meinong, russel e platão

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64 Meinong, Russell e a Barba de Platão HENRIQUE DE LIMA SANTOS * Resumo O “problema das coisas que não são” vem há muito tempo andando de mãos dadas com a filosofia, visto que desde seus primórdios, a filosofia se depara com este grande enigma. No presente artigo trataremos sobre o problema do “não-ser”, ou ainda, o problema, segundo Quine, da Barba de Platão. Primeiramente, veremos como Quine constrói o problema da Barba, e elabora alguns ataques a ela. Posteriormente, observaremos como Alexius Meinong adiciona um tônico capilar à barba com a sua Teoria de Objeto. Por fim, trataremos sobre como Bertrand Russell desenvolve sua Teoria das Descrições solucionando, entre outras coisas, o velho enigma platônico. Palavras-chave: Teoria de Objeto; Teoria das Descrições; A barba de Platão; Não-ser. Meinong, Russell and the Beard of Plato Abstract The "problem of the things that are not" has long walking hand in hand with philosophy, since from the very beginning, the philosophy is faced with this great puzzle. In this article we analyze on the problem of "non-being", or the problem, according to Quine, the Beard of Plato. First, we will see how Quine builds problem Beard, and unleashes some attacks her. Subsequently, we look at how Alexius Meinong adds a hair tonic to shave with his Theory Object. Finally, we will deal about Bertrand Russell developed his Theory of Descriptions solving, among other things, the old Platonic riddle. Key words: Theory Object; Theory of Descriptions; The Beard of Plato; Non- being. * HENRIQUE DE LIMA SANTOS é graduando da 8ª fase de Filosofia pela Universidade Federal da Fronteira Sul - Erechim/RS; Ex-bolsista do Subprojeto do Pibid Filosofia da UFFS; Bolsista do Projeto de Monitoria de Lógica.

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platonismo na filosofia analítica.

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    Meinong, Russell e a Barba de Plato HENRIQUE DE LIMA SANTOS*

    Resumo

    O problema das coisas que no so vem h muito tempo andando de mos dadas com a filosofia, visto que desde seus primrdios, a filosofia se depara com este grande enigma. No presente artigo trataremos sobre o problema do no-ser, ou ainda, o problema, segundo Quine, da Barba de Plato. Primeiramente, veremos como Quine constri o problema da Barba, e elabora alguns ataques a ela. Posteriormente, observaremos como Alexius Meinong adiciona um tnico capilar barba com a sua Teoria de Objeto. Por fim, trataremos sobre como Bertrand Russell desenvolve sua Teoria das Descries solucionando, entre outras coisas, o velho enigma platnico.

    Palavras-chave: Teoria de Objeto; Teoria das Descries; A barba de Plato; No-ser.

    Meinong, Russell and the Beard of Plato

    Abstract

    The "problem of the things that are not" has long walking hand in hand with philosophy, since from the very beginning, the philosophy is faced with this great puzzle. In this article we analyze on the problem of "non-being", or the problem, according to Quine, the Beard of Plato. First, we will see how Quine builds problem Beard, and unleashes some attacks her. Subsequently, we look at how Alexius Meinong adds a hair tonic to shave with his Theory Object. Finally, we will deal about Bertrand Russell developed his Theory of Descriptions solving, among other things, the old Platonic riddle.

    Key words: Theory Object; Theory of Descriptions; The Beard of Plato; Non-being.

    * HENRIQUE DE LIMA SANTOS graduando da 8 fase de Filosofia pela Universidade Federal da Fronteira Sul - Erechim/RS; Ex-bolsista do Subprojeto do Pibid Filosofia da UFFS; Bolsista do Projeto de Monitoria de Lgica.

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    Introduo O problema das coisas que no so vem h muito tempo andando de mos dadas com a filosofia1. A maioria dos filsofos est ciente deste problema e tentam elaborar uma resposta a tal questionamento. Ento, sobre esta temtica que trataremos neste artigo. Chamaremos esse problema de a Barba de Plato (daqui em diante a Barba). Este foi o nome dado ao problema pelo filsofo norte americano W. v. O. Quine. Segundo ele, esse

    [...] o velho enigma platnico do no-ser. O no-ser deve em algum sentido ser, caso contrrio o que seria aquilo, que no ? Essa doutrina emaranhada pode ser apelidada de a Barba de Plato (QUINE, 1975, p.223).

    Desde muitos anos, a filosofia tenta desemaranhar esta barba, porm, para Quine, ela obscura e no h maneira de apar-la. Inegavelmente, a barba tirou muito do fio da navalha de Ockham2. Um exemplo ilustrativo o seguinte: tomemos a proposio Unicrnios no existem. Ora, o que mesmo aquilo que no existe? Certamente so os unicrnios. Mas, afinal, os unicrnios existem ou no? Os defensores da barba so taxativos em afirmar que o no-ser, ou seja, os unicrnios, tm que, de alguma maneira, ser ou existir.

    1 Se segue-se a proposta de Quine, a resposta a tal problema fica fcil, mas o caminho at tal resposta difcil de trilhar. Segundo Quine, a resposta para a pergunta O que h?, seria nada mais nada menos que Tudo!. Logo, aquilo que no h simplesmente no h. 2 G. de Ockham (1285 1347) foi um filsofo medieval e criador da chamada Navalha de Ockham, que um princpio lgico que afirma que as entidades no devem ser multiplicadas para alm da necessidade. Assim quem ataca a barba usa a navalha como uma ferramenta.

    Este problema introduzido na filosofia por Parmnides de Elia. Dizia ele que a via do no ser impossvel; s se pode falar e pensar, e chegar ao conhecimento, sobre a trilha do ser. Em outras palavras, o no ser no pode ter forma alguma de existncia. E com Parmnides que Plato est dialogando constantemente. No dilogo Sofista, Plato tenta esboar as qualidades dos sofistas. Os sofistas so considerados por Plato como desenvolvedores da arte do simulacro. Assim, para que Plato tenha xito, preciso explicitar como possvel que o sofista crie os simulacros. Dito de outra maneira, precisa-se entender como possvel dizer o que no . Vejamos o que o prprio Plato (2007) afirma:

    Estamos [...] realmente empenhados numa investigao muito difcil, pois a matria de aparecer e parecer, mas no-ser, e de dizer coisas, mas no verdadeiras tudo isso agora, como o foi sempre, motivo de muita perplexidade. [...] sumamente difcil compreender que forma de discurso um indivduo deveria usar para dizer que realmente h a falsidade e, ao diz-lo, no se envolver em contradies. [...] Porque essa afirmao implica a hiptese audaciosa de que o no-ser existe, pois se assim no o fosse a falsidade no poderia vir a ser (PLATO, 237a).

    Percebe-se que a grande dificuldade a de afirmar a barba, mas sem cair em contradio. Entretanto, quando se fala nesta problemtica, h uma enorme facilidade em cair em contradio, conforme testemunha Plato. Em nosso artigo veremos, em um primeiro momento3, como Quine desenvolve a 3 O presente trabalho no visa uma apresentao cronolgica dos autores tratados no texto. Uma

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    sua viso do problema da barba, e como ele defere alguns ataques ela sem, contudo, tratar diretamente as solues levantadas por ele4. Dada a relao da barba com objetos inexistentes, tentar-se- discutir a Teoria de Objetos de Alexius Meinong, observando como essa teoria adiciona, tal qual observa Guerreiro (1999), um tnico capilar barba. Por fim, veremos como o filsofo Bertrand Russell se comporta frente a esse problema. Em uma primeira fase de seu pensamento, ele foi adepto da Teoria de Objetos de Meinong, porm, posteriormente, elaborou ataques contundentes e desenvolveu a Teoria das Descries, que, at onde se pode averiguar, soluciona o velho paradoxo em grande parte ou ainda d o direcionamento para que a Navalha de Ockham faa seu servio. A concepo de Quine contra a Barba Segundo Branquinho (2003), Quine desenvolve argumentos diretos e indiretos contra a Barba. Nos diretos, so diretamente disputados diversas premissas e suposio subjacente ao argumento da Barba (p. 9). Os argumentos indiretos visam reduzir a ideia central da Barba incoerncias e s contradies. apresentao cronolgica dos autores deveria comear por Meinong, prosseguir com Russell e terminar com Quine. Porm, o que visamos quando colocamos Quine no primeiro momento do trabalho , principalmente, a apresentao do problema e algumas crticas feitas pelo filsofo norte americano. Deste modo, as medidas positivas de Quine em relao ao problema no sero tratadas aqui, sendo uma perspectiva de trabalhos futuros. 4 Quine sugere em Sobre o que h (1975) trs medidas positivas frente a estes problemas e uma destas medidas a adoo ampliada da teoria das descries de Russell. Visto tal teoria consistir na ltima parte deste artigo, as medidas de Quine no sero tratadas diretamente, mas indiretamente.

    Quine se pergunta: qual a natureza destes objetos que a Barba afirma existir? Qual a natureza dos unicrnios, para recuperarmos o exemplo antes citado? Para indagaes dessa natureza, ele acredita haver duas respostas e ambas so problemticas. A primeira resposta consiste em que o defensor de tal teoria poderia dizer que a natureza destes objetos mental. A objeo de Quine (1975) a essa resposta de que ela carece de univocidade, ou seja, o objeto pensado por duas pessoas distintas, a rigor, no o mesmo. A representao mental de qualquer objeto diferente do prprio objeto. Para Quine, quem defende a Barba no pode sustentar uma espcie de mentalismo. Dada estas consequncias, Quine problematiza ainda mais: e como ficam aqueles casos em que no sabemos ao certo se o objeto existe? Por exemplo, no caso de cavalos alados ou unicrnios. Quando o objeto existe, apesar de a univocidade ser obscura, mais fcil de entender, mas quando o objeto no existe ou ficcional, h muita confuso.

    A segunda resposta consiste em afirmar que estes objetos inexistentes ou ficcionais so possveis (possibilia). Eles no existem aqui e agora, mas poderiam ter existido em pocas passadas ou ainda podero existir no futuro. Nesse tocante, Quine alude filosofia de Alexius Meinong. Para Meinong, unicrnios no existem de fato, mas eles fazem parte de um ser que maior que a existncia. Logo, unicrnios subsistem. H a a distino entre existir e ser, a qual veremos mais adiante.

    Para Branquinho (2003), Quine concede, para fins argumentativos, que unicrnios subsistem, mas, em seguida, o filsofo americano levanta srias objees. Quine (1975) admite que o

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    universo dos defensores da Barba superpovoado, e isso considerado uma ofensa ao senso esttico. [...] o universo do Sr. Y [defensor da Barba] , por muitos aspectos, desagradvel. Ele ofende o senso esttico que, como ns, tem uma queda por paisagens desertas, mas isso no o pior (p.224). Para Branquinho (2003), consideraes de ordens estticas no so argumentos. Porm, Quine (1975) afirma ainda, que estas consideraes estticas no so o pior. O pior ter que conceder a existncia de objetos impossveis, tais como quadrado redondo, como veremos a seguir.

    Quine (1975) entende que h objetos que tambm no podem nem mesmo serem considerados como possveis. No exemplo de unicrnios, os possibilia podem ser encarados, mas, e quanto a objetos impossveis, tais como quadrado redondo? H maneiras de defender sua existncia? Para Quine (1975), a Barba difcil de sustentar e sempre levar seu defensor a srias objees e contradies. Vejamos o que ele afirma

    Referi-me desairosamente barba de Plato e insinuei que ela emaranhada. Estendi-me longamente sobre os inconvenientes de sustent-la. hora de pensar em medidas positivas (QUINE, 1975, p. 226)

    Uma destas medidas positivas a Teoria das Descries de Russell. Trataremos desta teoria na ltima parte do artigo. Por ora, vejamos a Teoria dos Objetos de Alexius Meinong (2005), que foi o principal alvo dos ataques tanto de Quine como tambm de Russell.

    A teoria dos objetos de Meinong

    Alexius Meinong (1853 1920) um filsofo austraco bastante conhecido pela sua Gegenstandstheorie, ou seja, Teoria de Objetos. Meinong foi, ao lado de Husserl, um dos alunos de destaque de Brentano. Alm da teoria de objetos, ele desenvolveu, segundo Guerreiro (1999, p.55), extensos estudos sobre o associacionismo de Hume e outros tpicos de carter psicolgico e filosfico, mas o que mais o tornou conhecido foi a sua Gegenstandstheorie.

    Para Meinong (2005) h um pr-juzo a favor do efetivo, ou seja, a metafsica tradicional apenas deu ateno aos objetos reais, efetivos, e acabou esquecendo-se de outras categorias de objetos. Meinong afirma que a,

    [...] metafsica lida, sem dvida, com a totalidade do que existe. Mas, a totalidade do que existe, incluindo a o que existiu e o que existir, infinitamente pequena em relao totalidade dos objetos de conhecimento; e que se tenha negligenciado isto to facilmente tem, bem entendido, o seu fundamento no fato que o interesse vivo pelo efetivo, que est em nossa natureza, favorece esse excesso que consiste em tratar o no-efetivo como um simples nada (2005, p. 96).

    Mario Antonio de Lacerda Guerreiro (1999) nos ajuda a compreender isso. Para ele, Meinong denuncia quem concede:

    [...] um injustificvel privilgio s entidades fsicas, principalmente s possuidoras daquilo que Aristteles chamara de frmula substancial, ou seja: coisas que se destacam umas das outras por seus contornos bem demarcados e que, por isto

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    mesmo, constituem unidades contveis (p. 59).

    Meinong tambm afirma que, sem dvida alguma, os objetos do conhecimento no devem necessariamente existir. A totalidade dos objetos no necessariamente efetiva ou real. H objetos que:

    [...] so dotados de uma subsistncia (bestehen), mas em nenhum caso de existncia (existierien) e, por conseguinte, no podem de maneira alguma ser efetivos (MEINONG, 2005, p. 97, grifo do autor)

    Antes de seguirmos vejamos como Dcio Krause (2011) constri resumidamente as teses de Meinong. As teses bsicas so:

    (p1) H objetos que no existem (mas que meramente subsistem). Outra maneira de afirmar a mesma coisa : Existem objetos que no existem. Claro que preciso cuidado aqui em discernir os diferentes sentidos da palavra existem;

    (p2) Qualquer coisa que possa ser alvo de um processo mental, experienciado de algum modo, um objeto, ou seja, tem existncia.

    (p3) Todo objeto possui as propriedades que o caracterizam. Por exemplo, o quadrado redondo tanto quadrado quanto redondo.

    (p4) Pode haver sentenas verdadeiras acerca daquilo que no tem ser (p.13-14, grifos do autor)

    Meinong levado a distinguir ser de existncia. Para ele, existncia o efetivo, o que se d no espao-tempo. J o ser subsiste, o no-efetivo. Vejamos novamente a distino de Krause (2011): ser tudo aquilo que pertence a todo o ser concebvel, [...] existir uma prerrogativa daqueles

    objetos que tm uma relao especfica com a existncia (p. 15).

    Para Guerreiro (1999), tal qual Berkeley5 teve seu lema ser ser percebido, Meinong adota o lema ser ser mencionado. Assim, Meinong (2005) acaba abrindo mo do princpio da Navalha de Ockham, segundo Guerreiro, por uma questo de preciso e elegncia da linguagem filosfica o que ultrapassa o limite do domnio do estritamente necessrio envereda pelo do perfeitamente dispensvel (GUERREIRO, 1999, p. 57). Meinong acaba comprometido com tudo o que pode ser mencionado. Ento unicrnios, duendes, e todas as outras entidades que no temos preciso quanto a sua existncia, no sentido de Meinong, precisam existir, ou melhor, subsistir. Afirmamos, como Guerreiro (1999), que Meinong acabou de formular um Tnico Capilar barba de Plato, pois as entidades podem, para Meinong, ser multiplicadas vontade, embora possa fazer a barba de Plato crescer para alm do umbigo, demasiada e desnecessria (GUERREIRO, 1999, p. 58).

    A Gegenstandstheorie de Meinong (2005) tambm levada aos seus extremos. Se ser ser mencionado, ento duendes existem, ou melhor, subsistem. Mas e quanto ao circulo quadrado? Para Meinong, no s ele subsiste como tambm circulo e quadrado. Portanto, qualquer palavra criada a qualquer momento, mesmo destituda de sentido, dever existir ou subsistir. Ento a palavra supercallifragilisticexpiralidocious, 5 G. Berkeley (1685 1753) adotava como seu lema a ideia de que ser ser percebido. Isso corrobora as suas concepes empiristas e idealista, considerando que as coisas ditas matrias no passam de ideias nas mentes humanas e na mente de Deus.

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    que Guerreiro (1999) cunhou6, e que no tem sentido algum, deve ter algum objeto correspondente, na existncia ou na subsistncia. Realmente, a teoria de Meinong tem consequncias to contraintuitivas que difcil conceder razo ela.

    Alguns lgicos contemporneos tm tentado reconstruir tal teoria se baseando em lgicas no-clssicas. Eles tentam construir uma lgica paraconsistente que conceda objetos inconsistentes. Fato que, na lgica clssica, a teoria de Meinong no funciona, pois abre mo de um princpio fundamental que o princpio de no contradio. Objetos como o circulo quadrado, bastando apenas serem mencionados, devem denotar algo na esfera da existncia ou na da subsistncia. Na existncia sabemos que isso impossvel, mas e na subsistncia? Tal objeto seria possvel? Duvido. Um crculo quadrado trata-se de um objeto impossvel, contraditrio e, com certeza, ele no existe no espao e no tempo nem existir em algum outro mundo possvel. Meinong exagerou no tnico capilar e agora a barba concede at objetos impossveis.

    Mas qual o calcanhar de Aquiles da Barba? Ou ainda, qual a maior dificuldade que os defensores da barba podem enfrentar? Embora dificilmente barbas tenham calcanhares, foi Russell quem descobriu a fraqueza da barba. Mas, antes disso, o prprio Russell defendeu as ideias de Meinong.

    6 Na expresso supercallifragilisticexpiralidocious, Guerreio (1999, p. 75) refere-se expresso do filme Mary Poppins.

    Russell e a teoria das descries

    Bertrand Russell teve vrias migraes internas em seu pensamento. Ele nunca aceitou muito a teoria das Classes Vazias de Frege. Para ele, Frege feria o princpio do terceiro excludo quando admitia que nomes de coisas no existentes referiam-se a uma classe vazia e que no podiam ser nem verdadeiros nem falso. Isso se aplica quando a expresso de sujeito da frase no apresenta referncia alguma (GUERREIRO, 1999). Assim, proposies do tipo os unicrnios no existem referem-se, para Frege, a uma classe vazia, e no podem ser verdadeiras ou falsas.

    Em 1903 Russell publica a obra Principles of Mathematics e a constam algumas defesas da teoria de Meinong. Neste tempo a teoria de Meinong e a de Russell no possua diferena quase em nada. Nessa obra de 1903, Russell aceita que os nomes deveriam necessariamente referir-se a alguma coisa. Ser mencionado no status de um sujeito lgico deveria ter em algum sentido existncia, ou tambm subsistncia na linguagem de Meinong, ou ainda ser na linguagem do prprio Russell. No h diferenas significativas entre o ser de Russell e a subsistncia de Meinong. Segundo Ayer (1974) Russell interpretava tudo de maneira muito liberal, logo,

    [...] todo o termo podia ser sujeito lgico de uma proposio; e tudo o que pudesse ser mencionado era, por ele, considerado um termo; todo termo podia ser um sujeito lgico de uma proposio; e tudo que pudesse ser um sujeito lgico de uma proposio poderia ser nomeado. Segue-se da que, em princpio, era possvel usar nomes para fazer referencia no apenas a qualquer coisa existente em

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    qualquer lugar e tempo, mas tambm para fazer referencias a entidades abstratas de todas as espcies, e a coisas inexistentes (p. 53).

    At aqui nada de novo. Russell acreditava tambm que do simples fato de ser possvel mencionar-se circulo quadrado seguir-se-ia dever haver algum objeto que se relacionasse a essa expresso, e esse objeto deveria ser simultaneamente redondo e quadrado. Assim, Russell no foi capaz de escapar daquelas dificuldades levantadas ainda na antiguidade pelo velho Parmnides de Elia.

    No demorou muito para que o jovem Russell percebesse que o sistema era falho e as contradies, inevitveis e insuperveis. Em 1905, ocorre a publicao do artigo Da Denotao e a que ele percebe o erro que muitos cometeram. Segundo ele todos se deixaram enganar por uma dificuldade imposta pela linguagem, achando que a formula gramatical e a forma lgica eram iguais. Sabe-se que x = x sempre verdadeira, mas que o atual rei da Frana = o atual rei da Frana no pode ser verdadeira simplesmente porque no existe um atual rei da Frana. Para ele, em Da Denotao, as teorias tomam qualquer expresso denotativa gramaticalmente correta como representativa de um objeto (RUSSELL, 1974, p. 12). Isso acaba por comprometer-se com objetos contraditrios e, consequentemente, ferindo o princpio de no contradio. Isto intolervel; e se se puder estabelecer qualquer teoria para evitar esse resultado, esta deve ser certamente preferida (RUSSELL, 1974, p.12). Vejamos como ele critica estas posies na obra Introduo Filosofia Matemtica,

    A questo da irrealidade, com que deparamos [...] muito importante. Erroneamente conduzidos pela gramtica, a grande maioria dos lgicos que lidaram com essa questo cuidou dela segundo linhas erradas. Consideraram a forma gramatical um guia mais seguro na anlise do que de fato . E no souberam quais diferenas na forma gramatical so importantes (RUSSELL, 1974a, p. 161).

    Logo adiante ele complementa:

    Na falta de um aparato de funes proposicionais, muitos lgicos foram levados a concluses de que h objetos irreais. alegado, por Meinong, que podemos falar sobre montanha de ouro, o quadrado redondo, e assim por diante; podemos formar proposies verdadeiras das quais essas coisas so os objetos; portanto, elas devem ter alguma espcie de ser lgico, pois, de outro modo, as proposies em que ocorrem seriam sem significados (RUSSELL, 1974a, p. 162, grifos do autor).

    Mas qual a proposta da teoria de Russell? Ele consegue dar um fim na barba? A Teoria das Descries pretende analisar como que enunciados do tipo o atual rei da Frana careca podem ser significativos mesmo sabendo que no existe um atual rei da Frana. Russell no pretende de forma alguma ferir os princpios da lgica clssica. A sada de Frege de que proposies sem referncias no so nem verdadeiras e nem falsas, no podem ser consideradas, pois ferem o princpio do terceiro excludo. J Meinong apunhala o princpio de no contradio ao afirmar que qualquer coisa mencionada deve de alguma forma existir. Assim, o quadrado redondo deve subsistir e ser tanto quadrado como redondo. Para Russell,

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    s existe um mundo possvel, o mundo real (1974a, p.162).

    Para Krause (2011), em Russell, [...] enunciados como o atual rei da Frana, o quadrado redondo so descries definidas e nem sempre podem ser tomadas como nomes de entidades: as descries (definidas) no so equivalentes a nomes prprios (p. 20, grifos do autor).

    Nomes prprios genunos so somente as expresses isto ou aquilo, pois referem-se diretamente a objetos. Quaisquer outros nomes, como por exemplo, Scrates e Pgasus so abreviaes de descries. Mas Russell no extremamente rigoroso nestas relaes, pois muitas vezes ele trata de nomes prprios no genunos como se referindo a algo, vejamos o que Ayer (1974) afirma sobre isso.

    Quando [Russell] empresta cunho mais popular s exposies de sua teoria, fala como se Scott fosse um nome prprio genuno e o pe em contraste com uma descrio definida, [...], mas assim age apenas por convenincia de exposio. Quando deseja ser preciso, tem a cautela de advertir que nomes como Scott no so nomes prprios genunos (p. 57).

    Os nomes usuais so meras abreviaes de descries. As descries definidas introduzem o objeto indiretamente no discurso, introduzem descrevendo-os (BRITO, 2003).

    A negao da expresso o atual rei da Frana careca a expresso o atual rei da Frana no careca, mas como pode isso acontecer se se sabe que no existe nenhum rei da Frana? Para Russell, se enumerarmos as coisas que so carecas, e a seguir as coisas que no so carecas, no encontraremos o atual rei da Frana em nenhuma das duas

    enumeraes (1974, p.14). Russell ainda afirma de uma maneira que lhe totalmente prpria que se tivssemos perto de um bom hegeliano, que ama uma sntese, ele nos afirmaria que ento o rei da Frana usa uma peruca.

    A resposta hegeliana, para Russell, no serve. Ento, como a expresso o atual rei da Frana careca, mesmo sabendo que ele no existe, possui sentido? Certo que ela tem sentido e no tem uma referncia. Russell concebe uma teoria abandonando a perspectiva de que a denotao o que se concerne nas proposies que contm expresses denotativas (1974, p.13). Russell deve alcanar uma forma de negar tal expresso. Para que tal proposio fosse corretamente negada devemos parafrase-l na linguagem elementar lgica da seguinte maneira

    Existe x, tal que (I) x um atual Rei da Frana, (2) um e somente um objeto idntico a x e (3) x calvo.

    Desse modo, a descrio definida o atual Rei da Frana era eliminada. Ela no mais figurava como termo sujeito. Em seu lugar, tnhamos um quantificador existencial quantificando a varivel x. A expresso um Rei da Frana desempenha o papel de um predicado, assim como calvo. Ligados pelo conectivo e, ambos os predicados eram atribudos ao sujeito quantificado x. Levando em considerao a regra para o estabelecimento dos valores de verdade da conjuno, Russel chegou concluso de que [a expresso] era falsa, porque suas partes (1) e (2) eram falsas (GUERREIRO, 2003, p. 85, grifos do autor).

    Russell (1974) tira a carga existencial do sujeito lgico e a transfere para os quantificadores. Ele dilui a descrio,

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    ou o nome, que aparentemente so existenciais na linguagem ordinria, para uma formalizao lgica em que as descries no tenham nenhum compromisso ontolgico. Esta parfrase para a linguagem lgica resolve at o enigma das coisas que no existem. No entender de Russell, a expresso Pgasus no existe, sabendo que nomes so abreviaes de descries, deveriam ser parafraseadas para o cavalo alado de Belerofonte no existe. E esta ltima expresso dever ser parafraseada para a linguagem lgica, na qual a carga existencial sai da descrio e migra para as variveis das funes proposicionais. A parfrase para uma linguagem lgica de primeira ordem ficaria da seguinte maneira, onde A significa o cavalo alado de Belerofonte:

    ~x (Ax y (Ay y = x) Ex). O esclarecimento de Dcio Krause (2011) importante. Vejamos:

    [...] o que negado no algo (a existncia) de um certo individuo, mas uma afirmativa acerca da existncia de uma certa entidade no considerado domnio do discurso, ou seja, estamos dizendo que falso que no mundo exista um e nico individuo que cavalo alado de Belerofonte e o que quer que seja o cavalo alado de Belerofonte, esse individuo existe (p. 28).

    Grosso modo, nomes de coisas que no existem devem ser, no caso de Pgasus, analisadas como o nico x que um cavalo alado branco, e assim nos livramos de ter que nomear entidades no existentes (KRAUSE, 2011, p.28). Este mesmo vale para o caso do circulo quadrado, que deve se tornar existe um nico x que tem as propriedades de ser um crculo e ser quadrado.

    Em rigor, Russell acredita que entidades mitolgicas, fictcias, no-entidades, ou pseudo-entidades7, todas estas entidades so descries que no denotam nada8, e consequentemente so falsas (CINTRA, 2007, p.75). Assim Russell supera as dificuldades de Frege e Meinong. Consideraes finais Deste modo, verifica-se que existem dois problemas com aquilo que Quine apelidou de a barba de Plato. O primeiro seria de que o sujeito lgico da sentena deve se referir a alguma coisa. O segundo refere-se s sentenas existenciais negativas, ou dito de outra forma, a origem de tal problema que conseguimos falar com sentido, por meio de proposies, acerca de entidades cuja existncia duvidosa e outras at impossvel. Os contornos deste artigo tentaram apresentar como teorias contemporneas se desdobram para resolver estes problemas. Observamos a existncia de dois tipos de teorias que lidam com a barba. Uma das teorias do filsofo A. Meinong que desenvolveu uma teoria de objetos. Ele defende que essas entidades devem de alguma maneira existir, ou ainda subsistir, e isso o que da o sentido as nossas proposies. Tal filsofo adota uma distino entre ser e existir, e ainda assegura que h coisas que so dotadas de ser, mas que no possuem a existncia efetiva. Assim, sujeitos gramaticais como unicrnios devem de alguma maneira subsistir, pois usamos este sujeito em proposies com sentido. Porm, Meinong encontra srias dificuldades quando objetos impossveis, tal como circulo-7 No-entidades ou pseudo-entidades equivalem a crculo quadrado, j objetos fictcios como Pgasos poderiam ou no ter existido. 8 Se aceitarmos, claro, que nomes prprios so descries disfaradas.

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    quadrado tomam o lugar de sujeitos gramaticais, pois mesmo assim ele concede algum status ontolgico mnimo a tais entidades.

    A outra teoria desenvolvida pelo filsofo B. Russell e acredita-se que a proposta de Russell (1974) foi um marco para estas questes. Com a proposta russelliana da teoria das descries definidas, solucionam-se, no mnimo, em parte, estes problemas. O primeiro problema dissolvido quando aceitamos que os nomes usuais no se referem a objetos diretamente, pois nomes prprios so abreviaes de descries. E as descries e at os nomes usuais no possuem na sua forma lgica a mesma equivalncia da forma gramatical usual. A linguagem usual responsvel por lanar enganos na cabea do filsofo, que a concebe como descrevendo o mundo real corretamente. Russell nos mostrou, no artigo Da Denotao, que a forma lgica diferente da gramatical, e na linguagem lgica que devemos tratar estes dois problemas ontolgicos. O segundo problema no foge muito disso, pois a carga existencial, que na linguagem usual atribuda ao sujeito lgico da sentena, levada para dentro de uma funo proposicional. Consequentemente, no se nega o objeto no mundo, mas sim a sua condio de entidade que domina, atravs da linguagem, o domnio das variveis.

    Referncias

    AYER, Alfred J. As ideias de Bertrand Russell. Traduo de Leonidas Hegenber e Octanny Silveira da Mota. So Paulo: Cultrix/Ed. da Universidade de So Paulo. 1974.

    BRANQUINHO, Joo. Acerca da Forma Lgica de Existncia. In: Disputatio. v. 1, Sup. I, p. 04-33, Nov. 1998. Disponvel em:

    Acesso em: Jan. 2013.

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    Recebido em 2013-07-19 Publicado em 2013-11-30-