caderno verde milton

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Caderno do Instituto Ciência e Fé

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  • O Tau da travessia: a teopotica de Milton NascimentoPaulo Botas Pedro Sol Blanco

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  • 2013, Paulo Botas e Pedro Sol Blanco2013, Editora Universitria Champagnat

    Os cadernos Cincia e F, na totalidade ou em parte, no podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorizao expressa por escrito do Editor.

    Diretoria de Pastoral e Identidade InstitucionalDiretor-Geral: Rogrio Renato MateucciCoordenador de Pastoral: Darly Fatuch

    Instituto Cincia e F da PUCPRDiretor: Fabiano Incerti

    Editora Universitria ChampagnatDireo: Ana Maria de BarrosEditora-Chefe: Rosane de Mello Santo NicolaCapa, projeto grfico e diagramao: Rjayra Rodriguez RuedaReviso de texto: Bruno Pinheiro Ribeiro dos AnjosImpresso: Gr ca Everest

    Conselho CientficoAdalgisa Aparecida de Oliveira Gonalves Daniel Omar PerezMario Antonio SanchezWaldemiro Gremski

    Conselho Editorial Alceu Souza Eduardo Biacchi Gomes Elisangela Ferretti ManffraElizabeth Carvalho VeigaLorete Maria da Silva Kotze Lcia Maziero Mnica Panis Kaseker Ruy Inacio Neiva de Carvalho Srgio Rogrio Azevedo Junqueira

    ISSN: 2317-7926

    Editora Universitria ChampagnatRua Imaculada Conceio, 1155 - Prdio da Administrao - 6 andar

    Cmpus Curitiba - CEP 80215-901 - Curitiba (PR) Tel: (41) 3271-1701

    [email protected] www.editorachampagnat.pucpr.br

  • Sumrio

    Introduo

    O Tau da travessia: a teopoti ca de Milton Nascimento

    Entre a travessia e a resistncia: senti nela

    Uma teologia da resistncia

    A proscrio dos poetas e profetas

    A utopia: o Tau-no-ainda-possvel

    Referncias

    Sobre os Autores

    7

    11

    15

    21

    29

    33

    45

    49

  • Este Caderno que agora temos em nossas mos o resulta-do de um importante projeto do Insti tuto Cincia e F, da PUCPR, denominado Dilogos Contemporneos. Dialogar condio ne-cessria do respeito que dedicamos s pessoas, em favor de uma mesma humanidade. Ele um existencial que aproxima as dife-renas, constri caminhos, vislumbra perspecti vas. Sem dvida, estamos num momento da histria em que o dilogo se confi gura como uma ao vital e imprescindvel e que, para acontecer, ne-cessita de lugares reais de acolhida, de iniciati vas concretas de encontro e de procedimentos qualifi cados de comunicao.

    Dialogar com o contemporneo um desafi o. Ao colo-carmos esse tema em questo, devemos estar altura daquilo que ele nos exige e, principalmente, dispostos a assumir as con-sequncias de tal escolha. Diante desse tempo do presente, concordamos com Giorgio Agamben quando afi rma que o con-temporneo perceber no escuro do presente essa luz que

    Introduo

  • procura nos alcanar e no pode faz-lo. Por isso mesmo, os contemporneos so raros. E, por isso, ser contemporneo , antes de tudo, uma questo de coragem: porque signifi ca ser capaz no apenas de manter fi xo o olhar no escuro da poca, mas tambm de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para ns, distancia-se infi nitamente de ns1.

    Com uma clara inspirao no projeto trio dos Gentios, do Ponti f cio Conselho para a Cultura, o objeti vo dos Dilogos Contemporneos se efeti va na criao de pon-tes entre diferentes vises de mundo. Inserido no universo acadmico, e a parti r de uma conversa verdadeira sobre as-suntos que tangem existncia humana e sua relao com o transcendente, espera-se traar percursos comuns, nos quais a escuta qualifi cada e a interlocuo transparente se transformem em fontes originrias para as buscas de sen-ti do e para, quem sabe, como nos inspira o Cardeal Ravasi, um aventurar-se pelas altas veredas do mistrio que, para aqueles que acreditam, traduz-se na experincia de Deus, e para outras pessoas, num encontro com o Desconhecido.

    Esta segunda edio dos Dilogos Contemporneos tem a responsabilidade de discuti r a f e a espiritualidade nas msicas de Milton Nascimento. A simplicidade uma marca da criao art sti ca e do jeito de ser desse gnio mineiro e brasileiro, e suas canes tocam profundamente a alma da-queles que esto sensveis ao inesperado. Suas letras e melo-dias nos convidam a fazer travessias: falam do amor em todas as dimenses e nos lembram que uma vida, para ter senti do,

    1 AGAMBEN, G. O que o contemporneo? e outros ensaios. Chapec: Argos, 2009. p. 65.

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    Paulo Botas e Pedro Sol Blanco

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  • precisa de buscas, de sonhos, de solides e de f. Bituca, como os amigos o chamam carinhosamente, desfaz com sua arte a tnue linha que separa (ou aproxima) a imanncia da transcendncia, e nos ensina que somos mais felizes quando senti mos, em nossa existncia, a beleza e a angsti a do mis-trio que nos envolve. Aos poucos, vamos compreendendo as doces palavras de Elis Regina quando diz que, se Deus cantas-se, seria com a voz do Milton.

    Unir teologia e poesia. Essa foi a forma que o telogo Paulo Botas e o msico Pedro Sol, ambos amigos do Bituca, en-contraram para falar de f e espiritualidade nas msicas do can-tor. E eles o fi zeram com sensibilidade e competncia, prprias daqueles que compreendem, a parti r de sua maneira singular de ver o mundo, que a vida se constri na msti ca do caminho. E o que eles nos ensinam? Que a teopoti ca de Milton cano profti ca, forte; de uma f engajada com o tempo, com a hist-ria, com a natureza. Mas tambm cano que dura para sem-pre, porque nos recorda, a todo instante, que somente somos plenamente humanos quando estamos abertos ao infi nito.

    Nosso agradecimento ao Paulo, ao Pedro e tambm ao Edu Spiller, que tornaram possvel, com sua amizade, a realizao de mais um Dilogo Contemporneo.

    Fabiano Incerti Diretor do Instituto Cincia e F da PUCPR

    Ir. Rogrio Renato MateucciDiretor de Pastoral e Identidade Institucional da PUCPR

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

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  • A Daniel Cielo Blanco, mano da travessia...

    Antes mesmo de ser um encontro, pude crer que o come-o est com gosto de conti nuao no uxo da eternidade.

    Plenitude e fraternidade uem solos no meu ser, sem barreiras pendentes, muito menos dvidas presentes das mazelas ou bondades puras dessa terra. A raiz dos meios de contato, a

    cincia, a f sica qunti ca e o amor universal pleno, contm em sua seiva a resposta original e genuna, baseando, na cumpli-

    cidade da vida, na humildade de errar e assumir nem que seja fazer o sinal da paz e sorrir, ou seno um tudo bem e

    sumir, nem que seja por um segundo na linearidade da iluso , aquilo que chamamos de tempo, que mano do vento, que

    fez pacto com o mar, que salgou a terra e secou ao sol.

    (Pedro Sol Blanco, O comeo, os meios e o m)

    Paulo BotasPedro Sol Blanco

    O Tau da travessia:a teopotica de

    Milton Nascimento

  • As pessoas necessitam saber o que so elas mesmas. H em cada um de ns um certo tom, uma certa palavra,

    e nosso dever fazer disto nosso prprio poema, nosso prprio canto, uma sinfonia. Se faltarmos a esse dever,

    teremos vivido em vo.

    (Eugen Drewermann)

    H espao para tudo numa nica vida. Para acreditar em Deus e para um m miservel... uma questo de se viver a

    vida de minuto a minuto, acolhendo, alm disso, o sofrimento.

    (Ett y Hillesum, Dirios 1941-42)1

    As travessias da vida so diversas e plurais. Das afeti vas s polti cas, elas vo se revelando a cada novo momento e a cada novo encontro. Guimares Rosa (2006, p. 553) escreve no seu mais clebre romance: Existe homem humano. Travessia.

    Para ele, travessia tem o senti do simblico de vida, transposio de etapas: digo: o real no est na sada nem na chegada, ele se dispe para a gente no meio da tra-vessia (ROSA, 2006, p. 57). No entanto, se so plurais as travessias, o caminho a perseguir (Tau) um s: a busca da plenitude que as vrias culturas religiosas nomearam de Deus, no s numa aventura de alegria, encontros, mas tambm de sofrimentos e cruzes.

    1 Etty Hillesum, holandesa de 29 anos, assassinada em Auschwitz em 30 de novembro de 1943.

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    Paulo Botas e Pedro Sol Blanco

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  • Ontem deixei muito claro para mim que eu demorei 27 anos para conhecer o verdadeiro amor universal, que resultado da unio de todas as coisas no sagradas nem pags, e sim a unio de toda a natureza, que resulta no que chamamos de Jehovah, Alah, Deus, Jah, Criador, Todo Poderoso, dentre muitos outros nomes que nossa histria cultural denominou, ao longo das geraes e nos diferentes cantos geogrfi cos do nosso pequenssimo mundo, mais vulnervel que uma pulga no pescoo de um co peludo!

    (Pedro Sol)

    O Tau a 22 e lti ma letra do alfabeto hebraico. No alfabeto grego a 19, associada ao nmero 300, uma combi-nao derivada dos nmeros 3 e 100 (este, um mlti plo de 10, que representa a perfeio). Para os cristos, essa letra marca a contradio e a rasteira que o Senhor passa em todos os que pensam poder reduzi-Lo a conceitos racionais e tangveis: A loucura de Deus mais sbia que os homens, e a fraqueza de Deus mais forte que os homens (1 Cor 1,22-25).

    Essa letra sempre foi usada como sinal. Para os he-breus, a plenitude do alfabeto; para os gregos, num duplo senti do: como cruz e como vida; para os romanos, em suas listas militares, era escrita ao lado do nome dos soldados para signifi car que eles estavam vivos.

    Essa marca apresentada pelo profeta Ezequiel como o anncio e a esperana da plenitude do pacto feito pelo Senhor: Eu lhes darei um corao ntegro e infundirei neles um esprito novo: eu lhes arrancarei o corao de pedra e lhes darei um corao de carne (Ez 11,19).

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

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  • Na libertao do Egito, a marca do Tau foi feita com o sangue do cordeiro nas molduras das portas, para que o Senhor, quando passasse pelo Egito para casti g-lo, respei-tasse as que estavam com aquele sinal e no deixasse o ex-terminador penetrar nas casas dos hebreus (Ex 12,21-23).

    O Tau um sinal no meio da travessia. O caminho de uma escolha espiritual e o testemunho de vida concreti zado no amor, na verdade e na liberdade. No livro do Apocalipse, o Tau o selo do Deus vivo: Vi outro anjo que subia do oriente, com o selo do Deus vivo, e gritava com voz potente aos quatro anjos encarregados de causar dano terra e ao mar: no cau-seis dano terra nem ao mar nem s rvores, at que selemos a fronte dos servos do nosso Deus (Ap 7,2-3).

    So Francisco assinava seus escritos com a letra Tau, que, para ele, signifi cava a bno de Deus: Que o Senhor te abenoe e te guarde; que o Senhor faa brilhar sobre ti a Sua face e Se compadea de ti ; que o Senhor volte para ti o Seu rosto e te conceda a paz (Nm 6,24-26).

    O Tau o smbolo de uma vida sempre renovada que afasta a velhice e a mesmice dos que s cobram resultados e perdem a gratuidade de existi r: o smbolo da cruz, da interseco entre o humano e o divino, para testemunhar que tudo tem um preo, que a vida no impune e que o Senhor nos chama a fazer dela uma consagrao de amor e de liberdade. Por essa razo, o Tau no pode ser reduzido a um mero elemento exterior ou decorati vo. Ele um selo, uma marca, uma tatuagem gravada, a ferro e fogo, como smbolo e sinal da fora interior e da bno que devemos ser para os que nos amam e ns amamos (BIGI, 2004).

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  • O Papa Bento XVI (2005, p. 33, 39) escrevia:

    O cristo algum que durante a sua vida tem de compre-ender que as suas certezas e a sua situao pouco se dis-ti nguem das dos outros, mesmo que ele tenha pensado o contrrio anteriormente. Existe sempre uma ameaa da incerteza, da tentao e com toda a dureza a fragilidade de tudo aquilo que costumava parecer-lhe to evidente. No mar do oceano das incertezas da vida se encontra cada um de ns. A nica coisa que nos salva e no nos faz afun-dar a trave da cruz, o Tau, que nos liga a Deus.

    Assim se faz a travessia dos homens e das mulheres: algumas vezes nufragos, sempre errantes num mundo in-certo; outras vezes agarrados a um pedao de madeira como um joguete das ondas do oceano. E todos ns estamos re-almente presos a uma cruz, mas a uma cruz um Tau que no est preso a mais nada, porque est utuando no mar.

    Entre a travessia e a resistncia: sentinela

    Milton Nascimento surge no cenrio da msica brasi-leira em 1965, no II Festi val Nacional da Msica Popular, con-vidado por Baden Powell para interpretar uma composio deste em parceria com Lula Freire, chamada Cidade vazia. Em 1966, Elis grava Cano do sal2, e ento tem incio a travessia poti ca do Bituca, seu apelido carinhoso. Milton

    2 Gravada por Elis Regina em 1966, no disco Elis, e por Milton no disco Courage, em 1969.

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

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  • conta que havia lido um livro sobre as canes de trabalho dos negros do Mississipi (sul dos EUA) e voltou sua me-mria o tempo de quando era criana e sua madrinha o levou para Cabo Frio. A imagem dos salineiros, da gua do mar virando sal, teceu uma rede de associaes com os ne-gros americanos e surgiu a poesia, na mquina de escrever do escritrio de Furnas, em Belo Horizonte, onde exercia o cargo de dati lgrafo3. O coti diano desses homens salta aos olhos e ao corao:

    Trabalhando o sal, amor o suor que me saiVou viver cantando o dia to quente que fazHomem ver criana buscando conchinhas no marTrabalho o dia inteiro pra vida de gente levar

    E a sua indignada indagao sobre a destruio da na-tureza e sobre a explorao da fora vital desses homens, obrigados a vender sua vida na esperana de um futuro me-lhor para suas mulheres e seus fi lhos. A preocupao social de Milton j vem delineada na cano, e ser sua eterna companheira de travessia.

    gua vira sal l na salinaQuem diminuiu gua do mar?gua enfrenta o sol l na salinaSol que vai queimando at queimar

    3 Todas as letras e informaes so extradas do livro Contos da gua e do fogo: a poesia de Milton Nascimento, notas organizadas por Danilo Nuha (a ser publicado).

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  • Trabalhando o sal pra ver a mulher se vesti re, ao chegar em casa, encontrar a famlia a sorrirFilho vir da escola, problema maior de estudarQue pra no ter meu trabalho e vida de gente levar

    No perodo de ebulio social e polti ca de canes de protesto, teatro de denncia e shows politi zados, Milton no fi ca imune a essa contestao toda e escreve ...E a gente sonhando4 (1962-1963):

    H quem muito sofre, porque quer sofrerH quem muito chora, porque quer chorarH quem no quer nada e de tudo teme, tendo de tudo, nunca tem ningum

    Em 1966, Milton escreve Morro velho5, motiva-do pela situao vivida na fazenda da tia de Wagner Tiso, onde as crianas brincavam juntas os meninos da casa do patro e os da fazenda:

    Filho de branco e do preto correndo pela estrada atrs de passarinho Pela plantao adentro, crescendo os dois meninos, sempre

    pequeninos

    4 Disco ...E a gente sonhando, 2010.5 Dos discos Milton Nascimento, de 1967, e Courage, de 1969.

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

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  • Passava um trem na beira do rio margem da fa-zenda e, profeti camente, sua poesia descreve o que seria inevitvel:

    Filho do sinh vai embora, tempo de estudo na cidade grande

    O pacto dos amigos feito pelo que parte, sem saber que as condies sociais desiguais entre os dois os separa-riam para sempre:

    No se esquea, amigo, eu vou voltar

    A volta do amigo que parti ra marcada pelo status conquistado a parti r do trabalho da famlia e de seu amigo de infncia:

    J tem nome de doutor, e agora na fazenda quem vai mandarE seu velho camarada j no brinca, mas trabalha

    No Festi val Internacional da Cano de 1967, com Travessia, Milton tem uma parti cipao consagradora e solta, defi niti vamente, a voz nas estradas sem parar, ainda que seu caminho fosse de pedra e lhe fosse custoso sonhar.

    Nesses tempos de preconceito religioso, sobretudo com os afrodescendentes, em que a hegemonia religiosa era catlica romana e das igrejas evanglicas, Milton compe Pai Grande6 e, sem saber o porqu, rende homenagem ao

    6 Disco Milton, 1970.

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  • dono do seu Or 7, Oxaluf, orix sincreti zado com Jesus Cristo. Emergia sua dimenso religiosa feita poesia e cano:

    Meu pai grande, quisera eu ter sua raa pra contara histria dos guerreiros trazidos l do longe sem sua paz

    E revelava a conquista do w Pl, o bom carter dos seus ancestrais:

    De onde eu vim, bom lembrar,todo homem de verdade era forte e sem maldadePodia amar, podia ver todo lho seu seguindo os passose um canti nho pra morrer [...]Se estou aqui, trouxe de l um amor to longe de menti rasQuero a quem quiser me amar...

    Esse tema seria retomado no encerramento da Missa dos Quilombos, escrita por Dom Pedro Casaldliga e Pedro Tierra, e realizada no Recife, em 1981, na praa em que ex-puseram a cabea de Zumbi, lder de Palmares. A ameaa feita pelo Comando de Caa aos Comunistas (CCC) no inti -midou nem Milton nem os bispos Dom Hlder Cmara, Dom Jos Maria Pires, Dom Marcelo Cavalheira e Dom Pedro Casaldliga, que a concelebraram.

    Em 1985, escreve a poesia Lgrima do Sul, uma cr-ti ca contra o Apartheid na frica do Sul:

    7 Or, na lngua yorb, signi ca cabea, alma orgnica, perecvel cuja sede a cabea, inteligncia, sensibilidade, em contraposio ao emi, esprito, sopro, imortal (CACCIATORE, 1977, p. 205).

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  • frica, bero de meus pais, ouo a voz do seu lamento,de multi do, grade e escravido, a vergonha dia a diaE o vento do teu sul semente de outra Histria que jse repeti u, a aurora que esperamosE o homem no senti u que o m dessa maldade o gs que gera o caos, a marca da loucurafrica, em nome de Deus cala a boca desse mundoe caminha, at nunca mais, a cano torce por ns

    Milton evoca o preconceito contra os judeus, o Holocausto e o genocdio produzido pela Segunda Guerra Mundial. Ainda hoje, o preconceito no foi abolido, e pelas ruas e pelos becos de nossos pases cresce o movimento violento dos neonazistas contra os pobres, os negros e os homossexuais. O dramaturgo alemo Bertold Brecht escre-veu, profeti zando: No se alegre com a derrota dele, jo-vem. Embora o mundo erguido tenha derrubado o canalha, a cadela que o gerou est no cio novamente.

    No fim dos anos 80, Milton tambm se solidari-za com a questo ambiental, com a causa dos Povos da Floresta e das Naes Indgenas e realiza uma expedi-o pela Amaznia, com o apoio do Centro Ecumnico de Documentao e Informao (CEDI) e do Ncleo de Cultura Indgena da Unio das Naes Indgenas (UNI), que resulta na criao do disco Txai8 termo que signifi-ca: companheiro, a outra metade de mim, palavra da ln-gua da nao Kaxinawa.

    8 Disco Txai, 1990.

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  • Uma teologia da resistncia

    A Resistncia e o Amor

    Rasgaram fora meu bloco de notasE me deixaram algumas pginas em brancoPara o desencantamento do que foiE o despertar de niti vo do que vir

    Jogaram vento e, de paraquedas,Eu encontrei uma trmica in nitaPara o desencantamento do que foiE o despertar de niti vo do que vir

    Foi tentando que erreiFoi achando que perdiA essncia do que souA resistncia e o amor

    Mas como no desisto nuncaDe perseguir minha verdadeDou da nuca ao calcanharA quem por mim passarNa resistncia e o amor, O amorNa resistncia e o amor,O amor...

    (Pedro Sol)

    Em 1973, em plena Ditadura Militar, no governo do General Mdici, o perodo mais violento da represso,

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

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  • Milton gravou Sacramento9, e nesta letra encontramos o cerne da sua opo existencial e de seu canto: um apelo resistncia e esperana.

    Trs pessoas vieram me pedir No morra que o mundo quer saberAs coisas que a vida no te impsA morte que sempre a ti perdeuO amor que teus olhos sabem darCom o pranto calado me caseiDe noivo do pobre me torneiNo crisma de busca assumiO quarto fechado que afasteiQue um banho de cinzas bati zouE o mais que consigo dizer:Com o pranto calado me caseiUm banho de cinzas bati zouO quarto fechado que afasteiNo crisma de busca assumiDois olhos que ainda no achei.

    Viver no conceder na morte, no temer, resis-ti r, perseverar. Caminhar para onde se encontra a vida. Profeti camente, denunciar ao mundo este con ito cons-tante e histrico entre a imposio dos opressores e a bus-ca da liberdade e dignidade dos oprimidos. Ter a lucidez de que a vida dos opressores paga custa da pouca vida ou mesmo da morte dos oprimidos. Nessa resistncia que afi rmamos nossa capacidade de amar. Um amor em atos e

    9 Disco Milagres dos Peixes, 1973.

    Caderno Cincia e F

    Paulo Botas e Pedro Sol Blanco

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  • obras. No o amor das boas intenes, que no nos leva a lugar e parte alguma; nem o amor das evases em nome do ainda no hora de....

    Esse pseudoamor vela as verdadeiras contradies e as exigncias concretas dos embates e desafi os pela instau-rao da paz e da justi a. No podemos ceder nem conceder s estruturas da morte que convertem em banalidade a vida de nossos irmos e irms. Deve-se resisti r na travessia para fruti fi car o amor que teus olhos sabem dar.

    No podemos temer a novidade que a travessia da vida nos apresenta sempre. Como nos prega o Papa Francisco (2013a):

    Frequentemente mete-nos medo a novidade, incluindo a novidade que Deus nos traz, a novidade que Deus nos pede. Fazemos como os apstolos, no Evangelho: muitas vezes preferimos manter as nossas seguranas, parar junto de um tmulo com o pensamento num defunto que, no fi m das contas, vive s na memria da histria, como as gran-des fi guras do passado. Tememos as surpresas de Deus e Ele no cessa de nos surpreender. O Senhor assim.

    Como o poeta e cantor Pedro Sol, que, no temendo a imprevisibilidade do Transcendente, busca-O dizendo:

    Rolando a lista telefnica, mal lendo os nomes direito, apresso-me para achar um nome que no comece com nenhuma letra, um nmero sem conter dgito, um mapa sem estrada, uma rota sem chegada, uma ptala sem or, uma gota sem mar, um Deus sem religio, um erro

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  • encaixar num acerto maior, numa meta sem alvo, num jogo sem gol nem pontos, muito menos nmeros.

    Ou como o profeta amado por Milton:

    Imagine que no h cu fcil, se voc tentarNenhum inferno embaixo de nsE, em cima, s rmamentoImagine todo mundoVivendo pro dia de hoje.

    Imagine no haver pasesNo dif cil imaginarNada por que matar ou morrerE nem religio tambmImagine todo mundoVivendo a vida em paz.

    Voc pode dizerQue sou um sonhadorMas no sou o nico noEspero que um diaVoc se junte a ns E o mundo ser uma coisa s.

    Imagine no haver possesDuvido que voc possa,Sem lugar para a gula ou a fome,Uma fraternidade do homemImagine todo mundoParti lhando todo o mundo.

    Caderno Cincia e F

    Paulo Botas e Pedro Sol Blanco

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  • Voc pode dizerQue sou um sonhadorMas no sou o nico noEspero que um diaVoc se junte a nsE o mundo viver como um s10.

    Milton, em sua poesia, revela que as opes de nossa vida se fazem em momentos de profunda solido. No de uma solido que nos isola dos companheiros, mas uma soli-do que dimensiona a estatura do gesto a ser vivido e que sempre, e deve ser, um gesto concreto de amor. Como afi rma Gabriel Marcel: a solido essencial para a fraternidade11. Com o pranto calado me casei esposar o pranto calado, triste e dif cil como o do Cristo que balbuciava: A minha alma est triste at a morte (Mc 14,34).

    Milton conti nua a revelar as escolhas a serem feitas: De noivo do pobre me tornei. Tornar-se noivo do pobre reconhecer que a ele anunciada a Boa Nova e que os pobres so os depositrios da fora de Deus. Nunca podemos esposar o pobre, pois espos-lo reconhecer que sua condio social

    10 John Lennon, Imagine, 1971. Imagine theres no heaven/Its easy if you try/No hell below us/Above us only sky/Imagine all the people/Living for today./Imagine theres no countries/It isnt hard to do/Nothing to kill or die for/And no religion too/Imagine all the people/Living life in peace./You may say/Im a dreamer/But Im not the only one/I hope some day/Youll join us/And the world will be as one./Imagine no possessions/I wonder if you can/No need for greed or hunger/A brotherhood of man/Imagine all the people/Sharing all the world./You may say/Im a dreamer/But Im not the only one/I hope some day/Youll join us/And the world will live as one.

    11 Agradecemos a Andr de Azevedo pela lembrana desta citao.

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

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  • querida por Deus, como tantas vezes nossos manuais de teo-logia tm repeti do ad nauseam: a vontade de Deus....

    No entanto, os ricos vo fenecer como a or da erva do campo, pois quem se farta de riquezas no consegue dormir (Ecl 5,11). O Senhor exige de ns uma imediata deciso: de qual lado estamos? Da vida? Da morte? Assim porque s morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca (Ap 3,16). O lti mo livro selou a sorte dos ricos: Pois dizes: sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso. No sabes, porm, que s tu o infeliz: miservel, pobre, cego e nu (Ap 3,17).

    Milton avana na sua revelao: No crisma de bus-ca assumi, o quarto fechado que afastei, que um banho de cinzas bati zou. A busca de um mundo novo se faz por meio de nossos engajamentos e compromissos com os que se reconhecem companheiros, que comem do mesmo po. Seremos sinal de contradio, acolhidos por uns e amaldio-ados por outros. Seremos o sim e o no ao mesmo tempo.

    Romper o quarto fechado destruir os muros para dei-xar o sol entrar; sermos pontes para que nos convertamos em distribuidores da misericrdia e da generosidade, e no guardies intransigentes da intolerncia. Sermos bati zados no banho de cinzas reconhecer a humildade de que somos todos fi lhos do mesmo Pai e que no devemos trabalhar to perfi damente uns contra os outros (cf Ml 2,10). Essa humilda-de, esse lavar os ps uns dos outros, a fora interior que nos faz construir um caminho de solidariedade entre os homens e as mulheres, que nos faz perseverar e resisti r na esperana.

    O Papa Francisco (2013b) declara que devemos estar a servio uns dos outros, pois esse sinal o de servir

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  • uma carcia de Jesus, que Jesus o faz, pois Jesus veio justa-mente por isso: para servir.

    Quando o poder e a posse so considerados fi ns em si mesmos, no h nenhuma presena samaritana do servio. O poder ser um poder contra os outros, e a posse, a excluso dos outros.

    Deixar Fluir

    Leve o pensamento o mais longe que puderMas volte com o vento antes do sol se prTudo tem moti vo, no importa o que forAs perguntas sem respostas muitas vezes causam dor

    No vou fugir, eu vou sonharMe distrair no teu olharVou te pedir pra responderO que ainda no entendiVou deixar uir, deixa uirDeixa uir atravs de ti ,Vou deixar uir, deixar uirDeixar uir atravs de mim

    Lgica s me atrapalha a entender melhorMeu prprio entendimento se limita na razoQuero ir alm do que meus olhos podem verEu quero ter meus pensamentos focados s em voc

    No vou fugir, eu vou sonharMe distrair no teu olharVou te pedir pra responderO que ainda no entendi

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

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  • Vou deixar uir, deixa uirDeixa uir atravs de ti ,Vou deixar uir, deixar uirDeixar uir atravs de mim

    Leve o pensamento o mais longe que puderMas volte com o vento antes do sol se prTudo tem moti vo, no importa o que forAs perguntas sem respostas muitas vezes causam dor

    No vou fugir

    (Pedro Sol)

    Finalmente, Milton revela que este caminho insond-vel da busca de dois olhos que ainda no achei ser reali-zado quando o mundo novo for criado e tenhamos defi ni-ti vamente rompido com a opacidade e o ressenti mento de quem no entrega sua vida.

    Se a solido matasse, eu j estaria morto, mesmo tendo famlia, amigos e elogios. Se a perdio morresse, eu j es-taria morto, pois, afi nal, na vida s se encontra quem j se perdeu. Perdida nessa histria est a noo dos que foram sujeitos vossa verdade, nas vossas condies. Quero um pacto com a liberdade, um contrato com o silncio, tascar um beijo na solido e abraar por inteiro a redeno de amar e ser amado, chorar e ser consolado por algum sem interesse, uma mo sem conter brao, um corao sem ha-ver compasso, contando dias, horas, meses e segundos para

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  • decifrar a durao de um ano, que perde, a cada ano, mais uma frao de segundo, refracionando em si um reboot do acervo apresentado pelos mesmos que vivem pela lei que diz o que e o que no nessa pequena terra mesquinha e inti l, se no houvesse a possibilidade da aproximao da presena da santa msica e do sagrado amor universal

    (Pedro Sol)

    Dom Pedro Casaldliga escreveu sobre Milton: Digo eu. Canta Milton. Gritam livres, os pobres. No possvel que conti nuem as estrelas impassveis. E neste julgamento fi nal, as estrelas no estaro impassveis porque aprenderam que o que estava escrito era irrepet vel desde sempre e por todo o sempre, porque as esti rpes condenadas a cem anos de so-lido no ti nham uma segunda oportunidade sobre a terra (Gabriel Garca Mrquez).

    A proscrio dos poetas e profetas

    Milton ti nha a lucidez de que sua proscrio como msico e poeta havia de acontecer porque se alinhara, no seu silncio mais do que na ti midez, aos que enfrentavam o governo autoritrio e militar com toda a sua censura aos ar-ti stas e poetas. Seu disco Milagre dos Peixes, gravado no es-tdio, em 1973, teve quase a totalidade das suas letras proi-bidas. Milton no se inti midou, lanou o disco com vocalizes no lugar das letras censuradas. Um marco no enfrentamento

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

    29Caderno Cincia e F

  • ao obscuranti smo cultural do regime ditatorial que estendia suas garras vorazes aos msicos, dramaturgos e poetas do pas: presos, torturados, exilados e mesmo desaparecidos.

    Em 1981, escreve seu poema de enfrentamento Olha12:

    Tu clamas por liberdade, mas s aquela que te convmTu puxas a arma no escuro e no suportas ningum felizPersegues a quem trabalha, calnia, carga e traioTe julgas o mais esperto, mas s menti ra, s ilusoDepois de passar o tempo colhe o deserto que todo teuCom todo teu preconceito segue pensando que enganas DeusE enganando a ti mesmoPois quem trabalha conti nuou em cada sonho suadoque nem percebes o que custou.

    Milton faz desmoronar os esquemas preestabeleci-dos e rigidamente pr-fi xados. A vida obra do corao de cada homem, intransfervel, e no o produto de uma cadeia de montagem. Cada um tem seu ritmo e seu iti ne-rrio. Cada um tem sua liturgia de gestos e palavras para expressar seu amor, mas tambm sua indignao.

    Milton sempre acolheu os que buscam, questi onam, enfrentam, os que se debatem nas incertezas e perseguem, como ele, um raio de luz. uma busca dolorida que pode ser mais autnti ca que a posse de uma certeza que provoca a acomodao e a esclerose. A inquietude de Milton trao vital da sua travessia existencial, com tudo o que carrega

    12 Disco nima, 1982.

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  • no s de proscrio, de maledicncia, mas tambm de en-contros e despedidas. Sabe que:

    Quem quiser nascer tem que destruir um mundo; des-truir no senti do de romper com o passado e as tradies j mortas. Desvincular-se do meio excessivamente c-modo e seguro da infncia para a consequente doloro-sa busca da prpria razo do existi r: SER OUSAR SER (HESSE, 1999).

    No abrirei mo do meu sossego

    Quanta farsa e hipocrisiaEu no aguento mais viverO sonho falso de outro serQue mesquinho e pequenoCom o que merece mais ateno:Um bom carinho, um trato raro, singelo e aguado, sem pretenso, senti ndo a premonio dascoisas lindas que esto por vir,Das muitas vidas que pude abstrair do meu ser, que singeloE com inteno plena e pura de devoo a todos que procuram, como eu, o porqu.Atento ao vento e ao imprevisvel,encontrei a minha sina,minha reza e devoo...

    No abrirei mo do meu sossego(Pedro Sol)

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  • Milton fora marcado com o sinal de Caim, o da pros-crio, mas reconhecia no mais fundo de si mesmo todos os outros tambm marcados pelo mesmo sinal. Seria Caim para os covardes e medocres, mas Abel para Deus.

    Para o mundo, ns, os marcados com [o sinal], haveramos de passar por pessoas estranhas, talvez loucas e at mesmo perigosas. ramos pessoas que havamos despertado ou des-pertvamos, e nossa aspirao era chegar a uma viglia ainda mais perfeita, enquanto a aspirao e a felicidade dos demais consisti am em ligar cada vez mais estreitamente suas opi-nies, seus ideais e seus deveres, sua vida e sua fortuna, s do rebanho. Para eles, a humanidade era algo completo que devia ser conservado e protegido. Para ns, a humanidade era um futuro distante para o qual todos caminhvamos, sem que ningum conhecesse sua imagem e sem que se en-contrassem escritas suas leis em parte alguma (HESSE, 1999).

    Ecoava, neste credo do Bituca, o Credo da teloga alem Dorothee Slle:

    Eu creio em deus que no criou um mundo imutvel, algo incapaz de se modifi car, que no governa de acordo com leis que permanecem invioladas [...] eu creio em deus que deseja con ito na vida e quer que ns transformemos o status quo, pelo nosso trabalho, por nossas polti cas e por nossos sonhos (FOX, 2011, p. 269).

    Milton vai confi rmar, em alto e bom som, sua posio diante da vida em Teia de Renda13:

    13 Disco nima, 1982.

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  • Do meu desti no, o que restouMarca profunda de muito amorTo procurada, iluminadaEssa loucura que me abraou [...]Eu no aceito o que se fazNegar a luz, ngindo que pazA vida hoje, o sol sempreSe j conheo, eu quero maisO que se andar, o que crescerSe j conheo, eu quero mais

    A utopia: o Tau-no-ainda-possvel

    Essa busca tomou conta... por meio da busca do Ser Superior que se encontra dentro, ao redor e impregnado nas entranhas dos simples e humildes de corao, que acei-tam, como eu, que somos seres frgeis, fracos impotentes e inteis sem a inspirao divina do Tau Ser Superior.

    (Pedro Sol)

    Essa esperana de um mundo novo mais ainda agu-ada em Milton, ao conhecer o msti co dominicano Mestre Eckhart, do sculo XIV, punido pela Igreja ofi cial por ensinar e escrever doutrinas herti cas. Em Eckhart, pensamento, vida e f assumem a mesma colorao da unidade, do UM em cada homem, sem exceo, mesmo quando ainda no era, uma centelha divina.

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

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  • A declarao sobre a Trindade e sua pericorese (daa) o emociona profundamente: O Pai sorri para o Filho, o Filho sorri para o Pai, e o sorriso faz nascer o prazer, o prazer faz nascer a alegria e a alegria faz nascer o amor (MESTRE ECKHART apud RADCLIFFE, 2004, p. 35). Milton, moti vado, grava, de viva voz, esta frase no seu disco ...E a gente sonhan-do14 como epgrafe do seu poema Sorriso:

    Sim, o teu sorriso penetrou minha almaComo um lme de Truff autMsicas, crianas nessa mesma festa colorida cu cou [...]Nunca uma menti ra nenhuma tormentaNas janelas do teu serSolta sonho e vidaCulti va a amizade faz o teu amor vencer [...]No desapareas, o mundo precisa da beleza para renascerTudo mais que eu queira cumplicidade, ajudar quem quer viver.

    Essa cumplicidade humana, demasiadamente huma-na, culti vada, a duras penas, na travessia de Milton, aponta para a eternidade do Transcendente. Juntam-se as vozes de Bituca e Eckhart:

    De Deus a honra. Quem so os que honram a Deus? So os que deixam totalmente a si mesmos e, de modo algum, nada buscam do que seu em nenhuma coisa, seja o que for, grande ou pequeno; no veem nada abaixo nem acima de si, nem ao seu lado nem em si mesmos;

    14 Disco ...E a gente sonhando, de 2010.

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  • que no procuram bem, honra, conforto, prazer, uti lidade, nem interioridade, nem santi dade, nenhuma recompensa nem mesmo reino dos cus e que se tornaram exteriores a tudo isso, a tudo que seu. Dessas pessoas Deus recebe honra. E elas honram a Deus, no senti do prprio, dando a Deus o que de Deus (MESTRE ECKHART, 2010, p. 69).

    A estrada da vida me aguardou fazer a mala enquanto eu aguardava e estudava o tempo aberto. Ontem aprendi, na prti ca, que o sol conti nua brilhando acima das nuvens escuras. Hoje, virei a chave do carro da minha vida e sa debaixo de chuva atrs do meu desti no.

    (Pedro Sol)

    Em sntese, para Eckhart, Cristo todos os homens e todo homem pode ser Cristo. A uni-versalidade do evento Cristo no se restringe a um fato histrico chamado cristi a-nismo, nem a uma ou outra insti tuio. A historicidade des-se evento lana razes e vem luz na prpria humanidade do homem, que divina.

    H um poema indiano que pode ilustrar a viso cs-mica de Eckhart (2010, p. 33)15, em que em cada grau sem-pre est presente o todo do universo da fora, no como soma das partes, mas como fora remissiva uno-mlti pla. Na identi dade de atuar e ser, no entanto, d-se sempre e somente unidade:

    15 Para quem desejar aprofundar a viso csmica de Eckhart, ver o Sermo 54 na obra citada, p. 296.

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  • Deus dorme na pedra, respira na plantaSonha no animal e desperta no homem

    Nessa sintonia, Milton denuncia o uti litarismo do mundo, o consumismo desenfreado que impede o encontro mais nti mo entre os homens e as mulheres. Nele, ainda eco-am as palavras do msti co:

    Muitas pessoas, porm, querem ver a Deus com os mes-mos olhos com que veem uma vaca, e querem amar a Deus como amam uma vaca. Amas uma vaca por causa do leite e do queijo, e por causa do teu prprio proveito. Desse modo comportam-se todas aquelas pessoas que amam a Deus por causa da riqueza exterior ou de conso-lo interior. Elas, porm, no amam propriamente Deus e sim o prprio proveito16.

    E Milton arremata, em 1984, em A Primeira Estrela17:

    Perdoar e fazer crescer o bem comum, o seu trabalho, seu sustentoA emoo de ver seu lho tecer, com mo, a cor da liberdade Sua casa, casa clara, clara paz celebrando a naturezaAbraar o mundo na ternura e na dor,elevar o pensamento e tornar-se rei [...]Nosso irmo, Senhor das manhs com sua estrela deusa, lua novidadeSimples corao de prata de lei

    16 Idem, Sermo 16.17 Disco Encontros e Despedidas, 1985.

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  • Nosso corao traz tanto pranto, pranto, pranto tanto canto, pra soltarRenascer da velha histria abraando o mundo da ternura e na dorNos ensina a escrever a cano do sol

    Finalmente, o Tau, caminho e cruz, nos apresenta-do com toda a sua fora e virulncia. Nas nossas travessias mlti plas e plurais, o caminho a ser conquistado e trilhado o caminho da amizade e do amor, que o nico que nos conduz ao Transcendente.

    No poema Tudo18, de 1979, Milton nos convida a despertar:

    Barco pra quem pode, barco pra quem querPssaro que pousa onde v. Onde est a entrega, tua vibrao Num abrao, um beijo teu corao.T tudo o que importa coisa de irmo que nunca termina s conhecer.Raiva, me ajuda que a morte solido. [...]Barco s um nome e tudo de voc chamada, vinda, o fundo, se verT tudo o que importa onde est o irmoPssaro que pousa barco o corao.

    18 Disco Sentinela, 1981.

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  • Milton conti nua a reafi rmar, como um grito preso na garganta, em De Magia, de Dana e Ps19, de 1980:

    A pulsao do mundo o corao da genteO corao do mundo a pulsao da genteNingum nos pode impor, meu irmoO que melhor pra gente.

    Declara a sua defi nio de alma no poema nima20, como uma concretude de ternura e coragem:

    Alma, vai alm de tudo o que o nosso mundo ousa perceberCasa cheia de coragem, vidaTodo afeto que h no meu ser te quero ver, te quero ser alma.

    Milton aprende que, tanto no amor quanto na amiza-de, ningum dono nem devedor. Uma reciprocidade amo-rosa que deve conduzir os que se amam a olhar na mesma direo e no somente um para o outro. O segredo do ca-minho do amor e da amizade cada um buscar fazer feliz o outro e no procurar realizar a sua prpria felicidade no outro, pois neste caso no amamos o diferente de ns, mas nosso prprio espelho.

    Milton nos exorta, em Portal da Cor21:

    Coragem, companheiroPra que fechar a voz

    19 Disco Caador de Mim, 1981.20 Disco nima, 1982.21 Disco Encontros e Despedidas, 1985.

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  • Se a fora do desejoPulsa em cada um de ns?

    Milton fez gravar, na porta da sua casa, h alguns anos, um texto de Santo Agosti nho:

    As conversas, o rir juntos, a leitura conjunta de livros amenos, os passatempos em comum, ora leves, ora s-rios, as brigas ocasionais sem rancor, como de um homem consigo mesmo, os mais frequentes acordos, o ser um do outro ora mestre ora discpulo, a saudade impaciente de quem est longe, a acolhida festi va de quem volta estes e outros sinais semelhantes, prprios de coraes amigos, expressos com a boca, a lngua, os olhos e mil gestos ex-tremamente agradveis tudo isso como o alimento da chama que funde juntas as almas e de muitas faz uma s (Con sses 4, 8, 13).

    Forma nica

    Dividimos as metades confundindo o inteiroInsegurana humana produz desesperoProcuramos um caminho que defi na liberdadeNo fi m do labirinto, um ponto o que nos restaNingum mais j foi perfeitoLivre de todo preconceitoQue a raa humana inventaPara impor a diferenaPontos de vista pra c, no perca a vista de lPois de l que vem o socorro e o socorro temUma forma nica

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  • Enxergo a forma que voc conservaAlcano a forma de outro jeito, mesmo assimVejo o brilho em seu olhar como mais um caminhoE a alegria em meu andar faz parte do costume

    E a nica forma de enxergar alcanando as outras formas de olharPra aquilo que se enxerga

    Enxergo a forma que voc conservaAlcano a forma de outro jeito, mesmo assimVejo o brilho em seu olhar como mais um caminhoE a alegria em meu andar faz parte do costume

    Costume, se acostume com a paz de saber que o socorro tem uma forma nica.nica, sim, nica, uma forma nicaUma fonte nica, sim, nica.

    (Pedro Sol)

    Em Rdio Experincia22, Milton vai desvelar o segre-do deste Tau da travessia:

    Eu quero a alegria em cada vozQue a anti ga espera tenha a sua vezE o sonho que carrego em minhas costas o lao de unio entre vocsNs

    22 Disco Encontros e Despedidas, de 1985.

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  • Devemos ser um entrelaamento de pessoas que afi rmam sua originalidade por meio de sua alegria, de sua doao e de sua ternura. O Papa Francisco, na homilia que iniciou seu ministrio de Bispo de Roma, em 19 de maro de 2013, afi rmou:

    Lembremo-nos de que o dio, a inveja, o orgulho sujam a vida [...] No devemos ter medo da bondade e da ternura [...] Uma grande ternura no virtude dos fracos, antes pelo contrrio denota fortaleza de nimo e capacidade de solicitude, de compaixo, de verdadeira abertura ao outro, de amor. No devemos ter medo da bondade, da ternura!

    Nossas vidas devem fazer ecoar, como tem ecoado a vida de Milton, neste Tau da Travessia, neste Tau-no-ainda-possvel, cosmicamente, o escrito por Santo Agosti nho (Carta 73, 3, 10):

    Quanto a mim, confesso que acho natural entregar-me por inteiro ao afeto de meus amigos, especialmente quan-do estou cansado dos escndalos do mundo. Neles me repouso sem preocupao alguma. Pois sinto que Deus est l, que nEle que me lano com toda a segurana e em toda segurana me repouso. Quando sinto que um homem, abrasado de amor cristo, tornou-se meu amigo fi el, o que lhe confi o de meus projetos e de meus pensa-mentos no a um homem que confi o, mas quele em que ele permanece e pelo qual o que .

    Finalmente, permita-nos encerrar com o poema Cogito, de um homem que marcou a mesma gerao de Milton: Torquato Neto (1944-1972). Como Bituca, ele

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  • buscou, viveu e escreveu naqueles tempos perturbadores, e sua voz ainda profti ca nestes tempos de banalizao do mal e da existncia em que vivemos, nos movemos e somos.

    eu sou como eu soupronomepessoal intransferveldo homem que inicieina medida do impossveleu sou como eu souagorasem grandes segredos dantessem novos secretos dentesnesta horaeu sou como eu soupresentedesferrolhado indecentefeito um pedao de mimeu sou como eu souvidentee vivo tranquilamentetodas as horas do m.

    Amor Universal

    Ontem j no mais hoje,Hoje j no foi amanh?no fundo, o que vale soas sobras que o tempo nos d para viver e simplesmente sermosnica e exclusivamente nossospor alguns momentos

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  • Sem julgamentoSem mscarasnem armaduraAlimentado de Ternura eVerdadeiro AMOR UNIVERSALQue vem da fonte daquilo mesmo de quesomos feitos:energia csmica que se torna matria,que tem liberdade de pensamentoLiberdade de expressar tais pensamentos,liberdade para agir e viverno mesmo patamar da nossa mente e, consequentemente, da nossa boca

    Coragem para vencer obstculoscada vez mais altos e impossveis,tornando o no-ainda-possvel cada vez mais possvel,o que possibilita uma viso da nova vida que, em primeira mo, aparenta ser desregrada, mas vale lembrar que estamos prejulgando nossos atosde acordo com um critrio que no tem verdadeiro cri-trio divino e teolgico o apoiando (s vezes, muito pelo contrrio), por se originar de pensamentos humanos e calculistas que rastejam num nvel no qual nenhuma di-vindade deveria ser julgada, avaliada ou at mesmo enquadrada numa moldura, como se fosse enfeite...Um bom exemplo disso seria o prprio texto que redijo, palavra por palavra, entre inspiraes e pensamentos du-radouros de vida, com formas coloridas brilhando com a certeza do erro inevitvel.A certeza do caminho infalvel e da indiferena que as pa-lavras e os gestos maldosos de preconceito e caos fazem, faziam ou faro ao caminhar

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

    43Caderno Cincia e F

  • diante da obsti nao de seguir o Tau Caminho ainda-no--possvel, que se torna a cada dia mais possvel,ao viver fi elmente e a qualquer custo o caminho do Bem Maiorem nome do Amor MaiorGuardado em Toda Natureza

    Do meu ninho ao meu vinhoDo Teu vinho (sangue do Cordeiro)De volta ao ninho (Fonte Divina)Quero viver simples assimMergulhado em ternura e obsti naoPor meio do poder do nico Deus vivoDo qual fao questo de viver bem perti nhoPor ter nos dado de presenteA verdadeira PAZ E AMOR UNI VER SAL

    P.S.: No posso ser o nico que viu, v ou ver o Sal...

    (Pedro Sol)

    Comunidade dos Manos da Terna Solido (Matersol)Rio de Janeiro/Terespolis, abril de 2013

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    44

  • BENTO XVI. Introduo ao cristi anismo. So Paulo: Loyola, 2005.

    BIGI, M. O Tau, um sinal, uma espiritualidade. Petrpolis: Vozes, 2004.

    CACCIATORE, O. G. Dicionrio de cultos afro-brasileiros. Rio de

    Janeiro: Forense Universitria, 1977.

    FOX, M. Christi an Mysti cs. California: New World Library, 2011.

    HESSE, H. Demian. Rio de Janeiro; So Paulo: Record, 1999.

    MARCEL, G. Homo viator. Paris: Aubier, 1944.

    MESTRE ECKHART. Sermes alemes. Petrpolis: Vozes, 2010.

    PAPA FRANCISCO. Homilia da Missa da Ceia do Senhor no Crcere

    para Menores em Roma. 28 mar. 2013a.

    PAPA FRANCISCO. Homilia da Viglia Pascal. 30 mar. 2013b.

    RADCLIFFE, T. Les sept dernires paroles du Christ. Paris: Du Cerf, 2004.

    Referncias

  • ROSA, J. G. Grande serto: veredas. So Paulo: Nova Fronteira,

    2006.

    SANTO AGOSTINHO. As Con sses. So Paulo: Editora das Amricas, 1961.

    REFERNCIAS DE DISCOS

    NASCIMENTO, M. Milton Nascimento. Rio de Janeiro: Ritmos/Codil, 1967. 1 disco sonoro.

    NASCIMENTO, M. Courage. A&M Records/CBS/Polygram, 1969. 1 disco sonoro.

    NASCIMENTO, M. Milton. Rio de Janeiro: EMI-Odeon. 1 disco sonoro.

    NASCIMENTO, M. Milagres dos Peixes. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1973. 1 disco sonoro.

    NASCIMENTO, M. Caador de Mim. Rio de Janeiro: Ariola/Polygram, 1981. 1 disco sonoro.

    NASCIMENTO, M. Senti nela. Rio de Janeiro: Ariola/Polygram,

    1981. 1 disco sonoro.

    NASCIMENTO, M. nima. Rio de Janeiro: Ariola/Polygram, 1982. 1 disco sonoro.

    NASCIMENTO, M. Encontros e Despedidas. Rio de Janeiro: Polygram, 1985. 1 disco sonoro.

    NASCIMENTO, M. Txai. Rio de Janeiro: CBS, 1990. 1 disco sonoro.

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    Paulo Botas e Pedro Sol Blanco

    46

  • NASCIMENTO, M. ...E a gente sonhando. Rio de Janeiro:

    Nascimento/EMI, 2010. 1 disco sonoro.

    REGINA, E. Elis. So Paulo: Phillips, 1966. 1 disco sonoro.

    O Tau da travessia: a teopotica da Milton Nascimento

    47Caderno Cincia e F

  • Sobre os Autores

    Paulo BotasDoutor em Filosofi a pela Sorbonne, em Paris, na Frana. telogo,

    escritor e disco de ouro pela parti cipao na produo do disco

    Senti nela, de Milton Nascimento. Parti cipou como dicono da

    Missa dos Quilombos, em Recife, em 1981, juntamente com Dom

    Helder Cmara, Dom Jos Maria Pires, Dom Pedro Casaldliga,

    Dom Marcelo Cavalheira e Milton Nascimento, e tambm em

    Santi ago de Compostela, Espanha, em 1992, em comemorao

    aos 500 anos do Descobrimento da Amrica.

    Pedro Sol BlancoCantor, compositor, msico e ator. Fez curso de Teoria e Percepo

    de Msica, estudou canto com Felipe Abreu, violo clssico com

    Clia Vaz e bateria com o percussionista Roberti nho Silva. No

    teatro, atuou em diversos musicais, como 7 O Musical, Despertar da Primavera, Beatles num Cu de Diamantes e Milton Nascimento Nada Ser como Antes, atualmente em turn pelo pas.

  • Crd

    ito:M

    ater

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    Xaxim Curitiba (PR)Tel: (41) 3276-0040Fax: (41) 3275-7160

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    A presente edio foi composta pela Editora Universitria Champagnat e impressa pela Grfica Everest, em sistema offset, papel plen 90 g/m

    (miolo) e papel supremo 250 g/m (capa), em junho de 2013.