milton machado - entrevista

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  • 7/25/2019 Milton Machado - Entrevista

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    Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 20116

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    7ENTREVISTA | MILTON MACHADO

    Cezar BartholomeuAcho interessante comear pensando sua relao com a arquitetura.

    Milton MachadoMinha histria curricular a seguinte: na minha infncia, um tio da Marinha, que

    era capito de mar e guerra, me trazia brinquedos importados, carrinhos com controle remoto e tudo o

    mais. Por influncia dele, eu quis ser da Marinha tambm para poder viajar, ter coisas importadas, mas

    para isso tinha que ser militar, e eu no tinha a menor vocao. Tomei um gosto por montagens, por

    engenharias, a partir de um brinquedo francs que ele me trouxe chamado Mecano, fantstico, com o

    qual voc monta estruturas, helicpteros, rodas-gigantes. Eu brincava com esse brinquedo diariamente,

    montava coisas incrveis, s vezes fugia do figurino dos manuais, fazia coisas que eu mesmo inventava,

    minhas prprias mquinas. Ento eu achei que estudar engenharia seria, alm de uma coisa de gerao,

    vocao. Fiz um ano de engenharia na PUC, em 1964. No meio do ano, comecei a sentir certa dificuldadecom geometria analtica no espao. Achava que era possvel aquilo fazer sentido, mas para mim no

    fazia, era muito alm de minhas possibilidades, de minha realidade construda a Mecano. Some-se

    a isso o fato de eu passar muitas das aulas jogando boliche em uma pista em frente faculdade.

    Comecei a sentir uma dificuldade imensa, primeiro porque era um universo muito diferente do meu

    prprio crculo tijucano na PUC, muitos alunos foram do Santo Incio, eu era do Aplicao, chegavam

    l de BMW, Alpha Romeo, e eu de carona num Fusca. Falei ento para meus pais, que eram muito

    compreensivos: quero mudar de curso. Minha me consultou um psiclogo que me aplicou um teste

    vocacional e apontou que seria aconselhvel eu fazer arquitetura. Que, alis, era uma atividade que meu

    pai exercia, mesmo sem ser arquiteto formado. Fiz vestibular para arquitetura e fiquei at o fim, formei-

    me arquiteto. Fundei com Antnio Jos, que meu amigo at hoje, o cineclube da FAU, que dirigimos

    com nosso entusiasmo tpico de Gerao Paissandu, apesar da interferncia do diretor, que apagava a

    luz da faculdade inteira para nos impedir de mostrar os filmes, obrigando-nos a transferir nossas sesses

    para teatros da Zona Sul, o que acabou nos proporcionando maior visibilidade e publicidade. Foi um

    O QUE EU QUERO QUE VOC VEJA A SOMBRA

    Milton Machado

    Entrevista de Milton Machado a Arte & Ensaios com a participao de Tnia Rivera, Cezar

    Bartholomeu, Livia Flores, Marina Menezes, Rodolfo Caesar, alm de Glria Ferreira e Guilherme

    Bueno, que enviaram perguntas por e-mail no ateli do artista em 14 de outubro de 2011.

    Kosuth Tericoobjeto, cartes impressos, foto, verbetesdcada de 1980

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    cineclube importantssimo nos anos 60. Comecei a estudar cinema loucamente, vi montes de filmes e

    com isso no tinha muito tempo para assistir s aulas. Assistia a poucas aulas, mas participava de um

    grupo de estudos extremamente dinmico com colegas e com arquitetos, como Paulo Cas, com quem

    trabalhei por uns cinco anos.

    Tnia RiveraGrupo de estudos sobre o qu?

    MMSobre arquitetura, basicamente. Muitos de ns trabalhvamos com Paulo Cas e Luiz Acioli num

    escritrio bastante dinmico dos anos 60. Some-se a isso minha aproximao msica. Ainda na

    arquitetura eu j tocava um pouco de violo e comecei a estudar mais seriamente. Estudei sete anos

    de violo clssico, de modo que acho que posso incluir a msica como parte de minha formao. A

    FAU j funcionava no prdio da EBA, que no tinha EBA, que na verdade uma intrusa. Tnhamos uma

    relao muito intensa com aquele edifcio, porque virvamos noites l fazendo projetos de arquitetura

    sobre pranchetas fantsticas desenhadas por Jorge Moreira, com armrios individuais e equipamento

    perfeito, hoje tristemente sucateado. Apesar da distncia, era um lugar que nos acolhia muito. Tnhamos

    professores incrveis, bons arquitetos atuantes, como o prprio Paulo Cas, Henrique Mindlin e vrios

    outros, pessoas bacanas. A atuao poltica no diretrio, do qual eu era representante externo, tambmfoi fundamental porque me fez participar de reunies do DCE, da UME, da UNE. Ento, minha vida era

    isso, assistir a filmes, alguma militncia, ir ao Museu de Arte Moderna; eu me lembro de exposies de

    Genovese, de Ivan Serpa, Flavio Shiro, e tenho quase certeza de que era capaz de sentir o cheiro da tinta

    a leo, que me inebriava.

    TRIsso foi em que ano mais ou menos?

    MM Eu entrei para a faculdade de arquitetura em 1965, me formei em 1970. O prprio fato de

    frequentar o MAM, de estudar cinema, estudar msica, me fazia um peixe fora dgua na engenharia.

    Assim, quando me formei eu j estava completamente embananado, porque, alm de estar entregue,

    como alguns nesta sala, experincia psicodlica com relativa intensidade, havia a experincia musical,sexual, drogal, entremeadas por sesses de anlise de grupo e meditaes budistas. Isso me deixava um

    tanto perdido, literalmente perdido nas minhas tentativas de encontro. Em 1973, fascinado por Robert

    Crumb e companhia, organizei e publiqueiA Esperana no Porvir, uma revista de quadrinhos, o que

    aumentou mais ainda a balbrdia. Lembro que fui ao escritrio do Cas tentar vender a revista,

    todos ficaram chocadssimos: mas voc no arquiteto? Acho que sim, eu devo ter dito, mas isso

    no impede que eu faa revistas em quadrinhos Assim que me formei em 1970 fui para o Instituto

    Villa Lobos, onde conheci Rodolfo Caesar; somos amigos desde ento. Estudei um pouco de msica

    no Villa Lobos, mas comecei a estudar mais seriamente com professores como Jodacil Damasceno,

    Yan Gestzi, entre outros. Isso tudo gerava uma confuso danada, mas produtiva. De uma coisa eu no

    fazia parte de jeito nenhum: ser artista, no havia o menor ... no sabia o que significava isso. Eu noimaginava uma situao de artista expositor, embora eu desenhasse desde pequenininho. Mas houve

    uma circunstncia que me deixou frente a frente com Gilberto Chateaubriand. Ele foi a uma galeria

    muito importante para a histria das artes no Rio de Janeiro Veste Sagrada, depois Central de Arte

    Contempornea para comprar uma coisa qualquer e se deparou com um desenho meu que a capa

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    deA Esperana no Porvir, e comeou a me procurar. Um ano depois ele estaria comprando os primeiros

    trabalhos meus de sua coleo, e assim tudo comeou, um pouco a minha revelia. Sintomaticamente,

    esse desenho se chama O Princpio do Fim.

    Glria FerreiraVoc chegou a frequentar cursos de arte antes de participar da Bienal de So Paulo,

    em 1969?

    MM Acho que s fui frequentar curso de arte quando fiz o doutorado na Inglaterra, se que se pode

    considerar um PhD Fine Arts um curso de arte, em que acabei escrevendo algo mais voltado para a filosofia.

    Da Bienal de 1969 participei como estudante, um concurso internacional de escolas de arquitetura, em

    que nossa equipe tirou segundo lugar, empatando com a da Frana. Nos anos 70, tive umas poucas

    aulas de gravura em metal com Eduardo Sued. Mais tarde, incio dos anos 80, j s voltas com a pintura,

    inscrevi-me no curso de Alusio Carvo no MAM, pensando em travar com ele interlocues mais tericas,

    mas logo sa quando ele descobriu, constrangido, que eu no era exatamente um iniciante, julgando

    que eu no teria nada a aprender com exerccios rudimentares que ele passava para totais iniciantes.

    No me incomodava com isso, mas talvez no fosse mesmo necessria tal iniciao para usufruir da

    sabedoria dele, de pintor e gente fina. Para no perder o dinheiro da inscrio, transferi-me para o cursode serigrafia de Dionsio del Santo, que era genial, experincia da qual resultou uma nica serigrafia

    com tiragem de 1/1. A ocorreu algo semelhante ao encontro com Carvo. Dionsio achou que, antes

    de me aventurar por caminhos mais experimentais e de pretender ambicionar uma linguagem prpria,

    eu deveria soltar o trao. Os catlogos que ento dei a ele causaram a mesma surpresa que causaram

    em Carvo, mas Dionsio me acolheu de modo caloroso, e fui com ele at o final do curso. No sei mais

    como se faz, mas tenho e gosto muito de minha nica serigrafia de impresso nica.

    TR Quando que virou uma arquitetura sem medidas?

    MMNo sei se existe arquitetura sem medidas, mas sei que existe o arquiteto sem medidas, que tento

    ser eu mesmo. claro que existe arquitetura sem medidas, a arquitetura dos jardins de Canterel emLocus Solus, por exemplo. Uma arquitetura sem medidas a que recorre a medidas marotas, peculiares.

    Os metros de Duchamp s servem para levantar construes fictcias, porque se voc construir um

    edifcio com os metros de Duchamp o edifcio vai ruir. A denominao arquiteto sem medidas veio

    com Histria do Futuro. Esse um trabalho que surgiu da vontade ou eu poderia dizer desejo, fazendo

    contraponto com a palavra desgnio, projeto , do desejo de um arquiteto sem medidas preocupado

    com a perda da unidade e sua recuperao. A primeira vez que me deparei com esse problema foi

    quando li um livro escrito em 1938 pelo paleontlogo Alfredo Brando, A escripta pr-histrica no

    Brazil, em ortografia antiga. Ele especulava sobre a existncia do Pangea, o continente nico que foi

    separado por cataclismos, terremotos, no perodo cambriano. Com o instrumental que eu tinha da

    arquitetura, dispus-me a projetar um sistema de pontes gigantescas que, progressiva e artificialmente,iriam reconstituir a unidade perdida. Era um projeto originado de especulaes cientficas, lidas num

    livro de paleontologia, mas que nasce de uma fico, de um projeto utpico, imaginrio, de minhas

    pontes simblicas, sem medidas. curioso, porque se a gente l o Timeu, uma primeira referncia que

    Plato faz Atlntida, uma poro de terra ideal e fantstica, que desapareceu. Um mito verossmil,

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    segundo Francisco Samaranch, na introduo da edio espanhola que tenho. Assim, o arquiteto sem

    medidas surge como o autor desse projeto inexequvel, intil, totalmente especulativo, mas do qual

    emerge a preocupao e, a sim, essa uma medida que se pretende universal de reconstituio da

    unidade. O trabalho comea, ento, com desenhos muito rudimentares, cheios de erros alis, ou melhor,

    imperfeies. A primeira srie de desenhos de HF tem erros, por exemplo na direo em que o Mdulo

    de Destruio caminha, entre outros pequenos detalhes grficos, mas...

    TRErros de continuidade?

    MMSim. Erros na configurao das chamadas Cidades Mais-que-Perfeitas, por exemplo. Eu no conhecia

    ainda a conformao dessas cidades, que s depois fui descobrir, quando percebi que no estava lidando

    apenas com o desejo de construir pontes imaginrias, mas com um problema serssimo, com a prpria

    questo da unidade, uma recorrente idealidade ocidental, vide a busca de unidade doself, unidade do

    planeta, unidade da arte, unidade de Deus, essas coisas todas que perturbam nossa natureza fragmentria

    e que nos fazem aperfeioar cada vez mais a busca da coisa una. Histria do Futurocomea em 1978,

    justamente quando eu frequentava uma especializao em urbanismo na prpria FAU, que no terminei.

    Mas no mesmo andar j funcionava o Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional IPPUR,

    que era excelente. E eu passei l cinco longos anos fazendo mestrado em planejamento urbano. Minha

    dissertao chamou-se Histria do Futuro. Levei o trabalho para l, causando certo problema para mim e

    para eles. Ouo dizer que os bibliotecrios at hoje caminham com o volume Histria do Futuropara l

    e para c sem saber onde colocar. Alis, tenho eu tambm a mesma dificuldade.

    TR um Mdulo de Destruio.

    MMExatamente, um Mdulo de Destruio; eu diria at que minha passagem pelo IPPUR foi um

    pouco assim; talvez eu tenha causado certo rebulio pelo fato de ter reivindicado minha presena l no

    como arquiteto, mas como artista. Fiz questo de me identificar como artista e, na defesa da dissertao,

    tive que enfrentar a banca como tal. Fizeram-me uma pergunta que me colocaria numa situao difcil,

    porque me cobrava interlocues com o planejador urbano. Algo que eu no era mesmo. E que os

    professores do curso tambm no eram. Respondi argumentando que no conhecia nenhum planejador

    urbano. Um economista, que alis um sujeito brilhante, Carlos Vainer, queria me colocar em exigncia.

    Mas eu falei: no posso ter interlocuo com quem no conheo, no conheo qualquer pessoa que seja

    planejador urbano, e nem vocs so. Meu orientador, Carlos Nelson Pereira dos Santos, era arquiteto e

    antroplogo, completamente avesso ideia mais ortodoxa de planejamento. O que estou dizendo que

    uma ideia de planejamento urbano que proponha uma teleologia de projeto e da o controle do espao

    urbano vinha fortemente criticada na dissertao. Afinal, era a tese de um arquiteto sem medidas.

    CBFico pensando na ideia de um problema de projeto e trazer isso para um problema de experincia e

    no mais de projeto. A perplexidade o modo de tirar uma coisa de seu projeto e causar a experincia?

    MMA perplexidade uma inevitvel condio contempornea. Voc tem no incio do sculo 20 a

    necessidade imperiosa da certeza, sem a qual voc no poderia ter Mondrian, no poderia ter Malevitch,

    Histria do Futurodetalhe, 2 de 14 desenhos

    1. Cidades Mais-que-Perfeitas, Mdulo de Destruio2. Cidades Mais-que-Perfeitas, Ciclos de Vida, Destruio e Construo

    1978 em progresso

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    o construtivismo russo, nem mesmo o dadasmo. Mesmo em sua negatividade, o dadasmo tinha certeza

    pelo menos de ser contra a arte, contra o Dada inclusive. o que o Danto chama de Era dos Manifestos.

    Era necessrio que os artistas tivessem certezas absolutas daquilo que estavam propondo. Se pensarmos,

    por exemplo, no temor quase insuportvel que os pintores abstratos tinham do nonsense, que faz

    Kandinsky recorrer ao espiritual na arte, ou Malevitch ao suprematismo, ou Mondrian dizer que s

    existe um caminho para a vida, portanto um nico caminho para a arte, o que se v so veredictos,

    diagnsticos e proposies definitivas. Hoje em dia, se algum lhe apontar o caminho de qualquer coisa,

    voc pode estar certo de que est mentindo. Isso me faz pensar numa proposio muito interessante de

    Jeff Koons. Ele diz: se voc me mostrar uma imagem abstrato-expressionista, ficarei desconfiado de suas

    boas intenes; mas se voc me mostrar algo em que eu consiga ver os pixels, a saberei que podemos

    falar seriamente, porque saberei que voc est me enganando, portanto estaremos combinados.

    Sabemos hoje que s a fico no mente. No temos mais nem a necessidade de ter certeza de alguma

    coisa. Pensemos na derrocada das grandes narrativas, na perda da unidade, na ideia da arte como

    projeto unificador. A perplexidade vem dessa incapacidade, e mais, da inutilidade de termos certezas.

    preciso viver a experincia micrologicamente. Por isso recorro, l nas minhas teorias, at no ttulo da

    exposio (1 = n), um intervalo, aos parnteses. uma ferramenta conjuntural, para tratar no comextenses, mas com intensidades. Por exemplo:(1 = n) um intervalo que fala da indeterminao e,

    ao mesmo tempo, da igualdade. Coloco arte entre parnteses para poder falar dela, de alguma arte,

    durante certa vigncia intervalar. O subttulo da minha tese (arte) e suaexterioridade. Recorro aos

    parnteses para poder garantir muito provisoriamente que estamos entendidos: arte com inicial

    minscula, necessariamente. Ou, se quisermos, de cavanhaque e bigode e com o rabo quente. Uma arte

    que seja nossa, mais prxima de ns, como distncias em proximidade.

    CBComear uma premissa de no certeza.

    MMSim. Qual arte? A arte de Joseph Beuys, a arte de Andy Warhol. Sim, mas qual trabalho? Em qual

    circunstncia? Nesse intervalo, vamos falar que lngua? Em qual contexto? Lygia Clark entra no livroArtSince 1900como arte no ocidental, e eis a um intervalo barra-pesada. Acho at que Paulo Venancio

    cobrou isso do Yve-Alain Bois. E aqui, na palestra que deu em So Paulo, Rosalind Krauss foi extremamente

    fugidia. Recusou-se a responder pergunta, nem sequer admitiu que o livro do qual coautora diz isso

    de Lygia Clark. O livro comete a generosidade de nos reconhecer como no ocidentais. Bem, esses

    intervalos, os parnteses que os demarcam, no devem permanecer para sempre. So como as margens

    de Histria do Futuro, a que me refiro no Texto Descritivo de 1978. Posso inventar qualquer maluquice

    dentro desse universo, porque ali eu sou deus. Estou garantido por aquelas margens, porque aquilo

    desenho,drawing, no design, no projeto. Ento, at segunda ordem, eu no tenho qualquer tipo

    de compromisso de ser consistente com as realidades objetivas, nem com outras histrias. claro que

    faz parte de minha responsabilidade, em determinado momento, romper com essa margem, que (de)limitadora, por isso excludente. Ela deve cumprir o papel de romper-se, de vazar para alm dos papis,

    ou seja, de tratar a relao desse intervalo com outros intervalos. Da a proposio: tudo intervalar e

    modular. Isso tem a ver com o modernismo; foi a que eu aprendi sobre os mdulos, voc cria mdulos

    que funcionem segundo ordens especficas.

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    TRHistria do Futuro uma grande alegoria crtica, mesmo da linguagem de ordem simblica. Voc

    reafirma que ela no se refere a nada, mas voc reconstri uma grande fbula que uma espcie de e

    estou evitando o termo metalinguagem uma espcie de linguagem crtica, autocrtica, que diz respeito

    arte e ao mundo.

    MM Falei que at certo ponto eu poderia me garantir naquelas margens desenhadas a lpis. Esse certo

    ponto pode ser o momento em que eu, estudando a teoria do planejamento urbano com mergulhosprofundos na economia poltica de Karl Marx, por exemplo, e claro por conta de meu interesse

    pela cidade como urbanista e arquiteto senti que meu trabalho era devedor de algum coeficiente

    de realidade. Eu reconhecia que era de minha responsabilidade recorrer a algum tipo de mecanismo

    que derrubasse os parnteses. Isso aconteceu radicalmente na Siclia, onde vivi uma experincia

    absolutamente mgica. Eu estava na Itlia por conta de uma exposio. Fui o curador e convidei quatro

    artistas [Cinque Artisti Brasiliani: Angelo Venosa, Daniel Senise, Frida Baranek, Ivens Machado, Milton

    Machado, Sala Uno, 1990] para uma coletiva em Roma, e como decorrncia surgiu o convite a mim e

    Ivens Machado para fazermos individuais numa pequena cidade siciliana chamada Gibellina, destruda

    em 1968 por um terremoto, que abriga um museu importante e inmeras esculturas pblicas. A Siclia

    um lugar muito inspito, totalmente isolado de tudo, um lugar onde voc percebe o isolamento deforma muito clara. Pois bem, eu fui para uma cidade destruda por um terremoto. Ora, em Histria do

    Futuro, a origem dos chamados plissements, que remetem s fissuras na crosta terrestre de que fala

    Alfredo Brando, so geolgicas, so terremotos, cataclismos, o que j traz uma primeira analogia. Pois

    eu estava ali, instalado nessa nova Gibellina, absolutamente nova, construda ao lado de uma cidade

    velha destruda por um terremoto...

    TRA analogia vem depois, e no antes

    MMA analogia vem depois, so as histrias do futuro, que vm com as simbologias. Alm disso, as

    coincidncias no so coincidncias, so histrias coincidentais. Que se sucediam de forma vertiginosa!

    Quando cheguei ao espao em que fizemos as exposies, um prdio inacabado, ainda em construo lembrando que em Histria do Futuroh um Ciclo de Construo, um Ciclo de Vida e um Ciclo de

    Destruio havia l, como que esperando minha presena, uma sequncia de pilares de concreto

    armado, vazios. Pois me pareceu bvio que sua funo era a de receber o Mdulo de Destruio!

    E foi exatamente o que fiz; meu cubo est l at hoje e nunca mais vai sair, a no ser que apodrea;

    foi adotado pelo edifcio e pelo arquiteto como escultura pblica permanente. Est plantado sobre

    Pilares do Novo Mundo, que foi como passei a enxergar os pilares outrora vazios de Gibellina, que so

    elementos do chamado Mundo Perfeito de Histria do Futuro.

    E a veio a esfera, representao do Nmade. Lembrem-se de que a origem do trabalho a separao

    dos continentes. Olho pra ela: uma bola de mrmoreportoro, pea que foi desviada de uma construoonde funcionaria como terminao de uma balaustrada. E a eu vejo, marcados pela natureza, pelos

    deuses meridionais, em ouro sobre negro, os continentes desenhados na superfcie da esfera! Pensei: os

    deuses esto me provocando, querendo que eu leve minhas analogias at o fim. E assim foi: bem em

    frente ao prdio onde expus havia uma igreja de forma e gosto duvidosos: uma esfera atravessando um

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    cubo! Que remete, justamente, situao crucial em Histria do Futuro, em que o Nmade, que uma

    esfera diminuta, atravessa o Mdulo de Destruio, que um imenso cubo.

    Isso me fez repensar, mexeu comigo e com o trabalho. Embora possa ser muito interessante, potico,

    muito belo at, eu dizer que o O Nmade se move [do texto Fast Forward, Histria do Futuro] ou

    dizer que o que importa o caminho, coisas que tirei de minha prpria cabea ou de citaes filosficas

    interessantes, ali eu olhava em volta e via pessoas reais no papel do Sedentrio, do Nmade. Todos

    esses personagens conceituais estavam conversando comigo, numa lngua que eu, alis, no entendia,porque, se eu falava bem italiano, muitos deles s falavam bem siciliano. Era uma situao intervalar, em

    que as analogias que eu propunha como possibilidade do trabalho, at como uma espcie de libi para

    justificar o trabalho, caam por terra, ou caam do cu com a fora dos cataclismos, fazendo-me deparar

    com realidades no mais Mais-que-Perfeitas, mas mais-que-totalmente-objetivas.

    Nmade de Histria do Futuro, 1978escultura, detalhe da instalaoin Interventi, Museo Civico Gibellina 1990-91

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    TRA realidade vem depois da fico.

    MMExato. uma espcie de confirmao, justamente, da perplexidade. Isso acontece muito em meu

    trabalho, e de certa forma me causa sobressaltos como, por exemplo, desenhar uma paisagem de

    meu quarto para, na mesma semana, sofrer dois assaltos consecutivos, em que me roubaram exatamente

    os objetos que estavam no desenho.

    Livia Flores Acho curioso, ouvindo esse seu relato de vida e de trabalho, como os ttulos acabam se

    amalgamando. Fico pensando em Homem Muito Abrangente, em Sobre a Mobilidade. Voc fala da

    situao em que o Gilberto vai l e compra seus trabalhos, voc diz que ali voc no estava na posio

    de artista, foi um acidente. Depois voc est numa banca de defesa de mestrado, e ali voc se afirma

    como artista. Fico pensando no trabalho sobre a mobilidade que faz do mvel imvel e do imvel

    mvel... esses modos de mobilidade.

    MM, a mobilidade. O Nmade se move, mas no o nico. A exposio Sobre a Mobilidade, no Pao

    Imperial em 2001 e que depois itinerou por Braslia e So Paulo, tratava de uma situao especfica, tinha

    a ver com meu retorno para o Brasil. Os ttulos so importantes para mim. Somas e Desarranjos outro

    ttulo importante...

    LFUm homem muito abrangente, voc fala de inmeras possibilidades

    MMO ttulo o fim, no mais so vitrines. Essa era uma de minhas pequenas tentativas poticas no

    catlogo da exposio Somas e Desarranjos [Galeria Saramenha, Rio, 1985]. Havia pinturas ntegras

    na vitrina da galeria, quando l dentro aconteciam operaes desconstrutivas extremamente elaboradas

    e matemticas. As somas so importantes, mas os desarranjos so mais, porque se somam s somas.

    Havia o sloganver as coisas pela metade para conhec-las em dobro. Enfim, essa derrubada, essa

    desconstruo, j est no prprio projeto; ento, o ttulo o fim, no mais so vitrines porque, se chego

    ao ttulo, como se o trabalho estivesse pronto para acabar. No que ele acabe, o trabalho no acabanunca; tem o trabalho e depois tem o trabalho do trabalho, que muitas vezes se pode apelidar de arte, o

    trabalho do trabalho da escultura, da pintura, da fotografia, do filme. Pode-se chamar de arte o trabalho

    do trabalho, no aquele objeto que ali est, prostrado, inerte. o trabalho do trabalho que faz com que

    a arte esteja sempre procura, at de si mesma. Assim, se eu chego ao ttulo porque, de certa forma,

    cheguei necessidade dessa demonstrao. CQD como queramos demonstrar. O ttulo nunca aparece

    antes, sempre depois. Histria do Futuroj se chamou Histria do Processo, e se voc for aos originais

    ver que est escrito Histria do Processo, antiga Histria do Futuro, que preferi no apagar. Isso me

    diverte, eu me arrependi de chamar Histria do Processo, antiga Histria do Futuro, de Histria do Futuro.

    Histria do Futuro um ttulo do futuro para um trabalho em processo, em progresso.

    TRVoc acha que essa diverso no fortuita em seu trabalho, existe uma diverso que uma toro

    que feita...

    MMNo fortuita, h uma certa maldade, no sentido maldoso, uma certa travessura. Sobre a Mobilidade

    o subttulo do trabalho Edifcio Galaxie. Fotografei os originais de Edifcio Galaxieem 1975, quando

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    o carro era 0Km, um Ford Galaxie verde-metlico que era do pai de um amigo. O edifcio tambm era

    novinho, nem tinha sido inaugurado, na esquina da Farme de Amoedo com Vieira Souto. Em 1975,

    cliquei as 36 fotografias de um filme, mas s descobri que aquilo podia tornar-se um trabalho em 1982,

    quando ampliei as sete fotos finais. A descobri que havia em uma delas um grupo de capoeiristas

    que conheci em 1978, quando eu era capoeirista amador. Portanto, conheci os caras em 1978, os

    fotografei em 1975, mas s fui descobrir isso em 1982! E tem mais, eram capoeiristas, no eram

    jogadores de pquer. Nada mais mvel do que um capoeirista. Em 1990, quando estava na Siclia, perdio negativo original, que havia feito a partir de fotomontagens manuais, construdas com tesoura e cola.

    Os laboratoristas sicilianos, quando ampliaram as fotos, perderam justamente a tira do negativo com

    os capoeiristas, e tive que fazer novo negativo a partir de uma reproduo. No lugar de minha tira de

    negativos veio outra, com imagens de um aniversrio de crianas. Crianas que, na minha cabea, s

    podiam ser sicilianas, naturalmente. Ento vim para o Brasil e mostrei ao Z Roberto, que me ajudou com

    as ampliaes em 1982, e ele disse: Que crianas sicilianas qual nada, este aqui o Joo, meu filho!

    E eu: Z, como que um negativo da festa do teu filho em Terespolis foi parar na Siclia? Claro que

    pode vir algum gaiato e explicar que a tira sempre esteve dentro do envelope. Mas eu no quero ouvir

    isso, sabe, no quero ouvir. Que tipo de pergunta essa? Essa daquelas perguntas que no so para ser

    feitas. Perguntas que, se fossem ouvidas, poderiam vir a comprometer at o mito verossmil da Atlntida,que inaugura toda a cosmologia do Plato, a criao do mundo, o Universo. como na Utopia, de

    Thomas More. Algum est descrevendo aquele lugar, aquela agricultura, aquela economia saudvel e

    tudo o mais, e a vem um cara e pergunta: Existe mesmo esse lugar? Um outro algum ao lado tem um

    ruidoso acesso de tosse, de modo que a pergunta no ouvida. Sempre que a pergunta feita, algum

    Edifcio Galaxie (sobre a mobilidade)7 fotografias, fotomontagens, vdeo

    detalhe, 1982

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    17ENTREVISTA | MILTON MACHADO

    tosse e no se ouve a pergunta... O curioso que Thomas More admite e inclui o risco da pergunta, isto

    , a pergunta pode vir a ser feita; portanto preciso cuidado com as proposies, assim como preciso

    cuidar dos rudos que as cercam. Cuidar da tosse, da rouquido, por assim dizer, junto com a bela voz.TRVoc usa frequentemente um discurso pseudocientfico, acho que como uma espcie de pardia.

    Voc traz uma diverso que , talvez, o que faz o Investigador entrar em frias.

    MMO Investigador est em frias; em frias porque ele/eu precisa ser, precisa dar uma de Artista. Na

    verdade, so uma mesma coisa, em diferentes personificaes. Quando comecei a pensar no vdeo que

    faz parte da coleo do RioArte [As Frias do Investigador, direo Arthur Omar, 1994], eu seria um ator

    travestido ora em Madame, ora em Artista, ora em Investigador, que uma triangulao perfeita, um

    personagem no existe sem o outro. Quando est investigando, o Investigador est desenhando, sua

    demonstrao toda desenhada com cores, formas e tudo mais. Quando ele se retira em frias entra

    em cena o Artista, no mesmo lugar em que a investigao se passou, beira da piscina de Madame.So coisas concorrentes, so falas, investimentos concorrentes para demonstrar uma situao sem sada,

    sem soluo, porque emAs Frias do Investigador a pergunta crucial, Afinal, quem a vtima? no

    respondida (mas formulada, sem acessos de tosse). Na exposio [Galeria Cesar Ach, Rio, 1981], se

    voc conheceAs Frias do Investigador, a resposta que ele consegue decifrar : O artista matou a vtima

    Screwpintura, de Somas e DesarranjosRio de Janeiro 1985

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    da integridade, de uma unidade de pintura; que a mobilidade, as transaes, os contrabandos, as trocas

    de posio e outras molecagens que usei para desconstruir ou construir aqueles objetos no conseguiam

    comprometer a potncia da imagem. Acho que o que garante a permanncia da pintura o interesse

    na imagem, mas sem privilgios, porque h o cinema, h o desenho, a fotografia e todos os meios pelos

    quais as imagens circulam sem cerimnia. A pintura no est mais discutindo pintura em sua eventual

    autonomia, e isso vale para a fotografia, o cinema ou qualquer outro meio. So, propriamente, meios.

    Em relao ao discurso pseudocientfico, ou pardia, gostaria de lembrar o problema da bola de

    pingue-pongue que atravessa a parede de concreto. Claro que no possvel isso acontecer. Mas no

    me interessa saber se possvel; quero saber se provvel. O professor que props esse problema de

    fsica terica para meus amigos que estudavam engenharia no IME quando eu estudava na PUC no

    era nenhum maluco de propor isso, pois a premissa uma s: isso no possvel. O enunciado pedia

    que se calculasse o nmero que expressaria a probabilidade de uma bola de pingue-pongue atravessar

    uma parede de concreto. A resposta objetiva tambm uma s: (1x10)nquando n tende ao infinito.

    No 0, at segunda ordem. O estudante preguioso que respondesse zero se daria mal, porque o

    professor retrucaria: voc no enfrentou o problema, no considerou o problema como problema. No

    estou querendo discutir possibilidades, pois j sabemos que, na prtica, isso no possvel. Eu quero

    que voc prove que, em teoria, a bola pode atravessar, nem que para isso voc tenha que recorrer a uma

    fsica alternativa, a uma patafsica. O que estou querendo discutir no da ordem das possibilidades,

    mas das probabilidades.

    CB O problema ser verossmil... O esprito do seu trabalho essencialmente antitcnico, ento a

    resposta s responde ali, depois ela

    MM uma resposta em andamento, na verdade uma demonstrao em progresso. Se eu estiver

    correto em meu entendimento de Montaigne, possvel provar que esses culos, que esse objeto que

    tenho na mo um ovo amarelo. claro que no , se voc estiver falando em nome da claridade, daluz, mas o que eu quero que voc veja a sombra, o monstro, a mscara, o rabo quente da Mona Lisa.

    Como fazer isso? Voc cria um intervalo, abre parnteses, e bota ali dentro o que voc bem entender

    porque o trabalho, a demonstrao sua. At segunda ordem, porque depois vm os julgamentos.

    Histria do Futuro julgado em Gibellina, embora aquelas pessoas no tenham a menor ideia de que isso

    aconteceu l. Se a cincia d conta disso ou no, a cincia terica pelo menos, eu no sei. O importante

    que certas circunstncias nos levam a fazer coisas alternativas, muitas vezes incertas. Estou sempre

    mudando de uma situao para outra.

    TRVoc chama isso de negociar uma posioo Nmade, o Mdulo de Destruio

    MMO personagem Nmade mnimo, infinitesimal, minscula a escala dele, s que esse Nmade, emalgumas situaes, como na instalao da 29aBienal e em Gibellina, precisa crescer e tomar o aspecto

    de uma esfera de mrmore, como representao. Mas essas so representaes tridimensionais. Nos

    desenhos de Histria do Futuro o Nmade no aparece, apenas aludido. J o Mdulo de Destruio

    um imenso cubo. A representao grfica de alguns elementos desse trabalho uma questo curiosa.

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    Como representar, por exemplo, as Cidades Mais-que-Perfeitas, j que no dispomos de modelos

    para isso? Um modo imediato seria partir das cidades imperfeitas, das cidades familiares pelas quais

    circulamos, dos marcos culturais que conhecemos. Sendo esse o caso, talvez a melhor representao

    fosse um espelho, em nome das semelhanas, do mimetismo. A negociao de posies entre o Nmade

    e o Mdulo de Destruio a negociao de suas diferenas. Isso o que promove o movimento.

    TR Voc situa o Nmade como artista, e ele que trapaceia, ele que de alguma forma introduz uma

    presena, ele um intruso que consegue driblar alguma coisa, transformar alguma coisa nesse esquema

    to perfeito.

    MMNos textos de HF, o Nmade referido como a figura emblemtica do Homem criador. Na

    verdade o Nmade um aplicador de cosquinhas, que faz ccegas no Mdulo de Destruio, de modo

    a provocar sua agitao. So vrias as leituras, algumas anedticas. um mecanismo, um relgio, um

    jogo perfeito, um videogame, uma perseguio Tom & Jerry. Lembro-me, na defesa da tese de mestrado,

    de algum perguntar: mas por que o Nmade s pode mudar de cidades passando pela Posio Alfa?

    Dei uma explicao, digamos, tcnica, mas que no vem ao caso agora. Eu tambm poderia ter ditoque assim porque sou deus nesse trabalho. O que importa que o Nmade vai ao encontro do

    Mdulo de Destruio, que ocupa justamente a Posio Alfa. Pois a que vo se dar as negociaes de

    posio. No a Posio Alfa que negociada, e sim a Cidade Mais-que-Perfeita contgua que vai viver

    um Ciclo de Vida. Para passar a essa nova cidade e continuar vivendo, para adquirir a tal forma mvel

    de eternidade, o Nmade ter que passar por dentro do Mdulo de Destruio. Mas quem disse que

    o Mdulo quer? H, no trabalho, uma leitura possvel desse encontro, s vezes blico, s vezes ldico,

    como um intercurso amoroso, sexual. Plato se refere em determinado texto transao entre a Alma do

    Mundo e a Teoria, com a ideia de bom e de belo, como um encontro sexual, do qual nascem filhos: os

    discursos, as obras, a poltica. Na verdade, uma grande e banal proposio de Histria do Futuro que

    as diferenas produzem o movimento, do qual o Nmade causa ativa.

    TREssa proposta uma leitura alegrica da arte numa dimenso poltica de negociao das diferenas,

    trapaas, jogos, contrabando.

    CBO atraso que os parnteses determinam um atraso da ordem da negociao e um atraso temporal

    tambm, a analogia vem depois, o mundo est atrasado.

    MMH a formao de uma cadeia, um adiamento permanente. A potncia poltica dos trabalhos,

    sejam eles quais forem, est nessa possibilidade de ocupar vrios espaos, de migrar de uma cidade para

    outra, de buscar e atravessar mdulos de destruio. Se no fosse assim, no teramos mais arte, aarte teria seu universo especfico e delimitado. Ningum teria mais pacincia para a arte, porque se a arte

    no tivesse dado essa escapadela com a bunda quente que Duchamp diz que ela tem, se no tivesse se

    travestido em outra coisa que no arte e sado por a rebolando, o que mais poderamos estar fazendo

    em seu nome? Rezar?

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    21ENTREVISTA | MILTON MACHADO

    Marina MenezesVoc poderia falar sobre sua tese? Os parnteses no ttulo implicam exterioridade?

    MMO ttulo da tese After History of the Future, que em portugus mais complicado porque fica

    Depois de Histria do Futuro, comoArt After Philosophy, que foi traduzido comoArte Depois da Filosofia,

    quando talvez fosse mais correto Arte Segundo a Filosofia. Mas no me incomoda tanto a traduo

    DepoisdeHistria do Futuro, que como traduzo mesmo. No original, chama-se After History of the

    Future: (art) and its exteriority.Isso parte de uma constatao muito confortadora para mim, de que aarte no existe. Mas no como diz o Gombrich, que diz que arte no existe, o que existe so os artistas.

    Digo de outra maneira: digo que nada existej como arte, nada acontece como arte, assim como nada

    acontece como histria. Se voc no escrever, e se no escrever bem, voc no vai conseguir colocar

    a arte nos lugares em que as coisas bem escritas esto bem escritas e fazem histria, e a nada vai virar

    arte. Estou falando de julgamentos, do trabalho do trabalho. E estou, de certo modo, apelando para a

    lgica do evento.

    MMzOs parnteses, a definio, como uma forma de delimitar determinado sentido.

    MM Exatamente. Assim como nada acontece como histria, nada acontece como arte. Arte no existe

    seno como negociao de sua exterioridade. Eu apelo para Heidegger, uma argumentao dele quej est manjada, a questo do Lichtung, a clareira, em A Origem da Obra de Arte. Eu gosto muito

    disso, de sua ideia de uma fissura constituinte. A clareira uma fissura, um vazio, que apesar ou por

    conta de no ter rvores, voc percebe, justamente pela claridade, que aquilo uma floresta mais

    facilmente do que se voc estiver em uma floresta densa, porque a voc percebe a relao da floresta

    com o que est fora. A clareira a sombra da floresta. Negociao de posies, como em Histria do

    Futuro. Essasuaexterioridade o que o trabalho tem de mais potente, porque a partir desse potencial

    que est a dentro, latente, que voc vai produzir os julgamentos capazes de levar ideia de que aquilo

    seja arte. Pensar a lgica do evento me ajuda a lidar com isso muito bem. Infelizmente, a palavra em

    portugus foi traduzida como acontecimento, que me parece uma traduo equivocada, pois o evento

    seria justamente o contrrio do acontecimento, evento aquilo que s acontece eventualmente. Chama-

    se vnement, event e traduz-se como acontecimento, ou seja, o carter eventual da ocorrncia a

    traduo joga fora. O evento uma coisa inusitada, to inesperada que quebra todas as expectativas;

    voc tem que reorganizar, expandir, reagrupar, renomear as coisas para poder caber aquilo, aquele

    evento, ou seja, para que aquilo seja incorporado como histria, como arte etc. E arte precisa dos

    julgamentos; no adianta voc botar um mictrio l no salo dos independentes porque mictrio no

    vira arte, assim como bolas de pingue-pongue no atravessam paredes. Fonte, o readymade, demorou

    meses para ser visto e nem foi visto como Fonte nem como readymade; foi visto como fotografia,

    correndo, portanto, o risco de ser visto como mictrio. O trabalho ficou conhecido por meio de uma

    foto de Stieglitz publicada numa revista, com a legenda: o trabalho de Marcel Duchamp recusado nosalo. E entrou para a histria das artes visuais sem nunca ter sido visto, a no ser muito mais tarde,

    em suas consagraes. Portanto, negociar uma posio no brincadeira. Ento, o que eu falo sobre

    exterioridade isso, a negociao com o que no arte que mostra a eventualidade, aprobabilidade

    de aquilo ser entendido como arte, discutido como arte, politizado como arte, porque muitas vezes voc

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    Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201122

    coloca aquilo no universo da arte e o trabalho perde potncia poltica. O trabalho do Ilya Kabakov, por

    exemplo, incrivelmente poltico, to potico que, colocado em determinadas circunstncias, poderia

    virar um trabalho quase alegrico. Estou falando mais especificamente de um trabalho lindo no qual ele

    pede a pessoas quaisquer que tenham ideias, boas ideias [The Palace of Projects, Roundhouse, Londres:

    http://srg.cs.uiuc.edu/Palace/projectPages/palace.html]. Um motorista de txi sugere: todos os mortos

    deveriam ser ressuscitados. tima ideia! Outra: poderamos ter uma escada individual que nos levasse,

    cada um de ns como fazemos com nossos orixs , uma escada altssima s minha para eu conversar

    com o meu anjo da guarda, exclusivo e pessoal. Perigoso? Claro que no, o anjo da guarda protege. Era

    maravilhosa a exposio. Exibicionalidade uma ideia da Sonia Saltzstein que me parece importante.

    Usei esse seu conceito em um texto que escrevi, exemplificando com o trabalho do Kabakov, como o

    contrrio da exibicionalidade. Simplificando, a exibicionalidade que, claro, um neologismo, se refere a

    trabalhos que se valem e dependem da condio de exibio. Nesse trabalho de Kabakov voc se senta

    no banco de trs e v o artista na frente conversando com o motorista do txi; voc v o processo, refaz

    a histria do processo. V da exposio para trs. Curioso que ele expe isso na Roundhouse, que era

    onde o bonde literalmente fazia a curva, em Londres, para voltar atrs. Ele construiu nesse lugar uma

    espcie de espiral de madeira, bem tosca mas belssima tudo ali era tosco e belssimo. Por exemplo,os mortos ressuscitados saam de uma caixa de papelo cortada com tesoura, totalmente mambembe,

    cheia de terra preta com bonequinhos recortados em papel branco, mal enfiados, tortos, amassados.

    Era to rica aquela porcaria toda, aqueles trapos, aquelas bolas de isopor pintadas com guache de

    papelaria... era absurdamente potico. No havia nenhum aparato seno a prpria linguagem. Fiquei

    muito impressionado com o despojamento desses trabalhos, que contraponho minha irritao atual,

    que j vem de longa data, com trabalhos polidos. Tem-me irritado essa coisa reluzente, bem acabada, eu

    no tenho mais muito tempo para gostar desse tipo de trabalho.

    Mdulo de Destruio na Posio Alfade Histria do Futuro, 1978

    escultura, detalhe da instalaoin Interventi, Museo Civico Gibellina 1990-91

    Mdulo de Destruio na Posio Alfade Histria do Futuro, 1978

    escultura, detalhe da instalao29aBienal de So Paulo, 2010

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    alinhar a Beuys, que embora seja um artista incrvel tem um qu de messianismo, aquela coisa romntica

    alem, voos e quedas da Luftwaffe, gordura e cera demais, que me importunam um pouco. Pode ser

    verdadeiro que todo homem um artista. Eu ando lendo algo cujo subttulo todo artista um

    artista. Melhor assim, todo artista um artista, uma vez que todo homem um homem. O Nmade

    uma esfera, mas nem toda esfera um nmade.

    TRMas o Homem Muito Abrangente um nmade, o Nmade um homem muito abrangente.

    MMNo, veja, o Nmade uma esfera. OHomem Muito Abrangenteno feito de fatos, ele tambm

    no existe, outro personagem conceitual. A frase escrita na parede pelo assistente do atirador de facas,

    que na performance sou eu mesmo, fornece o aporte terico: Um homem to abrangente que ocupasse

    o mundo todo menos o prprio espao de seu corpo poderia sair-se muito bem como assistente de um

    mau atirador de facas. um enigma, de certa forma. Outro dia eu me peguei escrevendo algo assim: a

    verdade uma resposta a perguntas que no admitem respostas porque s admitem a verdade. Escrevi

    esse negcio e isso mesmo, tem a um jogo de palavras que cria uma situao meio tongue in cheek.

    Homem Muito Abrangenteperformance, instalao, detalheInstituto Tomie Ohtake, So Paulo 2002

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    Ento preciso ir costurando a coisa aos pouquinhos. O mau atirador de facas vai acertar todas as facas

    no interior da figura. No texto de Homem Muito Abrangente, cito o personagem de Daniel Auteil no

    filmeA mulher do atirador de facas, que diz: o importante no o atirador, o importante o alvo. No

    caso do meu atirador de facas, ele faz o papel de um mau atirador no no real, porque ele um timo

    profissional; ele um mau atirador porque erra tudo, cravando as facas todas dentro da figura. Num

    regime cotidiano ele teria matado sua pobre assistente vrias vezes. Nesse caso, no h problema em

    errar, porque o Homem Muito Abrangenteno ocupa este espao, o espao de seu corpo, o espao que

    lhe prprio. Antes da performance, escrevo a palavra PELE em todos os lugares que consigo alcanar,

    at na prpria cmera, no vdeo, nas paredes, no cho, no mundo todo. O ttulo do texto, alis, Este

    corpo todo poros.

    TREle muito abrangente, mas ele no est dentro dele mesmo, ele est fora.

    MM, ele tem esse dilema da interioridade e da exterioridade porque um hbrido, um impuro, porque

    no tem nada de prprio; e, no entanto, ele pura exterioridade. Um sujeito que pura relao.

    CBNessa relao com os personagens conceituais, eu tenho a sensao de que a primeira vez que

    o corpo implicado diretamente no seu trabalho porque o tempo todo ele est sub-reptcio nospersonagens, na questo do movimento, no dilogo. A tem efetivamente o atirador.

    MMNa verdade, foi a primeira e nica performance que fiz em minha vida. Homem Muito Abrangente

    um desenho de 1978, em aquarela e nanquim, que originou as performances de 2002, 2003 e 2006.

    Desenho, alis, que deixei inacabado.

    CBTodos os seus trabalhos potencialmente so alcance, se modulam e podem estar aqui, podem estar

    no futuro.

    MMEu gostaria muito que isso fosse verdade.

    CBBasta calcular quanto demora a probabilidade de viver para sempre.

    MMA tal forma mvel de eternidade? Mas, enfim, quanto ao desenho de 1978, no terminei porque

    perdi o saco de desenhar faquinha com aquarela e o expus todas as vezes que fiz a performance. Em

    2002 veio o convite do Instituto Tomie Ohtake, para participar de uma exposio chamada Territrios,

    com curadoria de Agnaldo Farias. Eu sempre estive a fim de realizar esse trabalho, e arrisquei. Voc

    pode imaginar o terror que senti, no s porque eu estava pela primeira vez fazendo uma performance,

    mas por ter que contar com a boa pontaria de um mau atirador de facas em um lugar que no era

    propriamente o meu circo. Mas o pnico do meu bom atirador, que certamente nunca ouviu falar de

    Vitruvio nem de Leonardo, era ainda maior.

    TRUm atirador de facas que o Mdulo de Destruio.

    MM o que lhe digo, possvel fazer articulaes, que me surpreendem o tempo todo. Por exemplo, um

    trabalho anterior a Histria do Futuro uma srie de oito desenhos chamada Poder, que um prenncio,

    uma espcie de esboo de Histria do Futuro. Mas se eu vou l atrs e vejo uma srie ainda mais antiga

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    Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201126

    como A Invaso, que vira A Evaso, que vira ao contrrio, pelo lado avesso; ou se vejo uma estao

    que vira trem, um avio que vira pipa, um jornaleiro que vira bicicleta, um 1 que vira 7 [srie CQD,

    anos 70], caramba! tudo a mesma coisa, e tudo parece comear com O Princpio do Fim, que esse

    tal desenho que o Gilberto comprou e que foi capa deA Esperana no Porvir. As esperanas no porvir

    produzem histrias do futuro. Chamava-seA Esperana no Porvir, e o que aconteceu, naquele presente,

    com o esperanoso no porvir? Fui preso! Fiz a revista e fui preso, preso por agentes da elite da represso

    brasileira, o SIEX, Servio de Informao do Exrcito. No apenas por conta do contedo subversivo da

    revista, tudo ali era subversivo, era uma revista clandestina, udigrudi, hippie, da contracultura, mas isso

    s ganhou importncia depois. O que me levou mais imediatamente priso foi eu ter invadido, sem

    querer e sem saber, a casa do novo presidente da Repblica, Geisel, que antes de ir para Braslia ocupou

    uma casa no Jardim Botnico, onde eu estava passeando e fotografando. Nas definies de Histria

    do Futuro, o Nmade descrito como um passer-by, um passante, que tem dificuldade em reconhecer

    limites e fronteiras, mas no tem dvidas quando est sendo alvejado, quando invade o pomar do

    proprietrio da terra para colher mas e o sujeito atira nele. Eu nunca havia pensado nisso, nessa nova

    articulao, pensei agora: eu fizA Esperana no Porvire fui alvejado porque invadi a casa do presidente

    da Repblica.LFPara pegar ma.

    MMPara pegar ma, ou abacaxi, que seja, tudo muito coerente. Ento, eu no preciso me preocupar

    em dar coerncia, porque o mundo to absurdo, to coerentemente nonsensical, as coisas so to

    inacreditavelmente eventuais e se demonstram o tempo todo, como CQDs que so demonstraes do

    absurdo pelo absurdo. Voc pode, na matemtica, fazer demonstraes por absurdo, s que no caso

    essas demonstraes por absurdo demonstram justa e exclusivamente o absurdo.

    CB H a expresso latina reductio ad absurdum; ao absurdo, mas, no seu caso, nada de reduo, mas

    diferena... no por reduo mas por diferena, digamos assim.

    MM Eu no sei, algumas vezes

    preciso reduzir. Uma coisa at da

    guerra, fique pequenininho, esconda-

    se, reduza-se a sua insignificncia,

    reduza a coisa insignificncia. Se

    voc pensar no readymade, acho

    que traduz bem, se voc reduzir

    totalmente a fala prpria do mictrio

    voc no vai mais ter mictrio e voc

    no vai ter uma fonte, porque umafonte um emissor e o mictrio um

    Trem analisadodesenho, srie CQD1973

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    receptor, ele recebe o seu xixi. Se voc retirar, se voc silenciar, reduzir totalmente a fala, a vibrao do

    mictrio ou da roda de bicicleta, voc no vai ter possibilidade alguma, quando girar l os potencimetros

    de seus aparelhos amplificadores, de ouvir os rudos da significao, porque as coisas adquirem

    significado pela produo de rudos, no pela produo dos belos sons, das eufonias. como diz o

    Derrida, voc no pode estar sempre na transgresso, preciso que aquilo que transgride venha a ser

    incorporado. a questo da tradio, voc primeiro trai, de tradire, depois traduz, de tradure, e a coisa

    ordinria incorpora o extraordinrio. Se a coisa no produz rudo, se a pintura do Matisse da mulher com

    pincelada verde no fosse estranhada de forma to absurda como uma pintura absurda, se o mictrio

    no tivesse... alis, repare como era sortudo Marcel Duchamp, o cara foi recusado em todos os sales,

    com o Nu, com Fonte.... Ento, so trabalhos que produzem atrito, que produzem estranhamento,

    mais uma vez a questo da lgica do evento, algo que pe sob suspeita todas as teleologias, todos

    os projetos, todas as academias, todas as lgicas sistemticas, que faz Descartes se retirar para trazer

    de volta Montaigne, que nos faz pensar menos em possibilidades e mais em probabilidades. Assim, a

    reduo, ononsense, a insignificncia, uma arma importantssima para voc criar o significado, para

    voc silenciar no totalmente, mas reduzir o barulho do apartamento ao hmmm da geladeira, de modo

    que voc possa ouvir o silncio e, quem sabe, dormir em paz.TRTem outra operao a que voc alude, acho que para falar desse estranhamento, esse atrito no

    sentido, que a difora. Qual esse trabalho?

    MMNa verdade uma sequncia de trs trabalhos. Difora uma palavra... alis, em nossas conversas

    com Rodolfo Caesar sobre Raymond Roussel lembramos que ele usava muitas diforas, palndromos,

    espelhamentos. Difora quando voc usa o mesmo vocbulo com significados diferentes, portanto

    recorrendo a certo nonsense. Ou relatividade, instabilidade do sentido. No uma distoro,

    uma toro, uma alterao. Isso est em Mallarm, nos formalistas russos, no Marinneti, nos poemas

    dadastas, enfim. Essa procura da materialidade da palavra, do vocbulo, da slaba e do espao da

    pgina, esse tipo de coisa. Eu fiz essa srie de trabalhos, o primeiro um objetinho que se perdeu emalgum lugar deste mundo, de que eu gostava muito porque ele era manual, como um brinquedo.

    Depois, fiz outra verso em Roma, da o exemplo de difora em italiano que Il sogno della mia vita

    perdere la vita, que se pode traduzir como o sonho da minha vida perder a vida, ou como o sonho

    da minha vida perder a cintura. No caso, so objetos que apresentam situaes de similaridade, por

    exemplo, quadrados que, de acordo com as circunstncias, vibram diferentemente enquanto ocupam

    espaos diferentes. O quadrado, compreendido como signo, migra, no trabalho de Roma por exemplo,

    do formato das cermicas do cho para os quadrados que eu delimito com pregos numa placa de metal

    perfurada, que ora preenchem ora no preenchem as perfuraes, dos buracos vazios aos cheios, de

    uma placa pendurada a uma outra apoiada; ou seja, posies negociadas, diferenas que criam esse

    atrito que voc talvez esteja chamando de ruidoso e que...Rodolfo CaesarBem, eu poderia s adicionar algum, somar uma subtrao para voc. Voc no contou,

    se esqueceu talvez de que uma vez lhe roubaram uma camisa no estacionamento do Srgio Porto quando

    amos fazer o seu Dueto 1 + I [Dueto 1 + I, para executantes extremamente atentos e isolados um do

    outro, desenho/partitura de 1978, interpretado por Rodolfo Caesar e Vania Dantas Leite, 2002].

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    Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201128

    MM verdade, mas est desenhado, faz parte da srie dosAtentados, como aquele outro, do roubo

    das roupas do desenho. 1 atentado + I atentado, e assim, extremamente atentos, vamos seguindo

    as partituras.

    TRSer que a sua traduo para evento no atentado?

    MMDe certa forma sim, so atentados, s vezes ao pudor (rs).

    TRs vezes lgica, s vezes ordem.

    Guilherme BuenoQuando lido com o universo enciclopdico dos seus trabalhos, penso se ele no

    participa ainda de uma condio moderna da ps-modernidade. Dito de outra maneira: uma

    definio de ps-modernidade que, como o termo assinala, ainda no descarta seu ndice moderno.

    Em 21 Formas de Amnsianotei ainda uma curiosidade que me lembrou outro projeto seu, O Paraso

    Perdido de Milton M...achado. H um dos desenhos, Assinatura verde de um artista maduro, que tem

    um corte semelhante quele imaginado no Paraso... Para retomar esta fronteira moderno/ps-moderno

    que s vezes sinto nos trabalhos, ela no assume ou parte do problema kosuthiano da definio da arte,

    s que, ao invs de uma definio universal e especulativa, uma outra pessoal, aquela justamente dapassagem da Arte para a /arte/? No seria tambm essa responsabilidade que nos deixa to perplexos?

    MMEnciclopdico? E mesmo assim ps-moderno? Bem, Diderot pesquisou as propriedades da involuta

    do crculo, caso especial das espirais, curvas descritas em Dois burros girando em torno de dois postes

    aos quais esto amarrados... Por outro lado, sua noo de mquinas situacionais inspirou Lyotard, que

    discorre sobre a condio ps-moderna, a propor a stira como a mais eficaz estratgia contempornea.

    Pois as mquinas situacionais de Diderot, assim como a stira de Lyotard, partem do princpio de que a

    natureza nos mostra no apenas uma mas muitas e diferentes coisas e de muitas e diferentes maneiras.

    De modo que os artistas, diz Lyotard, evitam os diagnsticos, os pronunciamentos definitivos sobre a

    natureza do ser. Isso vale para a arte. E o que fazem os artistas, ento? Ensaiam! O ser ou os seres, e

    isso vale para a arte, jamais se revelam, e sim apresentam pequenos universos, micrologias, a cada vez, a

    cada trabalho. Micrologias con-correntes, que babam e bufam de inveja umas das outras, diz ele. Esses

    ensaios incompletos, insuficientes, fissurados constituem a stira. E a condio para seu acionamento

    e continuidade a experimentao. A experimentao separada da experincia por uma distncia

    desregulamentar. Isso parece diferir da ideia kosuthiana de que a funo da arte seria a de questionar

    a natureza da arte, e que a arte agiria via proposies analticas, exclusivamente. Essa noo tem um

    qu de diagnstico, de pronunciamento modelar, sobre o ser da arte. A mim e isso procuro sugerir

    por meio de meus ensaios experimentais, ensaios satricos de um Investigador em Frias que s perfaz

    horas extras interessa mais o excesso de resultados e de respostas do que as justas medidas. Interessa

    mais o deslocamento da experincia e dos lugares da experincia do que a comunicao imediata, maisa ultrapassagem de fronteiras e limites do que as delimitaes de territrio. Interessa mais o exerccio

    experimental da imaginao (ou da liberdade, como ensaiou Mrio Pedrosa) do que a busca de coerncia

    das proposies analticas. Interessa mais a munio amnsia1 do que a persistncia da memria.

    Interessa tanto a assinatura verde quanto o artista maduro.

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    29ENTREVISTA | MILTON MACHADO

    TR Voc concorda com a afirmativa de Joseph Kosuth de que a arte teria tomado para si, na

    contemporaneidade, as questes sobre o homem e o mundo nas quais a filosofia teria fracassado?

    MMEver tried. Ever failed. No matter. Try Again. Fail again. Fail better: stira, com jeito de Samuel

    Beckett. Arthur Danto descreve as primeiras dcadas do sculo 20 como a era dos manifestos, mas

    no incluiArt After Philosophy, que para mim seria o ltimo dos manifestos. Kosuth acredita piamente

    em arte, acredita que exista uma funo para a arte, qual seja questionar a (verdadeira?) natureza daarte. Ora, no existe tal coisa; a natureza da arte justamente no ser verdadeira, desde o mimetismo

    cavernoso de Plato, passando pela falsificao da natureza no Renascimento, pelaimitatioe pela morte

    de Deus, pela mentira nobre em Nietzsche, pela crise da representao, por Benjamin e suas auras

    transferidas, por Malraux e seu museu imaginrio, por Beuys e seus mitos de origem, por Duchamp e sua

    fonte de gerar securas, chegando a ns como uma grande fico em constante reviso de sua pretensa

    identidade de grande narrativa. Arte e filosofia caminham juntas, no necessariamente numa mesma

    direo, da estarem sujeitas a esticamentos,

    estiramentos, distenses, fraturas mesmo. Mas

    tm em comum a caracterstica de serem avessas

    s aplicaes. A filosofia de Kosuth me parecepor demais aplicada, tal qual um manifesto

    um aplicativo, propriamente. A arte de Kosuth

    tambm aplicada, mas me parece, ao contrrio

    do texto e apesar de sua seriedade, uma arte que

    ri s gargalhadas de si mesma, de seu fracasso

    na busca da tal natureza da arte, de suas risveis

    tautologias, como no caso de One and Three

    Chairs. Gosto bastante de seu trabalho, e a leitura

    de seu texto fundamental; foi fundamental para

    ns traduzi-lo, cultiv-lo e discuti-lo nos anos 70.

    CB A pergunta do Guilherme diz respeito um

    pouco a sua relao com histria, porque faz

    referncia histria moderna e ps-moderna,

    depois ele cita trabalhos especficos, ele faz essa

    pergunta referenciando O paraso perdido de

    Milton M achado e Assinatura verde de um

    artista maduro.

    MM outra coincidncia divertida, quem sabe

    outra difora. Um cara chamado Milton escreve O

    Paraso Perdido, sculos depois vem outro Milton,

    Diforachapas perfuradas, pregos

    Sala 1, Roma, 1990

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    Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201130

    chamado Milton M achado (rs...), ora, tem que fazer esse trabalho! Esse um trabalho que sempre

    quis, mas nunca fiz.

    RCTem algo tambm a ver com o corpo, o Cezar at te fez uma pergunta sobre o corpo e eu acho que

    a j tem a coisa corporal no desenho, no desenhar, alis, muito evidente nesses desenhos recentes que

    voc tem feito.

    MMEu tenho que fazer este trabalho, O Paraso Perdido de Milton M achado. Quase aconteceu uma

    vez, a partir de um convite de Agnaldo Farias para fazer uma exposio no Instituto Tomie Ohtake

    paralela a A Bigger Splash, uma coletiva de arte britnica na OCA, mas que por algum motivo acabou

    no acontecendo. Era um espao complicado, uma sala muito comprida, alta e estreita, mas muito

    conveniente para o trabalho. John Milton era cego, e O Paraso Perdidofoi ditado por ele para uma

    de suas filhas. Da que a nica iluminao da sala seria por meio de dois lampies a gs, colocados no

    cho, sob as duas iniciais M, uma de cada lado

    da sala. Seriam a luz dos olhos do poeta.

    De um lado, a frase O PARAISO PERDIDO

    DE MILTON; do outro, na parede em frente,apenas a letra M. O resto, a palavra ACHADO,

    seria depositada em Londres, aos ps da

    tumba e da esttua de John Milton, que

    est enterrado em uma igreja do Barbican

    Centre, onde, por outra coincidncia, j

    expus, uma individual em 2000. As letras

    de ACHADO, assim como as demais, seriam

    confeccionadas em lato polido, dessas de

    escrever nomes de edifcios. Uma cmera

    de vdeo fixa sobre essa palavra transmitiriasua imagem, assim como a do poeta,

    diretamente de Londres para o espao da

    exposio, aqui no Brasil. Se algum a do

    paraso estiver ouvindo e quiser patrocinar...

    Sobre Assinatura verde de um artista

    maduro, uma das colagens de 21 Formas

    de Amnsia, feitas com fragmentos de um

    desenho que cortei em 1.750 quadrados

    de 1cm de lado. No caso, so quatro

    21 Formas de Amnsiainstalao, desenho, colagens1988-89

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    31ENTREVISTA | MILTON MACHADO

    quadradinhos, com partes de minha assinatura. O Guilherme, com seu olho enciclopdico, indicou algo

    que nunca percebi; que algo semelhante aconteceria em Paraso Perdido..., isto , a inicial M isolada de

    ACHADO pelo corte. A assinatura verde ficaria por conta da cor de fundo, verde para um artista, quem

    sabe, M ADURO.

    RCQuem o conhece pessoalmente sabe o valor que voc d s analogias, aos jogos de palavras e

    entre imagens, s relaes ldicas e inicialmente desinteressadas mas que sempre adquirem sentidos.

    Mas h tambm em sua arte o lado mais selvagem, vernacular, paisano, que se percebe no abrangente

    aproveitamento de trouvailles. Seus desenhos parecem resultar de um processo no qual voc, de lpis

    ou caneta entre os dedos, s vezes talvez meio embalado pelo ritmo de alguma msica, ou pelo som

    da ponta no papel, vai fabricando linhas que de repente ou mais lentamente transformam-se em

    pequenas clulas esperando desenvolvimento. A improvisao pe em jogo um erotismo meio especial

    entre os corpos, excitando desde a pele mais fina do tmpano at os movimentos corporais. No poracaso que a improvisao teve grande impulso na escrita automtica surrealista, movimento do qual

    eu considero voc fiel e psicodlico leitor. Por que, ento, voc subestima o valor desse trabalho? Seria

    por conta de uma ateno s contingncias do mercado? O conceito de obra/objeto determinante no

    processo de avaliao?

    Falo de Czannedesenho, colagemde 21 Formas de Amnsia, detalhe1988-89

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    MMNo sei se sou propriamente um fiel leitor da escrita automtica surrealista, que j me fascinou mais

    na juventude, assim como o psicodelismo; mas desse no nos livramos nunca, uma vez intensamente

    experimentado e bem vivido. Sou muito chegado s improvisaes, mas como msico, em minhas

    aventuras jazzsticas ao violo. Mas na produo de arte costumo trabalhar por partitura, ainda que

    elas possam surgir depois da execuo, como notaes do improviso. Geralmente so sries, como

    (1=n) um intervalo, Mundo Novo, Somas e Desarranjos, As Frias do Investigador, Histria do Futuro, que, mais do que ttulos temticos e de exposies, so demonstraes de alguma ideia subjacente.

    De uma matemtica esquerda,gauche, naturalmente, da a referncia a um arquiteto sem medidas.

    Os desenhos a que se refere, e sei que voc tem em mente os mais recentes, anacronicamente a bico

    de pena sobre papel, so de certo modo improvisaes. Nisso alinham-se, pelo menos por enquanto,

    Dois burros girando em torno de dois postes aos quais esto amar-radosperseguindo um pssaro que voa das mos de Denis Diderot(Cecinest pas un conte)livros artesanais, madeira de balsa, desenho tcnico, 1986

    foto de Jos Roberto Lobato

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    33ENTREVISTA | MILTON MACHADO

    com trabalhos que chamo de vira-latas, por seu carter marginal s sries mais sistemticas. O fato

    de serem vira-latas no impede que sejam fora de srie, isto , que tenham suas qualidades, que

    uivem em alto e bom som em noites de lua cheia. Na verdade, estou fascinado por eles, de um modo,

    digamos, quase psicodlico. Arrisco comentar que no os considero arte, e sim desenhos. No os

    subestimo, pelo contrrio. Apenas reservo a eles a oportunidade, antes de se tornar arte, de ser o

    que so. Arte implica negociaes de seus objetos com sua exterioridade. Esses desenhos, mas essatalvez seja uma caracterstica prpria do desenho, so prenhes de interioridade, com vocao de dirio,

    de escritura, de anotao, de monlogo ensimesmado. Talvez faam boa companhia a meus poemas,

    outra forma de improvisao reclusa com vocao confessional. Usando os termos de sua pergunta,

    seriam trabalhos com alto valor de uso, aguardando outras valoraes que possam resultar de trocas

    de mercado, de outros julgamentos. Seriam, no ainda obra, mas canteiros, construes, trabalho-em-

    progresso. Investimentos, antes dos eventuais revestimentos. Por enquanto, basta a eles e a mim que

    sejam desenhos.

    RC Pelo que conheo de seu trabalho, destaco dois aspectos relacionados msica. Um de cunho

    erudito, que tem a ver com a ars nova do sculo 14. O outro vernacular, associando a figura do

    trovador. No contrapelo da Arte Moderna, a Arte Contempornea tem uma de suas origens na obra

    de Duchamp, que, por sua vez, nunca se esqueceu do dia em que foi exposto obra de Raymond

    Roussel. Logo adiante, a ars subtiliordo incio do sculo 15 confirmava esse prenncio ao modernismo

    demonstrando emphasis on generating music through technical experiment, cf. o musiclogo Daniel

    Albright. Ex.: Tout par compas suy composs. (Sou todo composto a compasso, na partitura circular

    de Baude Cordier.)

    Uma espcie de opinio (tcita?), dominante no mundo das artes plsticas, administra a noo de que ela

    seria, de todas as artes, aquela que empreende um projeto reflexivo mais amplo, seja esttico, poltico,

    histrico, cultural, etc. Como voc se coloca?

    MMEu no sei o que Giotto ouvia em sua vitrola, mas sei que ele tocava, ele tambm, por partituras.

    Se a catedral gtica do sculo 13 era construda na base de certo empirismo, numa espcie de pra

    cima com a viga, moada!, com Giotto e depois mais ainda com Brunelleschi o desenho, em sua

    acepo de projeto, de design, desgnio mais que desejo, passa a fazer parte do processo construtivo,

    transformando radicalmente a estrutura produtiva. Por isso era possvel a Giotto ausentar-se da produo

    direta de algumas de suas obras, mesmo de pintura, desde que seus assistentes seguissem risca seus

    rabiscos e riscos. Com Brunelleschi, o projeto mandatrio. Sem projeto, sem os modelos reduzidos

    que o arquiteto construiu, no teria sido possvel construir o duomo da Santa Maria del Fiore, em

    Florena, que ele nem chegou a ver realizado, como alis quase tudo que projetou. Projeto que, diga-

    se de passagem, foi escolhido por concurso. Desejo no ganha concurso. A ars subtiliordo sculo 15coincide com o tempo em que a perspectiva era objeto principal do interesse de arquitetos e pintores,

    e tal interesse contribuiu para dar ao artista, agora s voltas com o clculo e a matemtica, o status de

    profissional liberal. Gerar obra por meio de experimentao tcnica, traduzindo sua citao, parece-

    me resultar justamente dessa complexidade. Os mistrios da perspectiva eram extremamente sedutores

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    Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201134

    para os artistas lembremos a crtica (injusta) de Vasari a Paolo Uccello, de que teria sido um grande

    pintor se no tivesse perdido tanto tempo na companhia de sua amante, a perspectiva. Em Uccello,

    at cavalos em uma batalha morrem em perspectiva! Se o caso o experimentalismo de um Raymond

    Roussel, e por tabela um Duchamp, h que acionar outros botes de nossa agilssima mquina do

    tempo, primitiva geringona que algum deve ter inventado nos tempos da ars antiqua. Botes que

    acionam defeitos, disfunes, engasgos, chabus. Experimentar com a linguagem era mania corrente

    entre escritores do incio do sculo 20, na cola de Mallarm no sculo 19, tais como o futurista Marinetti,

    a balbrdia desconstrutiva dadasta, os formalistas russos, companheiros de Malevitch e Tatlin. O recurso

    a certas genealogias sempre salutar, e no custa apontar, como voc faz, que a ars subtiliordo sculo

    15 prenuncia o modernismo. Mas h que recorrer tambm s quebras de paradigmas, via Thomas

    Kuhn, para valorizar mais ainda esses empreendimentos experimentais mais prximos de ns. Sobre a

    opinio tcita ou dominante de que as artes plsticas empreenderiam um projeto reflexivo mais amplo,

    eu diria que essa eventual amplido depende e resulta justamente da prpria plasticidade, mais do

    que propriamente da arte e de suas operaes especficas, que podem ser duras. Para lidar com a

    perplexidade contempornea, s um projeto que seja flexvel, moldvel, adaptativo. Plstico, enfim. Com

    a plasticidade da stira, como sugerido por Lyotard. No me parece que tal elasticidade seja exclusiva dasartes plsticas, a no ser que voc flexibilize o termo a ponto de pouco restar de sua dada identidade.

    No h nada de prprio da arte, a arte nunca idntica a si mesma. As operaes da arte h muito no

    so especficas. Arte um troo mole, por isso so necessrios fios flexveis para tirar suas medidas.

    GF Em um texto de Roberto Pontual de 1976, h uma citao sua: o desenho tem para mim

    essencialmente um sentido: o de trazer ao plano da conscincia os rumores que me povoam o mundo

    interno. Meus desenhos so cartas que chegam do interior. Algo que, de certo modo, se pode dizer

    de qualquer trabalho de arte. Esse um perodo importante de seus desenhos, com projetos, digamos,

    ficcionais, com uma lgica de ordem conceitual. Esse vis conceitual permanece em seus trabalhos

    posteriores. Como voc avalia essa dimenso conceitual em seu trabalho e na produo artstica atual?

    MM Caramba, eu disse isso? Rumores que povoam o mundo interno? Pelo jeito se aplica mesmo a todo

    trabalho de arte, j que Pollock disse mais ou menos a mesma coisa. Mas meu interior no o mesmo

    de Pollock, que nasceu em Cody, Wyoming, e cresceu em Tingley, Iowa. Meu interior a Tijuca, onde

    nasci e cresci, meu exterior Copacabana, que me parecia, quando era menino, algum lugar bacana no

    exterior. No havia ainda tneis separando e unindo essas lonjuras cariocas. A dimenso conceitual

    como um tnel separando e unindo, talvez por isso sua condio subterrnea, de escavao, que

    pede mergulhos mais profundos do que conseguem as toupeiras. Animais, por sinal, quase cegos, mas

    com olfato muito sensvel. Desenho e pintura em condies de igualdade um trabalho feito com ps

    de pastel seco, recolhidos durante a produo de desenhos, ao lado de fragmentos de tinta acrlica

    raspados de minhas palhetas de pintura. Algumas vezes os tneis so escavaes no papel, outras novidro, s vezes no p, outras na tinta. Algumas vezes levam a Pollock, outras a Copacabana. Descobri

    por acaso, visitando o Louvre, uma provvel (humm...) origem dos desenhos de pedra portuguesa dasfamosas caladas cariocas: viriam de uma pintura de batalha pelo j citado Paolo Uccello, na qual opintor representou uma bandeira preta e branca quadriculada tremulando em perspectiva. (Micheletto

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    da Cotignola Envolvido em Batalha, 1450s, tmpera sobre madeira: http://www.wga.hu/). Quem diriaque existem tneis conceituais separando e unindo Florena, Paris, Portugal e Copacabana?

    GF Desde 1979 voc tem dado aulas, na Santa rsula, no Parque Lage e, j h 10 anos, na EBA.

    Que transformaes voc identifica no ensino de arte e na formao dos artistas? Como voc avalia a

    formao de ps-graduao para artistas?

    MM Do Centro de Arquitetura e Artes da Santa rsula saram muitos artistas, j contei mais de 50. Muitodevido presena ali, nos anos 70 e 80, de Lygia Pape, que me convidou e com a qual tive o privilgiode trabalhar, por alguns dos 15 anos que l estive, junto a outros artistas, na cadeira de Plstica, que

    tinha um carter eminentemente experimental. Alis, comum artistas terem formao em arquitetura,

    que pode levar a muitos caminhos. Talvez a maior transformao seja o fato de que novos e bons artistasestejam se formando em escolas de arte, no Rio de Janeiro com maior concentrao ainda no Parque

    Lage, e cada vez mais na nossa EBA, que por dcadas afugentou estudantes mais antenados com a

    contemporaneidade e menos dispostos s formalidades acadmicas. Um renitente conservadorismo ainda

    impede que a EBA assuma de vez, como deveria e na medida de sua importncia universitria, um papelprogressista, de vanguarda, em contato estreito e interessado na produo e na reflexo de excelncia,

    de modo a participar do debate contemporneo de forma mais intensa e eficaz. No que isso no se d,mas pontual. Os recentes concursos, que tm trazido para o corpo docente da escola professores com

    esse perfil, vm mudando, ainda que lentamente, o perfil da prpria escola. No mbito da ps temostido, na linha de Linguagens Visuais do PPGAV, destinada a artistas praticantes, cada vez mais alunos

    graduados pela EBA, muitos j atuando no circuito profissional, participando de exposies, publicando

    livros, ganhando prmios. Nosso programa obteve o grau 6 nas avaliaes da Capes, o que se deve em

    grande parte s atuaes dos professores e alunos de nossas quatro linhas em circuitos profissionais, nos acadmicos. Tudo isso deve ser celebrado. Falando da ps-graduao em artes no contexto nacional,

    a proliferao de programas de mestrado e doutorado tambm motivo de celebrao. Se cabe algum

    reparo, nunca procurei disfarar ao contrrio, sempre manifestei claramente meu estranhamento em

    relao ao formato mais comumente adotado pelos programas de ps-graduao para artistas no pas,nos quais se privilegiam pesquisas de mestrado e doutorado calcadas em e voltadas para a produo

    prtica do prprio candidato, num exerccio autoanaltico e autointerpretativo que considero, em regra,

    improdutivo. Sempre que posso, o que procuro fazer com meus orientandos mais dispostos ao desafio convid-los a refletir sobre questes conceituais contempladas em seus trabalhos de artistas, de modoa definir, antes, o territrio e, depois, a insero. Diferente disso quando o prprio trabalho tratadocomo o territrio, a partir do qual se buscam eventuais inseres.

    MMzVoc tem um carto de visitas do Parque Lage que o apresenta como terico.

    MM verdade, e isso curioso. uma coincidncia, outra dessas coincidncias. A EAV imprimiu umcartozinho trazendo o nome do professor e o ncleo ao qual pertencia. Fizeram ento um carto

    em que se l Milton Machado, Terico. Eu disse: isso d pano para manga. Fiz uma srie de trabalhoscom esses cartes, que so muito bonitinhos. Tem o Mondrian terico, Milton Machado terico, osnascimentos e bitos tericos. Kosuth terico, por exemplo, uma cadeira feita com esses cartes, aolado de uma foto dessa mesma cadeirinha e dos verbetes de dicionrio com as definies de cadeira e deterico: Terico aquele que conhece muito bem os princpios de uma determinada arte, mas que no

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    Arte & ensaios | rev ista do ppgav/eba/ufr j | n. 23 | nov 201136

    a pratica. Na poca em que dava aulas na EAV eu era frequentemente acusado por alguns crticos deser um artista excessivamente terico, o que uma bobagem... Era uma coisa tpica dos anos 80, em quetudo era emoo, arte nascendo no corao, pintura como sintoma de prazer, essas bobagens todas quese alardeavam nos anos 80, que falam mais dos anos 80 do que de arte. Havia uma condenao explcitaa artistas dos anos 70, de minha gerao, que estariam se metendo em reas sem competncia paradelas tratar, como a matemtica, filosofia, poltica, sei l mais o qu. O que mais ento no podemos

    discutir? Nos anos 80, eu vivia perguntando isso a meus interlocutores entusiasmados ou inebriados coma pintura, o prazer, o cheiro da terebintina e tudo o mais. De modo que um trabalho de fato muitoirnico, que se vale da coincidncia incrvel de eu ter sido presenteado com um carto que identificava,meio sem querer, os excessos de um Milton Machado terico.

    MMzEu estava lendo seu artigo Dance a noite inteira mas dance direito [in Arte Brasileira Contemporneaem Textos, org. Ricardo Basbaum, Editora Marca dgua, Rio de Janeiro 2001], em que aparece o carto,e voc faz uma anlise crtica do sistema, do circuito, dos crticos durante os anos 80 comparando com

    os anos 70. A eu tenho uma curiosidade: como voc v esse circuito hoje?

    MMProduzimos uma arte de muito boa qualidade, discutida em alto nvel internacionalmente, e no entanto

    nosso circuito interno ainda nos impe condies muito ruins. A prpria universidade, qual pertencemos mais doque ela nos pertence, talvez exemplifique isso de forma pontual, com cursos de graduao em arte quase semprevoltados para uma orientao conservadora, ainda muito calcada nas tcnicas, radical e intencionalmente alienadada discusso contempornea. Talvez o circuito reflita distores como essa, pontual mas importante, porquetem a ver com a prpria formao, de artistas e de opinio. Quanto ao circuito profissional, trata-se de questoigualmente complicada. Nosso circuito, mesmo precrio, ou at por isso mesmo, extremamente complexo, talvezda se possa falar no de um circuito, mas de circuitos, no plural, com precariedades concorrentes, algumas vezesrivais, o que agrava ainda mais seu grau de perversidade. Como complexa a questo poltica das alianas que preciso fazer e das que no se deveriam fazer mas se fazem, em prol dos pertencimentos, das pertinncias, dasadequaes, dos favorecimentos, das celebraes institucionais e comerciais. De algum modo, preciso que osoramentos sejam consistentes com os editais. Mas pertence quem diz que no pertence? Consiste quem diz queno consistente? Ento, essas geometrias mais por tangentes do que por secantes, mesmo que no bastem pararegular o crculo, so reguladoras do circuito. Dance a noite inteira mas dance direito seria um tipo de andamento

    servil, que obedece ao compasso, muitas vezes em detrimento da msica.

    EdioMarina Menezes e Cezar Bartholomeu

    TranscrioPriscila Plantanida

    NOTAS

    1 Ammunition Amnesia foi o texto de contribuio do artista para o catlogo da coletiva Other Modernities(Cildo Meireles, Foreign Investment, Milton Machado, Yinka Shonibare), The London Institute Art Gallery,curadoria de Oriana Baddeley e Michael Asbury, Londres 2000, da qual fazia parte o trabalho 21 Formas deAmnsia. Esse mesmo trabalho foi remontado na exposio Europalia, Bozar, Bruxelas 2011, sesso curada porGuilherme Bueno.

  • 7/25/2019 Milton Machado - Entrevista

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