memorias da irmã lúcia

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  • 1

  • Secretariado dos Pastorinhos FTIMA PORTUGAL

    MEMRIASDA

    IRM LCIA I

    Compilao do P.e Lus Kondor, SVD

    Introduo e notas do P.e Dr. Joaqun M. Alonso, CMF (1981)

  • 4Imprimatur,Fatimae, Octobris de 2007 Antonius, Episc. Leiriensis - Fatimensis

    13 edio, Outubro de 2007

    Capa: Irm Maria Lcia de Jesus e do Corao Imaculadoem visita Loca do Cabeo (16 de Maio de 2000)

    Contra-capa: Baslica do Santurio de N.a S.a de Ftimacom os retratos dos dois Pastorinhos aps a sua beatificao

    em 13 de Maio de 2000

    ISBN: 978-972-8524-18-0

  • 5PREFCIO DO EDITOR

    s quatro primeiras Memrias da Irm Lcia, escritas por ordemdo Bispo de Leiria, Jos Alves Correia da Silva, e aos Apndices Ie II relatos das aparies em Pontevedra e Tuy em cumprimentoda promessa de 13 de Julho de 1917: ...virei pedir a Consagraoda Rssia a Meu Imaculado Corao e a Comunho Reparadoranos primeiros sbados juntou-se o texto do importante documentointitulado A Mensagem de Ftima, com a terceira parte dosegredo, que Joo Paulo II confiara Congregao para aDoutrina da F o encargo de o tornar pblico depois de elaborarum comentrio adequado.

    Com a publicao da terceira parte do segredo recebido deNossa Senhora pelos trs Pastorinhos em 13 de Julho de 1917(ver Apndice III), ficou assim contida neste primeiro volume todaa Mensagem de Ftima.

    Estas quatro primeiras Memrias, alm das Aparies doAnjo e de Nossa Senhora, descrevem tambm como os Pas-torinhos corresponderam heroicamente aos pedidos de NossaSenhora, e nos apontam a todos, e de modo especial s crianas,um caminho certo para atingir a santidade.

    As chamadas Quinta Memria (sobre o pai) e Sexta Me-mria (sobre a me) escritas pela Irm Lcia, no Carmelo deCoimbra, esto editadas, em separado, em Memrias da IrmLcia II.

    A beatificao de Francisco e Jacinta Marto (13-V-2000) ini-ciou uma nova era para a Igreja.

    Eu te bendigo, Pai, porque revelaste estas verdades aospequenos. O louvor de Jesus toma hoje a forma solene de beatifi-cao dos Pastorinhos Francisco e Jacinta. A Igreja quer, com esterito, colocar sobre o candelabro estas duas candeias que Deusacendeu para iluminar a humanidade nas suas horas sombrias einquietas... Que a mensagem das suas vidas permanea sempreviva para iluminar o caminho da humanidade. (Sermo de JooPaulo II, em Ftima, na missa da Beatificao)

  • 6O contedo destas Memrias justifica bem o grande esforodespendido na elaborao da nova edio.

    Com a benvola licena do Bispo de Leiria-Ftima utilizmosos manuscritos originais das quatro primeiras Memrias.

    Aproveitmos os trabalhos do P.e Dr. Joaqun Mara Alonso,Claretiano (1981) e contmos com a ajuda do P.e Dr. Luciano Cristino,Director dos Servios de Estudo e Difuso do Santurio de Ftima.

    Aqui Ihes deixamos, em nome pessoal e de todos os leitores aexpresso do nosso reconhecimento pela sua preciosa ajuda.

    Assim, nesta nova edio, -lhe dada, caro leitor, a garantiapossvel das palavras da Irm Lcia, embora corrigidas na ortografiae na apresentao dos dilogos, esperando que elas o atinjam nomais profundo de si mesmo e a se fixem em laboriosa docilidade aoEsprito.

    Agradecemos ao Senhor esta graa extraordinria de podermoster hoje nas mos a obra completa sobre a Mensagem de Ftima,que tanto ajudar a conhecer e a amar sempre mais a Santa Mede Deus e nossa Me.

    P.e Lus Kondor, SVD.Vice-Postulador das Causas de Canonizao

    dos Beatos Francisco e Jacinta

  • 7 INTRODUO S MEMRIASDA

    IRM LCIA

    Antes de entrar na matria propriamente dita de uma intro-duo a toda a publicao de Memrias, pareceu-nos oportunoexpor ao leitor, embora com muita brevidade, quais as nossas in-tenes, os limites que nos impusemos e o procedimento ou mto-do seguidos.

    A presente edio das Memrias da Irm Lcia constitudapelo texto portugus tal como se encontra nos originais manuscri-tos conservados no Arquivo da Cria Episcopal de Leiria, precedi-dos de uma breve introduo.

    Devemos bondade paternal do actual Ex.mo Senhor Bispo deLeiria-Ftima a generosa licena da publicao. No se trata, claroest, de uma edio crtica, no sentido tcnico da palavra. A obracrtica sobre os textos de Ftima est a ser feita pelo Servio deEstudos e Difuso do Santurio, em volumes sob o ttulo Docu-mentao Crtica de Ftima.

    A presente edio , pois, uma edio popular e de vulgari-zao de um texto precioso que ir comovendo o mundo. Aochamar-lhe popular, no o fazemos para nos libertarmos dasexigncias crticas, seno de algumas delas, como, por exemplo:no julgamos necessria a indicao de todas as referncias efontes que esto na base das nossas afirmaes. Sem dvida,podemos assegurar ao leitor que nenhuma afirmao feita aqui,na introduo ou notas, que no possa ser provada.

  • 8Uma obra de carcter popular exige limites. No necessriomultiplicar as citaes e notas, sobrecarregando-a excessivamente,mas, ao contrrio, que o leitor no encontre dificuldades na sualeitura. Neste sentido, onde as palavras ou o pensamento da Autoranos aconselham a faz-lo, damos a necessria explicao. Da,tambm, o procedimento seguido.

    No nos parecia bem, numa edio deste gnero, que a obrade Lcia, extraordinariamente difana e simples, aparecesse semaquelas divises normais que o prprio texto insinua. Por isso divi-dimos as Memrias em partes, captulos e pargrafos, onde nospareceu conveniente e o pedia a sua estrutura lgica. Demos ttu-los a essas divises. Mas, para que o leitor saiba que as introdu-es, os ttulos, as notas explicativas e as palavras acrescentadasso nossos e no da Irm Lcia, vo em itlico.

    Assim, esperamos que o leitor, por um lado, descanse na sualeitura, por vezes longa; e entre, por outro, devidamente preparadono contedo do ttulo oferecido. O texto original, portanto, longe deperder a sua integridade, pode ganhar em clareza e ordem.

    As notas e referncias ao fundo da respectiva pgina, ajudamo leitor a superar certas dificuldades; explicam certas circunstn-cias estranhas; e do algumas informaes, sem as quais, nalgunscasos, no fcil entender bem o texto original.

    Damos, em primeiro lugar, uma biografia, necessariamentebreve da Irm Lcia; seguidamente, um ensaio da fisionomia lite-rria da Autora; e, por fim, uma introduo geral a todas as Mem-rias em conjunto.

    No lugar prprio, faremos uma introduo especial a cadaMemria que compreende: a ocasio, o tempo, o ambiente, as in-tenes e o contedo geral.

    BIOGRAFIA DE LCIA

    Aos trinta dias do ms de Maro de mil novecentos e sete,nesta paroquial Igreja de Ftima, concelho de Vila Nova de Ou-rm, Patriarcado de Lisboa, baptizei solenemente um indivduo dosexo feminino, a quem dei o nome de Lcia, nascida em Aljustrel,desta freguesia, s sete horas da tarde de vinte e dois de Marocorrente... Assim reza a acta do baptismo. Seus pais eram Antnio

  • 9dos Santos e Maria Rosa, residentes em Aljustrel, lugarejo perten-cente Parquia de Ftima.

    Sendo a ltima de sete irmos, cinco raparigas e um rapaz,teve uma infncia de mimos e privilgios, a que no faltaramdesgostos e desgraas familiares, corajosamente suportados esuperados por aquela mulher exemplar que era sua me. Aos seisanos, faz a sua primeira comunho, cujo relato os nossos leitoresho-de saborear com admirao e carinho. Nessa idade porqueassim o exigiam as necessidades da casa, comea a sua vida depastora. Primeiro, no ano de 1915, os seus companheiros so todasas pequenas e pequenos de Aljustrel e arredores. A partir de 1917,acompanham-na, quase exclusivamente, seus primos Francisco eJacinta Marto. o ano das Aparies da Virgem. Nelas, Lcia ocupaum lugar especial, pois a nica que fala com Ela e dEla recebeuma mensagem especial para dar a conhecer no futuro. Vive esofre com seus primos, por causa das Aparies; mas tambm anica que teria de ficar por mais tempo neste mundo, para cumprira sua misso.

    A Virgem, na verdade, tinha-a mandado aprender a ler... Semdvida, s depois das Aparies comea a ir escola, onde rapi-damente, com seu engenho e memria extraordinrias, aprendeas primeiras letras.

    Passadas as Aparies, a situao de Lcia era, naturalmente,a de uma vidente, com todos os riscos que isso comporta. Eranecessrio fazer algo mais com ela. Atender sua educao esubtra-la aos perigos que poderia sofrer naquele meio ambientede milagreira e de maravilhosismo, foi uma das primeiraspreocupaes do recm nomeado primeiro Bispo de Leiria, aps arestaurao da Diocese. Na manh de 17 de Junho de 1921 entrava,como educanda, no Colgio das Irms Doroteias, em Vilar, hojeintegrado na cidade do Porto.

    Recolhamos um retrato fisionmico da poca, correspondentea fotografias perfeitamente conhecidas: cabea alta e larga. Olhoscastanhos, grandes e vivos. Sobrancelhas pouco densas. Narizachatado, boca larga e lbios grossos. Queixo redondo. Rosto algomais que natural. Cabelos ruivos e finos. Baixa estatura, mas altapara a sua idade (ento tinha treze anos e meio). Feies bastasmas rosto simptico. Ar de gravidade e de inocncia. Viva,inteligente, mas modesta e sem pretenses. Mos grossas, detrabalho e de tamanho regular.

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    A jovenzita Lcia entra no Colgio do Porto com catorze anose trs meses. Ali recebe uma educao moral e religiosa excelen-te. A educao cultural mais deficiente, pois no vai alm dainstruo primria. Pelo contrrio, a preparao de lavores femini-nos muito boa. Mas a pequena Lcia, com o seu grande talento,grande memria, constncia e seriedade de conduta, haveria detirar, de tudo isso, uma formao que poderamos classificar desuficientemente completa.

    Lcia, j antes de entrar no Colgio tinha tido uns vagos desejosde consagrar-se a Deus na vida religiosa. Mas a intensa vida depiedade que se cultivava no Colgio f-la reflectir; e a sua primeiraideia foi para as Carmelitas... Porm, o exemplo e o agradecimentopara com as suas formadoras decidiu-a a escolher o Instituto deSanta Doroteia.

    Nessa altura (1921-1925) as Doroteias portuguesas tinham oNoviciado em Tuy. Para ali se dirigiu Lcia, ento jovem de 18 anos,no dia 24 de Outubro de 1925. Seguir imediatamente para a Casaque as Doroteias tinham em Pontevedra, na Travessa de Isabel ll,a fim de fazer o Postulantado. Esteve aqui desde o dia 25 de Outubrode 1925 at 20 de Julho de 1926, data em que chega ao Noviciadode Tuy para completar o Postulantado.

    Com a imposio do hbito, em 2 de Outubro de 1926, come-a o seu Noviciado. Ali passa os dois anos de Noviciado, paraprofessar no dia 3 de Outubro de 1928. Seis anos depois, desti-nada Casa de Pontevedra, para onde segue e permanece, atque, de novo, em Maio de 1937, volta a Tuy. Aqui fica at Maio de1946, em que recebe ordens para regressar a Portugal. Depois depassar uns dias a visitar e a reconhecer os locais das Aparies,na Cova da Iria e em Aljustrel, destinada Casa do Sardo, emVila Nova de Gaia, prximo do Porto. Entretanto, renovando anti-gos desejos de retiro e solido, obtm do Papa Pio Xll a graa datransferncia para as Carmelitas.

    Em 25 de Maro de 1948, entra para o Carmelo de Santa Te-resa, em Coimbra, para levar uma vida de orao e penitncia at morte, ocorrida em 13 de Fevereiro de 2005.

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    EM TORNO DA FISIONOMIA LITERRIA DE LCIA

    De toda a historiografia sobre Ftima, deve dizer-se aquilo que,entusiasmado com o seu livro, escrevia o escritor Antero deFigueiredo: Mas a luz deste livro, a grande luz, a luz bela, essa foirecebida directa, da alma cndida e profunda, admiravelmente sim-ples, da vidente Lcia de Jesus.

    Comecemos por dizer que os escritos de Lcia sempre se res-sentiram da sua falta de formao cultural suficiente. Mas, o quenoutros teria sido um defeito irreparvel, em Lcia foi suprido pelosseus grandes dotes naturais. Lcia confessa singelamente e mui-tas vezes a sua incapacidade e insuficincia chegando a dizerliteralmente: Nem sequer a caligrafia sei fazer capazmente. Con-tudo, essas faltas de correco ortogrfica no impediro nuncauma sntese clara e definida, atingindo, por vezes, uma redacoelegante e firme.

    Os seus dotes literrios poderiam resumir-se assim: clareza epreciso de conceitos; sentimentos delicados e profundos; umarica imaginao; um bom humor artstico que d graa ao relato,uma ironia delicada que nunca fere; uma extraordinria memriapara fixar detalhes e circunstncias; os dilogos vm-Ihe de den-tro, como se as pessoas estivessem presentes. Contempla imagi-nariamente a paisagem, como se a estivesse gozando. Sabe des-crever os caracteres dos primos, dos confessores, dos seus per-sonagens em geral, com rasgos que manifestam uma penetraopsicolgica no comum. D-se conta perfeitamente das suas diva-gaes e sabe voltar, com graa, ao ponto de partida.

    verdade que, por vezes, o estilo podia ressentir-se menosdas suas leituras piedosas, amenas e religiosas. Mas a sua natu-ralidade, vivacidade e alegria, sempre acabam por triunfar. Quemno recorda a sua despedida nocturna dos lugares queridos dasAparies, na vspera da sua partida para o Porto? Como noadmirar a graa com que se fixa nos sapatos, com fivelas de prata,de tal cnego? Como no sentir-se arrebatado pela transcriodaquelas Cantigas de Serrana?

    Lcia sabe dizer o que quer e di-lo como quer. E tal a posseinterior, que consegue conjugar as ocupaes servis absorventescom o trabalho de redaco dos seus escritos, sem perder o fio da

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    narrao ordenada, nem a lgica das suas reflexes. Isto no podedar-se seno quando se possui um grande equilbrio de alma.

    Lcia, na verdade, sente-se inspirada ao escrever; assim odiz em vrias ocasies... Mas, por favor, no pode tomar-se essaexpresso em sentido rigoroso, no gnero proftico, como o fezalgum crtico quezilento; sua convico de que uma presenaespecial de Deus est sobre ela nos momentos de redaco. Sen-te-se, pois, ...assistida por Deus ao escrever. Mas uma leituraatenta mostra claramente que Lcia no toma essas expressesno seu sentido rigoroso. ela prpria que, respondendo expressa-mente a isso, declara: A palavra inspirados quer dizer que, inte-riormente, nos sentamos movidos a isso.

    No se trata, pois, de uma inerrncia semelhante da Sa-grada Escritura. Lcia pode enganar-se na traduo mstica dassuas experincias, por causa da dificuldade prpria de inter-pretao. Algumas vezes, ela mesma duvida se ser o Senhorquem Ihe fala; outras, confessa que impossvel revelar algo dopercebido na graa mstica. De facto, uma crtica inteligente en-contra alguns erros meramente acidentais de datas, de factos, decircunstncias. E at na prpria ocasio de assegurar-nos que nostransmite ipsissima verba as mesmas palavras da Virgem, issono significa seno que, na verdade, ela pe nisso toda a sua sin-ceridade. Daquilo que Lcia est sempre segura e assim o diz do sentido do que transmite.

    Quanto a datas, j conhecida a insegurana de Lcia. Umasvezes porque, de pequenos, ela e seus primos no sabiam contarnem os dias, nem muito menos os meses, no digamos os anos.Assim, Lcia no se recorda das datas das aparies do Anjo, etem que record-las aproximadamente pelas estaes que, estassim, se Ihes gravavam bem aos pequenos serranitos. Mas a princi-pal razo desta falta de memria cronolgica est, certamente, nocarcter realista das recordaes de Lcia, sempre dirigida ao es-sencial.

    Alm disso, o leitor no deve esquecer, na leitura das Me-mrias de Lcia, uma regra geral de interpretao das traduesque os msticos fazem das suas experincias do sobrenatural: tra-ta-se sempre de tradues nas quais no necessrio admitirque tudo, literalmente, corresponda s locues divinas. Isso no

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    quer dizer, por outro lado, que, se a algum se deve dar crdito sobreesses fenmenos maravilhosos, no seja, naturalmente, quele queos experimentou.

    Queremos fazer uma ltima advertncia, para que o leitor entremais bem preparado na leitura destas pginas maravilhosas. necessrio distinguir entre aquilo que a Irm Lcia nos apresentacomo Mensagem do Cu e aquilo que ela mesma nos apresentacomo reflexo ou interpretao sua. O primeiro, embora dentrodas dificuldades da traduo mstica, oferece maiores garantiasde veracidade que o segundo. Importa supor que, se Deusapresentou uns sinais to evidentes para fazer conhecer a Suapresena nos acontecimentos de Ftima, tambm interveio de ummodo especial para que a Sua Mensagem, atravs da Virgem,fosse bem traduzida pelos videntes para isso escolhidos. Algo deparecido ao que dizemos sobre a Igreja se Deus entregou SuaIgreja uma Mensagem de salvao, h que, pelo menos, aceitarque A dotou de um carisma de verdade, para que nos transmitaessa Mensagem de uma maneira infalvel.

    Mas Lcia apresenta-se muitas vezes como reflectindo so-bre as palavras e os acontecimentos... certamente um intrpreteprivilegiado, mas sempre e apenas um intrprete. Portanto, nes-te terreno, as palavras da Irm Lcia j no tm razo para exigiraquela assistncia especial que reclamamos para o primeiro caso.

    GNERO LITERRIO DAS MEMRIAS

    Aos escritos que, felizmente, o leitor vai ter nas suas mos,chamamos Memrias porque, efectivamente, mais se parecema este gnero literrio, no obstante a sua aparncia de Cartasou, at, em certos momentos, de autobiografia.

    Evidentemente que a Irm Lcia no tinha qualquer preten-so literria ao escrever estes admirveis documentos. Ela escreviaporque Iho mandavam. E pode afirmar-se que Lcia nunca escreveunada por vontade prpria. Isto no quer dizer que, s vezes, elamesma, no decurso da sua obra, no se sinta arrebatada pelosassuntos que toca, dando impresso de que faz literatura. Masser sempre uma literatura espontnea e clara, em que a elegncia uma consequncia e no uma preocupao.

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    Ora bem: muito menos podia ter uma preocupao do gneroliterrio, e no sabia absolutamente o que podia significar mem-ria, seno como faculdade de recordar o passado. Ela mesmanos diz, algures, que, no sabendo como cumprir o mandato rece-bido de escrever sobre a vida da Jacinta, ocorreu-Ihe faz-lo comtoda a naturalidade, dirigindo-se ao Sr. Bispo, como quem contauma histria com as recordaes que conserva. Portanto, no hque tomar estes escritos como Cartas embora extensas, queescreve ao Sr. Bispo de Leiria. Isso foi uma pura fico, neste casoliterria, para sair do apuro. Na realidade, o que Lcia intenta escrever as suas recordaes. E a isto se chama, com proprie-dade, Memrias, porque, efectivamente, se trata de um gneroliterrio em que o autor pretende comunicar as suas recordaes,referentes a si mesmo (ou a outros), aos seus prprios sucessosou aos sucessos acontecidos a outros.

    No obstante, no se trata tambm falando propriamente de Biografia ou de Autobiografia. Lcia no o pretendeu, nempodia pretend-lo, dar-nos uma biografia de Jacinta e de Franciscoe, naturalmente, nunca pretendeu dar-nos uma auto-biografia.

    Trata-se simplesmente de uma ordenao de recordaes volta dos principais factos da vida de Jacinta e de Francisco, eisso, seguramente, contra a sua prpria vontade.

    A biografia e a autobiografia distinguem-se da Memria; estano pretende comunicar seno recordaes; enquanto que osoutros gneros literrios pretendem algo de mais completo, siste-mtico; supem, mais do que a simples recordao, uma investi-gao de documentos auxiliares.

    Mas Lcia, nestas Memrias, no necessitou mais do que olharpara o passado e record-lo. E que recordao! Porque, ou se tratavada vida de seus primos e, ento, tratava-se da sua prpria vida; ou setratava de tudo quanto se referia s Aparies da Senhora e, ento,tudo era contemplado, mais do que uma simples recordao, comouma presena gravada a fogo sobre a sua alma. Ela mesma nosadverte que essas coisas vo-se gravando to nitidamente nanossa alma, que no fcil esquec-las. Por isso, estasMemrias da Irm Lcia so, sobretudo, uma releitura decaracteres impressos, para sempre, no mais fundo do esprito daAutora. Ela, mais do que recordar, parece que est vivendo; tal a facilidade da recordao, que se converte em leitura interior.

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    TEMA DAS MEMRIAS

    Na introduo de cada Memria indicaremos o tema centralao qual ela se refere.

    No entanto, parece-nos importante sublinhar desde j oobjectivo principal das Memrias da Irm Lcia: revelar a vidaherica dos dois Videntes j falecidos, hoje Bem-AventuradosFrancisco e Jacinta, em resposta aos pedidos da SantssimaVirgem. No h dvida de que os dois irmozinhos cativam logodesde o primeiro contacto que com eles se tenha, pela suaingenuidade e simpatia natural. Isto ainda antes de lhes conheceras belezas e riquezas interiores da alma. Basta o seu retrato exteriorpara nos prender. E porque entendemos que pode ser esse oprimeiro passo para mais nos afeioarmos aos Pastorinhos, comuma afeio que leve imitao, vamos deixar aqui a descriohistrica mais antiga que supomos deles haver.

    Referimo-nos clebre carta do Dr. Carlos de Azevedo Mendespara a sua futura esposa, em que lhe descreve as impresses dumavisita que fez a Aljustrel e Cova da Iria, no dia 7 de Setembro de1917. Pouco diz do Francisco, o retrato curto, mas completo eexpressivo: ...Chegou o Francisco. Carapuo enterrado pelacabea, jaleca muito curta, colete deixando ver a camisa, calasjustas, enfim um homem em miniatura. Bela cara de rapaz! Olharvivo e cara agarotada. Com ar desempenado responde s minhasperguntas.

    Vinte dias depois, a 27 de Setembro, tambm o Sr. CnegoFormigo foi interrogar as crianas a Aljustrel. O primeiro a serouvido foi o Francisco. No nos interessa por agora o teor dasrespostas, mas apenas estas impresses do erudito e piedososacerdote: Rapaz de nove anos de idade, que entra com certodesembarao no quarto onde estvamos, conservando o barretena cabea, decerto por no se lembrar que devia descobrir-se.Connvidei-o a sentar-se numa cadeira ao meu lado, obedecendoimediatamente e sem nenhuma relutncia.

    Estes dois excertos de documentos autnticos e primitivosmostram-nos que o Francisco no tempo das Aparies era umpastorinho alegre, vivo e desembaraado, um perfeito serrano,sem preocupaes, taras ou complexos de qualquer espcie.

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    Vejamos agora a descrio que o Dr. Carlos Mendes faz daJacinta. O retrato um bocadinho mais desenvolvido que o doFrancisco:

    A Jacinta muito pequerrucha, muito encolhidita, foi-sechegando para o p de mim. Sentei-a em cima de uma arca e euao p. Afirmo-te que um anjo... um leno com ramagemencarniada, embrulhado na cabea, com as pontas atadas atrs.Leno velhito e j roto. Um casaquito que tambm no primavamuito pela limpeza. Uma saia sobre o encarnado, mas com umaroda enorme, moda da terra. Aqui tens o traje do nosso anjito.

    Quereria descrever-te a carita, mas creio bem que nadaconseguirei dizer-te aproximado ao menos. O leno, da maneiracomo o usava, ainda mais realava as feies. Os olhos negros deuma vivacidade encantadora, uma expresso anglica, de umabondade que nos seduz, um todo extraordinrio que, no sei porqu,nos atrai. Muito envergonhadita, com dificuldade ouvamos o poucoque falava, em resposta s minhas perguntas. Depois de durantealgum tempo a ter entretido, conversando e (no te rias!) brincando,chegou o Francisco... A Jacinta comea a ganhar confiana. Poucodepois chega a Lcia. No imaginas a alegria da Jacinta quando aviu! Toda ela riu, correu para ela e nunca mais a largou. Era umquadro lindo...

    O depoimento do Sr. Cnego Formigo, mais reduzido, condizperfeitamente com o anterior: Chama-se Jacinta de Jesus, temsete anos de idade... Bastante alta para a sua idade, um poucodelgada sem se poder dizer magra, de rosto bem proporcionado,tez morena, modestamente vestida, descendo-lhe a saia at alturados artelhos, o seu aspecto o duma criana saudvel, acusandoperfeita normalidade no seu todo fsico e moral. Surpreendida coma presena de pessoas estranhas, que me tinham acompanhado eno esperava encontrar, a princpio mostra um grande embarao,respondendo com monosslabos e num tom de voz quaseimperceptvel s perguntas que lhe dirijo.

  • O dirio O Sculo, publicado no dia 15 de Outubro de 1917, apresentavapela primeira vez a fotografia dos Pastorinhos e dava a conhecer a todo opas coisas espantosas: como o Sol bailou ao meio-dia em Ftima

  • A Capelinha, construda pelo povo em 1918, no lugar das aparies

    Os trs videntes, Francisco (9), Lcia (10) e Jacinta (7) no local da peque-na azinheira sobre a qual aparecera a Santssima Virgem nos dias 13, deMaio a Outubro de 1917

  • Imagem que desde 13 de Junho de 1920 se venera na Capelinha dasAparies. Em 13 de Maio de 1946 foi coroada solenemente pelo Card.Masella e no interior da sua coroa encontra-se, actualmente, incrustada abala que depois do atentado de 13 de Maio de 1981 foi retirada do jeep doPapa.

  • Capela construda no local da apa-rio dos Valinhos

    A Via-Sacra hngara no caminhodos Pastorinhos liga a Cova da Iriaaos outros lugares de aparies ea Aljustrel, terra natal dos trsvidentes.

    Janela da cadeia de Vila Nova deOurm para onde foram levados osPastorinhos em 13 de Agosto 1917

    Os trs Pastorinhos junto do arcoerguido no local das aparies parao dia 13 de Outubro de 1917

  • Casa dos pais de LciaCasa onde nasceram Francisco eJacinta e onde morreu o Francisco

    Maria Rosa (1869-1942), me deLcia, com vrios familiares e pes-soas amigas

    Famlia de Francisco e Jacinta:a me Olmpia de Jesus (1956),o pai Manuel Pedro Marto ( 1957)e os irmos

  • Igreja paroquial de Ftima no tem-po das aparies

    Pia baptismal onde forambaptizados Lcia, Francisco eJacinta

    Imagem de Nossa Senhora doRosrio na igreja paroquial

    Os trs Pastorinhos junto do cru-zeiro, no adro da igreja paroquial

  • P. Manuel Marques Ferreira, procode Ftima no tempo das aparies(1914-1919)

    P. Faustino Jos Jacinto Ferreira,prior do Olival

    Cnego Manuel Nunes Formigoque, em 1917, fez numerosos in-terrogatrios aos pastorinhos

    P. Cruz que ouviu a primeira confis-so de Lcia

  • Os trs Pastorinhos no quintal de Francisco e Jacinta

    Lcia e Jacinta de visita a Reixidaem Setembro de 1917 Francisco

  • Loca do Cabeo Monumento na Loca do Cabeo querepresenta a terceira apario doAnjo

    Poo da famlia de Lcia onde sedeu a segunda apario do Anjo

    Monumento sobre o poo da fam-lia de Lcia que representa a se-gunda apario do Anjo

  • Pontevedra quarto de Lcia ondeem 10 de Dezembro de 1920, Nos-sa Senhora pediu a comunho re-paradora nos primeiros sbados

    Aspecto actual do quarto, transfor-mado em capela

    Convento das Doroteias em Tuyonde em 13 de Junho de 1929 Nos-sa Senhora pediu a consagraoda Rssia

    Viso da Santssima Trindade

  • Para cumprir o pedido de Nossa Senhora, Pio XII consagrou, em31.10.1942, todo o gnero humano ao Corao Imaculado de Maria

    Em Roma, diante da Imagem da Capelinha, Joo Paulo II, em unio comos bispos da Igreja, renovou a Consagrao do mundo e da Rssia. (25de Maro de 1984)

  • D. Jos Alves Correia da Silva, bispo de Leiria, com o texto com a terceiraparte do segredo, que enviaria para o Santo Ofcio, em 1957. O Card.Sodano torna conhecida a terceira parte do segredo, em 13.V.2000, emFtima.

    Representao da terceira parte do segredo de Ftimasegundo as indicaes da Irm Lcia (Jlio Gil)

  • Pintura representando a apario de 13 de Junho de 1917(Irm M da Conceio ocd)

  • O corpo incorrupto de Jacinta naabertura do seu caixo em12.9.1935

    Identificao cannica dos restosmortais de Francisco em 17.2.1952

    Depois de beatificar Francisco e Jacinta, Joo Paulo II visita os tmulosdos novos beatos.

  • Momento solene da beatificao de Francisco e Jacinta em 13.5.2000

    Encontro de Lcia com Joo Paulo II em 13.5.2000.No momento da beatificao a imensa multido aplaude

    calorosamente os novos beatos

  • Carmelo de Coimbra onde Lciaviveu desde 25 de Maro de 1948at 13 de Fevereiro de 2005.

    Imagem do Corao Imaculado deMaria no Carmelo de Coimbra.

    Lcia visita a casa familiar e os lugares das aparies em 16.5.2000

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    PRIMEIRA MEMRIAIntroduo

    No certamente o primeiro escrito de Lcia; mas sim o seu primei-ro escrito extenso. Antes dele, temos cartas, muitas cartas, interrogat-rios, relatos, etc. Mas, agora, encontramo-nos diante dum documentoextenso e importante.

    Se Lcia nunca escreveu por vontade prpria, como nasceu estedocumento?

    No dia 12 de Setembro de 1935 eram trasladados, do cemitrio deVila Nova de Ourm para o de Ftima, os restos mortais de Jacinta.Nesta ocasio, tiraram-se diversas fotografias ao cadver; algumas de-las foram enviadas pelo Sr. Bispo Irm Lcia que, ento, se encontravaem Pontevedra. Agradecendo essa lembrana, com data de 17 de No-vembro de 1935, entre outras coisas, Lcia dizia: Agradeo reconhe-cidssima as fotografias. Quanto as estimo, no posso dizer. Em especial de Jacinta eu queria, mesmo fotografia, tirar aqueles panos que acobrem, para v-la toda; estava como numa impacincia de descobrir orosto do cadver, sem me dar conta de que era um retrato; estava meioabstracta, tal era a minha alegria de voltar a ver a mais ntima amiga decriana. Tenho esperana de que o Senhor, para glria da SantssimaVirgem, lhe conceder a aurola da santidade. Ela era criana s deanos. No demais, sabia j praticar a virtude e mostrar a Deus e Santssima Virgem o seu amor, pela prtica do sacrifcio...

    Estas recordaes to vivas de Lcia sobre a sua primita Jacintainduziram o Sr. Bispo a mandar-lhe escrever tudo o que se recordassedela. E, com efeito, o escrito, comeado na segunda semana de Dezem-bro, estava terminado no dia de Natal de 1935. Quer dizer, em menos dequinze dias, Lcia redigia este escrito que conserva uma unidade perfei-ta e faz um retrato de Jacinta, em que o seu ntimo fica iluminado comessa luz de Ftima, que o Corao Imaculado de Maria.

    O contedo deste escrito d-nos, sobretudo, um retrato de Jacinta,tirado das recordaes de Lcia. A finalidade dele no era, portanto, dar--nos uma histria das Aparies. Estas aparecem como uma molduranecessria, em que se destaca a figura de Jacinta.

    O estilo sempre simples e familiar; e at, diramos, em certas oca-sies, infantil, porque o ambiente e o assunto assim o exigiam. Lcianunca perdeu o sentido realista das coisas que tratava.

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    PREFCIO

    1. Orao e Obedincia

    J. M. J.

    Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo (1)

    Depois de ter implorado a proteco dos Santssimos Cora-es de Jesus e Maria, nossa Terna Me, de ter pedido luz e graaaos ps do Sacrrio, para no escrever nada que no seja nica eexclusivamente para a glria de Jesus e da Santssima Virgem,venho, apesar da minha repugnncia, por no poder dizer quasenada da Jacinta sem directa ou indirectamente falar do meumiservel ser. Obedeo, no entanto, vontade de V. Ex.cia Rev.maque, para mim, a expresso da vontade de nosso bom Deus.Comeo, pois, este trabalho, pedindo aos Santssimos Coraesde Jesus e Maria que se dignem abeno-lo e servir-se deste actode obedincia para a converso dos pobres pecadores, pelos quaisesta alma tanto se sacrificou.

    Sei que V. Ex.cia Rev.ma no espera de mim um escrito capaz,pois conhece a minha incapacidade e insuficincia; irei, pois, con-tando a V. Ex.cia Rev.ma o que me for recordando desta alma, daqual o nosso bom Deus me fez a graa de ser a mais ntima confi-dente e da qual conservo a maior saudade, estima e respeito, pelaalta ideia que tenho da sua santidade.

    2. Silncio sobre alguns assuntos

    Apesar, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, da minha boa vontadeem obedecer, peo me concedais reservar algumas coisas que,porque tambm me dizem respeito, desejaria fossem lidas somen-te nos limiares da eternidade. V. Ex.cia Rev.ma no estranhar quepretenda guardar segredos e leituras para a vida eterna; pois notenho eu a Santssima Virgem a dar-me o exemplo? No nos diz oSagrado Evangelho que Maria guardava todas as coisas em Seu

    (1) D. Jos Alves Correia da Silva (1872-1957), primeiro Bispo da Diocese restau-rada de Leiria, a que pertence Ftima.

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    corao? (2) E quem melhor que este Imaculado Corao nos pode-ria descobrir os segredos da Divina Misericrdia? No entanto, l oslevou guardados como em jardim cerrado, para o palcio do DivinoRei. Recordo ainda uma mxima que me deu um venervel Sacerdo-te, quando eu tinha apenas 11 anos. Foi, como tantos outros, fazer-me algumas perguntas. Entre outras, interrogou-me acerca de umassunto do qual eu no queria falar. Depois de ter desfolhado todo oseu reportrio de interrogaes, sem conseguir obter, sobre o talassunto, uma resposta satisfatria, compreendendo, talvez, que to-cava um assunto demasiado melindroso, o venervel Sacerdote, aben-oando-me, disse:

    Faz bem, minha filhinha, porque o segredo da Filha do Reideve permanecer oculto no fundo do seu corao.

    No entendi, por ento, a significao destas palavras, mascompreendi que aprovava o meu procedimento e, como no asesqueci, compreendo-as agora. Este venervel Sacerdote era en-to Vigrio em Torres Novas (3). Mal sua Rev.cia sabe quanto bemestas breves palavras tm feito minha alma e por elas conservode sua Rev.cia uma grata recordao.

    Consultei, no entanto, um dia, um Santo Sacerdote, a respeitodesta reserva, porque no sabia que responder, quando meperguntassem se a Santssima Virgem me tinha dito mais algumacoisa. Este Senhor, que era ento Vigrio do Olival (4), disse-nos:

    Fazeis bem, meus filhinhos, em guardar para Deus e paravs o segredo das vossas almas; quando vos fizerem essa per-gunta, respondei: Sim, disse; mas segredo. Se vos fizerem maisperguntas a respeito disto, pensai no segredo que vos comunicouessa Senhora e dizei: Nossa Senhora disse-nos que no disss-semos a ningum, por isso no o dizemos. Assim guardais o vossosegredo ao abrigo do da Santssima Virgem.

    Que bem compreendi a explicao e direco deste vener-vel ancio!

    Estou j gastando demasiado tempo com estes preldios e V.Ex.cia Rev.ma dir que no sabe a que propsito vm aqui.

    (2) Lc. 2, 19-51.(3) Pe Antnio de Oliveira Reis (1962).(4) Pe Faustino Jos Jacinto Ferreira (1924).

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    Vou ver se dou comeo narrao do que me lembro da vida daJacinta. Como no disponho de tempo livre, durante as horassilenciosas de trabalho, num bocado de papel, com um lpisescondido debaixo da costura, irei recordando e apontando o queos Santssimos Coraes de Jesus e Maria quiserem fazer-merecordar.

    3. Prece Jacinta

    tu que a terraPassaste voando,Jacinta querida,Numa dor intensa,Jesus amando,No esqueas a preceQue eu te pedia.S minha amigaJunto do tronoDa Virgem Maria.Lrio de candura,Prola brilhanteOh! l no CuOnde vives triunfante,Serafim de amor,Com teu IrmozinhoRoga por mimAos ps do Senhor. (5)

    I. RETRATO DE JACINTA

    1. Temperamento

    Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo

    Antes dos factos de 1917, exceptuando o lao de parentescoque nos unia, nenhum outro afecto particular me fazia preferir acompanhia da Jacinta e Francisco, de qualquer outra criana.

    (5) Lcia, apesar da sua deficiente cultura escolar, tinha uma inclinao potica.Escreveu vrias poesias.

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    Pelo contrrio, a sua companhia tornava-se-me, por vezes, bastanteantiptica, pelo seu carcter demasiado melindroso. A menorcontenda, das que se levantam entre as crianas, quando jogam,era bastante para a fazer ficar amuada, a um canto, a prender oburrinho, como ns dizamos. Para a fazer voltar a ocupar o seulugar na brincadeira, no bastavam as mais doces carcias que emtais ocasies as crianas sabem fazer. Era ento preciso deix-laescolher o jogo e o par com quem queria jogar. Tinha, no entanto,j ento, um corao muito bem inclinado, e o bom Deus tinha-adotado dum carcter doce e meigo que a tornava, ao mesmo tempo,amvel e atraente.

    No sei porqu, a Jacinta, com seu irmozinho Francisco,tinham por mim uma predileco especial e buscavam-me, quasesempre, para brincar. No gostavam da companhia das outrascrianas e pediam-me para ir com eles para junto dum poo quetinham meus pais, no fundo do quintal. Uma vez a, a Jacinta es-colhia os jogos em que nos amos entreter. Os seus preferidoseram, quase sempre, sentados sobre esse poo, que era cobertode lajes por cima, sombra duma oliveira e duas ameixieiras, ojogo das pedrinhas ou do boto. Com este vi-me tambm, nopoucas vezes, em grandes aflies, porque, quando nos chamavampara comer, encontrava-me sem botes na roupa. Por ordinrio,ela tinha-mos ganhado e isto era o bastante para que minha meme ralhasse. Era preciso preg-los pressa; e como conseguirque ela mos desse, se, alm do defeitilho de amuar, tinha o deagarrada? Queria guard-los para o jogo seguinte, para no terque arrancar os dela. S ameaando-a de que no voltava mais abrincar com ela que os conseguia!

    No poucas vezes acontecia no poder satisfazer o desejo daminha amiguinha. Como minhas irms mais velhas, que eram umatecedeira e a outra costureira, passavam os dias em casa, asvizinhas pediam a minha me para deixarem os seus filhinhos noptio de meus pais, junto de mim, a brincar, sob a vigilncia deminhas irms, enquanto que elas iam para os campos trabalhar.Minha me dizia sempre que sim, embora custasse a minhas irmsuma boa perca de tempo. Eu era ento encarregada de entreteressas crianas e ter cuidado que no cassem num poo que havianesse ptio. Trs grandes figueiras resguardavam, dos ardores dosol, a essas crianas; seus ramos serviam de balouo e uma velha

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    eira servia de sala de jantar. Quando, nesses dias, a Jacinta vinhacom seu irmozinho a chamar-me para o nosso retiro, dizia-lheque no podia ir, pois minha me me tinha mandado estar ali. Entoos dois pequeninos resignavam-se com desgosto e tomavam partena brincadeira. Nas horas da sesta, minha me dava a seus filhosa sua lio de doutrina, principalmente quando se aproximava aquaresma, porque dizia no quero ficar envergonhada, quandoo Senhor Prior vos perguntar a doutrina, na desobriga. Ento todasaquelas crianas assistiam nossa lio de catecismo; a Jacintal estava tambm.

    2. Delicadeza de alma

    Um dia, um desses pequenos acusou outro de ter dito algu-mas palavras pouco decentes. Minha me repreendeu-o com todaa severidade, dizendo que aquelas coisas feias no se diziam, queera pecado e que o Menino Jesus se desgostava e mandava parao inferno os que faziam pecados, se no se confessavam. Apequenina no esqueceu a lio. No primeiro dia que encontrou adita reunio de crianas, disse:

    Hoje tua me no te deixa ir? No. Ento eu vou para o meu ptio, com o Francisco. E por que no ficas aqui? Minha me no quer que, quando estiverem estes, aqui fi-

    quemos. Disse que fssemos para o nosso ptio brincar. No querque aprenda essas coisas feias que so pecados e das que oMenino Jesus no gosta.

    Depois, disse-me baixinho, ao ouvido: Se tua me te deixar, vens c ter a minha casa? Sim. Ento vai a pedir-lhe.E tomando a mo do irmo, l foi para sua casa.Como j disse, um dos seus jogos escolhidos era o das pren-

    das. Como V. Ex.cia Rev.ma decerto sabe, quem ganha manda, aoque perde, fazer uma coisa qualquer que Ihe parecer. Ela gostavade mandar correr atrs das borboletas at apanhar uma e levar--lha. Outras vezes, mandava procurar uma flor qualquer que elaescolhia. Um dia, jogvamos isto em casa de meus pais e tocou-

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    -me a mim mand-la a ela. Meu irmo estava sentado a escreverjunto duma mesa. Mandei-a, ento, dar-lhe um abrao e um beijo,mas ela respondeu:

    Isso, no! Manda-me outra coisa. Por que no me mandasbeijar aquele Nosso Senhor que est ali? (era um crucifixo quehavia pendurado na parede).

    Pois sim respondi. Sobes acima duma cadeira, traz-lopara aqui e, de joelhos, ds-lhe trs abraos e trs beijos: um peloFrancisco, outro por mim e outro por ti.

    A Nosso Senhor dou todos quantos quiseres.E correu a buscar o crucifixo. Beijou-o e abraou-o com tanta

    devoo, que nunca mais me esqueceu aquela aco. Depois, olhacom ateno para Nosso Senhor e pergunta:

    Por que est Nosso Senhor assim pregado numa cruz? Porque morreu por ns. Conta-me como foi.

    3. Amor a Cristo Crucificado

    Minha me costumava, ao sero, contar contos. E entre oscontos de fadas encantadas, princesas douradas, pombinhas reais,que nos contavam meu pai e minhas irms mais velhas, vinha minhame com a histria da Paixo, de S. Joo Baptista, etc., etc.

    Eu conhecia, pois, a Paixo de Nosso Senhor como uma his-tria; e como me bastava ouvir as histrias uma vez para as repe-tir com todos os seus detalhes, comecei a contar aos meuscompanheiros, pormenorizadamente, a histria de Nosso Senhor,como eu Ihe chamava. Quando minha irm (6), ao passar por juntode ns, se d conta que tnhamos o crucifixo (7) nas mos, tira-no--lo e repreende-me, dizendo que no quer que toque nos santinhos.A Jacinta levanta-se, vai junto de minha irm e diz-lhe:

    Maria, no ralhes! Fui eu, mas no torno mais.Minha irm fez-lhe uma carcia e disse-nos que fssemos a

    brincar l para fora, dizendo que em casa no deixvamos pararnada no seu lugar.

    (6) Maria dos Anjos, a irm mais velha de Lcia (1986).(7) Ainda hoje os visitantes podem ver este Crucifixo na casa da Lcia.

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    L fomos contar a nossa histria para cima do poo de que jfalei e que, por estar escondido detrs duns castanheiros, dummonte de pedras e dum silvado, havamos de escolher, alguns anosdepois, para cela dos nossos colquios, de fervorosas oraes e,tambm, Ex.mo Rev.mo Senhor, para dizer-vos tudo, tambm de lgri-mas, por vezes bem amargas. Misturvamos as nossas lgrimass suas guas, para beb-las depois, na mesma fonte onde asderramvamos. No seria essa cisterna a imagem de Maria, emcujo Corao enxugvamos o nosso pranto e bebamos a maispura consolao?

    Mas voltando nossa histria:Ao ouvir contar os sofrimentos de Nosso Senhor, a peque-

    nina enterneceu-se e chorou. Muitas vezes, depois, pedia para Iharepetir. Chorava com pena e dizia:

    Coitadinho de Nosso Senhor! Eu no hei-de fazer nuncanenhum pecado. No quero que Nosso Senhor sofra mais.

    4. Sensibilidade

    A pequenita gostava tambm muito de ir, noitinha, para umaeira que tnhamos em frente da casa, ver o lindo pr do sol e o cuestrelado que se Ihe seguia. Entusiasmava-se com as lindas noitesde luar. Porfivamos a ver quem era capaz de contar as estrelasque dizamos serem as candeias dos Anjos. A lua era a de NossaSenhora e o sol a de Nosso Senhor, pelo que a Jacinta dizia, svezes:

    Ainda gosto mais da candeia de Nossa Senhora, que nonos queima nem cega; e a de Nosso Senhor, sim.

    Na verdade, o sol, em alguns dias de vero, faz-se sentir bemardente; e a pequenina, como era de compleio muito fraca, so-fria muito com o calor.

    5. Catequese infantil

    Como minha irm era zeladora do Corao de Jesus, sempreque havia comunho solene de crianas, levava-me a renovar aminha. Minha tia levou, uma vez, a sua filhinha a ver a festa. Apequenita fixou-se nos anjos que deitavam flores. Desde esse dia,

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    de vez em quando afastava-se de ns, quando jogvamos; colhiauma arregaada de flores e vinha atirar-me com elas.

    Jacinta, para que fazes isso? Fao como os anjinhos, deito-te flores.Minha irm costumava, ainda, em uma festa anual que devia

    ser, talvez, a de Corpus (Christi), vestir alguns anjinhos, para iremao lado do plio, na procisso, a deitar flores. Como eu era sempreuma das designadas, uma vez, quando minha irm me provou ovestido, contei Jacinta a festa que se aproximava e como eu ia adeitar flores a Jesus. A pequenita pediu-me, ento, para eu pedir aminha irm para a deixar ir tambm. Fomos as duas fazer o pedido;minha irm disse-nos que sim. Provou-lhe tambm um vestido e,nos ensaios, disse-nos como devamos deitar as flores ao MeninoJesus. A Jacinta perguntou:

    E ns vmo-Lo? Sim respondeu minha irm , leva-O o Senhor Prior.A Jacinta saltava de contente e perguntava continuamente se

    ainda faltava muito para a festa. Chegou, por fim, o desejado dia ea pequenita estava doida de contente. L nos colocaram as duasao lado do altar; e, na procisso, ao lado do plio, cada uma com oseu aafate de flores. Nos stios marcados por minha irm, atiravaa Jesus as minhas flores. Mas, por mais sinais que fiz Jacinta,no consegui que espalhasse nem uma. Olhava continuamentepara o Senhor Prior e nada mais. Quando terminou a funo, mi-nha irm trouxe-nos para fora da Igreja e perguntou:

    Jacinta, por que no deitaste as flores a Jesus? Porque no O vi.Depois, perguntou-me: Ento tu viste o Menino Jesus? No! Mas tu no sabes que o Menino Jesus da hstia, que

    no se v, est escondido?! O que ns recebemos na comu-nho.

    E tu, quando comungas, falas com Ele? Falo. E por que no O vs? Porque est escondido. Vou pedir a minha me que me deixe ir tambm a comungar. O Senhor Prior no ta d sem teres 10 anos. Mas tu ainda os no tens e j comungaste!

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    Porque sabia a doutrina toda e tu no a sabes.Pediram-me, ento, para os ensinar. Constitu-me, ento,

    catequista dos meus dois companheiros que aprendiam com umentusiasmo nico. Mas eu que, quando me interrogavam, respon-dia a tudo, agora, para ensinar, poucas coisas me lembravam, oque fez com que a Jacinta me dissesse, um dia:

    Ensina-nos mais coisas, que essas j as sabemos.Confessei que no me lembravam sem mas perguntarem, e

    acrescentei: Pede a tua me que te deixe ir Igreja aprender.Os dois pequenitos, que desejavam ardentemente receber a

    Jesus escondido, como eles diziam, foram fazer o pedido me.Minha tia disse que sim, mas poucas vezes os deixava ir, por que,dizia ela, a Igreja bastante longe, vocs so muito pequeninos e,de todos (os) modos, o Senhor Prior no vos d a comunho antesdos 10 anos (8).

    A Jacinta fazia-me continuamente perguntas a respeito deJesus escondido e lembro-me que, um dia, perguntou-me:

    Como que tanta gente recebe ao mesmo tempo o MeninoJesus escondido? um bocadito para cada um?

    No. No vs que so muitas hstias e que em cada umaest um Menino?!

    Quantos disparates Ihe terei dito!

    6. Jacinta, a pequena Pastora

    Entretanto, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, cheguei idade emque minha me mandava os seus filhos guardar o rebanho. Minhairm Carolina fez os seus 13 anos (9) e era preciso comear atrabalhar. Minha me entregou-me, por isso, o cuidado do nossorebanho. Dei a notcia aos meus companheiros e disse-Ihes queno voltava mais a brincar com eles; mas os pequenitos no seconformavam com a separao. Foram pedir me que os deixasseir comigo, o que Ihes foi negado. Tivemos que nos conformar coma separao. Vinham, ento, quase todos os dias, noitinha,esperar-me ao caminho e l amos, ento, para a eira, dar algumas

    (8) Jacinta nasceu em 11 de Maro de 1910.(9) Carolina faleceu em 31 de Maro de 1992.

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    corridas, espera que Nossa Senhora e os Anjos acendessem assuas candeias e as viessem pr janela para nos alumiar, comons dizamos. Quando no havia luar, dizamos que a candeia deNossa Senhora no tinha azeite.

    Aos dois pequenitos custava a conformar com a ausncia dasua antiga companheira. Por isso, renovavam continuamente asinstncias junto de sua me, para que os deixasse, tambm eles,guardar o seu rebanho. Minha tia, talvez para se ver livre de tantospedidos, apesar de serem demasiado pequenos, entregou-lhes aguarda das suas ovelhinhas. Radiantes de alegria, foram dar-me anotcia e combinar como juntaramos todos os dias os nossos re-banhos. Cada um abriria o seu hora que Ihe mandasse sua mee o primeiro esperava pelo outro, no Barreiro (assim chamvamosa uma pequena lagoa que estava ao fundo da serra). Uma vezjuntos, combinvamos qual a pastagem do dia e para l amos, tofelizes e contentes, como se fssemos para uma festa!

    Aqui temos, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, a Jacinta na suanova vida de pastorinha. As ovelhinhas ganhmo-las fora dedistribuir por elas as nossas merendas. Por isso, quando cheg-vamos pastagem, podamos brincar descansados, que elas nose afastavam de ns. A Jacinta gostava muito de ouvir o eco davoz no fundo dos vales. Por isso, um dos nossos entretenimentosera, no cimo dos montes, sentados no penedo maior, pronunciarnomes em alta voz. O nome que melhor ecoava era o de Maria. AJacinta dizia, s vezes, assim, a Ave Maria inteira, repetindo a pa-lavra seguinte s quando a precedente tinha acabado de ecoar.

    Gostvamos tambm de entoar cnticos. Entre vrios profa-nos, que infelizmente sabamos bastantes, a Jacinta preferia o SalveNobre Padroeira, Virgem Pura, Anjos, cantai comigo. ramos, noentanto, bastante afeioados ao baile e qualquer instrumento queouvssemos tocar aos outros pastores era o bastante para nos pra danar. A Jacinta, apesar de ser to pequena, tinha, para isso,uma arte especial.

    Tinham-nos recomendado que, depois da merenda, rezs-semos o Tero; mas, como todo o tempo nos parecia pouco, parabrincar, arranjmos uma boa maneira de acabar breve: passvamosas contas, dizendo somente: Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria!Quando chegvamos ao fim do mistrio, dizamos, com muitapausa, a simples palavra: Padre Nosso! E assim, em um abrir e

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    fechar de olhos, como se costuma dizer, tnhamos o nosso Terorezado!

    A Jacinta gostava tambm muito de agarrar os cordeirinhosbrancos, sentar-se com eles no colo, abra-los, beij-los e, noi-te, traz-los ao colo para casa, para que no se cansassem. Umdia, ao voltar para casa, meteu-se no meio do rebanho.

    Jacinta perguntei-lhe para que vais a, no meio das ove-lhas?

    Para fazer como Nosso Senhor, que, naquele santinho queme deram, tambm est assim, no meio de muitas e com uma aocolo.

    7. Primeira Apario

    Eis aqui, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, um pouco mais oumenos, como se passaram os sete anos, que tinha a Jacinta,quando apareceu belo e risonho, como tantos outros, o dia 13 deMaio de 1917. Escolhemos nesse dia, por acaso, se que nosdesgnios da Providncia h acasos, para pastagem do nossorebanho, a propriedade pertencente a meus pais, chamada Covade Iria. Determinmos, como de costume, qual a pastagem do dia,junto do Barreiro de que j falei a V. Ex.cia Rev.ma e tivemos, porisso, que atravessar a charneca, o que nos tornou o caminhodobradamente longe. Tivemos, por isso, que ir devagar, para queas ovelhinhas fossem pastando pelo caminho; e assim chegmoscerca do meio-dia.

    No me detenho agora a contar o que se passou nesse dia,porque V. Ex.cia Rev.ma j sabe tudo e seria perder tempo, comoperd-lo me parece, a no ser por estar a obedecer, todo o quelevo a escrever isto, pois no vejo que utilidade V. Ex.cia Rev.mapossa tirar daqui, a no ser o conhecimento da inocncia da vidadesta alma.

    Antes de comear a contar-vos, Ex.mo e Rev.mo Senhor, o queme lembro do novo perodo da vida da Jacinta, tenho que dizerque h algumas coisas, nas manifestaes de Nossa Senhora,que ns tnhamos combinado nunca dizer a ningum e talvez agorame veja obrigada a dizer alguma coisa disso, para dizer onde aJacinta foi beber tanto amor a Jesus, ao sofrimento e aos pecadores,

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    pela salvao dos quais tanto se sacrificou. V. Ex.cia Rev.ma noignora como foi ela que, no podendo conter em si tanto gozo,quebrou o nosso contrato de no dizer nada a ningum. Quando,nessa mesma tarde, absorvidos pela surpresa, permanecamospensativos, a Jacinta, de vez em quando exclamava com en-tusiasmo:

    Ai! que Senhora to bonita! Estou mesmo a ver dizia-lhe eu. Ainda vais dizer a al-

    gum. No digo, no! respondia. Est descansada.No dia seguinte, quando seu irmo correu a dar-me a notcia

    de que ela o tinha dito, noite, em casa, a Jacinta escutou a acu-sao sem dizer nada.

    Vs? Eu bem me parecia! disse-lhe eu. Eu tinha c dentro uma coisa que no me deixava estar ca-

    lada respondeu, com as lgrimas nos olhos. Agora no chores; e no digas mais nada a ningum do que

    essa Senhora nos disse. Eu j disse! O que disseste?! Disse que essa Senhora prometeu levar-nos para o Cu! E logo foste dizer isso! Perdoa-me; eu no digo mais nada a ningum!

    8. Meditao sobre o Inferno

    Quando, nesse dia, chegmos pastagem, a Jacinta sentou--se pensativa, em uma pedra.

    Jacinta! Anda brincar! Hoje no quero brincar. Por que no queres brincar? Porque estou a pensar. Aquela Senhora disse-nos para

    rezarmos o Tero e fazermos sacrifcios pela converso dospecadores. Agora, quando rezarmos o Tero, temos que rezar aAve Maria e o Padre Nosso inteiro. E os sacrifcios como oshavemos de fazer?

    O Francisco discorreu em breve um bom sacrifcio: Demos a nossa merenda s ovelhas e fazemos o sacrifcio

    de no merendar!

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    Em poucos minutos, estava todo o nosso farnel distribudo pelorebanho. E assim passmos um dia de jejum, que nem o do maisaustero cartuxo! A Jacinta continuava sentada na sua pedra, comar de pensativa e perguntou:

    Aquela Senhora disse tambm que iam muitas almas para oinferno. E o que o inferno?

    uma cova de bichos e uma fogueira muito grande (assimmo explicava minha me) e vai para l quem faz pecados e no seconfessa e fica l sempre a arder.

    E nunca mais de l sai? No. E depois de muitos, muitos anos?! No; o inferno nunca acaba. E o Cu tambm no. Quem vai

    para o Cu nunca mais de l sai. E quem vai para o inferno tam-bm no. No vs que so eternos, que nunca acabam?

    Fizemos, ento, pela primeira vez, a meditao do inferno eda eternidade. O que mais impressionou a Jacinta foi a eternidade.Mesmo brincando, de vez em quando, perguntava:

    Mas, olha. Ento, depois de muitos, muitos anos, o infernoainda no acaba?

    Outras vezes: E aquela gente que l est a arder no morre? E no se faz

    em cinza? E se a gente rezar muito por os pecadores, Nosso Se-nhor livra-os de l? E com os sacrifcios tambm? Coitadinhos!Havemos de rezar e fazer muitos sacrifcios por eles!

    Depois, acrescentava: Que boa aquela Senhora! J nos prometeu levar para o

    Cu!

    9. Amor aos pecadores

    A Jacinta tomou tanto a peito os sacrifcios pela conversodos pecadores, que no deixava escapar ocasio alguma. Haviaumas crianas, filhos de duas famlias da Moita (10), que andavampelas portas a pedir. Encontrmo-las, um dia, quando amos com onosso rebanho. A Jacinta, ao v-los, disse-nos:

    (10) Nessa poca era uma pequena povoao a Norte da Cova da Iria distantecerca de 1 km do local das Aparies.

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    Damos a nossa merenda queles pobrezinhos, pela con-verso dos pecadores?

    E correu a levar-lha. Pela tarde, disse-me que tinha fome. Haviaali algumas azinheiras e carvalhos. A bolota estava ainda bastanteverde, no entanto disse-lhe que podamos comer dela. O Franciscosubiu a uma azinheira para encher os bolsos, mas a Jacintalembrou-se que podamos comer da dos carvalhos, para fazer osacrifcio de comer a amarga. E l saboremos, aquela tarde, aqueledelicioso manjar! A Jacinta tomou este por um dos seus sacrifcioshabituais. Colhia as bolotas dos carvalhos ou a azeitona dasoliveiras.

    Disse-lhe um dia: Jacinta, no comas isso, que amarga muito. Pois por amargar que o como, para converter os peca-

    dores.No foram s estes os nossos jejuns. Combinmos, sempre

    que encontrssemos os tais pobrezinhos, dar-lhes a nossa me-renda; e as pobres crianas, contentes com a nossa esmola, pro-curavam encontrar-nos e esperavam-nos pelo caminho. Logo queos vamos, a Jacinta corria e levar-lhes todo o nosso sustento des-se dia, com tanta satisfao, como se no Ihe fizesse falta. Era,ento, o nosso sustento, nesses dias: pinhes, razes de campai-nhas ( uma florzinha amarela que tem na raiz uma bolinha dotamanho duma azeitona), amoras, cogumelos e umas coisas quecolhamos na raiz dos pinheiros, que no me lembro agora comose chamam; ou fruta, se a havia perto, em alguma propriedadepertencente a nossos pais.

    A Jacinta parecia insacivel na prtica do sacrifcio. Um dia,um vizinho ofereceu a minha me uma boa pastagem para o nossorebanho; mas era bastante longe e estvamos no pino do Vero.Minha me aceitou o oferecimento feito com tanta generosidade emandou-me para l. Como havia perto uma lagoa, onde o rebanhopodia ir beber, disse-me que era melhor passarmos l a sesta, sombra das rvores. Pelo caminho, encontrmos os nossosqueridos pobrezinhos e a Jacinta correu a levar-lhes a esmola. Odia estava lindo, mas o sol era ardente; e naquela pregueira (11)rida e seca, parecia querer abrasar tudo. A sede fazia-se sentir e

    (11) Regionalismo que significa pedregoso e improdutivo.

  • 48

    no havia pinga dgua para beber! A princpio, oferecamos osacrifcio com generosidade, pela converso dos pecadores; mas,passada a hora do meio-dia, no se resistia.

    Propus, ento, aos meus companheiros, ir a um lugar, queficava cerca, pedir uma pouca de gua. Aceitaram a proposta e lfui bater porta duma velhinha que, ao dar-me uma infusa comgua, me deu tambm um bocadinho de po que aceitei com reco-nhecimento e corri a distribuir com os meus companheiros. Emseguida, dei a infusa ao Francisco e disse-lhe que bebesse.

    No quero beber respondeu. Por qu? Quero sofrer pela converso dos pecadores. Bebe tu, Jacinta!Tambm quero oferecer o sacrifcio pelos pecadores!Deitei, ento, a gua em a cova duma pedra, para que a be-

    bessem as ovelhas e fui levar a infusa sua dona. O calor tornava--se cada vez mais intenso. As cigarras e os grilos juntavam o seucantar ao das rs da lagoa vizinha e faziam uma grita insuportvel.A Jacinta, debilitada pela fraqueza e pela sede, disse-me, comaquela simplicidade que Ihe era habitual:

    Diz aos grilos e s rs que se calem! Di-me tanto a minhacabea!

    Ento, o Francisco perguntou-lhe: No queres sofrer isto pelos pecadores?!A pobre criana, apertando a cabea entre as mozinhas, res-

    pondeu: Sim, quero. Deixa-as cantar.

    10. Resistncia da famlia

    Entretanto, a notcia do acontecimento tinha-se espalhado.Minha me comeava a afligir-se e queria, a todo o custo, que eume desdissesse. Um dia, antes que sasse com o rebanho, quisobrigar-me a confessar que tinha mentido. No poupou, para isso,carinhos, ameaas, nem mesmo o cabo da vassoura. No con-seguindo obter outra resposta que um mudo silncio ou aconfirmao do que j tinha dito, mandou-me abrir o rebanho,dizendo que pensasse bem, durante o dia; que, se nunca tinhaconsentido uma mentira nos seus filhos, muito menos consentia

  • 49

    agora uma daquela espcie; que, noite, me obrigaria a ir juntodaquelas pessoas a quem tinha enganado, confessar que tinhamentido e pedir perdo.

    L fui com as minhas ovelhinhas; e nesse dia j os meuscompanheiros me esperavam. Ao verem-me a chorar, correram aperguntar-me a causa. Contei-lhes o que se tinha passado eacrescentei:

    Agora, digam-me como vou fazer?! Minha me quer, a todoo custo, que diga que menti; e como vou a diz-lo?

    Ento o Francisco diz para a Jacinta: Vs? Tu que tens a culpa! Para que o foste a dizer?A pobre criana, chorando, pe-se de joelhos, com as mos

    postas, a pedir-nos perdo: Fiz mal dizia, chorando mas eu nunca mais digo nada a

    ningum!Agora, perguntar V. Ex.cia: Quem Ihe ensinou a fazer esse

    acto de humildade?! No sei. Talvez por ver seus irmozinhos pedir perdo a

    seus pais, na vspera de comungar; ou porque a Jacinta foi, segun-do me parece, aquela a quem a Santssima Virgem comunicoumaior abundncia de graa, conhecimento de Deus e da virtude.

    Quando, algum tempo depois, o Senhor Prior (12) nos man-dou chamar, para nos interrogar, a Jacinta baixou a cabea e acusto sua Rev.cia conseguiu obter dela apenas duas ou trs pala-vras. Quando viemos embora, perguntei-lhe:

    Por que no querias responder ao Senhor Prior? Porque prometi no dizer mais nada a ningum!Um dia perguntou: Por que no podemos dizer que aquela Senhora nos disse

    para fazermos sacrifcios pelos pecadores? Para que no nos perguntem que sacrifcios fazemos.Minha me afligia-se cada vez mais com o progresso dos acon-

    tecimentos. Empregou, por isso, mais um esforo para me obrigara confessar que tinha mentido. Um dia, pela manh, chama-me ediz que me vai levar a casa do Senhor Prior:

    (12) O primeiro interrogatrio do Proco, Pe. Manuel M. Ferreira, foi feito em finsde Maio de 1917.

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    Quando l chegares, pes-te de joelhos, dizes-lhe que men-tiste e pedes-lhe perdo.

    Ao passar por casa de minha tia, minha me entrou uns minu-tos. Aproveitei a ocasio para contar Jacinta o que se passava.Ao ver-me aflita, deixou cair algumas lgrimas e disse-me:

    Vou-me j levantar e vou chamar o Francisco. Vamos para oteu poo rezar. Quando voltares, vai l ter.

    volta, corri ao poo e l estavam os dois, de joelhos, a rezar.Logo que me viram, a Jacinta correu a abraar(-me) e a perguntarcomo tinha feito. Contei-lhes. Depois, disse-me:

    Vs?! No devemos ter medo de nada! Aquela Senhora aju-da-nos sempre. to nossa amiga!

    Desde que Nossa Senhora nos ensinou a oferecer a Jesus osnossos sacrifcios, sempre que combinvamos fazer algum ou quetnhamos alguma prova a sofrer, a Jacinta perguntava:

    J disseste a Jesus que por Seu amor?Se Ihe dizia que no... Ento digo-Lho eu.E punha as mozinhas, levantava os olhos ao Cu e dizia: Jesus, por Vosso amor e pela converso dos pecadores.

    11. Amor ao Santo Padre

    Foram interrogar-nos dois sacerdotes que nos recomendaramque rezssemos pelo Santo Padre. A Jacinta perguntou quem erao Santo Padre e os bons sacerdotes explicaram-nos quem era ecomo precisava muito de oraes. A Jacinta ficou com tanto amorao Santo Padre que, sempre que oferecia os seus sacrifcios aJesus, acrescentava: e pelo Santo Padre. No fim de rezar o Tero,rezava sempre trs Ave Marias pelo Santo Padre e algumas vezesdizia:

    Quem me dera ver o Santo Padre! Vem c tanta gente e oSanto Padre nunca c vem (13).

    Na sua inocncia de criana, julgava que o Santo Padre podiafazer esta viagem como as outras pessoas.

    (13) Paulo VI a 13 de Maio de 1967, e Joo Paulo ll em 13 de Maio de 1982, de1991 e de 2000, estiveram em Ftima.

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    Um dia, meu pai e meu tio (14) foram intimados para nos apre-sentarem, no dia seguinte, em a Administrao (15). Meu tio disseque no levava os seus filhos, porque, dizia ele, no tenho por queapresentar em um tribunal duas crianas que no so responsveispelos seus actos; e ademais disso, eles no aguentam o caminhoa p at Vila Nova de Ourm! Vou ver o que eles querem. Meu paipensava doutra maneira:

    A minha, levo-a; ela que se arranje l com eles, que eu cdestas coisas no entendo nada.

    Aproveitaram ento a ocasio para nos meterem todos os sus-tos possveis. No dia seguinte, ao passar por casa de meu tio, meupai esperou alguns instantes por meu tio. Corri cama de Jacintaa dizer-lhe adeus. Na dvida de nos tornarmos a ver, abracei-a. Ea pobre criana, chorando, disse-me:

    Se eles te matarem, diz-lhes que eu e mais o Francisco so-mos como tu e que tambm queremos morrer. E vou j com oFrancisco para o poo rezar muito por ti.

    Quando, noitinha, voltei, corri ao poo e l estavam os dois,de joelhos, debruados sobre a beira do poo, com a cabecinhaentre as mos, a chorar. Assim que me viram, ficaram surpre-endidos:

    Tu vens a?! Veio aqui a tua irm buscar gua e disse-nosque j te tinham matado. J rezmos e chormos tanto por ti!...

    12. Na cadeia de Ourm

    Quando, passado algum tempo, estivemos presos, a Jacinta,o que mais Ihe custava era o abandono dos pais; e dizia, com aslgrimas a correrem-lhe pelas faces:

    Nem os teus pais nem os meus nos vieram ver. No se im-portaram mais de ns!

    No chores Ihe disse o Francisco. Oferecemos a Jesus,pelos pecadores.

    E levantando os olhos e mozinhas ao Cu, fez ele o ofere-cimento:

    (14) O pai chamava-se Antnio dos Santos (1919). O tio, Manuel Pedro Marto(1957), pai de Francisco e Jacinta.

    (15) O Administrador era Artur de Oliveira Santos (1955)

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    meu Jesus, por Vosso amor e pela converso dos peca-dores.

    A Jacinta acrescentou: tambm pelo Santo Padre e em reparao dos pecados

    cometidos contra o Imaculado Corao de Maria.Quando, depois de nos terem separado, voltaram a juntar-nos

    em uma sala da cadeia, dizendo que dentro em pouco nos vinhambuscar para nos fritar, a Jacinta afastou-se para junto duma janelaque dava para a feira do gado. Julguei, a princpio, que se estaria adistrair com as vistas; mas no tardei a reconhecer que chorava.Fui busc-la para junto de mim e perguntei-Ihe por que chorava:

    Porque respondeu vamos morrer sem tornar a ver nemos nossos pais, nem as nossas mes!

    E com as lgrimas as correr-lhe pelas faces: Eu queria sequer, ver a minha me! Ento tu no queres oferecer este sacrifcio pela converso

    dos pecadores? Quero, quero.E com as lgrimas a banhar-lhe as faces, as mos e os olhos

    levantados ao Cu, faz o oferecimento: meu Jesus, por Vosso amor, pela converso dos peca-

    dores, pelo Santo Padre e em reparao dos pecados cometidoscontra o Imaculado Corao de Maria.

    Os presos que presenciaram esta cena quiseram consolar--nos:

    Mas vocs diziam eles digam ao Senhor Administradorl esse segredo. Que Ihes importa que essa Senhora no queira?

    Isso no! respondeu a Jacinta com vivacidade. Antesquero morrer.

    13. Tero na priso

    Determinmos, ento, rezar o nosso Tero. A Jacinta tira umamedalha que tinha ao pescoo, pede a um preso que Ihe pendureem um prego que havia na parede e, de joelhos diante dessa me-dalha, comeamos a rezar. Os presos rezaram connosco, se quesabiam rezar; pelo menos estiveram de joelhos. Terminado o Ter-o, a Jacinta voltou para junto da janela a chorar.

  • 53

    Jacinta, ento tu no queres oferecer este sacrifcio a NossoSenhor? Ihe perguntei.

    Quero; mas lembro-me de minha me e choro sem querer.Ento, como a Santssima Virgem nos tinha dito que ofere-

    cssemos tambm as nossas oraes e sacrifcios para reparar ospecados cometidos contra o Imaculado Corao de Maria, quisemoscombinar a oferecer cada um pela sua inteno. Oferecia um pelospecadores, outro pelo Santo Padre e outro em reparao pelospecados contra o Imaculado Corao de Maria. Feita a combinao,disse Jacinta que escolhesse qual a inteno por que queriaoferecer.

    Eu ofereo por todas, porque gosto muito de todas.

    14. Afeiozinha pelo baile

    Havia entre os presos um que tocava harmnio (harmnica).Comearam, ento, para distrair-nos, a tocar e a cantar.

    Perguntaram-nos se no sabamos bailar. Dissemos que sa-bamos o fandango e o vira. A Jacinta foi ento o par dum pobreladro que, vendo-a to pequenina, terminou por bailar com ela aocolo! Oxal Nossa Senhora tenha tido compaixo da sua alma e otenha convertido.

    Agora dir V. Ex.cia: Que belas disposies para o martrio!... verdade! Mas ramos crianas; no pensvamos mais. A Jacintatinha para o baile uma afeiozinha especial e muita arte. Lembro--me que chorava, um dia, por um seu irmo que andava na guerrae que julgavam morto no campo da batalha. Para a distrair, comdois seus irmos, arranjei um baile; e a pobre criana andava abailar e a limpar as lgrimas que Ihe corriam pelas faces. Noobstante esta afeiozinha que tinha pelo baile, que bastava svezes ouvir qualquer instrumento que tocavam os pastores paracomear a bailar, mesmo sozinha, quando se aproximou o S. Jooe o Carnaval, disse-me:

    Eu, agora, j no bailo mais. E porqu? Porque quero oferecer este sacrifcio a Nosso Senhor. E como

    ramos as cabeas, na brincadeira, entre as crianas, acabaramos bailes que se costumavam fazer nestas ocasies.

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    II. DEPOIS DAS APARIES

    1. Oraes e sacrifcios no Cabeo

    Minha tia, cansada de ter que mandar continuamente buscaros seus filhinhos, para satisfazer o desejo de pessoas que pediampara Ihes falar, mandou pastorear o seu rebanho o seu filhinhoJoo. (16) Jacinta custou muito esta ordem, por dois motivos: porter que falar a toda a gente que a procurava e, como ela dizia, porno poder andar todo o dia junto de mim. Teve, no entanto, queresignar-se. E para se ocultar das pessoas que a buscavam, iaesconder-se, com seu irmozinho, na caverna dum rochedo (17)que fica na encosta dum monte que est em frente do nosso lugare que tem no cimo um moinho de vento. O rochedo fica na encostado lado do nascente; e to bem feita a loca, que os resguardavaperfeitamente da chuva e dos ardores do sol. Alm disso, fica en-coberta por numerosas oliveiras e carvalhos. Quantas oraes esacrifcios ela a ofereceu ao nosso bom Deus!

    Na encosta desse monte havia muitas e variadas flores. Entreelas, havia inmeros lrios, de que ela gostava muito. E sempreque noite me ia esperar ao caminho, me trazia um lrio ou, nafalta deste, uma outra flor qualquer. E era para ela uma festa che-gar junto de mim, desfolh-la e atirar-me com as ptalas.

    Minha me contentou-se, por ento, a marcar-me as pasta-gens, para saber onde andava, quando fosse preciso mandar-mechamar. Quando estas eram perto, avisava os meus companhei-ros que logo l iam ter. A Jacinta corria at chegar perto de mim.Depois, cansada, sentava-se e chamava por mim; e no se calavaenquanto no Ihe respondia e corria ao seu encontro.

    2. O incmodo dos interrogatrios

    Minha me, cansada de ver minha irm perder tempo para ircontinuamente chamar-me e ficar no meu lugar com o rebanho,resolveu vend-lo; e, de acordo com minha tia, mandarem-nos

    (16) Joo Marto, irmo da Jacinta ( 28-IV-2000)(17) A gruta rochosa chama-se Loca do Cabeo e a colina onde se encontra

    tem o nome de Cabeo.

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    escola. A Jacinta gostava de, durante o recreio, ir visitar o Sants-simo; mas, dizia ela:

    Parece que adivinham. Logo que a gente entra na Igreja, tanta gente a fazer-nos perguntas! Eu gostava de estar muito tem-po sozinha, a falar com Jesus escondido; mas nunca nos deixam!

    Na verdade, aquela gentinha simples das aldeias no nosdeixava. Contavam, com toda a simplicidade, todas as suas ne-cessidades e aflies. A Jacinta mostrava pena, em especial quandose tratava dalgum pecador. E, ento, dizia:

    Temos que rezar e oferecer sacrifcios a Nosso Senhor, paraque o converta e no v para o inferno, coitadinho!

    Vem agora aqui a propsito contar uma passagem que mostraquanto a Jacinta procurava fugir s pessoas que a procuravam.amos um dia (18) a caminho de Ftima, quando, j perto da estrada,vemos que descem dum automvel um grupo de senhoras e algunscavalheiros. No duvidmos um momento que nos procuravam.Fugir, j no podamos, sem ser notadas. Vamos para diante, naesperana de passar sem ser conhecidas. Ao chegarem junto dens, as senhoras perguntam se conhecemos os pastorinhos a quemapareceu Nossa Senhora. Respondemos que sim. Se sabamosonde moravam. Demos-Ihes todas as indicaes precisas para irl ter e corremos a ocultar-nos nuns campos em um silvado. AJacinta, contente com o bom resultado da experincia, dizia:

    Havemos de fazer assim sempre que no nos conheam.

    3. O santo Padre Cruz

    Foi tambm um dia, por sua vez, o Senhor Dr. Cruz, de Lisboa(19), a interrogar-nos. Depois do seu interrogatrio, pediu-nos paraIhe irmos mostrar o stio onde Nossa Senhora nos tinha aparecido.Pelo caminho ia uma de cada lado de sua Rev.cia, que ia montadoem um jumento to pequeno que quase arrastava com os ps pelocho. Foi-nos ensinando uma ladainha de jaculatrias, das quais aJacinta escolheu duas que depois no cessava de repetir e eram:

    (18) Isso aconteceu cerca de um ano depois das Aparies, portanto, em 1918 ou1919.

    (19) P.e Francisco Cruz, S.J. (1858-1948), Servo de Deus, cujo processo de beati-ficao est a decorrer.

  • 56

    meu Jesus, eu Vos amo. Doce Corao de Maria, sede a minhasalvao.

    Um dia, na sua doena, disse-me: Gosto tanto de dizer a Jesus que O amo! Quando Lho digo

    muitas vezes, parece que tenho lume no peito, mas no me quei-mo.

    Outra vez dizia: Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, que nunca

    me canso de Lhes dizer que Os amo.

    4. Graas alcanadas pela Jacinta

    Havia no nosso lugar uma mulher que nos insultava sempreque nos encontrava. Encontrmo-la, um dia, quando saa dumataberna, e a pobre, como no estava em si, no se contentou, des-sa vez, s com insultar-nos. Quando terminou o seu trabalho, aJacinta diz-me:

    Temos que pedir a Nossa Senhora e oferecer-Lhe sacrifciospela converso desta mulher. Diz tantos pecados que, se no seconfessa, vai para o inferno.

    Passados alguns dias, corramos em frente da porta da casadesta mulher. De repente, a Jacinta pra no meio da sua carreira evoltando-se para trs pergunta:

    Olha, amanh que vamos ver aquela Senhora? sim. Ento no brinquemos mais. Fazemos este sacrifcio pela

    converso dos pecadores.E sem pensar que algum a podia ver, levanta as mozinhas

    e os olhos ao Cu e faz o oferecimento. A mulherzinha espreitavapor um postigo da casa e depois, dizia ela a minha me, que atinha impressionado tanto aquela aco da Jacinta, que no ne-cessitava doutra prova para crer na realidade dos factos. E dapara o futuro, no s nos no insultava, mas pedia-nos continua-mente para pedirmos por ela a Nossa Senhora, que Ihe perdoasseos seus pecados.

    Encontrou-nos um dia uma pobre mulher e, chorando, ajoe-lhou-se diante da Jacinta a pedir-lhe que Ihe obtivesse de NossaSenhora a cura duma terrvel doena. A Jacinta, ao ver de joe-lhos, diante de si, uma mulher, afligiu-se e pegou-lhe nas mos

  • 57

    trmulas para a levantar. Mas vendo que no era capaz, ajoelhoutambm e rezou com a mulher trs Ave-Marias; depois, pediu-lheque se levantasse, que Nossa Senhora havia de cur-la. E no dei-xou mais de rezar todos os dias por ela, at que, passado algumtempo, tornou a aparecer para agradecer a Nossa Senhora a suacura.

    Outra vez, era um soldado que chorava como uma criana.Tinha recebido ordem de partir para a guerra e deixava a sua mulherem cama, doente, e trs filhinhos. Ele pedia ou a cura da mulher oua revogao da ordem. A Jacinta convidou-o a rezar com ela oTero. Depois disse-lhe:

    No chore. Nossa Senhora to boa! Com certeza faz-Ihe agraa que Ihe pede.

    E no esqueceu mais o seu soldado. No fim do Tero rezavasempre uma Ave-Maria pelo soldado. Passados alguns meses,apareceu com sua esposa e seus trs filhinhos para agradecer aNossa Senhora as duas graas recebidas. Por causa duma febreque Ihe tinha dado na vspera de partir, tinha sido livre do serviomilitar e sua esposa, dizia ele, tinha sido curada por milagre deNossa Senhora.

    5. Novos sacrifcios

    Disseram um dia que vinha a interrogar-nos um Sacerdote queera santo e que adivinhava o que se passava no ntimo de cadaum e que, por isso, ia a descobrir se sim ou no dizamos a verda-de. A Jacinta dizia, ento, cheia de alegria:

    Quando vir esse Senhor Padre que adivinha? Se adivinha,h-de saber muito bem que falamos verdade.

    Brincvamos, um dia, sobre o poo j mencionado. A me daJacinta tinha ali uma vinha pegada. Cortou alguns cachos e veiotrazer-no-los, para que os comssemos. Mas a Jacinta no esque-cia nunca os seus pecadores.

    No os comemos dizia ela e oferecemos este sacrifciopelos pecadores.

    Depois, correu a levar as uvas s outras crianas que brin-cavam na rua. volta, vinha radiante de alegria; tinha encontradoos nossos antigos pobrezinhos e tinha-lhas dado a eles.

  • 58

    Outra vez, minha tia foi chamar-nos para comermos uns figosque tinha trazido para casa e que na realidade abriam o apetite aqualquer. A Jacinta sentou-se connosco, satisfeita, ao lado da ces-ta e pega no primeiro para comear a comer; mas, de repente,lembra-se e diz:

    verdade! Ainda hoje no fizemos nenhum sacrifcio pelospecadores! Temos que fazer este.

    Pe o figo na cesta, faz o oferecimento e l deixmos os figos,para converter os pecadores. A Jacinta repetia com frequnciaestes sacrifcios, mas no me detenho a contar mais; se no, nun-ca acabo.

    III. DOENA E MORTE DE JACINTA

    1. Jacinta, vtima da pneumnica

    Passavam assim os dias da Jacinta, quando Nosso Senhormandou a pneumnica, que a prostrou em cama, com seu Ir-mozinho (20). Nas vsperas de adoecer dizia:

    Di-me tanto a cabea e tenho tanta sede! Mas no querobeber, para sofrer pelos pecadores.

    Todo o tempo que me ficava livre da escola e de alguma outracoisa que me mandassem fazer, ia para junto dos meus companhei-ros. Quando, um dia, passava para a escola, diz-me a Jacinta:

    Olha, diz a Jesus escondido, que eu gosto muito dEle e queO amo muito.

    Outras vezes dizia: Diz a Jesus que Lhe mando muitas saudades.Quando ia primeiro ao quarto dela, dizia: Agora vai ver o Francisco; eu fao o sacrifcio de ficar aqui

    sozinha.Um dia, sua me levou-lhe uma xcara de leite e disse-lhe que

    o tomasse. No quero, minha me respondeu, afastando com a mo-

    zinha a xcara.Minha tia ateimou um pouco e depois retirou-se, dizendo:

    (20) Jacinta adoeceu em Outubro de 1918; Francisco pouco depois.

  • 59

    No sei como Ihe hei-de fazer tomar alguma coisa, com tantofastio!

    Logo que ficmos ss, perguntei-lhe: Como desobedeces assim a tua me e no ofereces este

    sacrifcio a Nosso Senhor?Ao ouvir isto, deixou cair algumas lgrimas, que eu tive a feli-

    cidade de limpar, e disse: Agora no me lembrei!E chama pela me, pede-lhe perdo que toma tudo quanto ela

    quiser. A me traz-lhe a xcara do leite; toma-o sem mostrar a maisleve repugnncia. Depois, diz-me:

    Se tu soubesses quanto me custou a tomar!Em outra ocasio, disse-me: Cada vez me custa mais a tomar o leite e os caldos; mas

    no digo nada. Tomo tudo por amor de Nosso Senhor e doImaculado Corao de Maria, nossa Mezinha do Cu.

    Perguntei-lhe um dia: Ests melhor? J sabes que no melhoro.E acrescentou: Tenho tantas dores no peito! Mas no digo nada; sofro pela

    converso dos pecadores.Quando, um dia, cheguei junto dela, perguntou-me: J fizeste hoje muitos sacrifcios? Eu fiz muitos. Minha me

    foi-se embora e eu quis ir muitas vezes visitar o Francisco e no fui.

    2. Visita de Nossa Senhora

    Recuperou, no entanto, algumas melhoras. Pde ainda le-vantar-se e passava, ento, os dias sentada na cama do irmozi-nho. Um dia mandou-me chamar: que fosse junto dela depressa.L fui, correndo.

    Nossa Senhora veio-nos ver e diz que vem buscar o Fran-cisco muito breve para o Cu. E a mim perguntou-me se queriaainda converter mais pecadores. Disse-Lhe que sim. Disse-me queia para um hospital, que l sofreria muito; que sofresse pela con-verso dos pecadores, em reparao dos pecados contra oImaculado Corao de Maria e por amor de Jesus. Perguntei se tu

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    ias comigo. Disse que no. Isto o que me custa mais. Disse que iaminha me levar-me e, depois, fico l sozinha!

    Depois, ficou algum tempo pensativa. Depois, acrescentou: Se tu fosses comigo! O que mais me custa ir sem ti. Se

    calhar, o hospital uma casa muito escura, onde no se v nada;e eu estou ali a sofrer sozinha! Mas no importa, sofro por amor deNosso Senhor, para reparar o Imaculado Corao de Maria, pelaconverso dos pecadores e pelo Santo Padre.

    Quando chegou o momento de seu irmozinho partir para oCu (21), ela fez as suas recomendaes:

    D muitas saudades minhas a Nosso Senhor e a NossaSenhora e diz-Lhes que sofro tudo quanto Eles quiserem, paraconverter os pecadores e reparar o Imaculado Corao de Maria.

    Sofreu muito com a morte do irmo. Ficava por muito tempopensativa; e se se Ihe perguntava no que estava a pensar, res-pondia:

    No Francisco. Quem me dera v-lo!E os olhos arrasavam-se-lhe de lgrimas.Um dia, disse-lhe: A ti j te falta pouco para ires para o Cu; mas eu! Coitadinha! No chores. L, hei-de pedir muito, muito, por ti.

    Tu, Nossa Senhora que quer assim. Se me quisesse a mim, fica-va contente, para sofrer mais pelos pecadores.

    3. No hospital de Ourm

    Chegou tambm o dia de ir para o hospital (22), onde, na ver-dade, teve muito que sofrer. Quando a me a foi visitar, perguntou--lhe se queria alguma coisa. Disse-lhe que queria ver-me. Minhatia, ainda que com inmeros sacrifcios, l me levou, logo que pdevoltar. Logo que me viu, abraou-me com alegria e pediu meque me deixasse ficar e fosse a fazer compras. Perguntei-lhe, ento,se sofria muito.

    Sofro, sim; mas ofereo tudo pelos pecadores e para repa-rar o Imaculado Corao de Maria.

    (21) Francisco morreu em 4 de Abril de 1919.(22) Trata-se do primeiro hospital em que ela esteve: o de Santo Agostinho de Vila

    Nova de Ourm. Esteve a internada de 1 de Julho a 31 de Agosto de 1919.

  • 61

    Depois falou com entusiasmo de Nosso Senhor e de NossaSenhora e dizia:

    Gosto tanto de sofrer por Seu amor! Para dar-Lhes gosto! Elesgostam muito de quem sofre para converter os pecadores.

    Esse tempo destinado para a visita passou rpido; e minha tial estava para me levar. Perguntou sua filhinha se queria algumacoisa. Pediu para me trazer outra vez, quando voltasse a v-la. Eminha boa tia, que queria dar gosto sua filhinha, l me levou umasegunda vez. Encontrei-a com a mesma alegria por sofrer por amorde nosso bom Deus, do Imaculado Corao de Maria, pelos peca-dores e pelo Santo Padre; era o seu ideal, era no que falava.

    4. Regresso a Aljustrel

    Voltou ainda algum tempo para casa dos pais, com uma gran-de ferida aberta no peito, cujos curativos dirios sofria sem umaqueixa, sem mostrar o menor sinal de enfado. O que mais Ihe cus-tava eram as frequentes visitas e interrogatrios das pessoas quea procuravam e s quais agora no podia esconder-se.

    Ofereo tambm este sacrifcio pelos pecadores dizia comresignao. Quem me dera ir ao Cabeo rezar ainda um Tero nanossa loca! Mas j no sou capaz. Quando fores Cova de Iria,reza por mim. Decerto nunca mais l vou dizia com as lgrimas acorrer-lhe pelas faces.

    Um dia, disse-me minha tia: Pergunta Jacinta o que est a pensar, quando est tanto

    tempo com as mos na cara, sem se mover, j Iho tenho pergunta-do, mas sorri-se e no responde

    Fiz a pergunta. Penso respondeu em Nosso Senhor, Nossa Senhora,

    nos pecadores e em ... (Nomeou algumas coisas do segredo). Gostomuito de pensar.

    Minha tia perguntou-me pela resposta da sua filhinha; com umsorriso, tinha tudo dito. Ento dizia minha tia a minha Me contan-do o que se tinha passado:

    No entendo; a vida destas crianas um enigma! E minhaMe acrescentava:

    Quando esto ss, falam pelos cotovelos, sem que a genteseja capaz de Ihes apanhar uma palavra, por mais que escute; e

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    logo que chega algum, baixam a cabea e no dizem uma pala-vra! No posso entender este mistrio!

    5. Novas visitas de Nossa Senhora

    De novo a Santssima Virgem se dignou visitar a Jacinta, paraIhe anunciar novas cruzes e sacrifcios. Deu-me a notcia e dizia--me:

    Disse-me que vou para Lisboa, para outro hospital; que note torno a ver, nem os meus pais; que, depois de sofrer muito,morro sozinha, mas que no tenha medo; que me vai l Ela a bus-car para o Cu.

    E chorando, abraava-me e dizia: Nunca mais te torno a ver. Tu l no me vais a visitar. Olha,

    reza muito por mim, que morro sozinha.At que chegou o dia de ir para Lisboa, sofreu horrivelmente!

    Abraava-se a mim e dizia, chorando: Nunca mais te hei-de tornar a ver?! Nem a minha me, nem

    os meus irmos, nem o meu pai?! Nunca mais hei-de ver ningum?!E depois morro sozinha!

    No penses nisso Ihe disse um dia. Deixa-me pensar, porque, quanto mais penso, mais sofro; e

    eu quero sofrer por amor de Nosso Senhor e pelos pecadores. Edepois no me importo! Nossa Senhora vai-me l a buscar para oCu.

    s vezes beijava um crucifixo e, abraando-o, dizia: meu Jesus, eu Vos amo e quero sofrer muito por Vosso

    amor.Outras vezes dizia: Jesus, agora podes converter muitos pecadores, porque

    este sacrifcio muito grande!Perguntava-me, s vezes: E vou morrer sem receber a Jesus escondido? Se mO le-

    vasse Nossa Senhora, quando me for a buscar!...Perguntei-lhe uma vez: Que vais a fazer no Cu? Vou amar muito a Jesus, o Imaculado Corao de Maria,

    pedir muito por ti, pelos pecadores, pelo Santo Padre, pelos meus

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    pais e irmos e por todas essas pessoas que me tm pedido parapedir por elas.

    Quando a me se mostrava triste por a ver to doentinha dizia: No se aflija, minha Me: vou para o Cu. L hei-de pedir

    muito por si.Outras vezes, dizia: No chore, eu estou bem.Se Ihe perguntavam se precisava de alguma coisa, dizia: Muito obrigada, no preciso nada.Quando se retiravam, dizia:Tenho muita sede, mas no quero beber; ofereo a Jesus

    pelos pecadores.Um dia que minha tia me fazia algumas perguntas, chamou-me

    e disse-me: No quero que digas a ningum que eu sofro; nem minha

    me, porque no quero que se aflija.Um dia, encontrei-a abraando uma estampa de Nossa Se-

    nhora e a dizer: minha Mezinha do Cu, ento eu hei-de morrer sozinha?A pobre criana parecia assustar-se com a ideia de morrer

    sozinha. Para a animar, dizia-lhe: Que te importa morrer sozinha, se Nossa Senhora te vai a

    buscar? verdade! No me importa nada. Mas no sei como ; s

    vezes no me lembro que Ela me vai a buscar, s me lembro quemorro sem tu estares ao p de mim.

    6. Partida para Lisboa

    Chegou, por fim, o dia de partir para Lisboa (23). A despedidacortava o corao. Permaneceu muito tempo abraada ao meupescoo e dizia, chorando:

    Nunca mais nos tornamos a ver! Reza muito por mim, atque eu v para o Cu. Depois, l, eu peo muito por ti. No digas

    (23) Foi para Lisboa em 21 de Janeiro de 1920, tendo ficado no Orfanato de NossaSenhora dos Milagres, fundado e dirigido pela Madre Godinho, Rua da Estre-la, 17. Foi internada a 2 de Fevereiro de 1920 no Hospital D. Estefnia; afaleceu, a 20 de Fevereiro de 1920, s 22.30 horas.

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    (24) Estas Memrias da Lcia foram transcritas, pela primeira vez, pelo CnegoDr. Jos Galamba de Oliveira, no seu livro Jacinta (Maio de 1938).

    nunca o segredo a ningum, ainda que te matem. Ama muito aJesus e o Imaculado Corao de Maria e faz muitos sacrifciospelos pecadores.

    De Lisboa, mandou-me ainda dizer que Nossa Senhora j l atinha ido ver; que Ihe tinha dito a hora e dia em que morria; e reco-mendava-me que fosse muito boa.

    APNDICE

    Acabo, Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo, de contar a V. Ex.cia Rev.mao que recordo da vida da Jacinta.

    Peo a nosso bom Deus se digne aceitar este acto de obe-dincia, para acender nas almas a chama do amor aos Coraesde Jesus (e) Maria.

    Agora peo um favor: que, se V. Ex.cia Rev.ma publicar algu-ma coisa (24) das que acabo de contar, o faa de modo que no falede maneira alguma da minha pobre e miservel pessoa. Confes-so, porm, Ex.mo e Rev.mo Bispo que, se soubesse que V. Ex.ciaRev.ma tinha queimado este escrito sem sequer o ler, eu teria nissomuito gosto, pois o escrevi unicamente para obedecer vontadedo nosso bom Deus, para mim declarada na vontade expressa deV. Ex.cia Rev.ma.

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    SEGUNDA MEMRIAIntroduo

    A Primeira Memria tinha descoberto aos Superiores de Lcia queesta guardava, cuidadosamente, ainda muitas coisas que s revelariapor obedincia. Em Abril de 1937, 0 P.e Fonseca, escrevendo ao Sr. Bis-po, dizia-lhe: A carta da Irm Dores (Lcia) sobre a Jacinta faz suporque h ainda particulares interessantes relativos histria das aparies(palavras, ou comunicaes de N. Senhora, actos de virtude das crian-as em obedincia das indicaes de N. Senhora...) que esto aindainditos. No seria possvel, ou haveria inconveniente, em fazer que airm Lcia, com simplicidade religiosa e evanglica, para honra de Nos-sa Senhora, escrevesse miudamente quanto se lembrasse?.

    Com efeito, o Sr. Bispo, posto de acordo com a Madre Provincialdas Doroteias, Madre Maria do Carmo Corte Real, do ordem Lcia.Esta, com data de 7 de Novembro de 1937, pode responder ao Sr. D.Jos: Aqui estou, com a pena na mo, para fazer a vontade do meuDeus. Este escrito, iniciado no dia 7 de Novembro, est terminado nodia 21, isto , catorze dias para redigir um longo escrito, e sempre nomeio das ocupaes caseiras que no a deixam repousar. Trata-se deum trabalho de 38 folhas escritas de ambos os lados, com letra fechadae corrida e sem correces. Isto manifesta, uma vez mais, a lucidez deesprito, a serenidade de alma, o equilbrio das faculdades da Irm Lcia.

    Nesta Memria, os temas so surpreendentes: as aparies do Anjo,graas extraordinrias na sua primeira comunho, aparies do CoraoImaculado de Maria em Junho de 1917 e muitas circunstnciasabsolutamente inditas at ento. A inteno da Irm Lcia neste escrito,assinala-a deste modo: ...deixar ver a histria de Ftima tal qual ela .No se trata, portanto, como na Memria anterior de umas recordaesbiogrficas, em que as Aparies permanecem na penumbra, mas dasprprias Aparies, em primeiro plano.

    O esprito com que Lcia escreve patenteado nas seguintespalavras: No terei mais o gosto de saborear s contigo os segredos doTeu amor; mas, para o futuro, outros cantaro comigo as grandezas daTua misericrdia!... Eis aqui a escrava do Senhor! Que Ele continue aservir-se dela como Lhe aprouver.

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    (1) Trata-se da frase da fundadora da Congregao de Santa Doroteia, SantaPaula Frassinetti.

    (2) A ortografia , por vezes, imperfeita, mas isso no atinge a clareza nem onvel de estilo dos seus escritos.

    PREFCIO

    J. M. J.Vontade de Deus, tu s o meu Paraso! (1)

    Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo

    Aqui estou, com a pena na mo, para fazer a vontade do meuDeus; e porque no outro o meu fim, comeo com a mxima quea minha santa Fundadora me deixou em herana e que eu, nodecorrer deste escrito, sua imitao, repetir