miolo correio appoa 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo...

46
novembro 2010 l correio APPOA .1 editorial. [...] em nome de incontáveis contemporâneos seus, desejo expri- mir a confiança de que você nunca fará ou dirá nada – apesar de tudo, as palavras de um autor são instrumentos – que seja covarde e abjeto, e que, mesmo numa época que obscurece os julgamentos, você escolherá o caminho certo e o mostrará aos outros. Carta de Freud a Thomas Mann por ocasião do sexagésimo aniversário de Thomas Mann. A utilização da tortura contra presos políticos, ou contra quem quer que seja, constitui crime de lesa-humanidade, e nesta medida fere de morte o imenso esforço civilizatório pelo qual a raça huma- na, através dos tempos, busca salvar-se das trevas da barbárie (...). A tortura visa a produção diabólica de um discurso que é o avesso da liberdade. Ele vira o torturado pelo avesso, na busca de uma confissão que o destrói, envenena as fontes de sua vida carnal e de seus valores espirituais. Hélio Pellegrino Ao contrário da Argentina, Chile e Uruguai, o Brasil continua tendo apreço e deferência por seus torturadores e se destaca, no contexto latino americano, como país que jamais levou ao banco dos réus um único tor-

Upload: ngohanh

Post on 01-Apr-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.1

edito

rial.

[...] em n

ome de in

contáveis con

temporân

eos seus, desejo expri-

mir a con

fiança de qu

e você nu

nca fará ou

dirá nada – apesar de

tudo, as palavras de u

m au

tor são instru

men

tos – que seja covarde

e abjeto, e que, m

esmo n

um

a época que obscu

rece os julgam

entos,

você escolherá o cam

inh

o certo e o mostrará aos ou

tros.

Carta de Freu

d a Th

omas M

ann

por ocasiãod

o sexagésimo an

iversário de Th

omas M

ann

.

A u

tilização da tortu

ra contra p

resos políticos, ou

contra qu

emqu

er que seja, con

stitui crim

e de lesa-hu

man

idade, e nesta m

edida

fere de morte o im

enso esforço civilizatório pelo qu

al a raça hu

ma-

na, através dos tem

pos, busca salvar-se das trevas da barbárie (...).

A tortu

ra visa a produção diabólica de u

m discu

rso que é o avesso

da liberdade. Ele vira o torturado pelo avesso, n

a busca de u

ma

confissão qu

e o destrói, enven

ena as fon

tes de sua vida carn

al e deseu

s valores espirituais.

Hélio Pellegrin

o

Ao con

trário da A

rgentin

a, Ch

ile e Uru

guai, o B

rasil contin

ua ten

do

apreço e d

eferência p

or seus tortu

radores e se d

estaca, no con

texto latino

american

o, como p

aís que jam

ais levou ao ban

co dos réu

s um

ún

ico tor-

Page 2: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.3

An

istia

e to

rtura

.

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

02.

edito

ria

l.

turad

or que atu

ou n

o períod

o da d

itadu

ra civil-militar n

o país. E

m m

aio

deste an

o, o Su

prem

o Tribu

nal Fed

eral julgou

um

a ação movid

a pela

Ord

em d

os Ad

vogados d

o Brasil (O

AB

) defen

den

do u

m n

ovo encam

i-

nh

amen

to à lei da an

istia de 1979 já qu

e a tortura, com

o todos sabem

, é

crime lesa-h

um

anid

ade n

ão send

o passível d

e prescrição e n

em d

e anis-

tia. O B

rasil é signatário d

a Declaração U

niversal d

e Direitos H

um

anos

de 1948, ratificad

a pela D

eclaração de D

ireitos Hu

man

os de V

iena d

e

1993, que p

roíbe a tortura e d

efend

e o direito u

niversal à verd

ade e à

justiça, tam

bém ratificou

a Con

venção in

ternacion

al contra a tortu

ra e

outras p

enas ou

tratamen

to cruéis, d

esum

anos e d

egradan

tes da O

NU

,

bem com

o a Con

venção am

ericana d

e Direitos H

um

anos. Porém

, de cos-

tas para a legislação in

ternacion

al, a alta corte brasileira ind

eferiu a soli-

citação, perd

end

o assim u

ma ch

ance h

istórica de ju

stiça.

Mu

itos pesqu

isadores d

emon

stram qu

e nos p

aíses ond

e hou

ve julga-

men

to de tais atos crim

inosos a tortu

ra em crim

es comu

ns d

imin

uiu

sig-

nificativam

ente. N

o Brasil, com

o sabemos, a tortu

ra insiste com

o prática

cotidian

a.

A p

sicanálise n

ão pod

e se furtar a este d

ebate pois su

a ética não é

conson

ante com

a ind

iferença aos trau

mas d

e um

a nação, a n

ossa nação.

Todos con

hecem

bem a h

istórica e contu

nd

ente lu

ta de H

élio Pellegrino,

Helen

a Besserm

an V

iana e ou

tros em relação a este ep

isódio d

a história

da p

sicanálise brasileira e à h

istória do p

aís. Ao d

enu

nciar A

mílcar Lobo,

cand

idato a an

alista pela S

PR

J (Socied

ade Psican

alítica do R

io de Jan

ei-

ro) e méd

ico atuan

te nas sessões d

e tortura e seu

analista d

idata Leão

Cabern

ite, provocaram

a expu

lsão e persegu

ição de vários m

embros d

a

SP

RJ. O

livro de H

elena B

esserman

Vian

a “Não con

te a nin

guém

” reconta

em d

etalhes esse m

omen

to da h

istória em qu

e a Psicanálise, os p

sicana-

listas e a história d

o país se en

laçaram d

e forma a relan

çar inú

meras e

fun

dam

entais p

ergun

tas para o fu

turo.

Todo p

sicanalista tem

um

comp

romisso com

seu tem

po e n

un

ca é

dem

ais lembrar a lú

cida afirm

ação de Jacqu

es Lacan n

o final d

o seu clássi-

co “Fun

ção e Cam

po d

a fala e da lin

guagem

em p

sicanálise” on

de lem

-

bra que d

eve renu

nciar a p

rática da p

sicanálise tod

o analista “qu

e não

consegu

ir alcançar em

seu h

orizonte a su

bjetiv

idad

e de su

a época.

Pois, como p

oderia fazer d

e seu ser o eixo d

e tantas vid

as quem

nad

a

soubesse d

a dialética qu

e o comp

romete com

essas vidas n

um

movi-

men

to simbólico.”

Reu

nim

os aqui algu

ns textos p

ara relançar esta im

portan

te dis-

cussão.

Ed

son S

ousa e Pau

lo En

do

Page 3: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.5

notíc

ias.

Fe

sta

de

fim d

e a

no

Agen

de-se e ven

ha se d

ivertir conosco, em

dezem

bro, na n

ossa tra-

dicion

al Festa de Fim

de A

no. O

s convites estarão à d

isposição n

a secre-

taria. Em

breve mais d

etalhes.

56

ª Fe

ira d

o L

ivro

de

Po

rto A

leg

re

Cad

a um

de n

ós sabe, por exp

eriência p

rópria, qu

ão difícil é tom

ar a

palavra em

meio a vozes tão p

lurais. C

ontu

do, é in

egável o efeito formativo

prod

uzid

o pelo exercício d

e interlocu

ção com ou

tros discu

rsos. Motivo

suficien

te para a A

PP

OA

se fazer presen

te mais u

ma vez n

a Praça d

a

Alfân

dega. C

onfira p

rogramação abaixo:

Dia

: 05

de n

ov

em

bro

18h – M

esa: O P

ON

TO

DE

VIS

TA

DO

OU

TR

O

Participan

tes: Juran

dir Freire C

osta (autor)

Mario C

orso (Psicanalista/A

PP

OA

)

Robson

Pereira (Psicanalista/A

PP

OA

)

Local: Salão d

os Jacarand

ás, Mem

orial do R

S (P

ça. da A

lfand

ega)

Page 4: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.7

An

istia

e to

rtura

.

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

06.

notíc

ias.

Dia

: 11

de n

ov

em

bro

19h – M

esa-redon

da: E

NSA

IO S

OB

RE

A C

EG

UE

IRA

Participan

tes: Lúcia S

errano Pereira (Psican

alista/AP

PO

A)

Márcia Ivan

a de Lim

a e Silva (P

rof. de Literatu

ra/UFR

GS

)

An

a Luiza A

zevedo (cin

easta)

Lucy Lin

hares d

a Fontou

ra (Psicanalista/A

PP

OA

)

Local: Sala Leste d

o San

tand

er Cu

ltural

20h30 – S

essão de au

tógrafos da R

evista da APPO

A – C

iúm

es, Porto

Alegre, n

. 36, jul-d

ez. 2009.

Local: Pavilhão cen

tral

Dia

: 12

de n

ov

em

bro

17h30 – S

essão de au

tógrafos com M

arco An

tônio C

outin

ho Jorge.

Livro Fun

damen

tos da psicanálise – A

clínica d

a fantasia. R

io

de jan

eiro: Zah

ar, 2010. v. 2.

Local: Pavilhão cen

tral

19h30 – C

onferên

cia A clín

ica da fantasia, d

e Marco A

ntôn

io

Cou

tinh

o Jorge

Local: Sed

e da A

PP

OA

– Ru

a Faria San

tos, 258. Tel: (51) 33332140

Publicações A

PP

OA

Um

a e

sc

uta

ce

nsu

rad

a

A p

sicanalista M

aria Rita K

ehl foi afastad

a da su

a colun

a no E

stadão,

nu

ma atitu

de m

otivada p

or um

texto que d

iscordava d

a linh

a do jorn

al.

Claro qu

e o jornal d

á um

a outra versão, qu

e só aprofu

nd

a o non

sense,

pois trata-se d

o mesm

o jornal qu

e reclama estar sen

do cen

surad

o pela

justiça n

um

caso que en

volve a família S

arney. A

imp

rensa sem

pre foi

parcial, m

as desta vez ela d

escaradam

ente qu

er ser protagon

ista do m

o-

men

to político. O

jornal exigia qu

e ela se ativesse a “assun

tos psican

alíti-

cos”, abstend

o-se de qu

alquer leitu

ra da realid

ade social, fu

rtand

o-se a

fazer um

a interp

retação do m

un

do em

que ela vive, p

ediu

-lhe qu

e se res-

tringisse a u

m lim

bo teórico, provavelm

ente ocu

pan

do-se d

e assun

tos

dom

ésticos ou ín

timos. S

ó faltou d

izer que lu

gar de p

sicanalista é en

tre a

cama e a cozin

ha.

Fazia temp

o que a tem

peratu

ra política n

ão subia tan

to e nessa elei-

ção presid

encial vem

se reveland

o posições id

eológicas que estavam

aba-

fadas. A

agressividad

e reinan

te ped

e um

a explicação, ou

ao men

os um

a

hip

ótese: acreditam

os que a d

emissão d

a nossa colega e associad

a pod

e

nos forn

ecer um

a pista. P

rovavelmen

te, o motivo d

e tanta fú

ria, a mesm

a

que an

da n

a rua, n

a intern

et, na im

pren

sa, é o desassossego sobre qu

al o

lugar d

e cada u

m n

o novo m

omen

to que o p

aís vive. O crescim

ento d

o

Brasil n

os últim

os anos fez su

rgir emergen

tes vind

os da classe C

e D, e

isso mexe com

todos. E

sse era um

dos assu

ntos d

o texto que M

aria Rita

escreveu e p

rovavelmen

te por ter tocad

o no p

onto certo é qu

e provocou

tanta p

olêmica.

Existe u

ma classe m

édia qu

e se sente traíd

a, a mesm

a que on

tem

ajud

ou n

o nascim

ento d

o PT, h

oje se sente aban

don

ada. E

ssa classe tam-

bém cresceu

, mas m

enos em

comp

aração com as ou

tras. Os relu

zentes

bens d

e consu

mo qu

e ostentavam

sua p

otência, h

oje são parcelad

os em

várias vezes para qu

alquer u

m com

prar. O

s outros m

ecanism

os de reco-

nh

ecimen

to dessa classe, geralm

ente in

telectuais e cu

lturais, estão em

franco d

esuso, m

as não e só u

m caso brasileiro. Já n

ão serve ser dou

tor,

ter estud

ado m

uito, isso n

ão já garante u

m bom

emp

rego. A p

reguiçosa

classe dom

inan

te brasileira vê surgir u

m bocad

o de gen

te com m

enos

cultu

ra que ela, com

men

os berço, mas m

ais disp

osta a pegar com

as

du

as mãos as vagas d

os postos d

e trabalho. A

lém d

isso, há m

uitos n

ovos

mem

bros no já n

ada seleto gru

po d

os emergen

tes que an

gariam p

restígio

social. O im

pu

lso de crescer e sair d

um

a cond

ição social desfavorecid

a é

um

a fonte d

e energia m

uito d

iferente d

aquela n

ecessária para aqu

eles

que só qu

erem ficar on

de estão e é isso qu

e é intu

itivamen

te percebid

o e

provoca tan

ta fúria, é com

o quan

do u

m irm

ãozinh

o vem ch

egand

o. Os

Page 5: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.9

temátic

a.

An

istia

Am

pla

Ge

ral e

Irrestrita

Co

mitê

Bra

sile

iro p

ela

An

istia

de

o P

au

lo - C

BA

/SP

Me

ria e

frag

me

nto

s1

Maria

Auxilia

do

ra d

e A

lmeid

a C

unha A

rante

s2

Pre

mis

sa

A h

istória da lu

ta pela an

istia amp

la, geral e irrestrita não tem

um

narrad

or oficial. O p

rotagonism

o desta lu

ta foi em p

arte anôn

imo, em

parte con

hecid

o e mu

itas vezes disp

erso em tod

o o país qu

e, das m

ais

diferen

tes formas e n

os mais sin

gulares gestos, se revoltou

contra a tira-

nia qu

e se abatera sobre os brasileiros com o golp

e militar d

e 1º de abril

1 Versão condensada do artigo publicado no livro A Luta Pela Anistia, org. Haike R. Kleber da Silva, Editora UNESP: ArquivoPúblico do Estado de São Paulo: Im

prensa Oficial do estado de São Paulo, (2009) p. 488.

2 Co-fundadora e dirigente do CBA/SP (1978-1982) e da Executiva Nacional dos Movim

entos de Anistia. Psicóloga e psicana-lista. M

estre em Psicologia Clínica pela PUC/SP e doutoranda em

Ciências Sociais pela mesm

a universidade.Coordenadora-Geral de Com

bate à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

emergen

tes são como os im

igrantes, qu

e semp

re são odiad

os, pois tra-

balham

mais p

ara constru

ir seu esp

aço e com isso d

esacomod

am os

nativos.

Resta qu

estão do qu

e seria um

assun

to próp

rio para u

m p

sicanalista,

o qual d

everia ater-se a assun

tos caseiros, restritos ao ind

ivídu

o e seu

cotidian

o, sem jam

ais generalizar em

nen

hu

m asp

ecto que n

ão coubesse

nu

ma revista fem

inin

a. Esse é o lu

gar de d

omesticação qu

e querem

reser-

var aos psican

alistas na m

ídia, a d

e intérp

retes de com

portam

entos am

o-

rosos e familiares, n

o máxim

o send

o-nos p

ermitid

os vôos no qu

e diz res-

peito às id

entid

ades sexu

ais e à violência. S

em d

esprezo p

or esses temas,

que d

e fato são nosso feijão com

arroz, a imp

ossibilidad

e de tran

scend

ê-

los seria um

filtro imp

ossível, um

a surd

ez incom

patível com

a escuta.

Sabe-se, a con

dição p

ara a escuta é qu

e ela não fiqu

e restrita ao imagi-

nário d

o analista, às su

as limitações n

euróticas e p

reconceitos. N

esse sen-

tido, n

ão há com

o um

psican

alista “restringir-se à p

sicanálise”, p

ois a

escuta n

ão é restringível, ela é u

ma d

ispon

ibilidad

e a priori. Maria R

ita

escutou

algo que estava sen

do d

ito e aqueles qu

e se sentiram

interp

reta-

dos p

or isso reagiram n

egativamen

te. Isso não é n

ada qu

e qualqu

er psi-

canalista n

ão tenh

a passad

o, mas m

isturad

o com p

oder torn

a-se pu

ro

autoritarism

o, aquele qu

e julgávam

os sup

erado. D

a nossa p

arte, enqu

an-

to mem

bros da su

a associação analítica, só p

odem

os reconh

ecer a coe-

rência d

e sua p

osição. Não, sen

hores d

o Estad

ão, Maria R

ita não estava

send

o pou

co psican

alista quan

do escreveu

seu texto qu

e vocês julgaram

político, ela estava sen

do sim

, e mu

ito!

Mário e D

iana C

orso

Page 6: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.11

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

010.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

de 1964. Poetas e can

tores de cord

el, artistas de ru

a e pich

adores d

e mu

-

ros, artistas plásticos e gráficos com

seu traço su

til e ferino, com

positores

e mú

sicos que esp

alharam

com a m

elodia u

m grito d

e cale-se foram u

nâ-

nim

es em exigir u

m basta e igu

almen

te un

ânim

es em p

erceber que, ao

final, a an

istia prop

osta trouxe “em

um

a das m

ãos um

ramo d

e oliveira e

na ou

tra um

a vergasta”, como n

a metáfora d

o poeta D

rum

mon

d.3

Con

tar a história d

a anistia e d

as mu

lheres e d

os hom

ens qu

e dela

particip

aram é igu

almen

te correr o risco de exclu

ir sem saber e n

ão in-

cluir p

or descon

hecer tu

do o qu

e contribu

iu p

ara que esta cam

pan

ha e

para qu

e a anistia fosse alcan

çada. O

gesto ético se sobrepôs à violên

cia e

consegu

imos en

voltos nesta ban

deira abrir a p

orta dos p

resídios p

olíti-

cos, receber nos aerop

ortos os banid

os e exilados, assistir à p

rimeira au

la

de p

rofessores cassados e abraçar a am

iga e o amigo qu

e retornavam

de

um

longo tem

po clan

destin

o, mais sérios, grisalh

os e precocem

ente taci-

turn

os. Os m

ilitantes d

a An

istia celebraram ju

nto com

os familiares as

prim

eiras hom

enagen

s aos mortos e exigiram

esclarecimen

tos sobre os

desap

arecidos.

Partind

o desta p

remissa reú

no, n

este texto, fragmen

tos e mem

ória da

luta e d

a camp

anh

a, com a in

tenção d

e articular com

mem

órias comp

le-

men

tares. Ao in

formar sobre as p

rincip

ais atividad

es que o C

BA

/SP

orga-

nizou

a partir d

e 1978, e mu

itos de seu

s protagon

istas, min

ha in

tenção é

a de p

restar hom

enagem

a estes brasileiros e a tantos ou

tros que, an

oni-

mam

ente, su

stentaram

a luta p

ela An

istia Am

pla G

eral e Irrestrita.

1964 e

1978

O golp

e militar em

1º de abril d

e 1964 institu

cionalizou

a deten

ção,

a prisão, o sequ

estro, o banim

ento, a tortu

ra, o assassinato e o d

esapareci-

men

to, deixan

do u

m legad

o sinistro: 426 m

ortos e desap

arecidos p

olíti-

cos; um

a legião incon

tável de ex-p

resos torturad

os e histórias d

e vida

trun

cadas. A

viscosidad

e da m

emória d

a tortura u

ltrapassa o tem

po, fi-

cou ad

erida n

o corpo e n

a alma d

e quem

a viveu. A

mem

ória da vid

a

cland

estina e d

o exílio é um

a lembran

ça encap

sulad

a e pu

lsante. O

golpe

de 64 e a m

emória d

os acontecim

entos qu

e devastaram

nosso p

aís, sobre-

tud

o das m

ortes, desap

arecimen

tos e os efeitos da tortu

ra tornaram

-se e

man

têm-se com

o um

a heran

ça trans-geracion

al.

O m

ovimen

to pela an

istia é fruto d

a ind

ignação e u

m basta à d

itadu

-

ra militar. O

s Com

itês Brasileiros p

ela An

istia, os CB

As su

rgiram com

o

organização in

dep

end

ente, reu

nin

do h

omen

s e mu

lheres d

ispostos a le-

var à frente u

m p

rograma p

olítico mín

imo e d

e ação para além

do esqu

e-

cimen

to. Exigia a libertação im

ediata d

e todos os p

resos políticos; volta

de tod

os os exilados, ban

idos e cassad

os; reintegração p

olítica, social e

profission

al dos fu

ncion

ários pú

blicos e privad

os dem

itidos p

or motivos

políticos e d

os efeitos dos A

tos de E

xceção; fim rad

ical e absoluto d

a tor-

tura; revogação d

a Lei de S

eguran

ça Nacion

al; desm

antelam

ento d

o apa-

rato repressivo; esclarecim

ento d

as mortes e d

os desap

arecimen

tos por

motivação p

olítica; den

ún

cia sistemática d

a tortura e d

os casos de m

uti-

lação; julgam

ento e p

un

ição dos resp

onsáveis.

Ma

io d

e 1

978

O C

BA

/SP

foi instalad

o em 12 d

e maio d

e 1978 três meses ap

ós o

CB

A/R

J. Su

a organização foi resu

ltado d

e vários esforços isolados e

disp

ersos nos an

os anteriores, em

defesa d

os persegu

idos p

olíticos pelo

regime m

ilitar. Desd

e 1973 iniciativas, ora p

essoais, ora de com

issões,

procu

ravam ch

amar a aten

ção da op

inião p

ública p

ara o avanço d

a dita-

du

ra. Nos an

os de 1976 e 1977 n

ovos acontecim

entos con

tribuíram

para

a organização d

e um

a prop

osta política m

ais amp

la de rep

úd

io à ditad

u-

ra. Um

a das p

rimeiras tarefas d

o CB

A/S

P e d

e sua E

xecutiva foi a d

iscus-

são e elaboração da “C

arta de P

rincíp

ios e Program

a Mín

imo d

e Ação”,

termin

ada em

julh

o de 1978, cu

ja redação fin

al coube a Perseu

Abram

o.3 ANDRADE. C. D, Anistia - Com

o vens, como te im

aginava. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 28/6/1979.

Page 7: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.13

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

012.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

Nesta C

arta são reafirmad

os os prin

cípios d

e combate à d

itadu

ra bem

como u

m p

rograma p

ara a camp

anh

a, que exigia a libertação im

ediata d

e

todos os p

resos políticos; a lu

ta pelo esclarecim

ento d

as mortes e d

esapa-

recimen

tos políticos ocorrid

os e a respon

sabilização jud

icial de seu

s au-

tores; a volta imed

iata de tod

os os exilados; a rein

tegração social e políti-

ca de tod

os os beneficiad

os pela lei d

e anistia p

arcial; a revogação da Lei

de S

eguran

ça Nacion

al e de tod

o o aparato rep

ressivo.4

O C

BA

/SP

foi estrutu

rado a p

artir de rep

resentan

tes de en

tidad

es e

não exclu

sivamen

te através de filiações in

divid

uais. R

eun

iu em

seu elen

-

co executivo p

essoas já conh

ecidas p

ublicam

ente e ou

tras na qu

alidad

e

de fam

iliares dos m

ilitantes p

olíticos atingid

os. Na ép

oca em qu

e o CB

A/

SP

foi organizad

o havia u

m en

orme con

tingen

te de com

batentes clan

des-

tinos n

o Brasil: eram

militan

tes, familiares d

e militan

tes persegu

idos, bra-

sileiros determ

inad

os que, d

entro d

o país qu

e lhes era h

ostil, se consti-

tuiu

em u

ma colu

na qu

e não se cu

rvou, su

stentou

a luta d

e forma an

ôni-

ma e clan

destin

a sob a férrea vigilância d

a ditad

ura.

O C

omitê B

rasileiro pela A

nistia d

e São Pau

lo reun

iu m

ulh

eres e reu-

niu

hom

ens, tod

os, cidad

ãos brasileiros que se torn

aram p

rotagonistas d

a

luta p

ela anistia n

o Brasil. H

ouve in

tensa articu

lação com os C

BA

s no

interior d

o Estad

o de S

ão Paulo, qu

e mu

ltiplicavam

e expan

diam

a luta

pela an

istia, através de ativid

ades p

róprias p

úblicas ou

em p

arceria com

o CB

A/S

P n

as cidad

es de S

ão José dos C

amp

os, San

tos, Cam

pin

as,

Piracicaba, Lim

eira, Sorocaba, R

ibeirão Preto, Bau

ru, A

BC

, Assis, O

sasco,

Itapira, Jacareí, M

ogi das C

ruzes e G

uaratin

guetá.

No

ve

mb

ro d

e 1

978

O P

rimeiro C

ongresso p

ela An

istia, realizado d

e 2 a 4 de n

ovembro

de 1978, em

plen

a ditad

ura, foi u

m m

arco na im

plem

entação d

os comi-

tês de an

istia que ch

egaram a ser 60 organ

izações em tod

o o Brasil. O

Con

gresso, realizado em

São Pau

lo, foi anteced

ido d

e reun

iões no In

stitu-

to Sedes Sapientiae com

o aval da M

adre C

ristina, d

estacada ap

oiadora

do m

ovimen

to de resistên

cia à ditad

ura. A

abertura oficial d

o Con

gresso

foi feita no teatro d

a PU

C/S

P, o TU

CA

, du

rante a reitoria d

a professora

Nad

ir Gou

vêa Kfou

ri que u

m an

o antes, em

setembro d

e 1977, defen

dera

com altivez o cam

pu

s da P

UC

du

rante su

a invasão p

ela Polícia Militar

coman

dad

a pelo coron

el Erasm

o Dias. O

encerram

ento foi feito n

o teatro

Ru

th E

scobar.

Ju

nh

o 1

979

Em

15 de ju

nh

o de 1979 ocorreu

no R

io de Jan

eiro, o Primeiro E

ncon

-

tro das E

ntid

ades d

e An

istia, quan

do o C

BA

/RJ e a C

omissão N

acional d

e

Mortos e D

esaparecid

os divu

lgam u

ma p

ublicação d

atilografada e en

ca-

dern

ada sobre os p

resos, os mortos e d

esaparecid

os.5 A

relação dos m

or-

tos e desap

arecidos, n

o Brasil e n

o exterior,com su

as biografias e as con-

dições até ali con

hecid

as de seu

assassinato, con

stitui exten

sa lista com o

nom

e de tod

os os torturad

ores, a descrição d

os instru

men

tos de tortu

ra e

den

ún

cia da m

áquin

a de tortu

ra do E

stado.

Ju

lho

de

1979

Em

julh

o ocorre o III En

contro d

os movim

entos d

e An

istia e o docu

-

men

to final o texto, “R

eafirmação d

o Com

prom

isso Nacion

al” 6, fazia um

lúcid

a análise d

o movim

ento p

opu

lar e do p

rojeto político d

o governo d

e

tentativa d

e sua in

stitucion

alização; a den

ún

cia do p

rojeto de an

istia

hu

milh

ante e d

iscrimin

atória; e a reafirmação d

o comp

romisso n

acional

4 Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo – CBA/SP, Carta de Princípios e program

a Mínim

o de Ação, São Paulo: 1978,im

presso.

5 Comitê Brasileiro pela Anistia RJ e Com

issão Nacional de Mortos e Desaparecidos, Encontro Nacional das Entidades de

Anistia, Rio de Janeiro, 15/6/1979, mim

eo.

6 III Encontro dos Movim

entos de Anistia, Anistia ampla, geral e irrestrita – Reafirm

ação do Comprom

isso Nacional, SãoPaulo, 8/07/1979, m

imeo.

Page 8: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.15

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

014.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

de con

tinu

idad

e da lu

ta com a exigên

cia da libertação im

ediatad

e todos

os presos p

olíticos, a volta de tod

os os exilados, a rein

tegração de tod

os os

dem

itidos, exclu

ídos, reform

ados, cassad

os e aposen

tados, esclarecim

en-

tos das m

ortes e desap

arecimen

tos de op

ositores, a respon

-sabilização

dos qu

e praticaram

torturas e assassin

atos, a revogação da Lei d

e Segu

-

rança N

acional, o d

esman

telamen

to do ain

da im

pu

ne ap

arelho d

e repres-

são política.

Ag

osto

de

1979

A cam

pan

ha m

ais específica organ

izada p

elo CB

A/S

P, que an

tece-

deu

a votação da Lei d

e anistia em

agosto de 1979, foi in

tensa n

as ruas d

e

São Pau

lo. No d

ia 8 de agosto d

aquele an

o o comício n

a Praça d

a Sé foi

um

marco d

ecisivo na cam

pan

ha d

a anistia. A

té então a P

raça de S

é esta-

va proibid

a para m

anifestações e a realização d

o Ato P

úblico cercad

a

pela p

olícia militar, a p

é ou a cavalo, foi u

ma vitória n

a conqu

ista dos

espaços p

úblicos p

roibidos p

ara man

ifestação de qu

alquer n

atureza. N

o

coração da cid

ade d

e São Pau

lo, jun

to ao seu M

arco Zero, os m

ovimen

tos

tomaram

politicam

ente a p

raça que voltou

a ser do p

ovo. A C

onvocatória

para o A

to, escrita pelo C

BA

/SP

em ju

lho e assin

ada p

elo Com

and

o Geral

pela A

nistia A

mp

la Geral e Irrestrita foi d

istribuíd

a du

rante aqu

eles me-

ses à pop

ulação, d

izia:

Hoje se sabe n

o Brasil qu

e o regime m

ilitar que se im

plantou

no

país em 1964 pren

deu, tortu

rou, m

atou, ban

iu e exilou

, cassou e

demitiu

inú

meros brasileiros.(...) Fez calar a livre m

anifestação do

pensam

ento, fech

ou u

niversidades, in

vadiu sin

dicatos e deixou o

povo sem liberdade e com

fome, n

o campo e n

a cidade. Hoje os

brasileiros que qu

erem para esta n

ação a liberdade e a justiça, vêm

publicam

ente exigi-las. (...) Este m

esmo regim

e apresentou

no dia

27 de jun

ho u

m Projeto de A

nistia Parcial qu

e deixa de fora mu

ito

brasileiros atingidos du

rante estes 15 an

os. Su

bmete fu

ncion

ários

civis e militares a n

ovos condicion

amen

tos e hu

milh

ações para a

re-integração em

seus cargos. D

eixa de fora trabalhadores e estu

-

dantes atin

gidos pela CLT

e pelos Atos de Exceção. D

eixa na prisão

e no exílio m

uitos brasileiros. N

em sequ

er um

a palavra sobre os

que m

atou e fez desaparecer du

rantes estes an

os. Este projeto deve-

rá ser votado pelo Con

gresso Nacion

al em agosto. (...) N

ão pode-

mos em

nom

e da justiça e da própria gran

deza da An

istia aceitá-lo

e por isso mesm

o repudiam

os este projeto. Qu

eremos u

ma A

nistia

ampla, geral e irrestrita qu

e devolva à nação todos os brasileiros

dela afastados. (...) Qu

eremos u

ma A

nistia qu

e respeite a mem

ória

dos que foram

mortos, a resposta para os casos de desaparecim

en-

tos e a responsabilização dos qu

e os provocaram. Q

uerem

os a revo-

gação da Lei de Segu

rança N

acional e de todas as leis repressivas.

Con

clamam

os a todos, vindos das fábricas, das escolas e dos escri-

tórios, de suas casas e de seu

s empregos, das lojas e das ru

as, para

que n

a Praça da Sé, se u

nam

em A

to Público n

a exigência de u

ma

An

istia Am

pla Geral e Irrestrita para a n

ação brasileira. Vi-vem

os

um

mom

ento im

portan

te na h

istória de n

osso país. D

evemos

engran

decê-lo com a participação m

ais ampla de todo o povo. A

ss:

Com

and

o Geral p

ela An

istia Am

pla G

eral e Irrestrita, São Pau

lo,

julh

o de 1979.7

As reu

niões p

ela camp

anh

a, tentan

do qu

e a lei prom

ulgad

a fosse a

que exigia o m

ovimen

to: amp

la, geral e irrestrita, prossegu

iram. E

ntre 11

e 12 de agosto ocorreu

um

En

contro N

acional d

os Atin

gidos n

o Rio d

e

Janeiro, além

de reu

niões d

o Com

and

o Geral d

a Cam

pan

ha e u

ma reu

-

nião d

e ex-presos p

olíticos no teatro R

uth

Escobar. Para o d

ia 14 de agosto

foi organizad

a a caravana d

e militan

tes, familiares e rep

resentan

tes de

entid

ades a B

rasília para acom

pan

har o d

esenvolvim

ento d

o debate n

o

Con

gresso Nacion

al e contato com

parlam

entares, e n

o dia 21 foi realiza-

do u

m segu

nd

o Ato n

a Praça d

a Sé.

7 CBA/SP, Convocatória – Ato Público pela Anistia ampla, geral e irrestrita. São Paulo, julho /1979, m

anuscrito e mim

eo.

Page 9: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.17

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

016.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

Destaqu

e especial se d

eve à particip

ação do S

enad

or, do en

tão parti-

do p

olítico, AR

EN

A, Teotôn

io Villela, p

residen

te da C

omissão M

ista da

Câm

ara e do S

enad

o. A p

roposta d

e amp

liação do p

rojeto da d

itadu

ra,

conform

e exigência d

os movim

entos d

e anistia foi en

camp

ada p

elo Se-

nad

or, sobretud

o a partir d

a aproxim

ação cordial com

os movim

entos d

e

anistia e com

os atingid

os.Ap

esar da an

istia alcançad

a ter sido p

arcial e

restrita, a atitud

e do sen

ador teve o recon

hecim

ento d

esses movim

entos.

Ou

tub

ro d

e 1

979

Em

outu

bro de 1979, p

or enten

der qu

e a Lei da A

nistia tin

ha sid

o

um

a agressão ao movim

ento d

e anistia e ao p

ovo brasileiro, o CB

A/S

P

elaborou textos d

e contin

uid

ade à lu

ta pela A

nistia A

mp

la Geral e

Irrestrita, prop

ond

o: luta p

elo esclarecimen

to das m

ortes e desap

areci-

men

tos políticos ocorrid

os e a respon

sabilização jud

icial de seu

s autores;

volta imed

iata de tod

os os exilados; rein

tegração social e política d

e to-

dos os ben

eficiados p

ela lei de an

istia parcial e a revogação d

a Lei de

Segu

rança N

acional e d

e todo o ap

arato repressivo. A

o lado d

estas con-

signas gerais o C

BA

/SP

acrescentou

prop

ostas específicas: con

tra a vio-

lência p

olicial; pelo ap

oio às lutas p

opu

lares, greves e camp

anh

as salari-

ais; pelo ap

rofun

dam

ento d

o apoio ju

rídico e d

e saúd

e; apoio à reorgan

i-

zação partid

ária. A qu

estão da con

vocação de u

ma A

ssembléia N

acional

Con

stituin

te, a organização e a m

anu

tenção d

a frente p

olítica passaram

a

ser discu

tidas em

novo p

atamar, já qu

e se esperava qu

e os partid

os políti-

cos re-organizad

os ou os n

ovos partid

os passassem

a cond

uzir as lu

tas

pelo p

rocesso de d

emocratização n

o país e a assu

nção p

elos órgãos de

classe de su

as reivind

icações específicas.

No

ve

mb

ro d

e 1

979

O II C

ongresso N

acional d

e An

istia ocorreu em

Salvad

or de 15 a 17

de n

ovembr. O

Con

gresso foi convocad

o pelos 17 m

ovimen

tos de an

istia

e a organização esteve sob a resp

onsabilid

ade d

os Com

itês de A

nistia d

e

São Pau

lo, do R

io de Jan

eiro e da B

ahia; d

os Movim

entos Fem

inin

os de

An

istia de S

ão Paulo e d

e Pernam

buco, e p

ela Socied

ade d

e defesa d

e

Direitos H

um

anos d

o Pará. A C

onvocatória d

o Con

gresso amp

lamen

te

distribu

ída: “E

stipu

lada sob u

m regim

e militar qu

e semp

re se caracteri-

zou com

o anti-n

acional, an

ti-pop

ular e an

ti-dem

ocrático, a Lei aprovad

a

resultou

em com

eter mais e m

aiores inju

stiças. Não esvaziou

os cárceres

políticos; n

ão facilitou a rein

tegração profission

al dos servid

ores pu

ni-

dos; n

ão abriu os qu

artéis para receber os m

ilitares cassados. O

regime

militar d

esfigurou

, pois, e até on

de p

ôde, o in

stituo u

niversal d

a An

istia.

E assim

agind

o, desafia a fibra d

o movim

ento e n

os emp

urra a p

rosseguir

a luta. (...)”.

8

No tem

ário também

constava o M

anifesto-C

onvocação p

anfletad

o

nas ru

as de S

ão Paulo qu

e apresen

tava os três eixos de con

tinu

idad

e da

luta: a lu

ta pela A

nistia e as lu

tas dem

ocráticas e pop

ulares; a d

efesa dos

atingid

os pela rep

ressão política e qu

estões político- ad

min

istrativas dos

Movim

entos d

e An

istia.

Das ativid

ades d

ecorrentes d

o II Con

gresso de S

alvador, e qu

e deram

seguim

ento às reivin

dicações d

a luta p

ela anistia, a d

eliberação tomad

a

de receber os exilad

os e banid

os que retorn

avam foi u

ma d

ecisão que

possibilitou

um

mom

ento im

par d

e seguid

as e renovad

as emoções.

1980 e

an

os s

eg

uin

tes

O C

BA

/SP

prom

oveu a p

artir dos an

os 80 os prim

eiros traslados d

e

restos mortais d

e assassinad

os pela d

itadu

ra. O re-assen

tamen

to da id

en-

tidad

e de Lu

iz Eu

rico Tejera Lisboa, alcançad

o prin

cipalm

ente p

ela de-

termin

ação de S

uzan

a Lisboa, foi o marco in

icial da bu

sca dos d

esapare-

cidos e estabeleceu

um

divisor d

e águas n

a luta d

os familiares d

e mortos

e desap

arecidos. Foram

feitos também

os traslados d

os restos mortais d

os

8 Comissão Executiva Nacional dos M

ovimentos pela Anistia, M

anifesto-Convocação, São Paulo, 7/10/1979, impresso.

Page 10: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.19

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

018.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

irmãos Iu

ri Xavier Pereira e A

lex de Pau

la Xavier Pereira; d

e Pedro V

entu

-

ra Pomar, d

e Carlos N

icolau D

anielli e d

e Carlos M

arighela. A

decisão d

o

Con

gresso de S

alvador d

e amp

liar a hom

enagem

aos mortos e d

esapare-

cidos in

cluiu

a prop

osta de d

ar seus n

omes a ru

as, praças, viad

utos, esco-

las e logradou

ros pú

blicos, que foi en

camin

had

o à Câm

ara de V

ereadores.

Em

1981 a Com

issão de Fam

iliares de M

ortos e Desap

arecidos d

o CB

A/S

P

particip

ou ativam

ente d

a organização d

e um

a caravana à região d

a Gu

er-

rilha d

o Aragu

aia, além d

e ped

ir esclarecimen

tos e exigir da U

nião p

rovi-

dên

cias para a localização d

os desap

arecidos n

a região.

Sen

do o m

ovimen

to de an

istia um

movim

ento essen

cialmen

te políti-

co, organizad

o em torn

o de cam

pan

has, o C

BA

/SP

tinh

a claro, já em 1979,

que h

averia um

mom

ento em

que su

a dissolu

ção ocorreria política e n

a-

turalm

ente. A

lgun

s dirigen

tes e militan

tes da an

istia passariam

a se inte-

grar na organ

ização de com

issões de d

ireitos hu

man

os, outros p

articipa-

riam d

o processo d

e reorganização p

artidária e sin

dical e d

e outras lu

tas

pela restau

ração e susten

tação da d

emocracia n

o Brasil. A

comp

reensão

dos d

irigentes d

a luta p

ela anistia era a d

e que m

uitos brasileiros, agora

reintegrad

os à luta p

olítica, reassum

iriam su

a militân

cia, até então p

roi-

bida, clan

destin

a e persegu

ida. V

ários dirigen

tes da an

istia passaram

a

novas p

ráticas políticas e se d

edicaram

à reorganização p

artidária, à con

s-

trução d

e novos p

artidos p

olíticos ou retorn

aram às su

as organizações

políticas on

de p

odiam

atuar legalm

ente. A

lgum

as prop

ostas significan

tes

da A

AG

I foram vitoriosas: a abertu

ra das p

risões, a volta dos ban

idos e

exilados, a rein

tegração profission

al dos cassad

os e o início d

as hom

ena-

gens aos m

ortos e desap

arecidos. A

conqu

ista da revogação d

a Lei de

Segu

rança N

acional, o d

esman

telamen

to do ap

arato repressivo, o escla-

recimen

to da situ

ação dos d

esaparecid

os, a extinção absolu

ta e radical

da tortu

ra, o julgam

ento e p

enalização d

os respon

sáveis pelas m

ortes,

desap

arecimen

tos e tortura n

ão foram objetivos m

inim

amen

te alcança-

dos. E

stas são exigências qu

e a sociedad

e brasileira deve assu

mir em

sua

plen

itud

e e inteireza. S

ão band

eiras mais am

plas qu

e a camp

anh

a pela

anistia, d

izem resp

eito a um

processo con

tinu

ado a ser in

stituíd

o no

legislativo ou en

tão absorvidas p

elo jud

iciário e mesm

o pelos p

oderes

executivos. A

luta p

ela anistia d

eixou u

m legad

o parcialm

ente vitorioso e

um

a prop

osta de lu

ta pela con

solidação d

a dem

ocracia, que d

everia e

deve segu

ir em m

uitas ou

tras mãos. A

camp

anh

a pela A

nistia foi esp

e-

cífica e encerrad

a, e o que alcan

çou n

ão foi o que exigira. A

anistia con

-

cedid

a pela L

ei de A

nistia aos crim

es conexos, lei ap

rovada p

elo voto

das lid

eranças d

entro d

e um

parlam

ento sob os lim

ites da d

itadu

ra, foi

imed

iatamen

te interp

retada com

o um

a anistia d

e du

pla m

ão: anistian

do

as vítimas e ao m

esmo tem

po seu

s carrascos. Essa in

terpretação d

istor-

ceu o en

tend

imen

to a pon

to de colocar a tortu

ra como crim

e conexo ao

crime p

olítico. Un

iu em

um

mesm

o laço o crime p

olítico e um

crime

imp

rescritível, a tortura. O

esclarecimen

to bem com

o o julgam

ento e

pen

alização dos resp

onsáveis é u

ma p

roposta qu

e tem se m

antid

o inso-

lúvel. A

abertura im

ediata d

e todos os arqu

ivos da d

itadu

ra é imp

eriosa;

o direito à verd

ade, à m

emória e à ju

stiça é pré-requ

isito ao processo p

le-

no d

e reconciliação n

acional.

Page 11: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.21

temátic

a.

Ca

ixa

-Pre

ta

Ed

so

n L

uiz A

nd

re d

e S

ousa

Ser forçado a presen

ciar o suplício, com

o espectador, destroça mais

do que o su

plício em si. D

e simples vítim

as, passamos a ser vítim

asda bru

talização das vítimas.

(Flavio Tavares, 2005, p. 73)

Não existe u

m ú

nico pen

samen

to importan

te que a estu

pidez não

saiba imediatam

ente u

tilizar. A estu

pidez de que se trata aqu

i não

é um

a doença m

ental; n

em por isso deixa de ser a m

ais perigosadas doen

ças do espírito, pois ameaça a própria vida.

(Robert M

usil, 1994, p. 31)

Stefan

Zw

eig pu

blicou u

m livro sobre n

osso país, qu

e o acolheu

em

sua fu

ga da barbárie n

azista, intitu

lado “B

rasil: país d

o futu

ro”. Era su

a

forma d

e hom

enagear n

osso país, talvez d

e forma exagerad

a, pois, n

aque-

le mom

ento, o B

rasil já trancava su

as portas aos qu

e fugiam

da E

urop

a.

Page 12: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.23

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

022.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

Livro que, com

o mu

itos sabem, foi fru

to de u

m n

egócio com o govern

o.

Escreveria o livro em

troca de u

m visto p

erman

ente p

ara ele e sua m

u-

lher. C

omo lem

bra Alberto D

inis n

o prefácio d

e um

a das ed

ições brasilei-

ras, ele enxergou

em n

osso país u

m esp

írito de con

ciliação. Con

tud

o, bas-

ta lermos o fin

al da in

trodu

ção de Z

weig em

seu livro e lem

brar o quan

to

acabou sen

do u

m jogu

ete político n

as mãos d

a ditad

ura V

argas. Con

ci-

liação imp

ossível, quan

do n

ão há garan

tia de cu

mp

rimen

to de algu

ns

preceitos éticos qu

e possam

hon

rar a verdad

e e a justiça. A

conciliação

brasileira tem sid

o mu

ito “preju

dicial à n

ossa história já qu

e não p

er-

mitiu

rup

turas em

nosso p

rocesso histórico”, lem

bra Paulo R

ibeiro da

Cu

nh

a (2010, p. 38). Z

weig se en

gana e talvez esta d

ecepção o ten

ha leva-

do ao su

icídio. M

as é lúcid

o o suficien

te para ap

ontar, n

o final d

o seu

prefácio, o qu

e consid

era fun

dam

ental p

ara que h

aja futu

ro. “On

de qu

er

que forças éticas estejam

trabalhan

do é n

osso dever fortalecer esta von

ta-

de. A

o vislum

brar esperan

ças de u

m n

ovo futu

ro em n

ovas regiões em

um

mu

nd

o transtorn

ado, é n

osso dever ap

ontar p

ara este país e p

ara tais

possibilid

ades”

(2006, p. 23). S

ó há fu

turo se p

ud

ermos n

ão virar as cos-

tas para n

ossa história, com

o ind

ica com p

recisão cirúrgica W

alter Ben

ja-

min

em seu

ensaio “S

obre o conceito d

e história”. A

partir d

e um

quad

ro

de Pau

l Klee, A

ngelu

s Novu

s, ele ind

ica este imp

asse entre M

emória e

Esqu

ecimen

to. “O an

jo da h

istória deve ter esse asp

ecto. Seu

rosto está

dirigid

o para o p

assado. O

nd

e nós vem

os um

a cadeia d

e acontecim

entos,

ele vê um

a catástrofe ún

ica, que acu

mu

la incan

savelmen

te ruín

a sobre

ruín

a e as disp

ersa a nossos p

és. Ele gostaria d

e deter-se p

ara acordar os

mortos e ju

ntar os fragm

entos. M

as um

a temp

estade o im

pele irresistivel-

men

te para o fu

turo, ao qu

al ele vira as costas, enqu

anto o am

ontoad

o de

ruín

as cresce até o céu. E

sta temp

estade é o qu

e cham

amos p

rogresso”

(1994, p. 226). Progresso e O

rdem

/Ord

em e P

rogresso, e a insistên

cia em

man

ter os arquivos d

a história fech

ados, lacrad

os. Temos d

ireito às cai-

xas pretas qu

e registram os d

esastres do qu

al fomos vítim

as. Não p

ode-

mos ler a faixa bran

ca de n

ossa band

eira como u

ma in

terdição a verd

ade!

Fun

dam

ental lem

brar que o lem

a positivista qu

e insp

irou este escrito d

i-

zia: amor, ord

em e p

rogresso. Precisam

os recup

erar esta rasura in

sistind

o

semp

re no am

or a verdad

e, a justiça, ao resp

eito. Com

o canta Jard

es Macalé

“roubaram

o amor d

e nossa ban

deira”.

Com

o todos sabem

, os torturad

ores em n

osso país n

ão foram ju

lga-

dos, con

tinu

am im

pu

nes e a tortu

ra não é som

ente u

ma p

rática do p

as-

sado. E

stá viva hoje em

nosso cotid

iano e a p

ergun

ta fun

dam

ental é saber

o que faz com

que isto p

erdu

re. Qu

e espécie d

e espectad

ores somos p

ara

lembrar a frase d

e Tavares que abre n

osso texto? Não su

rpreen

de a d

eci-

são do S

up

remo T

ribun

al Federal d

e não acolh

er o ped

ido d

e revisão da

lei de an

istia no sen

tido d

e pod

er abrir a possibilid

ade d

e julgar os tortu

-

radores e qu

e o Estad

o Brasileiro p

ud

esse enfim

reconh

ecer as atrocida-

des qu

e cometeu

no p

eríodo d

a ditad

ura. A

li se perd

eu a ch

ance d

e um

outro fu

turo. N

ão surp

reend

e, pois, em

2008, quan

do o M

inistro d

a Jus-

tiça Tarso Gen

ro e o secretário nacion

al dos D

ireitos Hu

man

os Paulo

Van

nu

cchi en

traram com

recurso n

o Su

prem

o Tribu

nal Fed

eral para a

revisão da lei d

a An

istia de 1979, o p

residen

te do S

TF d

eclarou en

fatica-

men

te que “a revisão p

ode levar a d

esestabilização política”

1. Fantasm

a

que en

gend

ra um

med

o irracional, op

ortun

ista e que com

o sabemos n

ão

foi o caso de p

aíses como A

rgentin

a, Ch

ile, Uru

guai, Á

frica do S

ul (on

de

mesm

o que n

ão tenh

a havid

o pu

nição aos tortu

radores, estes foram

leva-

dos a con

fessar suas atrocid

ades). O

que sabem

os por vários estu

dos é

que, on

de h

ouve p

un

ição, foi significativa a d

imin

uição d

a tortura n

os

crimes com

un

s. Hoje, n

o Brasil, a tortu

ra infelizm

ente é m

oeda corren

te,

e o que é p

ior, feita de form

a escancarad

a. Com

o é possível con

viver com

a idéia d

e que m

uitos tortu

radores ain

da são vistos com

o heróis, in

clusi-

ve send

o prem

iados p

ela barbárie que com

eteram? E

isto em u

m m

omen

-

to de p

lena vid

a dem

ocrática. Vejam

os dois exem

plos estarreced

ores. Com

o

lembra Jorge Z

averuch

a, na gran

de m

aioria dos p

aíses dem

ocráticos, o

1 Ver dossier sobre o tema na Revista Caros Am

igos, Ano XII, nº 138, setembro 2008.

Page 13: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.25

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

024.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

Sen

ado tem

o direito d

e aprovar ou

vetar a prom

oção de oficiais su

perio-

res. No B

rasil, o artigo 84-XIII estip

ula qu

e o presid

ente d

a Rep

ública é a

ún

ica autorid

ade resp

onsável p

ela prom

oção de gen

erais. Diz Z

averuch

a

que, ao receber a lista d

e prom

oções das au

toridad

es militares, é p

raxe

aprová-la. “A

s Forças Arm

adas torn

am-se u

ma exten

são do Pod

er Execu

-

tivo, em d

etrimen

to do Legislativo”

(2010, p. 63). Foi assim

que Fern

and

o

Collor p

romoveu

o Gen

eral José Luiz d

a Silva, qu

e coman

dou

a invasão

militar d

e Volta R

edon

da, qu

e resultou

na m

orte de três op

erários. Tam-

bém Itam

ar Franco p

romoveu

o coronel-m

édico R

icardo Fayad

ao posto

de gen

eral, cinco d

ias dep

ois de ele ter sid

o cond

enad

o e perd

ido su

a

licença d

e praticar m

edicin

a pelo C

onselh

o Region

al de M

edicin

a do R

io

de Jan

eiro, por in

úm

eras acusações d

e ter particip

ado d

e tortura d

uran

te

o regime m

ilitar. O G

rup

o Tortura N

un

ca Mais p

ediu

em vão qu

e passasse

este torturad

or para reserva (2010, p

. 63).

An

istia não sign

ifica um

arquivo lacrad

o, ela exige respeito aos m

or-

tos, a verdad

e sobre a história. C

omo lem

bra Jeann

e Marie G

agnebin

“anis-

tia não p

ode ser u

m obstácu

lo a busca d

a verdad

e do p

assado”

(2010, p.

181). Con

tud

o, é pon

to pacífico ju

ridicam

ente qu

e não p

ode h

aver anis-

tia a torturad

ores. Os acord

os intern

acionais qu

e o Brasil assin

ou e a

Declaração U

niversal d

e Direitos H

um

anos d

e 1948, reiterada p

ela De-

claração dos D

ireitos Hu

man

os de V

iena d

e 1993, são claras no qu

e diz

respeito à absolu

ta proibição d

a tortura, o d

ireito à verdad

e e o direito a

justiça. Flávia P

iovesan, n

o seu excelen

te texto “Direito In

ternacion

al dos

Direitos H

um

anos e Lei d

a An

istia: O caso brasileiro”, tam

bém lem

bra

que o B

rasil ratificou a con

venção con

tra a tortura d

e 1948, em 1989. D

iz

Piovesan

“A con

venção é en

fática ao determ

inar qu

e nen

hu

ma circu

ns-

tância excep

cional, seja qu

al for (ameaça, estad

o de gu

erra, instabilid

ade

política in

terna ou

qualqu

er outra em

ergência p

ública) p

ode ser in

vocada

como ju

stificativa para a tortu

ra (artigo 2º)”. Portanto, con

tinu

a a autora

“o crime d

e tortura viola a ord

em in

ternacion

al e, por su

a extrema gravi-

dad

e, é insu

scetível de an

istia ou p

rescrição. A tortu

ra é crime d

e lesa-

hu

man

idad

e, consid

erado im

prescritível p

ela ordem

intern

acional”

(2010, p. 100).

Não são p

oucas as estratégias p

olíticas e os mecan

ismos p

síquicos

sintom

áticos, inibitórios, d

enegatórios, qu

e fazem com

que m

uitos ain

da

se sintam

a vontad

e respiran

do o bafo d

o porão qu

e sai pelas frestas d

as

caixas-pretas fech

adas. V

erdad

eiras máqu

inas d

e ignorar o real, p

ara to-

mar em

prestad

o a expressão d

e Clem

ent R

osset em seu

ensaio sobre a

crueld

ade (2002, p

. 57). Temos, p

ortanto, qu

e colocar imagen

s e palavras

adorm

ecidas, recalcad

as nesta en

grenagem

diabólica e su

portar com

o tes-

temu

nh

os os gritos aind

a silenciad

os desta h

istória, como “se o in

ferno

falasse” lembra Flávio Tavares record

and

o as sessões de tortu

ra (2005, p.

14). Abrir arqu

ivos é processo civilizatório, lem

bra o jurista C

élio Borja. É

neste p

onto p

reciso que p

enso a u

topia com

o constru

ção de n

ovos dis-

cursos e im

agens qu

e buscam

ir contra estas realid

ades qu

e já se grud

a-

ram em

dem

asia às nossas p

eles. A u

topia qu

e ind

ica nosso em

falta com

a história. O

discu

rso utóp

ico tem a fu

nção, p

ortanto, d

e esburacar o real,

abrir intervalos n

a contin

uid

ade d

a história e ap

ontar n

ossa incon

-

formid

ade com

o que aí está. Para Fred

ric Jameson

“a vocação da u

topia é

o fracasso, o seu valor ep

istemológico está n

as pared

es que ela n

os per-

mite p

erceber em torn

o de n

ossas men

tes, nos lim

ites invisíveis qu

e nos

perm

ite detectar p

or mera in

du

ção, no atoleiro d

as nossas im

aginações

no m

odo d

e prod

ução”

(1997, p. 85). S

abemos qu

e os resistentes à d

i-

tadu

ra lutaram

por estas cau

sas e foram m

ortos e torturad

os por serem

incap

azes de tolerar o h

orror imp

osto pela escola d

os tiranos qu

e não

reconh

ece nen

hu

m ou

tro discu

rso que n

ão o seu slogan

. Por isto, esta

fúria em

subm

eter os outros a seu

dom

ínio e con

vertê-los em objetos.

Ap

roveito esta poten

te imagem

da caixa-p

reta para lem

brar que é a

Aeron

áutica qu

e controla o esp

aço aéreo comercial, a in

speção sobre se-

guran

ça de aviões civis e realiza in

vestigações sobre aciden

tes aéreos en-

volvend

o aviões civis. É isto qu

e ind

ica Jorge Zaveru

cha n

o mesm

o artigo

que já m

encion

ei anteriorm

ente. D

iz ele: “ela fiscaliza aquilo qu

e ela mes-

Page 14: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.27

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

026.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

ma con

trola”. Ele lem

bra que o in

quérito d

o aciden

te com os M

amon

as

Assassin

as respon

sabilizou ap

enas o p

iloto. Dian

te da rep

ercussão, a p

o-

licia civil abriu ou

tro inqu

érito paralelo, e tam

bém resp

onsabilizou

dois

sargentos qu

e trabalhavam

na torre d

e controle. “A

Aeron

áutica n

ão en-

tregou a caixa-p

reta aos familiares, lim

itand

o-se a transcrever trech

os da

mesm

a. Idên

tico proced

imen

to foi adotad

o com a caixa-p

reta do Fokker-

100 da T

AM

que caiu

em S

ão Paulo em

1996. Desta vez, com

a agravante

de qu

e o Su

perior T

ribun

al de Ju

stiça determ

inou

que a m

esma fosse en

-

tregue aos en

lutad

os” (2010, p. 65).

Caixas-p

retas feitas para falar e qu

e são forçadas a ficar em

silêncio.

Mas a q

uestão é sab

er como fazê-las falar, com

o bu

scar esta voz

amord

açada? O

testemu

nh

o é um

comp

romisso com

a transm

issão, e ter

a coragem d

e falar por aqu

eles que n

ão pod

em m

ais. Neste p

onto é p

reci-

osa a reflexão de M

aria Rita K

ehl em

seu texto “Tortu

ra e Sin

toma S

ocial”,

quan

do lem

bra o quan

to a tortura bu

sca separar corp

o e sujeito. “S

ob

tortura, o corp

o fica assujeitad

o ao gozo do ou

tro que é com

o se a “alma”

– isso que, n

o corpo p

ensa, sim

boliza, ultrap

assa os limites d

a carne p

ela

via das rep

resentações – ficasse a d

eriva. A fala qu

e represen

ta o sujeito

deixa d

e lhe p

ertencer, u

ma vez qu

e o torturad

or pod

e arrancar d

e sua

vitima a p

alavra que ele qu

er ouvir, e n

ão a que o su

jeito teria a dizer”

(2010, p. 131). S

ão estas imagen

s que P

rimo Levi d

escreve com tan

ta pre-

cisão em seu

s textos, corp

os desp

ossuíd

os de alm

a, entregu

es a

anim

alidad

e mais cru

a da sobrevivên

cia, do p

ragmatism

o mais im

edia-

to. Mas ain

da assim

nos p

ergun

tamos: qu

e força os perm

itia resistir? Tal-

vez a aposta qu

e algum

a voz, mesm

o dep

ois das cin

zas, viesse a lembrar

a fúria d

o carrasco e a dor d

o torturad

o. É isto qu

e lembra B

enjam

in n

o

fragmen

to que m

encion

ei acima: algu

ém ain

da acord

ará os mortos e ju

n-

tará seus fragm

entos? M

esmo qu

e seja nosso d

ever, o que vem

os com m

ais

freqüên

cia é um

a grand

e apatia. A

i o signo d

a decad

ência d

e um

a civili-

zação. Cioran

, em seu

“História e U

topia”, m

ostra que u

topia n

ão signifi-

ca esperan

ça ingên

ua, m

as ter a coragem d

e ver e den

un

ciar o med

o e as

iden

tificações incon

fessas ao carrasco, mecan

ismo este qu

e precisam

os

iden

tificar para qu

e efetivamen

te algo possa m

ud

ar. Não h

á revolta po-

tente sem

um

enten

dim

ento m

ínim

o da d

ecadên

cia cultivad

a. Diz ele:

“Nossa d

ecadên

cia é tal que aceitam

os sem en

rubescer excessos, p

rofu-

sões de ad

miração falsas e p

remed

itadas, p

ois preferim

os as cortesias da

men

tira às censu

ras do silên

cio” (1994, p

. 95). Rom

per com

este cenário

imp

lica prod

uzir atos d

e fala que ven

ham

a hon

rar nossos m

ortos e sua

história. C

omo afirm

a Keh

l “se a tortura sep

ara corpo e su

jeito, cabe a nós

assum

ir o lugar d

e sujeito em

nom

e daqu

eles que já n

ão tem d

ireito a um

a

palavra qu

e os represen

te” (2010, p

. 131).

As caixas-p

retas de Jan

ett Card

iff e George M

iller falam. E

stes dois

artistas canad

enses fazem

um

a espécie d

e escultu

ra de som

colocand

o

em cen

a um

a arquitetu

ra do m

edo. M

etáfora poten

te da tiran

ia do p

oder

que se tran

sfigura em

um

pesad

elo que con

tamin

a o espectad

or. Vi recen

-

temen

te este trabalho em

Inh

otim – M

inas G

erais. En

tro na gran

de sala

branca, m

e sento em

um

a das cad

eiras e acomp

anh

o a narração d

e um

pesad

elo vertido p

elos 98 auto-falan

tes. As vozes su

rgem d

e vários luga-

res da sala, assim

como o som

de m

áquin

as, mu

sicas e o vôo de corvos

que fu

ncion

am com

o um

a espécie d

e refrão do trabalh

o. A obra tem

como

título “O

assassinato d

os corvos” e foi insp

irada n

a famosa gravu

ra de

Goya d

e 1799 da série Los C

aprichos “O son

o da razão produz m

onstros”.

Sou

convocad

o ali a testemu

nh

ar. Testemu

nh

o requer saber esp

erar o tem-

po d

o outro, agu

ardar qu

e tud

o seja dito. Pergu

nto-m

e: ond

e estou n

este

pesad

elo que escu

to? Pesadelo d

o outro, m

as também

meu

, já que m

inh

a

emoção p

elo que escu

to mostra qu

e me sin

to também

naqu

ela voz. O

“Assassin

ato dos corvos” in

trodu

z pela p

alavra um

a fissura n

a máqu

ina

de ign

orar o real. Mostra o qu

e é o med

o, mas tam

bém com

o desm

ontar o

med

o. Em

um

mom

ento, é a voz d

e um

torturad

or sádico qu

e escutam

os:

“cortem a p

erna d

ela”. Ela grita p

ara não fazerem

isto. A am

eaça conti-

nu

a e finalm

ente o tortu

rador d

iz “Não lh

e cortamos as p

ernas d

e verda-

de, ap

enas lh

e dam

os um

susto p

avoroso”. Não lh

e cortaram as p

ernas? O

Page 15: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.29

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

028.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

que foi cortad

o? Imp

ossível dorm

ir dep

ois desta cen

a. Ru

ído d

os corvos e

um

a voz irônica em

tom d

e canção d

e nin

ar “close your eyes an

d try to

sleep” (feche os olh

os e tente d

ormir). Lem

bro de u

ma p

assagem d

o livro

de Flavio Tavares “M

emórias d

o Esqu

ecimen

to”. Ele foi u

m d

os 15 presos

políticos “trocad

os” pelo em

baixador d

os Estad

os Un

idos em

1969. No

terceiro dia d

e tortura com

choqu

es elétricos, o sargento qu

e o torturava

gritou: “Fala, fala, sen

ão trago a tua filh

a, dou

choqu

e nela e d

epois fod

o,

fodo ela aqu

i na tu

a frente. E

le ameaçava tocan

do-se os testícu

los e fa-

zend

o, com as m

ãos e o ventre, aqu

ele gesto vulgar e obscen

o de qu

em

estup

ra. A caricatu

ra do gesto foi tão forte e eu

estava tão desfeito qu

e

acreditei qu

e ele cum

priria a am

eaça. O h

orror me in

vadiu

aind

a mais

forte que a d

or do ch

oque elétrico” (2005, p

. 266).” Imagem

pesad

elo que

o acomp

anh

ou p

or mu

itos anos, ao im

aginar su

a filha, d

e quatro an

os, ali

na su

a frente, com

o a ameaça d

a pern

a cortada. Im

possível d

istingu

ir

entre o qu

e é e o que n

ão é. Situ

ações que acion

am em

qualqu

er um

a

mais p

rofun

da con

fusão m

ental e in

toxica a alma d

e horror. O

próp

rio

Flavio Tavares esclarece qu

e cenas com

o esta o faziam p

ensar n

os

inqu

isidores “n

o seu d

elírio eufórico d

e vitorioso [...] tem d

ireito a tud

o

inven

tar e em tu

do sen

tir-se, irrebatível e inqu

estionável, tran

sforman

do

até a verdad

e que n

ão é na verd

ade qu

e é” (2005, p

. 249).

As caixas-p

retas contin

uam

narran

do o p

esadelo. Im

possível d

ormir.

Abu

sador qu

e não p

oup

a nin

guém

. Estarreced

or pen

sar que a d

itadu

ra

brasileira prod

uziu

mon

stros como o brigad

eiro João Paulo Pen

ido B

urn

ier,

chefe d

o gabinete d

o min

istro da A

eronáu

tica, com seu

plan

o de in

cend

i-

ar em 1968 o R

io de Jan

eiro, explod

ir o gasômetro N

ovo-Rio, p

ostos de

gasolina, E

mb

aixad

a dos E

stados U

nid

os, para, em

suas p

alavras

“incrim

inar os com

un

istas”. O cap

itão que recebeu

estas orden

s, Sérgio

Miran

da d

e Carvalh

o, coman

dan

te da trop

a de elite d

a FAB

, foi excluíd

o

das Forças A

rmad

as em 1969, e o brigad

eiro Ed

uard

o Gom

es, que

encam

pou

esta den

un

cia contra B

urn

ier, morreu

em u

m “acid

ente d

e

autom

óvel” meses d

epois e qu

e, segun

do seu

s próxim

os, foi um

claro

atentad

o por p

arte da extrem

a-direita m

ilitar.

História qu

e contin

ua qu

eiman

do d

entro d

e tantas caixas p

retas la-

cradas. A

té quan

do? N

em os corvos aban

don

am seu

s mortos. C

ardiff

intitu

lou seu

trabalho “O

Assassin

ato dos corvos” n

um

a clara evocação

do ritu

al fún

ebre destes p

ássaros. Sem

pre qu

e um

deles m

orre, os dem

ais

ficam em

revoada p

or 24 horas, em

um

a espécie d

e ato solene ao corp

o. Já

se passaram

24 horas, 24 sem

anas, 24 an

os, mas p

recisamos con

tinu

ar

em revoad

a e exigir o que está escrito n

os tratados in

ternacion

ais de d

i-

reitos hu

man

os assinad

os por n

osso pais: p

un

ição aos torturad

ores, direi-

to à verdad

e e a justiça. C

orvos como testem

un

has. C

omo lem

bra Paulo

En

do “A

aniqu

ilação do testem

un

ho n

ão é a ausên

cia do qu

e dizer, m

as

não ter qu

em escu

te o que se p

ode d

izer” (2009, p

. 55). Neste p

onto, u

m

dever d

e mem

ória a preservar. Q

uem

sabe, um

dia p

oderem

os então fe-

char os olh

os, dorm

ir e sonh

ar novam

ente.

Re

ferê

nc

ias b

iblio

grá

fica

s

BENJAMIN, W

alter. Sobre o conceito de história in: Obras Escolhidas, Vol. 1, São Paulo: Brasiliense, 1994.

CIORAN, Emil. História e Utopia. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

ENDO, Paulo. A dor dos recomeços: luta pelo reconhecim

ento e pelo devir histórico no Brasil. In: Revista Anistia – política ejustiça de transição, Com

issão de Anistia do Ministério da Justiça, Brasilia, nº 2, julho/dezem

bro 2009.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. O preço de um

a reconciliação extorquida. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson. O que resta da

ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.

JAMESON, FREDRIC. As sem

entes do tempo. São Paulo: Atica, 1997.

KEHL, Maria Rita. “Tortura e sintom

a social”. In: SAFATLE, Vladimir e TELES, Edson. O que resta da ditadura. São Paulo:

Boitempo, 2010.

MUSIL, Robert. Da Estupidez. Lisboa: Relógio D’Agua, 1994.

PIOVESAN, Flávia. Direito Internacional dos Direitos Humanos e a lei da anistia: o caso brasileiro. In: SAFATLE, Vladim

ir eTELES, Edson. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitem

po, 2010.

RIBEIRO DA CUNHA, Paulo. Militares e Anistia no Brasil: um

dueto desarmônico. In: SAFATLE, Vladim

ir e TELES, Edson. O queresta da ditadura. São Paulo: Boitem

po, 2010, p. 38.

ROSSET, Clément. O princípio de crueldade, Rocco, Rio de Janeiro, 2002.

TAVARES, Flavio. Mem

órias do Esquecimento – os segredos dos porões da ditadura. São Paulo: Editora Record, 2005.

ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civil-Militares: o legado autoritário da constituição brasileira de 1988. In: SAFATLE, Vladim

ir eTELES, Edson. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitem

po, 2010.

ZWEIG, Stefan. Brasil, um

país do futuro. Porto Alegre: LPM, 2006 (1º edição 1941).

Page 16: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.31

temátic

a.

Dire

itos H

um

an

os, te

rroris

mo

de

Esta

do

,re

pa

raç

õe

s...

Cecília

Maria

Bo

uças C

oim

bra

1

Escrever a história dos ven

cidos exige a aquisição de con

hecim

en-

tos que n

ão constam

nos livros da h

istória oficial (...). O h

istoriador(...) preten

de fazer emergir as esperan

ças não realizadas n

o passa-d

o e inscrever em

nosso p

resente seu

apelo p

or um

futu

ro diferen

-te. (...) O

esforço (...) é não deixar essa m

emória escapar, m

as zelarpela su

a conservação, con

tribuir n

a reapropriação desse fragmen

tode h

istória esquecido pela h

istoriografia domin

ante.

Jeann

e Marie G

agnebin

Para iniciar esta qu

estão que, em

realidad

e, refere-se a algum

as ações

do G

rup

o Tortura N

un

ca Mais/R

J seria imp

ortante ap

ontar qu

e, segun

do

1 Psicóloga, Professora Adjunta na Universidade Federal Fluminense, Doutora em

Psicologia pela USP, Pós-Doutora em Ciên-

cia Política pelo NEV/USP, Ex-Coordenadora da Comissão Nacional de Direitos Hum

anos do Conselho Federal de Psicologia,Fundadora e atual Presidente do Grupo Tortura Nunca M

ais/RJ, Ex-Conselheira do Conselho Regional de Psicologia/RJ.

Page 17: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.33

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

032.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

conceitu

ações corriqueiras, rep

aração significaria reparar o dan

o causa-

do a alguém

. Parece à prim

eira vista, um

a defin

ição simp

les e clara. En

-

tretanto, n

o território das violações d

os direitos h

um

anos o tem

a da rep

a-

ração, especialm

ente qu

and

o articulad

o ao crime d

e tortura e a ou

tras

práticas d

egradan

tes e cruéis, é u

ma qu

estão extremam

ente com

plexa.

Pela Resolu

ção 60/147 da O

rganização d

as Nações U

nid

as (ON

U) –

aprovad

a em su

a Assem

bléia Geral d

e 2005, em seu

Cap

ítulo X

Repara-

ção por Dan

o Sofrido, artigos 18 a 23 – a reparação tem

sido con

ceituad

a

como:

... as vítimas de graves violações das leis in

ternacion

ais hu

man

itá-

rias devem, de acordo e em

proporção à gravidade da violação e dascircu

nstân

cias de cada caso, receber ‘total e efetiva reparação’...,

que in

cluem

as seguin

tes modalidades: ‘restitu

ição, compen

sação,reabilitação, satisfação e garan

tias de não repetição.

Além

dessas im

portan

tes questões ético-p

olíticas, há ou

tras que as

atravessam e qu

e dizem

respeito à lógica qu

e hoje m

antém

a política m

ili-

tarizada d

e seguran

ça pú

blica em n

osso país. N

ão por acaso, o m

esmo

Cap

ítulo X

desta R

esolução d

a ON

U d

efend

e o efetivo controle civil d

as

forças militares e d

e seguran

ça nos p

aíses atingid

os por tais violações.

Ou

seja, falar de rep

aração é, prin

cipalm

ente, ap

ontar p

ara o comba-

te que se trava h

oje em torn

o de d

etermin

adas m

emórias, em

especial n

os

países qu

e passaram

por recen

tes ditad

uras. É

também

, colocar em an

áli-

se um

a certa política d

e seguran

ça pú

blica que se fortalece n

a contem

po-

raneid

ade e se ju

stifica em n

ome d

a ‘guerra con

tra os perigosos’.

Ap

esar de su

a imp

ortância p

ara o mom

ento h

istórico que, em

espe-

cial, o Brasil atravessa, em

algun

s casos citados p

or esta Resolu

ção da

ON

U p

odem

os apon

tar certas questões qu

e pod

em se torn

ar perigosas e,

mesm

o, captu

rantes. Q

uan

do em

seu artigo 20, ao tratar sobre ‘C

omp

en-

sação’, fala de ‘d

ano econ

omicam

ente m

ensu

rável’ e, logo adian

te, lista

no item

‘a) dan

os físicos e psicológicos’ e n

o ‘d) d

ano m

oral’, há qu

e se

pergu

ntar: com

o med

i-los econom

icamen

te, segun

do as leis d

e um

mer-

cado cap

italista? Em

especial, as ch

amad

as violações ‘psicológicas’: d

e que

forma essas m

arcas prod

uzid

as a ‘ferro e fogo’ e invisibilizad

as na m

aio-

ria dos casos, poderão ser levantadas e avaliadas? É possível mensurar o

imensurável? C

lassificar o inclassificável? Talvez visibilizá-los um pouco...

Assim

, segun

do esta R

esolução, a rep

aração pod

e ocorrer de m

uitas

formas d

istintas, sen

do, n

ão por acaso, a m

ais utilizad

a no m

un

do cap

i-

talista, a tradicion

al comp

ensação econ

ômica.

Dian

te do h

orror e mesm

o da com

plexid

ade qu

e é a prática d

a tortu-

ra, assim com

o a de ou

tras violações, enten

dem

os que a rep

aração, en-

quan

to comp

ensação econ

ômica é u

m d

ireito, mas só tem

sentid

o para a

afirmação d

e algo novo em

nossas vid

as se for parte in

tegrante d

e um

processo. P

rocesso que, em

nosso p

aís, aind

a está send

o iniciad

o. A rep

a-

ração, portan

to, deve in

cluir, n

ecessária e fun

dam

entalm

ente, a in

vesti-

gação e o esclarecimen

to dos fatos violad

ores, a pu

blicização e respon

sa-

bilização dos agen

tes envolvid

os nesses fatos, a garan

tia de aten

dim

ento

méd

ico-psicológico e d

e reabilitação física e social aos atingid

os, decla-

rações oficiais e decisões ju

diciais qu

e restaurem

os direitos d

esses mes-

mos atin

gidos. S

em isto, as com

pen

sações econôm

icas se transform

am –

e é o que tem

acontecid

o em m

uitos p

aíses que sistem

aticamen

te violam

os direitos h

um

anos – em

um

“cala boca”, em esp

ecial, para o atin

gido e

para a socied

ade com

o um

todo. O

u seja, os govern

os, em algu

ns casos,

pagam

pecu

niariam

ente p

elos crimes com

etidos p

or seus agen

tes e, por

isso, não se sen

tem obrigad

os a investigar e esclarecer tais violações, a

pu

blicizar e a respon

sabilizar seus agen

tes e a assum

ir pu

blicamen

te

sanções con

tra eles.

Sabem

os que, em

um

Estad

o capitalista, tu

do é tran

sformad

o em

mercad

oria, tend

o um

preço n

o mercad

o. O corp

o, o temp

o, o saber e a

vida d

os hom

ens, são sequ

estrados, d

isciplin

ados e n

ormatizad

os em/e

por d

iferentes in

stâncias e d

ispositivos, p

ara serem tam

bém tran

sforma-

dos em

mercad

orias e vend

idos n

o mercad

o (Foucau

lt, 1996).

Page 18: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.35

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

034.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

Dessa form

a, um

Estad

o capitalista, ao com

pen

sar econom

icamen

te

alguém

por crim

es cometid

os por seu

s agentes sem

vida está recon

he-

cend

o sua resp

onsabilid

ade em

relação aos delitos com

etidos. E

ntretan

-

to, enten

dem

os que n

o Brasil tal recon

hecim

ento n

ão tem sid

o suficien

te.

Hoje, ten

ta-se através de gran

des m

is-en-scèn

es mid

iáticas, transform

ar

em m

ercadoria a d

or e o sofrimen

to daqu

eles que p

assaram p

elos horro-

res da tortu

ra, do sequ

estro, da p

risão ilegal, da m

orte de am

igos e famili-

ares, da ocu

ltação de seu

s restos mortais. Para tod

os esses que viveram

tais horrores, a rep

aração pu

ramen

te econôm

ica pod

e se transform

ar em

um

engôd

o, em u

ma p

erigosa armad

ilha, em

um

a forma d

e prod

uzir o

esquecim

ento, d

ecretand

o-se o silêncio sobre tais fatos, p

roclaman

do-se

que ‘o possível já foi feito’. D

a mesm

a forma, p

ara um

a sociedad

e em qu

e

cotidian

amen

te se utilizam

todas essas p

ráticas – que acabam

send

o aceitas

e até aplau

did

as por vastos segm

entos d

a pop

ulação – con

tra os consid

e-

rados p

erigosos, um

a comp

ensação econ

ômica p

ode n

aturalizar e ban

ali-

zar tal violência; torn

and

o-se mais u

m ‘ca

nto d

e sereia’ d

o capital

neoliberal.

O qu

e estamos afirm

and

o, em realid

ade, é qu

e, para a p

essoa atingi-

da e p

ara a sociedad

e, a reparação econ

ômica p

ode ser tran

sformad

a em

um

eficiente ‘cala boca’, fazen

do com

que acred

item qu

e ‘o possível já foi

feito’, o que p

ode trazer efeitos ain

da m

ais perversos e n

efastos. Não ocu

-

par este lu

gar – mas tam

bém n

ão fortalecer o da vítim

a que tem

direito à

vingan

ça e se alimen

ta do ód

io reativo – tem sid

o o grand

e desafio p

ara

mu

itos que foram

atingid

os pelo terrorism

o de E

stado n

o Brasil. A

o se

afirmar qu

e o “o possível já foi feito” se ten

ta esquecer o qu

e foi esse

terrorismo e m

uitos d

e seus efeitos h

oje.

O P

ND

H-3 – 3º P

lano N

acional d

e Direitos H

um

anos – p

or exemp

lo,

apresen

tado à n

ação em d

ezembro/2009, foi alterad

o por n

ovo decreto

presid

encial d

e maio d

e 2010. O D

ecreto 7.037, de 21 d

e dezem

bro de

2009, que n

ão atend

ia a mu

itos anseios ap

resentad

os pelo m

ovimen

to

social por “ju

stiça e respeito aos d

ireitos hu

man

os”, ficou ain

da p

ior. As

diretrizes e ações d

o Program

a que foram

criticadas p

elos ruralistas, m

ili-

tares, pela Igreja C

atólica, ou p

elos chefes d

a míd

ia foram m

odificad

as ou

revogadas.

O atu

al governo fed

eral, dian

te das p

ressões de setores m

ilitares, con-

servadores e retrógrad

os, recuou

. Ven

ceram as id

éias daqu

eles que en

ten-

dem

que o B

rasil deve con

tinu

ar a ser um

país d

e privilégios, d

esigual,

racista, hom

ofóbico e sexista; ond

e mu

lheres qu

e praticam

o aborto são

crimin

alizadas e m

orrem p

or falta de aten

dim

ento; on

de cam

pon

eses são

mortos n

a luta p

elo direito à terra; on

de a orien

tação sexual é d

efinid

ora

se um

a pessoa terá d

ireito a constru

ir um

a família ou

não; on

de a d

iver-

sidad

e religiosa do p

aís é oprim

ida; on

de o m

onop

ólio dos m

eios de

comu

nicação d

ita as regras e viola direitos h

um

anos em

horário n

obre

como se tu

do n

ão passasse d

e um

a peça d

e ficção.

A isto tu

do, acrescen

tamos a qu

estão da C

omissão N

acional d

a Ver-

dad

e que, com

um

a série de reform

ulações torn

ou-se, em

realidad

e, um

a

grand

e mis-en

-scène m

idiática. E

sta últim

a versão do P

ND

H-3, ap

rovada

em 12 d

e maio d

e 2010, pelo D

ecreto 7.177, apresen

ta um

a série de m

odi-

ficações. Den

tre as mais im

portan

tes pod

emos citar: seu

caráter

antid

emocrático e d

e negação à p

articipação social. D

esde o p

rojeto inici-

al de 2009, p

ropu

nh

a-se a criação de u

m gru

po d

e trabalho p

ara elaborar

o projeto d

e lei que in

stituiria a C

omissão N

acional d

a Verd

ade. D

entre os

seis mem

bros que form

ariam este gru

po d

e trabalho, cin

co são autorid

a-

des govern

amen

tais e somen

te um

“represen

tante d

a sociedad

e civil”,

escolhid

o por u

ma d

essas autorid

ades.

O n

ovo texto, sutil e p

erversamen

te, retira o termo “repressão políti-

ca” substitu

ind

o-o por “práticas de violações de direitos hu

man

os”. Da

mesm

a forma, a id

entificação d

os mortos e d

esaparecid

os ocorrerá so-

men

te “com base n

o acesso às inform

ações” que até h

oje contin

uam

sen-

do n

egadas.

Su

bstituiu

-se também

, o termo “regim

e de 1964-1985 e resistência

popular à repressão” p

or “graves violações de direitos hum

anos n

o perío-

Page 19: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.37

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

036.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

do de 18 de setembro de 1946 até a data da prom

ulgação da C

onstitu

ição

(1988)”.

A d

etermin

ação de alterar n

omes d

e ruas, lograd

ouros e p

rédios p

ú-

blicos etc., que in

diqu

em n

omes d

e pessoas com

prom

etidas com

a dita-

du

ra foi anu

lada. Lon

ga luta d

e algum

as entid

ades d

e direitos h

um

anos,

como o G

TN

M/R

J, para d

ar nom

es a ruas, escolas, crech

es etc., aos com-

pan

heiros m

ortos e desap

arecidos p

olíticos e retirar os nom

es de m

em-

bros d

o aparato d

e repressão, q

ue con

tinu

am ex

istind

o em v

ários

logradou

ros pú

blicos de n

osso país.

Não ign

oramos qu

e a mem

ória é um

camp

o de lu

tas e que estas m

o-

dificações n

o PN

DH

-3, em esp

ecial com relação à C

omissão N

acional d

a

Verd

ade, está fortalecen

do u

ma certa h

istória oficial, pois em

mom

ento

algum

se refere à ditad

ura civil-m

ilitar e a seu p

eríodo h

istórico (1964-

1985). Ela sim

plesm

ente d

esaparece.

Fortalece-se com isso a história ú

nica e verdadeira

e as diferen

tes e

ltiplas m

emórias d

aquele p

eríodo d

e terror contin

uam

em p

arte des-

conh

ecidas e, m

esmo, d

emon

izadas.

É com

o afirma o filósofo d

a Un

iversidad

e de S

ão Paulo, Pau

lo Aran

tes:

“Acresce qu

e, além d

e abrand

ada, a d

itadu

ra começa tam

bém a en

colher”

(2010, p. 209).

No B

rasil, a tortura e u

ma série d

e outras violações con

tinu

am sen

do

aplicad

as sem a m

enor cerim

ônia em

dep

end

ências p

oliciais e carcerárias

e em m

uitos ou

tros estabelecimen

tos como os u

tilizados p

ara o que ch

a-

mam

de ‘reedu

cação’ de ‘joven

s infratores’. Prin

cipalm

ente, ap

ós o 11 de

setembro, o govern

o Bu

sh vem

globalizand

o não só a ban

alização da tor-

tura, m

as fun

dam

entalm

ente su

a legalização: em algu

ns casos essa p

ráti-

ca é defen

did

a como n

ecessária, como ‘u

m m

al men

or’. Em

especial, em

países qu

e passaram

por recen

tes regimes d

e força, aind

a se sofre ‘os efei-

tos das marcas deixadas pelos lon

gos anos vividos sob a égide da Lei de

Seguran

ça Nacion

al’ (Kolker, 2001, p

. 2). Neste asp

ecto pod

emos ressal-

tar um

passo d

ado n

o estado d

o Rio d

e Janeiro qu

e, por in

iciativa do

dep

utad

o estadu

al Marcelo Freixo, ap

resentou

a Lei 5.778 de 30 d

e jun

ho

de 2010. E

sta Lei cria o Com

itê Estad

ual p

ara Preven

ção e Com

bate à

Tortura e o M

ecanism

o Estad

ual d

e Prevenção e C

ombate à Tortu

ra, ór-

gãos vincu

lados ad

min

istrativamen

te à Assem

bléia Legislativa do estad

o

do R

io de Jan

eiro, e tem a fin

alidad

e de errad

icar e preven

ir a tortura e

outros tratam

entos ou

pen

as cruéis, d

esum

anas ou

degrad

antes.

En

tretanto, d

evemos lem

brar que a p

olítica de segu

rança p

ública u

ti-

lizada p

elo atual govern

ador – qu

e sancion

ou esta Lei – tem

se pau

tado

pelo ch

amad

o “choqu

e de ord

em”. Tal p

olítica, baseada n

a Tolerância

Zero (W

acquan

t, 1992), imp

ortada d

os Estad

os Un

idos, in

stitui com

o

natu

ral, e por vezes n

ecessária, a prática d

a tortura e d

o extermín

io, em

especial n

as camad

as mais em

pobrecid

as da p

opu

lação. Com

o preven

ir

estas práticas em

um

a sociedad

e que p

ede p

or elas?

En

tretanto, p

or mais p

erigoso, delicad

o e doloroso qu

e seja o ato de

pu

blicizar as violações sofridas, ele é o in

ício fun

dam

ental d

e um

a cami-

nh

ada p

ara que p

ossamos com

estas marcas, m

uitas vezes in

visíveis, vi-

ver de ou

tra forma os terríveis efeitos p

rodu

zidos em

nós p

or essas práti-

cas. O falar, o torn

ar pú

blico, retiram-n

os do território d

o segredo, d

a

cland

estinid

ade, d

o privad

o. Com

isso, saímos d

o lugar d

e vítima

fragilizada, d

espon

tencializad

a e ocup

amos o d

a resistência, d

a luta, d

a-

quele qu

e passa a p

erceber que seu

caso não é u

m acon

tecimen

to isolado;

ele se contextu

aliza, faz parte d

e outros e su

a pu

blicização e esclareci-

men

to abrem cam

inh

o e fortalecem n

ovas falas, novas p

ublicizações,

novas m

emórias, n

ovas afirmações d

e vida. A

dim

ensão coletiva com

um

desse cam

inh

o se afirma e, com

isso, temos a p

ossibilidad

e de com

eçar a

mostrar qu

e tal quad

ro – ond

e as pu

blicizações quase n

un

ca acontecem

pod

e ser mu

dad

o, pod

e ser revertido e qu

e outras m

emórias, ou

tras vidas

pod

em ser afirm

adas. S

air simp

lesmen

te da p

un

ição, da reação, m

as afir-

mar com

sua d

or outros m

odos d

e poten

cializar sua vid

a.

O slogan

‘transform

e sua d

or em u

m in

strum

ento d

e luta p

olítico-

social’, utilizad

o por m

uitos atin

gidos p

ela violência d

o Estad

o, tem ap

on-

Page 20: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.39

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

038.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

tado p

ara a não aceitação d

o lugar d

e vítimas qu

e lhes têm

sido reserva-

do, m

as pela afirm

ação da força qu

e esses sofrimen

tos lhes trazem

.

Publicizar, retirar d

o espaço p

rivado, coletivizar a lu

ta para qu

e os dan

os

sofridos sejam

lembrad

os e afirmad

os, pu

blicizados e rep

arados tem

sido,

portan

to, um

imp

ortante cam

inh

o para os atin

gidos d

ireta e/ou in

direta-

men

te pela violên

cia do E

stado on

tem e h

oje.

Con

cluin

do...

“É p

reciso saber, lembrar, p

ara esquecer”.

(Fala de filho de desaparecido político)

Ap

esar dessas m

arcas de d

or e sofrimen

to, no cotid

iano d

o Gru

po

Tortu

ra Nu

nca M

ais/RJ, p

or exemp

lo, temos estad

o atentos p

ara

poten

cializar e afirmar os bon

s encon

tros. Difícil tarefa, p

ois seus m

em-

bros constitu

em-se, p

rincip

almen

te, de fam

iliares de m

ortos e desap

are-

cidos p

olíticos e de m

ilitantes qu

e sofreram os h

orrores da tortu

ra, do

exílio e da clan

destin

idad

e e, aind

a, de m

uitos qu

e hoje são atin

gidos

pelas m

ais diversas violên

cias institu

cionalizad

as. Com

o transform

ar

os efeitos dessas exp

eriências p

ontu

adas p

ela dor, sofrim

ento, n

egação

e perd

as em in

strum

entos d

e luta, p

otencializan

do e in

ventan

do ou

tras

vidas?O

silenciam

ento a resp

eito de su

as histórias, o en

cobrimen

to oficial

de su

as experiên

cias, tud

o remete à fragilização, à tristeza, ao d

esânim

o e

à imp

otência.N

o entan

to, semp

re enten

dem

os que a força d

e suas lu

tas e

interven

ções no cotid

iano evid

enciam

o guerreiro, o tran

sformad

or, o

nôm

ade qu

e há em

cada u

m.

A m

ilitância, a p

articipação ativa n

os enfren

tamen

tos e na reafirm

ação

da solid

ariedad

e através das in

iciativas do gru

po, sem

pre coletivas, tem

trazido p

ara mu

itos, outras relações com

o mu

nd

o, ond

e a alegria se ex-

pressa, on

de o ven

eno se esvai, qu

and

o a vida se faz m

ais vibrante. É

como afirm

ava Mich

el Foucau

lt, em seu

prefácio ao livro d

e G. D

eleuze e

F. Gu

attari, O A

nti-É

dipo, que p

ara ser militan

te não é n

ecessário que se-

jamos sisu

dos e tristes.

Há qu

e fortalecer a luta coletiva, em

especial aqu

ela que se vin

cula a

outros p

aíses latino-am

ericanos qu

e passaram

por recen

tes ditad

uras.

Sabem

os que, n

o contexto d

e nossa A

mérica Latin

a, o Brasil é o p

aís mais

atrasado em

relação a um

efetivo processo rep

aratório pelas violações

cometid

as em n

ome d

a “seguran

ça nacion

al”. Nosso p

aís que, com

o vi-

mos, n

os anos d

e 1960 e 1970, exportou

know

-how d

e tortura p

ara as

recentes d

itadu

ras latino-am

ericanas, h

oje é o mais atrasad

o no qu

e diz

respeito às rep

arações enqu

anto u

m p

rocesso que in

vestigue, p

ublicize e

respon

sabilize essas violações e afirme ou

tras mem

órias.

En

tend

emos ser im

portan

te o debate, o in

tercâmbio en

tre os diferen

-

tes movim

entos latin

o-american

os de d

ireitos hu

man

os no sen

tido d

e

pod

ermos u

tilizar, como ferram

enta, o sistem

a de legislação in

terameri-

cano qu

e pod

e nos aju

dar a afirm

ar outras rep

arações para as violações

de on

tem e as qu

e aind

a hoje ocorrem

. Imp

ortante assin

alar que, em

maio

de 2010 – sem

anas ap

ós o Su

perior T

ribun

al Federal ter reafirm

ado a

anistia p

ara os torturad

ores – pela p

rimeira vez foi levad

o a julgam

ento

um

caso ocorrido n

o Brasil d

uran

te o períod

o da d

itadu

ra. A C

orte

Interam

ericana d

e Direitos H

um

anos d

a OE

A, em

San

José da C

osta Rica,

ouviu

testemu

nh

as de fam

iliares de d

esaparecid

os na G

uerrilh

a do

Aragu

aia. O G

TN

M/R

J foi um

dos p

eticionários d

esta ação contra o E

sta-

do brasileiro ju

nto à O

EA

, solicitand

o o esclarecimen

to das circu

nstân

ci-

as sobre o desap

arecimen

to de 60 gu

errilheiros e m

ais de 20 cam

pon

eses

da região, bem

como a localização d

e seus restos m

ortais. A G

uerrilh

a do

Aragu

aia foi um

movim

ento d

e resistência ao regim

e militar, ocorrid

o de

1966 a 1974, na região d

o Bico d

o Papagaio, en

tre os estados d

o Pará,

Maran

hão e G

oiás. Organ

izado p

elo Partido C

omu

nista d

o Brasil (P

Cd

oB)

este movim

ento foi bru

talmen

te massacrad

o por trop

as do E

xército brasi-

leiro. Esp

era-se para fin

al deste an

o a senten

ça da C

orte Interam

ericana

de D

ireitos Hu

man

os da O

EA

sobre tal questão.

Page 21: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

040.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.41

temátic

a.

Me

ria e

resis

tên

cia

: a lu

ta p

erm

an

en

te

Davi M

am

blo

na M

arq

ues R

om

ão1

Vanessa L

op

es d

os S

anto

s P

assare

lli 2

Paulo

End

o3

Este texto p

rocura ap

resentar e d

iscutir a p

roposição e o ju

lgamen

to

da A

rguição d

e Descu

mp

rimen

to de P

receito Fun

dam

ental 153 (A

DP

F

153), trazend

o brevemen

te as nu

ances e ten

sões envolvid

as nesse p

roces-

so. Além

disso, e n

um

segun

do m

omen

to, privilegiarem

os o exercício de

remem

orar os acontecim

entos em

torno d

a aprovação d

a Lei da A

nistia

1 Mestrando do program

a de pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvim

ento Humano do Instituto de Psicologia

da USP, mem

bro da comissão organizadora da Sem

ana contra a anistia aos torturadores realizada em outubro de 2010, na

Universidade de São Paulo

2 Mestranda do program

a de pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvim

ento Humano doum

ano do Instituto dePsicologia da USP, m

embro da com

issão organizadora da Semana contra a anistia aos torturadores realizada em

outubro de2010, na Universidade de São Paulo.

3 Psicanalista, Professor Doutor do Instituto de psicologia da USP.

En

tend

emos qu

e, apesar d

e termos p

articipad

o diretam

ente com

o

testemu

nh

as dessa h

istória recente d

o Brasil, n

ão é esta marca qu

e nos

qualifica a lu

tar pelos esclarecim

entos e p

ublicizações, ap

ontan

do as tor-

turas e violações qu

e mu

itos, aind

a hoje, con

tinu

am sofren

do. E

nten

de-

mos qu

e esta luta n

ão é somen

te daqu

eles que, com

o nós, p

or suas u

topi-

as, foram exterm

inad

os e/ou m

arcados com

o a peste. E

sta é um

a luta d

e

todos, d

e todas as socied

ades. N

ão é um

a luta p

articular ou

específica; é

um

a luta geral, coletiva, p

or novas p

rodu

ções de m

un

dos e d

e vida: p

or

um

a sociedad

e sem tortu

ras.

Por isto, concord

amos com

Negri (2001) qu

e, insp

irado em

Esp

inoza,

afirma qu

e:

Ao lado do poder, h

á sempre a potên

cia. Ao lado da dom

inação, h

ásem

pre a insu

bordinação. E trata-se de cavar, de con

tinu

ar a cavar,

a partir do ponto m

ais baixo: este ponto (...) é sim

plesmen

te lá onde

estão as pessoas mais pobres e as m

ais exploradas; ali onde as lingua-

gens e os sen

tidos estão mais separados de qu

alquer p

oder d

e ação

e onde, n

o entan

to, ele existe; pois tudo isso é vida e n

ão morte.

Re

ferê

nc

ias b

iblio

grá

fica

s

ARANTES, P. E. 1964, o Ano que não Terminou. In: Teles, E. & Safatle, V. (orgs.). O Que Resta da Ditadura. São Paulo: Boitem

po,2010, 205-236.

ASSEMBLÉIA LEG

ISLATIVA DO

RIO D

E JANEIRO

. Lei 5.778 de 30/06/2010. Disponível em

: <w

ww

.alerj.rj.gov.br/processos2.htm

>. Acesso em

30 de julho de 2010.

FOUCAULT, M. A Verdade e as Form

as Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.

GAGNEBIN, J. M. Lem

brar, escrever, esquecer. São Paulo: 2006, p.34.

KOLKER, T. Ética Profissional, Direitos Humanos e Participação dos Profissionais de Saúde na Luta pela Erradicação da

Tortura . Rio de Janeiro: Seminário de Direitos Hum

anos do Desipe e Degase, 2001, mim

eogr.

NEGRI, A. Exílio. São Paulo: Iluminuras, 2001.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Resolução 60/147. Disponível em: <

ww

w.ohchr.org/english/law

/remedy.htm

>.

Acesso em 30 de julho de 2007.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretária Especial de Direitos Humanos. Decreto 7.037 de 21/12/2009. Disponível em

: <w

ww

.presidencia.gov.br/legislacao>. Acesso em

25/12/2009.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretária Especial de Direitos Humanos. Decreto 7.177 de 12/05/2010. Disponível em

: <w

ww

.presidencia.gov.br/legislacao>. Acesso em

25/06/2010.

WCQUANT, L. Prisões da M

iséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

Page 22: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.43

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

042.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

em 1979, n

o sentid

o de favorecer a reflexão crítica sobre este p

eríodo e

apresen

tar elemen

tos imp

ortantes p

ara o debate atu

al.

Le

i da

An

istia

: Atu

alid

ad

e e

Te

nsõ

es

Em

julh

o de 2008, d

uran

te a gestão de Tarso G

enro, o M

inistério d

a

Justiça realizou

um

a aud

iência p

ública sobre os lim

ites e possibilid

ades

para a resp

onsabilização ju

rídica d

e agentes p

úblicos qu

e cometeram

cri-

mes con

tra a hu

man

idad

e du

rante p

eríodos d

e exceção. Essa au

diên

cia

blica gerou u

m m

ovimen

to para a con

strução d

e um

a nova cu

ltura

político-ju

rídica n

o país.

Seu

ápice, segu

nd

o Weissh

eimer (2010), foi a p

ropositu

ra da A

DP

F

153, pela O

rdem

dos A

dvogad

os do B

rasil, jun

to ao Su

prem

o Tribu

nal

Federal, com

o objetivo de in

terpretar a lei brasileira d

e anistia (6.683/79)

em com

patibilid

ade à C

arta Magn

a de 1988 e o D

ireito Intern

acional, ou

seja, contestan

do a exten

são da Lei d

a An

istia aos torturad

ores da d

itadu

-

ra militar n

o Brasil. E

m abril d

e 2010, em ju

lgamen

to histórico, sete d

os

onze m

inistros d

a mais alta corte d

o país votaram

contra a A

DP

F 153 e a

favor da an

istia aos torturad

ores.

Em

entrevista ao C

orreio da C

idad

ania, o ju

rista Dalm

o de A

breu

Dallari (2010), referên

cia da lu

ta por d

emocracia e d

ireitos hu

man

os no

Brasil, afirm

ou qu

e tal decisão d

o ST

F teria sido, obviam

ente, calcad

a

por m

otivos políticos, n

ão juríd

icos. Isso porqu

e, bastaria lembrar qu

e em

decisões d

a ON

U e d

e outros organ

ismos in

ternacion

ais, semp

re com a

particip

ação e a concord

ância d

o Brasil, a tortu

ra foi qualificad

a como

crime con

tra a hu

man

idad

e, ficand

o estabelecido in

clusive qu

e, quan

to a

crimes con

tra a hu

man

idad

e, não ocorre p

rescrição.

Hélio Pereira B

icud

o, por su

a vez outro gran

de d

efensor d

os direitos

hu

man

os no B

rasil, afirma, em

entrevista à Fu

nd

ação Perseu A

bramo,

que é in

cabível um

governo an

istiar a si próp

rio. A an

istia teria o intu

ito

de p

roteger pessoas qu

e nu

m d

ado m

omen

to, por m

otivos políticos, co-

meteram

crimes. S

egun

do ele, p

ara pacificar a socied

ade, con

sideram

-se

estes crimes in

existentes. M

as não os crim

es praticad

os pelo E

stado. E

le

afirma qu

e isso já teria se constitu

ído n

um

a jurisp

rud

ência p

acífica da

Corte In

teramerican

a de D

efesa dos D

ireitos Hu

man

os.

A su

l-africana N

avi Pillay, p

rincip

al autorid

ade d

as Nações U

nid

as

para d

ireitos hu

man

os, também

criticou a d

ecisão do S

TF e p

ediu

o fim

da im

pu

nid

ade n

o Brasil. S

egun

da ela, “essa d

ecisão é mu

ito ruim

. Não

querem

os imp

un

idad

e e semp

re lutarem

os contra leis qu

e proíbem

in-

vestigações e pu

nições”, d

isse a alta comissária d

a ON

U, su

rpresa com

o

fato do B

rasil estar seguin

do u

ma d

ireção diferen

te da ocorrid

a na A

rgen-

tina e em

outros p

aíses latino-am

ericanos em

termos d

e investigações

contra os resp

onsáveis p

or torturas d

uran

te os regimes m

ilitares. Esta

posição é com

partilh

ada com

os peritos in

dep

end

entes d

o Com

itê contra

a Tortura d

a ON

U4.

Um

Po

uc

o d

e H

istó

ria5

Os ap

elos por an

istia amp

la e irrestrita se faziam p

resentes d

uran

te o

governo m

ilitar mu

ito antes d

e 28 de agosto d

e 1979, data em

que a Lei d

a

An

istia foi prom

ulgad

a. Logo na sequ

ência d

o golpe d

e 64, com a d

ecre-

tação do A

I-1, susp

end

iam-se os d

ireitos políticos d

e qualqu

er um

que

fosse julgad

o opositor ao regim

e, instau

rand

o-se um

regime rep

ressivo,

com recu

rsos arbitrários a prisões, cen

sura e m

esmo exp

ulsão d

o país.

Em

resposta a isso, p

arte da esqu

erda se in

cum

be de organ

izar a resistên-

cia armad

a, o que alim

entou

aind

a mais o arbítrio d

o Estad

o com a ed

i-

ção do A

I-5: “Aos p

oucos, os revolu

cionários qu

e assaltavam qu

artéis e

sequestravam

embaixad

ores foram sen

do cap

turad

os, mortos ou

banid

os,

enqu

anto a tortu

ra, utilizad

a contra os p

risioneiros p

olíticos, generaliza-

va-se” (Mezarobba, 2003, p

. 13).

4 Este comitê é form

ado por juristas de reconhecimento internacional, oriundos de diferentes países.

5 Para falarmos da história da Lei de Anistia, apoiarem

o-nos principalmente no excelente trabalho de Glenda M

ezarobba(2003).

Page 23: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.45

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

044.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

O E

stado brasileiro p

assaria, então, a ser alvo d

e crescentes acu

sa-

ções de d

esrespeito aos d

ireitos hu

man

os, vind

as tanto d

e den

tro do p

aís

como d

e institu

ições estrangeiras, p

rincip

almen

te norte-am

ericanas e

europ

éias. Destacaram

-se, entre as rep

ercussões in

ternacion

ais dos abu

-

sos do govern

o, artigos pu

blicados n

os jornais W

ashin

gton Post e T

he

New

York Tim

es, e a pressão d

e entid

ades com

o a Com

issão Intern

acio-

nal d

e Juristas, a O

rganização d

os Estad

os Am

ericanos (O

EA

) e a An

istia

Intern

acional. M

ais à frente, o p

róprio p

residen

te american

o, Jimm

y Carter

(1977-1980) retiraria o apoio d

os Estad

os Un

idos ao regim

e militar brasi-

leiro, devid

o às fortes críticas que o p

aís estava recebend

o por d

esrespei-

to aos direitos h

um

anos.

Já den

tro do B

rasil, começaram

a surgir corren

tes como o M

ovimen

-

to Femin

ino p

ela An

istia e, no an

o de 1977, m

anifestações estu

dan

tis que

protestavam

contra as p

risões e torturas foram

se converten

do em

defe-

sas da an

istia aos presos p

olíticos, dan

do origem

a “Dias N

acionais d

e

Protesto e Lu

ta pela A

nistia” e aos “C

omitês P

rimeiro d

e Maio p

ela

An

istia”.

Tais esforços foram gan

han

do o ap

oio de ou

tros setores da socied

ade,

como d

a parte m

ais progressista d

a Igreja Católica (e.g. C

NB

B), d

e movi-

men

tos pop

ulares com

o o “Panela V

azia” e metalú

rgicos do G

rand

e AB

C,

assim com

o de in

stituições d

e peso p

olítico como a O

rdem

dos A

dvoga-

dos d

o Brasil (O

AB

), a Associação B

rasileira de Im

pren

sa (AB

I) e a Soci-

edad

e Brasileira p

ara o Progresso d

a Ciên

cia (SB

PC

):

Em fevereiro de 1978, para coorden

ar as ações em prol da an

istia,foi fu

ndado n

o Rio de Jan

eiro por advogados, familiares e am

igos

de p

resos e exilados p

olíticos, o Com

itê Brasileiro p

ela An

istia(C

BA

). (...) Em su

a carta de princípios e em

seu program

a mín

imo

de ação, o CB

A in

sistia que a lu

ta por anistia estava in

scrita “no

quadro geral das dem

ais lutas do povo brasileiro pelas liberdades

democráticas” e defen

dia perdão imediato a todos os presos e per-

seguidos políticos (n

ão-extensivo aos “algozes de su

as vítimas”).

Também

reivindicava o fim

absoluto das tortu

ras, a libertação dospresos políticos e a volta dos cassados, ban

idos, exilados e perse-

guidos, a elu

cidação dos casos de desaparecimen

tos e a revogaçãoda Lei de S

eguran

ça Nacion

al (2003, p. 19).

No en

tanto, o govern

o seguia n

egand

o as den

ún

cias e não p

arecia

mobilizad

o por estes d

iversos focos de p

ressão.

Foi apen

as com o térm

ino d

a vigência d

o AI-5, em

1979, e o retorno

do B

rasil ao estado d

e direito, qu

e a situação com

eçaria a mu

dar. A

anis-

tia já era então tem

a largamen

te dissem

inad

o na socied

ade e p

or ela de-

fend

ido, sen

do en

viado ao C

ongresso N

acional, n

o dia 27 d

e jun

ho d

e

1979, um

projeto d

e anistia assin

ado p

elo então p

residen

te João Bap

tista

Figueired

o.

Com

o projeto d

e anistia, o p

residen

te esperava in

iciar um

processo

de p

acificação do p

aís, o qual p

ermitiria a retom

ada d

a convivên

cia de-

mocrática. S

egun

do Figu

eiredo, seu

texto teria maior am

plitu

de qu

e pro-

jetos anteriorm

ente ap

resentad

os, mas restrin

gia-se a conced

er anistia

àqueles acu

sados d

e crimes estritam

ente p

olíticos (o que n

ão inclu

ía os

então acu

sados d

e terrorismo). S

eriam an

istiados tod

os que, n

o intervalo

entre 02 d

e setembro d

e 1961 e 31 de d

ezembro d

e 1978:

cometeram

crimes políticos ou

conexos, aos qu

e tiveram seu

s di-

reitos políticos suspen

sos e aos servidores da admin

istração públi-

ca, de fu

nd

ações vincu

ladas ao p

oder p

úb

lico, aos pod

eres

Legislativo e Judiciário e aos m

ilitares, pun

idos com fu

ndam

ento

em A

tos Institu

cionais e com

plemen

tares (2003, p. 31).

Um

a vez no C

ongresso, os p

arlamen

tares tinh

am oito d

ias para su

ge-

rir emen

das a u

ma com

issão mista, a qu

al caberia analisar o p

rojeto. Tal

comissão foi form

ada p

or onze sen

adores e on

ze dep

utad

os federais, ca-

bend

o ao dep

utad

o Ern

ani S

atyro (Aren

a-PB

) a relatoria do p

rojeto. O

projeto gerou

, no en

tanto, gran

de in

satisfação por p

arte de am

plos seto-

Page 24: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.47

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

046.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

res da socied

ade. U

m d

e seus p

rincip

ais problem

as foram as restrições

imp

ostas, tais como a n

ão concessão, d

ificilmen

te justificável, d

a anistia

a réus já con

den

ados. O

utro asp

ecto severamen

te recrimin

ado foi a “au

to-

anistia” (n

este caso sim, am

pla, geral e irrestrita) aos tortu

radores, cu

jos

crimes seriam

comp

reend

idos com

o crimes con

exos6.

Tais insatisfações se fizeram

presen

tes nas 305 em

end

as apresen

ta-

das ao p

rojeto no C

ongresso. N

o entan

to, o governo n

ão se incom

odou

com as críticas recebid

as e nem

com a acu

sação de qu

e a anistia seria d

e

fato restrita. Os vários su

bstitutivos e em

end

as foram rejeitad

os, send

o o

projeto reescrito p

or Satyro sem

grand

es alterações. A d

espeito d

a oposi-

ção do M

DB

, o parecer foi ap

rovado p

ela comissão m

ista, e no d

ia 21 de

agosto o substitu

tivo de S

atyro foi aprovad

o pelo C

ongresso N

acional. A

o

28 de agosto d

e 1979, Figueired

o sancion

ou a Lei d

a An

istia, que recebeu

o nú

mero 6.683.

Iniciou

-se então o trabalh

o do S

up

remo T

ribun

al Militar (S

TM

) de

analisar os p

rocessos que estavam

no tribu

nal e n

as aud

itorias. E, ao fim

da p

rimeira sem

ana, 19 p

resos foram libertad

os. Em

20 de n

ovembro,

Figueired

o conced

eu ain

da in

du

lto a 20 presos p

olíticos.

Em

1984, no en

tanto, u

m levan

tamen

to realizado p

elo Movim

ento

Femin

ino p

ela An

istia e Liberdad

e Dem

ocrática ind

icava que 11.434 p

es-

soas aind

a não h

aviam sid

o contem

plad

as com os ben

efícios da Lei d

a

An

istia. Com

o sabemos, as reivin

dicações con

tinu

ariam, algu

mas vezes

gerand

o tensões d

entro d

o “governo d

e transição” d

e José Sarn

ey, e se

estend

end

o ao longo d

os governos su

cedân

eos até os debates qu

e hoje

assistimos.

Cabe ain

da ressaltar, com

o pu

dem

os observar neste p

ercurso, qu

e a

Lei de A

nistia n

ão foi algo discu

tido e acord

ado p

or amp

los setores da

sociedad

e. Ao con

trário, ela foi claramen

te imp

osta de cim

a, tend

o por

objetivo não só p

rescrever os crimes d

os militares, m

as também

, como

apon

ta Mezarobba, in

iciar o processo d

e abertura p

olítica do p

aís, com o

qual o govern

o preten

dia d

iluir e d

esarticular a op

osição (MD

B), ao aca-

bar com o bip

artidarism

o, e aind

a lançar u

m n

ovo partid

o de situ

ação,

dissociad

o, entretan

to, da figu

ra do govern

o militar.

Con

cluin

do, gostaríam

os de ressaltar algo qu

e enten

dem

os como o

mote d

esta reflexão. Aran

tes (2008) apon

ta que, n

o cenário d

a tortura,

haveria três en

volvidos: o tortu

rado, o tortu

rador e a socied

ade qu

e a per-

mite. A

ssim, teríam

os todos u

ma resp

onsabilid

ade d

a qual n

ão devem

os

e nem

pod

emos n

os furtar, qu

e é a de d

ivulgar, p

osicionar-n

os e combater

sem exceção, e em

qualqu

er circun

stância, a tortu

ra.

Re

ferê

nc

ias b

iblio

grá

fica

s

ARANTES, M. A. DE A. . Pelo fim

absoluto da tortura em qualquer circunstância.Disponível em

: <http://w

ww

.crpsp.org.br/portal/conselho/com

issoes/ver_noticias.aspx?id=53>

. Acesso em: 03 de out. 2010.

CHADE, J. ONU critica decisão do STF de manter a Lei da Anistia no Brasil. O Estado de São Paulo, São Paulo, 30 abr. 2010.

Disponível em: <

http://ww

w.estadao.com

.br/noticias/nacional,onu-critica-decisao-do-stf-de-manter-a-lei-da-anis-

tia-no-brasil,545225,0.htm>

. Acesso em: 05 out. 2010.

DALLARI. D. de A. É cínica e inaceitável a pretensão de dar validade jurídica à Lei de Anistia. [19 de maio, 2010]. São Paulo:

Correio da Cidadania. Entrevista concedida a Gabriel Brito. Disponível em: <

http://ww

w.correiocidadania.com

.br/content/view

/4654/9>. Acesso em

: 03 out. 2010

BICUDO, H. P. Luta contra tortura segue na OEA. [26 de maio, 2010]. Fundação Perseu Abram

o. Entrevista concedida a AnaHelena Tavares. Disponível em

: <http://w

ww

.fpabramo.org.br/artigos-e-boletins/artigos/”luta-contra-tortura-pros-

segue-na-oea”-entrevista-com-helio-bicudo>

. Acesso em: 04 out. 2010.

GENRO, T. Tarso Genro: “Decisão do STF é erro jurídico e deformação histórica”. [03 de m

aio, 2010]. Fundação PerseuAbram

o. Entrevista concedida a Marco Aurélio W

eissheimer. Disponível em

: <http://w

ww

.fpabramo.org.br/artigos-e-

boletins/artigos/tarso-genro-”decisao-do-stf-e-erro-juridico-e-deformacao-historica”>

. Acesso em: 03 out. 2010.

MEZAROBBA, G. Um

acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências – um

estudo de caso brasileiro. . 206f.Dissertação (M

estrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hum

anas, Universidade deSão Paulo, São Paulo. 2003.

PINHEIRO, P. S. O STF de costas para a humanidade. Disponível em

: <http://w

ww

.fpabramo.org.br/artigos-e-boletins/arti-

gos/o-stf-de-costas-para-humanidade>

Acesso em: 05 out. 2010.

6 Crimes cujas finalidades são as m

esmas do ato principal praticado.

Page 25: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.49

temátic

a.

Co

rresp

on

nc

ias

Lucia

na K

nijn

ik1

Vin

te e oito de m

arço, Porto Alegre, 2009

As palavras navegam

.A

na C

ristina C

esar2

Um

a constatação d

a atualid

ade: som

os imp

edid

os de con

hecer n

os-

sa próp

ria história.

A lu

ta de fam

iliares e militan

tes pelo esclarecim

ento d

os fatos ocor-

ridos n

o períod

o da d

itadu

ra civil-militar, n

o Brasil, é resu

mid

a por m

ui-

tos a revanch

ismo. “N

ão vamos m

exer em ferid

as”, dizem

os interessad

os

1 Psicóloga em form

ação no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul, mestre em

psicologia pela Universidade FederalFlum

inense e Presidente da Comissão de Direitos Hum

anos do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul.

2 CESAR, A. C. Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa. São Paulo: Instituto M

oreira Salles, 2008.

Page 26: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.51

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

050.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

em m

anter soterrad

os os acontecim

entos em

que estão en

volvidos. E

m

nom

e de u

ma p

retensa p

acificação social, a história é silen

ciada.

Seria o p

resente o sen

hor d

os temp

os? O d

etentor d

o pod

er de ap

agar

rastros? A qu

em in

teressa o silêncio?

A carta d

e Man

oel Raim

un

do foi a p

rimeira qu

e li. Ele foi u

m d

os

tantos m

embros d

o Exército qu

e partiu

para a m

ilitância con

tra o regime

imp

osto. Sargen

to Man

oel Raim

un

do S

oares ficou con

hecid

o como “o

caso das m

ãos amarrad

as”, por ter sid

o encon

trado p

or um

pescad

or, boi-

and

o no R

io Jacuí, em

24 de agosto d

e 1966, com as m

ãos e os pés am

ar-

rados às costas.

Preso por 152 d

ias, na Ilh

a Presídio, em

Porto Alegre, escreve p

ara

sua esp

osa Betin

ha em

2 de m

aio de 1966:

Eis aqui m

ais um

a tentativa de te m

andar n

otícias min

has. Esta é a

5ª carta. Não sei se as ou

tras chegaram

até ai. Fui preso às 16h

sm

ais ou m

enos [do dia 11 de m

arço], em fren

te ao Au

ditório Araú

joV

iana. [...] N

o instan

te da prisão eu portava u

ma bolsa preta, n

aqu

al estavam recortes de jorn

ais com in

scrições de caráter político.Fu

i condu

zido ao Qu

artel da P.E e lá, debaixo de um

‘tratamen

to’fu

i interrogado du

rante du

as horas. A

seguir fu

i levado para a DO

PSn

a Aven

ida João Pessoa ‘tratado’ duran

te um

a seman

a. No dia se-

guin

te 19 de março fu

i condu

zido para esta ilha, on

de estou até

hoje. Eu

estava dormin

do em pen

sões e hotéis de 3ª classe. O

ún

icoam

igo que eu

tenh

o em P. A

legre, o ex-Sgt LEO

, eu n

ão sei o ende-

reço dele. Por isto, estando em

dificuldades em

matéria de din

heiro

não sei com

o vou m

e arranjar. A

té a presente data estou

sob o regi-m

e da incom

un

icabilidade e, infelizm

ente, n

ão sei o que está acon

-tecen

do aí pela ‘civilização’. Em m

eu corpo ficaram

gravadas algu-

mas das m

edalhas com

o que m

e agraciaram. A

qui estou

sem sapa-

tos, sem rou

pas de frio, sem cobertas, u

sando u

nicam

ente u

ma ca-

misa de n

ylon e u

ma calça de lã preta. N

ão há dú

vidas que o m

eupassadio por aqu

i não é n

ada comparável ao de ‘M

ar Del Plata’.

Felizmen

te já me retiraram

a barba; ela estava bonita. N

ão sei bem,

mas creio qu

e estou preso à disposição do III Exercito. Por isto, só

um

‘Habeas-C

orpus’ do S

uperior T

ribun

al Militar poderá libertar-

me. [...] S

e tiver dificuldade em

matéria de din

heiro ven

de as coi-sas. R

aciocina com

o se eu tivesse m

orrido.E aí com

o vão as coisas? Você está bem? H

ouve algu

ma n

ovidade?T

ão logo eu seja posto em

liberdade, e isto ainda vai dem

orar, ire-m

os ter um

a nova lu

a de mel em

um

a cidade que tu

ainda n

ãocon

heces apesar de ser próxim

a a tua terra n

atal. Com

o vês o papelestá acaban

do, por isto aproveito para lembrar-te qu

e meu

pensa-

men

to é só para ti; duran

te todas as horas destes ú

ltimos dias n

ãosaes do m

eu pen

samen

to O ban

quin

ho da cozin

ha, os beijos n

osolh

os, tudo aqu

ilo que liga m

eu corpo a tu

a alma (ou

espírito que é

mais certo).

Recebe m

il beijos e um

camin

hão de abraços do teu

Man

oel (Su

sel,

2008).

Vin

te e cinco d

e outu

bro, Porto Alegre, 2009

Escrever para aplacar o medo.

An

a Cristin

a César

Os d

ados coletad

os pela C

omissão E

special d

e Mortos e D

esapareci-

dos e p

elas Com

issões de R

eparação

3 apon

tam qu

e, somen

te no R

io Gran

-

de d

o Su

l, a Com

issão recebeu ap

roximad

amen

te 1.650 requerim

entos,

dos qu

ais 1.173 foram d

eferidos.

No B

rasil, 50 mil p

essoas foram p

resas somen

te nos p

rimeiros m

eses

de d

itadu

ra, 426 mortos, d

esaparecid

os e 4.862 cassados

4. Sabem

os que

mu

itos não estão n

estes registros, não en

traram com

processo, ou

seja, o

mero d

e atingid

os diretam

ente p

ela ditad

ura é ain

da m

aior.

3 O resultado da luta de diversas entidades de direitos humanos, fam

iliares de mortos e desaparecidos, m

ilitantes e algunsparlam

entares foi a assinatura, em dezem

bro de 1995, da Lei n° 9.140/95. Ver mais em

Resquícios da Ditadura no Brasil deCecília M

aria Bouças Coimbra, http://w

ww

.dhnet.org.br/dados/relatorios/dh/br/jglobal/jglobal2000/requiciosdaditadura.html.

4 In: Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985). São Paulo: Im

prensa Oficial, 2009.

Page 27: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.53

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

052.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

O qu

e é feito desta h

istória?

Não m

ontam

os um

quebra cabeças com

peças p

reviamen

te recorta-

das, p

aisagens d

efinid

as, solução ú

nica, verd

ade u

niversal. E

stamos p

or

aí a coletar retalhos, tran

çar, bordar, ju

ntar p

edaços.

Na caligrafia, n

o amarelo em

poeirad

o dos p

apéis, n

as palavras esco-

lhid

as, há u

ma p

rofusão d

e fluxos com

a potên

cia de p

rodu

zir sentid

os

inéd

itos. A p

alavra dos m

ilitantes, relatan

do seu

cotidian

o, as estratégias

de sobrevivên

cia e os efeitos da p

risão, transp

orta-me p

ara aquele cen

á-

rio. Paulo S

érgio Paranh

os, preso n

a Ilha G

rand

e, em 9 d

e novem

bro de

1971, escreve para S

onia G

oulart S

alles, presa n

o presíd

io Talavera Bru

ce,

em B

angu

, no R

io de Jan

eiro. Diz ele:

Lembro de você n

a PE, sim. Lem

bro teu sorriso alegre n

um

a caratriste, con

tradição? [...] Eu n

ão era um

cara frio, fechado, e calcu

-lista, pelo con

trário, semp

re fui extrovertid

o e alegre. A p

risãom

e mu

dou

. [...] Eu

sei que vou

ficar mu

itos anos p

reso, mas isso

é apenas u

ma fase n

a min

ha vida, ou

tras fases virão e melh

ores.En

quan

to isso, vou escreven

do, lendo, estu

dando e fazen

do tra-balh

inh

os man

uais, eu

já tô com qu

ase dois anos de cadeia

5.

Treze d

e dezem

bro, Porto Alegre, 2009

As próprias línguas escaparam

como gatos na fum

aça.A

na C

ristina C

ésar

Com

o na m

aioria das fam

ílias de trad

ição jud

aica, na m

inh

a casa

semp

re se falou sobre o h

olocausto. C

amp

os de con

centração, p

ersegui-

ções, migrações p

ovoaram m

eu esp

ectro de im

agens.

Linh

as correm em

paralelo, tocam

-se, chocam

-se e seguem

.

Na Polôn

ia, du

rante a 2ª G

uerra M

un

dial, em

janeiro d

e 1945, com a

aproxim

ação das trop

as soviéticas, os nazistas fizeram

o possível p

ara

apagar os vestígios d

e suas atrocid

ades. Q

ueim

aram d

ocum

entos, exp

lo-

diram

câmaras d

e gás e os fornos crem

atórios de A

usch

witz. N

ão pu

de-

ram, p

orém, ap

agar o testemu

nh

o dos p

oucos sobreviven

tes que carrega-

ram n

o corpo as m

arcas, as lembran

ças, os registros do qu

e viveram.

Primo Levi (1919-1987), m

embro d

e família ju

dia, fazia p

arte de u

m

grup

o de resistên

cia na Itália e foi cap

turad

o pelas m

ilícias fascistas. Em

1944, aos 24 anos, foi d

eportad

o para A

usch

witz, on

de p

erman

eceu p

or

quase u

m an

o.

Um

dos p

oucos sobreviven

tes do cam

po qu

e extermin

ou m

ilhões d

e

pessoas, grad

uad

o em qu

ímica, torn

ou-se escritor p

ela necessid

ade d

e

contar o qu

e viveu. D

entre os testem

un

hos d

e Au

schw

itz, Levi conta u

m

sonh

o em qu

e retorna p

ara casa e, ao tentar relatar o qu

e passou

, deses-

pera-se p

ois percebe qu

e nin

guém

o escuta, os ou

vintes se levan

tam e vão

ind

iferentes (G

agnebin

, 2006).

Primo Levi é con

siderad

o o autor qu

e inau

gura a ch

amad

a literatura

de testem

un

ho. E

screve com a in

tenção d

e contar o qu

e viveu. D

iferente-

men

te do qu

e ocorre nos escritos d

e Levi, as cartas dos m

ilitantes n

o Bra-

sil foram red

igidas d

uran

te o períod

o de p

risão e cland

estinid

ade. M

uitas

eram d

estinad

as aos familiares aflitos com

seus filh

os, filhas, com

pan

hei-

ros, marid

os, esposas, p

ais, irmãos, cu

nh

ados...

Cecília C

oimbra, em

22 de setem

bro de 1970, sem

pod

er receber visi-

tas, escreve para su

a mãe: “A

senh

ora não sabe com

o fiquei feliz ao ver o

retrato de m

eu filh

inh

o e saber que ele vai bem

. [...] Veja se con

segue

man

dar aqu

ele bloco de batalh

a naval, tá? N

ão sei se baralho en

tra, mas

tente, tá?”.

A escrita vai se revelan

do u

ma estratégia d

e sobrevivência. Palavras

que con

tornam

o eco do h

orror, os efeitos da tortu

ra, a vizinh

ança d

a

loucu

ra e a concretu

de d

a morte.

5 Trechos de cartas, gentilmente cedidas pelos autores, que com

puseram m

ostras nos atos Reparação e Mem

ória, ocorridona Universidade Federal do Rio de Janeiro em

junho de 2008 e no IV Seminário de Psicologia e Direitos Hum

anos, promovido

pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, em parceria com

o Programa de Pós-Graduação em

Mem

ória Socialda Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

Page 28: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.55

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

054.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

Com

o diz V

iegas, preso n

a Ilha G

rand

e, para S

onia G

oulart S

alles,

presa n

o presíd

io Talavera Bru

ce, em B

angu

, no R

io de Jan

eiro:

Não fiqu

es triste min

ha flor, p

orque já estou

recebend

o cartas e

cada um

a que só ven

do. [...] Você tem toda razão qu

ando diz qu

e

ficar sem receber cartas é doído; m

uito ch

ato mesm

o. Na verdade a

troca de idéias é um

a necessidade qu

e, se não satisfeita, n

os corrói

em dem

asia os nervos. A

gente qu

and

o só, luta e ten

ta resistir

contra a au

sência de palavras carin

hosas. N

em todos con

seguem

vencer a solid

ão. E qu

and

o isso acontece é o fim

que se aproxim

a.

É claro que, para sen

tirmos o sabor de u

ma carta e tu

do que ela traz

em su

as linh

as, não é preciso con

hecer fisicam

ente qu

em a escre-

ve. O im

portante m

esmo é existir m

otivos. E entre n

ós os motivos

são imen

sos, transbordan

tes.

Vin

te e oito de agosto, Porto A

legre, 2010

É preciso mais um

a vez uma nova geração

que saiba escutar o palrar os signos.A

na C

ristina C

ésar

Nu

ma rod

a de con

versa que organ

izei no S

emin

ário de Psicologia e

Direitos H

um

anos, M

aria Au

xiliadora levou

as cartas trocadas com

seu

marid

o. Con

tou qu

e, seguid

amen

te, trechos d

as cartas eram rasu

rados ou

recortados. N

ão eram recad

os para com

pan

heiros d

e organização, d

enú

n-

cias, segredos, trech

os belicosos ou com

prom

etedores. A

censu

ra direta,

naqu

ela circun

stância, era qu

ase desn

ecessária, na m

edid

a em qu

e, nos

mold

es do con

trole, estava em cad

a um

e em tod

os (Deleu

ze, 1992). Os

autores d

as cartas sabiam qu

e a amp

litud

e de seu

s escritos era limitad

a.

O p

apel n

ão se oferecia em bran

co.

Por que en

tão censu

rar certos trechos? M

ais do qu

e selecionar con

-

teúd

os, a censu

ra inten

cionava d

eixar marcas d

o terrorismo d

e Estad

o.

Deste m

odo, qu

alquer ilu

são de p

rivacidad

e era aniqu

ilada. A

intim

ida-

de d

os casais, a cum

plicid

ade d

os amigos, tu

do era violad

o. As p

ráticas

de violên

cia de E

stado têm

suas su

tilezas. Op

erações quase in

visíveis,

silenciosas, u

m silên

cio cortante.

O silen

ciamen

to é a declaração d

e prisão p

erpétu

a para as exp

eriên-

cias dos atin

gidos p

ela violência d

e Estad

o que, in

evitavelmen

te, trans-

mitem

o inen

arrável para as d

emais gerações. H

á de se bu

scar palavras

para d

ar passagem

aos fluxos.

“Em

meu

corpo ficaram

gravadas algu

mas d

as med

alhas com

o que

me agraciaram

”. Com

o disse M

anoel R

aimu

nd

o, a ditad

ura brasileira

marcou

no corp

o. Nazistas, p

or sua vez, gravaram

, na p

ele de ju

deu

s,

ciganos, h

omossexu

ais, a experiên

cia do terror.

Já nos corp

os prod

uzid

os em escala e p

adrão in

du

strial da geração

coca-cola, as marcas estão p

erigosamen

te invisibilizad

as. Ap

arentem

en-

te sem p

assado e d

escolados d

a próp

ria história, afirm

am qu

e tempo é

dinheiro. A

lheios ao im

ped

imen

to de bu

scar as palavras p

ara aquilo qu

e

lhes atravessa, acred

itam qu

e censu

ra é coisa do p

assado e ad

otam o slogan

está tudo dom

inado.

O d

esafio está lançad

o em n

ome d

o presen

te: romp

er a cadeia d

o

silenciam

ento. A

constatação d

e que som

os todos atin

gidos p

elo terroris-

mo d

e Estad

o nos im

pele a recolocar a lu

ta pela an

istia. A tão son

had

a

anistia am

pla, geral e irrestrita som

ente será con

quistad

a quan

do n

osso

direito d

e conh

ecer nossa p

rópria h

istória for finalm

ente garan

tido.

Em

1970, Maria d

e Azeved

o Bou

ças Coim

bra escreve para su

a filha

Cecília:

As sau

dades são mu

itas, porém a fé em

Deu

s também

é grande, e

espero ver-te breve. Pode estar tranqü

ila que o teu

filhin

ho n

ão se

esquece de você, fala de vocês, porém

não ch

ora, pois está te espe-

Page 29: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.57

temátic

a.

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

056.

tem

átic

a.

Arq

uiv

os d

a C

ida

de

Felip

e D

iniz

1

Com

um

a todos os grandes n

arradores é a facilidade com qu

e sem

ovem para cim

a e para baixo nos degrau

s de sua experiên

cia,com

o nu

ma escada. U

ma escada qu

e chega até o cen

tro da terra equ

e se perde nas n

uven

s2.

O artista brasileiro C

ildo M

eireles carimbou

notas d

e dólar d

o ano d

e1975 com

a pergu

nta: Q

uem

Matou

Herzog? U

ma alu

são ao episód

io da

morte d

o jornalista V

ladim

ir Herzog qu

e em ou

tubro d

e 1975 foi assassi-n

ado p

elos órgãos de segu

rança brasileiros em

um

dos tan

tos bárbarosep

isódios p

romovid

os pela d

itadu

ra militar n

o país. O

artista plástico

chilen

o Alfred

o Jaar reun

iu u

m m

ilhão d

e slides id

ênticos com

a imagem

dos olh

os de u

ma m

ulh

er de R

uan

da qu

e testemu

nh

ou a ch

acina d

o ma-

1 Cineasta e mestrando em

Comunicação e Inform

ação pela UFRGS.

2 Citação de Walter Benjam

in.

rando m

uito con

tente prin

cipalmen

te quan

do chego com

as tuas

cartinh

as. [...] A Fátim

a disse a ele que foste dar u

mas au

las fora e

ele está bem con

formado.

Re

ferê

nc

ias b

iblio

grá

fica

s

DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

GAGNEBIN, J. M. Lem

brar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

SUSEL, Oliveira da Rosa. A escrita de si na situação de tortura e isolamento: as cartas de M

anoel Raimundo Soares. História,

imagem

e narrativas. Nº 7, ano 3, 2008.

Page 30: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.59

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

058.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

rido e d

e seus d

ois filhos. A

té o ano 2000 os con

flitos no p

aís, entre gru

-

pos extrem

istas, anu

nciavam

um

milh

ão de vítim

as. Essas d

uas obras

fazem p

arte da 29ª B

ienal d

e São Pau

lo, aberta recentem

ente.

A arte qu

e pergu

nta, a arte qu

e respon

de, a arte qu

e du

vida. A

arte

cortejada p

ela mem

ória que n

ão cala e que im

prim

e na im

agem su

a mar-

ca. A arte qu

e expressa através d

e suas am

bigüid

ades as p

otencialid

ades

da vida, com toda carga de crueldade e de beleza que assom

bra o cotidiano.

Em

2009 tive a oportu

nid

ade d

e dirigir u

m film

e, jun

tamen

te com

Lucian

a Kn

ijnik, qu

e docu

men

tava acontecim

entos d

e resistência à d

ita-

du

ra civil-militar brasileira. D

uran

te quatro d

ias o Teatro de A

rena d

e

Porto Alegre foi lu

gar de u

ma exp

eriência ú

nica. A

quele esp

aço, localiza-

do n

os altos da escad

aria no cen

tro da cap

ital, foi abrigo para gran

des

encon

tros.

O p

rimeiro d

eles foi o nosso en

contro com

os person

agens escolh

i-

dos p

ara contarem

suas vid

as no d

ocum

entário, tod

os diretam

ente en

-

volvidos com

a repressão p

olítica dos an

os de ch

um

bo em Porto A

legre.

A m

aioria com u

m p

assado d

e prisão, d

e tortura, d

e privação d

e liberda-

de n

os porões d

a DO

PS

da cid

ade. H

istórias pessoais qu

e não con

hecía-

mos, ou

que p

areciam estar d

iluíd

as em m

eio a tantas ou

tras que vez p

or

outra n

os surp

reend

iam em

outros film

es, em livros e em

reportagen

s

jornalísticas.

O segu

nd

o encon

tro foi o dos p

ersonagen

s com o u

niverso d

o cine-

ma. A

través do cin

ema su

as histórias se torn

ariam p

úblicas. S

uas m

emó-

rias seriam en

volvidas p

elos refletores e suas vozes cap

tadas p

elas lentes,

que rep

resentam

os olhos d

o diretor e d

e milh

ões de esp

ectadores em

poten

cial. O cin

ema seria p

ara aqueles p

ersonagen

s um

canal d

e comu

-

nicação e o Teatro d

e Aren

a seria, acima d

e tud

o, palco p

ara um

a conver-

sa com eles m

esmos. U

ma volta ao p

assado qu

e está semp

re presen

te. O

eco de u

ma h

istória que ain

da está sen

do escrita.

Talvez o mais sign

ificativo encon

tro tenh

a sido o d

e todos n

ós – per-

sonagen

s e equip

e de cin

ema – com

a cidad

e. Um

a cidad

e que abriga

um

a história em

eterno p

onto d

e ebulição, esp

erand

o ser desm

ascarada,

violada. U

ma cid

ade su

rpreen

den

temen

te revelada aos p

oucos, sem

pie-

dad

e, dem

onstran

do m

arcas de u

m p

assado/p

resente qu

e estamp

am os

mu

ros, os rios, os rostos, as ruas. N

os quatro d

ias de gravação fom

os to-

dos tocad

os por u

ma cid

ade qu

e não con

hecíam

os. Ao ap

agar das lu

zes o

Teatro não foi m

ais o mesm

o, o centro n

ão foi mais o m

esmo, e n

ós, mora-

dores d

a urbe e fan

toches d

o un

iverso cinem

atográfico, não h

abitávamos

mais a m

esma cid

ade.

A m

emória d

a cidad

e se confu

nd

iu com

a mem

ória dos p

ersonagen

s.

O qu

e assistimos n

o filme são versões n

arradas, cap

turad

as de u

ma m

e-

mória su

bvertida, com

partilh

ada. H

istórias ind

ividu

ais amarrad

as um

as

às outras, tecen

do u

m fio qu

e perten

ce a todos n

ós e que p

aradoxalm

ente

está marcad

o na sin

gularid

ade d

e cada corp

o.

Ed

uard

o Cou

tinh

o, um

dos m

estres do d

ocum

entário con

temp

orâ-

neo brasileiro, afirm

a que o qu

e ele objetiva ao realizar um

filme, m

ais do

que film

ar a verdad

e, é registrar a verdad

e da film

agem. C

om isso, o d

ire-

tor abarca a imp

ortância d

o instan

te, do m

omen

to. Mais d

o que d

ocu-

men

tar mu

nd

os, Cou

tinh

o docu

men

ta acontecim

entos cin

ematográficos

e aposta n

a potên

cia do en

contro. O

que se exp

erimen

tou n

aqueles d

ias

de ou

tono foi a m

ais pu

ra tradu

ção desta lógica. O

s person

agens e a equ

i-

pe d

o filme se en

tregaram à força d

o instan

te e, na su

tileza da n

arração, o

cinem

a foi pon

te para a re-sign

ificação de u

ma m

emória escon

did

a.

Assu

mim

os o comp

romisso d

e conceber u

ma obra. N

o que toca a

arte, embalad

a por am

bivalências e atravessad

a por su

bjetividad

es e in-

tenções n

ada n

eutras. O

filme abre arqu

ivos, vasculh

and

o o baú d

as me-

mórias m

uitas vezes silen

ciadas p

elas versões oficiais de u

m E

stado qu

e

man

tém, in

tocadas, in

formações qu

e dizem

respeito a tod

os nós.

En

fatizand

o as dim

ensões p

olíticas da arte, p

ropom

os um

a versão

alternativa p

ara a abertura d

os arquivos d

a ditad

ura m

ilitar, dan

do vozes

aos protagon

istas destes m

ovimen

tos para qu

e essa história n

ão morra e,

como coloca B

enjam

in, “atin

ja as nu

vens”, gan

han

do o statu

s de u

ma

Page 31: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.61

temátic

a.

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

060.

tem

átic

a.

história coletiva. A

narração, com

o escada p

ara a libertação de h

istórias.

Lembran

ças mu

itas vezes dolorosas, gu

ardan

do im

agens qu

e o Estad

o

prop

õe que esqu

eçamos. N

ós pen

samos o con

trário. Acred

itamos qu

e re-

alizar um

filme qu

e recup

era essas cenas n

ão é apen

as remexer em

um

passad

o de im

agens esp

etaculares, m

as se torna u

ma m

aneira d

e refletir

sobre as contrad

ições do tem

po p

resente.

A tortu

ra aind

a é um

a prática d

e coerção aplicad

a nas d

elegacias

hoje, as táticas d

e repressão im

postas p

elo Estad

o aind

a são estrutu

radas

pela violên

cia, descrim

inação, abu

so de au

toridad

e e imp

un

idad

e. Esti-

mu

lar a narração d

e fatos ocorridos em

um

passad

o recente p

ara repen

-

sar a questão d

os direitos h

um

anos h

oje também

sublin

hou

nossos objeti-

vos.Em

maio d

e 2009, na gravação d

o docu

men

tário, conh

ecemos seis

person

agens qu

e doaram

seus tem

pos, seu

s plan

os, seus afetos, su

a força

para escrever a h

istória de u

m p

aís. Mu

itos de seu

s comp

anh

eiros morre-

ram ou

enlou

queceram

. O film

e apresen

ta essas histórias, m

as também

traz à tona ep

isódios belíssim

os de u

ma ép

oca em qu

e as causas coletivas

pareciam

represen

tar um

espaço fu

nd

amen

tal nas relações sociais.

Sem

pre qu

e o filme é exibid

o, outras h

istórias são conh

ecidas. N

os

debates qu

e seguem

as projeções, n

os dep

aramos com

outras vozes qu

e

reverberam m

emórias in

divid

uais qu

e no sobe e d

esce das escad

as da

narrativa são d

espejad

as para o m

un

do. M

uitas vezes h

istórias guard

a-

das p

or mais d

e vinte an

os, descon

hecid

as até por p

arentes p

róximos,

são reveladas n

o embalo d

a emoção qu

e o filme p

rovoca.

O film

e Arqu

ivos da Cidade

3 foi lançad

o em u

ma sessão lotad

a. O

espaço escolh

ido foi a S

ala de C

inem

a P.F Gastal, n

a Usin

a do G

asômetro,

cenário em

blemático, tam

bém p

ovoado p

or inú

meras m

emórias d

a cida-

de. O

dia escolh

ido foi 29 d

e agosto de 2009, d

ata que m

arcava os 30 anos

da p

romu

lgação da Lei d

e An

istia no B

rasil.

3 O filme Arquivos da Cidade (2009, 29 m

in) foi dirigido por Felipe Diniz e Luciana Knijnik, produzido pela Modus Produtora de

Imagens e financiado pelo Fum

prorate ( Prefeitura de Porto Alegre).

Ve

rgo

nh

a1

Paulo

End

o2

Primo Levi atribu

íra a si mesm

o e a algun

s dos qu

e sobreviveram às

atrocidad

es nos cam

pos o sen

timen

to escuro d

a vergonh

a. Mais d

e um

a

vez disse-n

os que a vergon

ha d

os que sobreviveram

se devia à exp

eriên-

cia de ter testem

un

had

o um

tipo d

e imp

licação imp

ressionan

te de algu

ns

dian

te das am

eaças de m

orte, da h

um

ilhação e d

a ind

ignid

ade im

inen

te.

Em

fun

ção disso n

ão cansou

de rep

etir que os sobreviven

tes do h

olocausto

não eram

as autên

ticas testemu

nh

as da Shoah. Fazen

do assim

men

ção

direta àqu

eles que m

orreram corajosam

ente n

os camp

os.

Cito Prim

o Levi sobre esses, as verdad

eiras testemu

nh

as:

1 Este texto é uma versão com

pactada do trabalho apresentado no Seminário Nacional sobre Tortura organizado pela Secre-

taria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e realizado em

maio de 2010, em

Brasília.

2 Psicanalista, professor Doutor do instituto de Psicologia da USP.

Page 32: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.63

An

istia

e to

rtura

.

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

062.

debate

s.

Morreu

Ch

aim, relojoeiro da C

racóvia, judeu

piedoso, que a des-

peito d

as dificu

ldad

es de lin

guagem

se esforçara por m

e enten

der

e por se fazer enten

der, explicando a m

im, estran

geiro, as regras

essenciais de sobrevivên

cia nos prim

eiros dias cruciais de en

car-

ceramen

to; morreu

Szabó, o tacitu

rno cam

ponês h

ún

garo, que, ten

-

do quase dois m

etros de altura, tin

ha m

ais fome do qu

e todos, mas

que, en

quan

to teve forças, não h

esitou em

ajudar os com

panh

eiros

mais fracos a se ergu

erem e segu

irem adian

te; e Robert professor de

Sorbon

ne, qu

e irradiava coragem e con

fiança ao redor de si, falava

cinco lín

guas, se con

sum

ia em registrar tu

do em su

a mem

ória pro-

digiosa, e, caso vivesse, teria respondido aos porqu

ês que eu

não

sei responder; m

orreu B

aruch

, estivador do porto de Livorno, im

e-

diatamen

te, no prim

eiro dia, porque respon

deu com

socos ao pri-

meiro soco qu

e recebera, e foi massacrad

o por três K

apos ju

ntos.

Estes, e inú

meros ou

tros, morreram

não apesar de seu

valor, mas

por causa de seu

valor (p. 47).

O sen

timen

to de d

esvalor encon

tra aqui, im

pression

antem

ente, su

a

vocação mem

orial e política. D

oravante C

haim

, Szabó, R

obert e Baru

ch

serão lembrad

os de form

a envergon

had

a, como tribu

to a ser pago p

elo

seu n

ão apagam

ento e p

ersistência n

o rol dos exem

plos h

um

anos, qu

e

só pod

em ser tran

smitid

os quan

do en

ovelados n

a trama absu

rda on

de

nasceram

.

Para Primo Levi essa reação im

ediata, sem

hesitação, d

iante d

as atro-

cidad

es e cuja con

seqüên

cia fora a aniqu

ilação e a morte, d

eixava os que

sobreviveram n

os camp

os um

a rusga en

vergonh

ada e u

ma m

ácula qu

e se

sup

erpu

nh

a em cam

adas a tod

as as outras atrocid

ades lá vivid

as.

Dessa vergon

ha in

sup

ortável brotava, parad

oxalmen

te e às acotove-

ladas, u

ma n

ova ética, recém in

ventad

a, e que P

rimo Levi d

eu relevo e

tornou

visível. Tratava-se d

a ética da su

stentação d

a mem

ória da vid

a

daqu

eles que se foram

, psiqu

icamen

te destru

ídos e fisicam

ente an

iquila-

dos n

os camp

os, como con

seqüên

cia de su

as ações, atitud

es ou p

alavras

inqu

ebrantáveis. A

mem

ória destes, esqu

ecida e d

estruíd

a pela m

áquin

a

nazista, sobrevivia agora, u

nicam

ente, n

o sentim

ento d

e vergonh

a e ad-

miração rad

ical naqu

eles que sobreviveram

, adm

irand

o-os e, de algu

m

mod

o, desp

rezand

o-se dian

te do qu

e lhes p

arecera tão adm

irável quan

to

inatin

gível.

A d

or da vergon

ha faria existir en

tão os que n

ão estão mais aqu

i, ao

mesm

o temp

o como in

scrição psíqu

ica e histórica p

enosa, fazen

do-se

marca viva e p

aradoxal n

o corpo e n

o psiqu

ismo d

os que sobreviveram

e

que, com

Prim

o Levi, vieram d

epois a testem

un

har seja p

or dever, cu

lpa

ou cren

ça no p

orvir da lin

guagem

.

É verd

ade, p

odem

os nos sen

tir profu

nd

a e inexoravelm

ente en

vergo-

nh

ados d

iante d

aqueles qu

e levaram ao m

ais alto a dign

idad

e do con

cei-

to de vid

a hu

man

a, morren

do em

seu n

ome e p

rodu

zind

o hu

man

idad

e lá

ond

e ela era contin

ua e vorazm

ente an

iquilad

a, porém

, mesm

o aí, a ver-

gonh

a exerce um

a tarefa e se prop

õe como veícu

lo de p

reservação histó-

rica de vid

as que se foram

, e retroage reprod

uzin

do sofrim

ento, m

as tam-

bém d

ignid

ade e m

emória. Foi u

ma, en

tre tantas ou

tras coisas, que com

-

preen

dem

os melh

or com os testem

un

hos sobre a Shoah e os cam

pos d

e

concen

tração e extermín

io. Se n

ão tivermos n

ada m

ais a dar ou

a fazer

dian

te do atroz, n

os resta aind

a nos en

vergonh

ar dian

te daqu

eles que o

fizeram.

A vergon

ha en

tão, nesse caso, seria u

m sen

timen

to decorren

te da

reconstru

ção de u

ma ética forjad

a das ru

ínas d

as experiên

cias limin

ares,

ond

e quase tu

do soçobra n

o sem sen

tido e on

de tod

o sentid

o é absorvido

pela p

ulsão d

e sobrevivência e os im

perativos d

a necessid

ade. A

vergo-

nh

a sentid

a por P

rimo Levi é, p

ortanto, ressu

rgência d

a ética em m

eio ao

esvaziamen

to ativo e à nad

ificação.

Vergon

ha con

fessa, ímp

ar, e que an

seia escand

alosamen

te pelo n

ão

esquecim

ento d

aqueles qu

e não aceitaram

, nem

por u

m in

stante, con

vi-

ver com o aviltam

ento im

posto.

Page 33: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.65

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

064.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

***

Em

maio d

e 2010 assistimos n

o Brasil o ju

lgamen

to, pelo S

up

remo

Tribu

nal Fed

eral, da A

DP

F153 (argüição d

e descu

mp

rimen

to de p

receito

fun

dam

ental 153). N

ovamen

te era a vergonh

a que sen

tíamos en

quan

to

observávamos voto p

or voto a confirm

ação da an

istia aos torturad

ores,

aos assassinos e aos estu

prad

ores por crim

es cometid

os du

rante o p

erío-

do d

a ditad

ura m

ilitar no p

aís.

En

quan

to um

a oportu

nid

ade h

istórica esvaia-se, sentíam

os um

a ou-

tra vergonh

a, pior e estéril, e n

as antíp

odas d

a vergonh

a a que Prim

o Levi

se refere.

Era u

ma vergon

ha in

feliz, em algu

ns m

omen

tos, talvez, auto-p

iedo-

sa (coitado d

e nós e d

os brasileiros) que se arrastava n

a tentativa d

e

recolocar em p

é tud

o o que ru

ía a cada frase, a cad

a argum

ento lógico em

favor do absu

rdo, em

favor de atrocid

ades com

etidas e ain

da p

resentes.

A n

ossa vergonh

a naqu

ele episód

io não cu

mp

ria o pap

el histórico d

e

resgatar em n

ós os desap

arecidos, com

o a vergonh

a a que P

rimo Levi se

referiu; n

em alu

dia a u

m p

ossível orgulh

o recém p

erdid

o dian

te de u

m

novo golp

e em n

ossos anseios d

e justiça.

Nossa vergon

ha su

rgia dian

te da argú

cia, da eloqü

ência e d

a convic-

ção discu

rsiva e legal que torn

ava possível su

gerir de form

a magn

ânim

a

o esquecim

ento d

e atrocidad

es, infâm

ias e destru

ição. Aqu

ilo que já h

a-

víamos visto d

e mod

o fragmen

tário em d

iscursos m

ilitares: ‘não h

ouve

tortura n

o Brasil’, ‘vam

os esquecer o p

assado’, ‘n

ão vamos abrir as feri-

das’, estávam

os testemu

nh

and

o ao vivo e a cores, em red

e nacion

al e em

longo e p

ond

erado d

iscurso ju

rídico em

situação d

e norm

alidad

e dem

o-

crática, amp

arado p

ela mesm

a lógica ded

utiva qu

e parecia se esgotar n

a

mera obed

iência a u

ma lei qu

e, por su

a vez, não aceita ser in

terpretad

a.

Imp

ossível não lem

brar a frase corriqueira qu

e quer im

pu

tar à lei um

caráter iman

ente: ‘E

stamos ap

enas cu

mp

rind

o orden

s.’

Dian

te da ord

em e d

a lei não h

averia o que p

ensar.

Foi certamen

te vergonh

a o que n

os afligia porqu

e desejaríam

os ver-

mo-n

os represen

tados ali p

elos egrégios e sup

remos rep

resentan

tes da

lei, desejaríam

os, também

nós, sairm

os para jan

tar3, e celebrar u

ma in

flexão

histórica em

nosso p

aís que d

aria início a u

m n

ovo marco legal, con

ceitual,

político e su

bjetivo inéd

ito no B

rasil, capaz d

e ilum

inar o p

orvir dos fa-

miliares, d

os desap

arecidos, d

os torturad

os, estup

rados, am

eaçados, p

er-

seguid

os, exilados, m

achu

cados e d

e parte d

a sociedad

e brasileira que

sequer sabe qu

e a ditad

ura m

ilitar existiu n

o Brasil.

Mas n

ão foi assim. Previsível, d

iríamos, m

as também

assustad

or. Sem

surp

resas, mas tam

bém escatológico. C

onsu

mad

o, mas tam

bém lastim

á-

vel. E d

esse teor brotou a n

ossa vergonh

a feita de lástim

a, infâm

ia e

escatologia.

Dian

te da exp

eriência d

o absurd

o, o grand

e, tenaz e u

rgente esforço

era, de n

ovo, discrim

inar-se. D

iferenciar-se d

a ond

a grand

e e pod

erosa

que p

õe fim a tu

do afogan

do a vid

a que, su

bmersa, ain

da existe em

seu

interior. N

ovamen

te era preciso olh

ar no esp

elho e n

ão vermos en

tre os

julgad

ores e nós p

arecença e sem

elhan

ça algum

a, era preciso, p

aradoxal-

men

te, não n

os sentirm

os tão brasileiros e, outra vez, p

rodu

zir heteron

omia

dian

te de u

ma h

egemon

ia vigente e tard

ia que já n

ão dá con

ta de ju

stifi-

car-se e nem

pod

erá du

rar. Assim

como já acon

teceu com

o fim d

o pró-

prio E

stado M

ilitar no B

rasil, pelo trabalh

o de m

uitos qu

e hoje lu

tam p

ela

dem

ocratização tardia d

o país, e d

e outros tan

tos que se foram

sem ja-

mais tê-la exp

erimen

tado.

Tud

o para qu

e tal vergonh

a seja passageira-rú

tila constatação d

e um

a

repetição qu

e oprim

e e que clam

a por seu

s intérp

retes - porqu

e doravan

te

será, como an

tes, a ind

ignação o qu

e contin

uará p

autan

do a agen

da d

o,

3 Em entrevista a Globo New

s, logo após o julgamento da ADPF153, Fábio Konder Com

parato, que advogou contra a extensãoda anistia aos crim

es comuns, portanto contra a anistia aos torturadores, assassinos e estupradores revela que, na noite

imediatam

ente anterior à votação dos ministros do Suprem

o, o Presidente da República convidara todos os ministros do

Supremo para um

jantar em Brasília. Disponível no site: http://video.globo.com

/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1255642-7823-

STF+DECIDE+

QUE+LEI+

DA+ANISTIA+

PERDOA+CRIM

ES+POLITICOS+

DA+DITADURA,00.htm

l

Page 34: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.67

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

066.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

aind

a hegem

ônico, d

esejo de oblívio e d

a aposta n

as estratégias de esqu

e-

cimen

to no B

rasil.

A vergon

ha p

or aqueles qu

e tinh

am tu

do n

as mãos p

ara elevar ao

mais alto os id

eários da h

um

anid

ade d

os hom

ens e op

taram p

or não fazê-

lo, que se n

egaram a assu

mir su

a posição p

aradigm

ática na frágil m

anu

-

tenção d

e ideais d

e eu vin

dou

ros, nu

ma d

emocracia h

esitante, con

trasta

com a vergon

ha d

iante d

aqueles qu

e sem ter coisa algu

ma n

as mãos bar-

ganh

aram a p

rópria vid

a em troca d

e min

utos, segu

nd

os de exp

eriência

saborosa e eterna d

e dign

idad

e e decên

cia ond

e o pen

samen

to e a ação

revelam-se com

o intérp

retes do p

orvir.

A razão p

ela qual n

os opom

os contra a su

bmissão violen

ta e atroz se

enraíza n

um

sentim

ento ético e p

olítico apren

did

o no con

vívio e pau

tado

pela con

vicção de qu

e não p

odem

os aceitar, de m

odo algu

m, con

viver

com assassin

os, ou com

o assassino em

nós, com

o já observara Han

nah

Aren

dt. A

ética que p

ode ser su

stentad

a e que é in

ibidora d

o ato assassino

não se am

para ap

enas n

as leis, hábitos e costu

mes, m

as nu

ma m

atriz

iden

titária que a p

rodu

z e reprod

uz afirm

and

o o que é fu

nd

amen

tal para

que seja p

ossível e desejável viverm

os jun

tos.

Cito H

ann

ah A

rend

t a respeito d

aqueles qu

e decid

iram n

ão partici-

par d

a matan

ça nazista:

O seu

critério, na m

inh

a opinião, era diferen

te: eles se pergun

ta-

vam em

que m

edida ainda seriam

capazes de viver em paz con

sigo

mesm

os dep

ois de terem

cometid

o certos atos; e decid

iram qu

e se-

ria melh

or não fazer n

ada, não porqu

e o mu

ndo en

tão mu

daria

para melh

or, mas sim

plesmen

te porque apen

as nessa con

dição po-

deriam con

tinu

ar a viver consigo m

esmos. A

ssim eles tam

bém op-

tavam por m

orrer quan

do eram obrigados a participar. Em

termos

francos, recu

savam-se a assassin

ar, não tan

to porque ain

da se man

-

tinh

am fiéis ao com

ando ‘n

ão matarás’, m

as porque n

ão estavam

dispostos a viver com assassin

os-eles próprios (p. 107).

A im

pu

nid

ade d

eixa um

rastro de in

decên

cia e um

afeto intran

s-

pon

ível, revelado p

ela ignorân

cia imp

osta pelo recalqu

e. A gravid

ade d

o

esquecim

ento d

a autoria d

o assassinato d

o pai é aqu

ela que faz p

revale-

cer a possibilid

ade d

e assassinatos sem

assassinos. E

, se não h

á assas-

sinos, en

tão não h

ouve assassin

ato, tornan

do, d

esse mod

o, imp

ossível

comp

reend

er o que e com

o nos torn

amos o qu

e somos. E

la se reflete

também

na im

possibilid

ade d

e significar u

ma ação a p

artir de su

a inci-

dên

cia nu

m cam

po e n

um

a conju

ntu

ra política qu

e a defin

e, e a singu

la-

rizar a ação do h

omem

como m

anifestação p

olítica por excelên

cia.

A im

pu

nid

ade p

reserva a atmosfera tu

rva que p

ermite afirm

ar que

todos som

os culp

ados, qu

e significa o m

esmo qu

e afirmar qu

e nin

guém

é

culp

ado. (A

rend

t, p.83).

A p

roximid

ade d

a senten

ça da C

orte Interam

ericana d

e Direitos H

u-

man

os, sobre o desap

arecimen

to forçado d

e dezen

as de m

ilitantes p

olíti-

cos du

rante o regim

e militar, p

oderá trazer d

e volta um

instru

men

to jurí-

dico qu

e reabra o debate sobre a n

ecessidad

e de d

iferenciar, d

iscrimin

ar

e apresen

tar, claramen

te e sem véu

s, aqueles qu

e protagon

izaram u

m d

os

períod

os mais vexam

inosos d

a história d

o país.

A an

istia amp

la, geral e irrestrita jamais p

ode ser in

discrim

inad

a,

ind

iferenciad

a e totalitária e ela só será um

instru

men

to pod

eroso na con

-

solidação d

a dem

ocracia se contribu

ir para d

etermin

ar e defin

ir culp

as e

respon

sabilidad

es aos que im

aginaram

pod

er usu

fruir d

os benefícios d

a

dem

ocracia enqu

anto d

edicavam

suas vid

as a atentar barbaram

ente con

-

tra ela.

Re

ferê

nc

ias b

iblio

grá

fica

s

ARENDT, H. Julgamento e Responsabilidade. São Paulo: Com

panhia das Letras, 2004.

LEVI, P. Afogados e Sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

Page 35: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.69

temátic

a.

En

trevis

ta c

om

Alfre

do

Je

rusa

linsk

y:D

oze

pe

rgu

nta

s s

ob

re o

infe

rno

1

Po

r: Márc

ia J

ung

es e

Mario

Co

rso

IHU

On

-Lin

e –

Do p

onto d

e vista da p

sicanálise, d

e que form

a pod

e-

mos com

preen

der o lad

o oculto d

o ser hu

man

o, o mal qu

e é contid

o a

du

ras pen

as e que floresce em

ocasiões como o H

olocausto e n

as ditad

u-

ras sangren

tas da A

mérica Latin

a, por exem

plo?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – A

civilização nasce p

or um

pacto d

e não agres-

são entre os irm

ãos que assassin

aram o p

ai da h

orda p

rimitiva, estabele-

cend

o regras para a circu

lação das fêm

eas. Se, a p

artir desse ato, a vigília

da fratria p

assou a ser u

m p

ouco m

ais tranqu

ila, doravan

te os sonh

os

daqu

eles hom

ens p

rimitivos ficaram

bem m

ais agitados: o p

ai morto, ora

transform

ado n

um

agressor intan

gível, retornava n

aqueles d

esde as som

-

1 Publicada na IHU (Instituto Humanitas Unisinos) on-line em

29/03/2010, n. 323, Ano X e na seção notícias do mesm

operiódico em

30/03/2010.

Page 36: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.71

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

070.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

bras imagin

árias. Hom

enagen

s, rituais, sacrifícios, au

toflagelações, cerimô-

nias e oferen

das foram

inven

tadas p

ara apazigu

ar sua fú

ria e acalmar su

as

vingan

ças. Em

todas as religiões, os d

euses, em

algum

mom

ento, sofrem

um

a ofensa, e os h

omen

s, causad

ores dela, torn

am-se cu

lpad

os e mere-

cedores d

e castigo e constran

gimen

to. Perdas, p

rivações e sofrimen

tos re-

presen

tam o p

oder d

esses deu

ses assim com

o suas d

ádivas e p

remiações.

Cap

azes de im

por as d

ores mais atrozes e os p

razeres mais alm

ejados, é, n

o

mín

imo, cu

rioso o quan

to os deu

ses das m

ais diversas cu

lturas p

ossuem

as mesm

as paixões qu

e caracterizam os h

um

anos. Por isso, sem

pre ficou

tão fácil estabelecer represen

tantes d

os deu

ses na Terra, e ju

stificar os atos

desses rep

resentan

tes como in

termed

iários das von

tades d

e Deu

s. O E

sta-

do n

asce como rep

resentan

te desse G

rand

e Ou

tro, Pai onírico p

leno d

e au-

toridad

e porqu

e lhe d

evemos a vid

a. Não a n

ossa, mas a d

ele (leve-se em

conta qu

e qualqu

er Estad

o se consid

era no d

ireito de exigir d

e seus cid

a-

dãos qu

e defen

dam

sua existên

cia aind

a ao custo d

e suas vid

as). Esta

estrutu

ra incon

sciente d

e características paran

óicas que d

efine o m

odo d

o

laço social civilizado facilita, n

aqueles qu

e acedem

a posições d

e pod

er, o

desd

obramen

to de d

elírios messiân

icos e a obediên

cia cega de seu

s co-

man

dad

os. A p

osição messiân

ica torna o su

jeito em qu

estão represen

tante

da ú

nica versão p

ossível do bem

. Portanto, p

ara ele, toda e qu

alquer d

ife-

rença qu

e seja meram

ente en

un

ciada con

stitui u

m m

al radical qu

e deve

ser extirpad

o. Tal a posição d

o Füh

rer Ad

olf Hitler n

a Alem

anh

a, e do Pre-

siden

te Gen

eral Rafael V

idela n

a Argen

tina, ou

de P

inoch

et no C

hile.

IHU

On

-Lin

e – Por que o ser humano faz o M

al, se é capaz de fazer o bem?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – S

ua p

ergun

ta sup

õe que saibam

os o que é o

Bem

para o ou

tro quan

do, em

verdad

e, talvez sejamos ap

enas cap

azes de

intu

ir o que p

oderia ser o M

al para ele. Q

uan

do u

m su

jeito não se faz

respon

sável das con

sequên

cias que seu

s atos têm p

ara seus sem

elhan

tes,

está aband

onan

do o terren

o da ética. Q

uan

do aban

don

a esse terreno, ele

se transform

a nu

m “an

alfabeto radical”. N

ão se trata de n

ão saber ler os

grafismos d

e um

a escrita, mas d

e não saber ler as d

iferentes sign

ificações

das letras qu

e marcam

os corpos e as vid

as de cad

a um

. O totalitarism

o lê

as ideias, os sen

timen

tos e as histórias d

e cada u

m com

o se fossem tod

os

iguais ou

, se assim n

ão fossem, d

evessem sê-lo. O

s tiranos, em

verdad

e,

não leem

, eles repetem

semp

re o mesm

o texto, fingin

do qu

e estão lend

o.

Essa é a form

a mais rad

ical, extensa e p

rofun

da d

e fazer o Mal.

IHU

On

-Lin

e – Com

o é possível lid

ar com a m

emória sem

que essa se

converta em

vingan

ça ou revan

chism

o?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – Q

uan

do, n

o século X

IX, a R

ainh

a Vitória d

e

Inglaterra d

obrou o valor p

ago pela colh

eita aos latifun

diários d

a Irland

a,

provocou

três consequ

ências: a p

rimeira foi a alian

ça da aristocracia ir-

land

esa com os in

teresses da coroa sobre as Ilh

as Britân

icas, a segun

da

foi a morte p

or fome d

e mais d

e dois m

ilhões d

e irland

eses porqu

e todos

os alimen

tos foram ven

did

os à Inglaterra d

evido às van

tagens n

os preços,

e a terceira foi o nascim

ento d

o IRA

(o Exército R

evolucion

ário Irland

ês).

Será qu

e a Rain

ha V

itória pen

sou qu

e estava apen

as fazend

o um

bom

negócio? Q

uan

do o p

ovo alemão viu

desap

arecer de su

as cidad

es três

milh

ões de ju

deu

s, suas lojas d

evastadas, su

as casas saquead

as, seu d

i-

nh

eiro confiscad

o, seu alim

ento su

cateado, arriad

os como gad

o pelas ru

as,

discrim

inad

os com a m

arca visível que os id

entificava com

o um

a classe

sem d

ireitos, aqueles qu

e até meia h

ora atrás eram seu

s vizinh

os, o povo

alemão p

ensou

que esses, seu

s vizinh

os, estavam p

artind

o para u

ma via-

gem d

e férias? Qu

and

o os povos qu

e se enriqu

eceram com

a exploração

dos escravos african

os declararam

a abolição, deixan

do a p

opu

lação ne-

gra em liberd

ade d

e gozar plen

amen

te de seu

desem

prego, d

a falta de

morad

ia, da d

ispersão d

e suas fam

ílias, de seu

analfabetism

o longam

ente

cultivad

o pelos seu

s patrões, d

a degrad

ação de su

a cultu

ra originária, d

o

apagam

ento d

e suas raízes, d

a cond

ição de cid

adãos d

e segun

da classe,

esses povos p

ensaram

que estavam

fazend

o justiça e qu

e tud

o se resum

ia

em qu

e prevalecessem

os bons sen

timen

tos?

Page 37: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.73

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

072.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

IHU

On

-Lin

e – Q

uan

do a m

emória im

plica carregar u

ma série d

e

lugares vazios a seu

lado d

uran

te a vida tod

a, exigir o castigo dos au

tores

desses vazios sign

ifica vingan

ça ou revan

chism

o?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – O

ún

ico mod

o de ap

agar o desejo d

e vingan

ça

é que d

esapareça p

or comp

leto qualqu

er vestígio do sistem

a de p

oder qu

e

causou

e legitimou

esses crimes, qu

e o povo qu

e foi cúm

plice castigu

e e

repu

die d

efinitivam

ente seu

s autores, e n

ão mais os m

anten

ha sob u

ma

auréola d

e heróis in

justiçad

os, acaçapad

os na esp

era de u

ma brech

a para

ocup

ar novam

ente algu

m lu

gar na h

istória.

IHU

On

-Lin

e – A

vingan

ça é reden

tora? Por que razão o ser h

um

ano

se vinga?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – A

meu

ver, defin

ir o que é red

entor a p

riori

equivale a garan

tir que seu

crime será p

erdoad

o. Dito d

e outro m

odo, é

um

a figura cín

ica. Nem

a vingan

ça nem

o perd

ão, portan

to, são, a priori,

reden

tores. As razões d

a vingan

ça são variadas (p

agar a dívid

a com a

vítima am

ada, m

edir forças com

o agressor, devolver o m

al para qu

em o

causou

etc.), mas, d

e um

mod

o geral, toda vin

gança obed

ece ao desejo d

e

escapar d

a angú

stia de im

potên

cia que a con

dição d

e vítima im

põe. A

s-

sim são atores d

a vingan

ça não som

ente aqu

eles que ficaram

como víti-

mas reais, m

as também

os que se id

entificam

com elas.

IHU

On

-Lin

e – O

recente film

e Bastard

os Inglórios abord

a o nazism

o

por u

m ân

gulo ím

par, afin

al, trata-se de u

ma fan

tasia de vin

gança, ou

pelo m

enos d

e um

a revanch

e. Com

o o senh

or acredita qu

e esse filme p

ode

ajud

ar quem

foi vítima d

a barbárie nazista? N

ão seria simp

lesmen

te estar

do ou

tro lado d

a violência, id

entificad

o com os agressores?

Alfre

do

Jeru

salin

sky

– Os livros n

os perm

item viven

ciar situações

que n

un

ca vivemos e qu

e, bem p

rovavelmen

te, nu

nca viverem

os. Eles

nos p

oup

am d

e cometer certos atos p

orque n

os oferecem o gozo d

e

imagin

á-los. Os film

es são um

a forma atu

alizada d

e volum

osos livros

belamen

te ilustrad

os. É a d

iferença en

tre a fantasia e o ato, en

tre o real

e a ficção. Os film

es, como os livros, p

odem

mostrar a realid

ade sem

realizá-la. Por meio d

a ficção, elaboramos o ód

io e o amor qu

e as coisas

nos cau

sam, an

tecipam

os as consequ

ências d

e nossos atos. B

astardos

inglórios é u

m film

e, e não u

ma vin

gança. Por ou

tro lado, esse film

e não

prop

õe um

a iden

tificação com o agressor: em

nen

hu

ma exp

ressão desse

filme se vislu

mbra qu

alquer p

roposta d

e extermín

io em m

assa do p

ovo

alemão.

IHU

On

-Lin

e – Esse film

e faz parte d

e um

a série, afinal são in

úm

eras

prod

uções recen

tes sobre o nazism

o, como, p

or exemp

lo, O M

enin

o do

Pijam

a Listado, O

Leitor, A O

nd

a, Um

Hom

em B

om. O

nazism

o não teria

se tornad

o um

parad

igma d

o Mal, com

isso ind

o além d

os povos en

volvi-

dos, e talvez p

or isso haja tan

tos filmes, com

o um

a man

eira de cu

rar o

traum

a de u

ma ferid

a de tod

o o Ocid

ente?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – S

e há algo qu

e a Mod

ernid

ade n

ão esperava

do p

rogresso burgu

ês era precisam

ente o efeito n

azi-fascista da rivalid

a-

de cap

italista. Poderíam

os dizer qu

e o mu

nd

o todo se su

rpreen

deu

com

isso, embora K

arl Marx já o tivesse an

tecipad

o de algu

m m

odo em

O C

a-

pital acerca d

os efeitos racistas da op

osição comp

etitiva entre cap

itais

iden

tificados com

as fronteiras n

acionais. D

esde esse p

onto d

e vista, po-

deríam

os dizer qu

e se fosse situad

a hoje a S

egun

da G

uerra M

un

dial, ela

seria um

anacron

ismo. A

ferida cau

sada p

ela barbárie nazi-fascista (n

ão

devem

os esquecer o exterm

ínio d

a esquerd

a e da in

telectualid

ade esp

a-

nh

ola e italiana) n

ão é somen

te um

a ferida n

os sentim

entos h

um

anísticos,

mas u

ma p

rofun

da ferid

a na con

fiança d

a hu

man

idad

e nos id

eais da

mod

ernid

ade qu

e nos d

eixa comp

letamen

te insegu

ros no qu

e se refere a

nosso fu

turo m

ais próxim

o. Todos esses film

es que você m

encion

a têm

um

a particu

laridad

e: mostram

-nos qu

e o pior p

ode se d

esenvolver bem

ao nosso lad

o, e nós, em

bora o vejamos, fazem

os um

tremen

do esforço

para im

postar o p

apel d

e cegos.

Page 38: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.75

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

074.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

IHU

On

-Lin

e – E

ssa profu

são de film

es não reforçaria a id

entid

ade

de vítim

a de qu

em sofreu

com o H

olocausto ou

a guerra?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – A

s vítimas d

as quais estam

os faland

o, ou seja,

as que o foram

ou ain

da o são, d

e atos de barbárie p

olítica, preferem

, é

claro, que seu

calvário não seja esqu

ecido, p

orque se o fosse, seu

sofri-

men

to teria sido em

vão: a hu

man

idad

e não teria ap

rend

ido n

ada com

isso. Esse seria seu

pior d

estino. O

s filmes qu

e contribu

em a lem

brar es-

ses calvários mostram

para essas vítim

as que os sofrim

entos e m

aus tra-

tos que p

adeceram

desp

ertaram m

aiores desejos d

e justiça, e isso lh

es

devolve algo d

a dign

idad

e que seu

s carrascos lhes arran

caram. Por ou

tro

lado, algu

ém qu

e estabelece um

a iden

tidad

e de vítim

a, ou bem

vive in-

cessantem

ente su

a tragédia sem

consegu

ir desp

rend

er-se dela, ou

bem se

transform

a nu

m farsan

te queixoso qu

e tenta obter p

rivilégios em fu

nção

da tragéd

ia que o vitim

ou. E

m qu

alquer u

m d

esses dois casos, trata-se d

e

um

a cond

ição psíqu

ica doen

te.

IHU

On

-Lin

e – N

o caso da d

itadu

ra na A

rgentin

a, como p

oderíam

os

relacionar o m

al, a vingan

ça e a mem

ória?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – N

em D

eus con

segue p

erdoar o d

iabo.

IHU

On

-Lin

e – O sen

hor faz p

arte de u

ma geração qu

e, em seu

país,

foi mu

tilada, qu

and

o a maior p

arte da in

telectualid

ade argen

tina foi su

-

prim

ida. Pessoalm

ente, com

o se sente em

relação a essas perd

as? E com

o

o país reagiu

a esses fatos?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – Q

uan

do p

asso por u

m café d

e Bu

enos A

ires,

vejo meu

s amigos qu

e não estão sen

tados aí. Q

uan

do m

e convid

am a d

ar

um

a aula n

a Un

iversidad

e de B

uen

os Aires, d

e repen

te, encon

tro-me com

um

sobrevivente ou

com u

m exilad

o que retorn

ou, n

os abraçamos, olh

a-

mos em

volta e vemos qu

e os jovens estão esp

erand

o que com

ecemos a

dar n

ossa aula. C

omeçam

os a falar para os joven

s, e, sem qu

e eles o sai-

bam, tam

bém falam

os para essa geração (a n

ossa) ausen

te e congelad

a no

meio d

a sala como u

m p

uro fan

tasma. O

país p

erdeu

o ritmo d

e seu d

e-

senvolvim

ento, o fio d

e sua p

rodu

ção científica e cu

ltural d

uran

te du

as

décad

as, embora a extraord

inária coragem

e tenacid

ade d

a intelectu

a-

lidad

e argentin

a consegu

iu m

anter ocu

ltas e protegid

as as bases e fun

da-

men

tos de su

a prod

ução qu

e, ao términ

o da d

itadu

ra, soube u

nir os m

ais

jovens, gestan

do u

m verd

adeiro ren

ascimen

to. Isso se percebe n

a ciência,

na literatu

ra, no teatro e n

o cinem

a argentin

o, nas su

as expressões m

ais

recentes.

IHU

On

-Lin

e – Com

o é possível m

anter a m

emória viva d

e fatos trau-

máticos com

o esse sem p

erpetu

ar um

sofrimen

to nos qu

e sobreviveram?

Nesses casos, o qu

e não d

eve ser esquecid

o?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – M

anter viva a m

emória d

os que su

cum

biram

sob a brutalid

ade d

a ditad

ura é o m

ínim

o que lh

es devem

os. Não d

eve ser

esquecid

a a dign

idad

e com qu

e lutaram

por u

m id

eal de ju

stiça e liberda-

de, e tam

pou

co deve ser esqu

ecido qu

em fez d

e cada cid

adão u

m in

imigo.

IHU

On

-Lin

e – A

credita qu

e existe perd

ão, nu

m sen

tido d

e reconcili-

ação nacion

al, ou o q

ue acon

tece apen

as é um

esfriamen

to, um

distan

ciamen

to dos fatos?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – É

possível se recon

ciliar com u

m tortu

rador?

Em

que con

sistiria um

a reconciliação n

acional com

aquele qu

e vend

eu

literalmen

te a nação, com

o Carlos M

enem

, por exem

plo, ou

Martín

ez de

Hoz qu

e destru

iu su

a econom

ia? Pode se p

erdoar algu

ém com

o o Alm

i-

rante M

assera – integran

te da Ju

nta M

ilitar com R

afael Vid

ela e Agosti –

que tran

sformou

a Escu

ela de M

ecánica d

e La Arm

ada n

um

camp

o de

concen

tração e tortura, qu

e criou o en

genh

oso métod

o de soltar p

risio-

neiros vivos sobre o ocean

o desd

e aviões e helicóp

teros e que sequ

estrou

e orden

ou sequ

estrar dezen

as de crian

ças, filhos d

e prision

eiros, privan

-

do-os d

e suas relações e d

e suas id

entid

ades fam

iliares? Con

fesso que

Page 39: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.77

temátic

a.

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

076.

tem

átic

a.

não con

sigo imagin

ar em qu

e consistiria tal p

erdão, tais recon

ciliações.

Tenh

o certeza de qu

e comp

artilho com

a imen

sa maior p

arte do p

ovo

argentin

o essa dificu

ldad

e. Sim

, um

esfriamen

to. O qu

e ocorre é que as

pessoas qu

e passam

por isso, e sobrevivem

, inevitavelm

ente m

orrerão. E,

sem d

úvid

a, os sentim

entos d

os mortos são bem

mais frios qu

e os dos

vivos.IHU

On

-Lin

e – Q

uan

do as p

essoas, especialm

ente os fam

iliares dos

mortos e d

esaparecid

os, ped

em esclarecim

entos, m

ais inform

ações, mo-

vem p

rocessos e clamam

por ju

stiça, às vezes, isso é interp

retado com

o

revanch

ismo, com

o um

a forma d

e vingan

ça. Qu

al é a sua p

ercepção so-

bre isso?

Alfre

do

Jeru

salin

sky – N

un

ca se viu u

ma “M

adre d

e Plaza d

e Mayo”

ou u

ma “A

buela”, ou

aind

a qualqu

er familiar d

e desap

arecido exigir qu

e

raptassem

ou fizessem

desap

arecer o filho, n

eto ou p

arente d

e qualqu

er

delin

quen

te das forças p

oliciais, nem

tamp

ouco qu

e torturassem

um

torturad

or. Isso eviden

cia que n

ão se trata nem

de vin

gança, n

em d

e

revanch

ismo. T

rata-se, sim, d

a imp

eriosa necessid

ade d

e preen

cher em

parte o cru

el vazio que, d

uran

te décad

as, deixou

o familiar d

esaparecid

o,

com o agravan

te de qu

e se sabia que algu

ém sabia on

de estava, ou

qual

tinh

a sido seu

destin

o. A n

egativa a fornecer essa in

formação n

ão protege

nen

hu

ma segu

rança d

e Estad

o (que am

eaça pod

e represen

tar um

a mãe

desesp

erada ou

um

a ossada in

erte?), mas con

siste nu

ma estratégia d

e

terror e esmagam

ento em

ocional d

a pop

ulação op

osta à ditad

ura p

or

meio d

e táticas de cru

eldad

e psicológica. Q

ue se in

forme sobre o d

estino

dos cid

adãos, qu

e a lei se apliqu

e sobre o delin

quen

te qualqu

er que seja

sua con

dição ou

classe, que os d

ireitos hu

man

os sejam resp

eitados, é o

mín

imo qu

e qualqu

er habitan

te de u

m p

aís civilizado n

ão somen

te pod

e

ped

ir, mas qu

e deve exigir.

To

rtura

e s

into

ma

so

cia

l1

Maria

Rita

Kehl

Em

um

livro escrito em 2004, eu

me referi ao ressen

timen

to como

um

dos sin

tomas m

ais represen

tativos da relação am

bivalente d

a socie-

dad

e brasileira com os p

oderes qu

e, em tese, d

everiam rep

resentar e d

e-

fend

er interesses coletivos. Fru

to dos abu

sos históricos qu

e aparen

temen

-

te “perd

oamos” sem

exigir que op

ressores e agressores ped

issem p

erdão e

reparassem

os dan

os causad

os, o ressentim

ento in

stalou-se n

a sociedad

e

brasileira como form

a de “revolta p

assiva” (Bou

rdieu

) ou “vin

gança ad

ia-

da” (N

ietzsche), a sin

alizar um

a covarde cu

mp

licidad

e dos ofen

did

os e

oprim

idos com

seus ofen

sores/opressores. A

mágoa “irrep

arável” do res-

sentid

o ind

ica que ele sabe, m

as não qu

er saber, que aceitou

se colocar

em u

ma con

dição p

assiva dian

te dos abu

sos do m

ais forte; por covard

ia,

1 Texto publicado no livro organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle. O que resta da ditadura, Editora Boitem

po, SãoPaulo, 2010.

Page 40: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.79

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

078.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

por cálcu

lo (“mais tard

e ele há d

e reconh

ecer e prem

iar meu

sacrifício”)

ou p

or imp

otência au

to-imp

osta, o ressentid

o acaba por se revelar cú

m-

plice d

o agravo que o vitim

ou.

É im

portan

te ressaltar, entretan

to, que o ressen

timen

to não abate

aqueles qu

e foram d

errotados n

a luta e n

o enfren

tamen

to com o op

ressor,

e sim os qu

e recuaram

sem lu

tar e perd

oaram sem

exigir reparação. O

exped

iente corriqu

eiro – por m

á fé ou m

al enten

did

o? – de ch

amar d

e

“ressentid

os” aqueles qu

e não d

esistiram d

e lutar p

or seus d

ireitos, e pela

reparação d

e inju

stiças sofridas, n

ão passa d

e um

a forma d

e desqu

alifi-

car a luta p

olítica em n

ome d

e um

a paz social im

posta d

e cima p

ara

baixo. Nossa trad

icional cord

ialidad

e, no sen

tido qu

e Sérgio B

uarqu

e de

Hollan

da tom

ou em

prestad

o de R

ibeiro Cou

to, obscurece a lu

ta de clas-

ses e desvirtu

a a gravidad

e dos con

flitos desd

e o períod

o colonial.

No qu

e toca à relação do ressen

timen

to com o tem

a deste sim

pósio,

vale lembrar qu

e, no fin

al da d

écada d

e 1970, o Brasil foi o ú

nico p

aís da

Am

érica Latina qu

e “perd

oou” os m

ilitares sem exigir p

or parte d

eles nem

reconh

ecimen

to dos crim

es cometid

os nem

ped

ido d

e perd

ão. Não m

e

prop

onh

o aqui a d

iscutir as con

dições d

a anistia “am

pla, geral e irrestrita”

articulad

a pelos m

ilitares antes d

e deixar o p

oder – d

eixo essa tarefa para

palestran

tes mais com

peten

tes no assu

nto. M

as me esp

anta qu

e na atu

a-

lidad

e, quan

do o M

inistro Tarso G

enro e o S

ecretário de D

ireitos Hu

ma-

nos Pau

lo Van

nu

cchi p

ropõem

a reabertura d

o debate sobre a tortu

ra

no p

eríodo m

ilitar, o engajam

ento d

a sociedad

e no d

ebate me p

areça

tíbio – sobretud

o em com

paração com

a violenta reação d

e algun

s seto-

res militares.

O “esqu

ecimen

to” da tortu

ra prod

uz, a m

eu ver, a n

aturalização d

a

violência com

o grave sintom

a social, no B

rasil. Sou

be pelo p

rofessor Pau-

lo Aran

tes, aqui p

resente, qu

e a polícia brasileira é a ú

nica n

a Am

érica

Latina qu

e comete m

ais assassinatos e crim

es de tortu

ra na atu

alidad

e do

que d

uran

te o períod

o da d

itadu

ra militar. A

imp

un

idad

e não p

rodu

z

apen

as a repetição d

a barbárie: tend

e a provocar u

ma sin

istra escalada d

e

práticas abu

sivas por p

arte dos p

oderes p

úblicos qu

e deveriam

proteger

os cidad

ãos e garantir a p

az.

Para a psican

álise, o esquecim

ento qu

e prod

uz sin

toma n

ão é da

mesm

a ordem

de u

ma p

erda circu

nstan

cial da m

emória p

ré-conscien

te:

é da ord

em d

o recalque. S

omos en

tão obrigados a n

os ind

agar se é possí-

vel se falar em u

m in

conscien

te social cujas rep

resentações recalcad

as

prod

uzem

man

ifestações sintom

áticas.

A id

éia de sin

toma social é con

troversa na p

sicanálise. A

sociedad

e

não p

ode ser an

alisada d

o mesm

o mod

o que u

m su

jeito; por ou

tro lado, o

sintom

a social não tem

outra exp

ressão senão aqu

ela dos su

jeitos que

sofrem e m

anifestam

, singu

larmen

te ou em

grup

o, os efeitos do d

esco-

nh

ecimen

to da cau

sa de seu

sofrimen

to. O sin

toma social se m

anifesta

através de p

ráticas e discu

rsos que se au

tomatizam

, ind

epen

den

tes das

estrutu

ras psíqu

icas singu

lares de cad

a um

de seu

s agentes. A

ssim com

o

ocorre quan

do o sin

toma in

divid

ual se cron

ifica sem tratam

ento, tam

-

bém o sin

toma social ten

de a se agravar com

o passar d

o temp

o.

É p

ossível afirmar qu

e todo agru

pam

ento social p

adece, d

e algum

a

forma, d

os efeitos de su

a próp

ria incon

sciência. S

ão “incon

scientes”, em

um

a sociedad

e, tanto as p

assagens d

e sua h

istória relegadas ao esqu

eci-

men

to – por efeito d

e proibições exp

lícitas ou d

e jogos de con

veniên

cia

não d

eclarados – qu

anto as d

eman

das silen

ciadas d

e min

orias, cujos

anseios n

ão encon

tram m

eios de se exp

ressar. Exclu

ído d

as possibilid

a-

des d

e simbolização, o m

al estar silenciad

o acaba por se m

anifestar em

atos que d

evem ser d

ecifrados d

e man

eira análoga aos sin

tomas d

os que

buscam

a clínica p

sicanalítica. M

as mesm

o os sintom

as relatados u

m a

um

nos con

sultórios d

os psican

alistas são mu

ito men

os ind

ividu

ais do

que se p

ode su

por. Lacan

, em “Fu

nção e cam

po d

a palavra...” escreve qu

e

a originalid

ade d

o métod

o psican

alítico está em abord

ar não o in

divíd

uo,

mas o “cam

po d

a realidade transin

dividual do su

jeito” (...) “O in

cons-

ciente é aqu

ela parte d

o discu

rso concreto en

quan

to transin

divid

ual qu

e

Page 41: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.81

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

080.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

não está à d

isposição d

o sujeito p

ara restabelecer a contin

uid

ade d

e seu

discu

rso conscien

te2.”

Por que as form

ações do in

conscien

te ultrap

assam a exp

eriência d

ita

ind

ividu

al do su

jeito? Porque o su

jeito não é u

m in

divíd

uo, n

o sentid

o

radical d

a palav

ra; é div

idid

o desd

e sua origem

a partir d

e seu

perten

cimen

to a um

camp

o simbólico, cu

ja susten

tação é necessariam

ente

coletiva. As form

ações do in

conscien

te, como fen

ômen

os de lin

guagem

,

são tributárias d

a estrutu

ra deste órgão coletivo, p

úblico e sim

bólico que

é a língu

a em su

as diferen

tes formas d

e uso. “N

a persp

ectiva analítica”,

escreve Marie-H

élène B

rousse

3, “a oposição in

divid

ual/coletivo n

ão é vá-

lida, e o d

esejo que o su

jeito visa a decifrar é sem

pre o d

esejo do O

utro

”.

No Sem

inário 14 (A

lógica do fantasm

a), Lacan rad

icalizou esta relação

ao prop

or a fórmu

la “o incon

sciente é a p

olítica4”.

Toda “realid

ade” (social) p

rodu

z, autom

aticamen

te, um

a espécie d

e

“un

iverso paralelo”: o acervo d

e experiên

cias não in

cluíd

as nas p

ráticas

falantes. E

xperiên

cias loucas, d

esviantes, p

roscritas ou sim

plesm

ente

doen

tias. Pois mesm

o aquilo qu

e temos d

e mais sin

gular, o m

odo d

e cada

um

pad

ecer e adoecer, n

em sem

pre p

ertence exclu

sivamen

te a nós. Por

vezes a doen

ça, sobretud

o a cham

ada d

oença m

ental, n

ão passa d

e um

fragmen

to do R

eal, um

ped

aço excluíd

o da cu

ltura – e o d

oente é seu

“ca-

valo”, como se d

iz no can

dom

blé. O d

oente é o lu

gar (social) ond

e a doen

ça

encon

trou u

ma brech

a para se m

anifestar. N

ietzsche acertou

ao afirmar

que a d

oença in

stitui u

m p

onto d

e vista privilegiad

o sobre a realidad

e.

Neste “u

niverso p

aralelo” das exp

eriências n

ão comp

artilhad

as pela

coletividad

e, experiên

cias excluíd

as das p

ráticas falantes e (con

sequen

-

temen

te) da m

emória, vivem

também

, pelo m

enos p

arcialmen

te, os que

tiveram seu

s corpos tortu

rados n

os subterrân

eos da ord

em sim

bólica ou

sofreram a p

erda d

e amigos e p

arentes d

esaparecid

os, vítimas d

e assassi-

natos n

un

ca reconh

ecidos com

o tais por agen

tes de regim

es autoritários.

No B

rasil, os opositores d

o regime m

ilitar que sobreviveram

à tortura,

embora circu

lem n

ormalm

ente en

tre nós, vivem

em u

m u

niverso à p

arte

não ap

enas em

fun

ção da rad

icalidad

e da d

or e da d

esperson

alização que

experim

entaram

, mas tam

bém p

orque as p

ráticas infam

es dos tortu

rado-

res nu

nca foram

reconh

ecidas e rep

aradas p

ublicam

ente. A

sensação d

e

irrealidade que acom

ete aqueles qu

e passaram

por form

as extremas d

e

sofrimen

to – como n

o caso dos egressos d

e camp

os de con

centração –

fica então com

o que con

firmada p

ela ind

iferença d

os que se recu

sam a

testemu

nh

ar o traum

a.

Sabem

os que n

em tu

do d

o Real p

ode ser d

ito; o que a lin

guagem

diz,

defin

e necessariam

ente u

m resto qu

e ela deixa d

e dizer. O

recorte que a

lingu

agem op

era sobre o Real, p

ela próp

ria defin

ição de recorte, d

eixa um

resto – resto de gozo, resto d

e pu

lsão – semp

re por sim

bolizar. Nisto con

-

siste o caráter irredu

tível do qu

e a psican

álise cham

a de p

ulsão d

e morte.

Não h

á reação mais n

efasta dian

te de u

m trau

ma social d

o que a p

olítica

do silên

cio e do esqu

ecimen

to, que em

pu

rra para fora d

os limites d

a

simbolização as p

iores passagen

s da h

istória de u

ma socied

ade. S

e o trau-

ma, p

or sua p

rópria d

efinição d

e Real n

ão simbolizad

o, prod

uz efeitos

sintom

áticos de rep

etição, as tentativas d

e esquecer os even

tos traum

áti-

cos coletivos resultam

em sin

toma social. Q

uan

do u

ma socied

ade n

ão

consegu

e elaborar os efeitos de u

m trau

ma e op

ta por ten

tar apagar a

mem

ória do even

to traum

ático, este simu

lacro de recalqu

e coletivo tend

e

a prod

uzir rep

etições sinistras.

Silê

nc

io, e

sq

ue

cim

en

to e

rep

etiç

ão

O qu

e acontece qu

and

o um

a sociedad

e adm

ite, na p

rática, formas

atrozes de u

m gozo qu

e não p

ode ser n

omead

o, reconh

ecido e barrad

o

pela Lei qu

e rege a vida p

ública? Q

uais os efeitos d

os restos desse gozo e

2 Jaques Lacan, “Função e campo da palavra e da linguagem

em psicanálise” (1953) em

: Escritos vol.1. Madri/M

éxico, SigloVeintiuno, 1994, tradução de Tom

ás Segovia, pp.227-310, à p. 248.

3 Marie Hélène Brousse, O inconsciente é a política. Sem

inário Internacional da Escola Brasileira de Psicanálise – SP, 2003.Conferência 1, “O analista e o político”, p. 17.

4 Jacques Lacan, O seminário n. 14, A lógica do fantasm

a.

Page 42: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.83

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

082.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

do torm

ento qu

e a ele correspon

de, qu

and

o ambos são con

den

ados a p

er-

man

ecer como d

ejetos do sim

bólico?

Em

prim

eiro lugar, é im

portan

te observar que as vítim

as dos abu

sos

da d

itadu

ra militar n

o Brasil n

un

ca se recusaram

a elaborar pu

blicamen

-

te seu trau

ma. N

os últim

os trinta an

os, não faltaram

iniciativas d

e deba-

ter o períod

o 1964-1979 nas u

niversid

ades e em

outros esp

aços pú

blicos,

assim com

o não faltaram

textos de reflexão, d

enú

ncia e/ou

resgate da

mem

ória, de au

toria de sobreviven

tes da lu

ta armad

a, de p

arentes d

e de-

saparecid

os e das p

róprias vítim

as de abu

sos sofridos n

os porões d

o regi-

me. N

o cinem

a, a décad

a de 1980 viu

surgir os p

rimeiros film

es de crítica

ao períod

o militar, com

o o corajoso Prá frente, B

rasil, de M

iguel Farias Jr.,

ou a atu

alização cinem

atográfica da p

eça de G

uarn

ieri, Eles n

ão usam

black-tie, a fim d

e termin

ar com o assassin

ato do op

erário San

to Dias em

SP. N

os últim

os vinte an

os, tivemos u

ma p

rodu

ção expressiva d

e filmes

que levaram

para u

m p

úblico m

ais nu

meroso d

o que o d

os leitores de

livros e frequen

tadores d

e debates, h

istórias de joven

s que resistiram

à

ditad

ura, d

e suas (p

oucas) vitórias e m

uitas d

errotas, com cen

as violen-

tas retratand

o a tortura e o assassin

ato de m

uitos h

eróis brasileiros da-

quele p

eríodo.

Ou

seja: os opositores d

a ditad

ura m

ilitar, vitimad

os ou n

ão pela

prática corren

te da tortu

ra, não d

eixaram d

e elaborar pu

blicamen

te sua

experiên

cia, suas d

errotas, seu sofrim

ento. N

ão deixaram

de sim

bolizar,

na m

edid

a do p

ossível, o traum

a provocad

o pelo en

contro com

a atroz

crueld

ade d

e que u

m h

omem

é capaz qu

and

o a próp

ria força governan

te

(no caso, tam

bém ela fora d

a lei) o autoriza a isso.

Em

1994, ano em

que o govern

o Fernan

do H

enriqu

e Card

oso insti-

tuiu

ind

enizações p

agas pelo E

stado às fam

ílias dos d

esaparecid

os du

-

rante o regim

e militar, a p

rofessora Maria Lígia Q

uartim

de M

oraes, da

Un

icamp

, viúva d

e um

militan

te desap

arecido, organ

izou n

aquela U

ni-

versidad

e um

debate sobre a tortu

ra e os assassinatos p

olíticos da d

itadu

-

ra. Na m

esa redon

da sobre testem

un

hos d

e mu

lheres tortu

radas, d

a qual

tive a hon

ra de p

articipar, p

ud

e observar que o ato d

e tornar p

úblico o

sofrimen

to e os agravos infligid

os ao corpo (p

rivado) d

e cada u

ma d

aque-

las mu

lheres, p

oderia p

or fim à im

possibilid

ade d

e esquecer o trau

ma. D

a

mesm

a forma, os/as com

pan

heiros/as e filh

os/as de d

esaparecid

os/as po-

líticos, na au

sência d

e um

corpo d

iante d

o qual p

restar as hom

enagen

s

fún

ebres, só pu

deram

enterrar sim

bolicamen

te seus m

ortos ao velar, em

um

espaço p

úblico, a m

emória d

eles e comp

artilhar com

um

a assembléia

solidária a in

dign

ação pelo ato bárbaro qu

e causou

seu d

esaparecim

ento.

O film

e docu

men

tário 15 filhos, de M

artha N

ehrin

g, veio se somar a essas

iniciativas.

O legad

o da clín

ica psican

alítica alcança aqu

i o sintom

a social: as-

sim com

o o end

ereçamen

to que o n

eurótico faz, d

e suas qu

estões mais

íntim

as, a um

estranh

o – o analista – é o p

rimeiro p

asso nu

m p

rocesso de

cura, o ato d

e tornar p

úblicas as exp

eriências e as lu

tas que a h

istória es-

queceu

e/ou recalcou

é fun

dam

ental n

a elaboração dos trau

mas sociais.

Mas ap

esar do sim

pósio n

a Un

icamp

e de m

uitos ou

tros eventos iso-

lados (h

avia pou

ca gente n

a US

P, em 2004, n

os debates a resp

eito dos 40

anos d

o golpe d

e 64), não levam

os nossa von

tade d

e reparação até o fim

.

Foi espan

tosa a disp

licência, d

iria mesm

o a frivolidad

e que caracterizou

a maior p

arte do am

biente crítico d

os anos 1980: com

o se a ditad

ura p

or

aqui tivesse term

inad

o não com

um

estrond

o, mas com

um

susp

iro – já

que os estron

dos foram

inau

díveis p

ara os ouvid

os dos qu

e nad

a queriam

escutar. C

omo se p

ud

éssemos con

viver tranqu

ilamen

te com o esqu

eci-

men

to dos d

esaparecid

os. Com

o se nosso con

ceito de h

um

anid

ade p

u-

desse in

cluir tran

quilam

ente o corp

o torturad

o do ou

tro, tornad

o – a par-

tir de u

ma rad

ical desid

entificação – n

osso dessem

elhan

te absoluto. A

quele

com qu

em n

ão temos n

ada a ver.

Mas se vítim

as dos tortu

radores, ap

esar da resistên

cia geral, não se

recusaram

a elaborar pu

blicamen

te sua exp

eriência, d

e que lad

o está o

apagam

ento d

a mem

ória que p

rodu

z a repetição sin

tomática d

a violên-

cia institu

cional brasileira?

Page 43: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.85

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

084.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

A resp

osta é imed

iata: do lad

o dos rem

anescen

tes do p

róprio regim

e

militar, seja qu

al for a posição d

e pod

er que ain

da ocu

pam

. São estes os

que se recu

sam a en

frentar o d

ebate pú

blico – com a esp

antosa con

ivên-

cia da m

aioria silenciosa, a m

esma qu

e escolheu

perm

anecer alh

eia aos

abusos com

etidos n

o país, sobretu

do n

o períod

o pós-A

I-5. Mu

ita gente

aind

a insiste em

pen

sar que a p

rática da tortu

ra teria sido (ou

aind

a é)

um

a espécie d

e mal n

ecessário imp

osto pelas con

dições excep

cionais d

e

regimes au

tocráticos, e que sob u

m regim

e dem

ocrático não p

recisamos

mais n

os ocup

ar daqu

eles deslizes d

o passad

o.

A resp

eito do caráter su

postam

ente excep

cional d

a tortura, o cien

-

tista político R

enato L

essa esclarece, em artigo p

ublicad

o na revista

“Ciên

cia hoje”:

Qu

ando p

ensam

os no m

odo con

creto e material d

e operação de

um

regime au

tocrático, é necessário u

ltrapassar um

a percepçãodifu

sa que diz qu

e nele as liberdades pú

blicas são suprim

idas. Écerto qu

e o são: é esta, mesm

o, um

a condição n

ecessária para sua

afirmação com

o forma política. N

o entan

to, para que as liberdades

sejam su

primidas deve operar u

ma exigên

cia material precisa: é

necessário qu

e o regime au

tocrático tenh

a a capacidade efetiva decau

sar sofrimen

tos físicos aos que a ele se op

õem. (...)

A tortu

ra não seria, segu

nd

o Lessa, um

a prática excep

cional tolerad

a

em con

dições extrem

as, mas o p

róprio fu

nd

amen

to do regim

e autocráti-

co. Este, d

e forma n

ão declarad

a, assenta-se exatam

ente n

a “relação entre

o torturad

o e o torturad

or: lugar d

e um

a crueld

ade e d

e um

sofrimen

to

que u

ltrapassam propósitos pragm

áticos de extração de inform

ação”.5

Nesse caso, tod

o cidad

ão está poten

cialmen

te sujeito à tortu

ra, send

o tal

dessim

etria aterrorizante en

tre dom

inad

ores e dom

inad

os a próp

ria base

dos regim

es de exceção. E

m ou

tro artigo, pu

blicado n

o jornal E

stado d

e

São Pau

lo, Lessa comp

lemen

ta o raciocínio an

terior ao lembrar...

...a vuln

erabilidade de imen

sos contin

gentes da popu

lação brasi-

leira à violência policial. S

e somarm

os a isto a desproteção desses

mesm

os segmen

tos diante do dom

ínio de gru

pos paramilitares, n

os

quais a presen

ça de “agentes da ordem

” não é in

freqüen

te, temos

um

cenário de baixa con

cretização de direitos fun

damen

tais. A

cultu

ra policial no país (...) é n

o mín

imo porosa a h

ábitos de pilha-

gem e de cru

eldade (...) que abran

gem tan

to a pequen

a extorsão de

infratores com

o a prática de chacin

as e assassinatos ju

stificados

por ‘autos de resistên

cia’. (...) É o tema da tortu

ra que segu

e vigen-

te. A presen

ça reniten

te da tortura e da cru

eldade física como práti-

ca das forças da ordem, apesar da con

stituição qu

e temos, resu

lta

de seu caráter ‘an

istiável.6

Dep

ois de algu

mas con

siderações sobre o caráter sofístico “d

e quin

ta

categoria” que estabeleceu

a mesm

a lei de an

istia para tortu

radores e m

i-

litantes d

e esquerd

a, Lessa conclu

i: “a pseu

do-an

istia a torturad

ores re-

vela um

a dificu

ldad

e básica em lid

ar com os efeitos d

a crueld

ade p

rodu

-

zidos p

elo sistema d

e pod

er, em qu

alquer tem

po”.

O tra

um

a ta

mb

ém

tem

efe

itos s

ob

re o

tortu

rad

or

A afirm

ação que se segu

e pod

e parecer h

ipócrita ou

dem

agógica a

algun

s ouvid

os, mas in

sisto em colocá-la à p

rova dian

te desse p

lenário: a

reabertura d

o debate sobre a tortu

ra no B

rasil, com o even

tual ju

lgamen

to

e a pu

nição d

e algun

s torturad

ores comp

rovados, n

ão curaria som

ente a

sociedad

e civil dos efeitos d

a violência gen

eralizada n

o país. C

uraria tam

-

bém as p

róprias in

stituições p

oliciais. Não p

elo simp

les expu

rgo dos “m

aus

elemen

tos”: décad

as de p

ráticas abusivas im

pu

nes fizeram

das p

olícias

brasileiras um

verdad

eiro edu

cand

ário a reprod

uzir in

defin

idam

ente a

formação d

e “mau

s elemen

tos”.

5 Grifo do autor.6 Renato Lessa: “Sobre a tortura”. Artigo publicado no caderno Aliás do Estado de São Paulo.

Page 44: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.87

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

086.

tem

átic

a.

An

istia

e to

rtura

.

Ocorre q

ue a licen

ça para ab

usar, tortu

rar e matar, acab

a por

traum

atizar também

7 os agentes d

a barbárie. Não se u

ltrapassa certos li-

mites im

postos ao gozo im

pu

nem

ente. A

ssim com

o certas experiên

cias

extremas com

a droga e com

o álcool traum

atizam o p

siquism

o pelo en

-

contro qu

e prom

ovem com

o gozo da p

ulsão d

e morte, o con

vívio “nor-

mal” com

a crueld

ade trau

matiza o su

jeito que se au

torizou a ser cru

el e

imagin

a beneficiar-se d

isso. O sen

timen

to de realid

ade – qu

e para o h

o-

mem

é semp

re um

a constru

ção social – se desorgan

iza, assim com

o o

sentim

ento d

e iden

tidad

e do su

jeito. Não é fácil efetivar a p

assagem d

o

“sou u

m h

omem

” para “sou

um

assassino d

e outros h

omen

s” – ela tem

um

preço alto. O

efeito, para o p

róprio su

jeito, é tão aterrorizante qu

e ele

se vê imp

elido a rep

etir seu ato m

ortífero até assimilar d

e vez sua n

ova

hed

iond

a iden

tidad

e.

Não p

or acaso, somen

te algum

as adesões fan

áticas a crenças e ri-

tuais religiosos são cap

azes de red

imir algu

ns assassin

os cruéis, sejam

eles policiais ou

band

idos com

un

s: só a fé em u

ma in

stância on

ipoten

te é

capaz d

e ressignificar a Lei, qu

and

o esta foi desqu

alificada em

sua fu

n-

ção de barrar o gozo e organ

izar o gozo dos corp

os ind

ividu

ais nos term

os

perm

itidos p

elo corpo social.

Sejam

os sensatos: se a p

ossibilidad

e de gozar com

a dor d

o outro

está aberta para tod

o hu

man

o, por ou

tro lado a tortu

ra só existe porqu

e a

sociedad

e, explícita ou

imp

licitamen

te, a adm

ite. Por isso mesm

o, por-

que se in

screve no laço social, n

ão se pod

e consid

erar a tortura d

esu-

man

a. Ela é h

um

ana: n

ão conh

ecemos n

enh

um

a espécie an

imal cap

az de

instru

men

talizar o corpo d

e um

ind

ivídu

o da m

esma esp

écie, e além d

o

mais gozar com

isso, a pretexto d

e certo amor à “verd

ade”. S

abemos qu

e

combater o terrorism

o com p

ráticas de tortu

ra já é adotar o terrorism

o;

terrorismo d

e Estad

o, que su

spen

de os d

ireitos e liberdad

es que garan

tem

a relação livre e respon

sável pelos cid

adãos, p

erante a Lei. Q

ue verd

ade

se pod

e obter através de u

ma p

rática que d

estrói as cond

ições de existên

-

cia social da verd

ade?

Qu

and

o não é m

eio de gozo, a d

or infligid

a ao outro d

everia nos p

ro-

vocar dor p

síquica. U

m d

os traços que d

istingu

e o hu

man

o de ou

tros

anim

ais é a capacid

ade d

e iden

tificação com a d

or do ou

tro. Por que,

então, p

arece que o corp

o torturad

o não d

iz respeito à m

aioria de n

ós?

Um

corpo tortu

rado é u

m corp

o roubad

o ao seu p

róprio con

trole;

corpo d

issociado d

e um

sujeito, tran

sformad

o em objeto n

as mãos p

ode-

rosas do ou

tro – seja o Estad

o ou o crim

inoso com

um

. A tortu

ra refaz o

du

alismo corp

o/men

te, ou corp

o/espírito, p

orque a con

dição d

o corpo

entregu

e ao arbítrio e à crueld

ade d

o outro separa o corpo e o su

jeito. Sob

tortura, o corp

o fica tão assujeitad

o ao gozo do ou

tro que é com

o se a

“alma” – isso qu

e, no corp

o, pen

sa, simboliza, u

ltrapassa os lim

ites da

carne p

ela via das rep

resentações – ficasse à d

eriva. A fala qu

e represen

ta

o sujeito d

eixa de lh

e perten

cer, um

a vez que o tortu

rador p

ode arran

car

de su

a vítima a p

alavra que ele qu

er ouvir, e n

ão a que o su

jeito teria a

dizer. R

esta ao sujeito p

reso ao corpo qu

e sofre nas m

ãos do ou

tro, o si-

lêncio, com

o últim

a forma d

o dom

ínio d

e si, até o limite d

a morte. E

resta o grito involu

ntário, o u

rro de d

or que o sen

so comu

m ch

ama d

e

“anim

alesco”.

Por que an

imalesco, se é u

m h

omem

que u

rra? Talvez porqu

e o grito

de d

or não rep

resente m

ais o sujeito/h

omem

, mas ap

enas o qu

e agora

nele é carn

e em sofrim

ento. O

urro d

e dor n

ão é mais exp

ressão do su

jei-

to – assim com

o a palavra extorqu

ida p

elo torturad

or também

não. M

as

talvez seja um

mero p

reconceito ch

amar d

e anim

alesca a expressão ex-

trema d

este hom

em-corp

o. Talvez ele evoque o terror a tal p

onto qu

e seja

conven

iente con

siderá-lo an

imalesco p

ara não correrm

os o risco de n

os

iden

tificar com ele.

Qu

and

o se trata de exp

eriências-lim

ite, é preciso escu

tar os poetas.

Torquato N

eto, por exem

plo: “Leve u

m h

omem

e um

boi ao matad

ouro;

aquele qu

e berrar é o hom

em. M

esmo qu

e seja o boi”.7 Grifo do autor.

Page 45: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

no

ve

mb

ro 2

01

0 l c

orre

io A

PP

OA

.89

agenda.

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

088.

tem

átic

a.

Por fim: h

oje nin

guém

descon

hece a existên

cia da tortu

ra no B

rasil –

nem

do p

assado, n

em d

o presen

te. Não p

odem

os assimilar n

ossa ind

ul-

gência p

ara com os tortu

radores d

e ontem

e de h

oje como se fosse efeito

de d

esconh

ecimen

to do fato. M

as se nós aceitam

os com certa tran

qüili-

dad

e a existência d

a tortura e a im

pu

nid

ade d

os torturad

ores, o que é qu

e

teria ficado recalcad

o, silenciad

o, dep

ois da n

ossa pseu

do-an

istia, e que

aind

a hoje p

rodu

z sintom

as sociais de violên

cia policial com

frequên

cia

aind

a maior n

o presen

te do qu

e du

rante a d

itadu

ra? Não é o fato d

e ter

havid

o e haver tortu

ra que ficou

recalcado, e sim

a convicção de qu

e ela

é intolerável. O

argum

ento d

a tortura com

o mal n

ecessário parece con

-

vincen

te aind

a a grand

es parcelas d

a pop

ulação brasileira. N

ós nos es-

quecem

os que o ou

tro torturad

o nos d

iz respeito; qu

e se a tortura sep

ara

corpo e su

jeito, cabe a nós assu

mir o lu

gar de su

jeito em n

ome d

aqueles

que já n

ão têm d

ireito a um

a palavra qu

e os represen

te. Com

o na can

ção

de M

ilton N

ascimen

to: “morte bela, sen

tinela sou

do corp

o desse m

eu

irmão, qu

e passou

...”

Não n

os esquecem

os nem

por u

m d

ia de n

ossa violência social, p

as-

sada e p

resente. C

onvivem

os com ela o tem

po tod

o, preocu

pam

o-nos com

ela e a temem

os. O qu

e ficou recalcad

o na socied

ade brasileira, d

esde a

tal pseu

do-an

istia, é que som

os nós os agen

tes sociais a quem

cabe exter-

min

ar a tortura. E

squecem

os de qu

e é possível viver sem

ela. Só qu

e esta

mu

dan

ça não se d

ará sem en

frentam

ento, sem

conflito. A

tortura resiste

como sin

toma social d

e nossa d

isplicên

cia histórica.

O qu

e não p

odem

os esquecer está exp

resso no p

oema in

trodu

tório ao

livro Réqu

iem, p

oemas d

e An

na A

khm

átova sobre o períod

o dos exp

urgos

e das p

risões na R

ússia sob a d

itadu

ra stalinista:

Não, n

ão foi sob um

céu estran

geiroN

em ao abrigo de asas estran

geiras.

Eu estava vem

no m

eio do meu

povoLá on

de meu

povo em desven

tura estava.

ag

en

da

no

vem

bro

. 2010

dia

ho

raa

tivid

ad

e

pró

xim

o n

úm

ero

Joyce e

a P

sic

anális

e

eve

nto

s d

o a

no

2010

da

ta lo

ca

le

ve

nto

6 e 7/11P

laza São R

afael Jornad

a Clín

ica – Dizer e fazer em

análise

05, 12,19, 2614h

Reu

nião da C

omissão da R

evista

05 e 1915h

Reu

nião da C

omissão de A

periódicos

08 e 2220h

30min

Reu

nião da C

omissão do C

orreio

04, 11, 18 e 2519h

30min

Reu

nião da C

omissão de Even

tos

1121h

Reu

nião da M

esa Diretiva

2519h

30min

Reu

nião da C

omissão da B

iblioteca

2521h

Reu

nião da M

esa Diretiva aberta

aos Mem

bros

Page 46: miolo Correio APPOA 196ª escolherá o caminho certo e o ... é inegável o efeito formativo produzido pelo exercício de interlocução ... canalista não tenha passado,

co

rre

io A

PP

OA

l no

ve

mb

ro 2

01

090.

norm

as e

dito

ria

is d

o C

orreio

da A

PP

OA

O C

orreio

da A

PP

OA

é um

a p

ublic

ação m

ensa

l, o q

ue p

ressup

õe u

m tra

ba-

lho d

e seleção tem

átic

a –

orien

tad

o ta

nto

pelo

s even

tos p

rom

ovid

os p

ela A

sso-

cia

ção, c

om

o p

elas q

uestõ

es qu

e con

stan

temen

te se ap

resenta

m n

a c

línic

a –

,

bem

com

o d

e obten

ção d

os tex

tos a

serem p

ublic

ad

os, a

lém d

a ta

refa d

e pro

gra

-

mação

edito

rial.

Tem

sido n

osso

objetiv

o a

presen

tar a

cad

a m

ês um

Correio

mais ela

bora

do,

qu

er seja p

ela a

presen

tação d

e texto

s qu

e pro

porc

ion

em u

ma leitu

ra in

teressan

-

te e possib

ilitem u

ma in

terlocu

ção; q

uer p

ela p

reocu

pação c

om

os a

spec

tos

edito

riais, c

om

o a

remessa

no in

ício

do m

ês e a c

om

posiç

ão v

isual.

Frente à

nec

essidad

e de u

ma p

rogra

mação ed

itoria

l, solic

itam

os q

ue seja

m

respeita

das a

s segu

intes n

orm

as:

1) o

s texto

s para

pu

blic

ação n

a S

eção T

emátic

a, S

eção D

ebates, S

eção E

n-

saio

e Resen

ha d

everã

o ser en

via

dos p

or e-m

ail p

ara

a sec

retaria

da A

PP

OA

(ap

poa@

ap

poa.c

om

.br);

2) a

form

ata

ção d

os tex

tos d

everá

obed

ecer à

s segu

intes m

edid

as:

- Fon

te tam

an

ho 1

2

- O tex

to d

eve c

on

ter, em m

édia

, 12000 c

ara

cteres c

om

espaço

- Nota

s de ro

dap

é em fo

nte ta

man

ho 1

0

3) a

s nota

s dev

erão ser in

clu

ídas sem

pre c

om

o n

ota

s de ro

dap

é;

4) a

s referência

s bib

liográ

ficas d

everã

o in

form

ar o

(s) au

tor(es), títu

lo d

a

obra

, au

tor(es) e títu

lo d

o c

ap

ítulo

(se for o

caso

), cid

ad

e, edito

ra, a

no, v

olu

me

(se for o

caso

);

5) as asp

as serão u

tilizadas p

ara iden

tificar citações d

iretas;

6) c

itações d

iretas c

om

mais d

e 3 lin

has d

evem

vir sep

ara

das d

o c

orp

o d

o

texto

, com

recuo d

e 4 cm

em relação

à margem

, utilizan

do fo

nte tam

anh

o 1

0;

7) o

itálico

dev

erá ser u

tilizad

o p

ara

exp

ressões q

ue se q

ueira

grifa

r, para

pala

vra

s estran

geira

s qu

e não seja

m d

e uso

corren

te ou

título

s de liv

ros;

8) n

ão u

tilizar n

egrito

(bold

) ou

sublin

had

o (u

nd

erline);

9) a

data

máxim

a d

e entreg

a d

e matéria

(texto

s ou

notíc

ias) é o

dia

05, p

ara

pu

blic

ação n

o m

ês segu

inte;

10)

o a

uto

r, não a

ssocia

do a

ap

poa, d

everá

info

rmar em

um

a lin

ha c

om

o

dev

e ser ap

resenta

do. A

Com

issão d

o C

orreio

se reserva o

direito

de su

gerir

altera

ções a

o(s) a

uto

r(es) e de efetu

ar a

s correç

ões g

ram

atic

ais q

ue fo

rem n

eces-

sária

s para

a c

larez

a d

o tex

to, b

em c

om

o se resp

on

sabiliz

ará

pela

revisã

o d

as

pro

vas g

ráfic

as;

11)

a in

clu

são d

e matéria

s está su

jeita à

ap

recia

ção d

a C

om

issão d

o C

or-

reio e à

disp

on

ibilid

ad

e de esp

aço p

ara

pu

blic

ação.