monografia rodolfo mendona furtado 0165239[1]

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais e demais familiares, pelo carinho e compreenso. s amizades iniciadas na Faculdade de Direito, que possa se perpetuar. Saudaes especiais aos saldunes Eduardo Janses Freitas Leito e Maracelo Alves Lima. Aos professores e servidores da Faculdade de Direito da Universidadade Federal do Cear. Aos colegas servidores e estagirios da Defensoria Pblica da Unio no Estado do Ceaar, instituio a qual despertou-me a vocao pelo Direito

RESUMO O objetivo do presente trabalho, inicalmente, consiste no estudo da caracterizao de clusulas abusivas nos contratos de planos e seguros privados de sade. No nvel infraconstitucional, a Lei de Planos e Seguros Privados de Sade e o Cdigo de Defesa do Consumidor regulam esses contratos, alm de legislaes infraconstitucionais esparsas. No nvel constitucional, o diteito sade um direito constitucional. Ademais, relaciona-se diretamente com a dignidade da pessoa humana. Por isso, necesrio o estudo da atuao do Ministrio Pblico no exercico das suas atribuies constitucionais para a defesa dos direitos coletivos em sentido amplo ou individuais indisponveis. DESCRITORES: Planos de sade. Clusulas Abusivas. Constituio Federal (Brasil 1988). Cdigo de Defesa do Consumidor. Ao Civil Pblica. Ministrio Pblico.

ABSTRACT The aim of the presente exposition, iniatialy, consists in the study of the characterization of abusive clauses health insurance plans. At the infraconstitucional level, Private Health Insurance Plans Law and Consu8mer Defense Code regulate this contracts, in addition to sparse infraconstitutional legislations. At the constitutional level, right to health is a fundamental right. Furthermore, the right to health is directly related human dignity. So, it's necessarythe study of the District Attorney's performance, in the exercise of its consitutional duties, for the defense of the collective rights in a broad sense or unvailable individual rights. Key Words; Health plans. Abusive clause. Federal Constitutional (Brazil 1988). Metqaindividual rights. Consumer Code. Public Civil Action Law.

INTRODUO

O sistema de sade suplementar uma faceta relevante do direito sade, entronado de maneira indita na Constituio Federal de 1988 categoria de direitos fundamentais. Os contratos de planos e seguros privados de sade repercutem na vida de todos os brasileiros, direta ou indiretamente e, a lamentar, nem sempre de maneira positiva. Nesta senda, analisar-se- a caracterizao nestes contratos de clusulas abusivas que constituem afronta ao sobredito direito, bem a proteo ao consumidor a estas clusulas vexatrias. Ressalte-se que o direito sade est elencado no art. 6 da Constituio Federal, fazendo parte, pois, do rol dos direitos sociais. Mais alm no texto constitucional, o art. 196 assevera que A sade direito de todos e dever do estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doenas e de outros agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao. Em ateno ao prprio termo sade, no primeiro captulo deste trabalho refletese acerca do seu conceito. Outros temas concerntes a este captulo inicial dizem respeito ao Estado Social e a efetivao deste direito, bem como a sua natureza jurdica. Vale dizer que a sade no um servio pblico de titularidade exclusiva do Estado. Podem, ento, serem exercidas atividades concernentes sade por particulares sem necessitar da delegao estatal. Nesse sentido, disps o constituinte que a assistncia sade livre a iniciativa privada (art. 199 da CR/88). Em ateno s leis regulamentadoras desta atividade, no segundo captulo abordase a legislao concernente aos planos de sade, bem como outras normas a eles aplicveis, e se as peculiaridades destes contratos permite a aplicao de leis posteriores aos negcios firmados entre usurios e empresas de planos de sade Em que pese tratar-se de um direito subjetivo da mais alta relevncia, o Estado brasileiro no tem se empenhado em melhorar o servio de sade pblica no pas, sendo este alvo de constantes crticas dos seus usurios. O prprio Poder Pblico (governo federal) reconhece a sua incapacidade de

atuao quando estabelece a renncia fiscal, que permite que pessoas e empresas abatam no Imposto de Renda os gastos com sade privada. Assim, milhes de brasileiros buscam no setor privado de sade a proteo s enfermidades as quais podem ser acometidos, ou mesmo quando j as tm, no caso de leses ou doenas preexistentes. No entanto, no raras vezes so surpreendidos por clusulas contratuais estabelecidas em contratos de adeso que vo de encontro aos anncios publicitrios ou ento pela falta de clareza das disposies que delimitam o servio de sade ou o custeio a este, quando no ilegais. importante atentar-se para o termo surpreendidos, vez que diante da necessidade premente de um tratamento que os cure que se do conta de que o contrato firmado com a operadora de sade contm uma srie de restries no indicadas de forma clara, mormente para os leigos em termos mdicos e jurdicos; ou quando sequer so mencionadas estas restries no bojo do contrato. Cumpre destacar que os polos desta relao guardam posies extremamente desiguais. As operadoras de planos e seguros privados de sade esto encasteladas no alto das torres, contam com assessoria jurdica e elaboram previamente os contratos firmados pelos usurios, que marcham em terra firme e vulnerveis cupidez das empresas, que mercantilizam a sade e intentam majorar os seus lucros em detrimento dos direitos assegurados a estes. No terceiro captulo, ento, discorre-se acerca das clusulas abusivas pespegadas nos cotratos de planos de sade. Fechadas as portas, salvo a hiptese de recorrer tutela jurisdicional, restar como alternativa somar-se as fileiras dos que buscam o Sistema nico de Sade - SUS, o que implica um duplo prejuzo: ao contratante que no teve o seu tratamento realizado na rede particular em face de uma clusula abusiva e ao sistema pblico, que obrigado a atender todo e qualquer cidado, atingindo indiretamente aqueles que realmente no renem condies para custear um plano de sade. Exsurge do exposto acima a necessidade da abordagem evoluo da teoria contratual, que outrora possua como dogmas a autonomia da vontade e o pacta sunt servanda, reproduzindo as concepes do liberalismo econmico ento vigente, e que d

lugar a uma nova teoria contratual, a qual tem como um dos principais pontos a limitao desta autonomia em auxilio da mais fraca da relao contratual. Assim que, na lista dos direitos fundamentais, dispe a Constituio de 1988 no seu art. 5, inciso XXXII: O Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor.Tema que tambpem far-se- presente no terceiro captulo deste TCC. No captulo final lana-se luzes sobre a atuao do Ministrio Pblico em favor dos que foram colhidos por estas clusulas inquas; isto porque a sade um direito indisponvel, e cabe justamente ao parquet a misso constitucional de zelar pelos interesses sociais e individuais indisponveis.

1. O DIREITO SADE

1.1 Evoluo histrica do conceito de sade

A Sade um tema bastante caro ao ser humano. Palmilhando os perodos da histria da humanidade ocidental, nota-se que desde mesmo a pr-antiguidade o Homem j se esforava por descobrir meios que purgassem os males fsicos do corpo. Tal se deu, conforme destacaremos em outras passagens deste trabalho, porque h uma estreita relao entre a sade e a prpria vida humana, tendo em vista que para se viver em plenitude h a necessidade de se estar em gozo de boas condies de sade. Fazendo um recorte no tempo e focando a pr-histria, temos que no houve neste perodo o alvorecer da medicina, no obstante haja registros surpreendentes de achados fsseis que indiquem tcnicas de cura avanadas para esta poca1. Assim, o amparo queles que adoeciam baseava-se em sacrifcios e oferendas s divindades e empirismos, magias ou beberagens que deveriam ser dadas por feiticeiros, sacerdotes, curandeiros e etc. Acreditavase que a cura estava condicionada a ao de foras divinas, sobrenaturais. Esse pensamento devia-se ao fato de que as doenas eram tidas como punies impostas aos homens pelas divindades. Somente estas, portanto, poderiam livr-los de tais males (SCHWARTZ, p. 28). Na antiguidade clssica, tem incio a histria da medicina: Grcia e Roma, por volta do sculo V a.C. A medicina emprica e mgica passar a dar lugar a tcnicas para a cura das enfermidades. Assim, se antes a doena estava associada ao pecado ou ento a fenmenos naturais como as fases da lua, agora se via a causa da doena como endgena, ou seja, estaria dentro do prprio homem, em sua constituio fsica ou em hbitos de vida que levassem ao desequilbrio. Surge, ento, a profisso de mdico. Representante magno da medicina grega, Hipcrates dissociou a medicina da religio. Fazendo relao entre a doena e as precrias condies ambientais, surgia ento a ideia de que a sade no era apenas a ausncia de males, como tambm determinada por um elenco extenso de fatores tais como clima, infraestrutura sanitria e atividades fsicas, alm do tratamento adequado quanto s suas causas endgenas.1GIANONNI, Fortunato Gabriel Medicina e Pr-histria. Acessado em 14.03.2011 Disponvel em

Com a queda do Imprio Romano e a ascenso do Regime Feudal, d-se, no Ocidente, uma inflexo no progresso da medicina. Assim, ressurge na Idade Mdia a noo de que a doena oriunda do pecado. Destaque-se que esse perodo foi marcado por inmeras epidemias, notadamente a peste negra ou bubnica. Somente no final da Idade Mdia que, pouco a pouco, foram sendo criados cdigos sanitrios visando normatizar a localizao de chiqueiros, matadouros, o despejo de restos, o recolhimento do lixo, a pavimentao das ruas e a canalizao de dejetos para poos cobertos2. Ainda assim, preciso lembrar que os hbitos culturais dos habitantes tornavam boa parte das medidas incuas. No sculo XVII, quando em voga o denominado perodo mercantilista, que marcou o declnio do sistema feudal, estrutura sociopoltico-econmica tpica da Idade Mdia Ocidental, a questo da sade passa a ter outro enfoque. Com o incremento da populao urbana, formada notadamente de servos que migraram do campo para as cidades, j se levantavam discusses sobre a sade e trabalho, com tratados sobre as doenas dos operrios. Foi nesta poca que viveu o mdico italiano Bernardino Ramazzini (1633-1714), considerado o pai da medicina do trabalho. No sculo XIX, mais especificamente com o advento da Revoluo Industrial, consolida-se uma nova sociedade que valoriza, sobretudo, a acumulao de capitais. Nessa incipiente fase de afirmao do capitalismo, a alta mortalidade nas cidades e as enfermidades que diminuam a fora de trabalho dos operrios causavam prejuzos ao comrcio e dificultavam a expanso capitalista. Desta feita, motivado por interesses econmicos, vez que, com a diviso social do trabalho, no bastava to-somente a substituio de um trabalhador pelo outro, mas tambm trein-lo para um funo especfica; bem como pela atuao do movimento sindical emergente, o Estado Liberal assumiu a responsabilidade de promover a sade dos trabalhadores. Essa irnica interveno estatal na sade em um Estado Liberal visava, sobretudo, 2 ROSEN, G. Uma Histria da Sade Pblica, Rio de Janeiro: Hucitec, Unesp, Abrasco, 1994 apudBARISTELLA, Carlos. Sade, doena e cuidado, complexidade terica e necessidade histrica. Disponvel em Acessoem 17 mar. 2011.

a tratar de doenas, mais do que propriamente a promover melhores condies de vida. Assim, havia apenas um conceito somtico de sade, sendo esta definida como a ausncia de doenas; e o Estado assumiu a prestao de servios de sade, mas to somente no intuito de ucurar os males que afastavam o operrio da linha de produo, a fim de devolv-lo apto ao trabalho o mais breve possvel e prosseguir na sua extenuante jornada (SCHWARTZ, p. 33). Tem-se, pois, uma recusa do Estado Liberal para garantir a cobertura universal da populao em matria de sade. J no sculo transato, ocorreram uma srie de mudanas sociais e polticas. Sucintamente, citamos, guisa de exemplo, a emergncia dos Estados Socialistas, as duas grandes guerras mundiais e a crise no trabalho . A crise do sculo XX se confunde com o prprio declnio do Estado Liberal; ou, se se preferir, um tempo de profundas mudanas ao que costumeiramente se costuma rotular por decadncia. Sucedendo ento, na maior parte dos pases industrializados, ao Estado Liberal, aparece o Estado-Providncia ou Estado do Bem-Estar Social, que, alm de preservar os direitos e garantias individuais, amplia o seu espectro de atuao, no sentido de promover a assistncia social aos seus cidados. H uma extenso da proteo social a toda a populao e, assim, a sade no mais apenas um meio para assegurar a produtividade do capitalismo, mas sim um direito de todos, inclusive com previso constitucional. Nesse sentido, a Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948. Neste momento, retoma-se a tese da sade preventiva. H, ento, a expanso do conceito de sade. medida que avana e se firma o Estado Social, abandona-se a concepo tese da sade curativa, individualista, de que a sade seria to-somente a ausncia de males, para se consolidar como um direito social, e assim abranger toda a coletividade e se relacionar com aspectos outros, entre eles infraestrutura sanitria bsica, meio ambiente adequado, alimentao saudvel e moradia. Essa outra concepo de sade veio no prembulo da Constituio da Organizao Mundial da Sade (OMS), datada de 26 de julho de 1946. A OMS define a sade como o completo bem-estar fsico, mental e social e no apenas a ausncia de doena, como o primeiro princpio bsico para a felicidade, as relaes harmoniosas e a segurana de todos os povos.

Em que pesem as crticas a esse conceito, diante da subjetividade, e at mesmo da impossibilidade de um completo bem-estar, que vem a ser alcanado paulatinamente, a depender de fatores como a soma necessria de verbas pblicas e o desenvolvimento da tecnologia no diagnstico, tratamento e recuperao de doentes, h que se louvar a OMS por ter dado o caminho para os Estados formularem polticas pblicas de promoo da sade. Ao estender a abrangncia da enfermidade estabelecida promoo da sade e preveno de doenas, passou-se a considerar como objeto de ateno da prtica mdica, em sua modalidade preventiva, no mais apenas os doentes, mas o conjunto da populao, pois, afinal, todos podem vir a adoecer No obstante a sade no ter um conceito determinado, vez que ter uma ou outra definio de acordo com ideologias ou de interaes com outros conceitos com os quais se relaciona, a depender ento do perodo histrico, conforme exps-se acima, h que se tomar uma direo cujo caminho conduza a qualidade de vida, e assim estabelecer uma interdependncia entre a sade e outros direitos sociais. Assim, mais do que um conceito esttico, Germano Schwartz (2001, p. 37) parece-nos indicar a trilha do caminho que se falava h pouco, e ensina que:A sade um processo sistmico, significando que uma meta a ser alcanada e que varia de acordo com a sua prpria evoluo e com o avano dos demais sistemas com os quais se relaciona, em especial o Estado e a prpria sociedade

Refletindo sobre o campo da sade no Brasil, observa-se a mudana de paradigma, ainda que sutil, no que se refere ao atendimento da populao pelo Estado. So o marco dessa transio o Programa de Agentes Comunitrios de Sade (PACS) e o Programa de Sade da Famlia (PSF). Ambos tm em comum o fato de relacionarem a sade com as condies gerais de vida do paciente.3 Compreende-se, ento, a sade de forma ampla, de maneira tal que realize plenamente o ser humano. Para alm da ausncia de doenas, a biologia humana, o meio ambiente, o estilo de vida e a organizao da assistncia sade so elementos que compem o denominado campo da sade (health field), conforme definido em 1974 pelo Ministro da

3 MARTINS, Jos Pedro. Revoluo Silenciosa: programas de assistncia famlia esto mudando a lgica do sistema de sade no Brasil, que privilegia a medicina curativa. Jornal da Unicamp, Campinas, 135, ago. 2001. Disponvel em Acessado 26. abr. 2011.

Sade e do Bem-Estar do Canad Marc Lalonde.4 Nesta senda, cumpre anotar que os Tribunais ptrios esto a reconhecer a obrigatoriedade dos planos de sade em custear tratamentos que visem reduo do excesso de peso, quando caracterizada a obesidade mrbida, em especial a realizao de cirurgias baritricas de reduo de estmago. Isso em sintonia com o que dispe o art. 10, caput, da Lei 9658/98. As empresas recorrentemente alegam que a gastroplastia (cirurgia baritrica) tem fins puramente estticos, menoscabando adrede a importncia da operao, que seria tosomente para efeitos de emagrecimento e rejuvenescimento, e ento apresentam judicialmente o contrato firmado, o qual prev a excluso de cobertura de procedimento de cirurgia reparadora-esttica. No entanto, a obesidade mrbida no s reconhecida como doena, mas tambm pode ser causa preponderante para o surgimento ou agravamento de outras enfermidades, alm dos problemas psicolgicos e sociais. Dessa forma, no julgamento do REsp 1.136.4755, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justia entendeu que a cirurgia plstica para a retirada do excesso de pele decorrente de cirurgia baritrica faz parte do tratamento de obesidade mrbida e deve ser integralmente coberto pelo plano de sade. Para o relator do processo, Ministro Massami Uyeda, ilegtima a recusa da cobertura das cirurgias destinadas remoo de tecido epitelial, quando estas se revelarem necessrias ao pleno restabelecimento do segurado acometido de obesidade mrbida. Como se percebe, o conceito de sade primordial para poder determinar como se dar a efetivao desta enquanto direito fundamental. Quando a OMS elenca o bem-estar fsico, psquico e social na sua definio de sade, o que se tem a concepo de um processo sistmico, onde diversos fatores coligidos do uma resultante que aponta o gozo pleno de uma vida s.

4SCILIAR, Moacyr. Histria do Conceito da Sade. Disponvel em Acessado em 26 abr. 2011. 5 BRASIL, Superior Tribunal de Justia. Recurso Especial n 136475/RS. (2009/0076243-9) Relator Min. Massami Uyeda. rgo Julgador: Terceira Turma. Data do Julgamento: 04 mar. 2010

1.2 O Estado social e o direito sade

Antes de nos debruarmos sobre o Estado Social, urge analisar, a voo de pssaro, seu antecessor, o Estado Liberal. Em que pese a divergncia reinante quanto ao incio deste Estado Liberal, pode-se dizer certamente que ele veio a substituir o Estado Absolutista, notadamente na funo de Estado polcia, no qual o prncipe intervm sem limites em todos os domnios, desde que assim entenda necessrio para a consecuo do interesse dos seus sditos. Como transparece, os administrados no detinham nenhuma proteo jurdica contra essa atividade discricionria e ilimitada do soberano. Assim, a burguesia em ascenso da poca, a fim de estabelecer a segurana necessria ao comrcio, pretende criar bices a essa atuao invasiva do prncipe nas atividades dos particulares. Temos ento, as Revolues Liberais do sculo XIX. Em sintonia com a limitao jurdica do Estado e a diviso de poderes, h que se sublinhar os direitos fundamentais. Inicialmente firmados como um conjunto de valores precedentes e acima do prprio Estado, este os reconhece constitucionalmente e passam esses direitos a pautar a relao entre governante e governados. Estes direitos considerados como indispensveis afirmao da prpria condio de ser humano dizem respeito, sobretudo, a vida, a liberdade e a propriedade. Ressuma, portanto, a supremacia dos interesses da classe burguesa, embora esta tenha engendrado a ideia de oposio ao Antigo Regime de maneira tal que refletisse a aspirao de todos os setores oprimidos pelo Estado Absolutista, a fim de repercutir a sua insatisfao junto s camadas populares. Assim, sob a gide da burguesia, assume a liberdade o status de valor central. Liberdade esta que comporta dois sentidos. Um negativo, que implica a absteno do Estado nos acordos de vontade firmados pelos particulares; outro positivo, a consagrar a autonomia do indivduo que, no mais sujeito as rgidas estratificaes de uma sociedade estamental, tem condies de estabelecer negcios jurdicos sem necessitar de autorizao de outrem e tambm de mudar seu status social.

Essa liberdade marcada por um excessivo individualismo. Depois de sculos de opressiva atuao estatal, quer-se ento estabelecer fronteiras que divisem o Estado e a sociedade. A esta, ou melhor, a burguesia somente interessa a presena daquele na vida dos particulares quando necessria preservao dos acordos de vontades entabulados, independentemente de ponderaes econmicas e sociais das partes envolvidas. Tambm condicionando a atuao do Estado, destaca-se o princpio da legalidade. Destaca Jorge Reis Novais (1987) que, sendo expresso da vontade geral, alm de resguardo da liberdade e propriedade individuais, a lei era um instrumento primordial para impor limites Administrao. A subordinao das atividades administrativas lei e a restrio de matrias que s pudessem ser reguladas por lei ou com base numa lei iam ao encontro do que representava o Estado Liberal, isto , o retraimento da pujana do Executivo, agora submetido ao controle judicial, provocado por particulares, nas hipteses de inobservncia dos direitos individuais institudos em lei. Quanto igualdade, a superao da sociedade aristocrtica vigente no Estado Absolutista deu realidade concepo de que o Direito abstrato e vlido para todos. Assim, proclama-se a igualdade entre todos os indivduos perante a lei. Essa igualdade afeioava-se sobremaneira ao capitalismo incipiente da poca. Uma vez desembaraados da opressiva atuao estatal, que expandia seus tentculos desde a religio at a economia, contavam os indivduos com uma igualdade de oportunidades que os permitia desenvolverem as suas prprias capacidades a partir dos seus esforos. A competio e a concorrncia eram as caractersticas principais desse livre mercado, limitando-se o Estado preservao da esfera privada dos indivduos. O jus-filsofo italiano Norberto Bobbio explica essa igualdade definida pelo liberalismo clssico com a seguinte lio:Hipoteticamente, se a todos for dado um mesmo ponto de partida, a posio que enfim ocuparo depender exclusivamente da velocidade com que tiverem corrido e da distancia alcanada. O liberalismo clssico afirmava que a igualdade de oportunidades possvel mediante a igual atribuio dos direitos fundamentais ' vida, liberdade e propriedade'. (BOBBIO, p. 604)

No entanto, esse escanteamento do Estado em prol de consolidar a posio do indivduo na sociedade, ressaltando-se a sua inerente condio de ser livre, bem como a igualdade formal delineada, no implicou a melhora das condies de vida daqueles que

formavam os setores populares, mas, pelo contrrio, aprofundou as diferenas entre ricos e pobres. Grassavam, pois, a penria e a indigncia. E, a princpio, no dispunham as camadas proletrias de meios pacficos para alterar essa situao desfavorvel, uma vez que o sufrgio universal no era compossvel com o liberalismo, notadamente com o direito irrestrito propriedade. Vigia, pois, o voto censitrio. A ecloso das guerras mundiais na primeira metade do sculo transato, somada ao surgimento dos Estados socialistas e dos Estados totalitrios, fez repercutir a necessidade de um novo papel para o Estado que no apenas resguardasse os direitos individuais, mas tambm que almejasse justia social, provendo direitos bsicos aos seres humanos que assegurem a sua dignidade. Com isso, mostrava-se relevante a atuao estatal, mormente para aqueles marginalizados do desenvolvimento econmico do capitalismo. Assim, as conquistas sociais reivindicadas com tanto afinco pelas massas ao poder poltico ampliaram a presena do Estado no desenvolvimento da sociedade. Prestaes positivas no campo da educao, sade, habitao, assistncia social, entre tantas outras matrias, estavam agora sob a incumbncia do poder pblico para garantir o bem-estar a todos. H, ento, a positivao desses direitos sociais no texto da Constituio de diversos pases. Indita nesse sentido foi a Constituio mexicana de 1917, cuja gnese remonta Revoluo mexicana. No entanto, mais profcua se apresentou a Constituio de Weimar, de 19196 Apesar de o Estado social no se caracterizar to-somente pela atuao estatal (7, para fins de recorte do tema a ser pesquisado debrua-se aqui apenas sobre essa faceta, mais especificamente sobre o direito sade. O direito sade previsto na nossa atual Constituio em diversos dispositivos e aparece expressamente, no art. 196, como direito de todos e como dever do Estado. Destaquese o ineditismo desta previso no nosso ordenamento jurdico, vez que anteriormente apenas os segurados da Previdncia eram beneficiados.6 PINHEIRO, Maria Cludia Bucchianeri. A Constituio de Weimar e os direitos sociais. Disponvel em Acessado em 24 abr. 2011. 7 NOVAIS, Jorge Reis. Ibidem. p. 213.

Tambm cabe destacar direitos outros que se relacionam de forma direta com o direito sade. Como dito outrora, a definio de sade na atualidade reflexo direto da proeminncia do Estado Social. Para alm da ausncia de males, urge a promoo de polticas sociais, culturais e econmicas que previnam o surgimento de enfermidades e ofertem nveis bsicos de dignidade. guisa de exemplo, a Emenda Constitucional n 64, de 4 de fevereiro de 2010, que alterou o art. 6 da Constituio para introduzir a alimentao como direito social. Tambm ilustra-se essa interdependncia entre a sade e outros direitos lembrando a proteo ambiental. Por certo que um meio ambiente hgido, com baixa emisso de poluentes, um contributivo para garantia da sade de todos. A prpria Constituio brasileira, no art. 225, situa o ambiente equilibrado como essencial sadia qualidade de vida. Como se denota, o Estado Social vocacionado a atender ao bem-estar dos seus cidados. A sade, ento, no poderia sobrar do rol dos direitos sociais (com previso constitucional) que impelem a Administrao a elaborar programas de governo efetivadores da justia social. 1.3 Natureza jurdica do direito sade Inicialmente, observamos a incorporao do direito sade no texto constitucional no Ttulo II da CRFB/88 sob a denominao Dos direitos e garantias individuais. Resta, pois, consagrado como um direito fundamental e, assim, goza de proteo jurdica qualificada a fim de ter garantida a sua efetividade. Ademais, a lei 8080/90, em seu art. 2, assevera categoricamente que a sade um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condies indispensveis ao seu pleno exerccio. Mas no apenas pode ser entendido o carter fundamental de um direito com base na sua positivao. Consoante hodierna doutrina, a fundamentalidade dos direitos pode ser compreendida no sentido formal e material8 Uma vez j cedio o preceito constitucional em que firmado o direito sade, quanto ao aspecto formal impende destacar o art. 5, 1, da Constituio Federal, segundo o8 MARINONI, Luiz Guilherme. O direito tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 378, 20 jul. 2004. Disponvel em: . Acesso em: 30 abr. 2011.

qual as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais so diretamente aplicveis e, consectariamente, vinculam diretamente as entidades estatais e os particulares. Acerca da materialidade do multicitado direito, deve-se refletir sobre a relevncia do bem jurdico tutelado pela ordem jurdica. Como j fora pontuado anteriormente, a sade est imbricada vida. Alm da prpria existncia fsica, dignidade do ser humano reclama que este seja assistido de cuidados que garantam o seu bem-estar fsico e mental. Na precisa lio de Ingo Wolfgang Sarlet9:Por tudo isso, no h dvida alguma de que a sade um direito humano fundamental, alis fundamentalssimo, to fundamental que mesmo em pases nos quais no est previsto expressamente na Constituio, chegou a haver um reconhecimento da sade como um direito fundamental no escrito (implcito), tal como ocorreu na Alemanha e em outros lugares. Na verdade, parece elementar que uma ordem jurdica constitucional que protege o direito vida e assegura o direito integridade fsica e corporal, evidentemente, tambm protege a sade, j que onde esta no existe e no assegurada, resta esvaziada a proteo prevista para a vida e integridade fsica.

Visto aqui a sade como direito fundamental, exsurge deste entendimento outras caractersticas inerentes a este direito. Assim, compreende-se que o direito sade inalienvel, ante a ausncia de contedo patrimonial, o que afasta a possibilidade de s-lo negociado ou transferido; imprescritvel, visto a sade ser um direito personalssimo, e a prescrio ser instituo peculiar dos direitos patrimoniais; indivisvel e interdependente, com a sua defesa tambm prevista no Direito Penal, Direito do Trabalho, Direito Ambiental, entre outros; irrenuncivel, vez que imprescindvel dignidade da pessoa humana. O ttulo II da CRFB/88, que disciplina os direitos fundamentais subdividido em cinco captulos. O direito sade est inserido no art. 6 do Captulo II, que trata dos direitos sociais, segundo o qual:Art. 6. So direitos sociais a educao, a sade, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados, na forma desta Constituio:

A partir do artigo suso mencionado, ressuma mais uma caracterstica do direito sade: trata-se de um direito social.9SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas consideraes em torno do contedo, eficcia e efetividade do direito sade na Constituio de 1988. Disponvel em: . Acessado em 01 maio 2011.

Os direitos sociais se revelam como prestaes positivas estatais, entronados no texto constitucional, que intentam oferecer melhores condies de vida aos cidados, e, assim, dirimir a nefanda desigualdade que campeia na sociedade globalizada dos nossos tempos. Atuam, pois, na promoo da cidadania, entendida esta no apenas como pleno exerccio dos direitos polticos, mas tambm a realizao de polticas que visem ao bem-estar comum, concebendo uma justia distributiva. Como anota Afonso da Silva (2007, p. 287), os direitos sociais valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condies materiais mais propcias ao auferimento da igualdade real. Tambm se classifica o direito sade como um direito pblico subjetivo. Com efeito, o art. 196 da CRFB/88 dispe que a sade direito de todos e dever do Estado. H aqui uma relao jurdica entre o Estado e o cidado. quele impe-se obrigaes negativas e positivas em relao assistncia sade, e este tem a faculdade de buscar a tutela jurisdicional quando no observado esse dever jurdico por parte da Administrao. Como se v, tem-se caminhado para superar a noo de direitos sociais como normas estritamente programticas, reconhecendo-se a eficcia normativa dos dispositivos constitucionais. Consoante o art. 5, 1, da Constituio Federal, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata. No obstante, impende ressalvar que, por se tratarem de direitos que requerem, via de regra, a atuao positiva do Estado, h a previso de leis regulamentadoras para a concretizao dos direitos sociais. Sobre este tema, Jos Afonso da Silva10 aduz que:Ento, em face dessas normas, que valor tem o disposto no 1 do art. 5, que declara todas de aplicao imediata? Em primeiro lugar, significa que elas so aplicveis at onde possam, at onde as instituies ofeream condies para seu atendimento. Em segundo lugar, significa que o poder judicirio, sendo invocado a propsito de uma situao concreta nelas garantida, no pode deixar de aplic-las, conferindo ao interessado o direito reclamado, segundo as instituies existentes.

Por fim, a sade expressa no Codex consumerista, Lei n 8078/90, como direito do consumidor. Efetivamente, temos no art. 6, caput e inciso I, que so direitos bsicos do consumidor: a proteo da vida, sade e segurana contra riscos provocados por prticas no fornecimento de produtos e servios considerados perigosos ou nocivos.10 Id. Garantias econmicas, polticas e jurdicas da eficcias dos direitos sociais. Disponvel em Acessado em 01 maio 2011.

2- DOS CONTRATOS DE PLANOS PRIVADOS DE SADE

2.1 Breve histrico dos contratos de planos privados de sade

J anteriormente comentado, com o trmino da Segunda Guerra mundial, h a expanso no mundo ocidental de um novo modelo de estado, denominado de Estado do Bemestar Social. Tem-se, com este, um avano nas polticas pblicas, o que gerou um incremento nos oramentos destinados a prestao de servios para a populao. Na poca em que o pas estava sob o governo do regime militar a arregimentao dos servios pblicos de sade concentrava-se sobremaneira no mbito federal, consequncia do governo burocrtico autoritrio. Tambm nesse perodo houve a reestruturao da Previdncia Social, havendo a reunio das atividades previdencirias no instituto Nacional de Previdncia Social (INPS). Apesar deste incio da estatizao do tratamento da sade, importante repisar que a Constituio Federal de 1967 assegurava o direito sade apenas aos trabalhadores. Ainda mesmo nas dcadas de 60 e 70 j se tinha a percepo da ineficincia do sistema implantado pelo Estado. Ento, passou-se a adoo de um modelo mdico privatista, no qual a prpria Previdncia Social remunerava o setor privado para que este prestasse os servios de assistncia mdica. Nesta fase foram institudas as Sociedades Cooperativas de Trabalho Mdico UNIMEDs, formadas com a natureza jurdica de cooperativas de trabalho. Como sintetiza Joseane Suzart Lopes da SilvaVerificou-se o financiamento pelos hospitais privados pelo Estado e a instituio do sistema de credenciamento para a compra de servios, celebrao com as empresas de convnios que deram origem medicina de grupo e autogesto. Constantemente, o Estado utilizava-se de recursos do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), criado pela Lei n 6198 de 1974, para financiamento dos hospitais privados. O INPS comprava os servios privados de sade e o Estado deixou de investir na ampliao da rede pblica, destinando 90% dos seus recursos para a compra de servios privados (SUZART, 2010, p. 43)

Nos anos 80, tem-se a sensibilidade para a crise da sade. Com o incio da redemocratizao no Brasil, abre-se espao para discusses sobre temas concernentes ao sistema de sade do pas.

Tambm passa a entrar na pauta da agenda poltica do pas os debates sobre os direitos em prol dos consumidores, reconhecidos como partes vulnerveis nas relaes jurdicas entabuladas em uma economia de mercado. O desenvolvimento de uma sociedade que caminhava para o fim de uma ditadura aliado a acessibilidade aos bens de consumo fomentaram a conscientizao necessria para a defesa dos interesses socioeconmicos. Fruto deste novo paradigma, tem-se, em 1987, a criao do Instituto Brasileiro de defesa do Consumidor IDEC, entidade civil sem fins lucrativos. Em 1988 temos a promulgao da atual Constituio. Alm da previso do direito sade, j comentado no captulo anterior, destaca-se que pela primeira vez expressou-se a defesa do consumidor como um direito fundamental (art. 5, XII, da CFRB/88). Reconhecido como um direito fundamental de terceira gerao, o direito do consumidor tem relao estreita com a garantia da dignidade humana, devendo assim, ser observado o seu fiel cumprimento. Tambm na novel Constituio Federal foi disciplinada assistncia sade suplementar, como exsurge do art. 197, in verbisArt. 197. So de relevncia pblica as aes e servios de sade, cabendo ao Poder Pblico dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentao, fiscalizao e controle, devendo sua execuo ser feita diretamente ou atravs de terceiros e, tambm, por pessoa fsica ou jurdica de direito privado.

Nos anos 90, logo no seu limiar, houve a edio de leis regulamentando esses dois direitos fundamentais. Assim, foram sancionadas as leis 8080/90 - dispe sobre as condies para a promoo, proteo e recuperao da sade, a organizao e o funcionamento dos servios correspondentes e d outras providncias e 8078/90, comumente designada por Cdigo de Defesa do Consumidor - CDC. Em que pese a concepo do Sistema nico de Sade SUS, notou-se uma enorme expanso do setor de medicina suplementar no pas. Alm do crnico problema da m qualidade dos servios do SUS, a evoluo do uso de aparelhos de alto grau de sofisticao no diagnstico de doenas e tratamentos avanados na cura destas foram fatores de destaque nesse crescimento. Assim, premido pela necessidade de garantir o bem-estar para si e sua famlia, o consumidor manifesta o seu consentimento e contrata os planos de sade privados, mas sem discutir as clusulas que compem esse acordo, atravs dos denominados contratos de adeso (art. 54 do CDC). O avano desse setor, no apenas em termos de crescimento, como tambm ao prprio direito dos usurios, exigia a sua regulamentao. Embora tardiamente (10 anos aps a promulgao da Constituio Cidad), foi editada, em meados de 1998, a legislao bsica dos planos de assistncia sade. Trata-se da Lei n 9656/98, alm de algumas medidas provisrias (1.665/98, 1.685/98, 1.703-7/99, 1.976-44/2000 e 2.177-44/2001). Em anlise comparativa das leis regulamentadoras do setor de sade suplementar, leciona Suzart (2010, p.53-54):No setor de sade suplementar, o modelo de regulao brasileira diferencia-se do

adotado em diversos outros pases, visto que na maioria destes, acompanha-se a atividade econmica, observando-se o estado de solvncia das empresas do ramo e a competitividade entre as mesmas. No nosso Pas, a regulao estende-se, tambm, para a qualidade do servio prestado aos consumidores, sendo vedada a previso de clusulas abusivas que prejudiquem os interesses dos consumidores.

Chegando ltima etapa desta digresso histrica, a primeira dcada do novo sculo no trouxe a alvissareira mudana no comportamento das empresas dos planos de sade. Medram as denncias dos consumidores contra estas, que no raramente lideram o ranking de reclamaes junto aos rgos de defesa do consumidor11. Nesse perodo h a criao da Agncia Nacional de Sade ANS, autarquia cuja funo regulamentar e fiscalizar a prestao privada dos servios de sade, bem como a instaurao de Comisso Parlamentar de Inqurito CPI, na Cmara dos deputados, com o fito de investigar denncias de irregularidades na prestao de servios por empresas e instituies privadas de planos de sade., no perodo de junho a novembro de 2003. Dessa forma, ainda h uma longa trilha a se percorrer para a efetivao dos direitos dos consumidores. No plano normativo, aconselham-se alguns aprimoramentos na lei 9656/98, bem como a edio de resolues normativas pela ANS que protejam os consumidores da sanha por lucros das empresas. No plano social e jurdico, a conscincia dos consumidores para lutarem pelos seus direitos e a atuao denodada do Ministrio Pblico, no cumprimento do seu mister constitucional, para elidir as prticas abusivas impingidas aos usurios.

2.2 Os contratos de planos e seguros privados de sade e o Cdigo de Defesa do Consumidor

Antes de procurar esmiuar esta relao entre os contratos de planos de sade privados e o CDC, importa refletir sobre os contratos editados anteriormente ao Codex consumerista. De incio, pertinente a seguinte indagao: era possvel a caracterizao de uma clusula contratual como abusiva, sem ainda ter a sua previso expressa no CDC? Buscando dar uma soluo a essa questo, os magistrados buscavam esquadrinhavam dispositivos legais que resguardassem o equilbrio nas relaes contratuais, desrespeitado principalmente nos contratos estandardizados, Assim, evocavam principalmente o art. 115 do Cdigo Civil de 1916, cujo correspondente no Cdigo de 2002 o art. 122, infra:Art. 122. So lcitas, em geral, todas as condies no contrrias lei, ordem 11 Ver reportagem pelo Jornal da Tarde, na qual informa que pelo dcimo ano consecutivo os planos de sade foram campees de reclamaes junto ao IDEC. Disponvel em: Acessado em 05.05.2011

pblica ou aos bons costumes; entre as condies defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negcio jurdico, ou o sujeitarem ao puro arbtrio de uma das partes.

Exsurge do texto legal suso mencionado a proibio legal s clusulas puramente potestativas, ou clusulas si voluero. No pode, pois, uma das partes dobrar-se ao inteiro arbtrio da outra 12. Conforme lio de Cludia Lima Marques (2005), essas vedaes s clusulas leoninas foram uma primeira tentativa de combater a clusulas consideradas abusivas, mas essas clusulas, apesar das suas semelhanas, no se confundem:Em uma viso particular, podemos afirmar que o arbtrio e a unilateralidade excessiva na fixao de elementos essenciais do contrato (sujeito, objeto, preo e consenso) detectados nas clusulas leoninas e meramente potestativas so caractersticas comuns s clusulas hoje consideradas abusivas. A diferena estaria no grau de unilateralidade e de arbtrio antes exigido, muito maior do que o atual, e na matria regulada pelas clusulas consideradas abusivas, que hoje pode englobar (e geralmente o faz) os elementos no essenciais do negcio, como as garantias ao vcio do objeto, evico, ao pagamento, ao no atraso do pagamento. (MARQUES, p. 902-903)

Com a publicao do Cdigo de Defesa do Consumidor, restou a dvida: os contratos de planos de sade firmados anteriormente a este Codex seriam regidos pelas disposies deste? Para dirimi-la a contento, h que se analisar a especificidade destes contratos. Assim, observa-se que quando o consumidor contrata um plano de sade, no tem por objetivo a execuo imediata dos servios mdicos e hospitalares, embora assim possa ocorrer, desde que cumpridos os prazos de carncia legais. H, ento, uma relao jurdica que se protrai no tempo. Enquanto aquele se obriga ao pagamento de uma mensalidade, este tem por dever a prestao daqueles servios. Denota-se, pois, que o fator tempo fundamental nessa relao jurdica. Esses

12 guisa de exemplo, reproduz-se clusula contratual fulminada por nulidade pelo TRF 4, no julgamento da Apelao Cvel N 70007041568 (D.J. 22.04.2004), por ser puramente potestativa : 14 CANCELAMENTO DO SEGURO 14.1 O seguro estar automaticamente cancelado, independentemente de notificao e/ou interpelao judicial e sem que caiba indenizao parte infratora, nas situaes: e) quando a composio do grupo segurado ou a natureza dos riscos vierem a sofrer alteraes tais que tornem invivel a sua manuteno pela Seguradora, esta reserva-se o direito de cancelar o seguro, mediante o aviso prvio por escrito de, no mnimo, 30 (trinta) dias Como considerado pela e. relatora Des. Marta Borges Ortiz, Tamanha a lacunosidade vertida no referido dispositivo que chega a beirar as raias do sofismo

contratos duram por

dcadas, qui uma vida toda. Essa longevidade peculiar a esses

contratos o fazem ser intitulados por contratos cativos de longa durao13 Isto porque h uma forte dependncia do consumidor. Este pensa no futuro, principalmente quando atingir uma idade avanada, e dessa forma contrata um plano que o ampare no caso de sobressalto com alguma doena ou acidente. Alm da confiana de um atendimento futuro, tambm cr que lhe seja prestado um servio de boa qualidade. Ressuma, pois, que esses contratos de seguro-sade tm a natureza de trato sucessivo, e, assim, tm renovao automtica a partir do prazo inicial de vigncia, quer com espeque no art. 13 da Lei n 9656/98, ou no art. 51, 1, II, do CDC. Portanto, na hiptese de o contrato ter sido renovado na vigncia do Cdigo consumerista, este o reger, no havendo aqui a retroatividade de lei nova. Ademais, gize-se que o CDC norma de ordem pblica e interesse social, consoante o seu art. 1. Nesta senda, tem-se que o Superior Tribunal de Justia14perfilhou-se tese acima aduzida. Consolidando ento as decises proferidas em diversos julgados, a Segunda Turma do STJ aprovou a smula n 469 (publicada em 06/12/2010), cujo enunciado a seguir se transcreve:Aplica-se o Cdigo de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de sade.

Por fim, quanto aos contratos de assistncia mdica suplementar firmados j na vigncia da Lei 8078/90, resta a concluso de que se aplica o CDC a estes contratos. Esta ilao, alm de se firmar ao anteriormente exposto, tem espeque nas prprias disposies do Cdigo consumerista. De fato, a definio legal de consumidor assevera ser este pessoa fsica ou jurdica que adquire ou utiliza produto ou servio como destinatrio final, equiparando-se, ainda, figura do consumidor a coletividade de pessoas que haja intervindo nas relaes de consumo (art. 2 e pargrafo nico do CDC). V-se, pois, que os usurios de planos de sade esto includos neste conceito, vez13 Cf. MARQUES, Cludia Lima. Contratos no cdigo de defesa... 14 No obstante o CDC ser uma norma de ordem pblica, o STJ vem negando aplicabilidade do Cdigo a outros tipos de acordos pactuados anteriormente a este, como no caso dos Contratos do Sistema Financeiro de Habitao (SFH). Nesse sentido, veja-se o Resp 969040/DF, julgado em 04/11/2008. Min. Relator: Nancy Andrighi

que no contratam os servios com finalidade de revend-los ou incorpor-los a uma cadeia de produo, mas apenas para uso pessoal e de seus dependentes e, com isso, presume-se a sua vulnerabilidade ftica, tcnica, jurdica e informacional (MARQUES, p. 320). Como os seguros e planos de sade so pessoas jurdicas privadas prestadoras de servios de assistncia sade, esto em consonncia com o conceito legal de fornecedor, de acordo com a disposio do art. 3, caput e inciso II do CDC. Reconhecida, pois, a aplicao do Cdigo de Defesa do Consumidor nas relaes entabuladas entre os usurios e operadoras de planos de sade, tem-se, consectariamente, uma gama de direitos bsicos que so assegurados queles, elencados no art. 6 do CDC. Ademais, o art. 47 deste Codex prev que as clusulas contratuais sero interpretadas de forma mais favorvel ao consumidor. Destaque-se que este artigo 47 deve ser interpretado em conjunto com o art. 4, III, CDC, no qual traz expresso o princpio da boa-f objetiva. H de se conceber, ento, que a interpretao mais favorvel ao consumidor do contrato como um todo, e no apenas de clusula obscura ou ambgua. Desta maneira, na aplicao das normas do Cdigo do Consumidor, o intrprete deve utilizar-se dos princpios informadores deste Cdex a fim de extrair o sentido consentneo a ele. 2.3 Os contratos de planos privados de sade e a lei 9656/98 Como dito alhures, a edio da Lei 9656/98 revestiu-se de notvel importncia social e econmica, regulamentando um setor que conta aproximadamente com 52 (cinquenta e dois) milhes de usurios. A partir de sua publicao, passou a existir uma cobertura mnima de servios, os quais anteriormente eram to-somente aqueles previstos em contratos de adeso. Assim, as operadoras que redigiam as clusulas destes contratos (policitantes), parte mais forte da relao contratual, excluam do rol das enfermidades a serem tratadas as doenas crnicas, degenerativas, infeto-contagiosas e as doenas e leses preexistentes. Ademais, as operadoras, em geral, colocavam limitaes quanto ao nmero de consultas mdicas, dias de internao, sesses de fisioterapia, exames, e de idade para ingresso e permanncia no plano.

Diante daquela previso legal, Fbio Ulhoa Coelho classifica os contratos de planos privados de assistncia sade como contratos tpicos 15. Isto porque, quer por normas supletivas, quer por normas cogentes, dispe o texto legal sobre direitos e obrigaes das partes contratantes. Sobre aspectos estruturais, define a Lei de Planos de Sade (LPS), no seu art. 1, caput, que os planos e seguro privados de sade so pessoas jurdicas de direito privado, que operam planos de ateno mdica suplementar, cuja finalidade garantir, sem limites financeiros, a assistncia sade. Quanto conformao destas pessoas jurdicas como operadoras de planos de sade, no fundamental a prestao direta de servios em prol dos usurios, e sim a coordenao de atividades de gesto dos recursos angariados dos consumidores com fins a cobertura dos gastos referentes assistncia mdica, hospitalar ou ambulatorial (SUZART, p. 80). No intuito de assegurar o cumprimento das pessoas jurdicas ao que dispe a lei 9656/98, a Medida Provisria n 2.177-44, de 24 de agosto de 2001, definiu, no art. 1, 1, da LPS, uma srie de caractersticas que, se previstas em quaisquer modalidades contratos, ainda que aquelas pessoas adotem outras denominaes que omitam a sua verdadeira natureza de operadoras de planos privados de sade, estaro sujeitas fiscalizao da Agncia Nacional de Sade quanto ao cumprimento da legislao e Resolues Normativas por esta expedida16. Quanto s espcies de planos ou seguros de sade, temos que elas so cinco: plano ou seguro ambulatorial, plano ou seguro hospitalar, plano ou seguro hospitalar com obstetrcia, os planos odontolgicos e os planos ou seguros referncia. Em uma anlise perfunctria, temos que no plano ambulatorial no so cobertas despesas com internaes hospitalares, mas apenas consultas e exames, consoante o art.12, I,15 COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito civil, contratos. 3. ed. rev. So Paulo: Saraiva, 2009. p. 53 16 Assim, h grande discusso quanto s denominadas redes de descontos. No obstante o Comunicado N 09/2003 da Diretoria Colegiada da ANS, informando que empresas que operam por sistemas de descontos no so consideradas planos de sade, e isto ser usado pelas empresas para se escusarem s exigncias legais da LPS, h que se observar que estas custeiam as despesas dos consumidores nos hospitais conveniados a partir das mensalidades pagas por estes; ento, de acordo art. 1, 1, I, so consideradas sim planos de sade. Nesse sentido, ver ACP ajuizada pelo Ministrio Pblico Federal MPF/DF, em desfavor da ANS e da Associao dos Servidores da Secretaria de educao do Distrito Federal ASSEDF. Disponvel em

da Lei 9656/98. J no inciso seguinte, prev-se o plano hospitalar, no qual no h a cobertura de consultas e exames, seno aqueles necessrios internao17 Acerca do plano-referncia, est ele disciplinado no art. 10 da LPS. Trata-se, conforme o guia assistencial da ANS18, da modalidade mais ampla de plano, que abrange a cobertura ambulatorial somada s previstas para o plano com cobertura hospitalar com obstetrcia. De acordo com o que dispe o 2 deste artigo, obrigao das operadoras oferecerem o plano-referncia aos usurios. Quanto classificao dos contratos de planos privados de assistncia sade, h trs tipos de contratao: os planos individuais (ou familiares); os planos coletivos por adeso e os planos coletivos empresariais. Os planos individuais, de acordo com o art. 3 da Resoluo Normativa N 195 da ANS, so aqueles os quais a prpria pessoa contrata o plano de sade na instituio, de livre adeso aos beneficirios. J acerca dos coletivos, tanto os por adeso como os empresariais exigem a intermediao de uma pessoa jurdica (empresa, sindicato, associao ou fundao) entre o usurio e as operadoras de planos de sade. Os beneficirios daqueles esto elencados no art. 9 da RN 195/09, enquanto os deste no art. 5 desta Resoluo. Questo que desperta controvrsias diz respeito regulao destes planos pela Lei 9656/98. Isto porque os usurios de planos de sade individuais, em geral, gozam de mais proteo aos seus direitos do que aqueles possuidores de planos coletivos. Por bvio, ento, que as empresas de ateno mdica suplementar concentraro seus esforos na oferta destes. Ainda, constata-se no plano ftico a disperso do risco populacional, vez que nos planos coletivos os consumidores so titulares da fora de trabalho formalizada e ativa, e renem um contingente de pessoas mais jovens que aqueles dos planos individuais e adoecem menos.19 guisa de ilustrao, pesquisa divulgada revelou que, no ano de 2009, dos 52 (cinquenta e dois) milhes de planos contratados, 40 (quarenta) milhes eram planos17 Atualmente, a cobertura mnima obrigatria destas espcies de planos/seguros de sades tem previso na Resoluo Normativa n 167/08 da ANS. Em breve, no dia 07 de junho de 2011, entrar em vigor uma nova Resoluo, a 211/10, que amplia as coberturas mdicas e odontolgicas a partir desta data. 18 Disponvel em Acessado em 16 maio 2011 19 Relatrio Final CPI Plano de Sade. Disponvel em Acessado em 16 maio 2011

coletivos. Segundo estudo da Austin Asis consultoria, enquanto nos ltimos nove anos os planos individuais mantiveram-se estveis, os planos coletivos cresceram por volta de 300% (trezentos por cento).20 Para piorar esse quadro, a ANS no intervm nos reajustes das mensalidades dos planos coletivos. Diferentemente dos planos individuais, nos quais a Autarquia estipula um ndice mximo de reajuste, naqueles ela apenas faz apenas um monitoramento dos reajustes, prevalecendo o que se disps no contrato.21 Essa omisso advm de uma interpretao enviesada da Lei 9.961/00, que criou a ANS, vez que a sua atribuio legal de regular os planos de sade no ficou estabelecido sobre quais contratos deve ela cumprir com sua finalidade institucional de promover a defesa do interesse pblico. Ante a ausncia de qualquer distino ou exceo, deveria a Agncia regular tanto os reajustes dos planos individuais como coletivos. Outro argumento utilizado o de que o poder de negociao entre as pessoas jurdicas contratantes e as operadoras de planos de sade maior do que nos casos dos contratos individuais. Como destacado no relatrio final da Comisso Parlamentar de Inqurito instalada na Cmara dos Deputados (jun. a nov. 2003):Segundo a Lei 9.656/98, todos os planos de sade devem se enquadrar nas normas de cobertura e o reajuste de preos dos planos individuais e dos coletivos empresariais uma prerrogativa da ANS. Porm, a ANS no assumiu a atribuio de determinar os ajustes dos planos coletivos patrocinados. O principal argumento utilizado para a no interveno governamental nos planos empresariais que os contratos e negociaes de preos estabelecidos entre empresas (empregadora e assistncia suplementar) tendem a um maior equilbrio entre as partes envolvidas. No entanto, inegvel que os planos empresariais so o principal eixo de sustentao e organizao do mercado de planos e seguros de sade e, portanto, os definidores dos padres de coberturas e preos para as demais modalidades de contratao. (p. 76)

Ademais, a prpria Lei 9656/98 faz vedaes a prticas abusivas contra os planos contratados individualmente, mas no aos planos coletivos. Exemplificativamente, trazemos 20 Disponvel em Acessado em 08.05.2011. Acerca desse aumento da base de usurios de planos, o economista da Austin Asis, Leonardo dos Santos, afirma que houve uma elevao muito forte nos custos para as operadoras e seguradoras, por isso esto deixando de operar no segmento individual. Como exemplo, cita a descontinuidade de algumas operadoras nos planos individuais, como os casos do Bradesco e Sul Amrica. 21 Disponvel em < http://www.ans.gov.br/portal/upload/biblioteca/guia_reajuste_mensalidade.pdf > Acessado em 08 maio 2011.

baila o art. 13, in verbis:Art.13. Os contratos de produtos de que tratam o inciso I e o 1o do art. 1o desta Lei tm renovao automtica a partir do vencimento do prazo inicial de vigncia, no cabendo a cobrana de taxas ou qualquer outro valor no ato da renovao Pargrafo nico. Os produtos de que trata o caput, contratados individualmente, tero vigncia mnima de um ano, sendo vedadas: (...) II - a suspenso ou a resciso unilateral do contrato, salvo por fraude ou nopagamento da mensalidade por perodo superior a sessenta dias, consecutivos ou no, nos ltimos doze meses de vigncia do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado at o qinquagsimo dia de inadimplncia (...)

Como se v, no h a proibio expressa da resciso unilateral de contratos coletivos, como ocorre para os planos individuais e familiares. Com isso, a ANS mantm-se inerte em casos de cancelamento daqueles contratos, no obstante o prejuzo aos usurios. Contudo, assim no deveria ser, pois de acordo com o Cdigo de Defesa do Consumidor (como visto, aplicvel aos contratos de planos de sade), nula de pleno direito clusula que autorize a resciso unilateral. Dessa forma, tem havido o que os especialistas chamam de falsa coletivizao, isto , a formao de pequenos grupos (alguns chegam a contar com apenas duas pessoas) para a contratao de planos coletivos. Assim, se apenas uma das pessoas fizer uso do plano, a operadora, que no conta com a fiscalizao dos reajustes, repassar a esse pequeno grupo os gastos despendidos com apenas um usurio, saltando os preos das mensalidades. Sobre a adaptao ou migrao dos contratos antigos (aqueles firmados anteriormente a regulao dos planos e seguros privados de sade), diferenciam-se pelo fato de na adaptao o contrato antigo ainda viger, mas adaptado a Lei 9656/98; enquanto que na migrao o contrato antigo cancelado, e o novo adapta-se a esta lei. Por fim, urge analisar o que restou decidido, em medida cautelar22, pelo E. Supremo Tribunal Federal na ADIN 1.931-8/DF. Nesta ao, foi suspensa a eficcia do art. 35-E, da Lei 9656/98, ao entendimento de que a sua aplicao aos contratos anteriormente firmados a sua publicao representava ofensa ao princpio da irretroatividade da lei.

22 De acordo com o art. 11, 1, da Lei 9868/99, a medida cautelar, dotada de eficcia contra todos, ser concedida com efeito ex nunc, salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficcia retroativa

Transcreve-se abaixo trecho da deciso plenria da liminar na citada ADIN:... Em seguida, deferiu (o STF), em parte, a medida cautelar, no que tange suscitada violao ao artigo 5, XXXVI da Constituio, quanto ao artigo 35-G, hoje, renumerado como artigo 35-E pela Medida Provisria n 2.177-44, de 24 de agosto de 2001, em seus incisos I a IV, 1, incisos I a V, e 2, redao dada pela Medida Provisria n 1.908-18, de 24 de setembro de 1999...

Gize-se que nesta liminar no h meno a eficcia retroativa da deciso prolatada. Dessa forma, a suspenso dos efeitos do Art. 35-E e pargrafos, da Lei 9.656/98, iniciou-se com a publicao da deciso cautelar do E. STF no Dirio Oficial da Unio. 23 Posies doutrinrias e jurisprudenciais, contudo, tm dissentido desta deciso do STF, mormente nas hipteses de majoraes irrazoveis das mensalidades de planos de sade24. Isto porque, como j comentado em tpico anterior, so estes contratos de trato sucessivo, e, por isso, a continuidade da relao jurdica nsita a tais contratos. Como destaca Gomes (2009, p. 156), " como se as partes houvessem celebrado novo contrato com o mesmo contedo". Assim, a cada renovao h um novo contrato, o que permite a vigncia da Lei 9656/98.

2.4 Os Contratos de planos privados e sade e o Estatuto do Idoso Lei n 10.741/2003

Inicialmente, impende refletir sobre a condio especfica do idoso25. Isto porque, diante da senescncia, as alteraes biolgicas e fsicas na terceira idade tornam essas pessoas mais suscetveis ao acometimento de doenas, bem como o envelhecimento cerebral pode trazer dificuldades ao processo de assimilao de novas informaes. Tambm nessa fase da vida so mais comuns os casos de senilidade, entendida esta como uma intensificao no surgimento de patologias na velhice, como hipertenso arterial, cncer e demncia. Denota-se, dessa maneira, que o idoso est em posio de extrema23 No presente caso, a deciso da ADI MC 1931-8/DF constou da ata de julgamento publicada no DOU do dia 03 set. 2003. 24 No mbito do Superior Tribunal de Justia, h divergncias sobre a aplicabilidade ou no da lei 9656/98 aos contratos anteriores sua edio. H favor, tem-se o Resp 809329/RJ, Terceira Turma, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, julgado em 25.03.2008. Em sentido contrrio, SLS 163/PE, relatado pelo Presidente poca do STJ, Ministro Edson Vidigal, julgado em 21/09/2005. 25 A Organizao Mundial da Sade (OMS) define o idoso como uma pessoa com 65 anos ou mais nos pases desenvolvidos, e 60 anos nos pases em desenvolvimento. O art. 2, da lei 8842/94, dispe: considera-se idoso, para os efeitos desta lei, a pessoa maior de sessenta anos de idade.

vulnerabilidade, a ensejar uma proteo especial alm da consagrada aos consumidores em geral (MARQUES, 2005, p. 389). O legislador ordinrio, em ateno ao que ora se expe, bem como ao art. 230 da Constituio Federal, disciplinou direitos a este grupo social no denominado Estatuto do Idoso (Lei 10741/2003). No que toca relao jurdica entre estas pessoas e as empresas de plano de sade, foi disposto que:Art. 15. assegurada a ateno integral sade do idoso, por intermdio do Sistema nico de Sade SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitrio, em conjunto articulado e contnuo das aes e servios, para a preveno, promoo, proteo e recuperao da sade, incluindo a ateno especial s doenas que afetam preferencialmente os idosos. (...) 3 vedada a discriminao do idoso nos planos de sade pela cobrana de valores diferenciados em razo da idade ()

Buscou-se, assim, resguardar os idosos da prtica assaz nefasta, a qual tem espeque mesmo em Smula Normativa da ANS (SN n 03), de impingir majoraes nas mensalidades em razo da faixa etria dos usurios, com o ardil de que as pessoas mais velhas, as quais notadamente so as mais necessitadas de ateno mdica, abandonem o plano, sobretudo porque elas no mantm o mesmo padro financeiro de antes com a aposentadoria que passam a receber.26 Para escapar a vedao imposta pelo art. 15, pargrafo nico, da Lei 9656/98, as operadoras de planos de sade, adrede, concentram o aumento na faixa etria prxima aos 60 anos27. No entanto, revela-se a uma clusula contratual inquinada por abusividade. (art. 51, IV, pargrafo 1. e incisos I a III do CDC). Discusso que tem entrado na pauta de julgamentos dos Tribunais ptrios diz respeito aplicabilidade do Estatuto do Idoso aos contratos de planos de sade firmados anteriormente a sua publicao ou ainda se o contratante com idade abaixo de 60 anos quando26 Depoimento transcrito no relatrio final da CPI dos planos de sade, p. 52: o Sr. J.I.O, de Recife, relatou que desde 30 de julho de 1996 tem plano de sade da Golden Cross. Porm, em 21/03/2003, quando completou 60 anos de idade, sofreu aumento da ordem de 299,92%. Afirma que se tornou para ele impossvel continuar com o plano de sade, pois aposentado e no tem renda suficiente 27 A Resoluo do Conselho de Sade Suplementar (CONSU) n. 6, de 1998, estabeleceu os reajustes em sete faixas etrias, sendo: 0-17 anos; 18 a 29 anos; 30 a 39 anos; 40 a 49 anos; 50 a 59 anos; 60 a 69 anos; 70 anos ou mais. Definiu tambm que o valor da ltima faixa etria no pode ser superior a seis vezes o valor da primeira faixa etria.

entrou em vigor o multicitado estatuto teria o seu contrato regido com as disposies deste quando sexagenrio. Lembrando a caracterstica peculiar aos contratos de planos de sade, qual seja, a continuidade da relao jurdica, que os fazem ser caracterizados como contratos de tratos sucessivos, com renovao automtica prevista em lei, temos que as clusulas contratuais que prevejam reajustes de mensalidades unicamente por mudanas na faixa etria acima dos 60 anos restam nulas, independentemente de o contrato ter sido firmado anteriormente ao Estatuto do Idoso. Acerca da hiptese de o contratante vier a completar 60 (sessenta) anos na vigncia da Lei N 10741, isso no o tornar menos idoso em relao a quem j tinha essa idade ao viger a lei. A hipervulnerabilidade identifica-se independentemente de a terceira idade ser atual ou no ao Estatuto Protetivo. Este, ao disciplinar o princpio constitucional da proteo ao idoso, revela-se como uma norma de ordem pblica e interesse social Ademais, enquanto no completados os 60 anos, fato jurdico natural que se caracteriza pela incerteza, no se pode ter como direito adquirido da operadora o reajuste predefinido das mensalidades dos planos de sade na faixa etria igual ou superior aos 60 anos. O ato jurdico perfeito tambm no atacado, vez que h aqui a aplicao imediata da lei, e no a sua retroatividade.28 Consoante tese sustentada por Marques (2005, p.658):Dois aspectos devem aqui ser sustentados: a noo positivista de ato jurdico perfeito e a mudana da imagem da retroatividade. Com efeito, a aceitao da aplicao imediata da lei nova de ordem pblica (como o CDC, ex vi seu art. 1) pressupe uma interpretao de ato jurdico perfeito conforme o disposto no art. 6, 1, da LICC, em que o elemento caracterizador no a constituio, mas sim a consumao do ato. Sendo assim, possvel considerar que o ato constitudo que ainda no surtiu todos os seus efeitos no est perfeito, o que no impede, porm, de identificar esse ato como fonte de direitos adquiridos.

Colaciona-se abaixo ementa de acrdo do STJ, pugnando pela aplicao do Estatuto quer aos futuros como aos atuais idosos:Direito civil e processual civil. Recurso especial. Ao revisional de contrato de plano de sade. Reajuste em decorrncia de mudana de faixa etria. Estatuto do idoso. Vedada a discriminao em razo da idade. 28 DELFINO, Lcio. Reflexes acerca do art. 1 do Cdigo de Defesa do Consumidor. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 230, 23 fev. 2004. Disponvel em: http://jus.com.br/revista/texto/4832. Acesso em: 13 maio 2011.

- O Estatuto do Idoso veda a discriminao da pessoa idosa com a cobrana de valores diferenciados em razo da idade (art. 15, 3). - Se o implemento da idade, que confere pessoa a condio jurdica de idosa, realizou-se sob a gide do Estatuto do Idoso, no estar o consumidor usurio do plano de sade sujeito ao reajuste estipulado no contrato, por mudana de faixa etria. - A previso de reajuste contida na clusula depende de um elemento bsico prescrito na lei e o contrato s poder operar seus efeitos no tocante majorao das mensalidades do plano de sade, quando satisfeita a condio contratual e legal, qual seja, o implemento da idade de 60 anos. - Enquanto o contratante no atinge o patamar etrio preestabelecido, os efeitos da clusula permanecem condicionados a evento futuro e incerto, no se caracterizando o ato jurdico perfeito, tampouco se configurando o direito adquirido da empresa seguradora, qual seja, de receber os valores de acordo com o reajuste predefinido. (...) - Sob tal encadeamento lgico, o consumidor que atingiu a idade de 60 anos, quer seja antes da vigncia do Estatuto do Idoso, quer seja a partir de sua vigncia (1 de janeiro de 2004), est sempre amparado contra a abusividade de reajustes das mensalidades com base exclusivamente no alar da idade de 60 anos, pela prpria proteo oferecida pela Lei dos Planos de Sade e, ainda, por efeito reflexo da Constituio Federal que estabelece norma de defesa do idoso no art. 230. (gn) (...) Recurso especial no conhecido (RESP 809.329/RJ. rgo Julgador Terceira Turma. Relatora: Min. Nancy Andrighi DJ 25/03/2008)

Por derradeiro, tem-se que esta matria sobre a aplicao do Estatuto do Idoso aos contratos de planos de sade firmados em poca pretrita a sua vigncia ser submetida a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (RE 630852). A repercusso geral do tema foi reconhecida pela relatora, Ministra Ellen Gracie.

3 - A PROTEO AO CONSUMIDOR NOS CONTRATOS DE PLANOS E SEGUROS PRIVADOS DE SADE 3.1 A Evoluo na Teoria Contratual Os contratos destacam-se como um importante instrumento jurdico para o acordo de vontades sobre determinado objeto. No caso dos planos de sade, este objeto revela-se na proteo da sade humana. Na concepo tradicional de contrato, a vontade formadora da relao contratual revestia-se de incomensurvel poder na definio dos direitos e obrigaes oriundos dos pactos entre as partes29. s leis era atribuda a proteo a essa vontade manifestada e o estabelecimento de parmetros para a interpretao da vontade das partes. Tal proteo vontade manifestada no se inclinava a resguardar o contratante em condio econmica e social mais desfavorvel, mas sim a prever situaes nas quais o consentimento no seria vlido por impedir ou reduzir a capacidade de agir conforme o querer interno. O Sculo XIX reconhecido como o perodo de apogeu do princpio da autonomia da vontade, com a edio do Cdigo Napolenico em 1804. Sua origem, todavia, remonta ao direito cannico, vez que neste h a defesa da validade e a fora obrigatria da promessa por ela mesma, libertando o direito do formalismo exagerado e da solenidade tpicos da regra romana (MARQUES 2005, p. 55). Esta ascendncia da autonomia da vontade manifesta-se em paralelo com a forma liberal de Estado. Ante o ideal no-intervencionista, o Estado, cuja autoridade origina-se da prpria vontade do povo (teoria do contrato social), devia to-somente assegurar o cumprimento das convenes privadas. poca, a autonomia da vontade era idealizada como a garantia de justia ao acordo firmado, independentemente do contedo das clusulas contratuais (SCHMITT, 2008, p.53). Oriundo da autonomia da vontade, tem-se o dogma da liberdade contratual, segundo o qual as partes se autodeterminam na hora de contratar. Sob este dogma, divisam-se29 Mesmo assim, h que se observar que a vontade era limitada pela moral e os bons costumes.

os postulados da autonomia privada. Conforme Coelho (2009, p. 6), os postulados so os seguintes: todos so livres para contratar ou no; todos so livres para escolher com quem contratar; os contratantes tem ampla liberdade para estipular, de comum acordo, as clusulas do contrato. Reconhecido como a fonte principal das obrigaes entabuladas entre particulares, o contrato era dotado de fora obrigatria. O Cdigo Napolenico inclusive impunha o contrato com fora de lei aos contratantes30. A vontade, ento, vincula as partes, segundo o princpio da pacta sunt servanda. No modelo liberal, essa vinculao era extremada. Na segunda metade do sculo XIX, observa-se uma notvel transformao no sistema produtivo. Era o tempo da Revoluo Industrial, que marcou o declnio do trabalho familiar e de tcnicas artesanais e o incio do processo de industrializao. As etapas de produo consumaram a fabricao em srie. Assim, ficaram evidenciadas as diferenas entre as classes sociais. De um lado, os detentores dos meios de produo e, do outro, subordinados as ordens destes, o proletariado. Com a expanso do comrcio, reflexo dessa produo em massa, observa-se um salto nas relaes contratuais. A fim de dar conta da ingente demanda, tornara-se impossvel continuar com a tradicional forma de contratar, na qual as partes discutiam todas as disposies contratuais (ver os postulados da autonomia da vontade elencados na pgina anterior). Passou-se, ento, aos denominados contratos de adeso, cujas clusulas so prredigidas. Com isso, o equilbrio contratual restou sensivelmente prejudicado, pendendo a vantagem da relao para o lado economicamente mais forte. Diante da falcia da liberdade e igualdade entre partes manifestamente desiguais, imps-se a necessidade de o Estado voltar a intervir nas relaes entre particulares. Agora, no h uma viso pejorativa dessa atuao estatal, mas sim o reclame dos prprios consumidores na salvaguarda dos seus direitos. Essa situao resumida na assertiva atribuda a Lacordaire, para quem "entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza e a lei liberta.31

30 Art. 1134. [...] As convenes legalmente formadas impem-se como lei queles que as celebraram. 31 COELHO, Fbio Ulhoa. Op. cit. p. 11

Essa atuao do Estado para proteger os interesses da parte presumidamente mais fraca, disciplinando e fiscalizando o contedo dos contratos firmados, foi denominada pela doutrina de dirigismo contratual. Assim, busca o Estado assegurar uma efetiva igualdade, quer atravs do seu Poder Legislativo que cria leis de proteo ao contratante vulnervel (v.g., o CDC), bem como por intermdio do Poder Judicirio, o qual buscar assegurar a justia contratual porventura olvidada com condutas ou disposies contratuais contrrias s clusulas gerais da boa-f objetiva e da funo social do contrato. Quanto ao Executivo, este pode assegurar o equilbrio contratual por meio das agncias reguladoras. Vale ressaltar que de acordo com o art. 170, caput, da CFRB/88, a ordem econmica tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social. V-se, pois, que a autonomia da vontade, no obstante ainda ocupar lugar de destaque no direito contratual, no pode mais ter o mesmo tratamento que possura no modelo liberal, no qual era inabalvel o acordo firmado entre particulares. A fora obrigatria dos contratos restou mitigada, cedendo s clusulas abusivas diante da primazia da dignidade da pessoa humana.

3.2 Noes sobre clusulas abusivas Com o desenvolvimento das relaes de consumo, elevou-se em demasia a insero de clusulas inquas nos instrumentos contratuais. Tal qual uma metstase, avanam contra os direitos dos consumidores e configuram uma ameaa sobretudo nas formas de contratao em massa atualmente existentes na sociedade consumerista. Com a elaborao do Cdigo de Defesa do Consumidor, o legislador, em ateno ao comando constitucional da defesa do consumidor, estabeleceu um rol de clusulas abusivas (art. 51), as quais, independentemente da anuncia do contratante, em clara limitao autonomia da vontade, so consideradas nulas de pleno direito. Por ser o CDC norma de ordem pblica, interpreta-se esta nulidade de pleno direito como uma nulidade absoluta. Com isto, tem-se que os efeitos comuns a esta espcie de

nulidade sero aplicados s clusulas abusivas. Dentre as principais caractersticas das nulidades absolutas, destacam-se a sua decretao de ofcio pelo juiz, a imprescritibilidade e a impossibilidade de produzir efeitos (SCHMITT, 2008). No entanto, ressalva-se que este tema sobre a decretao de nulidade ex officio das clusulas abusivas no tem interpretao pacfica no STJ. Este Sodalcio, inclusive, editou a Smula 381, que veda ao julgador conhecer de ofcio da abusividade de clusulas em contratos bancrios.32 A proibio s clusulas vexatrias representa uma proteo vulnerabilidade do consumidor, reconhecida no prprio CDC (art. 4, inciso I). Outrossim, a Constituio Federal, como leciona Rizzato Nunes (2005, p. 36), traz em seu bojo este princpio protetivo:Da mesma forma de observar que a Constituio reconhece a vulnerabilidade do consumidor. Isto porque, nas oportunidades em que a Carta magna manda que o Estado regule as relaes de consumo ou quando pe limites e parmetros para a atividade econmica, no fala simplesmente em consumidor ou relaes de consumo. O Texto constitucional refere-se defesa do consumidor, o que pressupe que este necessita mesmo de proteo.

As clusulas abusivas no CDC esto elencadas em lista meramente exemplificativa, conforme se denota da expresso entre outras, no art. 51, caput. Acrescente-se que o Secretrio Nacional de Direito Econmico est autorizado, pelo art. 58 do Decreto n 2.181/97, a edit-las anualmente. Acerca de um conceito a definir os elementos caracterizadores das clusulas abusivas em geral, transcreve-se lio de Cludia Lima Marques (2005, p. 161):A abusividade da clusula contratual , portanto, o desequilbrio ou descompasso de direitos e obrigaes entre as partes, desequilbrio de direitos e obrigaes tpicos quele contrato especfico; a unilateralidade excessiva, a previso que impede a realizao total do objetivo contratual, que frustra os interesses bsicos das partes presentes naquele tipo de relao, , igualmente, a autorizao de atuao futura contrria boa-f, arbitrria ou lesionria aos interesses do outro contratante, a autorizao de abuso no exerccio da posio contratual preponderante

A fim de contextualizar o conceito suso mencionado com o presente trabalho, traz-se baila a smula 302 do STJ, in verbis:

32 Na esteira do entendimento de que as clusulas abusivas podem ser pronunciadas ex officio pelo magistrado: REsp 417.069/MG; REsp 369.069/RS; REsp 1013562/SC e AgRg no REsp 334991 / RS. Em sentido oposto: EREsp 720439/RS e EREsp 702524/RS.

abusiva a clusula contratual de plano de sade que limita no tempo a internao hospitalar do segurado

Ora, se a operadora de plano de sade tem justamente como contraprestao s mensalidades pagas a oferta de servios de assistncia sade, querer deixar de prest-los de forma integral justamente na hiptese em que se precisa deles implica grave desequilbrio. Assim como o usurio no recebe qualquer tipo de desconto por no necessitar dos servios, as operadoras quando redigem um contrato, que tem por uma de suas caractersticas a lea, no podem transferir ao consumidor o risco e nus da contratao. Quantos aos efeitos das clusulas abusivas no contrato avenado, prescreve o art. 51, 2 do CDC que a nulidade de clusula contratual no contaminar o contrato por inteiro. Trata-se do princpio da conservao dos contratos. Restabelecida a justia contratual com a perda de eficcia da clusula inqua, sem onerosidade para ambas as partes, a relao jurdica continua a viger, mormente nos contratos cativos de longa durao. 3.3 A boa-f objetiva No obstante o item em epgrafe ser o da boa-f objetiva, cumpre no incio desta explanao fazer uma necessria distino entre esta e a boa-f subjetiva, a fim de facilitar a compreenso do tema ora desenvolvido. Consoante o esclio de Farias e Rosenvald (2010, p. 132), a boa-f subjetiva:(...) no um princpio, mas um estado psicolgico, em que a pessoa possui a crena de ser titular de um direito, o que em verdade s existe na aparncia. O indivduo encontra-se em escusvel situao de ignorncia acerca da realidade dos fatos e da leso a direito alheio.

Esta a concepo clssica da boa-f, que se encaixava como luva no modelo liberal. Tendo este por primazia a autonomia da vontade, devia-se, pois, perscrutar a inteno das partes em deliberadamente querer causar leso a outrem. J a boa-f objetiva dissocia-se deste vis psicolgico e, em ateno aos princpios da sociabilidade e eticidade que acompanham o novo cdigo civil, busca a salvaguarda de legtimas expectativas em funo do comportamento das partes, que devem pautar suas condutas em obedincia a valores como lealdade, probidade, cooperao e a outros modelos tico-jurdicos. Ilustrativamente, tem-se o brocardo latino nemo potest venire contra factum proprium.3333Nesse sentido, transcreve-se a seguinte ementa: SEGURO-SADE. LIMITAO DE LOCAL DE

Como expem Farias e Rosenvald (2010, p. 133):(...) a boa-f objetiva examinada externamente, vale dizer, a aferio dirige-se correo de conduta do indivduo, pouco importando a sua convico. No devemos observar se a pessoa agiu de boa-f, porm, de acordo com a boa-f. Ou seja: h de avaliar-se qualquer comportamento em conformidade com os padres sociais vigentes, pouco importando o sentimento que que animou o agente.

Vale salientar que a boa-f objetiva rege o comportamento dos contratantes inclusive quanto ao momento anterior ao pacto, na fase denominada por pr-contratual, bem como quando da sua execuo, fase post factum finitum.34 Dessa forma, a publicidade tem o condo de no apenas gerar expectativas, como efetivamente passa a gerar obrigaes, possuindo o efeito jurdico de uma promessa unilateral (MANDELBAUM, p.174). No Cdigo de Defesa do Consumidor, a boa-f objetiva tem previso em dois artigos: o art. 4, inciso III; e o art. 51, inciso IV. Quanto s normas vazadas no art. 4 do CDC, tem-se que elas assumem a feio de normas objetivo. Tais normas determinam a interpretao das outras normas de conduta e de organizao, cuja aplicao h de guardar estreita adequao aos princpios nela enunciados35. Aqui, ento, a boa-f objetiva reveste-se como norma-princpio, consagradora dos ditames constitucionais da ordem econmica. (RIZZATO NUNES, p. 573). Assim, cumpre ao hermeneuta extrair o sentido das normas legais consoante osINTERNAO. INTERPRETAO DA CLUSULA LUZ DO PRINCPIO CONTRATUAL DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. COBERTURA INDENVIDAMENTE NEGADA. As clusulas limitativas devem ser interpretadas restritivamente, no se configurando, por si s, como abusivas, desde que no desvirtuem o prprio objeto do contrato. Em que pese haja clusula de excluso expressa quanto prestao do servio hospitalar ocorrer em determinado nosocmio, in casu tal limitao mostra-se indevida, porquanto em outras duas oportunidades o paciente recebeu autorizao da seguradora para internar-se no hospital objeto da controvrsia. Houve, assim, segundo reza o princpio do venire contra factum proprium, modificao da clusula restritiva, devido ao comportamento das partes. Aps o prvio consentimento da r em autorizar, por duas ocasies, a internao do autor no nosocmio cujos servios estavam expressamente excludos do plano de sade, revela-se ilegal a negativa de nova internao, pois restringe direitos ou obrigaes fundamentais inerentes natureza do contrato, de tal modo a ameaar seu objeto ou o equilbrio contratual, pois esta limitao est burlando as expectativas legtimas do consumidor. Apelo provido (TJRS, Apelao Cvel 70014739346, Quinta Cmara Cvel, Relator: Umberto Guaspari Sudbrackm, julgado em: 09/08/2006) 34 Enunciado n 170 III Jornada de Direito Civil: Art. 422: A boa-f objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociaes preliminares e aps a execuo do contrato, quando tal exigncia decorrer da natureza do contrato 35 GRAU, Eros Roberto, In "Interpretando o Cdigo de Defesa do Consumidor; algumas notas", Rev. de Dir. do Consumidor, vol. 5, Ed. RT, jan/mar-1993, pgs. 187/188 apud REIS, Nelson Santiago. O consumidor e os seguros ou planos de sade. Anotaes acerca dos contratos; clusulas e prticas abusivas.. Jus Navigandi, Teresina, ano 2, n. 22, 28 dez. 1997. Disponvel em Acesso em: 17 maio 2011.

princpios informadores da ordem econmica, a fim de fazer prevalecer o interesse social. Quanto ao art. 51, inciso IV, apresenta-se a boa-f objetiva como uma clusula geral, e no um princpio (RIZZATO NUNES, p. 573). Mesmo inserta no rol de clusulas abusivas que dispe este artigo, no h que se confundir a norma da boa-f objetiva a prevista como mera norma casustica. Sobre as clusulas gerais, conceitua Coelho (2009, p. 36):Clusulas gerais so normas jurdicas vazadas em um ou mais conceitos vagos destinados a deixar em aberto a questo dos exatos contornos do seu mbito de incidncia. O elaborador da norma, diante da alta complexidade do fato a regular intencionalmente emprega expresso dotada de vagueza, de modo que o juiz possa nortear-se mais confortavelmente por ela na soluo dos conflitos de interesse.

O julgador, pois, deve interpretar teologicamente as disposies contratuais submetidas a sua anlise, a fim de satisfazer as exigncias econmicas e sociais inspiradoras do Codex consumerista. Outrossim, aqui, a boa-f assume sua funo integrativa. Isto porque, sobrepondose autonomia da vontade, atua como fonte de direitos e obrigaes, conforme preconizado pela teoria da confiana. Impe-se aos contratantes uma conduta pautada na colaborao mtua, e para tal devero cumprir com os deveres de lealdade, probidade e solidariedade. Nesta senda, destaca-se a presena dos deveres anexos ao contrato. Remontando as origens destes deveres jurisprudncia alem, elenca Marques (2005, p. 219-240) alguns deles: dever de informao; dever de cooperao ou colaborao; dever de cuidado; dever de renegociar as dvidas do parceiro mais fraco, por exemplo, em caso da base objetiva do negcio. Nos tribunais ptrios, tal entendimento vem sendo recepcionado. Nesse sentido, o STJ:Recurso Especial. Civil. Indenizao. Aplicao do princpio da boa-f contratual. Deveres anexos ao contrato. O princpio da boa-f se aplica s relaes contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obedincia aos deveres anexos ao contrato, que so decorrncia lgica deste princpio. O dever anexo de cooperao pressupe aes recprocas de lealdade dentro da relao contratual. A violao a qualquer dos deveres anexos implica em inadimplemento contratual de quem lhe tenha dado causa. A alterao dos valores arbitrados a ttulo de reparao de danos extrapatrimoniais somente possvel, em sede de Recurso Especial, nos casos em que o quantum determinado revela-se irrisrio ou exagerado. Recursos no providos. (Superior Tribunal de Justia, RESP n 595631/SC, 3 Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi. DJ. 02/08/2004). (gn).

Como se observa, com a evoluo da teoria dos contratos, a boa-f objetiva, atravs das previses legais, doutrina e a aplicao do direito ao caso concreto, tem tido um largo alcance na sua aplicabilidade, a consagrar, assim, a efetivao do princpio da justia contratual.

4. O MINISTRIO PBLICO NA DEFESA DOS DIREITOS DOS USURIOS DE PLANOS DE SADE POR MEIO DE AES CIVIS PBLICAS 4.1 O Ministrio Pblico e a Ao Civil Pblica Inicialmente, a fim de melhor compreenso dos misteres do Ministrio Pblico encerrados na novel Constituio, bem como da sua destacada importncia na preservao do estado Democrtico de Direito, cumpre registrar como as constituies brasileiras disciplinaram a atuao do parquet. Afonso da Silva (2007, p. 597-598), concisamente, faz este apanhado histrico:A Constituio de 1891 no o mencionou, seno para dizer que um dos membros do Supremo Tribunal Federal seria designado Procurador-Geral da Repblica, mas a lei n 1.030, de 1980 j o organizava como instituio. A constituio de 1934 o considerou como rgo de cooperao nas atividades governamentais. A de 1946 reservou-lhe um ttulo autnomo, enquanto a de 1967 o incluiu numa seo do captulo do Poder Judicirio e a sua Emenda 1/69 o situou entre os rgos do Poder Executivo. Agora, a Constituio lhe d o relevo de instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis.

Tambm impende ressaltar, consoante os ensinamentos do professor Mauro Cappelletti, que o acesso justia paulatino, um movimento que exige a execuo de vrias etapas, geralmente denominadas por ondas, entendidas estas como bices a serem superados para a plena realizao deste princpio. Dentre essas ondas, que so trs, destaca-se aqui a segunda. Nesta, impe-se a necessidade de instrumentalizarem-se formas assecuratrias de novos direitos, no mais restritos a esfera individual. Assim, reconhecem-se os interesses metaindividuais. Consectariamente, urge atribuir a um rgo a legitimidade para a salvaguarda de tais interesses, bem como s associaes privadas.36 No obstante a existncia de outros meios processuais na defesa de direitos coletivos, destaca-se no presente trabalho a Ao Civil Pblica, com regramento na Lei 7347/85. Posteriormente, com a Lei 8078/90 Cdigo de Defesa do Consumidor - , foi36 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso justia. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988 apud LOUREIRO, Caio Mrcio . Ao civil pblica e o acesso justia. So Paulo: Editora Mtodo, 2004, p. 75.

acrescido o inciso IV ao art. 1 da LACP, ampliando as hipteses de sua utilizao para qualquer interesse difuso ou coletivo, bem como, no Ttulo III do CDC, foram distinguidos os direitos transindividuais quanto sua origem, bem como trazidas novas disposies acerca do microssistema processual da ACP. Lembre-se que outros diplomas legais trazem previses acerca da tutela dos direitos supra-individuais. Acerca da natureza da legitimidade do Ministrio Pblico para a Ao Civil pblica, esta pode ser distinta quanto espcie do direito transindividual alegado em juzo. Com efeito, se se tratar de um direito difuso ou coletivo, a legitimao do MP ser autnoma, vez que o particular no tem poder para interpor a ao com o fito de proteger direito difuso ou coletivo, mas sim o seu prprio direito ameaado ou lesado em face de ato violador daquele direito difuso ou coletivo (RIZZATO NUNES, 2005). Caso o direito deduzido em juzo seja um direito individual homogneo, tem-se a uma legitimidade extraordinria ou substituio processual (art. 6 CPC c/c art. 91 CDC). Dessa forma, a LACP simboliza o ineditismo na defesa dos direitos difusos. Em ateno a estes novos ares, a Constituio Cidad incumbiu ao Ministrio Pblico, entre outras funes, a defesa dos interesses sociais e individuais indisponveis. Legislaes posteriores, como a Lei 8625/93 (Lei Orgnica do Ministrio Pblico), em conformidade com a Carta Magna, desenvolveram esse exerccio, com a previso dos direitos individuais homogneos. 4.2 Dos interesses transindividuais Como dito no tpico anterior, a Ao civil Pblica instrumento para a defesa dos interesses coletivos lato sensu. Com efeito, temos que nas ACPs que visem nulidade de clusulas abusivas insertas nos contratos de adeso patente a salvaguarda ao direito coletivo ameaado. Quanto repetio do que fora indevidamente pago a maior ou, especificamente nos contratos de planos de sade, a indenizao por danos morais ante a negativa de algum tratamento com supedneo em uma clusula inqua, h aqui um interesse individual homogneo. Ademais, tambm resguardam-se os direitos difusos dos consumidores, quando, exemplificativamente, h a expressa proibio utilizao das clusulas abusivas impugnadas aos contratos futuros. Tambm uma propaganda enganosa, fato a atingir um nmero ilimitado

de pessoas, tem o condo de gerar consequncias jurdicas aos contratantes. Como se percebe, uma mesma situao pode dar azo a uma nica ao civil pblica, e esta ter como objetos pedidos e causas de pedir distintos, que constituam diversamente interesses difusos, coletivos ou individuais homogneos (MAZZILI, 2005). Apesar de posicionamentos pugnando apenas uma espcie de direito, no caso, o direito coletivo stricto sensu, e que o direito individual homogneo seria uma subespcie deste direito coletivo em sentido estrito, data venia, no a posio que ser defendida no presente trabalho. Assim, entendidos esses direitos como duas espcies autnomas (ou subespcies do direito coletivo lato sensu), passa-se a distino entre ambos, bem como a explanao acerca dos direitos difusos. Os direitos (ou interesses) difusos esto relacionados com a indeterminabilidade do sujeito ativo. Trata- se de mais uma peculiaridade deste direito em relao aos outros (coletivos stricto sensu e individuais homogneos). Esse apangio, contudo, de abranger pessoas indeterminadas, no os fazem uma subcategoria de interesse pblico, quer seja este primrio ou secundrio, pois h hipteses em que com este no se confunde (MAZZILI, p. 48). Quanto pretenso deduzida em juzo, sempre indivisvel. Sobre o direito coletivo em sentido estrito, tem-se que o seu objeto (causa de pedir e pedido) indivisvel. Quanto causa de pedir, ela divide-se em prxima e remota. Esta pode ser percebida, consoante redao legal (art. 81, inciso II, CDC), at