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LINGSTICA E ENSINO DA LNGUA PORTUGUESA COMO LNGUA MATERNARodolfo Ilari (Unicamp) A lingstica uma cincia relativamente nova, mas j trouxe grandes avanos. Entenda melhor a influncia da lingstica no ensino do portugus como lngua materna no texto de Rodolfo Ilari.

ndice: 1. Primeiras reflexes da Lingustica sobre o ensino da Lngua Portuguesa como lngua materna 2. "Vulto solene, de repente antigo": o fillogo e o gramtico 3. O impacto da Lingustica 4. Lingstica ou Lingsticas? 5. Lingstica terica e metodologia do ensino 6. Lingstica e ensino da lngua materna: o que se deve esperar dessa parceria? 7. Bibliografia recomendada 8. Glossrio 1. Primeiras reflexes da Lingustica sobre o ensino da Lngua Portuguesa como lngua materna Datadas de 1957, as primeiras reflexes de um lingista brasileiro sobre o ensino da lngua esto contidas num ensaio de Joaquim Mattoso Cmara Jr. cujo ttulo todo um programa "Erros de Escolares como Sintomas de Tendncias do Portugus no Rio de Janeiro". Nele se afirmava, com toda a clareza possvel, que muitos erros encontrados pelos professores de ensino fundamental e mdio na fala e na escrita de seus alunos, nada mais eram do que inovaes pelas quais estava passando a lngua portuguesa falada na poca; o texto de Mattoso Cmara sugeria tambm que era equivocado tom-los como sintoma de outra coisa - por exemplo de alguma incapacidade fundamental dos prprios alunos - e recomendava que, ao lidar com suas classes de crianas e adolescentes, nossos mestres do ensino

fundamental e mdio tomassem a situao lingstica ento vigente no Brasil como pano de fundo do ensino de lngua materna. No contexto dos anos 1950, a mensagem de Mattoso Cmara era altamente inovadora. Ela se baseava nos pressupostos de uma cincia recm-introduzida no Brasil - a Lingstica - e interpretava de maneira totalmente nova uma situao pedaggica que se tornava cada vez mais freqente por causa da chamada "democratizao do ensino", que ia promovendo o ingresso macio de crianas e adolescentes das classes populares numa escola at ento fortemente elitizada. Os dois processos aqui aludidos - a presena cada vez mais numerosa de alunos provenientes da classe popular no ensino fundamental e mdio e a difuso nesse mesmo ensino de idias originadas na lingstica - continuam at nossos dias. Nas prximas pginas, falaremos do segundo, tentando explicar como a cincia lingstica se mostrou relevante para o ensino de lngua materna. Nos cerca de cinqenta anos que nos separam do texto de Mattoso Cmara, a Lingstica brasileira foi uma disciplina extremamente dinmica: 1) criou na sociedade brasileira uma nova figura de pesquisador profissional da linguagem - o lingista - que acabou por assumir parte das tarefas antes confiadas s figuras tradicionais do gramtico e do fillogo; 2) cultivou o debate entre vrias orientaes tericas, o que levou a multiplicar as maneiras de pensar a lngua e seu estudo; isso repercutiu no estudo da lngua portuguesa estimulando pesquisas que, tomadas em seu conjunto, criaram para essa lngua um programa de investigao sem precedentes em todos os tempos; 3) serviu de suporte para a assimilao de uma srie de teorias sobre fenmenos em que a lngua se envolve: a cognio, a capacidade humana de agir e interagir, todo tipo de ao pedaggica, etc.

2. "Vulto solene, de repente antigo": o fillogo e o gramtico

At a criao das primeiras disciplinas universitrias de Lingstica, ocorrida nos primeiros anos da dcada de 1960, o estudo da lngua ficava por conta de duas figuras de profissionais: o fillogo e o gramtico. A Filologia* tem suas origens no Humanismo e na Renascena, e comea com a atividade de alguns grandes estudiosos das literaturas grega e latina, como o poeta italiano Petrarca, o filsofo holands Erasmo de Rotterdam ou o historiador portugus Damio de Gis. Nasceu do esforo de compreender os textos da antiguidade clssica e, alm de desenvolver mtodos e tcnicas destinados a recuperar a forma original dos textos que ainda sobreviviam, reuniu uma enorme massa de conhecimentos lingsticos e histricos necessrios para a sua compreenso.

Assim como existe uma Filologia clssica, existe uma Filologia portuguesa: a cincia que nos permite interpretar os documentos mais antigos de nossa lngua, que foram escritos em Portugal a partir do sculo XII. Nesse tipo de estudo, como se pode imaginar, as informaes histricas e a anlise minuciosa dos textos antigos tm um papel preponderante. At o incio da dcada de 1960, no Brasil, a presena de disciplinas de Filologia era um dos pontos altos dos bons cursos de Letras*. Assim, um aluno da Universidade de So Paulo passaria provavelmente boa parte de seu curso estudando linha por linha algum texto medieval, como a Vida de So Bernardo ou os Cancioneiros que renem as cantigas dos trovadores medievais. Ao final de quatro anos, imbudo de Filologia portuguesa, ver-se-ia defrontado com a profisso de professor secundrio, onde se enfrentam problemas bem menos doutos, por exemplo o de ensinar alunos recm sados do primrio e mal alfabetizados a ler em voz alta.

A Gramtica*, como se sabe, nasceu entre os gregos como uma espcie de prima pobre da Retrica, esta ltima uma disciplina bem mais prestigiada num mundo em que o sucesso pessoal dependia da capacidade de expressar-se publicamente e de convencer "na lbia" os interlocutores. Ao longo de sua histria, a Gramtica foi sempre uma disciplina normativa, isto , uma disciplina que dizia como devem expressar-se as pessoas "bem criadas".

Embora alguns grandes professores universitrios tenham sido ao mesmo tempo gramticos e fillogos (o caso mais clebre o de Celso Cunha, autor com o portugus Lus Felipe Lindley-Cintra de uma gramtica que at hoje uma referncia importante), as "boas" universidades da dcada de 1960 evitavam em sua maioria o ensino de Gramtica. De acordo com a concepo ento vigente, a Gramtica de uma lngua era um conjunto de receitas para a expresso correta e, supostamente, os alunos de uma boa universidade saberiam expressar-se de maneira correta e elegante desde o curso colegial. Aqui, sim, o estudo sistemtico de Gramtica era uma atividade central, junto com a prtica da anlise sinttica. Em 1957, depois de alguns anos de discusses, uma comisso de estudiosos criada por iniciativa oficial havia aprovado em carter de recomendao a Nomenclatura Gramatical Brasileira (a NGB), e muitos compndios de Gramtica que utilizavam a nomenclatura recomendada foram publicados (ou republicados) na esteira desse processo. No "colegial" da poca, o estudo de Gramtica consistia em ler na seqncia todos os captulos de um desses compndios, onde cada "regra" vinha acompanhada de uma lista mais ou menos longa de exemplos descontextualizados e de uma lista mais ou menos longa de excees. Um tratamento anlogo era dado ao estudo da acentuao grfica e, at onde era possvel, grafia. A prtica da anlise sinttica se fazia tambm base de sentenas descontextualizadas (sobretudo quando tinha a finalidade de exemplificar a aplicao das regras); mas em alguns casos, era colocada a servio da anlise de textos, sobretudo quando era encarada como uma etapa necessria para a compreenso de autores como Cames ou Vieira, clebres por seus perodos gramaticais complexos e cheios de inverses em relao "ordem direta" dos termos e das oraes.

No ensino mdio como no superior, um dos pressupostos daquele tempo era, evidentemente, que a escola existia apenas para pessoas que conheciam e praticavam o portugus culto. Quando se adota esse pressuposto, as variedades no prestigiadas da lngua so ignoradas, e a diversidade lingstica lembrada, na melhor das hipteses, como parte da questo de definir uma pronncia padro.

Nos anos que precederam a introduo da Lingstica* no Brasil, essa questo - a definio de uma pronncia padro - esteve vrias vezes na ordem do dia: um congresso realizado em 1936 sob a inspirao de Mrio de Andrade e Manuel Bandeira tratou da pronncia que deveria ser adotada no canto lrico: Mrio de Andrade estava em campanha contra a maneira como o portugus era pronunciado pelos cantores de peras, que eram freqentemente estrangeiros ou que, mesmo sendo brasileiros, utilizavam sua prpria pronncia regional. Em 1957, um outro congresso, no qual teve um papel destacado Antnio Houaiss (o mesmo fillogo que idealizou o Dicionrio Houaiss), produziu "teses" que oscilavam entre duas posies contrrias: a que reconhecia a existncia de diferentes normas regionais e a que recomendava que o teatro adotasse como modelo a pronncia carioca, descarregada de certas especificidades muito marcadas, como a pronncia "chiante" dos esses finais. Essas iniciativas partiam de trs pressupostos que hoje nos parecem discutveis: que a lngua de um pas tem que ser uniforme, que o uso lingstico deve ser determinado por decises superiores e que tarefa dos especialistas decidir em nome da populao o que certo e o que errado, o que nobre e o que vulgar. Assim, os dois eventos foram planejados para ter repercusso: esperava-se, sobretudo para o segundo, que a variedade de pronncia apontada como exemplar para o teatro passaria naturalmente para o grande meio de comunicao da poca, o rdio, e tambm para a televiso, que ento comeava a ser implantada nas grandes cidades; adotada em seguida pela escola, a pronncia recomendada unificaria linguisticamente o pas.

3. O impacto da Lingustica No incio dos anos 1960, como vimos, a Lingstica comeou a ser ensinada como disciplina obrigatria nos cursos de Letras, e por esse caminho comearam a difundir-se no pas alguns pontos de vista inteiramente novos sobre lngua e linguagem. Pelas circunstncias histricas daquele momento, o Brasil conheceu a assim chamada Lingstica

estrutural, que destacava como principal tarefa, no estudo de qualquer lngua, a depreenso de sua estrutura, a partir do comportamento lingstico observado.

Para um estruturalista, a lngua no se confunde com as frases que as pessoas usam, nem com o comportamento verbal que observamos no dia-a-dia; , ao contrrio, uma abstrao, um conhecimento socializado que todos os falantes de uma comunidade compartilham, uma espcie de cdigo que os habilita a se comunicarem entre si. H uma estrutura lingstica a revelar sempre que as pessoas se comunicam atravs da linguagem, e isso vale para as grandes lnguas de cultura e para as lnguas politicamente menos importantes (por exemplo as que so faladas nas sociedades primitivas), para os comportamentos lingsticos que seguem o padro culto e para aqueles que a sociedade discrimina como incultos ou vulgares.

Aplicadas situao brasileira, essas idias levaram, antes de mais nada, a perceber que, no espao comum do que reconhecemos como "o portugus brasileiro", convivem vrias "lnguas" no sentido estrutural do termo. At ento, os estudiosos faziam a respeito da lngua uma imagem de grande uniformidade; mas de repente, percebeu-se que essa suposta uniformidade era o efeito de uma deciso nada bvia e no fundo preconceituosa: a de considerar como objeto de estudo apenas a lngua-padro* (e eventualmente os textos antigos, historicamente importantes, que constituram sempre a preocupao dos fillogos). O portugus-brasileiro no inclui apenas a lngua trabalhada esteticamente pelos grandes escritores, ou a expresso altamente formal dos documentos oficiais; abrange tambm variedades regionais como o "dialeto"* caipira, os falares do tapiocano e do guasca ou as grias dos malandros cariocas e dos seringueiros da Amaznia; inclui ainda diferentes variedades correspondentes estratificao scio-econmica da populao brasileira.

Para um estruturalista, nenhuma dessas variedades intrinsecamente errada, pois falar em "erro" to estranho numa cincia que descreve o comportamento lingstico como o seria para um meteorologista condenar a chuva ou elogiar as frentes frias. Do ponto de vista da cincia da linguagem, nenhuma das variedades do portugus do Brasil menos nobre ou menos digna de estudo do que qualquer outra. Por isso, contrariando as preocupaes normativistas que predominavam na poca, a Lingstica estrutural afirmou com veemncia que a grande tarefa a ser cumprida pela prxima gerao seria a de descrever as regularidades observadas nas diferentes variedades de portugus existentes no pas, no a de apontar algumas variedades como "corretas" em detrimento de outras que seriam "erradas". Note-se que voltamos assim idia de Mattoso Cmara que mencionamos no incio deste texto: o que discriminado como erro, pode ser simplesmente uma diferena percebida entre os diferentes sistemas lingsticos que convivem no mesmo pas.

No novo clima assim criado, tomou fora a idia de que, para descrever a realidade lingstica brasileira, seria preciso, antes de mais nada, document-la cuidadosamente. Disso se encarregaram vrias pesquisas dialetolgicas, paralelamente elaborao de atlas lingsticos regionais, muitos dos quais inspirados na experincia pioneira do Atlas Prvio dos Falares Baianos de Nlson Rossi (1960-62); cresceu o interesse pelas lnguas minoritrias - no s as dos indgenas, mas tambm o que sobrevivia das lnguas trazidas da frica, Europa e sia pelos escravos africanos e pelos imigrantes. A preocupao em documentar fez nascer alguns grandes projetos de coleta de dados, o mais clebre dos quais foi o Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta, que teve entre seus inspiradores o lingista paulista Ataliba T. de Castilho. Conhecido pela sigla NURC, esse projeto centrou suas atenes nas cinco capitais brasileiras que contavam na poca com mais de um milho de habitantes (So Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Porto Alegre) e, tirando partido do recurso de gravao de voz mais avanado da poca - o gravador porttil - gravou cerca de 1570 horas de entrevistas - um nmero que ultrapassava em muito o que j havia sido feito na maioria dos pases desenvolvidos. O resultado desse enorme levantamento, feito

apenas com informantes de nvel universitrio, confirmou o que os lingistas tinham desconfiado desde o incio, que ningum fala conforme recomendam os gramticos.

Na dcada de 1980, o mesmo Ataliba T. de Castilho lanaria outro grande projeto de descrio: o Projeto da Gramtica do Portugus Falado. Em cerca de vinte anos, este ltimo projeto produziu uma vasta gama de estudos voltados para um pblico de especialistas, mas seu objetivo final dotar a sociedade brasileira de uma grande gramtica de referncia, que possa ser usada por pessoas comuns (no-especalistas) interessadas em conhecer como de fato a lngua que se fala neste pas. Essa gramtica ter por base os usos lingsticos documentados a partir da dcada de 1960 pelo projeto NURC, ser rigorosamente descritiva e ter por foco a lngua falada, rompendo com uma tradio de sculos em que a gramtica sempre tratou de lngua escrita, e os gramticos sempre disseram como a lngua deve ser, e no como de fato. Resultado de um trabalho coletivo de quase trs dcadas, a grande gramtica de referncia do portugus falado dever chegar s livrarias brevemente.

De todas as prticas escolares, a que foi mais questionada no contexto criado pela Lingstica, foi a velha prtica do ensino gramatical. Entre outras coisas, lembrou-se que os verdadeiros objetos lingsticos com que lidamos no do dia-a-dia so sempre textos, nunca sentenas isoladas, e observou-se (com razo) que as gramticas tm muito pouco a dizer sobre esses objetos; mostrou-se que os gramticos descrevem uma lngua sem existncia real; e apareceram vrios livros que, desde o ttulo, caracterizavam o ensino gramatical como uma forma de opresso ou minimizavam seu interesse pedaggico: um ttulo de intenes polmicas, como o do livro de Celso Luft, Lngua e liberdade seria absolutamente impensvel algumas dcadas antes.

Num primeiro momento, as novas

idias encontraram uma forte resistncia entre os

professores de portugus, porque o ensino da gramtica, entendido como um aprendizado de nomenclaturas e um exerccio de classificao, ocupava um espao muito grande no ensino de lngua materna. Hoje, o quadro pode ter mudado, no sentido de que a polmica ganhou novos interlocutores, passando do ambiente escolar para a mdia: boa parte do professorado parece ter assimilado, pelo menos em teoria, a idia de que o ensinar lngua portuguesa muito mais do que ensinar gramtica, mas a defesa da posio normativista tem sido encampada pela televiso e pelos jornais, que multiplicaram os espaos dedicados casustica gramatical. inegvel, contudo, que a Lingstica realizou um importante deslocamento ao mostrar que possvel olhar para lngua por outros ngulos que no o da correo.

4. Lingstica ou Lingsticas? Ao mesmo tempo que ia difundindo suas idias na escola e na sociedade, a Lingstica feita nas universidades brasileiras foi mudando.

At certo ponto, as mudanas resultavam do fato de que os lingistas brasileros, quer desenvolvessem um tipo de investigao de natureza mais abstrata, quer se dedicassem descrio do portugus, foram-se interessando por objetos de estudo cada vez mais complexos. De fato, eles passaram, por assim dizer, do fonema para o morfema, deste para a sentena e da sentena para o texto, e acabaram deparando com problemas que exigiam um enfoque interdisciplinar, como as relaes entre lngua e sociedade, exploradas pela Sociolingstica*, os valores ideolgicos veiculados pelos textos que circulam numa sociedade complexa, estudados pela Anlise do Discurso*, o desenrolar das etapas iniciais da aquisio e os distrbios da linguagem, estudados por diferentes ramos da Psicolingstica*, o papel da lngua em sociedades primitivas, estudados pela Etnolingstica* e pela Lingstica Indgena*. Mas alm de eleger nveis de estudo cada

vez mais complexos, e interessar-se por objetos diversificados, a Lingstica passou tambm por profundas mudanas de orientao terica. Os primeiros lingistas brasileiros trabalhavam, como vimos, no horizonte criado pelo estruturalismo*; suas referncias eram, entre outras, o linguista suo Ferdinand de Saussure, que, no incio do sculo XX, lanou a noo de lngua como sistema, ou o lingista russo-americano Roman Jakobson, que deixou importantes trabalhos de inspirao estruturalista em reas que vo da Fonologia Gramtica, da aquisio da linguagem ao estudo da afasia.

Num segundo momento - que no exatamente um momento, mas sim um longo perodo que dura at hoje - a Lingstica brasileira assimilou os ensinamentos da gramtica gerativa* de Noam Chomsky. As diferenas entre a lingstica chomskiana e a lingstica estrutural so grandes. Em primeiro lugar porque a lngua passa a ser concebida como um objeto matemtico. Em seguida, porque, quando se trata de formular um conceito de linguagem, Chomsky promove um deslocamento da esfera do social para a esfera do psicolgico e do biolgico. Para Chomsky, as lnguas so muito parecidas entre si, e so como so porque mobilizam uma capacidade inata que a mesma para todos os indivduos da espcie humana, e isso tem importantes reflexos para o processo da aquisio da lngua. Ao passo que os estruturalistas evitavam essa questo, ou acabavam por embarcar em algum tipo de behaviorismo (sugerindo que a lngua aprendida por um processo indutivo, no qual essencial a exposio a uma grande quantidade de dados), para o gerativista a aquisio da linguagem consiste essencialmente num processo de "fixao de parmetros". Mal comparando, podemos explicar essa noo dizendo que a criana que aprende sua lngua materna age como algum que configura um aparelho eletrnico dotado de alguma sofisticao tecnolgica, por exemplo, um telefone celular de ltima gerao, fazendo suas escolhas pessoais para as diferentes funes previstas no prprio aparelho; nessa comparao, o telefone celular, tal como sai da fbrica a nossa mente, e as vrias escolhas que podemos fazer para adapt-lo a nossas preferncias pessoais so os parmetros. A diferena que na aquisio da linguagem no podemos escolher a nosso bel-prazer:

precisamos escolher a lngua que j usada por nossa comunidade. Segundo uma doutrina de Chomsky, conhecida como "doutrina da pobreza do estmulo", as crianas encontram a "lngua certa" a partir de estmulos muito precrios; uma outra doutrina inspirada em Chomsky e conhecida como "hiptese do bioprograma" afirma que esse aprendizado tem prazo para acontecer na vida das pessoas e, mais precisamente, que se d na primeira infncia. Juntas, essas duas hipteses parecem explicar algumas coisas que todos sabemos por experincia: numa idade bastante precoce, as crianas j dominam com grande maestria sua lngua (talvez no todo o lxico da lngua, talvez no algumas construes sintticas de uso literrio ou arcaizante), e as crianas aprendem qualquer lngua estrangeira com uma facilidade que no ser mais a mesma no adulto, no importa qual seja o mtodo de ensino usado. Isso d conta de um sentimento que muito vivo para o professor de lngua: que sua tarefa diferente da dos mestres de outras disciplinas, porque estes ltimos respondem por uma verdadeira iniciao da criana num novo campo, ao passo que as crianas j so falantes de sua lngua quando chegam escola. Por esse caminho, em suma, a lingstica chomskiana levanta um problema nada fcil - o da especificidade do papel do professor de lnguas. No limite, chega-se a pensar que a lngua no ensinada, podendo no mximo ser aprendida, a partir de uma exposio correta a dados significativos, feita no momento certo da vida do educando.

O prximo momento a considerar - e de novo convm lembrar que esse momento coexiste com outros - o do funcionalismo*. O denominao "funcionalismo" j foi usado para indicar algumas orientaes estruturalistas que marcaram poca (por exemplo, a do francs Andr Martinet que teve seguidores no Brasil) ou as doutrinas da Escola Lingstica de Praga, seguidas entre ns por Mattoso Cmara Jr.; por isso torna-se necessrio alertar que a usaremos aqui num sentido diferente, referindo-nos a uma srie de orientaes recentes que incluem desde os trabalhos do holands Simon Dik at os americanos Talmy Givn e Ronald Langacker. O que permite incluir todos esses autores na "frente ampla" do "funcionalismo"? Antes de mais nada, o fato de que desenvolveram sua obra margem do

gerativismo chomskiano, e s vezes em franca oposio a ele. Trata-se, com efeito, de autores que, de maneira mais ou menos direta, acusam a gramtica gerativa de ter criado o hbito de considerar um nmero relativamente limitado de fenmenos sintticos sobre os quais se procura dizer muito, deixando de lado reas de investigao igualmente importantes - como a significao e competncia para interagir verbalmente com nossos semelhantes - sobre as quais se tende a no dizer nada. Assim, um dos propsitos do funcionalista fazer da lngua uma descrio abrangente, que no exclua, por princpio, nenhum dos aspectos da atividade verbal. Outro objetivo do funcionalista explicar as caractersticas formais da lngua atravs das funes que exercem; essa concepo de linguagem remonta assim chamada "Escola Lingstica de Praga", particularmente a seus representantes anteriores segunda guerra mundial, mas foi retomada na segunda metade do sculo XX pelo lingista ingls M.A.K. Halliday, e o levou a perceber que qualquer sentena cumpre simultaneamente trs funes, que ele chamou de (i) ideacional, (ii) interpessoal e (iii) textual e que consistem, respectivamente, em (i) fornecer representaes do mundo (ii) instaurar diferentes formas de interlocuo como perguntar, afirmar, ordenar, assumir graus diferentes de compromentimento em relao quilo que se diz e (iii) monitorar o fluxo de informao nova num contexto dado. Outro conceito fundamental do funcionalismo o de escolha. Para os funcionalistas, o falante constri seus enunciados escolhendo simultaneamente em vrios conjuntos de alternativas proporcionados pelo sistema lingstico (ao produzir qualquer frase, escolhemos simultaneamente as palavras, as construes gramaticais, os contornos entonacionais, etc.); entender o sentido e uma sentea equivale ento a entender por que certas alternativas foram escolhidas e outras descartadas. Pelo valor que d escolha, o funcionalismo coloca em primeiro plano o papel do falante e as caractersticas da mensagem que ele produz, e cria uma abertura importante para o estudo do texto e do estilo.

Uma outra linha de investigao que constitui hoje uma alternativa importante ao gerativismo conhecida como teoria da gramaticalizao*. Num sentido mais estrito, a

teoria da gramaticalizao estuda a criao de construes gramaticais a partir de palavras e expresses que, originalmente, se aplicavam a objetos ou situaes do mundo, e funcionavam como itens "lexicais". Um bom exemplo o verbo estar, que remonta ao verbo latino stare, um item tipicamente lexical, que descrevia a situao fsica de "estar de p" ou "estar parado". Hoje, estar usado principalmente para formar frases como estou cansado, estou procurando a chave, onde um verbo de ligao ou um auxiliar na formao de um tempo composto. Nem tudo na lngua so palavras em via de gramaticalizao, mas essa teoria conseguiu chamar a ateno para o fato de que, numa lngua, h sempre palavras que esto numa espcie de rea de ningum, entre duas classes. Vale aqui, a imagem do filsofo Otto Neurath, de um navio que vai sendo reconstrudo medida que navega: a lngua nunca se encontra acabada, est sempre mudando. Vista por esse ngulo a lngua aparece como um sistema instvel, sujeito a constantes reajeitamentos. No faz sentido exigir de um tal sistema uma regularidade absoluta; e lembrar disso pode fazer diferena quando se procura analisar suas formas sem forar as classificaes.

5. Lingstica terica e metodologia do ensino A Lingstica uma cincia terica e descritiva, e sua funo primria no produzir orientaes metodolgicas destinadas ao ensino. Mas para muitos professores do ensino fundamental e mdio, compreender a fundo o que a lngua um problema importante, e as idias que os lingistas foram elaborando em perspectiva terica acabaram por ter repercusses mais ou menos profundas sobre todas as prticas pedaggicas cuja matria prima a linguagem. No que diz respeito ao ensino de lngua materna essa repercusso se deu muitas vezes de maneira direta, pela assimilao em contexto pedaggico de conceitos e idias elaborados pela lingstica terica. Outras vezes, a reflexo sobre linguagem e pedagogia se fez atravs de uma nova disciplina, a Lingstica Aplicada, que tendo nascido como aplicao em contexto pedaggico dos conceitos da Lingstica terica, ganhou maturidade, elaborou seus prprios problemas e conceitos e hoje trata de vrias reas da

atividade humana em que a linguagem tem um papel essencial. A contribuio que a Lingstica aplicada deu ao ensino nos ltimos anos um tema rico e amplo, cujo tratamento foge aos objetivos do presente texto. A esse tema ser dedicado um outro texto, paralelo a este, escrito por um autor respeitvel com atuao na rea. Voltemos pois s contribuies da teoria e da descrio da lngua.

J mencionamos as crticas e as perplexidades que as idias lingsticas suscitaram no ensino da Gramtica, uma prtica que, at os anos 1960, era um componente nobre do ensino fundamental e mdio. Outras prticas que passaram por reformulaes conceituais profundas, a partir de conceitos elaborados em lingstica, foram a produo de textos, a leitura e a alfabetizao.

"Produo de textos" uma denominao que se aplica ao exerccio tradicional da redao escolar, mas abrange alm disso vrios outros gneros textuais em que o educando e o educador podem trabalhar juntos; uma das idias implcitas no uso dessa denominao que h muito mais a fazer, em matria de textos, do que o velho exerccio da redao escolar. Nessa rea, os avanos da Lingstica textual*, trazendo baila um conjunto denso de questes ligadas aos conceitos de coerncia, coeso, interao e gnero, deram evidncia a um fato bvio, que os rituais escolares haviam por assim dizer tornado invisvel: na sala de aula, produzir um texto (seja ele uma dissertao, uma narrao, uma descrio, ou mais simplesmente um bilhete ou um recado) muito diferente de trabalhar sentenas: o texto uma unidade lingstica com estrutura prpria, e geralmente as pessoas sabem construir textos bastante eficazes mesmo quando no utilizam a lngua padro (pense-se na riqueza com que as pessoas mais humildes conseguem contar episdios que marcaram sua vida). Esta constatao tem conseqncias srias para a maneira como se "avalia a redao", porque leva a considerar inadequado o mtodo de avaliao mais arraigado na escola, que consiste em "corrigir" e dar nota redao pela quantidade de erros de gramtica e de

ortografia, ao mesmo tempo que se desconsideram suas caractersticas propriamente textuais (coeso, coerncia), mas isso no tudo.

No dia-a-dia, as pessoas produzem textos (geralmente falados) fortemente iseridos na situao, dotados de objetivos concretos e muito adequados quanto s estratgias empregadas. Na escola difcil conseguir uma "insero no real" to autntica quanto a dos textos do dia-a-dia, mas a atividade de produo de textos no precisa chegar ao outro extremo, o do absoluto artificialismo de certos temas de redao clebres, como "minhas frias" ou "uma lgrima", "dados" geralmente pelo professor, pelos quais todos ns passamos. Uma das descobertas feitas pelos linguistas mais atentos linguagem como interao que todo texto real sempre uma forma de interlocuo ou resposta: falamos, no mais das vezes, reagindo a outra fala. Essa descoberta leva a valorizar uma prtica a que os bons professores sempre recorreram espontaneamente na produo de textos: a de preparar a redao por meio de "pesquisas" e discusses prvias sobre o tema a ser tratado. Esse modelo , de certo modo, retomado no formato dos bons concursos vestibulares, que mandam redigir s depois que o candidato completou a leitura de uma "coletnea de textos".

No que diz respeito alfabetizao* h pelo menos trs grandes momentos a considerar.

(i) A estria da Lingstica brasileira coincidiu com a elaborao das primeiras descries fonolgicas do portugus. To logo a fonologia* conseguiu impor a idia de que a lngua falada funciona por meio de unidades opositivas, tornou-se evidente que a velha representao segundo a qual o portugus tem cinco vogais, sugerida pela grafia, errada; a grafia representa mais de um som, o mesmo ocorrendo com (comparem-se o peso e eu peso, o poo e eu posso); tambm ficou claro que as letras , , , e podem indicar tanto sons orais como sons nasais (como em cato e canto, cedo e sendo, pito

e pinto etc.). Diante dessas constataes, que so absolutamente elementares em fonologia do portugus, foi possvel perceber que havia boas razes lingsticas para alguns erros que recorrem na escrita dos alunos (como o uso da grafia para o substantivo salto); as cartilhas que ensinavam a ver o mesmo "a" em pata e anta precisaram ser colocadas sob suspeita e, de maneira mais geral, ficou claro que entre as letras da escrita e os fonemas da lngua no h uma correspondncia um-a-um. Na verdade, em portugus, a correspondncia entre as letras e os sons bastante complexa (no tanto quanto em ingls, mas certamente muito mais do que em espanhol ou em italiano) e isso cria para o alfabetizador muitas dificuldades previsveis. No causa estranheza que muitos lingistas preocupados com o problema da alfabetizao tenham trabalhado no sentido de mapear essas dificuldades.

(ii) Por muito tempo, uma das grandes preocupaes dos alfabetizadores foi com a "prontido", isto , eles se preocupavam com a maneira mais eficaz de desenvolver nos alunos das primeiras sries as capacidades motoras necessrias para desenhar corretamente as letras da escrita cursiva. Era o tempo em que a alfabetizao propriamente dita comeava pelo desenho da letra , embalado por uma cantilena que falava em "bolinha" e "perninha".

Durante a dcada de '80, os escritos de duas pesquisadoras de orientao construtivista (influenciadas pelo psiclogo suo Jean Piaget), Emlia Ferreiro de Anna Teberowsky, mostraram que o grande salto da alfabetizao se d no quando a criana alcana o estgio da prontido, mas quando descobre que as letras esto em correspondncia com sons. Para a criana, a formulao dessa hiptese (que no tem nada a ver com motricidade, pois de natureza cognitiva), tem o sentido de uma autntica revelao, e o grande momento inaugural que abre o caminho para o aprendizado da escrita. Normalmente, para chegar a essa hiptese, a criana tem que descartar outras hipteses erradas, mas cognitivamente significativas, por exemplo a hiptese de que h uma correspondncia entre o tamanho do objeto e o tamanho da palavra (por essa hiptese, a palavra* cachorro deveria ser menor

que a palavra boi), ou a hiptese de que a escrita silbica (pela qual cada segmento da escrita representaria uma slaba, como acontece, por exemplo, em coreano). Se o salto qualitativo necessrio para a alfabetizao a descoberta do princpio alfabtico, bvio que a preparao da classe para a alfabetizao no pode mais centrar-se no treinamento da prontido e da motricidade, mas na relao som/letra. Mas evidente que nem tudo, na alfabetizao, se explica por essa relao e quem quiser saber mais, poder tirar proveito das publicaes do CEALE, o Centro de Alfabetizao e Leitura da Universidade Federal de Minas Gerais, fundado por Magda Soares, que tem dado contribuies relevantes ao tema.

(iii) A partir dos anos 1990, alis, tem sido cada vez mais freqente lanar mo, ao lado do velho conceito de alfabetizao, de um novo conceito de contedo mais social e antropolgico: o de letramento. A palavra letramento*, que hoje de circulao corrente, refere-se no mera capacidade de representar os sons na escrita, mas sim s formas de insero na sociedade a que o indivduo se habilita pelo fato de utilizar de maneira competente a escrita. Distinguir entre alfabetizao e de letramento nos ajuda a entender que a insero do indivduo numa sociedade letrada como a nossa est longe de completarse quando o indivduo aprendeu a escrever seu nome ou a anotar uma mensagem simples (essas so duas definies de indivduo alfabetizado, historicamente importantes); para alm desse aprendizado h outros aprendizados prprios de uma sociedade letrada que so indispensveis para uma insero plena.

Nos ltimos pargrafos, detivemo-nos mais longamente no assunto da alfabetizao: as razes deveriam ser bvias, pois o analfabetismo continua sendo um dos grandes problemas nacionais, no Brasil: dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (INEP), rgo do Ministrio da Educao, mostram que existiam ento no Brasil 16 milhes de analfabetos (9,3 % da populao) e que o nmero de meninos e

meninas candidatos matrcula nos dois ciclos do ensino fundamental (na faixa etria entre 7 e 14 anos) girava em torno de 35 milhes.

Junto com a alfabetizao, o ensino da leitura* um dos grandes desafios da escola brasileira, e um dos grandes problemas de poltica educacional com que se defrontam nossos educadores. Para avaliar as dimenses do problema, basta lembrar que, na ltima avaliao do PISA, o Programa Internacinal de Avaliao de Alunos gerido pela Organizao para a Cooperao e o Desenvolvimento Econmico (OCDE) da UNESCO, os alunos brasileiros ficaram em 37 lugar nas provas de leitura, num total de 41 pases participantes. Numa escala de 800 pontos, os brasileiros mais bem colocados atingiram 431 pontos, sendo que dezesseis pases tiveram uma pontuao em leitura acima de 500. Entre os motivos desse fracasso esto, certamente, alguns velhos problemas que afetam nosso ensino como um todo, como a evaso escolar, a m remunerao dos professores e a falta de bibliotecas pblicas, mas tambm esto fatores mais especficos, e um deles a enorme desinformao que ainda existe entre nossos professores a respeito da leitura enquanto competncia dos falantes. Paradoxalmente, essa desinformao persiste numa poca em que, em nvel mundial, as grandes mudanas ocorridas nos meios de comunicao de massa, e a necessidade de uma perspectiva histrica para compreender as novas mdias fizeram surgir um interesse muito vivo pela histria da leitura, por suas relaes com diferentes contextos sociais e por sua natureza enquanto processo cognitivo.

A Lingstica tem marcado presena nessa reflexo, e lanou desde a dcada de 1980 vrias hipteses instigantes sobre os processos cognitivos envolvidos na adequada compreenso de um texto. Sob esse aspecto, teve um papel importante para desfazer o equvoco de que a leitura seria um processo passivo. Ao contrrio do que muitos pensam, quem l um texto (como quem ouve uma melodia, ou analisa as formas de um objeto) toma em relao ao ele uma srie de iniciativas. O leitor competente no se contenta em ler e processar, uma aps a outra, as sentenas que formam o texto; ele vai a essas sentenas munido de hipteses que

podero ser confirmadas ou desmentidas. No se limita a extrair informaes das linhas que l; procura integrar as informaes colhidas no nivel da sentena em hipteses que dizem respeito ao texto como um todo, esforando-se por identificar as intenes de quem o escreveu e refaz, por assim dizer, todo o trabalho de composio do texto. Assim, o texto como um todo torna-se o grande critrio para explicar cada uma de suas partes, e as partes so o grande critrio em que se fundamenta a deciso de manter ou descartar as hipteses feitas para entender o texto como um todo, num ir-e-vir constante entre a macroestrutura e as microestrutura. Pelo que acabamos de dizer, esse processo extremamente ativo, porque exige um leitor disposto a "montar", ajustando-as continuamente, hipteses que so feitas em vrios nveis (palavra, sentena, perodo, texto); tambm interativo, e cooperativo, porque se trata, a partir do escrito, de recuperar os caminhos do autor, suas opes e suas motivaes.

6. Lingstica e ensino da lngua materna: o que se deve esperar dessa parceria? A alfabetizao, a produo de textos e a leitura so atividades bsicas do ensino de lngua materna, e so tambm questes que a Lingstica ajudou a repensar e reformular, nos ltimos anos, confirmando que a parceria Lingstica-Ensino benfica. Essa parceria foi construda pacientemente, e passou, por parte dos lingistas, por diferentes formas de colaborao: na dcada de 1970, o lingista que se interessava pelo ensino do portugus preocupava-se, no mximo, em apresentar em linguagem acessvel aos professores de lngua materna os conceitos cientficos que ele considerava pedagogicamente relevantes: esse, em linhas gerais, o sentido da srie "Subsdios para a aplicao dos guias curriculares" da Secretaria da Educao de So Paulo, de 1978: Castilho (Org. 1978). De outro tipo so os trabalhos que comeam a aparecer nos anos 1980, geralmente voltados para mostrar a necessidade de levar para a sala de aula os mesmos mtodos de descoberta usados em Lingstica, de fazer do texto o centro do ensino, ou de reformular as prticas vigentes luz das descobertas da cincia da linguagem (este o sentido geral de O Texto

na Sala de Aula, editado em 1984 e ainda hoje uma referncia importante). Num momento particularmente fecundo da parceria lingstica/ensino, que podemos situar no final dos anos 1980 e no incio dos anos 1990, aparecem obras que delineam concepes de ensino lastreadas em concepes da linguagem de cunho interacionista e cognitivista. Mas esse tambm o momento em que muitos lingistas optam pela verticalizao, explorando temas especficos, entre os quais reencontramos no s os temas da alfabetizao, da leitura e da redao, mas tambm muitos outros, como o estudo das propriedades de um bom texto ( coerncia, coeso, referenciao), o trabalho sobre gneros especficos (como a narrativa e a piada ou as notcias de jornal), o uso da lngua falada em contexto pedaggico, as relaes entre lngua falada e lngua escrita e as possibilidades de retextualizao, e muito mais.

Vistas as coisas por um outro ngulo, houve tambm um grande envolvimento prtico no dia-a-dia do ensino: no s foi constante a participao de lingistas em cursos de treinamento e estgios de educadores em servio mas, a partir dos anos '80, alguns grandes lingistas estiveram frente de importantes projetos pedaggicos (por exemplo, Joo Wanderley Geraldi respondeu em vrios estados do Brasil, por projetos que levaram um ensino diferenciado a alguns milhes de crianas e adolescentes); outros escreveram livros didticos diferenciados (Mary Kato e Flvio di Giorgi, Milton do Nascimento, Jos Luiz Fiorin e Francisco (Plato) Savioli, Ana Luza Marcondes Garcia e Maria Betnia Amoroso); outros ainda (caso particularmente de Maria Bernadete Abaurre e Srio Possenti) participaram da criao de novos formatos para os vestibulares de algumas grandes escolas e para a formao de seus corretores, e assim contriburam para criar referncias e mo de obra qualificada para alguns processos de avaliao de alcance nacional e de grande visibilidade, como o Exame Nacional de Cursos (o "Provo") e o Exame Nacional de Ensino Mdio (ENEM). Tudo isso criou condies para que a Lingstica tivesse direito a voz, no processo de elaborao dos Parmetros Curriculares Nacionais, um documento que tem hoje a funo de orientar o ensino de lngua materna,

em nvel nacional, e que, por seus prprios mritos, constituir, por muito tempo, uma referncia importante.

Por tudo aquilo que dissemos, vivemos hoje um momento em a Lingstica j no precisa justificar sua presena para os principais agentes do ensino, os professores. Outra questo a assimilao de sua mensagem pelo corpo social, com vistas a difundir uma concepo da realidade lingstica do pas e a promover os valores da cidadania. Aqui, a lingstica continua enfrentando resistncias, porque a mdia - sobretudo os jornais e a televiso encamparam a velha bandeira da correo, da uniformidade lingstica e da primazia do escrito e, com seus manuais de redao, suas colunas de consulta gramatical e seus programas em que a idia de lngua vinculada idia de ptria, continuam agitando um fantasma que tem sido extremamente eficaz para fazer da lngua um motivo de excluso social.

Os estudos sobre a formao do portugus do Brasil mostram que nossa lngua sempre esteve cindida entre uma norma lusitanizante e uma norma tipicamente brasileira, e que dessa duplicidade do passado deriva o enorme hiato que hoje separa o portugus escrito das pessoas letradas e o portugus efetivamente usado pelo povo. A Lingstica tem trabalhado no sentido de valorizar os usos reais e de tomar a lngua falada pelos educandos como ponto de partida para o aprendizado da lngua escrita culta; a mdia tem trabalhado, no mais das vezes, no sentido de estigmatizar as formas populares, aprofundando o hiato. No fogo cruzado entre as duas posies est o professor de portugus que, honestamente interessado em proporcionar o melhor a seus alunos, hesita entre uma e outra linha de conduta.

O sentido deste texto foi mostrar que ele tem razes de peso para optar pela proposta da Lingstica, se quiser. Muita coisa mudou desde os anos 1960, quando a Lingstica, despontou no contexto cultural brasileiro com um discurso que procurava desqualificar as

prticas pedaggicas vigentes, mas pouco tinha a oferecer em troca. Nos ltimos quarenta anos, foi acumulada uma quantidade impressionante de informaes sobre a lngua que se fala neste pas, sua diversidade, sua histria. Nesse contexto mudado, o debate se coloca hoje de maneira muito mais clara como uma escolha entre duas atitudes opostas: possvel abrir os olhos para a realidade lingstica, compreend-la a fundo, aceit-la e trabalhar a partir dela, assim como possvel fechar os olhos realidade, decidindo dogmaticamente como ela deveria ser. A opo da Lingstica tem sido pelo conhecimento do que existe e pela superao do preconceito.

7. Bibliografia Recomendada Para o item 1: Cmara Jr. J. (1957), Bagno (Org. 2002). Para o item 2: Genouvrier / Peytard (1975), Castilho (1990), (2002: 7-24), Luft (1985), Possenti (1996), Ilari, R. (2004: 53-91). Para o item 3: Borges Neto (2004), Halliday (1976), Kato / Ramos (1999), Mussalim (2001), Neves (1999), (1997), Pezatti (2004) Seki (1999). Para o item 4: Geraldi (1996), Kleiman (1989, 1993, 1996), Koch (1997, 2002), Scliar-Cabral (2003 a,b), Soares (2005). Para o item 5: Castilho (Org. 1978), Faria / Zanchetta (2002), Geraldi (Org., 1985), Geraldi (1991), Koch (2002), Koch / Travaglia (2002), Marcuschi (2001), Possenti (1998), Possenti / Ilari (2001), Bagno (2000).

Nota: Os Parmetros Curriculares Nacionais foram editados em 1997. Existe a verso impressa, mas eles podem ser acessados pela internet atravs do site do Ministrio da Educao e Cultura, pgina da Secretaria de Educao Fundamental. O Centro de Documentao Cultural "Professor Alexandre Eullio Pimenta", do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas mantm disponvel o estudo feito sobre as verses preliminares do texto pelo lingista Prof. Carlos Franchi. 8. Glossrio Texto: "Vulto solene, de repente antigo": o fillogo e o gramtico (Link2) Filologia - Disciplina voltada para a compreenso dos textos da antiguidade clssica (= Filologia Clssica) que, alm de desenvolver mtodos e tcnicas destinados a recuperar a forma original dos textos que sobreviveram, reuniu uma enorme massa de conhecimentos lingsticos e histricos necessrios para a sua compreenso. Tambm os textos contemporneos podem ser mais bem editados graas s tcnicas da Filologia Moderna. Letras - Denominao tradicional da grande rea das Cincias da Linguagem. Provm dos estudos das letras clssicas, dos escritos consagrados de grandes pensadores, poetas e ficcionistas. Muitas vezes se confunde com literatura e algumas vezes com lingstica, que constituem duas das trs vertentes de que se compe hoje a formao ampla no mbito da linguagem. Dos anos 70 em diante, o terceiro ramo cientfico, o da Lingstica Aplicada, voltado para as questes de pesquisa situadas na prtica social como, por exemplo, o ensino de lngua(s), passou a ganhar relevncia para a formao bsica nas carreiras da linguagem. Curso superior que responde pela formao de professores e pesquisadores na rea de lngua e literatura. Tradicionalmente, nos cursos de Letras ministram-se conhecimentos de lnguas vivas (como o portugues, o ingls e o francs) ou mortas (como o latim e o grego) e das literaturas correspondentes. A palavra Letras designava na origem o conjunto das Cincias Humanas, e por isso uma Faculdade de Letras engloba a Histria, a Geografia, e Sociologia. Como o termo envolvia tambm o estudo das lnguas e das literaturas, Letras passou a ser entendida no Brasil como Lingustica e Literatura. Gramtica - A palavra gramtica recolhe muitas significaes. 1) Distinguimos inicialmente a gramtica implcita, aquela que adquirimos quando aprendemos a falar, da gramtica explcita, que o esforo sempre incompleto de descrever e interpretar a gramtica implcita, a gramtica mental. A gramtica implcita internalizada na mente dos falantes quando eles adquirem sua lngua materna; eles no conseguiriam se expressar, se no dispusessem dessa gramtica. O trabalho da escola levar os alunos a explicitarem sua gramtica implcita.

2) Estudo das regras de acordo com as quais se constroem palavras e sentenas numa lngua. H pelo menos trs maneiras diferentes de entender "regra": como a) "norma a ser seguida", como b) "regularidade constatada", ou como c) "expectativa criada por um princpio geral". A essas diferentes maneiras de entender o que seja uma regra correspondem trs concepes diferentes de gramtica: a. gramtica normativa*, b. gramtica descritiva*, e c. gramtica explicativa*. Lingstica - Estudo da faculdade humana de linguagem e das lnguas que existem ou existiram, historicamente. De acordo com seu interesse, cinde-se em Lingustica Descritiva, Lingustica Histrica e Lingustica Aplicada conquanto esta ltima procure cada vez mais firmar-se como um domnio distinto da Lingustica. Texto: O impacto da Lingustica (Link3)

Lngua-Padro (no consta) Dialetos - Variedade lingustica* especificada por sua distribuio geogrfica. O Portugus Brasileiro compreende dialetos do Norte (amaznico, paraense, amaznico), do Nordeste (pernambucano, bahiano), do Sudeste (caipira, carioca), do Centro-Oeste (cuiabano) e do Sudeste (paranaense, catarinense, gacho). Inicialmente opunham-se os falares, variedades regionais de fcil intercompreenso, aos dialetos, variedades regionais de difcil intercompreenso. Por essa distino, o Brasil s dispe de falares.

Recentemente, deixou-se de lado o termo falar, e dialeto se generalizou como termo indicador das variedades regionais assinaladas por diferentes graus de intercompreenso. Sociolingstica - Estudo das relaes entre a lngua e a sociedade. Entre os assuntos estudados pela Sociolingstica esto os valores que uma sociedade associa a diferentes variedade da lngua, e os efeitos do contato entre lnguas diferentes. Texto: Lingstica ou Lingsticas? (Link4)

Gramtica Gerativa (Gerativismo) - No consta Anlise do Discurso - Espao crtico no qual interagem vrias disciplinas interessadas em tratar da totalidade dos enunciados que circulam numa sociedade. Fortemente influenciada por modelos franceses, a anlise do discurso que se tem feito no Brasil tem-se caracterizado (i) pela reflexo sobre o modo como o sujeito se insere nos seus discursos, (ii) pela idia de que todo discurso um interdiscurso; (iii) pelo interesse em discursos que revelam um uso ideolgico da linguagem. A Anlise do Discurso da vertente anglo-americana preocupa-se com a estruturao do texto, quais so seus constituintes, que processos lingusticos os textos revelam, etc.

Psicolingstica - Estudo das relaes entre a linguagem e a mente. Um dos temas tratados pela psicolngstica o processameto da linguagem, isto , o conjunto de passos envolvidos em produzir e compreender a fala. Etnolingstica - Estudo das relaes entre a lngua e as caractersticas da comunidade que a fala. Da pauta da etnolingstica fazem parte, por exemplo, a compreenso do modo como as pessoas se comunicam em diferentes sociedades, e a compreenso das funes que a lngua desempenha em sociedades primitivas ou tecnologicamente avanadas. Lingistica Indgena - Nome que se d, no Brasil, ao estudo das lnguas noindoeuropias faladas pelas populaes indgenas. Segundo os especialistas, havia em 1500, no territrio brasileiro, cerca de 340 lnguas indgenas, das quais sobreviveram apenas uma centena. A maioria das lnguas indgenas brasileiras so faladas por menos de 100 pessoas. Conhec-las e proteg-las uma tarefa de grande alcance cultural e humanitrio. Estruturalismo - 1) Ramo da Lingustica interessado na depreenso das estruturas lingusticas a partir do comportamento lingstico observado. Para postular como a estrutura lingustica, o Estruturalismo concebe a lngua como um conjunto de nveis hierrquicos, cada qual com sua unidade de anlise, de tal sorte que as propriedades de um nvel concorram para constituio das propriedades do nvel imediatamente superior. NVEIS DE ANLISE Fonologia* Morfologia* Sintaxe* UNIDADES DE ANLISE Fonema* Morfema* Sintagmas*, sentenas*

Esse quadro deve ser lido assim: caractersticas dos fonemas interferem nos morfemas (por exemplo, a perda do fonema que fecha a slaba*, como o s ou o r, modificar o morfema de plural de uma palavra como casas e o morfema do infinitivo de uma palavra como falar, que perdero suas marcas); caractersticas dos morfemas interferem nos sintagmas (por exemplo, se o sintagma nominal [as casas] muda para [as casa], caber ao Artigo a indicar a concordncia); caractersticas dos sintagmas interferem nas sentenas (por exemplo, se [as casa] for o Sujeito de uma sentena, no haver concordncia do verbo com o sujeito, como em as casa caiu).

Para o Estruturalismo, a lngua no se confunde com as frases que as pessoas usam, nem com o comportamento verbal que observamos no dia-a-dia. A lngua , ao contrrio, uma abstrao, um conhecimento socializado que todos os falantes de uma comunidade compartilham, uma espcie de cdigo que os habilita a se comunicarem entre si. 2) Grande movimento cientfico nas humanidades ancorado no pressuposto de que fenmenos complexos se organizam por partes para constituir um todo estruturvel. No ensino de lnguas o movimento paradigmtico (uma grande abordagem) que absorve a longa tradio clssica de ensino da gramtica e da traduo para o aprendizado de lngua(s) postulando a centralidade e a anterioridade do sistema lingstico que trabalhado cumulativamente por partes previamente descritas e contextualizadas na frase, no pequeno dilogo demonstrador, no texto curto exemplificador e nas situaes de uso (linguagem na agncia de correio, na mesa do caf da manh etc). Nos anos 70, associou-se ao condutivismo ou corrente psicolgica behaviorista assentada na aprendizagem de partes ou padres que superensinam nas demonstraes repetveis e nas substituies mecanizveis. Hoje, o Estruturalismo audiolingual se comunicativizou para sobreviver fazendo uso de materiais autnticos, trabalho aos pares e pequenos grupos e desempenho de papis. 3) A Lingustica Estruturalista se ocupa do enunciado*, no qual identifica as regularidades lingusticas* a partir de um conjunto de princpios e de uma metodologia. Ela procura as regularidades encontradas na Fonologia, na Morfologia e na Sintaxe. Tudo o que for regular integrar a Gramtica da lngua. Tudo o que for irregular integrar o Lxico dessa lngua, entendido como o lugar das idiossincrasias, como um componente das lnguas naturais distinto do da Morfologia e da Sintaxe. Funcionalismo - Ramo da Lingustica que consiste em descrever e explicar as unidades lingsticas vistas como veiculadoras da comunicao e como produtoras de sentido, desempenhando funes na comunidade de fala, para alm de suas propriedades puramente estruturais. Estudo das unidades lingusticas que leva em conta seus propsitos como atos de fala. Tendncia dos estudos gramaticais em que se ultrapassa o limite da sentena, investigando os correlatos discursivos e semnticos das unidades gramaticais. Estudo das preferncias, escolhas e tendncias de uma lngua, deixando para um segundo plano a formulao de regras formais. Gramaticalizao - Gramaticalizao - Criao de construes gramaticais a partir de palavras e expresses que, originalmente, se aplicavam a objetos ou situaes do mundo, e funcionavam como itens lexicais.

Texto: Lingstica terica e metodologia do ensino (Link5)

Lingstica Textual - Ramo da Lingustica que estuda a estruturao dos textos, debatendo questes ligadas aos conceitos de coerncia, coeso, interao, conectivos textuais e gneros textuais. Alfabetizao - Conjunto de atividades que levam o indivduo a dominar a lngua escrita, capacitando-o a ler e a escrever. Fonologia - Parte da Gramtica que estuda os sons da lngua em seu papel distintivo. A Fonologia a disciplina que melhor ilustra a idia estruturalista de que as unidades da lngua tm uma natureza opositiva: uma de suas principais tarefas identificar os sons que distinguem palavras e os contextos fnicos em que isso ocorre. Por exemplo, para distinguir as palavras morte e morde dependemos da oposio entre /t/ e /d/, que portanto so fonemas, mesmo que cada uma dessas unidades seja realizada foneticamene de vrias maneiras, conforme a regio e conforme a posio na palavra (pense-se nas pronncias de um gacho e de um carioca). Palavra - Unidade do Lxico caracterizada (1) fonologicamente por dispor de esquema acentual e rtmico, (2) morfologicamente por ser organizada por uma margem esquerda (preenchida por morfemas prefixais), por um ncleo (preenchido pelo radical), e por uma margem direita (preenchida por morfemas sufixais), (3) sintaticamente por organizar ou no um sintagma*, (4) semanticamente por veicular uma idia (enquanto que a sentena veicula uma proposio), e (5) graficamente por vir separada por meio de espaos em branco. Tipicamente, a palavra maior do que uma unidade significativa (por exemplo, na palavra cachorro h duas unidades significativas, cachorr- que remete a uma espcie animal, e -o que manda considerar apenas um espcime, do sexo masculino), e menor do que os sintagmas*, as grandes unidades sintticas que estruturam a sentena (como o cachorro de guarda do vizinho, ou um cachorro branco). Letramento - Forma de insero na sociedade a que o indivduo se habilita pelo fato de utilizar de maneira competente a escrita. Leitura - Processo cognitivo pelo qual deciframos um texto escrito, recuperando sua forma oral (se a leitura for em voz alta) e seu contedo. A leitura uma atividade fundamental em sociedades como a nossa, onde h um grande nmero de mensagens circulam em forma escrita.