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107 ENTREVISTA Em 1991, fui convidada pelo crítico de arte Roberto Pontual a realizar uma série de entrevistas com pessoas responsáveis diretamente pelo intercâm- bio entre artistas americanos (das três Américas) e a França. Na época, Pontu- al era um dos curadores da Triennale des Amériques, que teve lugar em Maubeuge (24 de abril a 4 de julho 1993), apresentando obras históricas e atuais de cerca de cem artistas. Foi neste contexto que estabeleci um pequeno roteiro, incluindo pessoas ligadas ao sistema de arte: marchands, diretores de centro culturais, artistas. Não hesitei em marcar uma hora com Arthur Luiz Piza, artista nascido em São Paulo, em 1928, e residente na França desde 1951, cujo trabalho delicado e profundo pude conhecer aos poucos, com grande admiração. A partir do primei- ro telefonema, fui imediatamente recebida em seu atelier da Rue Dauphine, quase à beira do Sena, tendo a oportunidade de assistir a uma verdadeira via- gem por arquivos, com fotos e documentos de muitas épocas distintas, confi- gurando-se ali um momento histórico para mim. Piza foi um dos fundadores do “Espace Latino-américain” em Paris, em 1980, local de acolhimento de artistas e circulação de suas idéias e trabalhos. A INVENÇÃO DE UM LUGAR * Arthur Luiz Piza * Entrevista concedida à Elida Tessler em dois momentos diferentes: o primeiro, em dezembro/ 1991; o segundo, em setembro/2000.

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ENTREVISTA

Em 1991, fui convidada pelo crítico de arte Roberto Pontual a realizaruma série de entrevistas com pessoas responsáveis diretamente pelo intercâm-bio entre artistas americanos (das três Américas) e a França. Na época, Pontu-al era um dos curadores da Triennale des Amériques, que teve lugar em Maubeuge(24 de abril a 4 de julho 1993), apresentando obras históricas e atuais de cercade cem artistas.

Foi neste contexto que estabeleci um pequeno roteiro, incluindo pessoasligadas ao sistema de arte: marchands, diretores de centro culturais, artistas.Não hesitei em marcar uma hora com Arthur Luiz Piza, artista nascido em SãoPaulo, em 1928, e residente na França desde 1951, cujo trabalho delicado eprofundo pude conhecer aos poucos, com grande admiração. A partir do primei-ro telefonema, fui imediatamente recebida em seu atelier da Rue Dauphine,quase à beira do Sena, tendo a oportunidade de assistir a uma verdadeira via-gem por arquivos, com fotos e documentos de muitas épocas distintas, confi-gurando-se ali um momento histórico para mim.

Piza foi um dos fundadores do “Espace Latino-américain” em Paris, em1980, local de acolhimento de artistas e circulação de suas idéias e trabalhos.

A INVENÇÃO DE UM LUGAR*

Arthur Luiz Piza

* Entrevista concedida à Elida Tessler em dois momentos diferentes: o primeiro, em dezembro/1991; o segundo, em setembro/2000.

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ENTREVISTA

Paris, 19 de dezembro de 1991E.T.: Arthur Luiz Piza, você é um dos fundadores do Espaço Latino-Americano

em Paris, mas você já vivia aqui antes disso, não é?

A.L.P.: Sim, cheguei em 1951, mas só me fixei em Paris em 1955. Os artistas latino-americanos vieram pouco a pouco: Franz Kracjberg, em 1961; acho que Sérgio de Camargotambém; Flavio Shiro, mais ou menos na mesma época que eu; ele tinha o hábito depreparar feijoada em sua casa. Todo mundo ia para lá. Ele fez muito pela integração dosbrasileiros em Paris. Foi nessa época que começamos a existir como grupo. A fundaçãodo Espaço Latino-Americano amadureceu em consonância com a situação política naAmérica latina, onde a repressão era então quase geral. Nós tomamos consciênciadisso, e era preciso fazer alguma coisa; nós nos reunimos por causa da situação políti-ca. Reuníamo-nos para realizar projetos. Criamos, entre outras coisas, uma exposiçãoextraordinária na Cité universitaire: uma exposição temática contra a repressão. Todosos latino-americanos estavam presentes.

E.T.: Você se lembra do título dessa exposição?

A.L.P.: Não, mas me lembro, em contrapartida, de uma montagem audiovisualsobre o Brasil, com todas as fotos de que dispúnhamos: cenas de repressão, aconteci-

A narração e análise desta trajetória estão presentes na primeira parte da entre-vista que segue. Esta entrevista foi originalmente publicada na França no catá-logo “Première Triennale des Amériques - présence en Europe 1945-1992".

Passados quase nove anos, arriscamos uma continuidade de nossa con-versa, considerando a pertinência dos elementos aqui expostos com o temadeste número da Revista, que acompanha o Congresso da APPOA “Brasil:Descoberta <> Invenção”. Considerando que o “Espace Latino-américain” foilevado a fechar as suas portas em meados dos anos 90, tentei averiguar seainda havia a necessidade de um lugar específico de encontro, e há quantasandavam as articulações de pensamento entre os de lá e os daqui, enfim, atu-alizar o que antes havíamos levantado como questão.

Nesta segunda parte da entrevista, são outros os arquivos que se abrem:caixa de entrada, caixa de saída, itens enviados, outros excluídos: correspon-dência eletrônica, e não menos viva. Não são gavetas que Piza nos abre destavez: derrama-se um depoimento úmido de quem sempre manteve respeito portudo que se produz como invenção. Optamos por transcrever as perguntas edeixar o leitor em contato direto com os efeitos que estas produziram em Piza.

Elida Tessler

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mentos políticos. Éramos muito ligados à resistência à ditadura no Brasil, e foi isso quenos uniu. Antes da criação do Espaço Latino-americano, não havia lugar específico dereunião, lugar geográfico estabelecido. O espaço que temos hoje foi encontrado porRodolfo Krasno.

E.T.: Quem foram os artistas fundadores do Espaço Latino-Americano?

A.L.P: Os primeiros foram José Gamarra, Alberto Guzman, Rodolfo Krasno, JulioLeParc, Fernando Maza, Gontran Guanaes Netto, Luis Felipe Noe, Leopoldo Novoa,Juvenal Ravelo (que depois voltou para a Venezuela), Luis Tomasello, Jack Vanarsky eeu. Estes artistas formaram o primeiro grupo em 1980. Nessa época, mesmo que a ques-tão permanecesse política, nossa primeira idéia não foi a de criar uma associação semfins lucrativos, conforme a lei de 1901, mas o contrário. Rodolfo Krasno queria quemontássemos uma verdadeira galeria. Isso parecia utópico. Sempre houve no grupopessoas que queriam manter a galeria e, ao mesmo tempo, os membros do grupo. Eraimpossível. O lado político nos ligava mais do que o aspecto puramente econômico.Depois, inventamos as “valises”, onde eram reunidos originais de cada um de nós.Dentre os artistas do grupo, alguns já tinham um nome e conseguimos vender váriasdessas “valises”, o que nos permitiu subsistir bastante tempo.

E.T.: O Espaço recebeu algum apoio institucional?

A.L.P.: Recebemos, em 1981, um apoio que nos permitiu pagar uma secretária.Perdíamos tempo com os problemas de dinheiro, que nos desviavam constantementede nossas intenções. Queríamos expor. É muito difícil se ocupar ao mesmo tempo dolado administrativo... É fácil ter idéias, mas concretizá-las é bem diferente. Cada um denós precisou cotizar para fazer com que o Espaço se mantivesse. Brigas terríveis acon-teceram, e alguns de nós foram embora. Não tínhamos dinheiro suficiente. Nossasintenções continuavam as mesmas, mas as questões concretas foram penosas. Quería-mos fazer com que os latino-americanos da França e de fora dela fossem conhecidos.Uma preocupação pessoal era conseguir a presença de artistas franceses, já que está-vamos na França, em Paris. Alguns eram reticentes em relação a essa perspectiva, masera preciso evitar que nos fechássemos em um gueto. Uma de nossas exposições cha-mava-se La Chaîne [A Corrente]: um artista latino-americano convidava um artistafrancês...

E.T.: Uma de suas preocupações maiores é o diálogo entre os artistas francesese latino-americanos. Como se dá realmente esse diálogo?

A.L.P.: As amizades que começaram naquela época permanecem vivas. É pena

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ENTREVISTA

que não tenhamos trabalhado nesse sentido. A esse propósito, é importante falar daexposição de Maubeuge. Hermann Braun-Vega, partidário de uma visão mais ampla,quer que escapemos a uma imagem de “latino-americanos apenas”, a fim de criar umespaço de integração. Em Maubeuge serão reunidos artistas de toda a América. Isso émuito bom.

E.T.: O público será sensível a esse diálogo entre artistas de horizontes diver-sos?

A.L.P.: Nosso público se ampliou muito. Quando abrimos o espaço, o eixo“Beaubourg-Bastille” ainda não existia. Agora, a rua é muito mais freqüentada. O públi-co vem talvez para ver artistas latino-americanos. Como se trata de um espaço consa-grado a eles, devemos mostrá-los. Fizemos exposições durante as quais era praticamen-te impossível entrar na galeria. Infelizmente, o público era sobretudo de latino-america-nos; é preciso alcançar um público maior. Nossas idéias são muito grandes para umagaleriazinha... Nossos projetos ainda repousam sobre a idéia da corrente esticada entreos dois mundos.

E.T.: Não faz parte de seus projetos de futuro dispor de um espaço maior?

AL.P.: Não temos o dinheiro necessário para realizar esse projeto. Já fizemoscoisas muito boas. Editamos um livro com gravadores do Espaço, franceses, espa-nhóis... com um texto muito importante de Julio Cortazar. Esse livro nos ajudou muito:vendíamos exemplares de vez em quando, o que nos permitiu adiar em um mês oscompromissos financeiros.

E.T.: Mais ou menos como a “valise” de que você falava...

A.L.P.: Mais ou menos a mesma coisa, com nomes como Matta, Tapiès e outros.Expusemos fotógrafos da América latina como, por exemplo, a exposição brasileiraCorpo e Alma , com Roberto Pontual, em 1984. Matta nos ajudou muito: ele tinha feitoum quadro e cada um de nós devia intervir nele. Deu-nos pequenos quadros, que nossustentavam três ou quatro meses de maneira relativamente tranqüila. Coisas assim nosajudam muito e nos fazem bem. Neste ano, queríamos prestar uma homenagem a WilfredoLam e fazer uma exposição grandiosa, mas fomos obrigados a diminuir nossas preten-sões. Essa homenagem será feita a partir de seu quadro Jungle [Selva]. É uma propostaaberta a todo mundo: os artistas poderão partir dessa obra e pintarem eles próprios umquadro. A base dessa reflexão será: o que é a selva. Isso é algo que nos preocupa. Lamé um mestiço afro-chinês latino-americano, que viveu em Paris. Ele resume tudo o quenós somos... representa um pouco todos nós.

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E.T.: Quais são seus outros projetos para 1992? Essa data marca o 500o aniversá-rio da descoberta da América.

AL.P.: Este ano será um período mais de reflexão do que de comemorações. Umde nossos projetos chamado Eles escolheram Paris, levanta o problema dessa escolha:por que viemos trabalhar em Paris? No que diz respeito aos hispanófonos, poderia tersido a Espanha. Então, por que Paris?

E.T.: Quais foram os encontros mais importantes no Espaço?

A.L.P.: O Espaço serviu um grande número de artistas. Ele permite as exposiçõespessoais. Alguns artistas um pouco esquecidos puderam ser “redescobertos”, como ouruguaio Carmelo Arden Quin, do Movimento Madi. Muito conhecido outrora, ficoubastante tempo sem trabalhar. O Espaço é útil aos artistas que sabem utilizá-lo. Entre-tanto, o Espaço não é uma galeria. Alguns acham que ele vai fazer tudo e deslocar oscríticos para este ou aquele pintor; ora, trata-se simplesmente de um lugar onde se podemostrar as obras. Muitos fizeram sua primeira exposição parisiense no Espaço, como oamericano Joseph Zirker. Eu o encontrei em Havana. Um artista americano, vivendo naAmérica e expondo no Espaço, isso inverte a situação, é uma espécie de triângulo.

E.T.: Como você imagina a continuidade do Espaço Latino-Americano em Paris?

A.L.P: Vários membros de nosso grupo nos deixaram, sentindo uma raiva terrí-vel do Espaço; eu sempre fiquei. O Espaço Latino-Americano não depende de seuespaço físico. Para mim, ele é uma idéia. Gosto dessa idéia e acho-a enriquecedora. Umaboa idéia dá medo em algumas pessoas. Ocorreu uma espécie de fecundação em Paris.Ela provoca uma mutação de todos os lados. A Europa está prestes a se tornar unificada.Também o Espaço deveria tornar-se europeu. Por que não criar um Espaço Latino-Americano em vários países da Europa? Eles poderiam se comunicar. Isso seria formidá-vel.

Porto Alegre, 15 de setembro de 2000E. T. : Quase 10 anos depois, lanço-lhe, aqui, outras questões, deixando-o bem à

vontade para respondê-las ou tomar outro rumo, como um depoimento, por exemplo. Aentrevista será publicada numa revista que tem como tema “Brasil: Descoberta<> In-venção”.

1- Gostaria de iniciar esta conversa com um depoimento teu acerca de teu pró-prio percurso de trabalho, tua escolha por morar em Paris e a possibilidade que tivestede desenvolver uma pesquisa pessoal, e a partir dela, criar espaços de interlocuçãoentre o Brasil e a França.

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ENTREVISTA

2 - Como sentes o estatuto do “ser brasileiro”, sendo um artista que representao Brasil em exposições internacionais?

3 - Após o fechamento do Espaço Latino-americano, os artistas que ali se reuni-am para trocar idéias e promover eventos, continuam encontrando-se e realizando no-vos projetos?

4 - Na entrevista anterior (dez/91), fizeste referência a uma homenagem a WilfredoLam, que seria realizada por um grupo de artistas latino-americanos (dizias que poderi-am participar todos aqueles que assim desejassem, configurando uma proposta aberta).Este projeto foi realizado? Quais foram as repercussões? Naquela ocasião, falávamossobre as comemorações em torno dos 500 anos da descoberta da América. E hoje, comosentes o aniversário de 500 anos de Brasil?

Paris, 29 de setembro de 2000A. L. P. : Perguntas às quais não posso responder...A luz rasteira do outono, andorinhas tardias nos seus vôos rápidos de avião de

caça, uma velha angústia toda enrolada, a escuta eletrônica dos meus neurônios àespera do anoitecer.

Perturbado pelo mexer em velhas coisas, estranho o trajeto desde o navio LouisLumière até hoje. As minhas reflexões não tem fronteiras, eu sou um pouco isto eaquilo. Há momentos de grande contato entre ambos. Eu poderia ser um a fundo,poderia ter sido. Sou meu próprio campo de exploração. Como se olhasse meu cadáver.Meu médico dizia que eu devia me esquecer. Não é fácil quando se trata do eu.

O escorregar entre, o esconder para reaparecer - muito de mim está nesseescorregar, nesse cobrir, nessa espera da surpresa, do reaparecer, na esperança quesurja  outro. É como o gato que esconde o camundongo debaixo do tapete para ter asurpresa dele, a de agarrá-lo na saída. Muito de mim é esperar que aconteça, mas existeuma necessidade que vai se acumulando ,vai empurrando o acontecer. É quase biológi-co. Estranha alegria esta de dar flor, esta integração dentro do tempo, como se ele fosseinfinito, ou como se já não existisse. Sentir-se diluído dentro do tempo.

Tenho que trabalhar, ou melhor fazer rápido, é no rápido que eu às vezes consigoapanhar a «coisa». O complicado ajuda o que depois será simples. O misturar paradepois escolher. O experimentar sempre .

Por que estou aqui foi a pergunta . Porque eu tinha que sair de onde estava.Deve ter sido um grande esforço o do impulso de ter de me agarrar em tudo para existir.Mas para existir no Brasil ou aqui. O ser é doloroso, repleto de cicatrizes mal fechadas.Minha infância cheia de crises de quem não se aceita. Devorando tudo, música, pinturae o que lia, de uma maneira bruta, como se tudo entrasse direto em mim. O quotidianoinsuportável me parecia monótono e interminável. O álcool me punha em outro mundo,sem fronteiras, ou melhor onde a fronteira única era a morte. Mas morrer em certas

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condições ,em certos momentos de grande emoção e compreensão pode ser umadélivrance, prazer supremo, uma ejaculação definitiva. O céu estrelado de Van Gogh éa razão de eu ter saído de dentro de mim. A loucura é contagiosa. Foi uma vontade de irembora, ver o outro lado. Foi inventando coisas que eu fui me suportando, inventandocoisas que se inventavam elas mesmas. O não fechamento, ou talvez o virar outra coisa.

A INVENÇÃO DE UM LUGAR

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RECORDARREPETIRELABORAR

NELSON RODRIGUES,INTÉRPRETEDE NOSSO TEMPO

Luís Augusto Fischer*

Esta seção tem sido, de certa forma, palco de nossa homenagemà memória. Não num sentido nostálgico de reconstituir, no presen-te, o que foi perdido no passado. Mas, antes, no sentido de cons-truir o novo retirado da memória, com tudo o que esta comporta deapagamento e encobrimento.É nessa perspectiva que trazemos ao leitor um texto sobre NelsonRodrigues. O que este escritor teria a ver com o tema dos 500anos do Brasil? Bem, isso deixamos a cargo de um outro escritor,LUIS AUGUSTO FISCHER, que nos apresenta uma instiganteanálise da obra deste polêmico autor brasileiro. O que podemosadiantar aqui é que Nelson Rodrigues nos legou, através de seusensaios, uma forma literária de contornos imprecisos que misturaconfissão, memória e vontade de interpretar o presente à luz daindividualidade. O resultado disso é um impressionante painel davida brasileira de seu tempo, com tudo o que aí podemos reencon-trar de “nosso”.

* Professor do Instituto de Letras da UFRGS, autor de Para fazer diferença (Artes e Ofícios) edo Dicionário de porto-alegrês (Artes e Ofícios), entre outros.

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O ensaio de Nelson Rodrigues representa, no conjunto, a melhor expressão literáriade diagnóstico de nosso tempo. Para ombrear com ele neste particular, no Brasil,

apenas Carlos Drummond de Andrade na poesia, e estamos conversados. Se há, nocampo do romance e do conto, casos majestosos (e diversos entre si) como o de umGuimarães Rosa para nos dizer do choque entre dois mundos tão díspares entre si comoo sertão e a cidade, a mentalidade pré-racional versus a racional – para tomar os termosda análise aguda de José Hildebrando Dacanal –, e o de um Rubem Fonseca paraenunciar as mazelas da vida urbana da metrópole carioca, metonimicamente a cidadebrasileira e, em muitos aspectos, a ocidental contemporânea, há, por seu lado, o ensaiode Nelson Rodrigues mostrando em detalhe um turning point histórico por tudo repre-sentativo de nossa época.

Na série cultural, da vida da cultura tomada em sentido antropológico, as Con-fissões detectam, antes que qualquer outro no Brasil, o fim de uma era, que poderíamosdatar entre 1917 e 1989: a vasta era da Guerra Fria, tomado o termo aqui numa abrangênciaque a história não costuma atribuir a ele, é claro. A era em que o Ocidente e, depois, oplaneta todo, esteve envolvido na disputa entre a regra capitalista e a hipótese socialis-ta, entre a economia de mercado e a economia centralizada e planificada. Depois dasimbólica Queda do Muro, que ocorreu há pouquíssimo tempo, mas já parece umalonjura insuportável (Como é antigo o passado recente, nunca cansou de dizer Nel-son), ficou fácil ver que a alternativa comunista estava fadada ao fracasso, pelo menosaté agora e na forma específica que assumiu – Estado centralizador, forte, autoritário,que pôs a sociedade a seu serviço, com supressão das liberdades civis que herdamosda burguesia histórica triunfante no século XVIII. Ficou fácil ver que aquilo era umelefante caminhando para um brejo inominável. Ficou nítido o caráter nada transcen-dente do comunismo real. E por fim, sobretudo depois da análise de Robert Kurz1 , ficouclaro que o Estado comunista não era o antípoda do Estado liberal de tipo norte-americano, mas o seu oposto complementar, para uso em regiões atrasadas, segundo orelógio planetário da produção para o mercado. O fenômeno da globalização, hojetornado absolutamente cotidiano e trivial (conquanto dramático), pôs fim àquela pola-ridade que, até vinte anos atrás, parecia sólida como o próprio andar do tempo. Poucosforam os que perceberam que tal solidez era de papel, e Nelson foi um deles, no Brasil,o mais contundente e, quanto à expressão, o mais feliz.

Não se trata de ignorar o reacionarismo de Nelson nos anos 60 e 70. Sim, ele eraum reacionário medonho, obtuso, por vezes risível. Suas posições antiendeusamentodo jovem, antieducação sexual, antipílula anticoncepcional, antiesquerda em geral eram,

1 Refiro-me aqui a O colapso da modernização e a Os últimos combates .

NELSON RODRIGUES, INTÉRPRETE...

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RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

na época, vistas como a própria voz do diabo a concordar com o que havia de maisautoritário na vida do país, a corporação militar e as elites econômicas de sempre. Sóque, passando o tempo, agora é possível averiguar em quanto estava certo Nelson.Não, talvez, na comemoração do triunfo da ditadura – que ele de fato nunca celebrouabertamente – ou no regozijo pelo sucesso da autoridade diante das insurgênciasjovens – que ele, sim, celebrou algumas vezes –. Nelson estava certo em si, por pensarautonomamente e, munido de uma visada mais larga que a triste e medíocre polarizaçãoque a ditadura impôs, por não admitir, em seu íntimo, que aqueles rumos (que chameiaqui de Guerra Fria, com a mesma liberdade cronológica de Eric Hobsbawn) fossem osúnicos possíveis. Para usar uma imagem banal: Nelson sabia que aquele túnel não era ofim da história, depois dele deveria por certo existir vida inteligente, para além da opo-sição simples entre ditadura e oposição, entre o Império Norte-Americano e o ImpérioSoviético.

Mas ainda não expliquei direito. Em linha reta: é claro que o coração mais gene-roso, entre 1964 e 1979 (digamos), estava contra a ditadura e a favor do que fosse contraa ditadura. Nesses estritos termos, Nelson esteve mais do lado do “mal” do que lado do“bem”. Mas o fato sólido e hoje visível é que “contra a ditadura”, do lado do “bem”,havia muita coisa díspar a fazer coro momentâneo, coro que existiu por motivos absolu-tamente contingentes, a saber, a própria ditadura (escrevo a palavra e me assalta a nítidaimpressão de que estou falando de algo muito anterior ao primeiro espartilho de SarahBernhardt). Era fácil ser contra Nelson então, bastava estar contra a ditadura, mas otempo mais lhe dá razão do que lhe tira2 .

Sinto que ainda falta dizer algo mais sólido sobre o tema. Vejamos um casoespecífico: o jovem. Para toda a juventude urbana dos anos 60 e 70 – e quem não erajovem então? –, era impossível admitir qualquer razão nos ensaios de Nelson. Pois ohomem desancava, com um humor que, na hora, parecia sádico, os mais caros sonhosde solidariedade, de fraternidade, de utopia, que “todos” cultivavam; e com que impudoro fazia, com que agudeza, com que capacidade de ver o reverso das coisas. Muito bem.Passa-se o tempo, e o que vemos? Socorro-me do raciocínio autocrítico de ContardoCalligaris3 a respeito do recente filme Kids, espécie de retrato do horror e do desatino

2 Num artigo de grande interesse ainda hoje, Cultura e política, 1964-1969, escrito no calor dahora, Roberto Schwarz observou que Nelson havia aderido à ditadura: “tendo recursos literáriose uma certa audácia moral”, Nelson abjetamente se pôs a serviço dela; “a finalidade cafajeste dafabulação não é escondida, pelo contrário, é nela que está a comicidade do recurso”; o texto deNelson se volta contra os mesmos adversários da polícia, o que seria, para Schwarz, motivosuficiente para impugnar a obra de Nelson. É de observar que aqui está uma leitura totalmenteengajada e submetida ao horizonte de época, que confirma o que dissemos: que era difícil, senãoimpossível, gostar de Nelson naquela hora. V. Schwarz, O pai de família e outros estudos.3 Crônicas do individualismo cotidiano, p. 233 ss.

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da juventude adolescente de um país central, na busca do prazer eterno e instantâneo,em desconsideração total de qualquer perspectiva transcendente. Contardo avalia ascoisas retratadas no filme, os horrores todos, a falta de utopia, e considera (digo com asminhas palavras) que de fato é impossível não sentir um desgosto profundo pelo quevai na tela, e é quase impossível resistir ao impulso de condenar essa adolescência pelodesatino, atirando-lhe em rosto a glória da juventude flower power, da juventude embe-bida em hippismo, da juventude on the road, da juventude de esquerda, generosa eutópica, dos anos 60 e 70. Certo, tudo certo, mas, reage Contardo, de quem essa adoles-cência é filha? Exatamente da juventude dos anos 60 e 70. E como foi ela criada? Foicriada por pais que puseram o valor da liberdade individual acima do valor da família, ovalor da busca da realização individual acima do valor da paternidade, o valor do prazerno presente acima do valor das promessas de redenção futura. E então?

Contardo Calligaris não é um reacionário. Eu não sou um reacionário. Então,Nelson Rodrigues, que subscreveria os comentários acima (creio eu), só ele é que éreacionário? Seu defeito foi ver antes o caminho das coisas, foi ter dito, alto e bemescrito, o rumo que a cultura estava tomando e que não o agradava. (Escrevo esteúltimo capítulo, por acaso, num lugar em que ser “coroa” não é um problema: há velhosem flor, de cabeça reluzentemente branca, a andar pelas ruas da cidade e a freqüentarcafés às onze horas da noite, sem vergonha e sem medo; as mulheres de mais de trintaou quarenta anos, em nada parecidas com os modelos da ditadura da eterna juventude,expõem-se ao sol com toda a tranqüilidade; não é feio nem problemático ter mais detrinta anos e gostar de certas músicas ou de certas práticas como o silêncio e a leitura.E me lembro o tempo todo do Brasil de 1998: a televisão onipresente não considera aexistência de público adulto que goste de algo mais que futebol e variedades; as rádiosimpossibilitam a existência de ouvidos não afeitos ao baticum opressor; não há empre-go para a adolescência e para a juventude e quase nem há escola; os chefetes do tráfico,no segundo escalão, têm menos de 21 anos, e qualquer sujeito acima de trinta anos quedispõe de um certo patrimônio de discernimento tem dificuldades para alimentar oespírito com produtos culturais igualmente adultos. Estou ficando reacionário.)

Ao bronquear tão veementemente contra a hegemonia do jovem, Nelson estavaintuitivamente se insurgindo – com meu total apoio hoje, como se vê – contra a ditadurado presente eterno, figurado em tantas ditaduras pequenas: a do corpo “perfeito”, a dopeso “perfeito”, a do “politicamente correto” – esta tão particular tradução para “politicalcorrectness”, que em português daria “correção política” –, a da simplificação de todoproduto cultural, para consumo das massas. Estava-se insurgindo contra aquilo quehoje está plenamente configurado: a ditadura da imagem do jovem – sim, nós sabemosque não são “os jovens” que estão no poder, mas os mesmos poderosos de sempre,que souberam ver naquela faixa etária que mal e mal começava a ser detectável no fim daSegunda Guerra, a juventude, um potencial de consumo massivo altamente rentável.

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RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

(Daqui a pouco, talvez o ideal de vida baixe de idade um pouco mais, e seremos obriga-dos a admitir como ideal o uso de mamadeiras, fraldas e bico.) Nelson, enfim, estavavendo chocar o ovo da serpente, e, ensaísta, foi para a boca do palco, limpou o pigarroimaginário e disse suas verdades profundas – então reacionárias, hoje realistas; melhordizendo: então proféticas, hoje triviais. Para usar uma imagem de Aníbal DamascenoFerreira já apresentada neste trabalho, a Queda do Muro, o fim da União Soviética e aDitadura das Modelos Magras 4 de hoje em dia são, em relação a Nelson Rodrigues,apenas fatos sobrálicos, evidências públicas para intuições privadas.

A par disso, Nelson construiu toda uma teoria sobre o ser brasileiro. Claro quenão apresentou tal visão articuladamente, academicamente, porque não era esta a suapraia nem a sua questão. Falando diariamente, por vários anos, para milhares de brasi-leiros, sobre temas de transcendental urgência como o futebol, Nelson traçou um perfilde nosso ser. Não é o caso, agora, de revê-lo em detalhe, mas vale lembrar passagens,apenas como ilustração, e fora dos contextos originais que muito ilustram as sacações,as intuições, os lampejos, o wit: No Brasil, a glória está mais no insulto do que noelogio; Não há ser mais pungente e, repito, não há ser mais plangente do que obrasileiro premiado; O brasileiro, inclusive o nosso ateu, é um homem de fé ; O brasi-leiro chamado de “doutor” treme em cima dos sapatos; Só o brasileiro tem a desfaça-tez de ir ao pólo gripado; O brasileiro tem alma de cachorro de batalhão; O brasilei-ro tem alma de feriado; O brasileiro finge um desejo indiscriminado e voraz por todasas mulheres, vivas e mortas; No Brasil, há platéia para tudo e o brasileiro é, porvocação, platéia; O brasileiro não está preparado para o ser “o maior do mundo” emcoisa nenhuma; O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem.Ou então este trecho, primor de interpretação da alma subdesenvolvida: Ponham uminglês na Lua. Na árida paisagem lunar, ele continuará mais inglês do que nunca.Sua primeira providência será anexar a própria Lua ao Império Britânico. Mas osubdesenvolvido faz um imperialismo às avessas. Vai ao estrangeiro e, em vez deconquistá-lo, ele se entrega e se declara colônia.

O mais interessante é que ele conseguiu ser o profeta do óbvio ululante commeios específicos de linguagem, que no português estavam em estado de latência, àespera de alguém com o tino adequado para a tarefa de transformar o que era merapossibilidade em ato. Assim, em sentido totalmente diverso do anterior, já no âmbito dacultura no sentido restrito da palavra, Nelson realizou um sonho nacional muito antigo:escrever em brasileiro, escrever como quem bate papo. José de Alencar já havia procla-mado a necessidade de o Brasil estabelecer uma linguagem autônoma sem medo de ferir

4 A este propósito, vale a pena conferir os livros de Oliviero Toscani, o fotógrafo da Benneton quetanto incomoda seus pares de propaganda: A publicidade é um cadáver que sorri e Tchau, mãe.

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a norma portuguesa. Décadas depois, os modernistas gritaram aos ventos a mesmanecessidade, no mesmo sentido. Mário de Andrade em especial, mas assim como ele,todos os engajados na renovação estética do princípio do século, despendeu grandeesforço no sentido de fazer a língua escrita se dobrar à evidência de que o português noBrasil tem direito à diferença. Mas o grito de liberdade lançado então ficou esperandopela chegada de Nelson.

Sim, antes dele os romancistas dos anos 30 e 40 fizeram a sua parte, descrevendoo país do nordeste e do sul e dando voz à história dessas regiões, e houve o fenômenoGuimarães Rosa, que inventou uma linguagem literária para ecoar a linguagem do ser-tão. A imprensa do Rio, muito mais que a de São Paulo, foi tentando abrir as comportasda língua escrita para acolher a linguagem das ruas. Mas Nelson é que fez a mágica.Vimos, antes, que sua linguagem traz o suor da vida real, e todos sabemos que seusdiálogos conseguem dar a impressão de vida que faltava ao nosso teatro. Com ele é quea linguagem literária se abrasileirou definitivamente. Não foi pouco o serviço prestadoà inteligência. E restaria uma especulação, que fica aqui tão-somente indicada: a corre-lação entre ter flagrado o modo de ser do Brasil naquele momento e ter inventado alinguagem brasileira escrita moderna.

NELSON RODRIGUES E A LINHAGEM DAS MEMÓRIASEm momento de sabedoria, aliás típico de sua inteligência, Antonio Candido

recomendou a Oswald de Andrade que escrevesse suas memórias, argumentando queuma literatura precisa de memórias para ter consistência5 . Sim, nada mais verdadeiro.As memórias, as autobiografias, as biografias, vão compondo aquele fundo mais sutilda vida de uma língua, fundo a partir do qual podem emergir as grandes obras. O queAntonio Candido não disse, porque não vinha ao caso talvez, é que há muita memóriana literatura brasileira, só que disfarçada, com máscara.

Mas não avancemos tanto e tão rapidamente. Neste item chegaremos a pleitearuma vaga para as Confissões de Nelson Rodrigues na sucessão de tais Memórias. Masmais adiante. Por ora será necessário formular a intenção geral: localizar a obra ensaísticade Nelson num certo panorama da literatura brasileira. Por decorrência trivial, é claroque a primeira família de seu ensaio é a dos ensaístas, mas esta, como sabemos, é famíliapequena, quase nula. Se alargarmos suas fronteiras de modo a incluir nela os cronistas,então bem, de fato temos vários parceiros. Mas este raciocínio de enquadramentointeressa pouco: quase basta dizer, sem muita pretensão e mesmo com certo enfado,que Nelson é o melhor cronista que o Brasil tem ou teve, isto é, o melhor ensaísta dopaís. Os motivos de tal superioridade, descritos antes, parecem-me suficientes para

5 Um homem sem profissão, p. 21.

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delinear a posição relativa de seu texto e dos de outros cronistas, mesmo os maissignificativos.

Por outro lado, vimos que Nelson formulou uma verdadeira teoria do Brasil. Seaceita essa afirmação, somos levados a incluir seu ensaio também noutra família, a dosintérpretes do país e da vida nacional. E de fato sua obra pode ser cotejada com a dosmaiorais neste campo, começando talvez pelo Machado cronista e comentador, denervo ensaístico (mas ele o teve mais na ficção do que na crônica) ou por Oswald deAndrade e Mário também de Andrade, seguindo por Gilberto Freyre e Sérgio Buarquede Hollanda e chegando aos contemporâneos, cuja nominata, para meu gosto, apresen-ta Roberto Schwarz, Paulo Francis, Millôr Fernandes e Ivan Lessa, entre poucos outros.Claro, estamos tratando de modalidades desiguais de interpretação, do cronístico aoacadêmico, do trivial ao refinado, mas tomada a idéia de interpretação como esforço decompreensão da cultura, todos eles podem ser colocados no mesmo grupo, e o grupopode ser realçado em relação à planície. E, nele, Nelson tem destaque, a meu juízo: suasidéias acerca do país, da cultura, da língua, da vida mental, da vida espiritual, e maisainda, a linguagem que inventou para expressar suas idéias, tudo isso conforma paraele uma posição de proa.6

Ainda outro caso poderia ser considerado no desenho da família doscomentadores. Caso mais raro, de muito mais difícil demonstração. Refiro-me a Basílioda Gama em O Uraguai (1769). O que nele me faz pensar em aproximá-lo de tal linhagemé uma nota ao poema. Sim, uma nota: como se sabe, a mencionada obra de Basílioapresenta a total singularidade de vir ao mundo como poema de pretensão épica acom-panhado de notas do próprio autor. Em uma delas, ao verso 156 do Canto Primeiro (155:Que do premeditado oculto Império/ 156: Vagamente na Europa se falava), diz o autor,a propósito do advérbio vagamente: “Os Jesuítas têm tido a animosidade de negar portoda Europa o que se acabou de passar na América nos nossos dias à vista de doisExércitos. O autor o experimentou em Roma, onde muitas pessoas o buscavam só parasaberem com fundamento as notícias do Uraguay; testemunhando um estranho con-tentamento de encontrarem um Americano, que os podia informar miudamente de tudoo sucedido. A admiração, que causava a estranheza de fatos entre nós tão conheci-dos, fez nascer as primeiras idéias deste Poema” (grifo meu).

6 Na linha do ensaio de interpretação explícita, muitos autores poderiam ser apontados. Hámesmo uma antologia, organizada por José Osório de Oliveira (Ensaístas brasileiros), que contacom Vicente Licínio Cardoso, Alberto Torres, Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Euclides daCunha, Oliveira Vianna, Paulo Prado, Sérgio Buarque, Mário de Andrade, João Ribeiro, JoséVeríssimo, Tristão de Athayde e Graça Aranha. E nem falamos claramente de Oswald de Andrade,numa ponta, ou de Matias Ayres, noutra.

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Trocando em miúdos, o que Basílio está fazendo é uma perfeita irresponsabilidadepara com a tradição clássica, que aceitava qualquer coisa desde que ela coubesse noscânones consagrados pela tradição, mas certamente expulsaria da sala de visitas umaintenção realista, verista, como a que Basílio aqui expõe. E o autor, paradoxalmente, dizna nota que escreveu um poema épico para contar uma história verdadeira, ou melhor,escreveu um poema épico para desmascarar certas versões que corriam na Europaacerca de episódios da história americana. Especulação: se Basílio vivesse na Inglaterrado mesmo período, talvez escreveria para os jornais (ensaio?), com os mesmos fins –elucidar as coisas, estabelecer a verdade. Estando no Brasil, que nem país era, e subor-dinado à circunstância de não ter à disposição sequer uma linguagem adequada, preci-sou torcer completamente a convenção neoclássica. Em suma, só não foi historiador ouensaísta ou comentador porque no mundo em que viveu não cabia.

Agora, enfim, é a hora de retomar o primeiro parágrafo desta parte. Ficou ditoque Nelson é herdeiro legítimo de uma linhagem nobre, quem sabe a mais nobre detodas as linhagens da literatura brasileira: a linhagem das Memórias, que AntonioCandido não chegou a mencionar em seu avisado conselho a Oswald de Andrade. Quelinhagem é esta? Parágrafo para ela.

Desde algum tempo, tenho comentado, em aulas e palestras, a surpreendentesucessão de narrativas ficcionais de feição memorialística que a literatura brasileiraapresenta. Surpreende também que tenha sido pouco comentada, pouco analisada, seé que algum dia o foi – sinceramente, desconheço trabalho sistemático sobre o assuntoe, mesmo, qualquer trabalho assistemático sobre ele. Para vê-lo de corpo inteiro, serápreciso uma preliminar: a certeza de que o romance brasileiro tem sido, foi, desde aIndependência até talvez vinte anos atrás, o local por excelência da reflexão sobre oBrasil. Não sobre o Brasil, genericamente, mas sobre alguns dos mais persistentesfantasmas do país – em especial o tema da identidade nacional. Diria Nelson: desde 40dias antes do Nada, já estava o romance brasileiro ocupado com a tarefa de dizer o queera e o que significava ser brasileiro. Variaram as respostas, variou a forma das pergun-tas, mas a questão de fundo foi sempre a mesma.

Aceita a preliminar, podemos ir aos fatos. A linhagem das Memórias tem umagaleria de romances explicitamente concebidos como memórias: Memórias de um sar-gento de milícias (1853); Memórias póstumas de Brás Cubas (1881); O Ateneu (1888);Dom Casmurro (1900); Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908); Recordações doescrivão Isaías Caminha (1909); Memórias sentimentais de João Miramar (1923); SãoBernardo (1934); Grande sertão: veredas (1956) e, bem mais recentemente, Lavouraarcaica, de Raduan Nassar (1975), Armadilha para Lamartine (1976) , Que pensamvocês que ele fez? (1994), de Carlos Sussekind, e Quase-memória, de Carlos HeitorCony (1995).

Estes, os participantes imediatos da linhagem. Por quê “imediatos”? Porque sãoconcebidos na forma de relato de memórias: um narrador dá voz à vida de um persona-

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gem, e quase sempre as duas posições se confundem num mesmo indivíduo, com a voznarrativa atuando em primeira pessoa. Há outros, porém, que, de maneira um poucocifrada, também se filiam a ela, requerendo por isso, a sua inclusão, alguma notaexplicativa. É o caso de Lucíola, de José de Alencar (1862), cujo arranjo narrativoguarda alguma proximidade com a forma da memória: um narrador se apresenta, naprimeira página da ficção, para dizer que conheceu uma certa história, que talvez nãoseja adequada para a leitura de moças, mas que sua leitora, já uma senhora, saberáavaliar a experiência que ali vai ser contada com acerto. Não chega a ser uma memória,claramente, mas não deixa de ter pontos de contato: uma experiência vai ser contada, eo fiador da veracidade da experiência é uma personagem que se apresenta em primeirapessoa. Pode ser o caso também de Macunaíma , de Mário de Andrade (1928). O fluxoda história não é uma narrativa de tipo memorialístico, mas ao final, na última página dotexto, ficamos sabendo que a voz que nos contou tudo o que lemos ficou sabendodaquilo pelo testemunho de um papagaio, testemunha de parte da história. Ou seja,mesmo com o caráter figurado patente, com esse papagaio fazendo o papel de fiador daveracidade dos fatos, temos aí um traço da narrativa de memórias, o relato do transcur-so de uma história a partir da experiência vivida.

Será também o caso de outros romances brasileiros. Tomemos O amanuenseBelmiro (1937), de feição memorialística explícita. Vejamos outro caso: o de Erico Verissimoem sua mais consagrada obra, O tempo e o vento (editado entre 1949 e 1961). Na imensasaga das famílias Terra e Cambará, lemos um painel histórico mais aparentado da lingua-gem e da estrutura da historiografia que da linguagem da memória. No entanto, ao finaldo último volume, com certa surpresa, ficamos conhecendo que a história toda foiescrita (ou está sendo escrita) por um descendente daqueles personagens gloriosos.Ou o caso de José Cândido de Carvalho, em O coronel e o lobisomem (1964), tambémnarrado como memória. Ou o caso de Clarice Lispector, por exemplo em A paixão segun-do G. H. (também de 1964), caso explícito de narrativa memorialística. Forçando umpouco o limite, poderíamos também incluir aí a belíssima novela O sargento Getúlio, deJoão Ubaldo Ribeiro (1971). O que nele lemos é o fluxo de consciência do personagemcentral, que vai vivendo e pensando as coisas num presente perene – e este dado, otempo, seria bom motivo para afastá-lo da linhagem das memórias, de vez que essas sópodem, por definição, ser escritas a posteriori. Mas tomando o caso da narrativa deJoão Ubaldo mais abrangentemente, de forma a considerar mais o personagem central esua relação com o mundo e com o passado e menos o tratamento estilístico do tempo(que no entanto rende um resultado ficcional nada desprezível), veremos que a atitudedo personagem é, em grande parte, a mesma que um memorialista tem em relação comsua vida. Enfim, e forçando ainda mais os limites, poderíamos talvez incluir aí duasnovelas recentes, Pequod, de Vitor Ramil (1995), e Assim na terra , de Luiz Sérgio Metz(1995), ambas editadas no Rio Grande do Sul. Na primeira, a voz narrativa está no ângulode visão de um indivíduo que recupera sua formação, em primeira pessoa, especialmen-

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te naquilo que tem a ver com a figura de seu pai; na segunda, uma elegia à imagem míticado Sul que os gaúchos acalentam desde sempre, temos um personagem que passa porexperiências e anota coisas, mas vemos desde logo que ele, tendo sobrevivido ao queconta, está numa posição temporal posterior aos fatos. E procede como que a umlevantamento de experiências, suas e de outro personagem, Gomercindo. Em ambos oscasos, há algo de memória nos procedimentos.

A rigor, a linhagem das Memórias na ficção brasileira vem de Manuel Antôniode Almeida até Guimarães Rosa, não mais. Com Grande sertão: veredas a busca daidentidade nacional esgotou todo um ciclo, iniciado no Romantismo. Aquelas obses-sões brasileiras, de país colonizado e singularmente muito maior que sua ex-metrópole(e país de tradição colonial que, no entanto, se apresentou ao mundo como relevante),de buscar o ponto-zero da brasilidade – lembremos o debate sobre quando começa aliteratura brasileira, se em Caminha pelo critério meramente cronológico, se em BentoTeixeira pelo critério de primazia cronológica na série de textos deliberadamente ficcionaisou artísticos, se em Gregório de Matos pelo critério de primazia em qualidade estética,se com os mineiros do século XVIII pelo critério sociológico de formação de circuitoliterário, se, ainda no Romantismo, pelo critério político da Independência –, aquelasobsessões ficam irrelevantes depois da obra de Guimarães Rosa. Por quê? Porque emsua obra-prima está figurada toda uma luta bem sucedida pela busca de identidade,especificamente no personagem Riobaldo, que durante bom tempo não sabe de ondeveio, não sabe quem é seu pai, e que depois se pergunta também pela origem primeira domal. E essa luta, em Grande sertão: veredas, transcende em direção ao infinito aslimitações auto-impostas pela ficção brasileira: a cara do país, para Guimarães Rosa, nãoprecisa ser buscada apenas no território brasileiro nem apenas a partir de 1500. Somosherdeiros da história européia – e da história africana, falando nisso.7 Quem nos diz, emmetáfora, que nós encontramos o ponto onde as coisas começam é Riobaldo, estaespécie de Brasil Sertanejo metonímico, que descobriu ser filho de Selorico Mendes econcluiu que não existe o Diabo – o que há é o homem humano, travessia.

Então, fica assim: de Memórias de um sargento de milícias a Grande sertão:veredas, passando por Machado, Oswald e Graciliano e chegando a Raduan Nassar,Carlos Sussekind e Carlos Heitor Cony, com o acréscimo daqueles outros autores, ficaconfigurada a alta linhagem das Memórias na história do romance brasileiro. Bem, e o

7 No artigo A pré-história saúda e pede passagem , procurei demonstrar com mais detalhe estahipótese, que tem por base as observações de Richard Morse sobre as (no plural) pré-histórias daAmérica (em O espelho de Próspero). Aproveitando a nota: as novelas de Vitor Ramil e de LuizSérgio Metz, acima mencionadas, representam para o Rio Grande do Sul um esforço de busca pelaidentidade regional análogo ao desenvolvido pela Linhagem das Memórias no Brasil. O fato deisso estar ocorrendo ainda hoje certamente pode ser compreendido como uma peculiaridadegaúcha: se é verdade que desde sempre, desde a Guerra dos Farrapos, andamos às voltas com o

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que isso tem a ver com nosso Nelson e seus ensaios, suas confissões, suas memórias?Ainda não chegou a hora de responder; há outras perguntas por formular. Que sentidose pode entrever na existência de tal linhagem? Que sentido se pode atribuir a ela? Porque um país como o nosso, de maneira singular no cenário da literatura deste século edo passado (repetindo Nelson: alguém dirá que estou generalizando, e eu responderei:– exato, estou generalizando), isto é, de maneira singular na modernidade em sentidoestrito, houve por bem, e sem qualquer combinação prévia, produzir tantos e tão signi-ficativos romances segundo uma mesma estratégia narrativa, a das memórias? Por quê?O que explica que os melhores romancistas do Brasil (Machado, Graciliano, GuimarãesRosa) tenham apelado para uma forma narrativa cuja origem não é tipicamente romanes-ca, embora haja casos similares, esparsos, em outras literaturas?

Se respondermos adequadamente estas questões, entenderemos a relação doensaio de Nelson com tal linhagem (espero). Evidentemente haverá mais de uma hipó-tese explicativa, mas uma em particular cabe à perfeição no curso deste argumento.Amigos, – diz Nelson Rodrigues em certo texto8 – eu gosto muito de falar de mimmesmo. Sempre que conto uma experiência pessoal, sinto que nasce, entre mim e oleitor, toda uma identificação profunda. É como se, através do meu texto, trocássemosum imaterial aperto de mão. O narrador de um romance de feição memorialística repeteeste gesto e sente em suas entranhas a mesma hipótese de encontro, de identificação.A voz que fala num romance da linhagem das memórias, na literatura brasileira, faz amesma coisa: abre seu coração para o leitor, isto é, torna-se, com esse gesto, a fala de umser humano digno de atenção, como aquele que confessa. Quem confessa, aliás, vimoscom María Zambrano, examina-se e se torna, por isso, digno de ultrapassar as condi-ções em que se encontra. Então, a primeira explicação está aqui: a voz do romancememorialístico brasileiro postula um eu enunciador que merece ser ouvido.

Por outra parte, esse narrador de memórias, estando num momento de supostaverdade, de suposto desvelamento, de revelação do sentido da vida – lembremos Ben-jamin e a proximidade da morte como condição para a consecução de verdadeira narra-ção e, dizemos nós, da memória – deseja ardentemente um leitor, da mesma forma que omero queixoso está esperançoso de um ouvido a que cheguem seus lamentos. Dizemque o poeta, ou romancista – diz ainda Nelson, em outro texto9 – escreve para se

tema, que já rendeu magnificências e baixarias, não é menos verdade que nos últimos dez ouquinze anos o tema reaflorou com força, em parte pela consciência da perda de importância do RioGrande no cenário nacional – perda já histórica, mas manifesta apenas, creio, ao final da ditadurade 64 –, e em parte pela relativa novidade da integração regional, Mercosul e quejandos, que nosfaz ser, involuntariamente, a face mais imediata de contato com os antigos inimigos, e esta posiçãotem requerido um certo esforço de auto-exame.8 “Os que jamais foram meninos”, de 3 de janeiro de 1963. In O remador de Ben-hur, pp. 35-6.9 “O Brasil já tem o seu Dante”, de 3 de fevereiro de 1969. In op. cit., pp. 79-82.

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comunicar. Não é bem assim. Ou por outra: – ele quer entrar em relação com um leitorideal, utópico, mágico. Sim, um leitor que não existe, nunca existiu. O romance dalinhagem das memórias, no Brasil, ao perfazer seu gesto confessional, memorialístico,de revelação de um passado dentro do qual se encontrarão motivos de reflexão sobre avida, está postulando um leitor, este leitor utópico e total de Nelson. E aqui temos osegundo fator.

Temos, então, uma dupla postulação, feita nos termos da ficção narrativa: de umlado, a de um eu, o memorialista; de outro, a de um tu, o leitor. A fiança dessa relação éa matéria da memória que vai sendo destilada ao longo do texto. Ora, isso ainda nãoresponde à nossa questão em busca do sentido disso para o Brasil. Mas encaminhabem. Perguntemos mais uma vez: e por que terá parecido necessário ao grande, ao maiorromance brasileiro postular um eu e um tu, que se relacionariam por dentro de umalinguagem própria das memórias?

Resposta melancólica de tão óbvia: porque pareceu aos escritores que nãohavia nem um eu digno de falar e de ser ouvido nem um tu disponível para a audição.Não estavam dadas as posições nem do narrador (do escritor, em sentido amplo) nemdo leitor. O eu não havia porque não havia identidade: não sabíamos de onde, desdeonde estávamos falando, se era da colônia, se era do país do futuro, se era do paísliberal, se era do país dos escravos, se era do Brasil litorâneo, se do Brasil do sertãoprofundo, se era para contar uma dor de amor ou uma paixão de posse. Mais ainda:quem nos garantiria que uma voz surgida daqui, do meio desse mosaico insano, teria oque dizer? Por outro lado, não havia um tu, evidente e prévio. O leitor, também ele foipreciso inventar. Foi necessário postular sua existência. (No comecinho do século,Simões Lopes Neto pôs o ovo em pé: trouxe o “leitor”, isto é, o ouvinte das histórias,para dentro do texto, alcançando realizar o sonho de conferir consistência à voz querememora.) E para garantir um pouco de crédito para a voz que se apresentaria, foiimprescindível inventar uma urgência: a voz de alguém que está sentado sobre a expe-riência (Riobaldo), quem sabe, mesmo, alguém já com muitos fracassos nas costas(Bento Santiago, Paulo Honório), quem sabe, mesmo, alguém já velho e à beira da morte.Inventamos as memórias. No detalhe: inventamos uma linguagem para dizer as memóri-as que forjamos10 .

Não tínhamos memória? E acaso nós não passamos oitenta por cento de nossotempo dizendo que o Brasil não tem memória? Pois aí está: temos, em profusão. Com asingularidade de termos inventado cada uma delas, e isso para que elas não apenasfossem palatáveis, mas para dizer, com a ficção, a verdade profunda, a verdade que não

10 Idealmente, o leitor agora deveria parar tudo e ler a tese de Paulo Coimbra Guedes sobre asestratégias que o povo brasileiro foi inventando para ter linguagem.

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confessamos nem ao médium, depois de mortos, a verdade que só dizemos num terrenobaldio, com a presença de uma muda e solidária cabra vadia, à meia-noite, na entrevistaimaginária. Precisamos fingir para ser verdadeiros: para contar como funcionava a pati-faria da classe dominante do Império, demos a palavra para o pequeno canalha BrásCubas; para dizer como era a mente de um arrivista inescrupuloso, fizemos Paulo Honóriorevelar-se; para enunciar a morte do sertão heróico já em vias de desaparecer pelachegada dos doutores do governo, do Estado, ouvimos a voz de Riobaldo11 .

Que Nelson esteja na linha de sucessão de tal herança, parece-me a esta alturaevidente. Suas Confissões são de fato memórias, no sentido forte que vimos antes:misto de confissão à Zambrano e de narração à Benjamin, na forma do ensaio. Fazendotexto de jornal, não se pejou nunca de fabular a vida, inventando o que fosse necessáriopara dizer a verdade. À diferença da linhagem romanesca, porém, sua voz era a própriavoz da pessoa Nelson Rodrigues, indivíduo com residência certa e emprego fixo. (Pen-sando bem: um Brás Cubas a gente não encontra assim, de peito aberto, proclamandoao mundo sua calhordice. Por quê? Nem tampouco um Paulo Honório. Faltaria coragempara a confissão, para o ensaio. Quem sabe foi justamente por isso que Machado eGraciliano resolveram fazer com eles o mesmo que Nelson fez com seus entrevistadosimaginários: botá-los a revelar as verdades profundas que eles não confessariam ja-mais.) Assim, a obra ensaística de Nelson pode ser lida, para além da maravilha de seutexto em si e para além da força confessional de suas memórias, como um comentário deordem alta ao conjunto da cultura brasileira, em particular à sua eterna sina de buscar aidentidade. Se Nelson fosse Riobaldo, mas um Riobaldo peculiar, de um impudor jucundoe mercenário, diria: – “Diabo nada. O que existe é o homem humano: eu, ou por outra: –o Brasil, a cultura brasileira, a língua brasileira. Diabo nada: – o Brasil. O que está aquié o Brasil”.

NELSON RODRIGUES, ESCRITOR REPRESENTATIVO DE NOSSO TEMPOEstá na hora de encerrar este trabalho, que já vai longo. Aqui resta apenas

marcar explicitamente a profunda leitura que Nelson fez de nossa circunstância históri-ca – e, ao dizer “nossa”, estamos dizendo o século XX, na datação de Eric Hobsbawn:um século curto, que iniciou em 1914, quando Nelson engatinhava, e a I Guerra sedeflagrava, pondo fim ao sonho que foi a Belle Époque como culminação da civilizaçãoocidental orientada pelo Império Britânico, e terminou em 1989, quando Nelson já haviamorrido e caía o Muro de Berlim, fato sobrálico a demonstrar o acerto da intuição docronista, encerrando o período de confronto entre Capitalismo e Comunismo, nos ter-

11 Evoquemos ainda uma vez a María Zambrano: “E quando o romance chegou a ser tempo davida – Proust, Joyce – é que se trata em realidade de uma confissão”. Op. cit., p. 27.

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mos em que aconteceu e segundo a polaridade entre Estados Unidos e União Soviética.O mundo, após isso, começa a ser outro, e para ele, ainda não há nenhum Nelson à vista.Por enquanto, o máximo que dele sabemos é seu apelido colegial, Globalização. Masquem sabe o rumo desta nau errante, se é tão grande o espaço disponível no planeta eno cosmos?

Foi este tempo a matéria prima do ensaísta. Pensou, matutou, palpitou, sofreu,viveu, e conseguiu dar uma forma elevada, literária, à sua experiência, que é a nossa (a“nossa”, explicando de novo, quer dizer a dos que atingiram a maioridade mental antesde 1989; que sabemos do funcionamento da cabeça da geração que só agora estáentendendo a dureza das coisas ou sentada diante da tela do computador, na boahipótese, ou sentada e desolada diante da falta de escola e de emprego, na ruim?).Nelson mergulhou em si e trouxe lá de dentro de sua experiência individual os traçosdoentios que todos compartilhamos (“todos”, quero dizer, nós, isto é, bem, já nosentendemos).

Há uma outra maneira de traçar um quadro de nosso tempo, porém. Quandocomentamos o humor de Nelson, deixamos propositadamente de fora um raciocínioque, porém, é feito por quase todos os teóricos do humor: o diagnóstico do tempo emque surge o humorista, flor rara da inteligência. Alcides Maya, na obra já citada12 ,recupera o argumento de Paul Stapfer quanto ao tempo propício ao humorista: sóaparece o verdadeiro humor em épocas de ceticismo. Assim foi na decadência da Anti-güidade, assim foi na decadência da hegemonia da Igreja Católica, ao final da IdadeMédia: e aí estão os exemplos de Petrônio e de Cervantes. Maya explica o fenômeno detal concomitância: “Flor artificial da civilização prestes a corromper-se, forma de ceticis-mo, não pode viçar em épocas de crença, porque então o homem possui o perfeitoequilíbrio, e o humor é o derribamento frenético de todas as relações e de todas asproporções”13 . Como Maya está interessado em demonstrar o humor em Machado,avança seu argumento para a época adequada e percebe a “idealização da dúvida”como o traço marcante da arte que veio na seqüência do “espírito revolucionário triun-fante” da burguesia francesa; isso, a idealização, seria um indício da decadência, por-tanto indício do elemento mesmo do humor. Daí Machado humorista.

Mas bem. O que importa reter é a idéia de que humor só aparece na maré vazante.(E Alcides Maya, positivista comteano confesso, arrisca até um prognóstico: “O hu-mor, a desaparecer, só desaparecerá na futura harmonia moral da espécie”, isto é, quan-do da chegada à Terra da civilização positiva tal como sonhada por Comte, algo como arealização da utopia, dos sonhos de perfeição de todos os gênios. E arrisca uma metá-

12 Machado de Assis – algumas notas sobre o humour.13 Op. cit., p. 23.

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fora literária: “O Super-Homem, de Nietszche, não conheceria o humor”. Maya nãodisse, mas nós podemos dizer: sim, na ditadura não há humor, não há sequer o cômico,quando muito há o cômico a favor do Estado.)

Sud Mennucci, em seu estudo14 , apresenta outra hipótese, em alguma medidaconvergente, mas sob outra feição. Diz ele que o cenário da literatura, em qualquer partedo universo, apresenta três estágios sucessivos, três fases (que podem acontecer denovo, em ciclos), conforme o que ele considera o progresso do espírito humano e oaumento da capacidade intelectual dos povos (como se vê, trata-se de uma perspectivateórica inocente de marxismo e de positivismo ou refratária a eles). Seriam elas: a fasedoutrinária, que se dá no início da cultura de um país e gera escritores moralistas; a faseimpassível, que acontece no processo de chegada à maturidade do país ou do povo,quando se percebe já uma despreocupação com a moral e um trato desinteressado coma arte (algo como a “arte pela arte”); e a fase zombeteira, na maturidade plena do país,quando então começa a surgir a caricatura, a comicidade, o humor (neste caso estariamLuciano, Swift, Cervantes, Anatole France e Machado de Assis). Mennucci supõe quequalquer das três fases pode gerar bons artistas, mas só a terceira pode engendrarhumor. Porque os doutrinários, da primeira etapa, querem salvar a moral, e os impassí-veis são neutros; só na terceira etapa é que se criam as condições para o humorista, queri da aflição do doutrinário e da afetação dos impassíveis.

Não deixa de ser uma hipótese interessante, convenhamos. Há aqui uma idéianão enunciada claramente de que o humorista se estabelece contra o fundo da literatu-ra, contra o patrimônio acumulado na literatura, mas sempre necessitando dela comofundamento de sua própria existência. Se tomarmos o caso de Nelson, veremos que suaobra passa no teste de Mennucci: enquanto mera crônica, Nelson pode ser tomadocomo uma terceira fase da crônica no país, depois do início no século XIX e da maturi-dade alcançada na virada do século (Machado, João do Rio); sua crônica é contempo-rânea da de Rubem Braga, de Paulo Mendes Campos e de outros. Por outro lado, ohumor de Nelson tem como cenário de fundo, como vimos, toda a literatura, se conside-rarmos a hipótese antes aventada de que seu ensaio é um comentário elevado aoconjunto da cultura brasileira, a qual teve (tem) no romance da linhagem das Memóriasuma de suas mais altas realizações. Seja como for, o importante a reter é que, segundo ocritério de Sud Mennucci, Nelson está no jogo: certamente seu humor acontece numperíodo de maturidade da literatura brasileira, quando já se pode rir do moralismo dosromânticos e da fatuidade dos impassíveis (parnasianos, por exemplo).

Mas é em Vianna Moog que temos a leitura mais pertinente para a questãode conectar humor e época. Também ele, seguindo Stapfer e Alcides Maya, considera

14 Húmor, pp. 9 ss. e 39.

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que humor não pode viçar em épocas de “unidade espiritual”. De outra parte, humor sóacontece se o escritor demonstrar grande perspicácia e grande esforço no diagnósticode seu tempo. Por fim, humor requer uma grande saturação de cultura, tanto na línguaem que vive o autor, quanto no indivíduo que escreve15 . Moog se perde quando intentademonstrar que humor não é prerrogativa exclusiva dos anglo-saxões, tema que paraele é ainda relevante: diz que o humor só acontece na véspera de grandes catástrofes,em períodos de prenúncio de grandes mudanças – menos na Inglaterra, que temhumoristas, mas não experimenta grandes reviravoltas. Ou seja: a tese de Vianna Moog,apesar de suas intenções, refere-se ao humor latino. Daí por que os três “heróis dadecadência” que analisa são Petrônio, Cervantes e Machado de Assis.

Em resumo, a equação que o autor traça para circunstanciar o humor desses trêsautores pode ser assim apresentada: Petrônio escreve na decadência do Império Roma-no, quando já se instalam as primeiras certezas geradas pelo individualismo cristão;Cervantes compõe sua obra-prima na decadência da Idade Média (que na Espanhadurou mais que na Europa do norte, está claro), já sob a inspiração do antropocentrismoformulado pelo Renascimento; e Machado escreve na decadência do que ele chama deSistema Científico (em outras palavras, Moog está-se referindo à crise das ciênciasnaturais e sociais, aberta na virada do século por, entre outros, Pasteur, citado porVianna Moog, mais Freud e Einstein), sob a tutela mental do individualismo moderno. Aseguir tal raciocínio, podemos nós apresentar um quarto termo nesta equação: NelsonRodrigues escreve na decadência (mal e mal entrevista nos anos 60...) do Comunismoou, se quisermos, ampliando o raio de atuação da tese, conforme expusemos antes, nadecadência da Sociedade de Massas em sua feição século XX, na decadência da gran-de Guerra Fria que foi este século que vai acabando, sob a inspiração também de umindividualismo, talvez de tipo novo, em seu caso já informado de Freud e, portanto, umindividualismo diverso do anterior, machadiano.

A partir de qualquer das três hipóteses, podemos pensar em Nelson como umescritor representativo de nosso tempo (“nosso”...). Seu ensaio é uma voz individualque se ergue contra o esmagamento do indivíduo, contra o apequenamento do serhumano, numa época em que tudo conspira para transformar os indivíduos em merosconsumidores, destituídos de humanidade e de transcendência. A reação de seu textoà consumação da massificação que conhecemos se torna mais visível ainda, em con-traste com a crônica sua contemporânea – em boa parte das vezes, autocomplacente,autocomiserativa, bem ao contrário do ensaio de Nelson, que purga suas mazelas maisdementes em praça pública, oferecendo-se em sacrifício (e em espetáculo voyeur) paraleitores que aceitem o desafio de nadar contra a maré montante.

15 Heróis da decadência, pp. 17-9. Outras passagens aqui mencionadas estão em todo o capítulointrodutório.

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RECORDAR, REPETIR, ELABORAR

O mesmo confronto entre um eu e a modernidade do século gera outros tipos dereação. Há quem fuja para trás, para paraísos longínquos, para felicidades infantis – é ocaso do grosso da produção cronística e de muita poesia lírica, que se dão por satisfei-tas em lamber as próprias feridas e em renegar o presente como degradado –; há quemfuja para a frente, para utopias mais e menos desvairadas – é o caso de todas asvanguardas, que asseguram ter o futuro no bolso e se julgam com poder suficiente paraavaliar o presente segundo os critérios do mundo que virá – e há os raros, raríssimoscasos daqueles que olham para seu tempo como sua matéria – é o caso do humorista edo ensaísta Nelson Rodrigues, como antes havia sido o caso de Machado de Assis. Autopia do ensaio, que é simultaneamente o seu paraíso artificial e os seus oito-anosextraviados, é o presente; sua alucinação é suportar e compreender o dia-a-dia, e seudelírio é a experiência com coisas reais, que se tornam repertório.

Por isso, por mergulhar no presente como quem o respira para viver, o ensaístasabe espessar o tempo, diferentemente do gesto pós-modernista que se pretendeensaístico. Este, arremedando certas praxes do ensaio genuíno, também se oferece comsuas memórias, suas mazelas, mas não se apresenta inteiro. Faz de conta que é umdegradado, um sofredor, um “outsider”, mas troca de meia de meia em meia hora16 ;insinua praticar uma linguagem arejada mas não solta a mão das Referências, das Alu-sões, da Intertextualidade, das Citações; mais que tudo, considera o tempo como homo-gêneo, ou pior ainda, chapa todos os tempos no mesmo presente eterno que o mercadoimpõe. Ou talvez pior: o pós-modernista faz da desesperança uma mercadoria, e a vendeno mercado, queixa-se porque não sabe fazer a confissão, que requer auto-exame radi-cal. O verdadeiro ensaísta, não mesmo: para ele, cada tempo é um, o passado existe e épatrimônio, o presente é matéria e requer presteza, o futuro pode até reservar a reden-ção; o ensaísta, se desesperado, aproveita a dor para aprofundar a sua humanidade,que é também a do leitor. E não se queixa: confessa-se.

De certa maneira, o ensaio de Nelson Rodrigues, como também o ensaio emgeral, pode ser compreendido como um canto de cisne: majestoso, altivo e desespera-do. Se é verdade que o humor e o ensaio aparecem apenas em algumas épocas, detransição – ou se, quase ao contrário, o humor e o ensaio detectam, no meio da poeirado tempo, os indícios da virada que está por vir e, por isso, forjam sua próprias condi-ções de aparecimento –, isso parece menor, como tentativa de explicação. O mais impor-tante mesmo é reconhecer, diante da obra maiúscula de Nelson, um patamar novo doensaio no Brasil (e fora daqui, quando ele for traduzido), trabalho de um escritor deabsoluto primeiro plano nas letras de língua portuguesa, ao lado dos maiores. Sim, seuensaio, lido hoje, parece mesmo um depoimento de outra época: olhamos para as refe-

16 O trocadilho é de Glauco Mattoso.

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rências do tempo em que escrevia e notamos uma quase ingenuidade em muitas coisas,mas sua permanência está assegurada por sua agudeza, por sua densidade, por suacoragem, por sua maestria no trato com a linguagem.

BIBLIOGRAFIAI - De Nelson RodriguesCOLEÇÃO das obras de Nelson Rodrigues, São Paulo: Cia.das Letras

v.3 O óbvio ululante, primeiras confissões , crônicas, 1993.v.6 A menina sem estrela, memórias, crônicas, 1993.v.9 A cabra vadia, novas confissões , crônicas, 1995.v.10 O reacionário, novas confissões , crônicas, 1995.v.11 O remador de Ben-Hur, crônicas, 1996.

II - Sobre Nelson RodriguesFERREIRA, Aníbal Damasceno. O óbvio e ululante humorismo de Nelson Rodrigues. Suplemen-

to Literário do Minas Gerais. Belo Horizonte, 5/4/86, pp. 6-7.

III - Sobre ensaio e crônica1. LivrosOLIVEIRA, José Osório. Ensaístas brasileiros. Lisboa: Bertrand, s/d.ZAMBRANO, María. Confesión: género literario. Madrid: Ediciones Siruela, 1995.

2. ArtigosCALIGARIS, Contardo. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Ática, 1996.FISCHER, Luís Augusto. A pré-história saúda e pede passagem. Nonada, Porto Alegre, ano. 1,

nº 1, pp. 33-46, 1997.KURZ, Robert. O colapso da modernização. Trad. São Paulo: Cia. das Letras._____. Os últimos combates. Vários tradutores. Petrópolis: Vozes, 1997.SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978.

IV - Sobre humorMAYA, Alcides. Machado de Assis: algumas notas sobre o humour. Rio de Janeiro: Livraria

Editora Jacintho Silva, 1912.MENUCCI, Sud. Húmor. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1923.MOOG, Vianna. Heróis da decadência: Petrônio, Cervantes, Machado de Assis. 2. ed. Rio de

Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1964.

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VARIAÇÕES “O HOMEM MOISÉS,UM ROMANCE HISTÓRICO”Entre História, ficção e experiência

Valéria Machado Rilho*

Tomo de empréstimo o título “O homem Moisés, um romance histórico”, atribuídopor Freud ao rascunho do texto posteriormente publicado em alemão, sob o nome

de “O homem Moisés e a religião monoteísta”, reduzido, na língua portuguesa, a “Moisése o monoteísmo”.

Freud (1939), sempre muito atento ao sintoma social de sua época, vê-se instiga-do pelo fascínio do Outro que ele testemunha com a ascensão do nazismo na Europa.Por esta razão, encontramos nessa obra a teoria freudiana do Pai, que vou tentarreconstruir neste trabalho.

Mas antes, caberia perguntar que relação isso apresenta com o título provisório“O homem Moisés, um romance histórico”? Por que, para elaborar a teoria da paternida-de, Freud vai trilhar a passagem da novela do sujeito ao acontecer histórico, do homemà história de seu povo, do sujeito à cultura?

Supomos, tal qual Ruffino (2000), no artigo “Às margens do ‘Moisés’ de Freud”,que o enigma que, pelas margens, conduz à origem do “Moisés” de Freud subjaz napergunta que há muito o interroga: o que é uma transmissão? De onde lhe advém e emque consiste o elemento da eficácia constitutiva que ela porta para um sujeito? Esseenigma, vê-se, conduz-nos à função paterna e à relevância do monoteísmo e do estudodo judaísmo na nossa cultura.

* Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

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Estabelecendo uma via que vai dos processos neuróticos aos fenômenos religi-osos, da novela neurótica ao acontecimento histórico, do trauma da neurose à tradiçãode um povo, Freud nos convida a acompanhá-lo num entrelaçado percurso entre ovivenciado pelo indivíduo e o vivenciar histórico.

Inicialmente é necessário destacar e tornar precisos alguns elementos dos quaiso autor se utiliza ao tecer sua linha argumentativa. A palavra história é um termo quesurge incontáveis vezes ao longo de seus três ensaios sobre Moisés. James Strachey(Freud, 1939), responsável pelos comentários e notas da edição argentina, observa, emnota de rodapé, que Freud faz uso de três termos diferentes da língua alemã, os quais,apesar de a grosso modo compartilharem da mesma significação, têm aplicações semân-ticas específicas na língua alemã. Descrevo, a seguir, um pequeno esquema do qual meservi para avançar no propósito deste trabalho:

Geschichte é traduzido por acontecer histórico, é a História real e objetiva.Refere-se, no texto freudiano, ao vivenciar histórico de um povo, que pode tornar-seherança arcaica. A herança de traços mnêmicos do vivenciado pelos antepassados,independente da comunicação direta ou do influxo da educação, é o que se denominatradição. Aqui situamos a operação de separação e o campo da transmissão.

Historie é traduzida por história conjectural, no sentido de uma históriareconstruída através do preenchimento de lacunas de nossas notícias, mediante umraciocínio analógico fundado na experiência. É o equivalente à construção em um pro-cesso analítico. É o campo das produções ficcionais, tais como mitos, teorias, etc.

O adjetivo historisch é traduzido por histórico-vivencial, ou seja, a históriacomo ocorreu para os homens em cada caso, é a história vivenciada pelo indivíduo. Emoutras palavras, é o registro da subjetividade. É onde incide o recalque ou a recusa. Étambém onde se situa o que é da ordem do infantil do sujeito, da alienação no desejo doOutro. É o campo da transferência, da relação do sujeito ao Outro. Situamos aqui o quechamamos de experiência, no sentido benjaminiano do termo.

Ao se referir à História1 de um povo, Freud (1939), tem em mente uma tradiçãoque se herda e não uma que se propague pela comunicação ou enunciados educativose nem mesmo dada a se inscrever como representação, seja no inconsciente ou no pré-consciente, acrescenta Ruffino (2000). Tratar-se-ia de uma herança arcaica, constituídapor traços mnêmicos do vivenciado por gerações anteriores, os quais extraem da recusa(verneinung) a sua força. Freud acreditava que uma experiência vivida por nossosantepassados nos seria transmitida filogeneticamente e nos constituiria em nosso fun-cionamento.

1 Proponho, para Geschichte, utilizarmos palavra História, com a inicial maiúscula.

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VARIAÇÕES

Ruffino (2000) ressalva que esta crença “lamarckista” pelo menos estava nolimiar da Weltanschauung científica, era ela ou a alternativa de supor alguma possessãosobrenatural. O que esperar de Freud, alguém oriundo das ciências naturais, que nãodispunha de uma teoria do significante, mas sensível à escuta clínica que lhe evidenci-ava a operação de uma transmissão, que, mesmo desprovida de enunciados, veiculariaexperiências à distância e produziria efeitos constitutivos da Bildung do indivíduo, dospovos e da humanidade? Mas, mesmo quando perseverava na naturalidade da herança“lamarckiana”, o que Freud negava era a determinação do constitucional em últimainstância. Ele preferiu ser obsoleto a recusar o estatuto constitutivo da experiência e doque hoje chamamos o laço que articula o sujeito ao Outro, atrás do muro da linguagem.Ruffino (2000) conclui que o problema todo se resume no fato de que, à época, não erapossível reconhecer e legitimar a afirmação de que a via da transmissibilidade doexperiencial é da ordem, não da filogênese, mas da linguagem. Neste sentido, convémdestacar uma citação do texto freudiano:

“Os precipitados psíquicos daqueles tempos primordiais haviam tornado-sepatrimônio hereditário: em cada geração só era necessário que despertassem, não quefossem adquiridos. Pensamos no exemplo do simbolismo, com certeza ‘congênito’, queprovém da época do desenvolvimento da linguagem e é familiar a todas as crianças semhaverem sido instruídas e reza igual em todos os povos, apesar da diversidade daslínguas.” (Freud,1939, p.128)

Freud não deixa dúvidas de que há, então, uma herança que se transmite degeração em geração, que é da ordem do simbólico e da linguagem. Essa herança oautoriza a transferir os conceitos da psicologia individual à psicologia das massas.Apesar disso, ele é categórico ao afirmar que não há um inconsciente coletivo. Oconteúdo do inconsciente é que é coletivo, patrimônio universal do homem. Nestesentido, “os seres humanos sempre souberam, de uma maneira particular, que, outrora,possuíram um pai primordial e o mataram”. ( Freud, 1939, p.97)

No campo da história ficcional, encontramos a construção. Em “Construções emanálise”, Freud (1937) percebeu que a restituição, pelo analista, de um fragmento dahistória vivida pelo analisante provocava neste, ao invés de uma recordação, uma cenaencobridora. Isso lhe permitiu afirmar que as construções são equivalentes às forma-ções delirantes. Nestas, um fragmento da realidade objetiva é rechaçado e substituídopor um fragmento histórico-vivencial (infantil) que havia sido recusado anteriormente.Este elemento, que pela verneinung não encontrou inscrição simbólica, surge comoretorno do real no delírio. Isto explica um certo caráter delirante que sempre acompanhaas narrativas ficcionais

A partir da estrutura da construção, além do delírio, tomaríamos como seusequivalentes as seguintes construções míticas e ficcionais: do lado do neurótico, anovela edípica em Freud, o mito individual do neurótico em Lacan, a linhagem de memó-

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rias na literatura; do lado do coletivo, o mito em Lévi-Strauss.Para tratar do mito de Moisés enquanto construção freudiana e extrair disso

suas conseqüências, precisarei situá-lo em relação às outras duas ficções que comple-tam a sua trilogia mítica da paternidade e filiação.

O mito freudiano do pai da horda nos apresenta a necessidade estrutural do paicomo fundador do processo de humanização. O parricídio instaura o pai totêmico comorepresentante do lugar paterno, organizador necessário da referência à lei e da filiação.À posteriori, possibilita a construção do pai mítico da origem, o pai da horda, figuraçãodo amo enquanto este ao-menos-um não castrado que teria o gozo absoluto. Encontra-mos aqui uma duplicação do pai, o que coloca a questão a respeito da filiação: simbólicaou real?

A necessidade lógica do pai será sustentada por cada repetição do ato de assas-sinato. A figura do estrangeiro surge como representante do pai da horda: é o um queestá fora (da castração), ao mesmo tempo em que foi construído como fora. Nessesentido, o estrangeiro é estrutural: representa a necessidade lógica do ato que instituio pai em uma posição Outra.

O mito edípico, por sua vez, instaura o reconhecimento do lugar paterno comocondição sine qua non do reconhecimento de uma filiação.

O mito de Édipo permite a construção do pai enquanto agente da castração, queimpõe um impedimento ( a proibição do incesto) na relação entre sujeito e objeto degozo do Outro. A versão paterna edípica será, então, a do mestre, aquele que sabesobre o gozo (da Mãe). A partir do saber paterno, poderá ser situado um objeto – o falo– que faltaria ao Outro (materno) e construído o eu como substituto do objeto fálico.

Qual era o enigma da Esfinge? O que Édipo não sabia? Não sabia sobre o ato deassassinato do pai da origem (o rival) por ele cometido. O ato parricida inscreve-senuma série de repetições, o que vai provocar a indagação do lugar do sujeito em relaçãoao lugar do pai. Responsabilizando-se pelo ato, pela via da culpabilização, a paternida-de e a filiação saem da dimensão do ato (real) e passam para a da demanda de reconhe-cimento ou de amor. O pai é deslocado da condição de rival e reconhecido como agenteda castração, perante o qual o filho renuncia ao falo em troca do amor paterno e dapromessa de recebê-lo do pai um dia. O ato, então, vai ser substituído por um pedido deamor, um lugar na filiação, endereçado ao pai. O estabelecimento da descendência entrepai e filho passa a ser um ato de amor. Recoloca-se novamente a duplicação paterna e adúvida sobre a origem da filiação: real ou simbólica?

Em “O homem Moisés e a religião monoteísta”, Freud (1936), ao construir o mitodo Moisés estrangeiro, leva-nos a pensar que o Pai pode ser ultrapassado e dispensa-do e que a versão ficcional do pai é um efeito de filiação. Encontramos novamente aduplicação da figura paterna (egípcio ou hebreu?) colocando em questão a origem dafiliação (simbólica ou real?).

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VARIAÇÕES

“O homem Moisés e a religião monoteísta” está calcado na construção de Moisésenquanto um estrangeiro. A partir daí, Freud avança na abordagem da repetição e suarelação com o recalque originário. Conclui que o monoteísmo é produto do assassinatode Moisés e do posterior recalcamento desse ato. Só que aqui, ao invés de a repetiçãoacontecer através de outros assassinatos, a exemplo do parricídio em “Totem e Tabu”(1912-13), toma a via de assumir a religião do pai, instituída como referência à herança deMoisés.

Na ficção de Moisés como egípcio, Costa (1992) aponta que foi justamente suareligião que o lançou no exílio de sua pátria e que o transformou no grande pai dosjudeus. Neste sentido, o exílio (a condição estrangeira de Moisés) não seria o preçopago para a construção do Outro?

Em “O Um e o Outro” (Costa,1992), encontramos importantes consideraçõessobre a questão da filiação. Costa sublinha que Freud (1939) toma a circuncisão comoa marca que caracterizaria uma filiação a Moisés, na medida em que uma filiação a umestrangeiro – que seria de uma ordem simbólica - vai precisar marcar o real do corpo. Apartir da fantasia de ser um filho adotivo, comum na infância e na clínica, a autorapropõe o “adotivo” como instituinte da mácula de um pai que não efetivou uma opera-ção no real. Vemo-nos, então, tentados a pensar que, frente à impossibilidade de umafiliação ser real - já que o pai real, o pai da horda, não constitui uma filiação -, o filho seriasempre adotivo, um representante da falta paterna. E o que fizeram os judeus frente aessa falta? Transformaram-na em fé no amor do Pai por seus filhos, derivando daí aconvicção do povo judaico de ser o (único) escolhido e preferido. Tal qual um filhoadotivo que, desde uma posição de exceção, supõe sua filiação fundada numa escolhaamorosa do pai.

Mas por que este modo obsessivo de sustentação do Pai viria a se constituir emuma mudança na cultura e na subjetividade de uma época? Por que o monoteísmo seespalhou pelo mundo afora e não permaneceu apenas como um traço específico dareligião judaica?

Freud (1936) conclui que a crença na existência do Um é sustentada pelos fiéisatravés da verdade eterna, verdade ficcional equivalente à verdade do delírio.

A crença em um Deus único e universal é um substituto do ato de assassinatodo pai da horda, que instaura o pai do totem no lugar de pai e origem da humanidade. Éo que se escuta nos enunciados religiosos: “Deus é um ato de fé”. Neste sentido, é umato de fé que funda Moisés no lugar do pai que teria sido logicamente morto. E, como areligião reza que todo ato de fé é um ato de amor, seria lógico que tamanha devoçãofosse retribuída por uma preferência dentre os outros povos irmãos. Então, é o amor aopai, efeito de uma filiação, que constrói uma versão do pai divino que ama seus filhos.É como se fosse um retorno ao mito do pai da horda, com a diferença de que, aqui, o atofundador do lugar do pai não é real e sim simbólico. Quais as conseqüências quepoderíamos daí extrair? Certamente uma delas se refere ao reconhecimento do lugar do

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sujeito. O homem não emerge mais na passagem da natureza à cultura, mas, antes,surge do desejo do Outro, condição da alienação, tal qual Lacan (1964) a apresenta. Asua origem é simbólica, a partir de uma inscrição na cultura, ao passo que esta é ocontexto do Outro que a linguagem porta.

Ao sustentar que o Pai Moisés (egípcio) é uma crença judaica, Freud funda afalta no Outro, falta simbólica impossível de restituir, independente do que o sujeitovenha a oferecer, já que a posição Outra (estrangeira) do Pai é um fato de estrutura. Issoleva Melman (2000) a dizer que a busca de uma filiação, do estabelecimento da descen-dência entre Pai e filho, é um ato, seja de fé ou de amor, que apenas mascara o caráterOutro do Pai. No encontro da falta do sujeito com a falta do Outro, o primeiro sofre osefeitos de sua divisão constituinte. Trata-se da segunda operação essencial em que sefunda o sujeito – a separação (Lacan, 1964) – que inscreve a castração no campo donarcisismo 2 . O objeto do eu - o si mesmo - nada mais é do que um semblante, umaficção3 .

Se alguém se colocou a pergunta sobre a posição desde a qual Freud escreveesse texto, terá de convir que ele ora fala como ateu, ora como judeu. Parece não estarem nenhum lugar e em ambos ao mesmo tempo. O eu que ali fala não é apreensível emum mesmo lugar o tempo todo.

Retomo agora a dupla nomeação do texto freudiano referida no início, colocan-do-me a questão do lugar que este ocupa para o autor. À diferença dos demais, “Ohomem Moisés e a religião monoteísta” (1936) é marcado por vacilações, recapitula-ções, advertências, resumos, reticências e repetições. A que podemos atribuir taisirregularidades? Freud justifica dizendo-se receoso pelas conseqüências que poderiamadvir das idéias então apresentadas. Inicialmente teme a represália da Igreja Católica,depois, a perseguição aos judeus que tomara conta da Áustria. Foi somente no exílio naInglaterra que encontrou a tranqüilidade e a acolhida para levar a público a tese de queo Pai é uma ficção, ou seja, é sempre uma versão produzida por uma narrativa ficcional,um efeito de discurso.

Mas o que, na passagem da sua terra natal ao país do exílio, possibilitou a Freudresponsabilizar-se pelo ato de publicação de sua obra? Ousaria dizer que foi precisoque ele atravessasse a fronteira judeu/estrangeiro para, então, ultrapassado o fascíniodo Outro, contar-se numa História, retomar uma posição enunciativa e nos legar uma

2 Charles Melman, numa entrevista concedida ao Correio da Appoa, n.79, maio. 2000, propõe otermo “Complexo de Moisés”, em contraponto ao Complexo de Édipo, que introduz a castraçãona relação objetal.3 A este respeito, remeto à leitura do livro de Ana Maria da Costa, intitulado “A ficção do simesmo”, ed. Companhia de Freud.

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VARIAÇÕES

teoria psicanalítica da paternidade, origem e filiação.É neste sentido que interpreto as considerações sobre a “novela” freudiana de

Moisés, que faz Oramas, em “Frans Post, invenção e ‘aura’ da paisagem”: “Para além dadiscutível verossimilhança da hipótese freudiana, resta-nos sua pertinência teórica,sua potência de ‘disseminação’. Dupla pertinência: uma é a ficção teórica através daqual o fundador da ‘religião psicanalítica’, atravessando o mar vermelho do canal daMancha no ano apocalíptico de 1936, diferia (e salvava da destruição) a sua própriaobra num tempo de holocausto; a outra pertinência, para além do acidente biográficofreudiano, é uma teoria geral da fundação.” (Oramas, 1999, p. 226)

A propósito da fundação da paisagem americana, atribuída ao holandês FransPost, Oramas (1999) vai situar sua condição na distância temporal que se interpôs entreas paisagens retratadas durante a estada do pintor no Brasil e aquelas realizadas apósseu retorno à Holanda. Sob o efeito desta lacuna, recheada por uma reconstrução de umpassado vivido já em ruínas, Post produziria paisagens brasileiras que outorgariam, aposteriori, às primeiras o lugar de fundadoras.

Na mesma medida, a duplicação das versões ficcionais paternas, introduzidaspor Freud pelos mitos do pai da horda, Édipo e Moisés, interpõe uma discordância, umalacuna, um lugar vazio de exercício de uma função, a função paterna, aquela que orga-niza a relação à lei e a filiação.

De resto, para além da teoria do pai, “O homem Moisés, e a religião monoteísta”adquire a dimensão de um testemunho de uma experiência narrada através de umaversão ficcional da História. E, como tal, produz efeitos de transmissão de algo quepassa de Um ao Outro. O que nos leva a concluir que uma singularidade (um Um) sópode fundar-se na passagem à ordem do coletivo ( o Outro).

BIBLIOGRAFIACOSTA, Ana Maria Medeiros da. A ficção do si mesmo: interpretação e ato em psicanálise. Rio

de Janeiro : Companhia de Freud, 1998.___. O Um e o Outro. Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n.7, p.

22-23, ago. 1992.FREUD, S. O homem Moisés e a religião monoteísta (1939). In: ___. Obras completas. Buenos

Aires : Amorrortu, 1986.___. Construções em análise (1937). In: ___. Obras completas. Buenos Aires : Amorrortu, 1986.LACAN, Jacques. O seminário. Livro 11 . Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise

(1964). Rio de Janeiro : Zahar, 1979.MELMAN, Charles. O complexo de Moisés – entrevista com Charles Melman. Correio da

APPOA, Porto Alegre, n.79, maio.2000.ORAMAS, Luis Pérez. Frans Post, invenção e “aura” da paisagem. In: HERKENHOFF, Paulo

(org.). O Brasil e os holandeses - Catálogo da Sextante Artes. GMT, 1999. p. 218-237.RUFFINO, Rodolpho. Às margens do “Moisés” de Freud. Correio da APPOA, Porto Alegre,

n.79, maio. 2000.

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VARIAÇÕESGOSTAMOSDE SER INVIÁVEIS?*

Maria Rita Kehl**

No primeiro semestre deste ano, enquanto o governo FHC tentava comemorar os500 anos do descobrimento excluindo da cena todos os brasileiros que não cabi-

am no protocolo dos festejos oficiais, um filme que parecia inviável do ponto de vistado mercado atraiu muito mais público do que o esperado e provocou polêmica, sobre-tudo – o que já não acontecia há muito tempo – entre estudantes e jovens. Um filme queapresenta o Brasil de um ponto de vista tão “realista” (as aspas são inevitáveis) que oefeito sobre as pessoas correu o risco de ser, ao contrário do pretendido pelo diretor, ode um conformismo cínico. Vejamos.

“A realidade não interessa às pessoas”, lamenta-se o protagonista de “Cro-nicamente inviável”, quase no fim desse filme em que o público é submetido a umverdadeiro tratamento de choque diante de uma cruel seleção do que há de pior narealidade brasileira. A fala do personagem representado por Humberto Magnani – umsociólogo empenhado em coletar e comentar criticamente fatos que denunciem que oBrasil é inviável – é contestada pelo público do filme, que vem recebendo muito bem amá notícia. Ao contrário do que aconteceu com outros filmes igualmente críticos e

* A primeira versão, reduzida, deste artigo, foi publicada no caderno Mais! da Folha de São Paulo,maio de 2000.** Psicanalista, membro correspondente de Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Doutora emPsicologia Clínica pela PUC/SP e escritora. Publicou, entre outros, os livros “A mínima diferen-ça”, 1996; e “Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade”,1998 (ambos pela Editora Imago).

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VARIAÇÕES

indignados do cineasta Sérgio Bianchi1 , este “Cronicamente inviável” não passoudespercebido e vem fazendo sucesso, principalmente junto a um público mais jovem,habitualmente avesso ao cinema brasileiro. A idéia de que vivemos em um país inviávele, o que é pior, de que esta situação já se tornou crônica, parece interessar o público.Nas sessões, que foram seguidas de debates com o diretor, a platéia esteve ao mesmotempo indignada e fascinada com esta possibilidade, presente em todas as cenas dofilme.

Como comentar este fenômeno? Poderíamos pensar, com otimismo, que aspessoas andam mais conscientes dos problemas do país, mais interessadas na realida-de – o que talvez faça sentido hoje, quando a onda de fantasias primeiro-mundistas,que caracterizou os primeiros anos da era FHC, veio arrebentar contra a rocha dura denossa criminosa desigualdade social. Ou poderíamos simplesmente dizer, no jargão deum analista de mercado – o que Bianchi certamente abominaria – que, hoje, “a realidadevende”. Como a primeira abordagem não exclui a segunda e vice-versa, a recepçãopositiva de “Cronicamente inviável” nos propõe um dilema moral, claramente enuncia-do em outra fala do mesmo personagem: “este excesso de compreensão pode acabarvirando cumplicidade”.

Da cumplicidade ao cinismo, a passagem é quase imediata. A realidade inte-ressa ao cínico, para quem vale a lógica do “quanto pior, melhor”. O cínico não é aqueleque quer iludir-se, é justamente alguém que percebe com clareza a dura realidade e,cúmplice do que nos parece condenável, aprende a jogar com ela em benefício próprio.Neste sentido, o cinismo é cúmplice do conformismo. O próprio “jeitinho brasileiro”, doqual os excluídos da sociedade brasileira tanto se orgulham, e que a elite defende como“coisa nossa” justamente porque se beneficia dele, faz parte deste conformismo. Nãose trata do conformismo cristão, que prega a resignação dos pobres em relação à injus-tiça e às humilhações sofridas no reino deste mundo, em nome de um além da vida,quando todo o sofrimento será compensado. O conformismo cínico aceita qualquerjogo, faz qualquer negócio, contanto que seja possível tirar o melhor partido dele.

Mas a relação com o cinismo proposta em “Cronicamente inviável” não é tãosem ambigüidades assim, justamente porque o filme não deixa, em nenhum momento,que o espectador se sinta confortável diante da cumplicidade que, aparentemente, odiretor lhe propõe. Um dos recursos utilizados repetidamente por Bianchi para produzirmal-estar no espectador, por exemplo, é o confronto de personagens de classe média,

1 Além de alguns excelentes curtas, Bianchi realizou Maldita coincidência (1979), Romance,(1988), e A causa secreta, (1994), todos denunciando a hipocrisia da moralidade brasileira e asmazelas na nossa desigualdade social.

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que se julgam politicamente corretos, com os miseráveis com quem eles se dizem solidá-rios. O resultado do encontro é sempre desastroso e evidencia a nulidade de nossasboas intenções diante da desigualdade monstruosa que já se produziu no país. Oengenho deste recurso consiste em manter, diante de algum fato abominável, enuncia-dos que seriam razoáveis em outro contexto. Os personagens, evidentemente, nãolevam a sério o que dizem.

Por duas vezes, por exemplo, meninos de rua são atropelados por madamesapressadas, em frente a um (mesmo) restaurante elegante de São Paulo, cujos freguesessão caracterizados como a nova classe média “PSDB”: são novos ricos de gostosrefinados, com vapores de uma consciência social que não se abala tanto diante de ummenor de rua faminto quanto diante de um vinho de qualidade inferior servido no jantar.Com o barulho do atropelamento, os fregueses saem à porta e assistem à cena, inertes,repugnados. Saindo do carro, a motorista contempla horrorizada o corpo da criançaagonizante e se dirige, evidentemente, a seus pares: “eu não tive culpa, eu estavadentro da lei, ele atravessou meu caminho, coitadinho! Mas sabem, eu tenho um com-promisso, logo mais, o que eu posso fazer?” E conclui: “eu não vou me atrasar por umexcesso de escrúpulos legalistas”. Manobra o carro junto ao corpo do menino e vaiembora, com a aprovação compungida de todos.

Não há limites para a nossa tolerância moral; não há fato real o suficiente,que uma boa inversão no sentido do discurso não seja capaz de ressignificar, para livrara cara dos responsáveis. Se o senso (crítico?) comum estabelece que ninguém s eimporta com a lei, não existe diferença entre o escrupuloso e o otário, muito menos entreo realista e o canalha. O único crime imperdoável é admitir a culpa – atitude que exige ummínimo daquilo que se chama, popularmente, de “vergonha na cara”. A vergonha émoralmente superior à culpa, pois não permite o gozo masoquista característico dosculpados, capaz de produzir, simultaneamente, a delinqüência e o mal-estar. Evitamosexpor-nos ao vergonhoso, muito mais do que ao culpável. Mas a vergonha anda emdesuso numa sociedade que não sustenta o compromisso com os próprios ideais sobreos quais, supostamente, ela se funda.

Em vez de “somos culpados” (e deveríamos nos envergonhar disso), “Croni-camente inviável” parece estar demonstrando a seu público: “tornamo-nos cínicos”.Mas até que ponto o filme, com seu realismo atordoante, não é mais uma manifestaçãodesta “falsa consciência ilustrada” que constitui o cinismo, no dizer do filósofo PeterSloterdjick2 ? Não é porque ninguém se salva (moralmente) entre os personagens des-

2 A citação de Sloterdjick, bem como as outras considerações sobre o cinismo, são extraídas datese de doutoramento do psicanalista Ricardo Goldenberg: No círculo cínico – misérias da éticana alta modernidade (a ser editada em breve pela Relume-Dumará, Rio de Janeiro).

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VARIAÇÕES

sas crônicas de um país inviável, que o filme corre o risco de convocar o espectador aocinismo. É porque ele não possibilita nenhuma brecha para se imaginar, ou mesmo parase desejar, que as coisas possam ser diferentes. O espectador se sente inteligente ecrítico ao acompanhar, e compreender, as construções inteligentes e críticas do argu-mento de Sérgio Bianchi. Mas se fosse convidado a escolher seu lugar no enunciado deStanislaw Ponte Preta – “ou restaura-se a moralidade ou locupletamo-nos todos” – sópoderia colocar-se entre os que se locupletam.

Repetidamente, no filme, personagens sofisticados e bem informados reú-nem-se para comer bem e falar mal do País, num ambiente onde qualquer indignação,qualquer apelo à moralidade soa absurdamente ingênuo. O cinismo, para Slavoj Zizek3 ,“não é uma posição de imoralidade direta, é antes a moralidade mesma posta a serviçoda imoralidade: a ‘sabedoria’ cínica consiste em tomar a probidade como a forma maisacabada de desonestidade, a moral como a forma suprema da dissolução, a verdadecomo a forma mais eficaz da mentira”.

A má consciência ilustrada nacional produziu, há décadas, um fenômenoestranho: nenhum brasileiro se identifica com as mazelas do Brasil. Não se trata de faltade nacionalismo – que bem deveria ser dispensado, aqui ou em qualquer nação –, masde falta de implicação. “No Brasil, todo mundo é trambiqueiro!” exclama outro persona-gem do filme, justificando seus próprios trambiques como parte do azar de ter nascidoaqui. Como na letra da canção de Chico Buarque4 , foi um Deus gozador que, tendo omundo inteiro para nos destinar, quis nos jogar aqui, “na barriga da miséria”. Sendoassim, brasileiros à revelia, quem é que se compromete com os rumos do país?

Quem pode, goza dos privilégios de ser brasileiro – o que inclui os benefíciosprivados que cada um pode tirar da tão falada “tolerância ética” nacional. O acréscimoao gozo está em que ninguém se sinta particularmente responsável pelas conseqüênci-as.

Neste sentido, é didática a comparação de “Cronicamente inviável” com apeça “Bonitinha, mas ordinária”, de Nelson Rodrigues, que esteve em cartaz em SãoPaulo (Teatro Eugênio Kusnet) no mesmo período. Para o que me interessa nesta dis-cussão, a montagem de Marco Antônio Braz teve o mérito de enfatizar o dilema moral dopersonagem Edgar e de deixar em segundo plano aspecto do escândalo sexual, muito

3 Apud Goldenberg, op. cit., p. 19.4 Chico Buarque, “Deus dará”. o verso citado é: “Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio/pele e osso simplesmente, quase sem recheio/ mas achou muito engraçado me botar cabreiro/ nabarriga da miséria, eu nasci brasileiro”. Durante o período da ditadura militar, a letra foi censurada,e Chico gravou “batuqueiro” no lugar de “brasileiro”.

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mais evidente, por exemplo, no filme de Braz Chediak, com Lucélia Santos, em 1980, quepreferiu fazer uma espécie de pornochanchada sofisticada, bem ao gosto do público docinema brasileiro no final da década de 70.

A montagem de Marco Antônio Braz, radicalmente rodrigueana, é perfeita-mente atual. Na peça, os efeitos tanto cômicos quanto dramáticos se produzem a partirda crise em que a frase de Oto Lara Resende – “o mineiro só é solidário no câncer” –precipita o incauto Edgar, “o último homem honesto” no cenário do Brasil recém (eprecariamente) industrializado, do início dos anos 60. A partir do momento em que étocado pela frase do Oto, Edgar é lançado num permanente conflito moral. Depois dafrase do Oto tudo é permitido, nenhuma renúncia faz sentido, nenhum ideal se mantém,depois da frase do Oto. A frase força Edgar a se transformar num canalha. Pior: numademonstração genial de Nelson Rodrigues, de que o efeito de um discurso críticofechado sobre si mesmo pode ser a sacralização do que ele pretende demolir, o diabo dafrase do Oto desautoriza qualquer aposta em outra direção que não seja a da canalhice.Edgar, que pretendia escandalizar a burguesia com a frase fatídica, assiste horrorizadoà sua apropriação como signo de distinção de classe. No clube, os milionários cumpri-mentam-se alegremente, cúmplices em sua baixeza: “como é que vai, mineiro?...”

A peça é de 1962. Nela, a repugnância de Edgar funciona como ancoramentode um outro ponto de vista, fora do realismo cínico dos outros personagens. Hoje afrase do Oto, perfeitamente assimilada, soa quase pueril. Nada desestabiliza o brasileirodo ano 2000 em sua triste resignação acanalhada a não ser, talvez, a insistência dealguns poucos (otários? perdedores?) em se manter afastados da bandalheira geral.São estes, talvez, os únicos que ainda são capazes de desafinar o coro dos contentes.

“Cronicamente inviável” termina com a fala de uma moradora de rua embalan-do o filho para dormir. Ela diz que o menino deve crescer sempre honesto e não deve,jamais, envergonhar-se de sua pobreza. Diz que se orgulha do filho e do grande futuroque ele há de construir. É o trecho mais chocante do filme, porque o diretor faz dessapersonagem, que nada tem a perder, a única que parece levar a sério o que diz. Debaixode um viaduto, protegida por pedaços de papelão, ela pretende fazer o filho acreditar emvalores que já se tornaram vazios para os outros brasileiros.

Comovidos, nós quase torcemos por ela. Mais ainda: nossa tranqüilidadedepende de mães como esta, que tentam impedir seus filhos de se tornarem os futurosassaltantes que vão abordar-nos quando estivermos presos em nossos carros importa-dos em um farol de trânsito. Assim, na última cena, o filme de Sérgio Bianchi precipita oespectador para fora do cinismo e o obriga a se confrontar, envergonhado, com oaspecto inviável de sua própria condição.

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VARIAÇÕES

O SILÊNCIO DA VIOLÊNCIA

Edson Luiz André de Sousa*

“O suficiente ainda para não saber. Para não saber o que dizem.Para não saber o que é que as palavras que diz dizem. Diz?...”

Samuel Beckett (Beckett, 1996)

A violência tem sido uma das faces obscuras do laço social no Brasil. Embora aexperiência do que costumamos chamar de violência seja algo muito próximo do

que todos vivemos, certamente não haveria consenso se fôssemos analisar uma sériede cenas cotidianas, procurando identificar se a inscreveríamos ou não no campo daviolência. Com um olhar ampliado e concentrado num determinado flash cotidiano, asrazões supostas para determinado ato poderiam turvar nossa capacidade de análise.Dessa forma confundem-se, inúmeras vezes, razões, justificativas e legitimações. Esteproblema já foi apontado por muitos autores, entre os quais certamente teríamos quedestacar Hannah Arendt, que, com seu brilhante e lúcido ensaio sobre a violência,mostra a importância de se pensar esse termo por demais enigmático. Ela faz um esforçode distinção conceitual, detendo-se sobretudo na diferença entre poder e violência.Segundo a autora, esta perspectiva de análise contribui para entendermos melhor essesfenômenos e, o que é mais importante, para deduzir ações para contê-los, amenizá-losou eliminá-los. Não seria demais insistir quanto esta perspectiva se faz urgente emnosso país.

* Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e da Association FreudienneInternationale. Doutor em Psicanálise e Psicopatologia/Universidade Paris VII. Organizador dolivro Psicanálise e colonização – leituras do sintoma social no Brasil, Porto Alegre, Artes eOfícios, 1999.

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O poder, mesmo que possa ser eventualmente questionado em seu sentido ouação, é amparado, em maior ou menor grau, por algum nível de consenso grupal. Naviolência, ao contrário, estamos submersos no campo da arbitrariedade, de onde odireito e a lei, baluartes da civilização, estão banidos. Talvez a afirmação que melhorresuma esta proposição dentro do argumento de Arendt seja a seguinte: “A formaextrema de poder é todos contra um, a forma extrema da violência é o Um contra todos.”(Arendt, 1994, p. 35) O que Arendt tenta ressaltar é que não podemos abordar essaquestão da violência e sua distinção com outras categorias tais como poder ouagressividade, enfatizando uma tese do tipo quem domina quem. Se assim fosse, elaspoderiam, eventualmente, ser tomadas como sinônimo.1 Ela sublinha, por exemplo, que“o poder nunca é propriedade de um indivíduo, pertence a um grupo e permanece emexistência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido.” (Arendt, 1994, p. 36)

Pensar a violência é uma tarefa árdua, e somos tentados a desistir logo de iníciopela complexidade que nos oferece tal reflexão. Hannah Arendt nos indica que a conse-qüência desta atitude é uma certa banalização e generalização do termo, que dificultanosso entendimento e nosso potencial de resistência. Mais uma razão, portanto, paraaceitarmos todos os desafios de pensar esta questão.

Procurarei trazer algumas idéias que possam contribuir para o debate, alertandode antemão o leitor sobre o cuidado que temos de tomar para não transformarmosnossos instrumentos de análise em pontos cegos de nossa reflexão. Este é um debateem que todos os campos do saber são convocados ao compromisso de investigação.

Um dos ensaios mais significativos sobre este tema no campo da psicanálisebrasileira é o livro de Jurandir Freire Costa, “Violência e Psicanálise” (Costa, 1986), queaceita o desafio desse debate e o faz com muita pertinência, trazendo uma discussãoque, no meu entender, deveria ser leitura obrigatória para todos. Ele ressalta que estareflexão é uma tarefa que se faz urgente para a psicanálise. Examina as argumentaçõesde inúmeros textos de Freud, bem como de muitos outros psicanalistas, mostrando opano de fundo de conceitos como trauma, pulsão de morte, agressividade, compulsãoà repetição e suas articulações com a violência. Sua crítica mais contundente, da qualcompartilhamos, é mostrar as conseqüências de uma direção naturalista nesse debate.Portanto, procurar mostrar que ser violento diz respeito a uma natureza humana nosajuda muito pouco. Jurandir Costa se esforça também em discutir um argumento muitofreqüente, ou seja, o de aproximar homens e animais na análise da agressividade.

1 Contudo é importante ressaltar que todo este esforço de distinção conceitual que julgamosrelevante não implica que necessariamente encontremos estas formas em estado puro. Vale lem-brar o alerta feito por Arendt “Nada é mais comum do que a combinação de violência e poder,nada é menos freqüente do que encontrá-los em sua forma pura e, portanto, extrema. Disto não sesegue que autoridade, poder e violência sejam o mesmo.” (Arendt, 1994, p. 38)

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“A violência ou é tratada como um tabu, cercado e protegido do pensa-mento, por uma aura romântico-pessimista, indicativa, talvez, de ‘nobre-za intelectual”; ou é considerada o zero e o infinito da existência dosujeito, tornando-se uma espécie de categoria apriori irredutível a qual-quer análise. Indo de um pólo a outro, a psicanálise entra no compassodas ideologias modernas. Fala da violência diluindo seu impacto e atenu-ando seu horror.” (Costa, 1986, p. 14)

A conseqüência dessa atitude é que, ao atribuir à violência um atributo deimpensável, acabamos por sacralizá-la. Este alerta, nós o encontramos, numa formacategórica, em muitos autores que se debruçaram sobre o tema.

Um ponto importante a sublinhar, que não me pareceu muito claro no ensaio deJurandir Freire Costa, é que, mesmo com a argumentação de que a violência é, em últimainstância, uma dimensão da natureza humana, isso não implicaria uma legitimação deseus atos. Podemos pensar na direção oposta, ou seja, apontar uma certa estrutura derepetição da mesma, poderia ajudar-nos a dissipar com mais eficácia sua força de ação.

Agora nos deteremos um pouco mais numa distinção que nos parece promisso-ra neste terreno, a saber, diferenciar agressividade de violência. A agressividade seinscreve dentro do próprio processo de construção da subjetividade, pois mostra queseu movimento ajuda a organizar o labirinto identificatório de cada sujeito. Ela deve serentendida, portanto, dentro de um sistema “dialógico”, amparado amplamente peloregistro do simbólico. Isto significa que a agressividade opera quando há reconheci-mento pelo sujeito do objeto a quem ela endereça sua reivindicação agressiva. Um atoagressivo, que pode ter muitas faces e disfarces, seria simultaneamente uma resistênciado Eu tentando marcar seus contornos identitários justamente quando o objeto (oOutro) ameaça seu lugar, mas também um pedido de reconhecimento e endereçamentode uma mensagem a este Outro. Vale lembrar que, no importante texto de JacquesLacan, “Agressividade em Psicanálise”, em que o autor desenvolve algumas tesessobre essa questão, praticamente todas mencionam direta ou indiretamente este víncu-lo da agressividade no processo de constituição subjetiva. Lembraremos aqui duasdessas cinco teses, que nos dão uma boa dimensão do eixo de reflexão proposto porLacan.

Uma delas diz o seguinte “A agressividade se manifesta em uma experiência queé subjetiva por sua própria constituição” (Lacan, 1998, p.105). E a outra, que eu gostariade lembrar: “A agressividade é a tendência correlativa de um modo de identificação quechamaremos de narcísico e que determina a estrutura formal do eu do homem e doregistro de entidades característico de seu mundo” (Lacan , 1998, p.112).

A agressividade é, portanto, constitutiva. Isto não significa, voltamos a insistir,nenhum a priori de legitimidade para seus movimentos. Queremos afastar-nos de umestilo de pensamento essencialista e naturalista. Pensar a constituição do eu a partir doOutro, ponto de partida do pensamento psicanalítico, mostra que a agressividade é, de

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certa forma, o ruído dessa operação, pois indica nossa dívida para com estes objetos. Oque dificulta nossas análises deve-se ao fato de que essas mensagens de tom nitida-mente especular endereçadas ao mundo precisam ser interpretadas. Não se revelam aonosso entendimento de forma transparente.

Encontraremos amplo desenvolvimento sobre esse tema nos vários textos emque Freud apresenta suas teorias sobre o narcisismo e o processo de identificação e, emLacan, sobretudo em seu clássico “A etapa do espelho como formador da função doeu” e “A agressividade em psicanálise”.2

Dentro do contexto adolescente, por exemplo, vemos em muitos momentos ma-nifestações de agressividade como indicativas do turbilhão de mudança identificatóriaem que os jovens se encontram nesse momento da vida. Se as respostas que damos aestes gestos são acolhidas dentro da perspectiva de que uma palavra possa vir adesenhar um lugar possível para o sujeito, suas motivações podem, enfim, encontrarum bom endereçamento. É muito problemático lermos certos atos agressivos de adoles-centes como manifestação de pura violência e, então, respondemos de forma equivoca-da a esses chamamentos. Com uma interpretação equivocada, desqualificamos o sen-tido desses movimentos. Ouvimos muito falar, por exemplo, da violência na escola. Istocertamente é bastante relevante dentro do contexto pedagógico, pois sabemos que aescola, para os adolescentes, é um dos lugares privilegiados para essa manifestação.A escola ocupa a função de interlocutor privilegiado do laço social no qual eles tentaminserir-se. A própria adolescência se define por esta passagem da família ao laço social.3

A violência implica um rompimento do pacto dialógico, instaurando sempre umaameaça às regras do jogo, que organizam essa passagem. Mesmo que possamos, emalgumas situações, encontrar certas razões que nos orientam na leitura dessas manifes-tações, o ato de violência não contribui em nada para uma reordenação simbólica destelaço. Isto fica muito claro, por exemplo, na argumentação de Hannah Arendt ao diferen-ciar poder e violência. Como aponta Celso Lafer, no prefácio à edição brasileira destetexto de Arendt:

“Para ela (Arendt), o poder – que é inerente a qualquer comunidadepolítica –resulta da capacidade humana para agir em conjunto, o que, porsua vez, requer o consenso de muitos quanto a um curso comum de ação.Por isso, poder e violência são termos opostos: a afirmação absoluta deum significa a ausência do outro. É a desintegração do poder que ensejaa violência...” (Arendt, 1994, p.8)

2 Ambos os textos podem ser encontrados em LACAN, J. Escritos, Rio de Janeiro, Jorge ZaharEditor, 1998.3 Ver sobre este ponto o livro de Jean Jacques Rassial A Passagem Adolescente - da família aolaço social, Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1997.

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Hannah Arendt mostra que a violência destrói o poder. Ela nos diz que, mesmoque o cano de uma arma produza obediência, jamais produzirá poder. É exatamentenesta direção que nos interessa diferenciar agressividade e violência, pois enquanto aprimeira institui o outro num lugar de autoridade e o investe de um certo valor, naviolência há uma certa anulação desse outro, uma desqualificação de seu valor. Este éum dos pontos essenciais nem sempre evidente, nessa diferenciação. Essa diferençatambém não se encontra estampada nas ações. Elas exigem uma leitura atenta na qual seprocure buscar a história desses atos. Os atos em si não são violentos. Como noslembra Ana Costa, “A violência é um efeito do contexto que o circunscreve. Sendoconseqüente com o texto freudiano, pode-se dizer que matar em si não é violento. O queé violento é o desejo de morte e que os atos - mesmo os mais banais - podem vir arepresentar deste desejo” (Costa, 1996, p. 12).

A palavra potencialmente presente na agressividade é, de certa forma, umapalavra aprisionada que espera o aval do outro para poder ser legitimada como discur-so. Essa abertura dialógica vai, portanto, na direção de dissipar o enredo do ato agres-sivo, possibilitando outro formato discursivo. Muitos exemplos podem ser dados parailustrar esta idéia: a criança que bate no irmão num claro intuito de reivindicar o olharmaterno, o aluno que desafia agressivamente o professor num ato de “indisciplina”,procurando interrogar/pensar o lugar de autoridade do mestre ou, quem sabe, a relaçãodeste com o saber, ou até mesmo um cidadão qualquer que, num gesto agressivo,procura convocar o olhar e a ação do poder público. Responder, por vezes, com um atode violência a essas manifestações obstrui o potencial dialógico de tais atos. Se voltar-mos novamente ao binômio violência/poder, acharemos pontos de encontro com essaargumentação, pois Hannah Arendt vai demonstrar como o enfraquecimento do poderpela carência da capacidade de agir em conjunto é um convite à violência. É nessesentido que ela aponta, por exemplo, como a ineficiência generalizada da polícia nosEstados Unidos e na Europa tem-se feito acompanhar pelo acréscimo da brutalidadepolicial.

Se escutarmos a palavra enunciada num ato agressivo, estaremos automatica-mente enfraquecendo seu potencial agressivo. O ato de violência traz em sua estruturaalgo de arbitrário, e, ainda que possamos deduzir alguma mensagem, algum sentido emseus movimentos, é importante destacar que se trata, desde o início, de um “diálogo”rompido, de um “diálogo” fracassado. Seria legítimo levantarmos a seguinte hipótese:quando as autorias são mais difíceis de serem identificadas, há potencialmente umcampo mais propício à emergência da violência. É nesta direção que percebemos que,quanto maior a burocratização da vida pública, maior será a atração pela violência.4 Issonos indica o papel essencial de se identificar com precisão, tanto quanto possível

4 Mais detalhes sobre este tópico ver o livro de Hannah Arendt, Sobre a Violência , Rio de Janeiro,Jorge Zahar Editor, 1994.

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dentro do laço social, as responsabilidades e as autorias em jogo na produção dedeterminados acontecimentos.

Outro ponto bastante espinhoso neste esforço conceitual, e que não podería-mos deixar de mencionar, muito embora tenhamos consciência da complexidade destamissão, refere-se à dimensão “emocional” envolvida nesse conceito. Por mais vaga quepossa ser esta idéia de “emocional”, identificamos facilmente em que medida os atosviolentos e/ou agressivos respondem também a essa pressão emocional. Contudo, oque eu gostaria de apontar é que a qualidade do ato não pode ser deduzida diretamentedesse emocional. Sucumbir a uma psicologização de sentimentos é armar um labirintode palavras sem nenhuma perspectiva de saída. Seria igualmente por demais obscuroquerer distinguir violência e agressividade, fazendo uso do estatuto da racionalidade.Não é esta pretensa razão o divisor de águas que nos interessa neste debate. Portanto,dizer que o ódio produz violência por ser irracional é um lugar-comum facilmentequestionável. Arendt nos indica que o ódio não necessariamente é uma reação automá-tica, e que podemos eventualmente reagir com ódio quando nosso senso de justiça éofendido. Essa reação, de forma alguma reflete necessariamente uma injúria pessoal.5

Se seguirmos novamente aqui as hipóteses de Arendt quando fala, por exemplo,da instrumentalização da violência e de toda sua armadura, fortalecida pela precarieda-de de alguns laços sociais, vemos que não bastam boas intenções e discursos român-ticos sobre o bem e o mal para contê-la. Urge um verdadeiro esforço de reflexão e deatitudes conseqüentes.

5 Para dar a exata dimensão da complexidade deste campo e também dos paradoxos freqüentescom que podemos ser confrontados ao tratar esse tema, transcrevo um breve parágrafo deArendt sobre essa questão: “Na vida privada como na vida pública há situações em que apenas aprópria prontidão de um ato violento pode ser um remédio apropriado. O ponto central não é ode que isto permite-nos desabafar - o que poderia igualmente ser feito dando-se uma pancada namesa ou batendo-se a porta. O ponto é que, em certas circunstâncias, a violência - o agir semargumentar, sem o discurso ou sem contar com as conseqüências - é o único modo de reequilibraras balanças da justiça. Neste sentido, o ódio e a violência que às vezes - mas não sempre - oacompanha pertencem às emoções “naturais” do humano, e extirpá-las não seria mais do quedesumanizar ou castrar o homem” (Arendt, 1994, p.48).O que me parece crucial neste argumento é a tentativa de Arendt de não associar de forma causalemoção e racionalidade.

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VARIAÇÕES

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASARENDT, Hannah. Sobre a Violência. Tradução e ensaio crítico de André Duarte. Rio de Janeiro

: Relume Dumará, 1994.BECKETT, Samuel. Últimos trabalhos de Samuel Beckett. Tradução de Miguel Esteves Cardo-

so. Porto : Assirio & Alvim, 1996.COSTA, Ana Maria. Três registros sobre a violência Revista da Associação Psicanalítica de

Porto Alegre, Porto Alegre, Artes e Oficios, n. 12, p. 11-16, 1996.COSTA, Jurandir Freire. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro : Edições Graal, 1986.LACAN, Jacques. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Zahar, 1998.

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Jaime Alberto Betts*

Emancipação feminina: inibição masculina? É pior: inibição, depressão e decadência. Por quê?

Segundo Dona Josephina Dalpian Petry, agricultora, costureira e dona de casa,sempre afirmou no círculo familiar, hoje do alto dos seus lúcidos 105 anos de vida, “umdia as mulheres irão dominar o mundo”. Com um pé no século XIX e o outro na aurorado século XXI, tempo de vida não lhe falta para basear sua previsão. Afinal de contas,ela já viu muita coisa acontecer e viveu por inteiro o século em que a condição da mulhersofreu mudanças vertiginosas.

Pelo jeito, ela tem razão. “Elas são as novas donas do mundo. Seguras e comdinheiro no bolso, as mulheres solteiras, separadas e viúvas são o mais importantebloco de consumo do planeta. Querem casar e comprar e não estão sendo atendidas”,diz matéria de capa da revista “Veja” (30/08/00), com a chamada: “Sozinhos. Elas pros-peram, eles murcham.” Segundo a revista “Time” (28/8/00), reportagem da capa, asmulheres estão dizendo: “Quem precisa de marido? Cada vez mais elas estão dizendonão ao casamento e preferindo a vida de solteiras.”

O homem hoje está perdendo o seu lugar de poder e domínio assegurado pelatradição e está atônito, desnorteado, perdidão mesmo, com a velocidade com que aemancipação feminina está demolindo os pilares milenares da sociedade patriarcal. O

* Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, fundador do Instituto daMama do Rio Grande do Sul.

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espelho dos homens está partido e a ferida narcísica é grave, profunda, lançando oshomens na pior crise de sua história, desamparados, sem torniquete à vista para ahemorragia arterial de seu narcisismo. Sendo assim, o pior dos temores dos homensparece estar-se confirmando: o de serem dominados pelas mulheres, uma vez que aestratégia patriarcal clássica de dominar antes de ser dominado está naufragando aolhos vistos.

Recentemente, fui assistir à formatura de minha filha adolescente no ProgramaMini-Empresa da Junior Achievement1. Foi impactante observar a marcada preponde-rância das moças em relação aos rapazes. Em vários aspectos. Havia uma maioria deaproximadamente 60% de participação feminina no programa, média que se vem man-tendo ao longo dos seis anos em que tem sido realizado em Porto Alegre. Com relaçãoàs vendas, proporcionalmente, o número de melhores vendedores foi equivalente ao devendedoras. Na diretoria da mini-empresa, a participação também foi proporcionalmen-te equivalente. Mas o fato que mais chamou a atenção foi a disparada hegemoniafeminina na liderança das mini-empresas. Os estudantes escolhem ao final do programa,segundo uma série de critérios de pontuação, o melhor achiever em sua mini-empresa,ou seja, aquele que mais se destacou no grupo como realizador, como empreendedor.Nesse ponto, elas deram uma goleada de 25 a 3 neles. Alguns dos critérios de pontua-ção definidos pelos participantes para a escolha do melhor achiever foram, por exem-plo, responsabilidade, perseverança, coragem para correr riscos, interesse, assiduida-de, participação, compromisso, liderança, espírito de equipe, e assim por diante.

No âmbito das empresas familiares, é crescente o número de herdeiras que bus-cam preparar-se para encarar o processo sucessório. Nas várias edições do curso deespecialização promovido pela UNISINOS de “Formação de Dirigentes de EmpresasFamiliares”, em que coordenei um seminário, as mulheres eram maioria e ficava patentea maior preocupação das herdeiras em se capacitarem para o desafio de tomar parteativa na gestão do empreendimento familiar, em comparação com os homens, que pare-cem iludir-se com a idéia de que o seu lugar na empresa está garantido pelo simples fatode ser homem.

As fronteiras que separavam os sexos e seus lugares no espaço públicoe privado vêm mudando acentuadamente. É fato conhecido que as mulheres do mundoocidental vêm conquistando cada vez mais espaço, aumentando sua participação navida social, política e econômica. No Brasil, chegam a compor perto de 50% da popula-

1 A Junior Achievement é uma fundação sem fins lucrativos de educação econômica e de negócios.Mini-empresa é um programa de educação econômico-prática que, através do método de apren-der fazendo, proporciona aos estudantes experiências de negócios na organização e operação deuma mini-empresa.

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ção economicamente ativa, já contribuem com 56% do orçamento familiar, já superaramo número de estudantes homens no ensino superior e encaram o trabalho como um deseus principais objetivos de vida.

Nos anos 30, as chamadas “melindrosas” fizeram questão de provar queas mulheres eram tão capazes de fazer tudo quanto os homens em termos de destrezafísica e coragem, indo a público realizar proezas até então creditadas somente ao sexomasculino. Desde então, o mito da supremacia masculina no esporte vem sendo pro-gressivamente ameaçado. Pela primeira vez na história, a delegação brasileira que via-jou em setembro para as Olimpíadas de Sydney teve quase tantas mulheres quantohomens, parecendo derrubar o preconceito da impossibilidade de conciliar os atributosda força atlética com os da condição feminina. Além disto, a diferença de limite dedesempenho entre homens e mulheres diminuiu sensivelmente, embora pareça estartendendo a se estabilizar.

Declarações de atletas brasileiras, feitas à revista “Veja” (19 de abril de2000), são ilustrativas, indicando mudanças de papéis e lugares, e parecem dar o tom àsquestões do relacionamento entre homens e mulheres quando competem nos mesmosespaços ou entre si: “Quando meu filho nasceu, meu marido assumiu também o papel demãe.” (Virna, 28 anos, jogadora de vôlei), “No início, sentia vergonha de fazer musculação.Hoje adoro meus músculos” (Danielle Zangrando, 20 anos, judoca), “Um namorado deuo ultimato: esporte ou ele. Preferi o esporte. Foi a escolha certa.” (Janeth Arcain, 31anos, jogadora de basquete), “Gosto de competir com os homens porque eles me esti-mulam. Eles ficam loucos quando perdem.” (Mauren Higa Maggi, campeã de atletismo).Talvez este último depoimento seja o mais interessante para o nosso assunto aqui.

Pois é, é comum que o homem fique louco quando perde para uma mulher.Sobretudo quando é isso que a estimula. Os homens sempre foram muito competitivos,mas entre si. O panorama atual é completamente outro quando a competição é para valercontra a mulher. Os homens vêm perdendo terreno, e muito, com a mudança de paradigmaque o declínio da sociedade patriarcal denuncia. O sustentáculo da dominação secularmasculina está ruindo, e a tendência, que está ganhando proporções inquietantes, é ade os homens ficarem sem reação diante de uma competição em novas bases, para asquais as mulheres parecem estar mais preparadas, seja em termos de estudo, seja emtermos das novas competências exigidas no mercado de trabalho, tradicionalmentereconhecidas como femininas.

A forma que a loucura diante do perder para a mulher está tomando para oshomens parece ser a da inibição, desamparo e depressão, seguida pela decadência.Parecem simplesmente optar por não competir, jogar a toalha por antecipação, nãoprocurar se preparar para enfrentar uma nova realidade. A passividade deixa assim deser um atributo do feminino, ficando evidente que a polaridade atividade/passividade écaracterística da pulsão, seja no homem, seja na mulher. A iniciativa, hoje, parece estarcom as mulheres, e a passividade do lado dos homens. Isso seria preocupante, pois é

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uma passividade ligada à inibição e sua conseqüente impotência psíquica. No mundodo trabalho, ou nos ambientes de preparação para ingressar no mesmo, como a univer-sidade ou o programa Mini-empresa da Junior Achievement, a inibição das funçõesegóicas do estudo e do trabalho nos homens é gritante, conforme as observaçõesmencionadas acima.

Freud, em “Inibição, sintoma e angústia”, afirma que a inibição é fruto daerotização das funções egóicas, tais como a sexual, a de nutrição, a da locomoção e a dotrabalho, provocando uma restrição das mesmas. Segundo ele, a inibição das funçõesdo ego ocorrem quando os órgãos ligados a elas sofrem uma erogenização ou umaumento de sua significação sexual. Proponho pensar aqui que uma deserotização dasfunções egóicas, um desinvestimento significativo das mesmas tem também como efei-to uma restrição do seu exercício. Vejamos.

A matéria de Veja “Sozinhos. Elas prosperam, eles murcham”, mencionada aci-ma, aborda o fato de que há cada vez mais pessoas morando sozinhas, sendo que asmulheres que vivem sozinhas são independentes, têm grande poder de compra e sabemo que querem, citando uma pesquisa feita em todo o mundo pela empresa de publicida-de americana Young & Rubican. E uma das coisas que elas dizem não querem mais é umhomem querendo mandar em suas vidas. Querem um parceiro sim, mas em outros ter-mos do que os da tradição patriarcal. Do contrário, preferem viver sozinhas. Por outrolado, segundo um estudo do sociólogo Ross Stolzenberg, da Universidade de Chicago,homens solteiros, divorciados ou viúvos tendem a sofrer mais problemas de saúde queos casados, e maridos cujas mulheres trabalham mais de quarenta horas semanais têmcerca de 30% mais risco de adoecer. “Sem mulher para cobrar bom comportamento, eleslevam uma vida desregrada e entram em decadência.” “Os homens são muito depen-dentes das mulheres”, afirma ele. (Veja, 30/8/00, p. 121).

Ou seja, sem uma mulher cuidando deles, como fariam suas mamães, eles adoe-cem mais e vivem menos. A chamada de capa é mais sugestiva: elas prosperam, elesmurcham. A alusão à impotência psíquica é direta. Embora a reportagem não faça men-ção à impotência sexual, sabe-se que é muito comum esta inibição no homem, quandofica desempregado ou ferido em sua potência imaginária de ser o provedor mor dafamília.

Para complicar mais ainda as coisas do lado dos homens, “as mulheres já nãoquerem apenas um homem em suas vidas. Querem um grande homem”, conclui a pes-quisa que a revista americana “Time” e a rede de televisão CNN fizeram (Veja 30/8/00,Time 28/8/00), indagando às pessoas se casariam ou não, se não aparecesse a pessoaperfeita. Nessa pesquisa, os homens se mostraram menos exigentes do que as mulhe-res. Diante da exigência de quase perfeição, muitos se assustam, como um bebê dianteda boca aberta da mãe devoradora, e a saída é a inibição. Murcham. Ou optam tambémpela vida de solteiro, mas com a inclinação à decadência mencionada acima.

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Séculos e séculos de dominação masculina apenas ocultavam outra realidade,que hoje parece indicar franca desvantagem dos homens em relação às mulheres. Asmulheres sempre se viram na posição, muitas vezes imposta, de dependência e servidãoem relação ao homem. Mas a verdade que se evidencia hoje é que a dependência dohomem em relação à mulher é anterior, e o impulso de dominação fica mais para umaformação reativa à mesma. Meio de defesa cada vez mais ineficaz, por falta de mulheresque se disponham ao papel feminino clássico.

Não seria a dependência do homem em relação à mulher um simples deslocamen-to de uma dependência erótica incestuosa não resolvida do adulto-menino com suamamãe? De qualquer maneira, seria revelador da permanência de um gozo que não é ofálico, visto ser este decorrente da operação de castração que interdita o Gozo doOutro. Ou seja, revela um resto de Gozo do Outro materno com seu menino e umainsuficiência de exercício da função paterna. Aqui temos uma fonte da inibição mascu-lina. Delegar à esposa os cuidados com a própria saúde é um exemplo eloqüente dessadependência.

O homem pós-moderno vê sua dependência gozosa do Outro materno sendoexposta, ao mesmo tempo em que é abandonado por sua suposta substituta: a esposa,com quem podia inverter os lugares e iludir-se com a sensação do poder de domínio. Amulher pós-moderna, no entanto, deseja uma relação diferente da tradicional de serdominada e cuidar do marido como mais um filho.

Ao mesmo tempo que a mulher não quer mais ficar cuidando de um meninão, elase independiza economicamente, subtraindo ao homem sua sensação de domínio e depotência fálica pela via de ser o todo-poderoso provedor do lar. Resultado no homem:sensação de desamparo, depressão e falta de cuidados consigo mesmo.

A terceira mulher de que fala Giles Lipovetsky (1997) se agiganta aos olhosmasculinos, confundindo-se com o fantasma do Outro materno pela inflação de Gozodo Outro que ele enxerga nela, uma vez que ela não se dispõe mais a equilibrar agangorra desempenhando o papel de esposa amorosa, submissa, dependente, dona decasa e mãe dedicada. O recado das mulheres é claro: “antes sós do que mal acompanha-das”. Companheirismo sim, controle e domínio não. Os homens, por sua vez, estãopreferindo a via contrária do “antes mal acompanhados do que sós”.

A democracia moderna preconiza que todos têm direito ao falo, logo, a equaçãoimaginária pênis igual a falo perde seu vigor, dando lugar a formas fálicas femininas. Oque a equação falo igual a ... introduz como viés é a idéia de que o falo é alguma coisapositivada, que na tradição estava do lado do pênis do homem, ou melhor dito, da mãee seu menininho. Perde-se de vista, assim, que o falo é antes de tudo o vazio, a falta paraser, que dá lugar ao desejo. O falo simbólico é o significante da falta no Outro.

Para o homem, a competição com a mulher não se dá exclusivamente no terrenoda disputa fálica, como ele está acostumado em relação aos seus competidores mascu-

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linos. Para ele, ela dispõe de um poder mítico absoluto, associado ao poder incestuosodo Outro materno. Isto faz com que ele não se aperceba de que as competências que omercado de trabalho demanda hoje são outras, distintas das de pouco tempo atrás.Essas competências estão associadas às características femininas, mas estão inscritasno registro fálico tanto quanto as tradicionalmente masculinas.

Além disso, ele confunde Gozo do Outro com o gozo Outro, especificamentefeminino, que se estende para além do limite fálico. Ocorre, no entanto, – aspectogeralmente não percebido pelos homens – que para que o gozo Outro, feminino, sejapossível, é preciso que os limites do gozo fálico estejam bem estabelecidos pela opera-ção simbólica da castração. O que não é o caso no que diz respeito ao Gozo do Outro,que não está barrado pela mesma. Para que alguém possa ir além do limite fálico e seentregar ao gozo Outro, é preciso que seu outro permaneça vigiando a fronteira, sinali-zando seu ponto de referência na cadeia significante, pois o gozo Outro feminino é daordem do inominável.

Segundo Maria Escolástica (1995), o gozo feminino está relacionado ao fato dea mulher sempre ter sentido seu corpo como um receptáculo de algo que a atravessa,em função de que o especificamente feminino participa de um certo estado dereceptividade, onde o deixar-se penetrar é o seu modo de se relacionar com as coisas.

Fica evidente que a receptividade do modo feminino de se relacionar com ascoisas, que esse gozo feminino de deixar-se penetrar e atravessar pelas coisas, é angus-tiante para o homem, razão pela qual resiste em buscar se capacitar nas novas compe-tências, tradicionalmente femininas, exigidas no mercado de trabalho tecnoglobalizado.

Quando não se inibem ou deprimem, os homens tendem a se refugiar cada vezmais nas áreas estritamente tecnológicas, onde sua subjetividade é menos solicitada ase expor. Observa-se, nesse sentido, uma acentuação da tendência dos homens a sedirigirem mais às profissões técnicas (ou de se refugiarem nelas), enquanto as mulheresbuscam mais os setores em que o fator humano esteja envolvido, muito embora seobserve, também, seu ingresso nas áreas técnicas.

Por outro lado, no discurso do capitalista (Lacan, 1972), o sujeito vale peloobjeto que produz/consome, eliminando-se assim a diferença sexual pelo viés do so-mos o que temos e consumimos. Nesse discurso, o falo simbólico, este vazio onde osujeito pode advir, é rapidamente cooptado a ser preenchido por uma inesgotável sériede gadgets descartáveis de obsolescência programada, que devem ser substituídosantes que algo da angústia de castração possa denunciar o sofrimento subjetivo soter-rado sob o imperativo ‘do consuma quanto for capaz ou sinta-se excluído!’. E, de novo,temos aí a hegemonia das mulheres. Via de regra são elas que decidem o principal doque e quanto se compra para a família e quando está na hora de trocar. Na economia demercado globalizado, o poder está com as mulheres.

Neste contexto criado pelo discurso do capitalista, a diferença sexual deixa deser o parâmetro decisivo da castração, sendo substituído por outras diferenças. A

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moral sexual pós-moderna não incide mais sobre a diferença sexual, como sugere JeanJacques Rassial (2000), mas, em função do discurso médico higienista, a proibiçãopassa a ser definida sobre a diferença entre fumantes e não fumantes e os que usamcamisinha ou não nas relações sexuais, não importando com qual sexo seja a relação,desde que seja com camisinha. Isto leva, segundo Rassial, a um desinvestimento dacastração e do amor, promovendo a solteirice, com a afirmação do ideal de supressão dadiferença sexual. Isso nos empurra em direção a estados-limite, em que a fronteira fálicase torna uma grande zona cinzenta, onde a depressão é freqüentemente uma posição dedefesa contra a angústia diante da exclusão da subjetividade desejante, e a impotênciase torna generalizada com a paralisia do pensamento. Talvez daí advenha o sintomasocial da drogadição atual como modalidade de eclipse da subjetividade pela via quími-ca: no consumo da droga, há uma renúncia, um apagamento da subjetividade2.

Será uma vitória do modo discursivo da neurose obsessiva, onde a ferida que asexualidade inflige ao campo do Outro – a inexistência da relação sexual – é eliminadapela raiz? Ou seja, se a diferença sexual é a causa da ferida, pasteuriza-se a causa,deslocando a diferença sobre outros pormenores fabricados pela inflação imagináriaque permitam a evitação tão característica do obsessivo ao contato com o outro quevem perturbar seu monólogo com o Outro. O problema é que, ao se promover a exclusãoda diferença sexual, junto com ela se vai o lugar onde a subjetividade desejante advém,pois o falo simbólico, significante da falta no Outro, é forcluído na operação de defesaobsessiva.

Em relação ao poder nas organizações, é conhecido o fenômeno do tetode vidro para as mulheres, sendo aquelas que vão além do mesmo, em direção às altascúpulas, uma minoria, geralmente solteiras, sem filhos e com fortes traços obsessivos.Neste sentido, a antropóloga Helen Fisher, no programa Why Men Don’t Iron, exibidopelo canal GNT, chama a atenção para o fato de que hoje já estão dadas as condições decapacitação e experiência para que as mulheres possam competir por estes postos decomando, e o que é surpreendente, segundo ela, é o fato de que tão poucas mulheres seproponham a isso.

Talvez isso aconteça quando a geração atual da Junior Achievemententre em cena no mercado de trabalho. Por outro lado, talvez seja assim porque elas, emsua sensibilidade feminina, pressintam que é preciso, de algum modo – nem que aindaseja desse – barrar À Mulher aquela, a que reina absoluta para sempre no imaginário

2 Conforme discussão em cartel com Mario Fleig e Conceição Beltrão.

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masculino como Um “que queres?” impossível de responder satisfatoriamente, pormais que se dediquem de corpo e alma a tentá-lo.

Nesse sentido, os homens se inibem diante da emancipação feminina namedida em que, no fundo, erotizam serem dominados pel’A Mulher para fazerem Umcom ela, eliminando a impossibilidade da relação sexual. Sendo assim, sem algumaforma de mediação simbólica, o caminho pela frente parece ser lomba abaixo: inibição,depressão e decadência para os homens e “antes só...” para as mulheres.

BIBLIOGRAFIAESCOLÁSTICA, M. O gozo feminino. São Paulo : Iluminuras, 1995.LACAN, J. Du Discours Psychanalytique. Conferência em Milano, 12/maio/1972 (não publica-

do).LIPOVETSKY, G. La Troisième Femme. France : Gallimard, 1997.RASSIAL, J-J. O sujeito em estado limite. Conferência proferida na APPOA em agosto de 2000

(não publicada).

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

I APRECIAÇÃO PELO CONSELHO EDITORIALOs textos enviados para publicação serão apreciados pela comissão editorial da

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TEMA DO PRÓXIMO NO DA REVISTA DA APPOA

DEPRESSÃO E MELANCOLIA

A depressão e a melancolia são temas recorrentes na atualidade. O que a Psica-nálise poderia ter a dizer sobre isso? Muito mais do que quadros nosográficos, interes-sa-nos, tal qual Freud nos ensinou, lembrar o quanto a depressão e a melancolia contri-buem na compreensão da relação sujeito/objeto, constituinte do ser falante.

Esta edição pretende, ainda, trazer ao leitor um debate atual entre a Psicanálise eas Neurociências, tendo em vista a relevância que estas últimas têm tomado na aborda-gem da depressão e melancolia.

Os textos devem ser enviados, até 15 de março, à Comissão da Revista, confor-me normas abaixo.

IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕESA referência a autores deverá ser feita no corpo do texto somente mencionando

o sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No caso de autores cujo ano dotexto é relevante, colocá-lo antes do ano da edição utilizada.

Ex: Freud [(1914) 1981].As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas. As que possu-

írem menos de 5 linhas, deverão ser mantidas no corpo do texto. A partir de 5 linhas,deverão aparecer em parágrafo recuado e separado, acrescidas do (autor, ano da edi-ção, página).

V REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASLista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em ordem alfabé-

tica pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:

OBRA NA TOTALIDADEBLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gramática inconsciente. 2. ed.

Porto Alegre : Artes Médicas, 1987.LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20. Mais ainda. Rio de Janeiro : J. Zahar, [s. d.].

PARTE DE OBRACALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C. et al. O laço conjugal.

Porto Alegre : Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24.CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O desejo. São Paulo : Comp.

das Letras, 1993. p. 21-9.FREUD, S. Teorías sexuales infantiles (1908) In: _____. Obras completas. 4. ed. Madri : Bibli-

oteca Nueva, 1981. v. 2.

ARTIGO DE PERIÓDICOCHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? C. da APPOA, Porto Alegre, n. 71, p. 12-20,

ago. 1999.HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revista da Associação Psicana-

lítica de Porto Alegre, Porto Alegre, Artes e Ofícios, n. 14, p. 43-53, mar. 1998.

ARTIGO DE JORNALCARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevista com Maria Rita Kehl.

Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 05 dez. 1998. Caderno Cultura, p. 4-5.NESTROVSKI, Authur. Uma vida copiada: prensa internacional reavalia memórias fictícias de

Beinjamin Wilkomirski. Folha de São Paulo, São Paulo,11 jul. 1999. Caderno Mais, p. 9.