pelo espetculo perma-nente das runas romanas. O que guia Montaigne e alimenta seus deva-neios uma lista, um desfile de fantasmas, uma acumulao litnica deespetculos to inslitos quanto efmeros, de que chega a ns apenas orumor embelezado pelos poetas antigos.

    Essa variao sobre o Ubi sunt nada tem inicialmente de tristonhoou melanclico. Montaigne se encanta como uma criana. Mas a repe-tio contnua abre um abismo. No captulo Dos coches, o duplo des-file de carruagens e os jogos do circo so seguidos por uma meditaoacerca do movimento da Histria e da instabilidade dos imprios.Ao termo da enumerao, revela-se em sua tenebrosa extenso a runado Novo Mundo, simbolizada nas ltimas linhas do captulo pela que-da do Inca Atahualpa de seu trono levado por carregadores, na funestanoite de Cajamarca, a 16 de novembro de 1532. O prazer pueril da lis-ta, ou o que assim pode nos parecer, desemboca numa meditao ver-tiginosa, em que se selam a sorte dos povos e o destino do mundo.A acumulao, o excesso ldico, o crescendo de espanto em espanto, olado livro dos recordes dessa exibio de erudio, que ocupa dois ter-os do captulo, desaguam numa viso das mais sombrias, por eles pre-parada e alimentada, e ao mesmo tempo afastada, assim como os quatro

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    primeiros atos de uma tragdia simultaneamente afastam e preparam acatstrofe inelutvel.

    Nas filigranas de Mxico e Cuzco, e de sua assombrosa magnifi-cncia, encontram-se, assim, o Coliseu romano e as runas de Roma,descritas por Justo Lipsio em De Amphiteatro. Desse modo se sobre-pem, no Novo Mundo de Montaigne, duas operaes aparentementecontraditrias: a tupinambizao do Mxico e do Peru se insere numquadro romanizado. Astecas e Incas so romanos que teriam conser-vado a simplicidade dos costumes dos Canibais, povos naturistas insta-lados numa arquitetura colossal de prticos e arenas, circos e pirmides,antes da destruio dessas cidades ideais por Brbaros armados de ferro.

    Da a montagem espantosa e algo surrealista: povos nus, ornadosunicamente de penas, so integrados num cenrio urbano geomtricoe refinado para compor uma espcie de prenncio de Paul Delvaux.Em lugar de mooilas descabeladas, com grandes olhos, perambulandopor estaes de trem, so povos-criana, recm-sados do den para co-lonizar, com suas sombras etreas, traados arquitetnicos inexplicavel-mente surgidos do passado. Antes mesmo da publicao das Grandesviagens de Thodore de Bry e seus filhos, a partir de 1590, ou seja, nadcada seguinte morte de Montaigne, este imaginava o teatro do NovoMundo tal como o inventaria ento o Ocidente em crise (ver Bouyer& Duviols, 1992) teatro trgico, no qual, sobre um fundo de palciose pirmides, povos nus, que at ento brincavam, danavam e se diver-tiam, repentinamente agonizam, degolados, queimados vivos ousupliciados por invasores de barba e elmo, com os traos e as roupas deferro dos espanhis.

    Duas nostalgias se encontram aqui, a da idade de ouro e a da grande-za antiga, ambas simultaneamente destroadas pela violncia absurda evil da Conquista. De um mesmo e nico golpe, a realidade de uma Eu-ropa mercantil e degenerada pe fim a um duplo sonho de restituio.

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    FRANK LESTRINGANT. O BRASIL DE MONTAIGNE

    Roma e Mxico tinham em comum o fato de no serem nem mecni-cas nem venais. Ambas possuam o senso do esplendor e do gastoostentatrio, como atestam o circo romano, os animais, os jardins e apompa dos ltimos imperadores astecas. Da a clera do pedagogo e dohumanista em Montaigne:

    Quem jamais tanto valorizou o servio do mercadejo e do trfico? Tantas

    cidades arrasadas, tantas naes exterminadas, tantos milhes de povos

    massacrados, e a mais rica e mais bela parte do mundo destruda em nome

    do negcio de prolas e pimenta: Mecnicas vitrias! (Montaigne, 1965,

    III, 6, p. 910)

    Para Montaigne, a descoberta do Novo Mundo era a ocasio inespe-rada de captar no presente a Antiguidade viva. Pois essa Antiguidadegrandiosa, multiforme e variegada vivia ainda do outro lado do oceano.Estava, por assim dizer, ao alcance da mo. No presente, s estava sepa-rada pelo estreito de um mar facilmente atravessvel, graas aos recentesprogressos da navegao que a tinham aproximado como nunca dantes.Bastava estender-lhe o brao para que retornasse a ns e nos comunicas-se sua grandeza intacta e, assim, podia ser conjurada a maldio atreladaao esquecimento e ao tempo, que tudo devora. A Histria fornecia aoOcidente, desse modo, uma formidvel elipse espao-temporal que lheteria permitido reinscrever a herana antiga em seu presente. Mas eisque, recm-surgido no horizonte dos mares, tal milagre era mortalmen-te atingido, ignominiosamente destrudo por quem no soubera com-preender-lhe a grandeza nem a chance nica que se lhe apresentava. E aAntiguidade foi mais uma vez perdida. Agora, irremediavelmente.

    Essa a grande viso subjacente ao captulo Dos coches. Montaigneno se enluta exclusivamente por metade da humanidade. bem pior,pois se trata ao mesmo tempo de luto por todo o passado do mundo,

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    ou, mais precisamente, por tudo o que h de mais grandioso, nobre eextraordinrio na memria da humanidade. Dos coches, ou o sonhoduas vezes perdido do Renascimento.

    Evidentemente, no h entre a Antiguidade e o Novo Mundo nemidentidade nem igualdade estrita, ainda que fosse apenas em razo docarter mvel de sua relao. Ora e essa a idia que parece dominar amaior parte do texto a Antiguidade apresentada como o pedagogo,como o colonizador ideal, portanto, de um Novo Mundo reduzido aoestatuto de criana e aprendiz, certamente promissor, mas que convmdoutrinar com urgncia exatamente por isso; uma criana que precisocobrir de exemplos em vez de golpes, diz-nos Montaigne, mas que evi-dentemente deve ser educada, ou aperfeioada. Ora, ao contrrio, oNovo Mundo j rivaliza com a Antiguidade por suas invenes. Os jar-dins de plantas de ouro e os animais de ouro da capital do Mxico nadadeixam a desejar ao esplendor do anfiteatro de Tito, coberto demrmore, nem a suas florestas artificiais, plantadas para espetculosefmeros.35 E eis que a estrada pavimentada de trezentas lguas que levade Quito a Cuzco, atravessando cadeias de montanhas inacessveis edespenhadeiros, supera em magnificncia e utilidade tudo o que a Anti-guidade jamais concebeu de grandioso. Nem a Grcia, nem Roma, nemo Egito jamais viram nada assim (Mnager, 1993). De modo que a re-lao entre a Antiguidade e o Novo Mundo oscila constantemente en-tre a pedagogia e a emulao. In extremis, logo antes da queda, no senti-do prprio e figurado, que encerra o captulo, o Novo Mundo quase setorna preceptor do Velho por uma inverso da hierarquia at ento im-plicitamente aceita, apesar das repetidas crticas dirigidas aos de c.

    Alm disso, do mesmo modo que o amerndio de Montaigne resultada sobreposio de imagens dificilmente compatveis, para finalmentegerar um hbrido, inca ou mexicano tupinambizado, a Antiguidadeapresenta, nesse captulo, uma hibridao comparvel. A poca histrica

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    de referncia varia constantemente. A escala de medida ora fornecidapela Antiguidade herica e virtuosa dos comeos, ora pela Antiguidadepervertida da decadncia: a juventude exemplar e conquistadora de Ale-xandre e da Repblica romana, ou o declnio e decrepitude de impera-dores mergulhados em orgias, inebriados por gastos sunturios e espet-culos jamais vistos. De todo modo, qualquer que seja a etapa dedesenvolvimento considerada, essa Antiguidade sinttica faz empalide-cer nossa modernidade por seu luxo e seu brilho. A essas duas imagensda Antiguidade,36 acrescenta-se uma terceira, agora mtica, da idade deouro e do idlio, quando a humanidade, despreocupada e nua, sem penae sem trabalho, vivia dos frutos que a terra lhe oferecia em profuso.Constata-se que essa terceira imagem converge de modo bastante exatocom a tupinambizao de Astecas e Incas.

    Conseqentemente, a Antiguidade e a Amrica se apresentam nomesmo plano, unidas por uma srie de afinidades: o Canibal do Brasilpossui as virtudes viris de Esparta, e a capital do Mxico, a grandiosidadee o luxo da Roma imperial. Essas duas grandes figuras que se espelham,do alto de sua formidvel magnitude, colocam em seu devido lugar amodernidade de europeus indignos dessa dupla herana, a herana dotempo e da Histria e o legado inesperado do espao ampliado.

    Notas

    1 Como Todorov (1989, pp. 51-64), por exemplo.2 Acerca da frmula negativa, figura privilegiada e obrigatria do discurso pri-

    mitivista, ver Levin (1970, p. 11), Defaux (1987, p. 172), Marouby (1990,pp. 113-26).

    3 A perspectiva aqui adotada tangente que essa obra delineia.4 Acerca das relaes entre a Servido de La Botie e Dos Canibais, ver Lestringant

    (1994, pp. 181-3).

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    5 Para essa aproximao, ver Mahlke (2003).6 Les louanges de la Folie, op. cit., 1566, f. C6v.7 Ibid., f. C7r.8 Se, como Montaigne, contarmos como primeiro andar o trreo, onde se encontra

    a capela.9 Em Legros (2000), ver a prancha 40, Plano do teto da livraria de Montaigne,

    em face da pgina 257.10 Ver Certeau (1981, pp. 193-6).11 Cf. Montaigne (1965, I, 31, 213 A).12 Artigo resumido e comentado por Dosse (2002, p. 533).13 Primeiramente, no resta dvida, creio, de que, se vivssemos com os direitos

    que nos deu a natureza e com seus ensinamentos, seramos naturalmente obedien-tes aos pais, sujeitos razo e servos de ningum.

    14 A gabela era um imposto sobre o sal institudo na Idade Mdia, e abolido apenasna Revoluo Francesa. Vrias revoltas eclodiram na Frana em torno dessa taxa,algumas especialmente longas e violentas. [N.T.]

    15 A julgar pelo que afirma o historiador Jacques-Auguste de Thou, Historia suitemporis, V, XIII, que colheu as confidncias de Montaigne a esse respeito. Ver aintroduo de Malcom Smith edio citada da Servido voluntria (La Botie,1987, pp. 7-10).

    16 Retomo essa expresso de meu livro Le Cannibale, grandeur et dcadence (1994,cap. 8, pp. 177-97).

    17 Como cr Hoffmann (2002, p. 213).18 Ou 1579-1587 se considerarmos a data de sua redao, conforme a cronologia

    proposta por Pierre Villey.19 Ler, a esse respeito, Nakam (1984, pp. 329-51).20 preciso corrigir, quanto a isso, a nota 8, na pgina 212 da edio de Pierre Villey,

    em que se inspira a recente edio dos Ensaios em Pochothque (Paris, LGF,2001, p. 330, nota 3). No se trata de descries, mas, como sugere Montaigne,efetivamente de pinturas, ou melhor, gravuras. Ver, a ttulo de comparao,Thevet (1557, 76v), Lestringant (1997, p. 162) e Lry (1578 e 1580, p. 214 in1994, p. 367).

    21 Ver ilustrao.22 Assim, h derrotas que vencem vitrias.

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    23 Acerca das alegorias dos quatro continentes no Renascimento, ver Margolin (1982)e Zavala (1984).

    24 Como nos informa Louis Guichardin (Ludovico Guicciardini), Como a Franaaprovisiona Anvers: e grande quantidade de Brasil que os franceses, com granderisco de suas vidas, vo at a Amrica buscar, no pas que (como alhures dizemos)pertence aos portugueses, embora os franceses tenham l construdo pouso e mo-rada, tendo edificado uma bela fortaleza (1582, p. 189). A fortaleza fora tomadaa 16 de maro de 1560.

    25 Sobre essa famosa entrada, ver Massa (1975) e Lestringant (1984).26 Acerca dessa coleo, publicada em Frankfurt por um impressor e gravador refugia-

    do, originrio de Lige, e por seus filhos, ver Bucher (1977) e Duchet et al. (1987).27 [...] e ento, contra povos nus, a no ser onde chegara a inveno de um tecido

    de algodo (ibid.).28 O quadro, conservado no Museu Frans Hals de Haarlem, data das vizinhanas de

    1542 e possivelmente remete expedio de Coronado ao Novo Mxico. Ver re-produo e comentrio no catlogo de Hugh Honour (1976, pp. 12-4).

    29 Ver, especialmente, as partes IV a VI. Vrias reprodues se encontram em MichleDuchet et al. (1987, pp. 193-219).

    30 Cf. Montaigne (1965, I, 31, p. 206).31 Acerca da obra apologtica e missiolgica do padre Acosta, ver o estudo clssico,

    que por vezes se aproxima da hagiografia, de Dainville (1940, pp. 150-3), bemcomo a tese de inspirao marxista de Gliozzi (1977, pp. 371-81).

    32 Caput primum: Urbs diruta, non diruta: et splendidae eius ruinae (Justo Lipso,1584).

    33 Scilicet haec ipsa ruta et caesa spirant etiam Romam veterem et velut scintillasemittunt prisci splendoris (Justo Lipsio, 1584, c. I, p. 11).

    34 Amphiteatri interior facies qualem eam fuisse cum omnibus membris suspicamur(Justo Lipsio, 1584, aps pgina 61) e Amphiteatrum Titi (id., pp. 24-5).

    35 Essa aproximao sugerida por Croquette (1985, p. 39).36 Imagens que foram apontadas por Croquette (1985, p. 43).

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    KEY-WORDS: Montaigne, Amerindians, declamation, primitivism,Tupinamba, Bon Sauvage, cultural relativism, philosophy of history

    Traduo de Beatriz Perrone-Moiss.

    Aceito em novembro de 2006.