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ISSN 1516-9162 REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE N° 19 - Outubro - 2000 BRASIL PSICANÁLISE, FICÇÃO E MEMÓRIA

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ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREN° 19 - Outubro - 2000

BRASILPSICANÁLISE, FICÇÃO E MEMÓRIA

Design Gráfico: Flávio WildSobre obra de Albert Eckhout “Mameluca”, 1641.

R454

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE / Associação Psicanalítica de Porto Alegre. - n° 19,2000. - Porto Alegre: APPOA, 1995, ----.Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. | Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU: 159.964.2(05) 616.89.072.87(05)CDU: 616.891.7

Bibliotecária Responsável: Ivone Terezinha Eugênio CRB 10/1108

BRASILPSICANÁLISE, FICÇÃO E MEMÓRIA

ISSN 1516-9162REVISTA DA ASSOCIAÇÃO

PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREEXPEDIENTE

Publicação InternaAno IX - Número 19 - outubro de 2000

Comissão Editorial deste número:Analice Palombini, Edson Luiz André deSousa, Henriete Karam, MarianneStolzmann, Valéria Machado Rilho

Título deste número:BRASIL: PSICANÁLISE, FICÇÃO EMEMÓRIA

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRE

Rua Faria Santos, 258 Bairro Petrópolis90670-150 - Porto Alegre / RSFone: (51) 333.2140 - Fax: (51) 333.7922E-mail: [email protected]: www.appoa.com.br

MESA DIRETIVA(GESTÃO 1999/2000)

Presidência: Alfredo Néstor Jerusalinsky1a Vice-Presidência: Lucia Serrano Pereira2a Vice-Presidência: Maria Ângela C. BrasilSecretaria: Jaime Alberto Betts Marta PedóTesouraria: Carlos Henrique Kessler

Simone Moschen RickesAna Maria Gageiro, Ana Maria Medeirosda Costa, Ana Marta Goelzer Meira,Cristian Giles Castillo, Edson Luiz Andréde Sousa, Gladys Wechsler Carnos, IedaPrates da Silva, Ligia Gomes Víctora, LizNunes Ramos, Maria Auxiliadora PastorSudbrack, Mario Fleig, Robson de FreitasPereira e Valéria Machado Rilho

COMISSÕESComissão de AcolhimentoDiana Myrian Liechtenstein Corso, LuciaSerrano Pereira, Maria Ângela CardaciBrasil, Maria Auxiliadora Pastor SudbrackComissão de Analistas-MembrosCoordenação: Maria Auxiliadora PastorSudbrackAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana MariaMedeiros da Costa, Lucia Serrano Perei-ra, Maria Ângela Cardaci Brasil, Robsonde Freitas Pereira

Comissão de BibliotecaCoordenação: Maria Auxiliadora PastorSudbrack e Ana Marta Goelzer MeiraFernada Breda Leyen, Luciane Loss,Luzimar Stricher, Roselene GurskiKasprzakComissão de EnsinoCoordenação: Liz Nunes Ramos e MarioCorsoCoordenação do Percurso de Escola:Carmen Backes, Eda Tavares, MarioCorso, Roséli CabistaniAlfredo Néstor Jerusalinsky,Liliane SeideFröemming, Lúcia Alves Mees, Lucia Ser-rano Pereira, Maria Ângela Cardaci Bra-sil, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack,Mario Fleig, Robson de Freitas Pereira,Rosane Monteiro RamalhoComissão de EventosCoordenação: Ana Maria Gageiro e Ma-ria Elisabeth TubinoEloísa Santos de Oliveira, GrasielaKraemer, Lígia Gomes Víctora, MariaBeatriz de A. KallfelzServiço de Atendimento ClínicoCoordenação: Ângela Lângaro Becker eLiz Nunes RamosCarlos Henrique Kessler, GrazielaKraemer, Maria Cristina Petrucci Solé

Comissão de PublicaçõesCoordenação: Mario FleigComissão de AperiódicosCoordenação: Mario FleigCarmen Backes, Conceição de FátimaBeltrão, Clara Maria Hohendorff, MagdaSparenberger, Maria Luiza Dib, MarianneStolzmann, Roséli Cabistani, UbirajaraCardoso de CardosoComissão do CorreioCoordenação: Maria Ângela Cardaci Bra-sil e Robson de Freitas PereiraAna Laura Giongo Vaccaro, FranciscoSettineri, Gerson Smiech Pinho, HenrieteKaram, Liz Nunes Ramos, Luís RobertoBenia, Luzimar Stricher, Marcia Helena deMenezes Ribeiro, Maria Lúcia Müller SteinComissão da Home-PageCoordenação: Robson de Freitas PereiraGerson Smiech Pinho, Henriete KaramComissão da RevistaCoordenação: Valéria Machado RilhoAnalice Palombini, Edson Luiz André deSousa, Henriete Karam, MarianneStolzmann

SUMÁRIO

EDITORIAL............................07

TEXTOSA identidade nacional: o Brasil entrehistória, memória e ficção .......... 09Carmen Backes

Brasil: o mito fundador .............. 23Marilena Chauí

Brasil: melancolia ou criação?A carnavalização necessária ...... 37Miriam Chnaiderman

“Exílio, que terra prometida?” ..... 49Jacques Leenhardt

Outros Brasis: um ENTRE(Alguma possibilidade sobrea atual poesia feita no Brasilou algum recorte) ..................... 55Manoel Ricardo de Lima

Das Invenções à Invenção: um saltosem rede na arte brasileira ........ 61Elida Tessler

Estado autoritário brasileiroe cultura nacional: entre a tradiçãoe a modernidade ....................... 71Alexandre Barbalho

A lei é dura, mas...(Para uma clínica do “legalismo”e da transgressão) .................... 83Luís Cláudio Figueiredo

Origens e diferenças:teorias sexuais infantis? ............ 99Mario FleigConceição Beltrão

ENTREVISTAA invenção de um lugar ............. 107Arthur Luiz Piza

RECORDAR, REPETIR, ELABORARNelson Rodrigues, intérprete denosso tempo ............................ 114Luís Augusto Fischer

VARIAÇÕES“O homem Moisés, um romancehistórico” - entre História, ficção eexperiência .............................. 132Valéria Machado Rilho

Gostamos de ser inviáveis? ....... 139Maria Rita Kehl

O silêncio da violência .............. 144Edson Luiz André de Sousa

Emancipação feminina: inibiçãomasculina? ............................... 151Jaime Alberto Betts

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EDITORIAL

Este número da Revista contém os desdobramentos de um diálogo que vem tendolugar, ultimamente, em inúmeras ocasiões, entre psicanalistas e pensadores de

diversas áreas sobre o Brasil nos 500 anos.O interesse da psicanálise no tema parece evidente. Se, por um lado, a continui-

dade da transmissão da psicanálise, sua atualidade, não prescinde da valorização dosdeterminantes de nossa língua e cultura; por outro, os 500 anos que marcam a chegadados portugueses às terras brasileiras produzem efeitos que não são alheios ao ofício doanalista: ficção das origens, memória, esquecimento, trauma, identidade, alteridade,linguagem, guardam os vestígios do país colônia nos traços de nossa contempo-raneidade.

Reafirma-se, assim, aquilo que Freud enuncia em sua obra: a articulação entreo discurso social e o sujeito psíquico, o engendramento do Eu a partir de sua relação aoOutro, sustentada no campo cultural. Campo cujos contornos transcendem as frontei-ras geo-políticas, mas que, sob o tecido de uma experiência espaço-temporal, coloca-se em questão a inevitável condição de exílio a que o humano, na relação à linguagem,encontra-se lançado.

É nessa perspectiva que a psicanálise vem emprestar suas ferramentas conceituaispara revolver o campo fértil desse debate, juntando-se à história, sociologia, artes,literatura, para redescobertas do Brasil que permitam operar deslocamentos com res-peito aos marcos que nos condicionam, numa reinvenção produtiva de nossa história.

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TEXTOSTEXTOS A IDENTIDADE NACIONAL:O BRASIL ENTRE HISTÓRIA,MEMÓRIA E FICÇÃO

Carmen Backes*

RESUMOA identidade brasileira freqüentemente é pensada a partir do colorido nacio-nal. A exemplo disso, podemos referir-nos a autores tais como José de Alencare Gonçalves Dias. A ficção memorialística, porém, é outra forma com a qual aliteratura pode ajudar a pensar o Brasil. Neste caso, faz-se referência, maisespecificamente, a Machado de Assis. Esta forma literária trata do instigantecruzamento entre o que de fato aconteceu e o ficcional, portanto, entre histó-ria e memória.PALAVRAS-CHAVES: identidade; história; memória; ficção

ABSTRACTBrazilian identity is often considered from the national colouring. As an example,one can refer authors as José de Alencar and Gonçalves Dias. The memorialfiction, although, is another way in which literature can help to think aboutBrazil. In this case we refer, more specifically, to Machado de Assis. This literaryform deals with the instigating encounter between what happened in fact andthe fiction; therefore between history and memory.KEYWORDS: identity; history; memory; fiction

* Psicanalista, membro da APPOA, psicóloga do Deptº de Psicanálise do Instituto de Psicologia/UFRGS, Mestre em Psicologia Social e Institucional. Autora do livro O que é ser brasileiro?,da coleção O sexto lobo, São Paulo, Escuta, 2000.

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TEXTOS

Em fins do século XV, os povos peninsulares se confrontavam com uma campanhade expulsão das minorias étnicas e religiosas. Depois de ter convivido durante

anos com diferenças de todas as ordens, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição seencarregou de afugentar, para o Novo Mundo, aventureiros, comerciantes e conquis-tadores, que, junto, trouxeram os impuros de sangue, os hereges, os desterrados.

Os colonizadores impuseram ao Novo Mundo conquistado um sistema econô-mico – baseado na exploração –, dogmas religiosos, um estilo de vida e também paracá transferiram suas leis discriminatórias: os chamados impuros, hereges e desterra-dos continuaram tão discriminados como no Velho Mundo, acrescidos aqui, ainda,dos índios e negros. A missão civilizadora a que os conquistadores se propuseramrespondia a seus interesses de expansão econômica, que implicava a destruição dooutro.

O Brasil estaria, então – desde sempre e numa tentativa de livrar-se dessesmodelos discriminatórios dominantes –, defrontado com um grande desafio: construiruma sociedade onde os diferentes, os outros, fossem todos iguais – como apregoava oespírito catequista e como ditava a herança deixada por espanhóis e portugueses queresistiram, não sucumbindo à dominação. Confrontado com a intolerância que deseja-va preservar a identidade, a pureza da raça, entre outros aspectos, viu-se depois com omesmo destino: fundar uma identidade própria que se opusesse ao poder, ancoradanum traço de igualdade.

Aqui faço menção a dois lugares descritos por Melman1 passíveis de seremocupados pelo sujeito, lugares esses estabelecidos pelo laço social, a saber: um é o domestre, do patrão, e o outro é o do servidor. O lugar do mestre ou dos mestres é

1 Melman descreve esses dois lugares no artigo A identidade histérica (Porto Alegre, APPOA,1994. Material de circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre), numa refe-rência às fórmulas da sexuação:

Essas fórmulas podem ser lidas da seguinte forma: do lado esquerdo, existe um (o fundador)que é incastrado; logo, todos da linhagem que a ele se referem passaram pela castração. Do ladodireito, não existe um (fundador) que diga não à castração, logo não-todos passaram pela castra-ção, ou sua castração não é autenticada pelo fundador.A castração aqui referida tem suas origens fundadas na cena da refeição totêmica ou cena doparricídio, que supõe, nas origens do totemismo, a existência de um pai violento e ciumento quereserva para si todas as fêmeas (por isso incastrado, pois não sofre nenhuma interdição). Essepai todo-poderoso é quem dita as leis-tabu, cujas duas prescrições principais são: não matar opai e não ter acesso a nenhuma das mulheres a ele pertencentes. Os filhos nutrem por esse paium sentimento ambivalente: ao mesmo tempo em que o amam, respeitam e admiram, pois

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autenticado, certificado pela referência a um fundador. Os que o ocupam legitimamsua autoridade – mesmo não possuindo as qualidades requeridas para tal – desde umaautoridade fundadora, que procedeu à nomeação da linhagem. O acesso à linhagem sedá através da passagem pela castração.

O outro lugar, o lugar Outro é um terreno vago, onde vão estar reunidos, tantoos que não passaram pela castração, quanto aqueles em que a castração não está maisautenticada – caso do imigrante, segundo Melman. De nada adiantaria que, em seupaís de origem, esse imigrante tivesse passado pela castração, pois, quando tomadonuma cultura diferente, a castração não estaria mais legitimada, o que o jogaria numabusca reiterada de reconhecimento.

Com relação a esses dois lugares que Melman refere, gostaria de acrescentarque o imigrante traz consigo, de sua terra de origem, os mandatos paternos, que são,porém, alterados e transformados na nova terra, por efeito mesmo da passagem parauma nova cultura. É diferente dizer que o imigrante vem sem filiação e dizer que essafiliação sofre transformações. Por que ele abandonaria totalmente a ordenação fálicana travessia do Atlântico?

Vários autores, de diferentes áreas, dedicaram-se à descrição do que é ser bra-sileiro, através da acentuação de alguma característica psicológica ou caracterológica.Por exemplo, a interpretação naturalista diz que o brasileiro é alegre, cordial, pregui-çoso, malandro, pouco sério, contra a moral civilizada, em função de características deraça, sexualidade, entre outras.

Já a interpretação histórico-crítica considera um único elemento – como, porexemplo, considerações raciais, patriarcado, mentalidade colonial – para generalizar egarantir a identidade original brasileira.

A busca de uma identidade nacional faz parte da tradição em muitos campos dacultura brasileira. A citação a seguir, extraída de Ribeiro (1995, p.131), é exemplar dapreocupação que, por décadas, séculos talvez, acompanhou as elites intelectualizadasem torno da afirmação da brasilidade:

assim obtêm proteção, também o odeiam por sua intensa autoridade, com a qual rivalizam.Conforme vão crescendo, vão sendo expulsos, na medida em que podem representar um perigomaior ao tirânico patriarca. Os irmãos expulsos reúnem-se, um dia, matam o pai e devoram seucadáver, colocando assim um fim à existência da horda primitiva. A conseqüência disso é que opai morto adquire um poder muito maior do que tivera em vida. Isso reforça também seusmandamentos, e ficam ainda mais ratificadas suas leis, e é esse o ponto de partida das organiza-ções sociais, das restrições morais e da religiosidade. A proibição se funda na culpa dos filhosapós a morte do pai da horda primitiva, porque, no nível inconsciente, a Lei é referida, antes demais nada, a uma instância idealizada; ou, melhor, a Lei é referida em seu Nome (Nome-do-Pai). A partir daí, essa filiação, que impõe a castração (não ter acesso a todas as mulheres), é aoperação que limita e ordena o desejo do sujeito.

A IDENTIDADE NACIONAL...

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TEXTOS

“Seu filho, crioulo, nascido na terra nova, racialmente puro ou mestiçado,este sim, sabendo-se não-africano como os negros boçais que via che-gando, nem branco, nem índio e seus mestiços, se sentia desafiado asair da ninguendade, construindo sua identidade. Seria, assim, ele tam-bém, um protobrasileiro por carência.” (o grifo é nosso)

Para Ribeiro (1995), o brasileiro teria criado sua identidade própria a partir danegação de sua origem puramente índia, puramente negra ou puramente européia,naquilo que ele lamenta ter sido a perda da inocência do autóctone, sem a contrapartidada conquista de uma consciência nacional, originando-se, assim, um tipo fundido emetamorfoseado que garantiria a essência do brasileiro, para se opor à ninguendadeque representava ser índio, negro ou europeu.

Durante anos, uma parcela bastante significativa dos artistas fotográficos seocupou em identificar o brasileiro. Esse interesse ganha força a partir da década decinqüenta, numa tendência da fotografia verdade internacional. Dentro desse contex-to, a razão de ser da própria fotografia passa a ser, no Brasil, o registro – ou a constru-ção – da identidade do brasileiro. Esgotada essa função, resta uma pergunta: a fotogra-fia brasileira, de fato, identificou o brasileiro, ou o brasileiro ficou identificado atravésda imagem propiciada originada desse tipo de fotografia?

De qualquer modo, a necessidade de criar cânones precisos de identidade naci-onal através de imagens paradigmáticas começa a decrescer, no Brasil, após meadosdos anos setenta, a partir da posição crítica da artista carioca Anna Bella Geiger. Po-rém esse movimento ganha força depois do final da década de oitenta, novamente,quando uma nova geração de artistas da fotografia (que inclui Rosângela Rennó, CristinaGuerra, Hélio Melo, Claudia Jaguaribe, Marcelo Arruda, Georgia Volpe e outros)tenta demonstrar a dificuldade de caracterizar o brasileiro, negando a possibilidade deuma tipologia concreta, diluindo a imagem exótica ou típica, chegando, nos anos no-venta, a estabelecer uma produção fotográfica que se expande pelo espaçotridimensional e que, explicitando a perda da identidade do indivíduo, deixa transparecera perda de identidade de si mesma, mostrando-se insatisfeita com seu estatuto de puraimagem virtual. As produções passam a incluir manchas nebulosas que nada ou quasenada mais identificam2 .

A literatura teve, por sua vez, em várias gerações de escritores, a preocupaçãocom a construção de uma identidade nacional. Por exemplo, de um lado, estão José deAlencar e Gonçalves Dias, com uma preocupação ufanista e descritiva. De outro lado,

2 Considerações extraídas do texto de Tadeu Chiarelli para o catálogo da exposição “Identida-de/não-identidade: a fotografia brasileira atual”, realizada de 2 de setembro a 9 de outubro de1997 no Centro Cultural Light, Rio de Janeiro.

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Machado de Assis, que, de uma forma particular e diferenciada, apresenta um “brasi-leirismo desta espécie interior, que até certo ponto dispensa a cor local” (Schwarz,1989, p.166). Essa empreitada finaliza por volta da década de sessenta – pois aí jácomeça a ser considerada uma visão redutora –, depois de ter em Afrânio Coutinho(1973, p.24) um de seus expoentes: “O processo de nacionalização brasileira consti-tui-se antes em um movimento de afirmação nacional, de busca da própria identidade,de conquista de um caráter nacional, de afirmação de qualidades peculiares.”

Segundo Fischer3 , não é comum que haja gerações e gerações preocupadascom a identidade – ou formação, conforme chamam os literatos – em todos os países.Esse é um tema que ocupa grande parte das discussões e das obras de autores de paísescolonizados. Isso também ocorreu na Argentina, por exemplo, até meados da décadade trinta, quando os autores argentinos estabilizaram uma leitura de sua identidadeque consideraram satisfatória. No Brasil, parece que se trata de uma questão maisaguda e que não se restringe a um momento; ao contrário, percorre toda nossa história.

Para visualizar a preocupação com relação à identidade dentro da literaturabrasileira, destaco três gerações de escritores. A que faz a primeira tentativa de marcara identidade se situa logo após a Independência Política, em 1822. Porém se trata deum fenômeno ocorrido em toda a América. Em várias regiões recém-emancipadas,houve movimentos semelhantes: a tentativa de situar algo tipicamente nacional, emoposição ao que era a condição colonial anterior. Mesmo no nível da língua: os novospaíses usavam a língua do colonizador e isso, às vezes, parecia complicado. De qual-quer forma, pode-se dizer que, no Brasil, isso foi mais complexo, em função da pró-pria dimensão do País, por um lado, e em função do modo como as elites daqui atua-ram. Note-se que, em praticamente toda a América, houve elites que se chamaram a simesmas criollas, querendo com isso significar que eram da terra , identificadas inclu-sive com povos aborígines. No Brasil, contudo, as elites (salvo, talvez, o caso do RioGrande do Sul) não cunharam para si nenhum termo desse gênero.

Essa geração pós-independência teve, no Brasil, a participação decisiva de Joséde Alencar e Gonçalves Dias, entre vários outros autores. Foi o grupo que fez o Ro-mantismo ou que se abrigou nessa estética, que, de resto, tinha justamente a marca debuscar, aqui como em todo o Ocidente, um modo de definir identidade local. No casobrasileiro, há mais de uma geração dentro desse movimento, pois o romantismo durouquase cinqüenta anos; mas, enfim, olhando à distância, pode-se considerar como umamesma geração.

3 FISCHER, Luís Augusto. A questão da formação na literatura brasileira. Porto Alegre, 2 set.1999. Palestra proferida na Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

A IDENTIDADE NACIONAL...

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TEXTOS

A segunda não é uma geração, mas um autor: Machado de Assis, que repõe emcirculação a discussão sobre o que é o Brasil, mas não de modo ufanista. Ele traz paradentro da estrutura de seus romances essa questão. Neste aspecto, esse autor é singu-lar, e não há paralelo bem estabelecido entre o Brasil e outros países.

A terceira é a geração modernista, com centro em São Paulo, mas espalhadapelo País. Lança seu primeiro grito em 1922, com a Semana de Arte Moderna, comMario de Andrade à frente, mais Oswald de Andrade e vários outros, tendo em“Macunaíma” um expoente máximo, vindo em oposição ao índio como o bom selva-gem descrito por José de Alencar. Logo em seguida, a partir da fundação da Universi-dade de São Paulo, na década de 1930, nasce o grupo liderado por Antonio Candido,que formula, em altíssimo nível, a discussão sobre a formação e lhe dá um estatutocientífico moderno. A obra de Candido vem a público na década de cinqüenta, no pós-guerra, quando vários outros historiadores apresentam sua versão: Caio Prado Júnior,também paulista, que publica sua “História econômica do Brasil”; Celso Furtado, nor-destino, com “Formação econômica do Brasil”, e Raymundo Faoro, gaúcho, com “Osdonos do poder”. Podem ser citados ainda Sérgio Buarque de Holanda, trabalhandodesde os anos trinta (quando foi lançada sua obra “Raízes do Brasil”) e Gilberto Freyre,pernambucano, que publica na mesma década seu “Casa grande & senzala”.

Essa terceira geração pode ser dividida em duas: uma correspondente às déca-das de vinte e trinta, e outra, aos anos cinqüenta, mas os paulistas trabalham em se-qüência. Antonio Candido é amigo de Mario de Andrade e trabalha em favor de –como ele mesmo disse – validar o modernismo estético em seu trabalho, de forma aimpô-lo ao País, contra a tradição bacharelesca dos contemporâneos de Machado, osparnasianos.

Enfim, tomando essas várias gerações, pode-se afirmar que a literatura brasi-leira, vista desde esses grupos, é um sintoma da busca da nacionalidade.

O romance memorialístico brasileiro merece atenção especial, pois, nele, onarrador de memórias postula um eu enunciador. É primeiro necessário configurar umeu para, a partir daí, narrar a história ficcional. Postula também um tu: o relato dememória implica o leitor, pois uma história só pode ser narrada de um para o outro.Por que era necessário às narrativas de memória brasileiras postularem um eu e um tu?Para Fischer (1998, p.135):

“...porque pareceu aos escritores que não havia nem um eu digno defalar e de ser ouvido, nem um tu disponível para a audição. Não estavamdadas as posições nem do narrador (do escritor, em sentido amplo), nemdo leitor. O eu não havia porque não havia identidade.”

É esta insegurança sobre o eu que me faz estabelecer como um dos pressupos-tos que norteiam este trabalho o fato de que o brasileiro sempre esteve preocupado emdizer quem é, como se, por princípio, não fosse ninguém, conforme aqui evidenciado

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com a palavra ninguendade, neologismo inventado por Darcy Ribeiro.Machado de Assis, como destacado, evidencia preocupar-se com o caráter na-

cional, pois faz o aproveitamento crítico do passado literário brasileiro em sua narrati-va ficcional de memórias, o que o leva, de modo paradoxal, a dispensar o suporte dooriginal e do exótico, do descritivo e do ufanista. Posteriormente, a narrativa de me-mórias, que é o romance machadiano por excelência, coloca-se como o centro doromance nacional. Essa é a hipótese defendida por Fischer (1998, p.129), ao dizer que

“o melhor do melhor do romance brasileiro (Memórias Póstumas deBrás Cubas, Memorial de Aires e Dom Casmurro, de Machado de As-sis; São Bernardo, de Graciliano Ramos; Grande Sertão Veredas, deGuimarães Rosa) foi concebido e escrito sob a forma de memória”.

Schwarz (1989) também compartilha essa opinião, situando a literatura dememórias como a literatura madura de uma nação. O autor (1989, p.144) ainda citaAntonio Candido, dizendo que ele faz da memória

“um dado estrutural da sociedade brasileira, e explica cabalmente o ca-ráter nacional da forma das Memórias, que não se refere a um ou outroprocesso encontradiço em nosso território, mas a um aspectoindescartável, ainda que apenas complementar, da travação social dopaís em seu conjunto”.

Daqui surge uma hipótese que deve ser ressaltada, tendo em vista sua signifi-cação: a identidade não pode ser separada de uma narrativa, em especial da narrativaficcional de memórias. Essa idéia é importante, pois ratifica a noção de identidadeenquanto uma produção, uma construção, uma narrativa.

Nesse sentido, Machado de Assis merece atenção especial, pois é como se,com sua obra madura – A trilogia –, tivesse ultrapassado a questão da identidade, coma qual se preocupava a geração de José de Alencar. Pareceria dizer: “A questãoidentitária já passou, agora podemos trabalhar sobre o que interessa.” A geração deJosé de Alencar buscava reconhecimento através da exaltação de uma identidade cal-cada naquilo que supunha ser valorizado pelo europeu: o índio – o diferente; a palmei-ra – o exótico; o sabiá – o belo.

Conforme afirmado, Machado também faz identidade, mas a partir da constru-ção da narrativa ficcional de memórias que é “Dom Casmurro” ou também “QuincasBorba”, onde as figuras centrais (Bentinho e Pedro Rubião) funcionam como umaalegoria4 do Brasil, embora ela não seja evidente (Schwarz, 1989, p.166): “Em vez deelementos de identificação, Machado buscava relações e formas. A feição nacional

4 Gostaria de chamar a atenção sobre a origem grega da palavra alegoria: allós quer dizer outro,e agourein quer dizer falar.

A IDENTIDADE NACIONAL...

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TEXTOS

destas é profunda, sem ser óbvia.” Ele não se preocupava em descrever um tipo ouexaltar coisas do Brasil; contudo, o funcionamento psíquico de seus protagonistas epersonagens laterais e sua inserção no contexto social davam muito mais informaçõessobre o caráter nacional do que a voga indianista, por exemplo.

Segundo Costa5 , a ficção memorialística é a construção conjunta de nossa his-tória, que permite uma compreensão específica do Brasil diferente da pura descriçãohistórica ou construção de tipos. Da mesma opinião compartilha Schwarz (1989), co-locando as memórias como uma sondagem da cena contemporânea a partir do modode ser social e também como uma intuição profunda do movimento da sociedade bra-sileira.

Machado de Assis, muitas vezes, sofreu a crítica de que em suas obras faltavao colorido nacional e de que ele se colocava um tanto desdenhoso para com o povobrasileiro, crítica esta à qual o próprio autor (Assis, 1959, p.817) responde, em seuartigo “Instinto de nacionalidade”:

“Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente,deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a suaregião; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobre-çam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimentoíntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quandotrate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”

Machado, neste artigo, inaugura então o seu tão famoso sentimento íntimo debrasilidade. Ora, um sentimento íntimo só se pode definir falando dele. A identidade,portanto, está numa imbricação bastante forte com a narrativa, em especial com anarrativa ficcional de memórias. É diferente quando o acento é colocado nas memóri-as. As memórias, ao dizerem da identidade, porém de um modo particular, permitem-nos ver que a identidade revelada por uma narrativa mostra um aspecto enunciativo.

Situo aqui a forma como utilizo o conceito de narrativa: a partir das articula-ções feitas por Gagnebin (1999, p.74) em seu livro “História e narração em WalterBenjamin”, narrativa se distancia do aspecto autobiográfico clássico, na medida emque o eu representa o sujeito, mas não o é. Embora a narrativa possa ser tomada comoum relato autobiográfico6 , não restringe o sujeito à “afirmação da consciência de si,mas o abre às dimensões involuntárias, diria Proust, inconscientes, diria Freud, da

5 COSTA, Ana Maria Medeiros da. Ironia e identificação. Porto Alegre, out. 1999. Palestraproferida no evento Dom Casmurro – 100 Anos, promovido pela Associação Psicanalítica dePorto Alegre e Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).6 A autobiografia ressalta o caráter de sinceridade e fidelidade ao fenomênico do passado, numaperspectiva linear, enquanto a narrativa não necessariamente se prende a isso; porém considerao estatuto de passado/perdido/desaparecido, mas também, e justamente por isso, lembrado.

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vida psíquica, em particular da vida da lembrança e, inseparavelmente, da vida doesquecimento”. Por outro lado, a ampliação colocada na perspectiva narrativa em re-lação à autobiográfica inclui a “dimensão social do sujeito, que, renunciando à clausuratranqüilizante, mas também à sufocação da particularidade individual, é atravessadopelas ondas de desejos, de revoltas, de desesperos coletivos” (Gagnebin, 1999, p.74)(o grifo é nosso). A vida desse eu particular só adquire sentido no pano de fundo deuma experiência histórica. O que estrutura a obra, não é mais o fio das lembrançaspessoais, mas a densidade de uma memória pessoal e coletiva, porque o eu que nela sediz não fala somente para lembrar de si, mas também porque deve ceder lugar a algooutro que não o si mesmo. O que surge, é uma narrativa única, de imagens do in-consciente, num entrelaçamento da história do autor com a história dos outros ou doOutro, como acrescenta Gagnebin (1999). “O narrador retira da experiência o que eleconta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narra-das à experiência dos seus ouvintes.” (Benjamin, 1996, p.201)

Roberto Schwarz diz, em entrevista à Cris Gutkoski (Zero Hora, Caderno deCultura, sábado 01 de julho de 2000, p.3), levar a literatura “tão a sério que enxerga naficção a força transformadora das ciências sociais, capaz de produzir conhecimentosobre a realidade externa”. Para o autor, um romance pode conter “mais informaçõessobre a política, a economia e a sociologia dos períodos retratados do que todas essasdisciplinas juntas... com a vantagem de a leitura ser mais agradável dada a formainovadora perpetrada pelo talento do escritor.”

As imagens do passado aparecem deformadas, falsificadas e colocadas a servi-ço de tendências posteriores, por isso, tomam um caráter ficcional. Nesse sentido, nãose pode dizer que o passado explica o presente, e também não seria correto dizer que opresente ilumina o passado, mas sim que o interessante é pensar no encontro de ambosos tempos – presente e passado – enquanto formador de novas imagens/figuras, nosentido, não de um desenrolar, mas de uma dialética que relativiza tanto o presente –esse que despreza a tradição, a herança, a filiação – como o passado nostálgico. Esseprocesso todo, evidentemente, não sendo regido por mecanismos da consciência. Asimagens/figuras formadas a partir dele podem estar no presente, mas o que as compõevisualmente, vem de longe: essa é a dialética – passado e presente numa composição.

Destaca-se aqui o entrelaçamento entre narrativa, memória (pessoal e coleti-va), história e ficção. Ao mesmo tempo, destaca-se o estatuto coletivo daquilo que épróprio da construção narrativa do sujeito, que é uma proposição fundamental nestetexto e se ancora nos conceitos de sintoma social e laço social, que levam em conta aproposição lacaniana do inconsciente enquanto social.

Da mesma forma, destaca-se a noção de tempo na narrativa, particularmentena narrativa de memórias, conforme salientado acima, que não necessariamente é ocronológico: o presente e o passado vão formar novas imagens, numa composição que

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inclui o conceito de posterioridade, que diz que o passado se funda só depois.Algumas obras atravessam o tempo cronológico, como, por exemplo, “Infân-

cia em Berlim por volta de 1900”, de Walter Benjamin. Gagnebin (1992, p.44-45)define essa narrativa benjaminiana como um texto que

“é muito mais um conjunto de pequenos textos fragmentários que ne-nhuma diacronia clara organiza, mas que são interligados por uma redede lugares e de instantes privilegiados (...) lugares prediletos onde (...) oeu pode se refugiar, desaparecer e se perder, mas também se encontrar eter acesso ao outro”.

Nas narrativas ficcionais de memória a restituição do passado se dá através dorememorar, que inclui o que de fato aconteceu, os fatos, os acontecimentos, mas tam-bém inclui algo mítico, ficcional. Daí que podem surgir várias versões, sendo quenenhuma terá prevalência sobre as outras e também nenhuma delas será tomada comoa original. Todas terão o mesmo estatuto.

Dessa forma, os conceitos de tempo, memória, recalque, história e construçãode uma narrativa vão-se juntando, numa composição onde o sujeito é o narrador, cons-truindo sua história desde uma perspectiva atemporal, buscando, da memória, o quesobreveio do recalcado.

Uma identidade é compósita e em constante composição: inclui o velho e onovo, o mesmo e o Outro. Assim, inclui também uma espécie de alteridade que a fazconter também algo do ficcional, está relacionada ao rememorar e, portanto, é com-posta por lembranças, lembranças estas que vão tomando novos contornos, formandonovas figuras, figuras inventadas da memória, como diz Benjamin. As imagens dopassado se modificam desde o presente, numa dinâmica que, por outro lado, modificaambos os tempos.

A identidade nacional, muitas vezes, foi pensada a partir da primazia do origi-nal sobre a cópia ou do modelo sobre a imagem. Os brasileiros seriam meras e débeiscópias do europeu, uma cópia imperfeita, tanto mais imperfeita quanto mais o Paísaumentasse a distância das referências vindas de lá. O infundado do argumento daprevalência do original sobre a cópia já foi bem demonstrado por Lacan, a partir dosconceitos de identidade e identificação, e por Freud, a partir do eu ideal e do ideal doeu.

A demanda de exotismo, de originalidade, por exemplo, pode vir em oposiçãoà imitação, porque simplesmente imitar não é bem visto. Ser original, exótico, é maisvalorizado. Entretanto, a oposição é apenas aparente, porque não há como consideraro eu sem considerar o Outro, não há originalidade sem incluir a imitação. A originali-dade pura seria uma exigência mítica de criação a partir do nada, de criação a partir dozero. Também há parte de original no imitado.

Por outro lado, a busca da fotografia da época ou o que aconteceu, exatamente,

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é um empreendimento já deixado de lado pelas correntes modernas da historiografia:o acontecido de fato está lá, perdido no tempo. Benjamin (1996) diz que construirhistoricamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi’; significa,antes, apropriar-se de uma reminiscência.

“Não existem reencontros imediatos com o passado, como se este pu-desse voltar no seu frescor primeiro, como se a lembrança pudesse agar-rar uma substância, mas há um processo mediativo e reflexivo, um cui-dado de fidelidade teológica e/ou política a uma promessa de realizaçãosempre ameaçada, pois passada no duplo sentido de vergangen (passa-do/desaparecido).” (Gagnebin, 1999, p.14)

Pesavento (1999) sugere uma visão solidária com a perspectiva inconsciente,quando reconhece na história algo do ficcional. A autora se refere à possibilidade deentender a história como narrativa; ou seja, em vez de se assentar sobre uma verdade,ela resgata um poderia ter acontecido, possibilidade esta que admite múltiplas ver-sões. Dentro dessa perspectiva, o historiador cria, com sua narrativa, uma representa-ção do representado. Quer então captar a expressão da vida dos homens do passado,que só chegam até ele sob a forma de sinais, restos, registros. Segundo a autora, oshistoriadores constroem versões do passado. Nesse sentido, história é sobretudo nar-rativa, e não há uma narrativa mais autêntica do que outras, a não ser várias formas dedizer através da escolha de estratégias discursivas. A escritura da história traz consigoa subjetividade do historiador. Trata-se de uma construção a partir de registros, docu-mentos, mas que também junta invenção, ficção.

Numa interlocução com os campos da crítica literária, da antropologia, da arte,da psicanálise, essa nova história propõe que o testemunho, a narrativa, a imagem, sãorepresentações. Colocam-se no lugar daquilo que foi, e cada uma delas tem o mesmoestatuto. Trata-se de um tipo específico de narrativa histórica que é também uma espé-cie de ficção, pois fará o documento oficial falar, tomando em conta a dimensão imagi-nária e a condição de ser uma representação do passado. “O historiador busca recriar oque teria se passado um dia” (Pesavento, 1999, p.13), assim como o narrador da ficçãocria um enredo que poderia ter ocorrido um dia. Nesse sentido, ambas as representa-ções são plausíveis e falam do cruzamento sempre instigante entre o que de fato acon-teceu e o ficcional.

Na visão tradicional da história, não há lacunas. É importante, porém, ressaltarque hoje essa postura já é questionada no âmbito da nova história cultural, que sediferencia de uma visão tradicional. A historiografia não nos preserva dos lapsos dememória. Esta idéia permite dar um salto na contraposição que, muitas vezes, coloca-se entre o que aconteceu realmente e o que foi inventado.

O legado histórico só faz sentido quando do encontro com uma história indivi-dual nele inscrita. Quero ressaltar a relevância simbólica do encontro do legado histó-

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rico com uma história individual. É nesse sentido que se pode pensar o individual e ocoletivo articulados, dando conta de novas figuras ou novas constelações. O sujeito éaquele que conta e aquilo que é contado.

O que se transmite, não é o acontecimento, mas o recalcado – recalcado, nestecontexto, no sentido de uma história não-reconhecida. A partir desta premissa, pode-se pensar num tempo diferenciado do tempo cronológico, da história universal, doprincípio, meio e fim, do mito da veracidade da fonte historiográfica7 , da busca decausa-efeito, determinante-determinado, diferenciado da “representação abstrata e vaziado tempo histórico como sucessão infinita de pontos que somente a ordem de suaaparição interligaria” (Gagnebin, 1999, p.15).

Talvez a metáfora da constelação utilizada por Benjamin (apud Gagnebin, 1999,p.15) seja interessante para melhor situar essa questão: “Estes pontos isolados, os fe-nômenos históricos, só serão verdadeiramente salvos, quando formarem uma conste-lação, tais estrelas, perdidas na imensidão do céu, só recebem um nome quando umtraçado comum as reúne.” A palavra salvar é por ele usada no sentido de que esseprocedimento de interligar pontos inéditos, “que faz emergir momentos privilegiadospara fora do continuum cronológico”, é definido como a apreensão de uma constela-ção. O que surge da reunião de vários pontos é um novo desenho, um novo objeto, atéentão inexistente, mas que não deixa de incluir também os pontos ou estrelas já exis-tentes, descreve Benjamin. Isto inclui, certamente, algo do rememorar.

A memória não é uma instância que sabe o que registra e acumula, mas umlugar que jamais saberá por inteiro o que acumula. Esta noção se aproxima do queFreud definiu como memória a partir do conceito de traço mnêmico. Ele vai utilizaressa expressão, ao longo de toda sua obra, para designar a forma particular como osacontecimentos se inscrevem na memória. Os traços mnêmicos subsistem de formapermanente, mas só são reativados depois de investidos e retornam no sonho ou nosintoma, o que inelutavelmente junta memória com recalque e também possibilitaafirmar que memória é o ato mesmo de apagar. Lembrar e apagar, nesse sentido,indistinguem-se. Para lembrar é preciso apagar, e a forma como cada um vai lembraré peculiar e diz de sua construção ficcional, diz da forma como escreve sua história,conforme Costa (1998). A memória realiza uma articulação peculiar que faz com queuma história possa ser narrada ou contada, ou uma ficção, construída.

7 Esse mito se funda na concepção nostálgica do passado ou, também, no fato de que a transmis-são da história, na maioria das vezes, dá-se por elites dominantes, e é segundo seus critérios einteresses que os fatos se transformam em história oficial.

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As imagens, as fantasias, os fatos relatados, lidos ou transmitidos de geraçãopara geração, as peças dos museus dão conta da tentativa de restituição de um passadomais ou menos vergonhoso, mais ou menos brilhante, mais ou menos imperativo,mais ou menos cerceante para o sujeito. Esse é o grau de liberdade que resta a cadaum: produzir sua narrativa de uma forma singular. A escolha das imagens, dos fatos edas peças que farão parte desta ficção, não depende somente do gosto ou da vontade.Não se poderá contar com a exatidão das datas e dos acontecimentos, na medida emque o próprio rememorar, que inclui o caráter ficcional, atribui veracidade. A respon-sabilidade sobre sua produção estará na forma como cada um se ocupará do ativado noinconsciente.

Talvez seja interessante pensar no que Benjamin (Gagnebin, 1992) fala sobreimagem dialética, que seria a imagem capaz de lembrar sem imitar. Sua força estariano fato de fazer surgir uma figura nova e até mesmo inédita, uma figura realmenteinventada da memória, pois nasce da profusão da lembrança – imagem de memória,conforme a designou Didi-Huberman (1998).

A memória, conforme afirmado, tem um caráter múltiplo: uma certa dinâmicaque envolve o vivido individual, a experiência, mas também as imagens compartilha-das e a relação ao Outro. As imagens dispersas do passado são recolhidas para seremoferecidas à atenção do presente, numa dialética que modifica ambos. O ato mesmo delembrar aparece indissociado do esquecimento na memória. Os imigrantes, por exem-plo, constroem aqui o Novo retirado da memória, com tudo o que a memória tem deapagamento e encobrimento. É o que permite afirmar8 que os imigrantes não trazem,na sua mala de viagem ao novo continente, os manuais de instrução para confecção domobiliário colono, por exemplo. A forma de fazê-lo é retirada da memória. Dessaforma, não deveria causar surpresa o fato de aparecer, na ponteira de uma coluna, umaforma igual à das ponteiras das torres fenícias9 . “É a arte que, ousada, esclarece a vidareal.”10

8 Esta afirmação é feita por Luiz Eduardo Barichello, que é professor do Curso de DesenhoIndustrial do Centro Universitário Franciscano de Santa Maria e participa de um Projeto dePesquisa que visa catalogar o mobiliário e a arquitetura da 4ª colônia.9 Habitantes da Fenícia (Ásia antiga), ocupavam o litoral do que é a atual Síria, espremidos entreo Mediterrâneo e a alta cadeia do Líbano.10 Roberto Schwarz, em entrevista a Cris Gutkoski, Caderno de Cultura, sábado 01 de julho de2000, p.3.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASASSIS, Joaquim Maria Machado de. Instinto de nacionalidade. Rio de Janeiro : Aguilar, 1959.BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. In: _____. Obras Escolhidas. São Paulo :

Brasiliense, 1996. v.1COSTA, Ana M. M. da. A ficção do si mesmo. Rio de Janeiro : Cia. de Freud, 1998.COUTINHO, Afrânio. A literatura como fator de nacionalização brasileira. Rio de Janeiro :

Tempo Brasileiro, 1973.DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo : Ed. 34, 1998.FISCHER, Luís Augusto. Para fazer diferença. Porto Alegre : Artes & Ofícios, 1998.GAGNEBIN, J. M. Por que um mundo todo nos detalhes do cotidiano? Revista da USP, São

Paulo, n.15, p.44-7, set./nov. 1992._____. História e narração em W. Benjamin. São Paulo : Perspectiva, 1999.PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade, visões literárias do urbano. Porto Alegre :

Ed. Universidade/UFRGS, 1999.RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo : Cia. das Letras, 1995.SCHWARZ, Roberto. Que horas são?: ensaios. São Paulo : Cia. das Letras, 1989.

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BRASIL: O MITO FUNDADOR*

Marilena Chaui**

RESUMOComo ponto de partida, o texto contrapõe a concepção de história da Antigüi-dade clássica à do cristianismo. Neste, o tempo perde sua perspectiva cósmi-ca, cíclica, e adquire, pela promessa de redenção que resgata a falta originá-ria, a dimensão de desígnio divino. A autora analisa como a construção sim-bólica e imaginária referente à noção de Providência Divina e à visão proféti-co-milenarista do cristianismo concorrem, pelas circunstâncias históricas, paraa elaboração de nosso mito fundador.PALAVRAS-CHAVES: história; cristianismo; mito; tempo

ABSTRACTAs a start point, the text opposes the conception of history from the classicalantiquity to the one from Christianity. In this one, time looses its cosmic, cyclic,perspective and assumes, through the promise of redemption that rescues theoriginal fault, the dimension of divine designation. The author analyses howthe symbolic and imaginary constructions referring to the notion of the DivineProvidence and to the millenary prophetic vision of Christianity concur, throughhistorical circumstances, to the elaboration of our founding myth.KEYWORDS: history; Christianity; myth; time

* Trabalho originalmente publicado na Folha de São Paulo, Caderno Mais!, em 26/03/2000.** Professora de História da Filosofia e de Filosofia Política da USP, publicou “O que é ideolo-gia”, “Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo: Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty” e“Seminários: o nacional e o popular na cultura brasileira” (Ed. Brasiliense); “Cultura e demo-cracia: o discurso competente e outras falas” (Ed. Moderna); “Sobre o medo”, in Os sentidos dapaixão, “Janela da alma, espelho do mundo”, in O olhar, e “Laços do desejo”, in O desejo (Ed.Cia. das Letras).

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HISTÓRIA E COMEMORAÇÃO

Ao iniciar a História, Heródoto declara a razão que o levou a escrevê-la, dizendoque tratará de grandes feitos dos gregos e dos bárbaros que merecem ser conser-

vados na memória e que falará, igualmente, dos dois lados adversários porque a Fortu-na gira com justiça sua roda, e os grandes de hoje serão por ela diminuídos amanhã, osvencedores de agora serão os vencidos do porvir. É, pois, a grandeza dos feitos que ostorna memoráveis, e é a roda da fortuna que recomenda à prudência não esquecer quea grandeza esteve dos dois lados das ações.

Por seu turno, ao iniciar a “História da Guerra do Peloponeso”, Tucídides reto-ma o topos de Heródoto, declarando que narrará a guerra ainda em curso, por se tratardo maior movimento jamais realizado pelos helenos. Há, no entanto, dois aspectosnovos na narrativa de Tucídides, se comparada à de Heródoto: em primeiro lugar, nãosó é ele testemunha ocular da guerra, mas também tem dela uma visão pessimista, poisa vitória de qualquer dos lados significa a derrota da própria Hélade; em segundolugar, e sobretudo, Tucídides introduz a idéia de que é preciso encontrar as causas daguerra, perceber seus sinais, muito antes que ela começasse e, portanto, será precisomostrar que a guerra estava inscrita desde o momento em que se inicia o imperialismode Atenas. Dessa maneira, embora o historiador narre o que é memorável, sua narrati-va não se detém nos fatos imediatos da guerra, mas percorre o passado para nele leruma guerra que virá.

A dupla lição de Heródoto e de Tucídides é apanhada com vigor por Políbiosquando escreve a “Ascenção e queda do Império Romano”. Como Heródoto, Políbioprocura dar igual lugar de grandeza a cartagineses e romanos e sublinha o papel dafortuna na história de Roma, porém, como Tucídides, vai em busca das causas quedeterminaram a subida e a queda do império, pois, embora pareça que somente a for-tuna poderia explicar que, em cinqüenta anos, se formasse o maior poderio de umacidade de que se tem notícia, no entanto, será preciso ler no próprio movimento deascenção a queda que se prepara inevitavelmente.

As obras de Heródoto, Tucídides e Políbios nos permitem observar que a histó-ria nasce não somente sob o signo da memória, mas também sob o signo de uma dupladeterminação: a da fortuna, isto é, da contingência que percorre as ações humanas, e ada necessidade, isto é, da presença de causas que determinam o curso dos aconteci-mentos, independentemente da vontade humana. A fortuna é justa porque caprichosae aparentemente arbitrária, pois sua justiça consiste perpetuamente em elevar os rebai-xados e em rebaixar os elevados. A necessidade é implacável porque segue seu cursopróprio, uma vez que, num primeiro ato de vontade, os homens desencadearam umprocesso que não poderão controlar.

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HISTÓRIA E ESPERANÇA PROFÉTICAOra, o surgimento do cristianismo produz um efeito inesperado sobre a con-

cepção da história. Se é verdade que a noção de Providência divina reúne num únicoser, Deus, a contingência da vontade (a fortuna) e a necessidade do processo (o decre-to divino), todavia, herdeiro do judaísmo, o cristianismo introduz a idéia de que ahistória segue um plano e possui uma finalidade que não foram determinados apenaspela vontade dos homens.

A Antigüidade - tanto oriental como ocidental - concebia o tempo cósmicocomo ciclo de retorno perene e o tempo dos entes como reta finita, marcada pelonascimento e pela morte. No primeiro caso, o tempo é repetição e a forma da eternida-de; no segundo caso, é devir natural de todos os seres, aí incluídos os impérios e ascidades. O tempo dos homens, embora linear e finito, é medido pelo tempo circulardas coisas, pois a repetição eterna é o métron de tudo quanto é perecível: movimentodos astros, seqüência das estações, germinar e desenvolver das plantas. Eterno retornoe\ou sucessão que imita o retorno, o tempo é essencialmente embate do Ser e do Não-Ser ou, como vemos nas “Metamorfoses” de Ovídio, o tempo é o faminto e ferozdevorador que tudo destrói - tempus edax omnium rerum -, mas também o regeneradorperene de tudo quanto nasce e vive, e por isso, Ovídio o apresenta na imagem daFênix sempre rediviva. Enquanto o tempo cíclico exclui a idéia de história como apa-rição do novo, pois não faz senão repetir-se, o tempo linear dos entes da Naturezaintroduz a noção de história como memória. O primeiro se colocará sob o signo deTychê-Fortuna, cuja roda faz inexoravelmente subir o que está decaído e decair o queestá no alto; o segundo, posto sob a proteção de Mnemosyne-Memoria, garante imor-talidade aos mortais que realizaram feitos dignos de serem lembrados, tornando-osmemoráveis e exemplos a serem imitados, garantindo-se a perenidade ao passado porsua repetição, no presente e no futuro, sob a forma da mímesis, ou da repetição dosgrandes exemplos. Historia magistra vitae, “a história é mestra da vida”, dirá Cícero.O tempo da história grega é épico, narrando os grandes feitos de homens e cidadescuja duração é finita e cuja preservação é a comemoração.

Diferentemente desse tempo cósmico e épico, o tempo bíblico é dramático,pois a história narrada é não somente sagrada, mas também o drama do afastamento dohomem de Deus e da promessa de reconciliação de Deus com o homem. Relato dadistância e proximidade entre o homem e Deus, o tempo não exprime os ciclos danatureza e as ações dos homens, mas a vontade de Deus e a relação do homem comDeus: o tempo judaico – e o de seu herdeiro, o tempo cristão - é expressão da vontadedivina que o submete a um plano cujos instrumentos de realização são os homensafastando-se Dele e Dele se reaproximando por obra Dele.

No hebraico, tikwah, esperança, é a expectativa de um bem que se articula àPromessa, nascida da aliança de Deus com seu Povo, e, portanto à espera do Messias

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como salvador coletivo que restaura a integridade, grandeza e potência de Israel. Otempo cíclico da repetição cede lugar à flecha do tempo, em que o tempo futuro redi-me o tempo passado, pois a promessa divina de redenção resgata a falta originária.

A Cristologia nasce em dois movimentos sucessivos: no primeiro, o AntigoTestamento é interpretado como profecia, prefiguração e tipologia do Advento; nosegundo, o Novo Testamento é interpretado como profecia do Segundo Advento e doTempo do Fim. Retirando do AT a dimensão teocêntrica para lhe dar um conteúdocristocêntrico, o NT considera realizada a Profecia. No entanto, ao transformar o NTem enigma a ser decifrado, o cristianismo reabre o campo profético, referido, agora, àSegunda Vinda do Cristo.

O vínculo que unifica judaísmo e cristianismo é a concepção do tempo. Por sertempo da queda e da promessa, é tempo profético, e o plano divino pode ser decifradopor aqueles aos quais foi dado o dom da profecia. O tempo é sempre realização daPromessa e, por ser profético, não está voltado para a lembrança do passado e sim paraesperança no futuro como remissão da falta e reconciliação com Deus. O tempo não ésimples escoamento, mas passagem rumo a um fim que lhe dá sentido e orienta seusentido, sua direção.

História é, pois, a operação de Deus no tempo. Daí suas características funda-mentais: 1) providencial, unitária e contínua porque é manifestação da vontade deDeus no tempo que é dotado de sentido e finalidade, graças ao cumprimento do planodivino; 2) teofania, isto é, revelação contínua, crescente e progressiva da essência deDeus no tempo; 3) epifania, isto é, revelação contínua, crescente e progressiva daverdade no tempo; 4) é profética, não só como rememoração da Lei e da Promessa,mas também como expectativa do porvir ou, como disse o Padre Vieira, a profecia é“história do futuro”. A profecia traz um conhecimento do que está além da observa-ção humana, oferecendo aos homens a possibilidade de conhecer a estrutura secretado tempo e dos acontecimentos, isto é, de ter acesso ao plano divino; 5) salvívica ousoteriológica, pois o que se revela no tempo é a promessa de redenção e de salvação,obra do próprio Deus; 6) escatológica (do grego, tà eschatoi, as últimas coisas ou ascoisas do fim), isto é, está referida não só ao começo do tempo, mas, sobretudo, ao fimdos tempos e ao Tempo do Fim, quando a Promessa estará plenamente cumprida. Adimensão escatológica da história é inaugurada com o livro da Revelação de Daniel,capítulo 12, primeiro texto sagrado a falar num tempo do fim, descrito como precedidode abominações e como promessa de ressurreição e salvação dos que estão “inscritosno Livro”, como tempo do aumento dos conhecimentos com a abertura do “livro dossegredos do mundo”, e, sobretudo, como tempo cuja duração está predeterminada:“será um tempo, mais tempos e a metade de um tempo” que se iniciará após “mil eduzentos dias” de abominação e durará “mil trezentos e trinta cinco dias”, depois dosquais os justos estarão salvos; 7) apocalíptica (do grego, apocalypse, revelação direta

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da verdade pela divindade), pois, com Daniel, primeiro, e João, depois, o segredo dahistória é uma revelação divina feita diretamente pelo próprio Deus ao profeta e aoevangelista. Essa revelação diz respeito prioritariamente ao Tempo do Fim ou ao Diado Senhor, como escreve São Paulo aos Tessalônicos. Nesse tempo do fim, quando oCristo virá pela segunda vez e vencerá o Anticristo, haverá um Reino de Mil Anos defelicidade e abundância que prepara os santos para o Juízo Final e a entrada na Jerusa-lém Celeste, fora do tempo ou na eternidade.

HISTÓRIA TERMINADA E HISTÓRIA POR ACONTECER O cristianismo conhece duas visões rivais da história: a da ortodoxia e a

milenarista. A diferença entre ambas se refere a um ponto preciso: entre a primeira e asegunda vinda de Cristo acontece alguma coisa, o tempo realiza progresso, as açõeshumanas contam, há novas revelações, há uma história propriamente? Ou não? Isto é,com o Primeiro Advento, tudo está consumado e os homens devem apenas aguardar aplenitude final do tempo, que se dará com o Juízo Final e o Jubileu eterno, ou o Segun-do Advento supõe um tempo aberto aos acontecimentos que preparam o Tempo doFim?

Para a ortodoxia, o percurso temporal inicia-se com a Criação do mundo etermina com a Encarnação de Cristo; entre esta e o momento do Juízo Final, nadamais acontece, senão a espera de Cristo, pelo Povo de Deus, e a decadência contínuado século para todos os que se afastam de Deus e se abandonam ao Demônio. A reve-lação está consumada e o tempo é somente uma vivência individual e psicológica,narrando o caminho da alma rumo a Deus ou distanciando-se Dele, na direção do Mal.Desaparece a escatologia do Tempo do Fim, quer como algo iminente, quer como algonovo e decisivo na história.

Nessa perspectiva, a história se realiza em três tempos e sete eras. Os três tem-pos são a ação da Trindade no tempo: tempo do Pai (o tempo dos judeus sob Noé eAbrahão até Moisés), tempo do Filho (a Encarnação do Cristo, quando começa a novaAliança ou a nova lei) e tempo do Espírito Santo (a comunidade cristã, quando a leiestá escrita no coração de cada homem, que dela toma conhecimento pela graça divi-na). As sete eras formam a Semana Cósmica, na qual seis eras são temporais, isto é,referem-se à operação da vontade divina no tempo (Criação, Queda, Dilúvio, Patriar-cas, Moisés e Encarnação), mas a sétima era, ou o Sétimo Dia, é o Juízo Final, já forado tempo. O Oitavo Dia é o Jubileu eterno.

Essa cronologia esvazia a questão antiga sobre o que se passa no intervalo detempo entre o Primeiro e o Segundo Advento e no intervalo de tempo entre a vinda doFilho da Perdição (o Anticristo) e o Juízo Final. Em outras palavras, o que acontece noque Daniel designara como “o tempo, os tempos e a metade do tempo” e São Joãocomo o “silêncio de meia-hora no céu”, entre a abertura do sexto e do sétimo Selos?

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Eram esses intervalos que abrigavam o centro da história escatológica, pois neles ha-veria nova revelação, inovação, acontecimento e preparação para o fim do tempo.

Pouco a pouco, porém, a concepção milenarista retorna, até que, no século XII,ela se consolida na obra do abade calabrês, Joaquim di Fiori. A grande renovaçãointelectual e religiosa do século XII foi contemporânea de acontecimentos que abala-ram a cristandade e, por isso, não poderia deixar intacta a necessidade de conciliaracontecimento e plano divino, mudança e ordem, estabilidade e contingência. Preci-sou dar conta da desordem no mundo: Islã, cruzadas, cismas eclesiásticos, guerrasentre Império e Papado. A busca da ordem no mundo teve que enfrentar acontecimen-tos cujo sentido não estava dado, mas que não podiam escapar à ordem providencial.Tornou-se imperiosa a busca do conhecimento da estrutura secreta do tempo e de seusentido. A reordenação teológica do tempo se fez pela interpretação apocalíptico-escatológica da história profética e milenarista.

A novidade maior dessa elaboração é a de que a obra do tempo é operação daTrindade: a unidade das Três Pessoas garante a ordem imutável, enquanto a diferençaentre as operações de cada uma delas explica a variação temporal. Com isso, aEncarnação deixa de ser o término da história para se tornar seu centro, o que significaque algo mais ainda deve acontecer antes do Juízo Final. Esse algo mais é um tempoduplamente facetado: é o do aumento da desordem e dos males, porque tempo doAnticristo, mas é também o do aumento da perfeição e da graça, sob a ação do EspíritoSanto, como profetizou Daniel. Está pavimentado o caminho para o abade calabrês,Joaquim di Fiori, com quem surge a imagem da apoteose terrena dos Mil Anos e aidéia de que a história é a operação da Trindade no tempo, no qual uma última edecisiva revelação-iluminação está reservada para a Sexta Era e para o Tempo do Fim:a plenitude do tempo coincidirá com a plenitude do Espírito ou do saber.

Com Joaquim di Fiori, podemos falar numa filosofia da história, isto é, notempo estruturado e escandido em três tempos progressivos rumo à apoteose. Essafilosofia da história se oferece como concepção trinitária, progressiva e orgânica dahistória como desenvolvimento de estruturas invisíveis. Trinitária: a história é obra doEspírito através do Pai e do Filho, até a revelação final do Espírito. Progressiva: ahistória é o desenvolvimento temporal do aumento do saber, cuja plenitude coincidecom o tempo do fim, quando será aberto “o livro dos segredos do mundo”. Orgânica:a estrutura do tempo, simbolizada pela Árvore de Jessé, significa que o tempo não éciclo perpétuo de tribulações, não é agonia nem afastamento do absoluto, mas arbustoflorescente onde frutifica a semente divina da verdade efetuando-se como eternidadetemporal. Será impossível não reconhecer traços joaquimitas em toda a filosofia dahistória posterior. Joaquim introduz dois símbolos não escriturísticos e que são suasprofecias próprias: o Papa Angélico (que prepara o caminho para o encontro finalentre Cristo e o Anticristo) e os homens espirituais (duas novas ordens monásticas de

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preparação para o Tempo do Fim, a ativa ou dos pregadores, e a contemplativa, ou dosmonges eremitas).

No centro da herança joaquimita, encontra-se a idéia de que haverá ainda umafase final da história, um tempo abençoado ainda por vir. O apogeu da história, preen-chimento do intervalo da “metade do tempo” e do “silêncio de meia hora no céu” ouplenitude do tempo, será sinalizado pelo aumento da espiritualidade no mundo, antesdo Juízo Final. Será a era do Espírito Santo, tempo do intelecto e da ciência.

NOVO MUNDO

“Para a empresa das Índias não me aproveitou razão nem matemáticanem mapa-mundos; plenamente cumpriu-se o que disse Isaías”.Colombo, Carta aos Reis, 1501

“Porque não é em vão, mas com muita causa e razão que isto se chamaNovo Mundo, e não por se ter achado há pouco tempo, senão porque éem gentes e em tudo como foi aquêle da idade primeira.”Carta de Vasco da Quiroga, 1535

“... que falou Isaías da América e do Novo Mundo, se prova fácil eclaramente [...]. Digo, primeiramente, que o texto de Isaías se entendedo Brasil [...]”Padre Vieira, História do Futuro, 1666

No dia 6 de janeiro de 1492, Fernando e Isabel entram em Granada e recebemdas mãos do califa as chaves da Alhambra. Fazem hastear o estandarte real e erguer ocrucifixo no mais alto parapeito. De Barcelona, os embaixadores genoveses enviamuma carta de louvor às majestades católicas: “Não é indigno nem sem razão que vosasseveramos, reis grandíssimos, que lemos o que predisse o Abade Joaquim Calabrês,que a restauração da Arca de Sião seria feita pela Espanha”. De fato, o abade Joaquimafirmara que o Reino de Deus na terra — a era do Espírito Santo — começaria com avitória de Cristo contra o Anticristo, identificado por ele com Saladino, que acabara deinvadir a Espanha no mesmo momento em que Jerusalém caía nas mãos dos árabes.Assim, os embaixadores de Gênova saúdam menos a expulsão dos mouros e mais oprimeiro sinal do milênio, do tempo do fim do tempo, aberto pela vitória de Castela.

No dia 3 de agosto desse mesmo ano, Colombo parte de Palos. O relato daPrimeira Viagem se abre com a exposição de motivos: os reis o enviaram ao Orientepelo Ocidente para “combater a seita de Maomé e todas as idolatrias e heresias” e para,nas regiões da Índia e da China, ver príncipes, povos e a “disposição deles” para que

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encontrasse meios de convertê-los “à nossa fé”. Em 1500, enquanto Pedro ÁlvaresCabral se dirige ao que viria ser o Brasil, o Almirante do Mar Oceano, Don CristobalColón, oferece aos Reis Católicos o relato de sua Terceira Viagem, em que assegurater descoberto a localização do Paraíso Terrestre, graças às indicações dos autoresantigos e do profeta Isaías que, segundo interpretação do Abade Joaquim, afirmara“que da Espanha lhe seria elevado seu Santo Nome”. Numa carta de 1501 aos reis enuma carta de 1502 ao Papa, Cristóvão Colombo reafirma a descoberta do Paraíso,sente-se instrumento das profecias do abade Joaquim e oferece os cálculos do tempoque resta até o Tempo do Fim: 155 anos.

Sabemos que um traço marcante da mentalidade do final da Idade Média e daRenascença foi o sentimento da caducidade do mundo e da necessidade de seurenascimento ou de passar do “outono do mundo” a uma nova primavera, concebendoo Tempo do Fim como retorno à origem perdida.

Em seu clássico, “A visão do paraíso”, Sérgio Buarque de Holanda escreve:“Colombo, sem dissuadir-se de que atingira pelo Ocidente as partes do Oriente, jul-gou-se em outro mundo ao avistar a costa do Pária, onde tudo lhe dizia estar o caminhodo verdadeiro Paraíso Terreal. Ganha com isso o seu significado pleno aquela expres-são “Novo Mundo”, [...] para designar as terras descobertas. Novo, não só porque,ignorado, até então, das gentes da Europa [...], mas porque parecia o mundo renovar-se ali, e regenerar-se, vestido de verde imutável, banhado numa perene primavera,alheio à variedade e aos rigores das estações, como se estivesse verdadeiramente resti-tuído à glória dos dias da Criação”. (p. 204).

Menos um conceito geográfico, ainda que para os conquistadores fosse umconceito geopolítico, militar e econômico, a América foi, para viajantes, evangelizadorese filósofos, uma construção imaginária e simbólica. Diante de sua absoluta novidade,como explicá-la? Como compreendê-la? Como ter acesso ao seu sentido? Colombo,Vespúcio, Pero Vaz de Caminha, Las Casas dispunham de um único instrumento parase aproximarem do Mundo Novo: livros. Quando lemos cartas, diários de viagem,relatos da vida americana, perspectivas filosóficas e políticas dedicadas ao Novo Mundo,podemos notar que os textos são muito menos descrições e interpretações de experiên-cias novas diante do novo e muito mais comentários, exegeses de outros livros, anti-gos, que teriam descrito e interpretado as terras e gentes novas. O Novo Mundo jáexistia, não como realidade geográfica e cultural, mas como texto e os que para aquivieram ou os que sobre aqui escreveram não cessam de conferir a exatidão dos antigostextos e o que aqui se encontra. Antes de ser designado como América ou comoBrasil, o aqui se chamava Oriente, um símbolo bifronte: sede econômica e política dosgrandes impérios da Índia e da China (descritas nas viagens maravilhosas de MarcoPolo e Mandeville), mas também sede imaginária do Paraíso Terrestre, preservado daságuas do dilúvio e descrito no Livro da Gênese como terra austral e oriental, cortada

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por quatro rios imensuráveis, rica em ouro e pedras preciosas, de temperatura sempreamena, numa primavera eterna. Terra profetizada pelo profeta Isaías, quando escre-veu: “Assim, tu chamarás por uma nação que não conheces, sim uma nação que não teconhece acorrerá a ti” (Is. 55, 6). “Sim, da mesma maneira que os novos céus e a novaterra que estou para criar subsistirão na presença, assim subsistirá a vossa descendên-cia e o vosso nome” (Is. 66, 20).

No entanto, não é apenas Isaías que projeta sua sombra sobre os navegantes.De igual importância será o profeta Daniel, não só porque o livro das Revelaçõesanuncia o Tempo do Fim, mas também porque esse tempo final será o advento daQuinta Monarquia ou, como dirão os cristãos, do Quinto Império do Mundo, durandomil anos de felicidade porque reino messiânico. No imaginário da conquista do Brasil,Daniel é menos aquele que anuncia novas terras e mais aquele que anuncia o novotempo como Reino de Deus e tempo do saber, quando o homem esquadrinhará a terrana direção dos quatro ventos e será aberto o Livro dos Segredos do Mundo: “Osímpios agirão com perversidade, mas nenhum deles compreenderá, enquanto os sábi-os compreenderão” (Dan. 12, 10). “Feliz quem esperar e alcançar mil trezentos e trintae cinco dias. Quanto a ti, vai até o fim. Repousarás e te levantarás para tua parte daherança, no Tempo do Fim” (Dan. 12, 12-13).

Entre 1647 e 1666, o Padre Vieira escreve “História do futuro”, obra que lhevalerá a condenação de “herética e judaizante” pelo tribunal da Inquisição, pois “pro-mete o reino de Deus nesta vida e muito cedo”, à maneira dos judeus que “o esperamnesta vida presente de seus Messias, e perpétuo para sempre”. A origem da condena-ção é o livro “Esperanças de Portugal”, parte da trilogia que inclui a “Chave dos pro-fetas” e a “História do futuro”, inspirada em Daniel, no capítulo 18 de Isaías, nas“Trovas do Bandarra” (em que o Encoberto D. Sebastião será o Imperador dos Últi-mos Dias, vencedor das primeiras batalhas contra o Anticristo), e no milenarismotrinitário de Joaquim di Fiori. A obra prevê a união de portugueses e judeus, o Reinode Mil Anos e o retorno triunfal dos judeus a Israel. A interpretação do capítulo 18 deIsaías, possivelmente recebida pelo jesuíta, das obras do franciscano peruano GonzaloTenório, demonstra que Isaías profetizou não só a América, mas, pela quantidade dedetalhes e particularidades, profetizou o Brasil e não o Peru, como julgara Tenório.Ambos, porém, interpretam as “gentes convulsas”, as “gentes dilaceradas” e as “gen-tes terríveis”, de que fala Isaías, como sendo as Dez Tribos Perdidas de Israel, e omotivo fundamental para essa interpretação é uma outra profecia de Isaías, segundo aqual a redenção do “resto de Israel” só se dará depois que todo Israel se houver disper-sado na direção dos quatro ventos e, evidentemente, a última direção somos nós.

Jesuítas e franciscanos se consideram as duas ordens monásticas profetizadaspor Joaquim di Fiori e, por isso, escrevem movidos pela certeza do fim da história e dotempo do fim como tempo do Espírito Santo inteiramente revelado ao Reino de Deus.

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O profetismo messiânico que os move os faz reafirmar, diante da Bíblia, que os “mo-dernos são pigmeus sentados nos ombros de gigantes” e que, se podem ver mais longedo que os antigos, é porque estes, mais próximos da revelação originária, sustentamem seus braços os anões modernos. Grandes foram os que profetizaram. Pequenos osque sabem reconhecer a realização das profecias. “Os futuros”, diz Vieira, “quantomais vão correndo, tanto mais se vão chegando a nós e nós a eles”.

O Brasil não é apenas “novos céus e novas terras” cumprindo a profecia doalargamento da ciência e o anúncio do milênio como Era do Espírito: o Brasil é condi-ção e parte integrante do milênio, isto é, do Último Império. As profecias de Daniele de Isaías, cumpridas com a descoberta e a conquista do Brasil, são fatos e provas daconsumação da revelação e do tempo. Nós somos a história consumada.

O MITO FUNDADORVivemos na presença difusa de uma narrativa da origem. Essa narrativa, embo-

ra elaborada no período da conquista, não cessa de se repetir porque opera como nossomito fundador. Mito no sentido antropológico: solução imaginária para tensões, con-flitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade.Mito na acepção psicanalítica: impulso à repetição por impossibilidade de simbolizaçãoe, sobretudo, como bloqueio à passagem à realidade. Mito fundador porque, à maneirade toda fundatio, impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, comum passado que não cessa, que não permite o trabalho da diferença temporal e que seconserva como perenemente presente. Um mito fundador é aquele que não cessa deencontrar novos meios para se exprimir, novas linguagens, novos valores e idéias, detal modo que quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.

Pelas circunstâncias históricas de sua construção inicial, nosso mito fundadoré elaborado segundo a matriz teológico-política e, nele, quatro constituintes princi-pais se combinam e se entrecruzam, determinando não só a imagem que possuímos dopaís, mas também nossa relação com a história e a política. O primeiro constituinte,para usarmos ainda uma vez a expressão de Sérgio Buarque de Holanda, é a “visão doparaíso” ; o segundo é oferecido pela história teológica, elaborada pela ortodoxia cris-tã, isto é, a perspectiva providencialista da história; o terceiro provém da históriateológica profética cristã, ou seja, do milenarismo de Joaquim di Fiori, e o quarto éproveniente da elaboração jurídico-teocrática da figura do governante como “rei pelagraça de Deus”.

O BRASIL JARDIM DO PARAÍSODiários de bordo e cartas dos navegantes e dos evangelizadores não cessam de

se referir às novas terras falando da formosura de suas praias imensas, da grandeza evariedade de seus arvoredos e animais, da fertilidade de seu solo e da inocência de

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suas gentes que “não lavram nem criam (…) e andam tais e tão rijos e tão nédios queo não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos”, como se lê na “Cartade Pero Vaz de Caminha a El rei Don Manuel sobre o achamento do Brasil”. É dessacarta a passagem celebrada: “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira graciosaque, querendo-se aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”.

Quando se examinam relatos aparentemente descritivos, não se pode deixar denotar que certos lugares-comuns se encontram em todos eles. O Brasil é sempre des-crito como imenso jardim perfeito: a vegetação é luxuriante e bela (flores e frutosperenes), as feras são dóceis e amigas (em profusão inigualável), a temperatura é sem-pre amena (“nem muito frio, nem muito quente”, repete toda a literatura e Pero Vaz deCaminha), aqui reina a primavera eterna contra o “outono do mundo”, o céu está pe-renemente estrelado, os mares são profundamente verdes, e as gentes vivem em estadode inocência, sem “esconder suas vergonhas” (diz Pero Vaz), sem lei e sem rei, semcrença, e pronta para a evangelização. Esses lugares comuns literários possuem umsentido preciso que não escaparia a nenhum leitor dos séculos XVI e XVII: são ossinais do Paraíso Terrestre reencontrado.

Nascido sob o signo do Jardim do Éden, o mito fundador não cessará de repô-lo. Três exemplos podem ajudar-nos a perceber a permanência desse, muito depois deencerrada a exegese mítica da descoberta-conquista.

Praticamente quase todas as bandeiras nacionais, criadas nos vários países du-rante o século XIX e início do século XX, são bandeiras herdeiras da Revolução Fran-cesa. Por isso são tricolores (algumas poucas são bicolores), as cores narrando aconte-cimentos sociopolíticos dos quais a bandeira é a expressão. A bandeira brasileira é aúnica não tricolor produzida nesse período. Possui quatro cores. Ora, quando se per-gunta qual o significado dessas cores, não se responde que o verde, por exemplo,simbolizaria lutas camponesas pela justiça, mas sim que representa nossas imensas einigualáveis florestas; o amarelo não simboliza a busca da Cidade do Sol, utopia deCampanella da cidade ideal, mas representa a inesgotável riqueza natural do solo pátrio;o azul não simboliza o fim da monarquia dos Bourbons e Orléans, mas a beleza perenede nosso céu estrelado, onde resplandece a imagem do Cruzeiro, sinal de nossa devo-ção a Cristo Redentor, e o branco não simboliza a paz conquistada pelo povo, mas aordem (com progresso, evidentemente). A bandeira brasileira não exprime a políticanem a história. É um símbolo da Natureza: floresta, ouro, céu, estrela e ordem. É oBrasil-jardim, o Brasil-paraíso terrestre.

O mesmo fenômeno pode ser observado no Hino Nacional, que canta maresmais verdes, céus mais azuis, bosques com mais flores e nossa vida de “mais amores”.O gigante está “deitado eternamente em berço esplêndido”, isto é, na Natureza comoparaíso ou berço do mundo, e é eterno em seu esplendor.

E, terceiro exemplo, a poesia ufanista que toda criança aprende a recitar naescola, como o poema do Conde Afonso Celso, “Porque me ufano de meu país”, ou os

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sonetos parnasianos de Olavo Bilac: “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!/Criança, jamais verás país como este!/ Olha que céu, que mar que floresta!/ A nature-za, aqui perpetuamente em festa,/ É um seio de mãe a transbordar carinhos.”

Esta produção mítica do país-paraíso nos persuade de que nossa identidade egrandeza se encontram predeterminadas no plano natural: somos sensíveis e sensuais,carinhosos e acolhedores, alegres e, sobretudo, somos essencialmente não-violentos.O primeiro elemento da construção mítica nos lança e nos conserva no reino da Natu-reza, deixando-nos fora do mundo da História.

ABENÇOADO POR DEUS: A HISTÓRIA PROVIDENCIALISTAO segundo elemento na produção do mito fundador vai lançar-nos na história,

depois de nos haver tirado dela. Trata-se, porém, da história teológica ouprovidencialista, realização do plano de Deus ou da vontade divina em que o tempo éteofania (revelação de Deus no tempo) e epifania (revelação da verdade divina notempo). É história profética (cumprimento da vontade de Deus no tempo) e soteriológica(promessa de redenção no tempo). Essa história já está consumada com a vinda deCristo e, portanto, se o Brasil é “terra abençoada por Deus”, Paraíso reencontrado, éporque estamos numa história que se realiza sem tempo e fora tempo – o gigante está“deitado eternamente em berço esplêndido”–, pois fazemos parte do plano providen-cial de Deus. Ora, se somos parte essencial do plano de Deus, então nosso futuro seencontra desde sempre e para sempre assegurado. Por isso mesmo, podemos afirmarque, de direito, somos o “ país do futuro”. E nossa segurança é tanto maior porqueDeus nos ofereceu o signo do porvir: a Natureza paradisíaca, sinal da Providência quenos escolheu como novo Povo Eleito.

O SERTÃO VAI VIRAR MAR \ O MAR VAI VIRAR SERTÃO:A HISTÓRIA PROFÉTICO-MILENARISTANo entanto, contraposta à história providencialista já consumada, existe, como

vimos, uma outra, que constitui o terceiro elemento da elaboração mítica do Brasil: ahistória profética, messiânica e milenarista, inspirada em Joaquim di Fiori.

Dois, como vimos, são os traços principais dessa história: a divisão do tempoem três eras - do Pai, do Filho e do Espírito, ou da lei, da graça e da ciência - e o embatefinal entre o Anticristo e Cristo durante a era messiânica do Segundo Advento, com avitória de Cristo e a instalação de um Reino de Mil Anos de felicidade no Tempo doFim, que é também fim dos tempos, no qual se preparam o Juízo Final e a instauraçãodo Reino Celeste de Deus. Antecedendo a Segunda Vinda de Cristo e preparando oterreno para o embate final, é enviado o Salvador Terreno dos Últimos Dias, que oPadre Vieira, no século XVIII, e Antônio Conselheiro, no século XX, identificaramcom Dom Sebastião.

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Enquanto a história providencialista é apropriada pelas classes dominantes ecamadas dirigentes (pois assegura que as instituições existentes são o plano divinorealizado), a história profética é apropriada por todos os dissidentes cristãos e pelasclasses populares, formando o fundo milenarista de interpretação da vida presentecomo miséria à espera dos “sinais dos tempos” que anunciarão a chegada do Anticristoe do combatente vitorioso. É com essa história profética que as classes populares bra-sileiras têm acesso à política, percebida por elas como embate cósmico entre a luz e atreva ou entre o bem e o mal, na qual a questão não é a do poder, mas a da justiça e dafelicidade. O elemento essencial nessa fervorosa expectativa do milênio é a figura docombatente que prepara o caminho de Cristo, pré-salvador que surge nas vestes dodirigente messiânico em quem são depositadas todas e as últimas esperanças. É esta afigura assumida pelo bom governante perante as classes populares brasileiras.

GOVERNADO PELA GRAÇA DE DEUS;ATORDOADO PELAS ARTES DO MALIGNOFinalmente, o quarto elemento componente da matriz mítica fundadora encon-

tra-se na elaboração jurídico-teocrática do governante pela graça de Deus. Essa matrizdepende de duas formulações diferentes, mas complementares.

A primeira delas afirma que, pelo pecado, o homem perdeu todos os direitos e,portanto, perdeu o direito ao poder. Este pertence exclusivamente a Deus, pois, comolemos na Bíblia: “Todo poder vem do Alto\ Por mim reinam os reis e governam ospríncipes”. É por uma decisão misteriosa e incompreensível, por uma graça especial,que Deus concede poder a alguns homens. A origem do poder humano é, assim, umfavor divino àquele que O representa. O governante, portanto, não representa os go-vernados e sim a fonte transcendente do poder (Deus), e governar é realizar ou distri-buir favores.

A segunda formulação, sem abandonar a noção de favor, introduz a idéia deque o governante representa Deus, porque possui uma natureza mista como a de JesusCristo. O governante possui dois corpos: o corpo empírico, mortal, humano e o corpopolítico, místico, eterno, imortal, divino. Por receber o corpo político, o governanterecebe a marca própria do poder: a vontade pessoal absoluta divina. Daí o adágiojurídico: “o que apraz ao rei, tem força de lei”. A teoria do corpo político místicotransforma a res publica em dominium e patrimonium do governante: a terra e osfundos públicos se transformam em membros do corpo do governante e se tornampatrimônio privado, transmitem-se aos descendentes e podem ser distribuídos sob aforma do favor e da clientela.

Em qualquer dos casos, um ponto é idêntico: o poder político, isto é, o Estado,antecede a sociedade e tem sua origem fora dela, primeiro, nos decretos divinos e,depois, pelos decretos do governante.

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TEXTOS

Isso explica uma das componentes principais de nosso mito fundador, qualseja, a afirmação de que a história do Brasil foi e é feita sem sangue, pois todos osacontecimentos políticos não parecem provir da sociedade e de suas lutas, mas direta-mente do Estado, por decretos: capitanias hereditárias, governos gerais, independên-cia, abolição, república. Daí também uma outra curiosa conseqüência: os momentossangrentos dessa história são considerados meras conspirações (“inconfidências”) oufanatismo popular atrasado (Praieira, Canudos, Contestado, Pedra Bonita, Farroupilhas,MST).

Dessa maneira, o mito fundador opera de modo socialmente diferenciado:1 – do lado dos dominantes, opera com a visão de seu direito natural ao podere na legitimação desse pretenso direito natural por meio do ufanismo naciona-lista e desenvolvimentista, expressões laicizadas do Paraíso Terrestre e da teo-logia da história providencialista, assegurando a imagem do Brasil como co-munidade una e indivisa, ordeira e pacífica, rumando para seu futuro certo,pois escolhido por Deus;2 – do lado dos dominados, realiza-se pela via profético-milenarista, que pro-duz dois efeitos principais: a visão do governante como salvador e a sacralização-satanização da política. Em outras palavras, uma visão da política que possuicomo parâmetro o núcleo profético-milenarista do embate final, cósmico, entrea luz e treva, bem e mal, de sorte que o governante ou é sacralizado (luz e bem)ou satanizado (treva e mal).É evidente, portanto, que o mito fundador opera com uma contradição insolú-

vel: o país-jardim é sem violência e, pela história providencialista, ruma certeiro paraseu grande futuro; em contrapartida, o país profético está mergulhado na injustiça, naviolência e no inferno, à procura de seu próprio porvir, na batalha final em que vence-rá o Anticristo. Entre ambos, cava fundo o humor das ruas: “Quem foi que descobriuo Brasil?\ Foi seu Cabral, foi seu Cabral\ No dia 22 de abril\ Dois meses depois docarnaval!”.

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TEXTOS BRASIL: MELANCOLIA OUCRIAÇÃO?A carnavalização necessária

Miriam Chnaiderman*

RESUMOVários psicanalistas têm buscado chaves interpretativas para pensar o que éser brasileiro. Comparando essas leituras com aquelas realizadas por algunspensadores que se dedicaram ao tema (Gilberto Freyre, Sergio Buarque deHolanda), chegamos à conclusão de que a leitura feita por psicanalistas émelancolizante. Através do trabalho com as cartas de Colombo, com a ques-tão da origem de Portugal, nossa confusão de línguas vai ficando evidente. Éna recuperação do conceito de mito tal como foi pensado por Lévi-Strauss, ouseja, como estrutura que passa pela música, que podemos resgatar algo delúdico neste pensar o Brasil.PALAVRAS-CHAVES: origem, repetição, identidade, alteridade, criação

ABSTRACTSeveral psychoanalysts have been seeking interpretative keys to think what itis to be brazilian. Comparing these readings with the ones by some thinkersthat considered the issue (Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda), wecome to the conclusion that the reading by the psychoanalysts is depressing.Through the work with Columbu’s letters, with the question of Portugal’s origin,our language confusion turns clear. It is in the rescue of the concept of myth asthought of by Lévi-Strauss, that is, as structure that passes through music,that we can rescue some of the playful in this thinking about Brazil.KEYWORDS: origin, discovery, repetition, identity, creation

* Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pesquisa-dora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de Pós-Graduação em Psico-logia Clínica da PUC-SP, doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da USP, pós-doutorado na PUCSP, autora dos livros “Ensaios de Psicanálise e Semiótica” (Ed. Escuta) e “Ohiato convexo: literatura e psicanálise” (ed. Brasiliense). Diretora do curta-metragem “Dizemque sou louco”.

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Em todos os ensaios de psicanálise que procuram pensar o Brasil, acentua-se aimportância da origem como marca identitária. Fiéis a Freud, rastreia-se em uma

história o que dela se repete em nosso dia a dia atual. Ou seja, quando se debruçamsobre o Brasil, os psicanalistas necessariamente trabalham com o que é da ordem domito. Lévi-Strauss (1958) já definia o mito por um sistema temporal: um mito semprese refere a eventos passados. Mas seu valor vem do fato de que esses eventos queaconteceram em algum momento do tempo formam também uma estrutura permanen-te que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro. Ou seja, todo opensamento psicanalítico sobre o Brasil vem construindo mitos de origem. CarmenBackes (2000) acentua a existência de vários mitos fundadores – em seu trabalhorecém publicado parte da constatação de que “houve, no Brasil, uma preocupaçãocom a identidade”, sendo que “alguns autores procuraram criar uma imagem, umarepresentação unificadora do Brasil”. E enumera vários psicanalistas que se utilizamde figuras para discutir a subjetividade do brasileiro – o colonizado e o colonizador(Contardo Calligaris), o cavaleiro andante, o folião medieval, o aristocrata de corte(Luis Cláudio Figueiredo), entre outros. As qualidades psicológicas são promovidas àcondição de identidade nacional, perdendo de vista a especificidade de cada um elevando a distorções na compreensão do Brasil. Apagar-se-ia a importante diferençaentre identidade e identificação.

Se é inevitável trabalharmos com mitos, nada como debruçar-se sobre a Histó-ria como narrativa para buscar apreender nossos movimentos. Carmen Backes buscaessa História na análise das imagens do descobrimento. Mas a descoberta do Brasil seinsere em um contexto mais amplo que, sem dúvida, passa pela descoberta da Améri-ca.

Caetano Veloso, no seu livro Verdade Tropical (1997), começa pela interes-sante observação de que “todos os outros países da América consideram-se suficiente-mente descobertos por Cristóvão Colombo em 1492”, e o Brasil “teve que ser desco-berto depois, separadamente”. O Brasil apareceu oito anos depois como continenteindependente ou uma ilha descomunal: “Que esse acontecimento histórico tão maldefinido seja situado com tanta exatidão na metade do segundo milênio da nossa erasó estimula a produção de uma autoconsciência nacional a um tempo inconsistente eexagerada. Os Estados Unidos são um país sem nome – América é o nome do conti-nente onde, entre outros, os estados de colonização inglesa se uniram, e a mera desig-nação da união desses estados não constitui uma nomeação – e o Brasil é um nomesem país”. Os portugueses, parece que fizeram questão de marcar que haviam chegadoa um lugar absolutamente outro em relação àquele que os espanhóis haviam descober-to. Caetano compara então o Brasil com os Estados Unidos – já que todos os países domundo têm hoje de se medir com a América e se posicionar em face do Império Ame-ricano. O Brasil-espelho (o outro gigante, o outro melting pot de raças e culturas) e, ao

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mesmo tempo, o Outro radical.O fato é que pensar um mito de origem implica remontar à descoberta da

América e a Colombo.

A DESCOBERTA DA AMÉRICAMarilena Chaui (2000)1, em importante ensaio publicado no Caderno Mais,

relata: “No dia 6 de janeiro de 1492, Fernando e Isabel entram em Granada e recebemdas mãos do califa as chaves da Alhambra. Fazem hastear o estandarte real e erguer ocrucifixo no mais alto parapeito.” De Barcelona, os embaixadores genoveses enviamuma carta de louvor às majestades católicas: “Não é indigno nem sem razão que vosasseveramos, reis grandíssimos, que lemos o que predisse o abade Joaquim Calabrês,que a restauração da Arca de Sião seria feita pela Espanha” (apud Chauí, op.cit.).

De fato, o abade Joaquim di Fiori, no séc. XII, afirmara que o Reino de Deus naTerra, a era do Espírito Santo, começaria com a vitória de Cristo contra o Anticristo,identificado por ele como Saladino, que acabara de invadir a Espanha no mesmo mo-mento em que Jerusalém caía nas mãos dos árabes. Assim, os embaixadores saúdammenos a expulsão dos mouros e mais o primeiro sinal do milênio, do tempo do fim dotempo, aberto pela vitória de Castela.

No dia 3 de agosto desse mesmo ano, Colombo parte de Palos. O relato daprimeira viagem se abre com a exposição de motivos: os reis o enviaram ao Orientepelo Ocidente para “combater a seita de Maomé e todas as idolatrias e heresias” e para,nas regiões da Índia e da China, ver príncipes, povos e a “disposição deles” para queencontrasse meios de convertê-los “à nossa fé”.

É com o abade calabrês Joaquim de Fiori que surge a imagem da apoteoseterrena dos Mil Anos e a idéia de que a história é a operação da Trindade no Tempo, naqual uma última e decisiva revelação-iluminação está reservada para a Sexta Era epara o Tempo do Fim: a plenitude coincidirá com a plenitude do Espírito ou do saber.

A história, nessa concepção, é o desenvolvimento temporal do aumento dosaber, cuja plenitude coincide com o tempo do fim, quando será aberto “o livro dossegredos do mundo”. É também orgânica: “a estrutura do tempo, simbolizado pelaárvore de Jessé, significa que o tempo não é ciclo perpétuo de tribulações, não é ago-nia, nem afastamento do absoluto, mas arbusto florescente onde frutifica a sementedivina da verdade efetuando-se como eternidade temporal” (Chaui, op.cit.).

É central em todo o pensamento de di Fiori a idéia de que haverá ainda umafase final da história, um tempo abençoado ainda por vir. O apogeu da história, preen-

1 Texto publicado também neste número da Revista.

BRASIL: MELANCOLIA OU CRIAÇÃO?

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TEXTOS

chimento do intervalo da “metade do tempo” e do “silêncio de meia hora no céu” ouplenitude do tempo, será sinalizado pelo aumento da espiritualidade no mundo, antesdo Juízo Final. Será a era do Espírito Santo, tempo do intelecto e da ciência.

Antes de que nos chamassem América ou Brasil, falava-se em Oriente, mastambém em sede imaginária do Paraíso Terrestre, “preservado das águas do dilúvio edescrito no Gênese como terra austral e oriental, cortada por quatro rios imensuráveis,rica em ouro e pedras preciosas, de temperatura sempre amena, numa primavera eter-na” (Chaui, op.cit.).

Marilena Chaui cita o profeta Isaías: “Assim, tu chamarás por uma nação quenão conheces, sim, uma nação que não te conhece acorrerá a ti”.

Tão importante quanto Isaías é Daniel, que no livro das Revelações anuncia oTempo do Fim. Esse tempo final será o do Quinto Império do Mundo, durando milanos de felicidade. Daniel é aquele que anuncia os novos tempos, quando o homemesquadrinhará a Terra na direção dos quatro ventos.

Em 1500, enquanto Pedro Álvares Cabral se dirige ao que viria ser o Brasil, oAlmirante do Mar Oceano, Don Cristóbal Colón, oferece aos reis católicos o relato desua terceira viagem, em que assegura ter descoberto a localização do Paraíso Terres-tre, graças às indicações dos autores antigos e do profeta Isaías que, segundo interpre-tação do abade Joaquim, afirmara “que da Espanha lhe seria elevado seu Santo Nome”.Em várias cartas, Cristóvão Colombo reafirma a descoberta do Paraíso, sente-se ins-trumento das profecias do abade Joaquim e oferece os cálculos do tempo que resta atéo tempo do fim: 155 anos. O tempo do Fim, na Renascença e na Idade Média, eraretorno à origem perdida.

A América foi, para viajantes, evangelizadores e filósofos, uma construçãosimbólica e imaginária. Mas que, segundo Tzvetan Todorov (1996), funda “nossaidentidade” atual.

Em seu livro sobre a conquista da América, seu foco é a descoberta que o eu fazdo outro. A descoberta da América tem, para Todorov, valor paradigmático. Nadamais indicado para marcar o início da era moderna do que o ano de 1492, quandoColombo atravessou o Oceano Atlântico. Afirma Todorov: “Somos todos descenden-tes diretos de Colombo.... (...) Os homens descobriram a totalidade de que fazem par-te”.

Todorov, a partir da análise de cartas, referências e diários, vai procurar enten-der o que move Colombo, concluindo que a expansão do cristianismo é muito maisimportante para ele do que o ouro. O sonho era encontrar o Grande Can, ou imperadorda China, cujo retrato inesquecível havia sido traçado por Marco Polo. Don Quixoteatrasado vários séculos, Colombo se vê em uma cruzada para libertar Jerusalém.Todorov cita :“No momento em que tomei as providências para ir descobrir as Índias,era na intenção de suplicar ao Rei e à Rainha, nossos senhores, que eles se decidissem

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a gastar a renda que poderiam obter das Índias na conquista de Jerusalém...” Las Casasdeixou uma imagem célebre de Colombo, em que situa bem sua obsessão pelas Cruza-das no contexto de sua profunda religiosidade: “Quando lhe traziam ouro ou objetospreciosos, ele entrava em seu oratório, ajoelhava-se como as circunstâncias exigiam, edizia: “Agradecemos Nosso Senhor que nos tornou dignos de descobrir tantos bens.”

A religiosidade de Colombo é arcaica para a época, ou seja, nada moderna.Para Todorov, é um traço da mentalidade medieval de Colombo, que faz com que eledescubra a América e inaugure a era moderna.

Para Colombo, descobrir é uma ação intransitiva: “O que quero é ver e desco-brir o máximo que puder”.

Todorov aponta que o importante em Colombo é a força da crença em si, poisele acredita também em sereias, cíclopes, amazonas e homens com caudas. E até en-contra tais seres....

A crença mais surpreendente em Colombo é de origem cristã: refere-se ao Pa-raíso Terrestre . Ele leu, no Imago Mundo de Pierre d’Ailly, que o Paraíso Terrestredevia estar localizado numa região temperada, além do Equador. Este tema se trans-forma em obsessão. Na terceira viagem, Colombo chegou mais perto do Equador.Achou que haveria uma irregularidade na forma redonda da terra: “Descobri que omundo não era redondo da maneira como é escrito, mas da forma de uma pera queseria toda bem redonda, exceto no local onde se encontra a haste, que é o ponto maiselevado; ou então como uma bola bem redonda, sobre a qual, em um certo ponto,estaria algo como uma teta de mulher e a parte deste mamilo fosse a mais elevada e amais próxima do céu, e situada sob a linha equinocial, neste mar Oceano, no fim doOriente” (Carta aos Reis, 31. 8. 1498). Um mamilo sobre uma pera! O Paraíso terres-tre estava aí!

Colombo não se preocupa em entender melhor as palavras que dirigem a ele,pois já sabe que encontrará cíclopes, homens com cauda e amazonas. Ele vê que as“sereias” não são, como se disse, belas mulheres, no entanto, em vez de concluir pelainexistência das sereias, troca um preconceito por outro e corrige: as sereias não sãotão belas quanto se pensa.

Colombo era mais perspicaz quando observava a natureza que quando tentavacompreender os indígenas. Quando não estava navegando, ele apenas procurava con-firmações para verdades já conhecidas, ou seja, tomava o desejo por realidade.

Colombo não descobriu a América, apenas a encontrou onde “sabia” que esta-ria. Como bem observa Todorov, porém, a interpretação “finalista” não é obrigatoria-mente menos eficaz do que a interpretação empirista: os outros navegadores não ousa-vam empreender a viagem de Colombo, porque não tinham a sua certeza.

Mas Colombo não tem nada de científico nem nada de “moderno”. Suas inter-pretações se baseiam na pré-ciência e na autoridade. Sua admiração intransitiva daNatureza, porém, é mais próxima de nós.

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Todorov faz uma distinção entre os sinais da natureza – que são associaçõesestáveis entre duas entidades – e os sinais humanos, as palavras da língua, que nãounem diretamente um som a uma outra coisa. Nestas, há necessidade da mediação dosentido, que é uma realidade intersubjetiva. Os nomes próprios se assemelham aosindícios naturais. E parece que Colombo só nota os nomes próprios, haja vista asinúmeras vezes em que mudou seu próprio nome. Colombo, assim como muitos deseus contemporâneos, acredita, portanto, que os nomes, ou, pelo menos, os de pessoasexcepcionais, devem ser a imagem de seu ser. E ele tinha conservado em si mesmodois traços dignos de figurar até em seu nome: o evangelizador (Cristovan) e o coloni-zador (Cólon). Esta atenção excessiva para com o próprio nome encontra um prolon-gamento natural em sua atividade de nominador, durante as viagens. Colombo apaixo-na-se pela escolha dos nomes do mundo virgem que está vendo; os nomes devem sermotivados. Sabe que as ilhas já têm nome, mas as palavras dos outros não lhe interes-sam. Quer rebatizar os lugares em função do lugar que ocupam em sua descoberta,dar-lhes nomes justos. A nomeação, além disso, equivale a tomar posse. O primeirogesto de Colombo em contato com as terras recentemente descobertas (conseqüente-mente, o primeiro contato entre a Europa e o que será a América) é uma espécie de atode nominação de grande alcance: é uma declaração, segundo a qual as terras passam afazer parte do reino da Espanha. Todorov observa que os nomes próprios constituemum setor muito particular do vocabulário: desprovidos de sentido, servem somentepara denotar, mas não servem diretamente para a comunicação humana: dirigem-se ànatureza (o referente), não aos homens. São, como os índices, associações diretasentre seqüências sonoras e segmentos do mundo. A parte da comunicação humana queprende a atenção de Colombo é, pois, precisamente o setor da linguagem que serveunicamente, pelo menos num primeiro momento, para designar a natureza.

Colombo não se interessa pelo resto do vocabulário e revela sempre sua con-cepção ingênua da linguagem, já que sempre vê os nomes confundidos às coisas: todaa dimensão de intersubjetividade, do valor recíproco das palavras (por oposição à suacapacidade denotativa), do caráter humano, e portanto arbitrário, dos signos, escapa-lhe. Comporta-se como se o espanhol fosse o estado natural das coisas.

Diante de uma língua estrangeira, só há dois comportamentos possíveis e com-plementares: reconhecer que é uma língua e se recusar a aceitar que seja diferente ou,então, reconhecer a diferença e se recusar a admitir que seja uma língua... Os índiosque ele encontra logo no início, a 12 de outubro de 1492, provocam uma reação dosegundo tipo: “para que aprendam a falar” (estes termos chocaram tanto os váriostradutores franceses de Colombo que todos corrigiram: “para que aprendam nossalíngua). Mais tarde, consegue admitir que eles têm uma língua, mas não chega a con-ceber a diferença e continua a escutar palavras familiares em sua língua, falando comeles como se devessem compreendê-lo. Las Casas afirma, nas margens do diário de

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Colombo: “Estavam todos no escuro, pois não compreendiam o que os índios dizi-am”. Isto não chega a ser chocante nem surpreendente, ao contrário, o que choca esurpreende é o fato de Colombo agir o tempo todo como se entendesse o que lhedizem.

A DESCOBERTA DO BRASILTambém Portugal tem um mito de origem: o Milagre de Ourique. A aparição

de Cristo a Afonso Henriques, às vésperas da batalha de 1139, foi um “evento”construído aos poucos, desde o séc. XV, tomando sua forma final e importância noséc. XVII. Cristo, ao anunciar a vitória dos portugueses contra os “hereges” mouros,também garantira a conservação do reino português como povo escolhido, em substi-tuição aos pecadores judeus. Como prova dessa eleição divina, o reino de Portugaladotou as chagas de Cristo (representando a cruz que aparecera no céu de Ourique) noseu brasão e em sua bandeira. O mito de Ourique colocava em evidência que a “mis-são universal dos portugueses” estava anunciada desde a fundação do reino. Vieiraretoma o mito, afirmando que esse destino figurado desde o início seria o QuintoImpério e a redenção do mundo, justificando (e provando) a necessidade da separaçãode Castela e de se continuar a empresa colonial (apud Lima, Luís Filipe S., 2000).

Entre 1647 e 1666, o Padre Vieira escreve “História do Futuro”, que será con-siderada como “herética e judaizante” (apud Chauí, 2000) pelo tribunal da Inquisição,pois “promete o reino de Deus nesta vida e muito cedo”, como os judeus. A “Históriado Futuro”, bem como o livro “Esperanças de Portugal” e “Chave dos Profetas”, ins-piram-se em Daniel, no capítulo 18 de Isaías, nas “Trovas de Bandarra” (em que oencoberto D. Sebastião será o Imperador dos Últimos Dias, vencedor das primeirasbatalhas contra o Anticristo) e no milenarismo trinitário de Joaquim di Fiori. Segun-do Vieira, Isaías teria profetizado não só a América, mas, pela quantidade de detalhes,o próprio Brasil.

Ou seja, a descoberta do Brasil, assim como a da América, é envolta em pro-funda religiosidade. Carmen Backes historia a questão, apresentando a polêmica entrea tese de casualidade e a tese da causalidade. O Brasil já teria sido descoberto antes,tendo sido intencional o desembarque de Pedro Álvares Cabral em nossas terras, outeria sido mero acaso. Indaga-se Carmen Backes: “que diferença radical faria hoje,para nós, que a chegada de Cabral em terras brasileiras tivesse se dado por acaso, oude forma intencional? Ou será que ainda nos preocuparíamos com o desejo que estariana origem?”

Mas, de qualquer modo, nas várias leituras que se faz da descoberta do Brasil,é enfatizado o aspecto mercantilista, ou seja, foi a intensificação das atividades comer-cias que impulsionou Portugal em direção ao Brasil. Pouco se fala da religiosidadeque presidiu essas descobertas. Octávio de Souza (1994), a partir de Sérgio Buarque

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de Holanda, mostra como o mito do Paraíso Terrestre “perde a perspectiva quase queretórica que possuía na Idade Média e ganha valor de projeto orientador das açõeshumanas’. Isso implica uma mistura de concepções modernas e medievais, e é esse“amálgama de passado e futuro que fornece o material de que as utopias sãoconstruídas”.

NOSSA ORIGEM PORTUGUESAPaulo Prado (1997) assim começa seu precioso livro, “Retrato de Brasil”: “Numa

terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que arevelaram ao mundo e a povoaram.” Para o autor, há dois impulsos que dominam apsicologia da descoberta: a ambição do ouro e a sensualidade livre que a Renascençaressuscitara.

Gilberto Freyre inicia seu grandioso livro, “Casa Grande & Senzala” (1992),com um rasgado elogio aos portugueses. Já no primeiro parágrafo lemos: “Quando em1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira já foi depois de umséculo inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; demonstrada na Índia e naÁfrica sua aptidão para a vida tropical. “. Ocorre, então, uma mudança de rumo nacolonização portuguesa, de mercantil para colonial, pois o Brasil oferecia condiçõesmais estáveis. A união do português com a mulher índia foi incorporada à culturaeconômica e social do invasor.

Freyre fala em exclusivismo religioso e também em “espírito político e de rea-lismo econômico e jurídico que aqui como em Portugal foi desde o primeiro séculoelemento decisivo de formação nacional...”, o que depois foi bastante discutido. Aexplicação para o sucesso do português no Brasil é explicado, segundo Freyre, peloseu passado étnico, “de povo indefinido entre a Europa e a África”: a influência africa-na fervendo sob a européia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, àreligião.... um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de culturaas durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval;tirando os ossos ao Cristianismo... Freyre cita Alexandre Herculano falando dos por-tugueses: “População indecisa no meio dos dois bandos de contendores (nazarenos emaometanos), meio cristã, meio sarracena, e que em ambos contava parentes, amigos,simpatias de crenças ou de costumes”. Há uma indecisão étnica e cultural entre aÁfrica e a Europa, bicontinentalidade que Freyre compara à bissexualidade no indiví-duo. Em Portugal não há um tipo determinado, e é essa imprecisão que permite aoportuguês reunir dentro de si tantos contrastes “impossíveis de se ajustarem em umperfil mais definidamente gótico e europeu”.

Convivem no português as duas culturas, a européia e a africana, a católica e amaometana. Além disso, na formação da nação portuguesa há a presença semita, “gentede uma mobilidade, de uma plasticidade, de uma adaptabilidade tanto social comofísica que facilmente se surpreendem no português navegador e cosmopolita do sec.

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XV”. Freyre fala em “miscibilidade”, capacidade para a miscigenação que haveria noportuguês: “a miscibilidade, mais do que a mobilidade foi o processo pelo qual osportugueses compensaram-se da deficiência em massa ou volume humano para a co-lonização em larga escala e sobre área extensíssimas”.

Contrariamente aos nórdicos, os portugueses têm mostrado aptidão para seadaptarem em regiões tropicais. Tudo isso fez com que triunfassem onde europeusoutros fracassaram. E, com os casamentos com a mulher índia ou negra, formou-seuma população ainda mais adaptável ao clima tropical. Paulo Prado cita Capistrano,que fala que moralmente já eram mestiços e foi “essa como que mestiçagem que lhespermitiu, na luta em que sucumbiam os fracos e tímidos, a fácil adaptação à vidacolonial.

Em “Casa-grande & Senzala”, os portugueses são verdadeiros heróis, que des-locaram a “base tropical da pura extração de riqueza mineral, vegetal ou animal – oouro, a prata, a madeira, o âmbar, o marfim – para a de criação local de riqueza”.Ainda que isso só fosse possível às custas da “perversão do instinto econômico”, quetem a ver com o trabalho escravo e que desviou o português da produção para a explo-ração. Surge a “colônia de plantação”, o colono permanecendo na terra. Surge a gran-de lavoura escravocrata e o aproveitamento de gente nativa, não só como instrumentode trabalho, mas como elemento de formação da família. Para Freyre, isso marca umadiferença em relação à política adotada pelos espanhóis no México e no Peru, ondeforam exterminadores e segregacionistas, meros exploradores de minas extrativistas.

Freyre louva os portugueses por se terem, de fato, instalado no Brasil. E aausência de um sistema rígido de administração teria sido uma das vantagens da colo-nização portuguesa. É a família e não o indivíduo ou o Estado o grande fator coloniza-dor no Brasil. Daí constituir-se no país a aristocracia colonial mais poderosa da Amé-rica.

O fato é que o Brasil se formou sem a preocupação com a pureza da raça. O quedá toda a nossa força, para Gilberto Freyre. A única exigência para vir ao Brasil eraprofessar a religião cristã. Só se fazia questão da saúde religiosa.

Para Sergio Buarque de Holanda (1995), também é significativo o fato de ter-mos nossa origem em uma nação ibérica. Espanha, Portugal, a Rússia e paísesbalcânicos são territórios através dos quais a Europa se comunica com outros mundos.É na comparação com os outros países europeus que ressalta, na Península Ibérica, a“cultura da personalidade”. É no valor que atribuem à pessoa humana que, para Buarquede Holanda, os espanhóis e portugueses encontram muito de sua originalidade. Daítambém a dificuldade em achar, nesses países, associações que impliquem solidarie-dade e ordenação entre esses povos: “em terra onde todos são barões não é possívelacordo coletivo durável a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. Osprivilégios feudais nunca tiveram muita importância na Península Ibérica. Para Sergio

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Buarque, nossa “bagunça” não é de hoje: “os elementos anárquicos sempre frutifica-ram aqui...”

Sérgio Buarque de Holanda, porém, é radical, pois não acredita que uma voltaà tradição seja um acerto. Aqueles que propõem uma volta à tradição pensam apenasque há uma ausência de uma única ordem que lhes parece eficaz: “a hierarquia queexaltam é que precisa de tal anarquia para se justificar e ganhar prestígio”. E radicaliza:“As épocas realmente vivas nunca foram tradicionalistas por deliberação.”

O fato é que a hierarquia nunca se impôs aqui.

CONCLUSÃOÉ interessante observar como as leituras psicanalíticas desconsideram as leitu-

ras que exaltam nossa confusa origem – como se houvesse algo melancolizante naleitura de um destino de impossibilidade de circulação nos lugares de colonizado.Melancólica a psicanálise ou melancólico nosso destino? Para Melman, um destino deimpossibilidade de sair do lugar de colonizado. Para Contardo Calligaris, a repetiçãodos lugares de colonizador e colonizado. Nosso destino, porém, é de realizar os milanos de felicidade. Nossa origem tem a ver com portugueses ligados à África e aosmouros... Por que um destino de impossibilidade? O que fica em questão nisso tudo écomo a psicanálise vem lidando com a questão da repetição, com tiché e ananké.Lacan traduziu tique por “encontro do real” (Lacan, 1985). Afirma: “O real está paraalém do autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos ve-mos comandados pelo princípio do prazer. O real é o que vige sempre por trás doautômaton... O que se repete é sempre algo que se produz como por acaso”. Em Lacan,a repetição demanda o novo. É a diversidade mais radical que constitui a repetição emsi mesma. Jerusalinsky (1999) apontou quanto a visão de um destino intransponívelvai contra qualquer concepção de ato analítico e apontou para uma impossibilidadeeuropéia de pensar sobre o nosso lugar, fora do já conhecido. Não muito diferente doque Todorov aponta em Colombo.

A necessidade do mito é sempre uma busca de dar conta desse encontro comum real inominável. Lévi-Strauss, em seu ensaio “A estrutura dos mitos”, afirma queo sentido do mito é dado pela maneira pela qual os elementos enumerados por umaanálise estrutural são combinados, sendo que a linguagem no mito manifesta proprie-dades específicas, propriedades estas que só podem ser pesquisadas acima do nívelhabitual de expressão lingüística. Em suas análises, Lévi-Strauss sempre chega a doisaspectos da construção mítica: as seqüências e os esquemas. Seqüências seriam o con-teúdo aparente do mito, os acontecimentos que se sucedem na ordem cronológica. Osesquemas seriam constituídos pelas seqüências organizadas em planos de desigualprofundidade, superpostas e simultâneas: “assim como uma melodia escrita para vári-as vozes deve respeitar um duplo determinismo: o de sua própria linha, que é horizon-

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tal, e o dos esquemas contrapontísticos, que é vertical” (1958). O mito operaria emdois planos: o pensamento apreenderia o mesmo fenômeno simultaneamente comofator natural no mundo visível e como geração divina no tempo primordial. Para Lévi-Strauss, conforme aponta Octávio Paz (1969), a música e o mito requerem uma di-mensão temporal para se manifestar; sua relação com o tempo seria peculiar, pois oafirmam para negá-lo. No mito, o tempo se voltaria sobre si mesmo: o que passou estáacontecendo agora e voltará a acontecer.

As leitura psicanalíticas falam de uma origem em permanente repetição – umtraumático sem possibilidade de elaboração. A origem se torna tempo primordial divi-no e não criativo. Parece que a musicalidade que nos constitui – e que para Lévi-Strauss é parte de qualquer mito – não foi considerada. Os psicanalistas falam de nossaorigem como o negativo do que é apontado nas leituras de Gilberto Freyre e SérgioBuarque de Holanda. Triste esse Brasil que retoma a tristeza de Paulo Prado, chorandopara sempre um Éden perdido. Na sombra de um objeto perdido, para não psicotizar,melancolizaríamos.

Brada Caetano Veloso, em linda canção carnavalesca:Eu sou o solVocê o marSomos muitos carnavais

Vamos viver, vamos ver, vamos terVamos ser, vamos desentender do que nãoCarnavalizar a vida coração

É preciso lembrar Léclaire( 1979): “Quando existe um sistema de saber, o es-sencial se acha excluído”. Qualquer visão totalizadora só pode afastar-nos do que nosconstitui.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBACKES, Carmen. O que é ser brasileiro? São Paulo: Escuta, 2000.CHAUÍ, Marilena. Brasil, o mito fundador. Folha de São Paulo, Cardeno Mais, 26 de março de

2000.HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995.JERUSALINSKY, Alfredo. Cuidado com as orelhas. In: SOUSA, Edson L André. Psicanálise

e colonização: leituras do sintoma social no Brasil. Porto Alegre: Artes&Ofícios, 1999.LACAN, Jacques. Seminário 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.LÉCLAIRE, Serge. O corpo erógeno. Rio de Janeiro: ed. de Cahaim S. Katz, 1979.LÉVI-STRAUSS, Cl. Anthropologie Structurelle Deux. Paris: Plon, 1958.LIMA, Luis Filipe Silverio. Padre Vieira: Sonhos Proféticos, Profecias Oníricas. Dissertação

de mestrado, Pós-Graduação de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da Universidade de São Paulo, primeiro semestre de 2000.

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TEXTOS

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PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. 8. ed. São Paulo : Cia. das Letras, 1997.SOUZA, Octavio. Fantasia de Brasil. São Paulo : Escuta, 1994.TODOROV, Tzvetan. A conquista da América – a questão do outro. São Paulo : Martins Fontes,

1996.VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo : Cia. das Letras, 1996.

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TEXTOS“EXÍLIO,QUE TERRA PROMETIDA?”*

Jacques Leenhardt**

RESUMOSe a América, para o europeu, é o lugar das utopias, a Europa, para o ameri-cano, é o do retorno às origens. Ligadas por meio do laço das emigraçõessucessivas, em todos os sentidos, ambas são tomadas como lugares espe-culares na relação ao Outro. Neste contexto, e a partir da vida e obra deartistas americanos que vivem na França e na Europa, o autor propõe pensaro exílio como uma experiência temporal e o que isto implica na relação aooutro.PALAVRAS-CHAVES : americano; europeu; dualidade; exílio; tempo;alteridade

ABSTRACTIf America is, to the europeans, the place of utopias, Europe is, to the americans,a return to origins. Connected by the link of sucessive imigrations, in alldirections, both are taken as specular places in relation to the Other. In thiscontext and from life and work of many american artists living in France andEurope, the author proposes to think the exile as a temporal experience, andwhat it implies in relation to the other.KEYWORDS: american; euporean; duality; exile; time; alterity.

* Texto originalmente publicado no Catálogo da 1ère Triennale des Amériques – Présence enEuropa 1945-1992. Maubeuge, Association IDEM + ARTS, 1993. Tradução de Patrícia Ramos.** Professor da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, crítico francês de artes plásticas epresidente da Associação Internacional de Críticos de Arte. Publicou inúmeros livros, dentre osquais sublinhamos “No Jardim dos mal-entendidos” (Actes Sud, Paris) e “As Américas Latinasna França” (Gallimard, Paris).

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TEXTOS

AAmérica Latina, aquela do brasileiro e do argentino, do chileno e do colombiano, aquela de nossos imaginários europeus também é, para nós, a terra distante.

Esse continente, inventado pelo espírito da viagem e do lucro, esse continente despo-voado de seus habitantes e de suas culturas para aclimatar outros habitantes e outrosprojetos, permanece ainda hoje um continente que pensamos, e que se pensa, tanto emsua relação com o outro, alter ego, quanto em sua relação consigo mesmo. O exílio fazparte do Reino. Salvo para aqueles que, autóctones, conservaram, apesar das fraturase das violências, o sentido originário de sua terra, de seus mistérios e de seus deuses, aviagem a Londres, Madri, Roma ou Paris nunca é totalmente uma viagem ao exterior.Para o intelectual ou para o artista latino-americano, a Europa desempenha um poucoo papel que desempenhou Roma durante séculos para os pintores da Europa inteira:terra de retorno às origens, que permite a cada um resgatar sua realidade imediata apartir de uma espécie de ponto de vista intemporal.

Esta é, pelo menos, uma das maneiras de pensar o exílio. Ela repousa sobre ummecanismo mental cujo equivalente inverso se encontra no imaginário europeu. Não éa América Latina, para muitos daqueles que permanecem do lado de cá do Atlântico,esta parte afastada da Europa onde os desejos e os projetos por muito tempo rumina-dos poderiam enfim decolar? Não é ela terra de liberdade para todos aqueles sufoca-dos pelas regras e pelas tradições? Não é também a terra onde a comunidade cristã e asolidariedade social, tão difíceis de realizar em nossas sociedades hierarquizadas eminadas pelo individualismo estreito do Velho Mundo, poderiam passar do sonho àrealidade? Não é ela, porque tudo nela falta, a própria terra do possível, a terra dautopia?

Como dois sonhos que se olham no espelho fascinante e enganador do Outro, oeuropeu e o latino-americano ficam frente a frente, outros dos outros e jamais total-mente eles mesmos, já que aqui a utopia é banida, e lá é o real que falta, esperança esofrimento, portanto, à medida do caminho que resta percorrer para reencontrar estaimagem mais completa de si, mais completa do Homem, bem além desse outro queficou na Europa e que não passa de sua versão truncada.

DOS DOIS LADOS DO MAR OCEANO SE SONHA!Aqueles que foram impelidos para longe de suas margens pela violência políti-

ca, pelas dificuldades econômicas ou pela falta de meio cultural acharão estas conside-rações bem intemporais e talvez vãs. Peço perdão por seu sofrimento, mas acreditosinceramente que também estes dramas que dilaceram os espíritos e os corpos têm aver com o destino dual que liga a Europa e a América como não acontece com osoutros continentes. Para eles, América e Europa, por meio deste laço de transfusãocontínua que são as emigrações sucessivas, em todos os sentidos - e se, mais uma vez,

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deixa-se de fora de nossa consideração os povos tão mal nomeados “índios”, porquenão têm participação nesse jogo de espelhos e porque foram, nessa história, mais víti-mas do que atores -, o exílio faz parte da pátria em um sentido simbólico tão forte quese pode pensar duas enormidades ao mesmo tempo: que o exílio não existe realmente,já que lá, longe do lar, cada exilado encontra algo que, a seus próprios olhos, é suaterra espiritual; que também a pátria não existe, pois nenhuma pátria, mátria ou fratriajamais sacia ao mesmo tempo os desejos de segurança, de progresso individual e deafirmação pessoal que seus filhos nutrem em seu coração. O outro da pátria faz parteda pátria, motiva-a e a mina, destruição que conduz, em nosso mundo dito ocidental, àonipresença voraz do desejo, à consciência sempre aguda da falta.

Em que essas considerações – que tangem evidentemente, em primeiro lugar,como convém a este catálogo, à situação dos emigrados culturais – permitem esclare-cer a vida, o trabalho e a produção dos artistas sul e norte-americanos que vivem naFrança e na Europa? Dizer-lhes que aqui estão em casa seria uma afronta, quando sesabe a dificuldade que encontram para se estabelecerem. No entanto, não acho que sepossa reduzir o sentido desse exílio aos efeitos perniciosos do imperialismo e da divi-são de nosso planeta em Primeiro, Segundo, Terceiro e Quarto Mundos. Para o ameri-cano, a viagem à Europa é sempre também um retorno simbólico. Retorno a quê?

A cultura ocidental que, desde o século XVI, inclui a América, organizou for-mas sociais, éticas e políticas que são o teatro e o cenário de uma tensão entre duastendências: a harmonia, sempre vista como uma forma tradicional ameaçada pelamodernidade, e o desequilíbrio, moderno e gerador de progresso. Nossos ideólogososcilam entre um conservadorismo que se apóia em uma idade de ouro consideradapassada e um revolucionarismo que aposta em uma idade de ouro vindoura. Essadialética encontrou na organização das sociedades democráticas um modo de equilí-brio através de um reconhecimento, tácito mas bem real, das contradiçõesintransponíveis que geram esses dois modelos antitéticos. Somente o exercício plenoda democracia garante, porque pode-se apoiar em uma expressão, senão total e ade-quada, pelo menos reconhecida em seu princípio e institucionalizada na opinião detodos, que os conflitos de interesse e de opção serão integrados à própria construçãosocial e política. O drama da América, do Norte ao Sul – abstraindo talvez o Canadá -deve-se, em particular, ao fato de que essa evolução dos conflitos rumo à organizaçãode formas sociais não foi plenamente realizada, pois as causas dessa impossibilidaderemetem à origem escravagista das relações de trabalho, à troca desigual que favoreceo Primeiro Mundo e, conseqüentemente, à posição inorgânica da cultura em todo ocontinente.

Mantendo os olhos fixos nas questões fundamentais da cultura ocidental, osartistas, intelectuais e escritores latino-americanos constituem uma espécie de grupoisolado em sua própria sociedade, encontrando-se a articulação de seu pensamento ao

“EXÍLIO, QUE TERRA PROMETIDA?”

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TEXTOS

real constantemente em ruptura com o estado de sua sociedade. Continuam tentandorestaurar essa articulação, mas ela lhes escapa, assim como escapa freqüentemente aosseus melhores políticos. Há uma espécie de inatualidade constitutiva de todo pensa-mento na América latina, a não ser que esse pensamento saiba fazer-se imediatamenteação.

A situação dos artistas e intelectuais da América do Norte talvez seja maiscolexa ainda de descrever. Como na Europa, eles têm um lugar reconhecido, mas essaposição, que é de marginalidade, por vezes dourada, quase não permite um desenvol-vimento orgânico enquanto as estruturas dominantes da sociedade, seus hábitos e tam-bém seus valores se revelarem de fato estranhos àqueles professados por essasmarginalidades. Talvez, no fundo, se devesse considerar que há duas margens: aquelaque se define a partir do coração de um território ou de uma crença e aquela que sedefine como o espaço do lado, próximo. O marginal se encontra em um caso estranho,definido por tudo o que o separa de seu Outro, ao passo que, no segundo caso, aalteridade é feita tanto destas mil conivências partilhadas quanto de diferenças incon-ciliáveis. A dificuldade cada vez maior dos artistas e dos intelectuais, na Europa e naAmérica do Norte, para se conceberem como membros marginais, mas cúmplices desua sociedade, levou-os freqüentemente a pregar uma integração absoluta ao sistema,vivenciada como uma renúncia inevitável a si, ou evadir-se na má consciência ou namá Arte, atingidos que estavam pela dificuldade de produzir uma obra significativafora da linguagem da sociedade em que vivem.

Enquanto eu escrevia estas linhas, conversei com uma artista que não está pre-sente na exposição: Carmen Perrin. Nascida na Bolívia, onde viveu sete anos, suíçapelo lado de seu avô paterno e morando hoje na França, ela me parece encarnar bem asituação que descrevo sem ter certeza de estar certo. Ela me diz: “Acabo de trabalhartrês anos em um território no coração da Suíça; os “índios” suíços não são, afinal decontas, tão diferentes daqueles do Altiplano. A experiência da colaboração com elesfoi tão maravilhosa que agora quero voltar à Bolívia. Os daqui me deram vontade deencontrar os de lá; acredito que ficando lá por um tempo, longe de minha família, vouentendê-los melhor do que antes.”

Essas declarações são transcritas livremente, de memória, mas acho que não astraio. Ouço nisso duas coisas primeiramente. Que o olhar se aguça, abre-se e se tornadisponível com a distância. Montaigne ou Tocqueville já nos tinham ensinado isso.Em seguida, que a própria abertura do espírito consegue estabelecer relações de inícioescondidas entre o que é comum aos seres humanos para além de suas diferenças. Issofoi Levi-Strauss que nos ensinou. Mas há ainda uma coisa que retive das declaraçõesde Carmen: a importância do tempo. Esses camponeses suíços só se tornaram, paraela, verdadeiros “índios”, seus índios, tais como os conheceu e depois sonhou a partirde sua experiência boliviana, devido a essa longa permanência que o projeto no qual

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trabalhava lhe permitiu: o 700o aniversário da fundação da Confederação dos CantõesSuíços. O tempo, valor essencial na experiência do outro, é hoje um valor ameaçadopor nossa civilização da velocidade. Somente o tempo permite ultrapassar o que oespírito apressado opõe primeiramente à realidade do outro: o estereótipo. Dizem queos suíços não são pessoas apressadas. Foi por isso, sem dúvida, que os artistas quetrabalharam nessas celebrações passaram três anos se preparando, pensando e traba-lhando. Foi por isso também que Carmen pôde encontrar em Morschech verdadeiros“índios”, isto é, pessoas ricas de sua cultura e de suas diferenças.

O exílio é uma experiência temporal. Paris, Madri ou Berlim não são apenassítios e lugares, espaços e populações, são, no peso das pedras e na leveza dos gestos,tempos paralisados em comportamentos e em estruturas urbanas, maneiras de se des-locar, de esperar e receber. O exílio é uma abertura ao tempo do outro, umapermeabilidade imposta, o inverso do tempo ao qual se estava acostumado. E, entre-tanto, o que primeiro se apresenta à experiência sob o rosto intrigante da diferençaextrema logo se revela, na maioria das vezes, apenas uma maneira complementar desentir e de viver. Questão de sotaque e de ritmo, poder-se-ia dizer, maneira de movero corpo e de ocupar o espaço, de falar a língua, seja qual for, e dela fazer um instru-mento de encontro ou de expressão de si. Porém, todas essas maneiras são mais com-plementares do que opostas, e sempre podemos perceber, no exotismo das diferenças,alguma faceta de nossa sensibilidade.

Se nosso mundo planetário deve existir um dia, que não seja sobre as ruínasdessas percepções e dessas experiências diversas que, em segredo, as culturas elabora-ram, mas, ao contrário, sobre seu enriquecimento mútuo. O que precisamos hoje emdia, e cujos artesãos podem ser, por sua vez, os artistas, é uma antropologia, isto é,uma concepção do homem que repouse ao mesmo tempo, e não alternadamente, naunidade da espécie e no desabrochar das diferenças que a constituem.

Vivemos neste momento um período de encantamentos. Nossas velhas socie-dades ocidentais foram-se fechando em uma idéia sumária do homem macho-branco-trabalhador-egoísta. Esse fechamento ocultou, ou antes, anestesiou em nós mil sensi-bilidades, aspectos e capacidades. A crise desse modelo de sociedade permitiu queflorescessem marginalidades onde se desenvolvem estas potencialidades recalcadas eque se constituem, por sua vez, em absolutos. Ora, a ideologia das minorias não éportadora, a longo prazo, senão do inverso daquilo que combate, não de sua supera-ção. A afirmação identitária, embora tenha uma função tática contra os maciços ideo-lógicos imobilizados, não possibilita, por si mesma, uma supressão desses bloqueios.Ela recria novamente as condições da exclusão e da repressão, como também fazem,sem querer, as utopias antiindustriais e os ecologismos estilo “retorno à terra”. Aspreocupações, hoje em dia tão fortemente afirmadas, com o corpo, com o sol, com anatureza, freqüentemente não passam de subprodutos fabricados e industriais de uma

“EXÍLIO, QUE TERRA PROMETIDA?”

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TEXTOS

forma manipulada e alienante do modelo industrial em crise. Vendemos hoje o quenos impede de viver. O mesmo acontece com este Outro que querem vender-nos noexotismo das praias e das músicas geradas por nossas indústrias ditas culturais, masque nos preservaremos de acolher fora das situações excepcionais da “festa” e dasférias.

A arte carrega essa alteridade e, por menos que sejamos capazes de acolhê-la,ela a devolve como uma parte de nós mesmos. Essa parte, sempre exilada, sem noentanto deixar de estar ligada ao nosso corpo e à nossa sensibilidade, é devolvida peloexilado ao mesmo tempo que ele reencontra, exilando-se em nós, alguma parte de simesmo. Talvez essa seja a verdadeira razão que, desde sempre, tenha feito os homensviajarem. E agora que as mulheres também o fazem, mais ainda do que no tempo dosMontaigne e das Flora Tristan, é toda a Humanidade que tende a se conhecer e a secomplexificar nesse distanciamento que remete a si mesmo.

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TEXTOSOUTROS BRASIS: UM ENTRE(Alguma possibilidade sobre a atualpoesia feita no Brasil ou algum recorte)

Manoel Ricardo de Lima*

RESUMOO texto trata de um possível recorte na poesia brasileira contemporânea atra-vés da publicação de revistas e antologias de poesia. Uma tentativa de esta-belecer uma reflexão crítica e de identificar as várias possibilidades destaatual produção de poesia feita no Brasil a partir de uma antologia escolhida,“Nothing the sun could not explain”, e de dois poetas brasileiros, organizadoresdessa antologia, Régis Bonvicino e Nelson Ascher.PALAVRAS-CHAVES: poesia; poesia brasileira contemporânea; antologias;revistas

ABSTRACTThis text discusses a possible view of in contemporary brazilian poetry throughthe publication of magazines and anthologies of poetry. An attempt to estabilisha critical reflexion and to identify the many possibilities of this current poetryproduction in Brazil, from a chossen anthology, “Nothing the sun could notexplain”, and from two brazilian poets, organizers of this anthology, RégisBonvicino e Nelson Ascher.KEYWORDS: poetry; contemporaty brazilian poetry; anthologies; magazines.

* Poeta, professor de Literatura brasileira na Universidade Federal do Ceará, articulista do jornal“O povo” de Fortaleza e um dos coordenadores do Núcleo de Literatura do “Alpendre” - Casade arte, pesquisa e produção. Autor do livro de poemas “Embrulho”, Rio de Janeiro, ed. 7Letras, 2000 e co-autor, junto com Elida Tessler, de “Falas inacabadas - objetos e um poema”,Porto Alegre, Tomo editorial, 2000.

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TEXTOS

“o tempo nãodeixou de existir”1

Fabiano Calixto

I

Dar alguma notícia da atual literatura brasileira, dentro de um tema que sobrepõetantos problemas (descoberta e invenção), faz pensar, e crer, que qualquer muito

que se diga será pouco. Para título deste pequeno ensaio faço uso da expressão “Ou-tros Brasis” e creio que, necessariamente, devo referendá-la: expressão que dá nome aum selo musical, de Belém, Pará, região Norte do Brasil. Selo que surgiu em fins dadécada de 70 e começo da de 80, para tentar abraçar uma produção que indicava e sesupunha fora do circuito comercial e que, naquele momento, arregimentava, serena-mente, emprestar possibilidades a esse mesmo circuito; novos nomes, alguma música.Dois ou três ou quatro traços, em quase rabisco, desenhavam a logomarca do selo: umbonito indiozinho. Seria um Brasil, aparentemente visto de longe, mas dentro dele. Oselo ainda resiste.

E, mais adiante, remeter, para estabelecer como uma espécie de desafio teóri-co, por mais visto de longe que já nos seja, ao texto de Machado de Assis publicadopela primeira vez no ano de 1873, “Notícia da Atual Literatura Brasileira – Instinto deNacionalidade”, quando afirmava:

O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que otorne homem do seu tempo e do seu país, ainda quanto trate de assuntos remotos notempo e no espaço.2

O que se poderia pensar, à época, sobre o fato de Machado de Assis estar inse-rido em uma discussão sobre a tarefa da formação de um caráter nacional para a litera-tura brasileira, tentando pensá-la distante e entre a exclusividade do elemento indíge-na, talvez se possa ainda estabelecer, lentamente, o mesmo caso, ou referência, ouapenas uma espécie de contraponto que está posto e que ainda se vê, por exemplo, emnossa atual produção de poesia. Nada mais com o elemento indígena, mas com outroselementos que podem estar, e ao mesmo tempo nem tanto, acirrando a empreitada de

1 CALIXTO, Fabiano. Fábrica. Santo André: Alpharrabio Edições, 2000, p. 15. Versos quefazem parte do poema “último dia (fábrica 3)”, na íntegra: “bolor ao sol / entre o maço decigarros / e a pedra / que a sombra / toca / mas não absorve // fungos e caveira / verme- / lhosos degraus / os felizes // muro-vitiligo / (raízes que não / crescem) // o tempo não /deixou deexistir”.2 ASSIS, Machado de. Obras Completas. Volume III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, p.804.

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registro de nossa busca por uma poesia que afirme seus poetas, seu caráter de inven-ção, seu compromisso com o que podemos ter de (menos ou mais) nosso: entre inclu-são e exclusão.

Por um tanto que possa parecer estar tomando como risco algum outro sentidoque não explicite afirmar toda a conquista de nossa poesia modernista, em Oswald eMário de Andrade ou, mais tarde, em Carlos Drummond de Andrade e Manuel Ban-deira, ou ainda, em Murilo Mendes, Dante Milano, Rui Ribeiro Couto, Joaquim Cardozoe João Cabral de Melo Neto, para ficar com alguns, dizer de fato: não é nada disso nempassa por este sentido de exclusão (por isso me reporto ao texto de Machado de Assis)de não pensá-los mais ou de retirá-los de vez porque já muito vistos, muito lidos,relidos. Mas de incluir todo este panorama em UM OUTRO, que está aí, e que aparen-ta carecer de afirmação. UM OUTRO: que pode ser tomado como a poesia dita con-temporânea, daqui ou de qualquer lugar, e o sujeito que essa poesia procura identificarculturalmente.

Para outro tanto, o que se vê no Brasil é uma boa conversa e pequenos debatesacerca de poesia dentro de revistas mais duradouras em seus projetos (que não estabe-lecem grupos poéticos, mas poetas que se afinam em suas semelhanças e em uma ououtra ou várias diferenças sabidas) e, principalmente, a publicação de antologias (re-cortes, também provocados por semelhanças e uma ou outra ou várias diferençassabidas). Uma espécie de substituição ao que se produziu em um Brasil recente, o dadécada de 70: revistas efêmeras, e, durante a década de 80: livros em coleções (paralembrar aqui, duas dessas importantes coleções: a “Claro enigma”, editada pela DuasCidades e dirigida pelo poeta e professor da USP, Augusto Massi; e a “Cantadas lite-rárias”, editada pela Brasiliense).

Creio que uma das possibilidades mais interessantes para que se possa pensar aatual produção de poesia feita no Brasil é a partir de um ENTRE a semelhança e adiferença das várias formas catalogadas dentro dessas duas perspectivas de publica-ções: revistas e antologias. E são várias as sugestões de caminhos, atalhos, que podemser sulcados lentamente a partir desse ENTRE. Algumas que, rapidamente, já inqui-rem: o que está inserido como diálogo em cada uma delas, e entre elas? Como sãofeitos os recortes? Se sim, como se estabelecem critérios de organicidade? O quê, defato, estética e culturalmente, os poemas inseridos nessas publicações estabelecemcomo propostas de linguagem e sobre que princípio essas propostas podem ser avali-adas? Quais leituras cada uma dessas publicações pode possibilitar sem demarcar op-ções restritas ao leitor? Que mapeamento, se é que é necessário um mapeamento, podeser feito dentro dessa perspectiva?

OUTROS BRASIS: UM ENTRE

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TEXTOS

IIDestaco, para exemplo e princípio de registro do problema (porque de todo

muito extenso para o que se propõe este texto), uma dessas antologias que foramelaboradas na década de 90: “Nothing the sun could not explain”3, organizada porRégis Bonvicino, Nelson Ascher e Michael Palmer (significativo poeta da atual cenaamericana) para ser publicada e editada nos Estados Unidos da América pela Sun &Moon Press, em 1997, em edição bilíngüe. Todos os poemas foram traduzidos porpoetas importantes da atual cena americana: recorte, óbvio, mas ao mesmo tempo queconsidera o diálogo entre os poetas brasileiros em uma clara inserção do que estabele-ci como ENTRE e também como UM OUTRO, a inserção também de um outro UMOUTRO, com a poesia de uma outra cultura, no caso, a americana do norte, tão viva ediversa quanto a nossa no que trata de poesia.

O recorte feito por seus organizadores procura cobrir, através de vinte nomes(o que pode parecer pouco diante da dimensão geográfica de nosso país, e ao mesmotempo, nem tanto, em se tratando de um critério adotado: ao invés de um ou dois outrês poemas para cada poeta, o número de poemas aparece mais ou menos de acordocom uma certa quantidade de livros publicados por cada poeta, para dar abrangência.O que poderia acarretar um calhamaço sabe-se lá de quantas páginas, maior fosse onúmero de poetas a constar na antologia). Enfim, uma produção que pode ser adjetivadae tomada como bastante relevante. Não só pelo percurso que cobre, como por algunsdos nomes antologizados. Inicia na década de 70, com Torquato Neto, passando porAna Cristina César, Paulo Leminski (até aqui todos mortos, ou os únicos mortos atéentão) e Francisco Alvim (que faz tempo já não escreve mais), depois Waly Salomãoe Duda Machado (que até podem ser pensados dentro desta geração inserida na décadade 70, principalmente o primeiro. O segundo, assim rápido, certo mesmo, cronologi-camente apenas) que continuam escrevendo e publicando seus livros de poemas. Adi-ante, nomes representativos dentro desta discussão, em poemas que passeiam pelosmais diversos sensos, pelas mais intrincadas possibilidades e por um campo que podeser tomado como um lugar cheio de matizes: Carlos Ávila, Julio Castañon Guimarães,Lenora de Barros, Horácio Costa, Régis Bonvicino, Nelson Ascher, Josely ViannaBaptista, Cláudia Roquette-Pinto, Age de Carvalho, Arnaldo Antunes, Carlito Azeve-do, Frederico Barbosa, Angela de Campos (que tem apenas um livro publicado) e RuyVasconcelos (provável, o único ainda inédito em livro solo, o que bem poderia já serconsiderado como uma das características dessa atual poesia brasileira: estar publica-do em revistas e antologias, e inédito em livro, manter-se assim).

3 O título desta antologia foi retirado de dois versos de um poema de Paulo Leminski que estáem seu livro “Caprichos e relaxos”, publicado em 1983, pela editora Brasiliense e depois peloCírculo do Livro. O poema, sem título, na íntegra: “nada que o sol / não explique // tudo que alua / mais chique // não tem chuva / que desbote essa flor.”

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IIIPara não ir buscar registro em outra antologias porque, na década de 90, signi-

ficativas, organizaram-se mais umas cinco ou seis (o que mais uma vez assustaria ointeresse de princípio deste texto), tomar como parâmetro um deslocar de ENTRESapenas na poesia dos dois brasileiros organizadores da antologia em questão: RégisBonvicino e Nelson Ascher. Ou mais rapidamente, tomar dois poemas, um de cada,para exercício de reflexão.

FRAGMENTO4

Régis Bonvicino

Encontre foraagoraou dentroentanto

longebétulasabelhas -aqui

gerâniosSer istocomo se?Sol

desordem esquecidaumasombra entrese suicida

OUTRA VOZ 5

Nelson Ascher

Não há voz que intrincadapossa existir sem outracapaz de se imiscuirnas circunvoluções

do cérebro que as cordasvocais enredam – cãibrada cobra enrodilhada –no abstruso trava-línguas;

torna-se a voz, atépara si mesma, audívelse, articuladamente,mais que num eco inócuo,

revém distinta em outraque, ao decifrá-la, estreiteseus nós, emaranhando-se as duas num diálogo.

Os dois poemas aqui citados fazem parte de livros, dos dois poetas tambémcitados, publicados no mesmo ano, 1996. De Nelson, “Algo de Sol”; e de Régis, “Os-sos de Borboleta”. Ano que antecede ao da publicação de “Nothing the sun could not

4 BONVICINO, Régis. Ossos de Borboleta. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 117.5 ASCHER, Nelson. Algo de Sol. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 29.

OUTROS BRASIS: UM ENTRE

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TEXTOS

explain”. Um outro fato a que podemos atribuir coincidência é o de ambos terem saídopor uma mesma editora, a Editora 34, de São Paulo. Somenos, toda a estrutura depensamento e projeto poético embutido em tais livros difere. Daí, ganhar significaçãoeste outro fato, que bem pode significar um emblema para a publicação da antologia:os dois últimos livros de seus organizadores brasileiros são, em essência, dissonantes.

Do poema de Régis Bonvicino podemos pensar que toda a idéia de fragmentotrazida, por exemplo, no título, “Fragmento”, desenvolve-se de fato pelo poema, norecorte sintático de versos como “Ser isto / como se?”, ou na própria ordem (boadesordem?) semântica de nomear o nada a partir de uma sombra que se suicida ou deencontrar fora ou dentro, agora ou no entanto, as sobras do sujeito que habita longe.Régis traz em seu poema, registrada também, uma dimensão de linguagem que procu-ra ler, intrinsecamente, alguma tênue referência da cidade contemporânea, com umrecurso muito próprio de sua poesia: uma zoologia botânica imaginada.

Do “Outra Voz”, de Nelson, empreende-se, rapidamente, uma relação semân-tico-morfológica com um tom clássico, permeado de uma pesquisa de vocabulárioque pode beirar a objetividade parnasiana no que trata da organização do ritmo de suapoesia. Uma espécie de quase neo-parnasianismo citadino, se é que isso pode existir.Coisas como “... de se imiscuir / nas circunvoluções / do cérebro que as cordas /vocais enredam...” ou “cãibra da cobra enrodilhada”. Enfim, duas percepções distin-tas no que trata de propor formas para pensar/fazer poesia, mesmo que vista aqui emcurta análise, porque observada apenas, e rapidamente, nos dois poemas em questão.

Mas é sobre a percepção desse ENTRE e desse UM OUTRO em um projetomaior, como no caso particular da participação direta de poetas tão díspares na organi-zação de uma antologia - Nothing the sun could not explain –, que podemos tentardesenvolver uma demarcação sincera de alguma nova perspectiva para a poesia con-temporânea brasileira que esteja a favor da invenção e da discussão sobre as nossasintrincadas possibilidades de linguagem. Algo como tornar visto, com bons olhos, oque se faz de poesia no Brasil: de longe e de dentro dele.

BIBLIOGRAFIAASCHER, Nelson. Algo de Sol. São Paulo : Editora 34, 1996.ASSIS, Machado de. Obras Completas. Volume III. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1992.BONVICINO, Régis, ASCHER, Nelson e PALMER, Michael ( org.). Nothing the sun could not

explain. ed. bilíngue. Estados Unidos da América : Sun & Moon Press, 1997.BONVICINO, Régis. Ossos de Borboleta. São Paulo : Editora 34, 1996.CALIXTO, Fabiano. Fábrica. Santo André : Alpharrabio Edições, 2000.

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TEXTOS DAS INVENÇÕES À INVENÇÃO:um salto sem rede na arte brasileira

Elida Tessler*

RESUMOPartindo de uma série de pinturas intitulada “Invenções”, de Hélio Oiticica,datada de 1959, esta reflexão pretende retraçar um percurso proposto pelopróprio artista, apontando alguns detalhes de suas múltiplas proposições, ela-boradas até pouco tempo antes de sua morte, em 1980. Seu projeto maior foio de tudo reunir em “um grande mundo da invenção”, conforme suas própriaspalavras. Este percurso nega qualquer lógica linear e, entre saltos e releituras,associamos ao seu trabalho algumas questões ainda abertas acerca da rea-lidade cultural e social brasileira.PALAVRAS-CHAVES: Hélio Oiticica; arte contemporânea; arte brasileira

ABSTRACTThis reflexion begins from a series of paintings entitled “Invenções”, of HélioOiticica, and intends to retrace a route proposed by the artist, pointing somedetails of his multiple propositions, elaborated until a little before his death, in1980. His major project was to bring it all together in “a big world of invention”,acoording to his own words. This route denies any linear logic and, amongjumps and new readings, we associate to his work some questions, that remainopen, about Brazilian cultural and social reality.KEYWORDS: Hélio Oiticica; contemporary art; brazilian art.

* Artista plástica. Professora do Instituto de Artes da UFRGS. Coordena, ao lado de JailtonMoreira, o Torreão - espaço de intervenção em arte contemporânea, em Porto Alegre.

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TEXTOS

“No Brasil há fios soltosnum campo de possibilidades:

por que não explorá-los”Hélio Oiticica

Neste momento em que insistentemente relemos e recriamos a história do Brasil,temos a oportunidade de tomar nas mãos alguns fios soltos e, com eles, tramar

novos destinos: invenções?Os trançados dos índios brasileiros, reunidos e apresentados de modo espeta-

cular, estranhamente alojados em vitrines por vezes recobertas por tecidos translúcidos,na recente exposição “Mostra do Redescobrimento”1 , vêm querer dizer algo acerca denossas origens. Além das peças expostas, alguns filmes apresentados em vídeo repro-duziam o ato mesmo da trama, desde a colheita e tratamento das fibras, até os rituaisda tecelagem. Os índios relatavam, em meio à música e sons da mata, suas necessida-des de crença e transmissão de valores para seus filhos, sempre entrelaçando os fios,fazendo da esteira, da cesta, da rede, do manto o sentido mesmo de sua existêncianaquele instante. Como sabemos, o trabalho artesanal foi e continua sendo transmitidode uma geração a outra. É um trabalho que precisa de tempo - e que deixa o sujeitomuito predisposto à escuta: enquanto fia, enquanto tece, enquanto trança a palha, háuma disponibilidade, invejável nos dias de hoje, para a escuta e para as narraçõesorais. Sem desvincular o gesto das mãos do movimento das idéias, o pensamento tam-bém é, de certa forma, tecido. Nesse sentido, dispondo os fios da urdidura, eis aí anossa história. Tear, anagrama explícito de arte: Invenções?

À experiência dos índios pode ser associada a prática de muitos artistas con-temporâneos, seja no Brasil ou em um panorama internacional mais amplo. O que valelembrar é que essa aproximação não pode nunca ter caráter reducionista nem explicativo,sob pena de se diluir em exemplificações banais e vazias. O que deve ficar em evidên-cia é o engate indispensável entre a necessidade do fazer e suas implicações formais econceituais, ligada às experiências sensoriais.

Um dos artistas brasileiros que nos remete a pensar acerca do caráter de inven-ção na arte é Hélio Oiticica (RJ,1937-80). Sua produção já é bastante conhecida, indodesde pinturas no sentido mais convencional até instalações, performances, happeningsou proposições que convidam o espectador a participar, como elemento fundadormesmo da obra. Oiticica, além de nos fazer pensar no que há de instigante em sua

1 “Mostra do Redescobrimento” - Parque do Ibirapuera, São Paulo - de 23 de abril a 7 de setem-bro de 2000.

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produção plástica, oferece-nos também uma série de textos fundamentais para a com-preensão do estado atual da arte brasileira. Como não lembrar agora, por exemplo, jápassados tantos anos, de seu famoso texto, com sugestivo título “Brasil Diarréia”?Nesse escrito de 1973, ele aponta para a necessidade de criação de uma linguagem,assumindo uma posição crítica: “Derrubar as defesas que nos impedem de ver comoé o Brasil no mundo, ou como ele é realmente” (Oiticica, 1981, p.43) . Hélio Oiticicaindica para a realidade brasileira como aquela de um país novo, onde o caráter experi-mental deveria ser a mola mestra, um privilégio para poucos. Pede que não se olhedemasiadamente para o passado, em busca de uma pureza que nunca existiu, conside-rando o processo de colonização no Brasil. Como sabemos, nos anos 60/70, houvemuitas reações contra uma cultura estrangeira - e o movimento da Tropicália se res-ponsabilizou por tratar esse problema com sabedoria, misturando guitarra elétrica comcores tropicais, falando acerca das miscigenações originárias. Contra a denúncia deuma invasão da cultura estrangeira à realidade brasileira, Hélio Oiticica propôs aban-donar o sentimento de culpa, como se aceitar os “elementos estranhos, música estra-nha, hábitos estranhos” fosse um pecado: “esse pensamento, de todo inócuo, é o maispaternalista e reacionário atualmente aqui. Uma desculpa para parar, para defen-der-se - olha-se demais para trás - tem-se saudosismo às pampas - todos agem umpouco como viúvas portuguesas: sempre de luto, carpindo.” Nesse momento, surgesua famosa proposição-desabafo: “Chega de luto, no Brasil!”

Hélio Oiticica comenta em seus diários que, a partir de 1959, sua obra passou aassumir o experimental. É deste ano uma série de pinturas que ele denominou “Inven-ções”, e, por esta razão, é por ela que iniciamos nossa reflexão cujo objetivo é o detentar reunir as idéias de suas primeiras proposições ao espírito crítico tão agudo detodo o seu programa de trabalho. A multiplicidade de suas experiências ocorreu entreRio de Janeiro, Londres e Nova Iorque, onde viveu alguns anos, sempre fazendo eloscom intelectuais e amigos brasileiros em exílio. Oiticica foi contemporâneo de movi-mentos artísticos internacionais que provocaram uma mudança de atitude face à arte,a partir dos anos 60.

O trabalho de Hélio Oiticica concentra uma série de antinomias como o abertoe o fechado, o dentro e o fora, o acabado e o inacabado, o limite e o infinito, o plano eo volume, a cor e a ausência de cor, a objetividade e a subjetividade, que semprepermitem novas leituras, relacionando-as à realidade brasileira. Tendo privilegiado ocaráter de experimentação nas suas concepções, o artista abre a possibilidade de parti-cipação do público. Desta forma, sua obra não é jamais terminada de maneira unívoca.Finalmente, o que Hélio Oiticica coloca em questão é a relação entre a arte e a anti-arte, perguntando-se sobre o lugar que ocupa o artista no contexto social em geral e navida cultural em particular. Suas questões primordiais concentravam-se sobre proble-mas tais como: O que é um artista? O que é uma criação? A vida não poderia ser, ela

DAS INVENÇÕES À INVENÇÃO ...

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TEXTOS

mesma, considerada uma série de atos criativos? Como e por que mudar o estado atualdo sistema de arte?2

INVENÇÕESO título “Invenções” corresponde a uma série de pinturas monocromáticas que

datam de 1959. São placas de eucatex, de 30 cm2 que deveriam ser instaladas respei-tando um pequeno intervalo entre o plano da pintura e a superfície da parede. Asplacas eram pintadas também em seu verso, o que provocava uma sombra coloridasobre a parede, atrás do quadro. Aqui Oiticica dá um primeiro passo para chegar a umaoutra forma de pintar, isto é, querendo alargar os limites da pintura. O que vem, então,a ser um quadro? Esta é a questão reveladora de um momento de mudanças, que foichamado por críticos da época de ‘um salto radical’.

Poderíamos considerar a cor que se instala entre o quadro e a parede comosendo também pintura, uma pintura imaterial? Sabemos que os espaços de intervalosempre foram muito caros a Oiticica e, por esta razão, colocados em evidência. Bastaolharmos para suas pinturas anteriores, os “Metaesquemas”. Lá e aqui, nas “Inven-ções”, a pintura parecia querer encontrar o seu lugar: ela passava do interior do quadropara fora, mas ainda sob sua proteção. Foi depois se encaminhando a outras formas deapresentação, quando quis ganhar todo o espaço da sala de exposição. “Invenções”antecederam novas formas de pintura para Hélio Oiticica, denominadas por ele de“Relevos espaciais”, “Bilaterais”, “Núcleos” e “Ninhos”.

Vejamos, Oiticica não só inventou outras formas de construção para o seu tra-balho como também outras denominações. Houve uma invenção de vocabulário, coe-rente com seu desejo de transgredir categorias e operações formais de um sistema noqual ele já não mais acreditava. Suas produções receberam nomes tais como, além dosacima citados, “Bólides”, “Parangolés”, “Cosmococa”, “Topological ready-made”,“Penetráveis”, entre outros. São essas invenções que me fizeram associar intimamen-te o caráter construtivo de seu trabalho com o estado atual da arte no Brasil onde, nolugar do luto, possamos encontrar o otimismo necessário para, com intervenções pro-dutivas, delinear a história com a qual gostaríamos de nos identificar.

Vejamos o que nos disse Oiticica: “Os últimos quadros que fiz, que erammonocrômicos, que eram quadrados monocrômicos, que a pintura passa por detrásdo quadro que fica ligeiramente destacado da parede, e reflete na parede, eu chameide ‘invenções’. Justamente, chamar de ‘invenções’ era uma espécie de metalinguagemdo quadro. Na realidade, eu parti das ‘invenções’ para a ‘invenção’”. ( Oiticica, apudCardoso, 1985)

2 Estas e outras questões encontram amplo espaço de reflexão no livro de Celso Favaretto. Ainvenção de Hélio Oiticica. SP, EDUSP, 1992.

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Ainda para falar das placas, é preciso dizer que, além de serem caracterizadaspor uma única cor, esta era sempre quente: vermelho, rosa, amarelo, laranja, ocre, sejaem tons puros ou em variações para tons mais claros. Esses monocromáticos erampintados de forma particular, e a intensidade da cor é realmente impressionante: sãovárias camadas de pintura, sempre com a mesma cor, muitas vezes com texturas dife-rentes. Oiticica procurava, em uma estrutura de sobreposição, algo que ele chamavade verticalidade da cor no espaço. A última camada de pintura, a única visível, seriadotada de uma profundidade ímpar, provocada por todas as outras já ali depositadas. Émuito diferente, por exemplo, contemplarmos um vermelho pintado sobre fundo bran-co e outro sobre fundo vermelho e assim sucessivamente. Não estaríamos aqui prontosa pensar em algo que se refere à nossa própria história? Invenções sobrepostas,monocromáticas, exigindo intervenções/escavações, acreditando que há profundida-de onde parece ser raso o terreno?

Há também aqui uma questão de posicionamento no espaço, que me pareceinteressante. Os quadrados monocromáticos de Hélio Oiticica podem ser expostos demaneira diferente a cada vez. Em suas primeiras exposições, o público podia encon-trar os quadros em posições não habituais, como por exemplo, no ângulo formadoentre a parede e o teto da sala de exposições. Vale aqui o caráter desestabilizador denossas posturas frente à arte.

A palavra “invenção” percorreu todo o processo de Oiticica, que afirmava queo artista é, acima de tudo, um inventor: “Na realidade só existe invenção, não existemais aquelas categorias de Ezra Pound, de diluição, mestre, inventor. Eu acho quetodos são inventores, senão, não interessa”. (op.cit.) A palavra “Invenção” reaparece-rá em títulos de trabalhos seus de 1977, na série “Magic Squares”, por exemplo. “In-venção da cor” e “Invenção da luz” são alguns deles.

“APOCALIPOPÓTESE” E A APRESENTAÇÃO DE “PARANGOLÉS”O convite ao prazer e à sensibilização se tornaram cada vez mais presentes nas

proposições de Hélio Oiticica. O caráter de experimentação se fez elemento essencial,tornando secundário o resultado da obra, isto é, importava mais o processo que oproduto final, este sempre desconhecido até o desfecho com a participação do público.Um ambiente era criado, os materiais propostos, e o espectador-participante tornava-se responsável pelo seguimento do trabalho (ou do acontecimento). O objeto, o objetode arte, deixou de ser a preocupação central do artista - tornou-se apenas um momentode passagem, um instrumento de experimentação. Para Hélio Oiticica, esta modifica-ção do estatuto do objeto provocaria uma transformação no comportamento do espec-tador. O artista esperava deste uma disponibilidade para a experiência, uma liberdade,uma improvisação capaz de conduzi-lo ao encontro consigo mesmo. A busca daquiloque Hélio Oiticica chamou de supra-sensorial visava um descondicionamento de cada

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participante, para que este redescobrisse em si uma capacidade de criar. O supra-sensorial era constituído de uma série de exercícios de criação, de experiências aber-tas onde o objeto não era mais do que um pretexto e onde os cinco sentidos deveriamser despertados.

Hélio Oiticica concebeu o supra-sensorial como um “exercício de realidade-total”, e aqui não estamos longe de proposições de artistas tal como Kurt Schwitters,para quem a obra total era uma maneira de relacionar a arte e a vida cotidiana. Veja-mos o que nos disse Oiticica sobre esta questão: “Eu sinto que a vida mesma deve sera continuação de toda experiência estética, como um todo, e que nada deve ser rejei-tado de maneira intelectual; todas as idéias que eu já desenvolvi em torno de umavolta ao mito, desde a formulação do ‘Parangolé’, tornaram-se agora necessárias,urgentes e irreversíveis. Eu sinto que essa idéia se orienta em direção da necessidadede uma nova comunidade baseada sobre afinidades criativas, que não levassem emconta as diferenças intelectuais, culturais, sociais ou individuais, mas alguma coisaque reunisse a experiência à vida real - todos os tipos de experiências que poderiamprovocar um novo sentimento de vida e de sociedade - uma maneira de construir umambiente para a vida mesmo partindo do princípio que cada um possui uma energiacriadora”.3

A palavra “Parangolé” é proveniente de uma gíria carioca para dizer, entreoutras coisas, “conversa fiada”, o que me fez pensar novamente em nossos fios soltosevocados no início desta reflexão. Fios soltos com os quais Oiticica fez costuras diver-sas. Essa palavra se tornou o título de um programa de Hélio Oiticica, constituído deum conjunto de capas, bandeiras, tendas e estandartes fabricados de diversas maneirascom variados tipos de materiais. Esta proposição, realizada a partir de 1964,correspondia a uma aspiração maior do artista: interação total entre a obra e o público,e por esta via, uma estreita ligação entre a vida e a arte.4

Não há dúvidas de que Oiticica propunha algo mais próximo de uma utopiaque de nossa realidade, e hoje sabemos quão importantes foram suas insistentes mani-festações, coerentes com um pensamento inquieto e avesso às regras estabelecidas por

3 Fragmento de uma carta dirigida a Guy Brett, 2/4/1968. Hélio Oiticica, Galérie Nationale duJeu de Paume. Paris, 1992, p.135.4 A gíria também servia à pergunta: Qual é o parangolé?, que equivaleria , segundo Waly Salomão,a indagar: “O que é que há?” ou “O que é que está rolando?” ou ainda “Como vão as coisas?”.No dizer de Waly, amigo de Oiticica, “o nome Parangolé sumiu da gíria carioca e fixou resi-dência nos objetos de Hélio Oiticica.”(conf. SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica. RJ, RelumeDumará, 1996, p. 28.)

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um sistema de arte ainda preso aos alicerces de uma colonização cultural. Todo odesenvolvimento do trabalho de Oiticica foi fortemente ligado à situação política bra-sileira e se revelava como uma manifestação de revolta. Vejamos algumas das frasesinscritas nas capas, que acabaram por se tornar, de certa forma, palavras de ordem emum momento que exigia de todos uma tomada de posição: “Seja marginal, seja herói”,“Estamos com fome”, “Da adversidade vivemos”, “Incorporo a revolta”, “Estou pos-suído”, “Matar ou correr”.

Uma das apresentações públicas - Apocalipopótese - confirma sua proposiçãode busca do supra-sensorial. Mas o que vem a ser Apocalipopótese? Este nome foiinventado por Rogério Duarte para denominar uma série de acontecimentos simultâ-neos, dentro de um projeto que reunia trabalhos de vários artistas, que incluíam aparticipação do público, no conhecido Aterro do Flamengo, ao lado do Museu de ArteModerna do Rio de Janeiro.

Apocalipopótese reuniu, então, vários artistas cujo trabalho visava uma experi-ência coletiva com a participação do público. É muito importante sublinhar aqui a datadeste acontecimento: 18 de agosto de 1968, isto é, ano de enrijecimento da ditaduramilitar no Brasil. Neste momento, manifestar uma opinião ou uma sensação sobre oestado das coisas era sinônimo de subversão e, por conseguinte, representava um pe-rigo, algo suscetível de repressão. Vamos lembrar aqui que, em 13 de dezembro, edi-tava-se o Ato Institucional n°5 no Brasil.

Porém, como nos disse Oiticica, alguns anos mais tarde, em texto que aquiqueremos certamente resgatar, o que o Brasil necessita é que tomemos posições críti-cas. ”É preciso entender que uma posição crítica implica em inevitáveis ambivalências;estar apto a julgar, a julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já quevalores absolutos tendem a castrar quaisquer dessas liberdades; direi mesmo: pensarem termos absolutos é cair em erro constantemente; - envelhecer fatalmente; condu-zir-se a uma posição conservadora (conformismos, paternalismos; etc.); o que nãosignifica que não se deva optar com firmeza: a dificuldade de uma opção forte ésempre a de assumir as ambivalências e destrinchar pedaço por pedaço cada proble-ma. Assumir ambivalências não significa aceitar conformisticamente todo esse esta-do de coisas; ao contrário, aspira-se então a colocá-lo em questão: eis a questão.”

A questão, para Oiticica, não seria a de evitar a condição colonialista e sim a deassumir a multiplicidade de elementos culturais que formam o país. Além de assumir,propôs “deglutir” os valores positivos advindos desta condição, escapando amoralismos assinalados por ele como de origem branca, cristã-portuguesa. Surge aquia contraposição, tão assinalada por Oiticica no texto, entre uma “prisão de ventrenacional” e um “Brasil-diarréia”. Afinal, o que fazer com tudo o que estamos engolin-do desde que assumimos um modelo europeu, desfazendo-nos de preciosas contribui-ções culturais de índios brasileiros ou escravos africanos? Nos idos anos 70, quando

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ouvíamos em rádio e TV o lema: “Brasil, ame-o ou deixe-o”, Oiticica formulou aseguinte idéia: “A formação brasileira, reconheça-se, é de uma falta de caráter incrí-vel: diarréica; quem quiser construir (ninguém, mais do que eu, ‘ama o Brasil”!) temque ver isso e dissecar as tripas dessa diarréia - mergulhar na merda.” (Oiticica,1981,p.44 )

Vejamos agora, em elementos de sua produção, quanto suas posições foramcoerentes em termos de desprendimento de conceitos absolutos. Desfazer-se de umproduto pronto, de uma obra acabada, cujo destino fosse o de ser consumido comoobjeto de valor museológico foi já um grande passo, ou salto sem rede, com muitaastúcia e coragem. Contava com a participação do público, aliás, dependia imensa-mente dela, e também não se isolava enquanto artista criador. Para a realização deApocalipopótese, vários artistas se reuniram em torno da proposta. Antônio Manuel,por exemplo, apresentou uma série de caixas que continham elementos como ima-gens, mensagens, poemas de protesto. As caixas eram fechadas de maneira inviolávele, para abri-las, era necessário um ato, digamos, de violência. Somente a destruiçãodas caixas permitia desvendar seu conteúdo. Por esta razão, Antônio Manuel colocavaà disposição do público, martelos ou outras ferramentas. Porém os participantes tam-bém poderiam inventar outras maneiras de abri-las. A ação, em seu conjunto, dava aimpressão de uma catarse coletiva.5 Lygia Pape, outra artista carioca, apresentou umtrabalho intitulado “Ovos”: um conjunto de estruturas cúbicas recobertas de papel oude plástico, permitindo o acolhimento do espectador. Uma vez em seu interior, o es-pectador-participante só poderia sair se rompesse a fina película que recobria o cubo.Sem dúvida, há aqui uma metáfora acerca do nascimento. Rogério Duarte, por suavez, apresentou uma espécie de espetáculo com cães amestrados sob a regência de uminstrutor. Metáfora da condição mestre-escravo? Estratégia para mostrar até que pontosomos dominados por um outro, vendo nossos gestos dominados e nosso pensamentocontrolado? Muitos críticos de arte daquela época observaram o aspecto premonitóriodesse trabalho, pois, alguns dias após a realização de Apocalipopótese, a polícia co-meçou a utilizar cães amestrados para a perseguição política.

Também outros artistas participaram do evento, mas queremos concentrar-nosna proposição de Hélio Oiticica, que convidou seus amigos da Escola de Samba daMangueira para vestir seus parangolés. Seria uma experimentação. O artista fabricouas bandeiras, as capas, os estandartes, dando valor à prática artesanal, por aquilo queconcentra de prazer na construção. Porém seus objetos nada são, se expostos de ma-

5 Tive a oportunidade de ver o filme que foi realizado por Raimundo Amado durante a manifes-tação “Apocalipopótese” por ocasião da exposição retrospectiva “Hélio Oiticica”, em Paris, em1992.

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neira convencional. Eles precisam da participação do público para ser o espetáculo.Em manifestações com parangolés, sempre haverá os que vestem as capas ou portamas banderiras e outros que ali estarão para assistir, o que não deixa de ser uma forma departicipar. A obra é um evento, uma experiência que cria intersecções entre o materialconcebido pelo artista e o movimento dos corpos, entre as capas e a pele do espectadorparticipante, entre aquele que veste a obra (e simultaneamente se transforma em obra)e aquele que olha. A experiência é o grau necessário de liberdade para chegar a umoutro grau de assimilação da obra. O prazer não é somente estético nem somente visu-al. A experiência é construída, sugerindo também intersecções entre o objetivo e osubjetivo, entre o emocional e o racional. Mesmo no momento vivo da experiência,quando a música e a dança provocavam vários tipos de sensações, mesmo quandouma desordem aparente parecia dominar a ação, o artista estabelecia uma outra espé-cie de ordem, e talvez seja esse um dos elementos mais importantes de seu trabalho:Oiticica sempre acreditou no conhecimento construído a partir de experiências senso-riais.

Aqui está a definição, talvez, do que venha a ser o supra-sensorial propostopor ele, como o despertar da consciência do corpo e de uma capacidade de criação,junto com a reflexão. A experiência, mesmo coletiva, permitindo a formação de umpensamento individual. A concepção da obra foi tão estreitamente ligada a conceitosteóricos, que Oiticica manteve sempre a prática da escrita. Mais que manifestos oudiários, mais que esboços ou esquemas, cartas ou matérias para jornais e revistas, seusescritos se incorporaram à sua atividade como um todo e seguem sendo documentosimportantíssimos para a reconstrução da história da arte recente no Brasil.

O supra-sensorial proposto por Hélio Oiticica nos parece ter sido uma estraté-gia para escapar à hierarquia do olhar nas artes plásticas. Suas premissas seguiram amesma direção das proposições do artista americano Allan Kaprow, cujos esforçosforam concentrados em tentativas de diluição de fronteiras entre as diferentes catego-rias de arte. Nos parangolés, temos, por exemplo, elementos ligados à dança, ao tea-tro, às artes plásticas e à música. São formas e cores, sons, ervas perfumadas dirigidasao olfato, materiais diversos para serem percebidos pelo tato. Oiticica cria um espaçoonde o olhar possa ser construído de forma distinta, o corpo do espectador estandodentro de uma capa ou de uma tenda, vendo e sendo visto concomitantemente. Dentroda obra, o espectador faz parte dela.

A arte, podendo ser criação de lugares, exigindo a presença do corpo para queela exista em plenitude, faz com que, por momentos, possamos realmente confundir aexperiência estética com os dramas de nossa vida cotidiana. Não seria mesmo, atravésda arte, uma maneira de falar da antinomia fundamental entre vida e morte, do tempoque passa enquanto nem o percebemos? A invenção de Hélio Oiticica foi fazer-nosperceber que a grande criação está sempre se criando, em um work in progress, em um

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jogo em que as regras se vão estabelecendo no curso da experimentação, formandoum sistema próprio de pensamento. “Não se trata de ficar nas idéias. Não existe idéiaseparada do objeto, nunca existiu, o que existe é a invenção. Não há mais possibilida-de de existir estilo, ou a possibilidade de existir uma forma de expressão unilateral,como a pintura, a escultura, departamentalizada. Só existe o grande mundo da inven-ção” ( Oiticica, 1979). Eis aqui o caráter utópico de seu trabalho, que mesmo emnossos dias, neste início de século pleno de ambições, faz com que voltemos a uma desuas reinvindicações básicas: “Invenção não se coaduna com imitação: simples, masé bom lembrar” (Oiticica, 1981, p. 52).

BIBLIOGRAFIACARDOSO, Ivan. A arte penetrável de Hélio Oiticica, Folha de São Paulo, SP, 16/11/1985.FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo : EDUSP, 1992.OITICICA, Hélio. Experimentar o experimental. Arte em revista, n. 5, São Paulo, maio. 1981.

Texto publicado pela primeira vez na Revista Vozes, n. 6, agosto 1970.___ . Entrevista a Ivan Cardoso em 1979 in: FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica.

São Paulo : EDUSP, 1992.___ . Brasil, diarréia. Arte em revista, n. 5, São Paulo, maio. 1981. Texto publicado pela primei-

ra vez na Revista Vozes, n. 6, ago. 1970.___ . Carta a Guy Brett. In: Galerie Nationale du Jeu de Paume (org.). Hélio Oiticica. Paris,

1992.SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1996.