mistura indigesta - novembro
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Coletânea de textos publicados no blog Mistura Indigesta durante o mês de Agosto/2012TRANSCRIPT
Novembro – 2012
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Capacetes Coloridos
Por Fábio Accardo
Cores para diferenciar. Cores para hierarquizar. Branco é quem
manda. Quem pensa. O resto? É resto, faz trabalho braçal. O
engenheiro se impressiona de ter conseguido fazer ele só aquela
obra. O secretário diz que as decisões são muito rápidas, um mês, 15
dias, 15 minutos, uma canetada. Uma empreiteira. Várias
terceirizadas. Vários trabalhadores. Muitos capacetes coloridos.
Poucos brancos.
O documentário de Paula Constante nos trás a comparação de dois
canteiros de obras. Um é o canteiro da ampliação do campus da USP
na Zona Leste de São Paulo. Esse canteiro é o da empresa, da
empreiteira, que ganhou a licitação, e, sub-contratou diversas
microempresas de trabalhadores da construção civil, terceirizando o
trabalho. A relação trabalhista mostrada é do maior nível de
exploração, física, mental, social e econômica. Geralmente são
moradores do entorno da obra que procuram trabalho e se
submetem a esse tipo de exploração. As ferramentas são da
empresa. São mão-de-obra. Obedecem.
Na outra paralela, o canteiro é da Associação Paulo Freire, ligada à
União dos Movimentos de Moradia de São Paulo. A obra é em
mutirão autogerido. Mutirão porque é um monte de gente fazendo o
trabalho. Autogerido porque é esse monte de gente que discute e
decide como será feito o trabalho. Quem está executando a obra de
construção dos apartamentos são as mesmas pessoas que vão morar
ali. Elas decidiram o projeto, a planta, os materiais, o tipo de
Fábio Accardo
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construção, quem vai construir, como, quando, em quanto tempo.
São as próprias trabalhadoras (pois a maioria é mulher nesse
processo) que decidem sobre o seu trabalho. São mãos e cabeças-de-
obra.
O paralelo faz sentido quando pensamos sobre o fazer arquitetônico
numa sociedade na periferia do sistema capitalista. De um lado o
modo “tradicional”, “convencional”, de se fazer, de construção: a
universidade pública construída por uma empreiteira, com mão-de-
obra explorada, tecnologia convencional. Do outro, a construção de
moradias populares: a partir da necessidade das pessoas de terem
onde morar, se organizam, reivindicam, ocupam um terreno,
conseguem financiamento, e decidem eles próprios, em coletivo,
projetarem e construírem suas casas em autoconstrução, em mutirão
autogerido.
Num mundo onde o morar é negócio e poucos tem realmente acesso
a esse direito, o pensar é, também legado a poucos. A universidade,
lócus do conhecimento, onde são fabricados milhares de bacharéis,
mestres e doutores, que pensam e comandam o mundo, é construído
a base de sangue e suor, dos trabalhadores explorados pela
construção civil.
A necessidade do morar leva as pessoas a reivindicarem um espaço,
um território nesse mundo cinza da cidades. Se organizam e se
movimentam para isso. A organização coletiva dos trabalhadores na
luta por moradia é base para o passo seguinte, a decisão de
construírem eles mesmos a própria casa. Esse fato modifica as
relações de produção envolvidas no processo do fazer arquitetônico
e da construção civil. Os trabalhadores não são mais livres
Capacetes Coloridos
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mercadorias no mercado de mão-de-obra de desempregados, mas
são donos do seu próprio fazer.
Reintegram-se com o fazer do seu trabalho a partir do momento em
que não estabelece uma relação de mercado, ou alienada, com seu
trabalho.
É o trabalhador, ou melhor, a trabalhadora, que decide a sua
necessidade. E isso se faz em coletivo. São espaços de
experimentação de uma esperança. Esperança de uma nova
sociedade. Outro projeto de sociedade. Onde são experimentadas
nova forma de trabalho. Relações de trabalho, de companheirismos,
de coletividade, de cooperação, que são contrárias as relações
convencionais desse sistema que vivemos. Não só contrárias, são
relações que negam essa outra forma atual. Não sem contradições e
limites, os mutirões autogeridos nos mostram um novo fazer
arquitetônico que nega o modo tradicional de construção, e também
a autoconstrução individual (modo mais comum nas periferias
urbanas – pessoas que constroem as próprias casa, com ajuda de
amigos, parentes – tipo favelas, barracos, etc).
De certa forma as técnicas, a tecnologia, os artefatos, estão
presentes em todas as etapas da nossa vida. Se apontamos para o
novo, para um novo projeto de sociedade temos que apontar, tratar
e modificar, essa relação com a tecnologia, que nos domina, e, para
além disso, modificar a própria tecnologia. Creio, assim como Sérgio
Ferro, que “os canteiros de autoconstrução coletiva, autogeridos
pelos trabalhadores, são laboratórios experimentais em que estas
coisas podem, devem ser encaradas”. E Sérgio continua, “mais: a
autogestão na construção tem repercussões que saem do canteiro,
atingem outros níveis da vida social. A cantina, a creche, o posto de
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saúde coletivos já avançam outras pistas. A surpreendente e
numerosa presença das mulheres na construção estremece o
machismo tradicional, a ideologia dos sexos. As negociações para
obtenção do terreno, de financiamento, de compra, etc., fortalecem
a perspectiva socializante destas iniciativas. E etc., etc., etc...”.
O filme nos traz o privilégio visual dessa comparação entre canteiros
de obras, o da empreiteira e o do mutirão autogerido. Os textos e
prática do Coletivo Usina e escritos de Sérgio Ferro, mostram que a
atuação desses arquitetos são uma modificação do fazer profissional,
são verdadeiros arquitetos-educadores que optaram por trabalhar
com a classe trabalhadora que luta pelos seus direitos, sendo, nesse
caso, um dos direitos mais básicos da população, o acesso a
habitação. Necessidade que deveria ser a base da Universidade, na
educação de capacitados para lidar com as necessidades dos
trabalhadores.
A luta lado a lado, desde o início das ocupações de terras, conquista
do terreno, até o trabalho cotidiano de uma assistência técnica
compartilhada, é capaz de produzir nesses espaços de mutirões
autogeridos, novas formas de relações, solidárias, de coletividade, de
experiência de um vir a ser, de uma sociedade nova, autogerida.
Como João Bernardo que diz que “gerir as empresas e a sociedade é
algo que se aprende de uma única maneira: gerindo as próprias lutas.
Só assim os trabalhadores podem começar a emancipar-se de todo o
tipo de especialistas e de burocratas. E com este objetivo não há
experiências simples demais. Por mais modesta que seja uma
experiência, os participantes vão se habituando a dirigir a sua
atividade e vão aprendendo na prática aquilo que opõe essa
solidariedade e esse coletivismo ao Estado capitalista. É esta a única
Capacetes Coloridos
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maneira sólida como os trabalhadores podem, no plano prático,
reforçar progressivamente a sua capacidade de organizar as
empresas e a sociedade e, no plano ideológico, forjar uma
consciência de classe”.
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Insônia
Por Caio Moretto
Acho que grande parte da insônia é só vontade de adiar o dia de
amanhã, como se ficar acordado fosse uma forma de compensar a
desagradável rotina. A insônia é o protesto silencioso, solitário e
involuntário dos covardes, dos que estão insatisfeito com a vida que
levam, que tem medo do futuro ou que simplesmente trabalham
demais. Respeite a olheira do seu colega. É a tatuagem do orgulho
que nos resta. É a greve de sono, o projeto ingênuo e incoerente de
vingança que remoemos a noite inteira. É a greve legítima pela
vontade de viver, que, impotente, traduzo na irônica contradição:
"posso trabalhar 12 horas, mas as 8 de sono eu não engulo não".
Afinal, se não for a insônia, que tempo sobra para a gente viver?
(Texto escrito em 18 de maio de 2011, às 1h33.)
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Melô do Bom Contribuinte
Por Thiago Aoki
- Eu pago meus impostos. Sim, eu pago meus impostos. E o que
ganho com isso? Nada, apenas deixo de ser punido pelo Estado caso
fosse um sonegador. Agora eu pergunto, pra onde vai esse dinheiro?
O que se faz com esse dinheiro? Parece óbvio que o Estado brasileiro
não tem condições de gerenciar tanto imposto, trilhões. Olha como é
retrógrada a coisa: a agenda do país tem como um dos principais
compromissos analisar se fulano torturou sicrano há cinquenta e
tantos anos atrás. Deixa isso pra lá, já foi, já morreu todo mundo, era
outra época, vamos ocupar nossa política com coisas relevantes,
olhar pra frente, projetos que nos torne uma potência. Enquanto
isso, quem paga os impostos necessários pro Planalto funcionar?
Claro, nós, os contribuintes. É um perfeito exemplo de descaso com o
dinheiro público. Há sim o imposto que funciona. Pedágios, por
exemplo. Menos morte no trânsito, pistas duplas, segurança,
conforto pra quem dirige. Tudo bem, você paga uma quantia lá, mas
quando você compra seu carro zero quilômetro, você sorri porque
sabe que poderá usufruir de toda sua potência para trafegar com
segurança pelas estradas. E parando pra pensar, nem parar no
pedágio precisa mais. A tecnologia a serviço do homem. O imposto
que funciona. Fico me perguntando quantas pessoas teriam acesso a
telefones se o gestor da telefonia fosse o próprio governo brasileiro.
E olha quantos ignorantes não enchiam o saco dia após dia, “vender
o país”, como se o país fosse capaz de se administrar. O resultado tá
aí, indiscutível. Melhor deixar na mão de quem tem entendimento,
know-how, feeling, de quem sabe administrar, afinal, se o dinheiro
Thiago Aoki
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fosse seu, quem você escolheria para cuidar? Investidores, managers
renomados ou o braço estatal? Você pode tentar se enganar, mas no
fundo não deixaria ali seu dinheiro. Você trabalhou pra isso, não vai
deixar na mão de alguém que não sabe gerenciar nada. Você
trabalhou. Não se conformou diante das dificuldades, não aceitou
esmola do governo parado, não quis se acomodar no bolsa-miséria
como muita gente. Fez tudo pra vencer. Sabe, tem um filho de uma
empregada minha que é assim. Luta, batalha, trabalha de dia, estuda
de noite, está quase saindo do curso técnico. Quer ser alguém na
vida. Já o irmão dele é um vagabundo. Daqueles que constitui uma
família, instituição que já foi sagrada, só para receber o bolsa miséria
do governo. Resultado, o rapaz fica encostado dia após dia, faz um
bico ou outro, e coincidentemente sempre recebe os “benefícios”,
entre aspas, do governo. “Benefícios” que saem da onde? Do
dinheiro mal gerido do contribuinte. Onde estão os aeroportos para
escoar a produção, a malha ferroviária, a infraestrutura necessária
para produção? Viraram cinquenta reais, ou algo assim, no bolso de
uma pessoa acomodada, que além de não procurar emprego, sabe-se
lá onde vai gastar esse dinheiro. Dá-se o peixe, mas não se ensina a
pescar. Mas o governo brasileiro é bom em acomodar as pessoas,
estimular o jeitinho. O mais novo jeitinho do século XXI são as cotas.
“O mundo tá injusto, vamos nivelar por baixo, vamos colocar pessoas
menos capacitadas para pegar as vagas de quem se esforçou mais”.
Tenha santa paciência, então vamos lá, pegue a nota do seu filho,
que ele se esforçou pra poder receber a mesada, e divida com os
amiguinhos. Ou então faça com que na seleção basileira seja
obrigado a ter um jogador com mais de 120 quilos, para equilibrar.
Até brinquei com minha filha, sugeri que ela intensificasse o
bronzeamento artificial que ela faz duas vezes por semana pra ela
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falar que é afrodescendente, porque nesse país negros merecem
mais, onde já se viu. Não sei como eles aceitam. Se eu fosse negro,
numa boa, numa boa mesmo, não aceitaria esse atestado de
incapacidade. Aí o cara vai lá, entra sem preparo, chega na
universidade, atrasa o ritmo da turma, depois querem reclamar da
qualidade da educação. Olha, eu mesmo acredito que educação é
fundamental, sem mão de obra qualificada jamais chegaremos a
algum lugar. Mas veja a bagunça. Não sei quantos dias de greve,
daqui a pouco tá no calendário acadêmico dos caras: vestibular para
os desqualificados, trote, matrícula, aulas, greve, greve, quebra-pau,
aumento, aulas de novo. Meu filho mais velho poderia ingressar em
qualquer faculdade, garoto inteligente, esforçado, não é um
vagabundo qualquer. Mas eu preferi que ele não passasse por isso. Já
pensou, não conseguir entrar por ausência de melanina na pele, ou
ter que ficar à toa em casa por greve de baderneiros. Tudo errado...
Outro dia um amigo mandou um vídeo no youtube, chamado
“Baderneiors em greve”, pode pesquisar. Os caras numa boa
fumando um baseado numa rodinha. Agora entendo porque não
querem a polícia por lá... Aí a câmera dá uma rodada, tem dois caras
se beijando. Isso mesmo, dois caras. Afinal, é uma greve ou pretexto
pra não estudar e fazer pederastia? Não que eu seja contra dois
caras... sei lá... se beijarem. Mas precisa fazer isso no meio de todo
mundo, todo mundo tem que ver isso? Desnecessário. Se fosse só
por gostar um do outro não iam querer ficar se exibindo. Enfim,
Deus que me livre. Coloquei logo o moleque em uma instituição
privada, e quero que ele faça os dois últimos anos nos EUA, um
convênio com um centro de pesquisa ótimo, “Massachusetts
Institute of Technology”, referência mundial, não um antro de
baderneiros que acham que o fim da universidade – paga com o
Thiago Aoki
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dinheiro, adivinhem só, do contribuinte – é um baseadinho a mais. É
o tipo de gente que vai se formar e dar trabalho no emprego e quem
vai pagar o pato mais uma vez? O empresário que contribuiu todo
esse tempo e ainda tem que aturar uma mão-de-obra dessa
categoria. Ciclo vicioso. Quem sabe ele mesmo, meu filho, não seja
alguém que mude tudo isso. Que volte ao Brasil com a experiência
dos países sérios, chegue às instâncias de poder e mude esse sistema
canalha e invertido que temos. Quem sabe ele não faça o justo,
possibilite que o esforçado filho de minha empregada seja alguém na
vida, talvez um supervisor de obras, um exemplo pro irmão
vagabundo, que hoje deve rir por ganhar sem fazer nada. Vai ver que
é por isso tanta gente pedindo dinheiro na rua, como se a unidade
monetária fosse migalha de pão que se distribua aos pombos... Quem
sabe meu filho não cresça e mostre que ninguém tem culpa de ter
mais dinheiro, de ter mais terra, de ter um carro de luxo. Que, pelo
contrário, ter mais é merecimento, que acúmulo é mérito. Quem
sabe ele não inverta a lógica do jeitinho brasileiro e seja um exemplo
de integridade. Quem sabe o filho acomodado da empregada não
sinta orgulho de ver pela tevê uma figura de sucesso como meu filho,
que eleva o nome do país, ou melhor, quem sabe ele não se sinta
envergonhado de ter por tanto tempo mamado nas tetas do Estado,
se acomodando em ser negro e pobre, com a sorte do destino de
viver em uma terra onde a escória tem privilégios. Quem sabe ele
não se envergonhe por isso, por não fazer sua parte para o país. A
democracia precisa de pessoas dispostas à seguir as regras da
liberdade, o capitalismo precisa de pessoas proativas. E o que
estamos oferecendo ao mundo? O contrário.
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O Bicho do Mato
Por Hugo Ciavatta
"Borboleta Azul
ao entrar na cachoeira,
me lembrou que a tristeza
é uma coisa passageira"
(Ouviu-se, um dia, em Amparo)
O sujeito é um bicho do mato, mesmo tendo crescido na cidade, é
Bicho do Mato. Não é taciturno, mas é caladão, não fala muito nem
pouco, fala apenas na justes. Bicho do Mato não é antipático nem
boa praça, é somente rabugento, tem um mau humor particular,
quase indescritível. É assim, Bicho do Mato. Ele sabe capinar, montar,
fazer e refazer hortas, o cuidado dele com um quintal é difícil
encontrar. Possui saberes que não estão nos livros, que não se
transmitem, que não se guardam, que não se anotam ou se
experimentam, ele somente sabe. Talvez ficasse mais bem dito que
os saberes é que o possuem, mas há aí metafísica por demais, não
combina com Bicho do Mato. Mesmo sem ter aprendido, ele sabe, e
não é sabido como eu tento ser, sabe porque é sábio e assim o é.
A última vez que o vi, ele estava diante de um mapa. Sempre
querendo ser engraçado, ou pior, acreditando ser, mandei um “que
que é Bicho do Mato?, tá pensando em viajar, é?, você já vive
viajando!”; “Ó que eu vou hein, rapai! Duro é que é longe... duro vai
ser pra muié e pros fio...”. Sim, ele fala com uma simplicidade que dói
às vezes. Dói de bonito, nada de sentimento culpa, não. Bicho do
Hugo Ciavatta
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Mato conversa como procede, na simplicidade. Simplicidade tão
cândida que nenhum João, Antônio ou José lhe cabe.
Bicho do Mato não tem pelos, apesar de seu pai ser árabe, um tipo
daqueles bem típico, barbudão, o menino é que saiu praticamente
imberbe, nem bigode ele tem. Quando o conheci, Bicho do Mato já
passara dos vinte, denunciava a idade maior frente à adolescência
dos meus dezessete passados. A idade deve fazer as pessoas
ocupadas, porque da primeira à última vez que o encontrei, ele
sempre teve muitas coisas a fazer. Era o tempo da faculdade ainda,
saíamos mais cedo das aulas, entortávamos o estágio, relaxávamos
no emprego mequetrefe anos depois, não importava, Bicho do Mato
saía mais cedo do futebol, da cerveja com o pessoal, não esperava a
festa, tampouco o samba acabar, dizia sempre ter muito a resolver
no dia seguinte. Misterioso é esse meu amigo, quantas vezes estive
em sua casa, ou ele na minha, mas o rapaz desperta apenas para
estar desperto, eu acreditava. Preconceito meu, claro, afinal, há
muito por fazer quando se precisa afinar instrumentos musicais. E
Bicho do Mato é músico virtuoso, mestre sem diploma nessa arte. Na
cidadezinha onde cresceu, muitas e muitas vezes ele nos contou, fez
sucesso com um grupo de pagode.
Se o leitor subestima o gênero, o visual de Bicho do Mato a maior
parte desses anos mostra outra de suas faces, pois a coreografia
pode ser inspirada no Katinguelê, mas a cabeleira faria inveja ao
Robert Plant. Parece impossível conjugar tudo isso, não para Bicho do
Mato. Coerência nunca foi seu ponto forte, tantas foram as guitarras,
pandeiros, bandolins, cavaquinhos, baquetas e violões que cultivou
nesses anos todos. Ah, aquela velha sanfona dos últimos tempos.
Muitas vezes, eram instrumentos artesanais caríssimos que, no
O Bicho do Mato
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entanto, da noite para o dia desapareciam, davam lugar a uma bola
de Pilates. Exatamente, certa feita Bicho do Mato trocou um violão
por uma bola daquelas usadas na prática de Pilates. Queria se
exercitar em casa, dizia ele. Apenas Bicho do Mato poderia explicar a
equivalência que encontrou entre o violão e a bola. Mas depois
descobri que a bola, enfim, deu lugar a um cavaquinho, e Bicho do
Mato passou foi por esperto no fim das contas.
Nós, os amigos, nunca deixamos por menos, qualquer coisa dele era
motivo de piada. Todavia, para algumas coisas Bicho do Mato não
admite brincadeiras. Quando o assunto é música, especialmente, dar
risada quando alguém pede Raul Seixas em mesa de botequim é uma
coisa, agora trocar a imagem do velho roqueiro que Bicho do Mato
leva tatuada no braço pelo Seu Madruga é de o deixar indignado.
A simplicidade também contrasta com a agitação que o rapaz
apresenta dia a dia. Quantas vezes não se ouve das pessoas que, de o
conhecer rapidamente, dizem ser ele um sujeito tranquilo? Ledo
engano. Isso está expresso na forma em que come: pouco, é verdade,
mas tantas, muitas e repetidas vezes durante o dia. O arroz com
feijão do almoço não é muito, somente proporcional às frutas ou aos
pãezinhos que o antecedem ou o esperam em meia-hora.
Acredito que coma bastante pois precise de muita energia, Bicho do
Mato é um atleta, só assim para correr tanto. No futebol o avisamos,
em tom de galhofa, para que não esqueça a bola, que a pelota é que
precisa entrar no gol antes dele. Tem muita sorte, disso eu o invejo,
ainda que lhe falte habilidade, ele resiste pela esperteza dos passos
rápidos no gramado.
Hugo Ciavatta
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Sorte e alheamento, às vezes, que mistério aquele rapaz. Passou anos
com esse jeito calado, como quem está decidida e resignadamente
apaixonado sabendo não ser correspondido. Mesmo tendo um
coração enorme, só se via Bicho do Mato acompanhado de suas
bicicletas. E foram muitas, mais até que os instrumentos musicais.
Acho que guardou, por timidez, a expressão de seus sentimentos à
pessoa certa que lhe quisesse. Até hoje resiste à cerimônias
quaisquer, mas acho que só mesmo a patroazinha que ele encontrou
– de novo, talvez fosse melhor dizer o inverso, que foi ela quem o
encontrou – para deixar Bicho do Mato feliz de amor.
Antes da patroazinha, uma vez lhe perguntaram se de mulher ele
gostava. "Gosto sim, cara", foi a resposta tranquila, como que não
entendendo a curiosidade. A comparação que se seguiu, confesso,
nunca entendi, porque Bicho do Mato disse exultante, com muito
mais ímpeto, que de Maria Joana ele gostava bastante. Não conheci a
moça, só ouvia o pessoal comentar que ela passava de mão em mão
nas rodinhas das festas. Bicho do Mato ficou de me apresentá-la um
dia, parecia que ela realmente fazia a cabeça dele. Combinamos de
nos encontrar, eu ia contente por enfim conhecer a moça do coração
de Bicho do Mato, mas ele ficou lá no quintal proseando comigo, eu
sentado com minha cervejinha enquanto ele separava uns matinhos,
preparava seus cigarros, sorria, sorria muito aquele dia, gargalhava à
toa, à toa. Maria Joana eu não vi. A patroazinha, contudo, é muito
minha amiga.
Mas falo no presente quando, na verdade, o tempo hoje é pretérito.
Não, ele não se foi falecido, ou algo assim – o que seria equivalente a
desviver? –, não, ele não morreu, basta: ele apenas se mudou. Eu
falava do mapa, ele viajou, pois, juntou as tralhas, digo, os
O Bicho do Mato
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instrumentos musicais, as bicicletas, e rumou para o oeste. Há uma
controvérsia sem fim sobre isso, inclusive, uns dizem que foi a
patroazinha quem lhe deu direção na vida. Outros dizem que não,
que foi o bom trabalho que arranjou praquelas bandas, o destino, a
vida foi quem lhe guiou. De todo modo, os fio já estão com ele. O
casal de vira latas mais simpático que estas terras já viram foi
embora. Ah, sim, na contenda sobre a partida, dizem ainda que foi o
pulguento macho que levou Bicho do Mato. Sei não, desconfio.
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Viagens à Lua e Espiritualidade
Retirado de http://lazenby.tumblr.com
Tradução de Fernando Mekaru
Bem, você obviamente deve odiar a espiritualidade. Esta palavra
normalmente se refere a alguém utilizando o mundo espiritual como
rejunte para preencher uma falha em si próprio: por exemplo, um
cara encalhado de cinquenta-e-poucos-anos, com o rosto parecendo
uma moeda gasta, subitamente temendo a própria morte e que por
conta disso se matricula em uma aula sobre deusas em uma
uniesquina da vida. A espiritualidade não flui dessa maneira. Ela está
cagando e andando para você. Estamos no fluxo dela, e mesmo que
sonhemos com rodas d'água para controlar este fluxo, não há um
porto seguro ao qual se ancorar. Na maior parte do tempo,
ignoramos o fato de que rumamos ao local ao qual ela vai. Isto torna
a nossa condição invisível para nós mesmos.
Em situações raras, nossa condição se faz visível. Nestes momentos,
ficamos desamparados, e irresistivelmente atraídos. O Programa
Apollo é um bom exemplo disso.
Todos pensavam que John Kennedy, Lyndon Johnson e Richard Nixon
estavam gastando quatro-e-meio porcento do orçamento federal
estadounidense anualmente para provar que os Estados Unidos eram
donos da Ciência.
Isso tudo é uma ficção.
O Programa Apollo foi uma demonstração elaborada de como
mesmo o mais insípido entre nós está sob o jugo do espírito.
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A NASA precisava de astronautas para botar uma bandeira na lua. Por
razões óbvias, os astronautas eram do tipo mais confiável de homem
que os EUA produzem: brancos, héteros, evangélicos caretas, da
centro-direita, frutos da união entre ciência e exército. Cada um
deles era o coração do coração do povão norte-americano.
Mas então eles foram atirados ao espaço, livrados da gravidade deste
planeta, em direção a duzentos e cinquenta mil de quilômetros de
vazio, para serem agarrados pela lua após três dias. Dezoito caras
fizeram isso; doze deles foram mais a fundo, para descobrirem que
poeira lunar tem cheiro de pólvora.
Cada um deles voltou inegavelmente mudado.
Os EUA mandaram os filhas-da-puta mais quadrados que conseguiu
encontrar à lua, e a lua devolveu seres humanos. Neil Armstrong
tornou-se professor, e depois fazendeiro. Alan Bean tornou-se pintor.
Edgar Mitchell começou a acreditar em OVNIs, além de conseguir
cristalizar, em texto, a experiência de ver seu próprio planeta de uma
vez só:
'Você desenvolve instantaneamente uma consciência global, uma
orientação coletiva, uma insatisfação intensa com a situação do
mundo, e uma compulsão por fazer algo a respeito disso. Lá da lua, a
política internacional parece muito mesquinha. Dá vontade de pegar
um político pelas pelancas do pescoço, arrastá-lo duzentos e
cinquenta mil quilômetros pra fora e dizer 'Olha isso aqui, seu filho-
da-puta'. (Fonte: People, 08 de Abril de 1974)