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Maquiavel e Montaigne Prof. Jono Borba Faremos aqui uma rápida introdução aos pensamentos de Maquiavel (1469-1527), Montaigne (1533-1592), dois filósofos do período Renascentista — depois da Idade Média, no início do capitalismo — comparando suas filosofias. 1. O pensamento concreto em Maquiavel Maquiavel valoriza acima de tudo os fatos da realidade concreta, procura descrever as coisas como as vê, com o máximo de objetividade. Ele acumula uma grande quantidade de descrições de casos reais procurando encontrar pontos comuns entre eles. Mas não valoriza esses pontos comuns como verdades a serem contempladas pela alma, como Platão fazia. Para ele as idéias gerais não têm valor em si mesmas, elas são acima de tudo ferramentas úteis para a ação. Além disso, não acredita que essas formas existam fora do mundo concreto. Maquiavel, quanto a isto, era mais aristotélico do que platônico. não vamos nos aprofundar em Aristóteles aqui, mas podemos dizer que para ele as formas gerais dos fatos só poderiam ser encontradas nos próprios fatos, e nunca como se existissem fora deles, a não ser no nosso raciocínio, quando usamos a lógica, onde trabalhamos com idéias gerais como se elas existissem fora da realidade concreta. Assim, Maquiavel encontra nos fatos históricos certas formas gerais que se repetem com novos conteúdos em sua época. Encontra na Roma antiga, por exemplo, a forma geral de uma república de sucesso que poderia se repetir entre os povos de língua italiana, se eles conseguissem sobreviver ao período de tirania que se aproximava sem perderem a sua virtú de cidadãos (a sua força, a sua vitalidade, energia e entusiasmo em relação às questões de interesse público, sua vontade de participar das decisões importantes a respeito dos destinos de sua cidade). Mas Maquiavel também não é exatamente aristotélico. Ele não dá tanta importância à lógica, valoriza acima de tudo a observação dos fatos concretos. Portanto, podemos dizer que Maquiavel não trabalha com o pensamento formal de tipo logicista, mas com uma espécie de pensamento concreto. No entanto, não podemos dizer que seja um pensamento concreto do mesmo tipo daquele buscado pelos dialéticos de hoje em dia. Uma das principais preocupantes de Maquiavel é a eficácia das ações. Os nossos conhecimentos devem ser úteis para orientar ações eficazes, e muitas vezes o pensamento formal e abstrato nos ajuda nesse sentido, porque ajuda a reconhecer o que há de comum entre certos fatos (que têm mais ou menos a mesma forma) e o que há de diferente entre esses fatos e outros (que também têm uma mesma forma entre si, mas uma forma diferente daquela primeira); portanto, o pensamento formal ajuda a classificar os fatos reais observados, dizendo se são de um tipo ou de outro, ajuda a distinguir as coisas com mais clareza e a escolher melhor os exemplos que devemos seguir e os que devemos evitar. Além disso, se podemos reconhecer que uma certa situação é “do mesmo tipo” que uma outra do passado, embora não seja exatamente igual, isso pode nos ajudar a

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Maquiavel e MontaigneProf. Jono Borba

Faremos aqui uma rápida introdução aos pensamentos de Maquiavel (1469-1527), Montaigne (1533-1592), dois filósofos do período Renascentista — depois da Idade Média, no início do capitalismo — comparando suas filosofias.

1. O pensamento concreto em Maquiavel

Maquiavel valoriza acima de tudo os fatos da realidade concreta, procura descrever as coisas como as vê, com o máximo de objetividade. Ele acumula uma grande quantidade de descrições de casos reais procurando encontrar pontos comuns entre eles. Mas não valoriza esses pontos comuns como verdades a serem contempladas pela alma, como Platão fazia. Para ele as idéias gerais não têm valor em si mesmas, elas são acima de tudo ferramentas úteis para a ação. Além disso, não acredita que essas formas existam fora do mundo concreto. Maquiavel, quanto a isto, era mais aristotélico do que platônico. não vamos nos aprofundar em Aristóteles aqui, mas podemos dizer que para ele as formas gerais dos fatos só poderiam ser encontradas nos próprios fatos, e nunca como se existissem fora deles, a não ser no nosso raciocínio, quando usamos a lógica, onde trabalhamos com idéias gerais como se elas existissem fora da realidade concreta. Assim, Maquiavel encontra nos fatos históricos certas formas gerais que se repetem com novos conteúdos em sua época. Encontra na Roma antiga, por exemplo, a forma geral de uma república de sucesso que poderia se repetir entre os povos de língua italiana, se eles conseguissem sobreviver ao período de tirania que se aproximava sem perderem a sua virtú de cidadãos (a sua força, a sua vitalidade, energia e entusiasmo em relação às questões de interesse público, sua vontade de participar das decisões importantes a respeito dos destinos de sua cidade).

Mas Maquiavel também não é exatamente aristotélico. Ele não dá tanta importância à lógica, valoriza acima de tudo a observação dos fatos concretos. Portanto, podemos dizer que Maquiavel não trabalha com o pensamento formal de tipo logicista, mas com uma espécie de pensamento concreto. No entanto, não podemos dizer que seja um pensamento concreto do mesmo tipo daquele buscado pelos dialéticos de hoje em dia. Uma das principais preocupantes de Maquiavel é a eficácia das ações. Os nossos conhecimentos devem ser úteis para orientar ações eficazes, e muitas vezes o pensamento formal e abstrato nos ajuda nesse sentido, porque ajuda a reconhecer o que há de comum entre certos fatos (que têm mais ou menos a mesma forma) e o que há de diferente entre esses fatos e outros (que também têm uma mesma forma entre si, mas uma forma diferente daquela primeira); portanto, o pensamento formal ajuda a classificar os fatos reais observados, dizendo se são de um tipo ou de outro, ajuda a distinguir as coisas com mais clareza e a escolher melhor os exemplos que devemos seguir e os que devemos evitar. Além disso, se podemos reconhecer que uma certa situação é “do mesmo tipo” que uma outra do passado, embora não seja exatamente igual, isso pode nos ajudar a

prever mais ou menos o que irá acontecer a partir dessa situação, porque situações do mesmo tipo devem se desenvolver mais ou menos da mesma maneira, e então o que já ocorreu no passado em uma situação “do mesmo tipo” que a atual pode nos dar uma idéia do que vai ocorrer no presente. Neste sentido, Maquiavel considera mais úteis os pontos comuns entre os fatos do que as contradições entre eles, o que o coloca bem longe dos dialéticos.

Por outro lado, procura sempre levar em consideração o contexto e as diferenças entre os fatos particulares, as contradições são um dado natural da realidade, e ele não as exclui. Em algumas situações até as valoriza; por exemplo: valoriza a contradição que observa entre os desejos dos poderosos e os desejos do povo. Enquanto houver essa contradição, ainda existe a esperança de um regime político de maior liberdade no futuro, desde que essa contradição não se torne um conflito entre radicalismos, o que levaria à destruição da própria sociedade. Mas embora valorize as diferenças particulares e em algumas situações até as contradições, Maquiavel não tem uma lógica própria para lidar com isto, ainda não trabalha com algo que se aproxime da dialética; então, ao invés disso, se apega à observação dos fatos e a algumas generalizações formais, mas para se sentir seguro com essas generalizações, para que elas não se tornem abstratas demais e muito desconectadas dos fatos, procura apoiar cada uma delas na maior quantidade de observações que puder fazer.

Essa maneira de pensar de Maquiavel é o que chamamos de empirismo. O empirismo de Maquiavel valoriza a observação e comparação entre os fatos, buscando o que existe em comum entre eles, e generalizando esses traços comuns depois de uma quantidade muito grande de observações como se fossem uma “lei geral” que valesse universalmente para toda e qualquer observação de fatos do mesmo tipo. Mas Maquiavel não explicou esse seu modo de pensar nem deu nome a ele, porque na verdade estava mais preocupado com o com os assuntos políticos que estava estudando do que com o seu próprio método de estudo.

Foi outro filósofo, um inglês chamado Francis Bacon (1521-1626), quem mais tarde explicou e desenvolveu melhor esse método que Maquiavel usava para pensar os problemas políticos, transformando-o em um método para o estudo dos fenômenos naturais, útil para a Física, a Química, a Biologia etc. (ciências que na época eram chamadas de “filosofia natural”). Bacon acha que as ciências deveriam nos ajudar a “dominar” a natureza e usá-la a nosso favor, por isso pensou em Maquiavel, que estudava as relações de poder. Para Bacon, há uma relação de poder entre o ser humano e a natureza: ou a dominamos ou ela nos domina, e para dominá-la é preciso conhecê-la muito bem (para Maquiavel, quando conhecemos o “mecanismo” de funcionamento de algo, podemos manipular e dominar esse algo, utilizando-o a nosso favor, assim como uma pessoa muito sincera e transparente pode ser facilmente manipulada).

Até hoje as ciências se apóiam muito nesse método empírico, de observação e comparação buscando traços comuns entre as coisas observadas. Mas as ciências de hoje misturam isso com alguma coisa do pensamento cartesiano e com a lógica matemática, que naquela época ainda nem existia. Bacon ficou conhecido como “o pai do empirismo”, como se esse método fosse uma criação completamente dele e só dele, mas o próprio Bacon admite que apenas pôs às claras o que Maquiavel já havia praticado na Itália antes dele, quando estudava os problemas políticos. Entretanto, o trabalho de pôr às claras o método utilizado por Maquiavel já não é pouca coisa, e o aperfeiçoamento desse método

conseguido por Bacon também não foi pequeno, de forma que o título de “pai do empirismo” é realmente merecido.

2. A imagem superficial que costumamos ter do pensamento de Maquiavel (ou o que não é a filosofia de Maquiavel)

Maquiavel é um filósofo do qual muita gente já ouviu falar, mas o que se fala dele costuma ser muito distorcido e superficial. Costumamos nos lembrar dele a partir de três idéias muito abstratas (ou seja, três idéias soltas, muito abstraídas do contexto de Maquiavel onde elas realmente nasceram):

a) A idéia de que existem pessoas “maquiavélicas” — e de que isso

significa pessoas frias e calculistas e que não têm nenhum pudor de prejudicarem os outros para conseguirem o que querem, podendo ser consideradas também como pessoas cruéis e interesseiras, que colocam seus próprios interesses acima de qualquer ética, pouco se importando se suas ações fazem mal a alguém. E ficamos com a impressão de que uma pessoa “maquiavélica” seria uma pessoa que age como Maquiavel (ou seja, ficamos com a impressão de que o próprio Maquiavel era um sujeito “frio, calculista, interesseiro e cruel...” etc.)

b) A idéia de que Maquiavel defendia a monarquia contra os regimes

políticos de maior liberdade em que os governantes eram eleitos (ou seja, contra as repúblicas), e mais do que isso, a idéia de que ele defendia as monarquias mais cruéis e terríveis, aquelas que chamamos de tiranias. Isso porque seu livro mais famoso, O príncipe, é um livro de conselhos para os reis que parece ensiná-los a agirem de maneira “maquiavélica” (no sentido atual da palavra), ou seja, de maneira fria, calculista, interesseira e cruel.

c) A idéia de que, segundo Maquiavel, para atingirmos um objetivo vale

tudo, e não importa se no caminho acabamos prejudicando (ou até mesmo matando) alguém. Essa idéia vem do modo como costumamos interpretar aquele que acabou se tornando o mais famoso de todos os ensinamentos de Maquiavel: “Os fins justificam os meios”. A partir das outras duas idéias, temos a impressão de que isto quer dizer que se os objetivos foram atingidos, então os meios utilizados para isso (por mais terríveis que tenham sido) estão justificados.

A imagem que acabamos formando do pensamento de Maquiavel quando tentamos compreendê-lo apenas ligando essas três idéias umas com as outras através do nosso raciocínio, sem procurarmos entender o contexto de onde essas idéias emergiram, é uma imagem falsa e superficial. E é o que quase todas as pessoas que já ouviram falar de Maquiavel fazem. Aqui, a crítica que os dialéticos costumam fazer ao pensamento abstrato cabe perfeitamente: não basta raciocinar, não basta apenas buscar ligações racionais entre essas três idéias abstraídas do contexto em que Maquiavel vivia. Para

compreendê-lo é preciso devolver essas idéias ao contexto de onde elas foram tiradas, é preciso ir além dessas abstrações e entender concretamente todo o conjunto da situação em que essas idéias nasceram, e tudo o que estava relacionado com elas. Para isso precisamos de um pouco de História, precisamos estudar o contexto em que Maquiavel vivia, examinar cuidadosamente onde, quando, como e por que essas idéias a respeito dele foram surgindo.

Maquiavel viveu na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, em um período que ficou conhecido como Renascimento, por causa da grande revalorização do ser humano em geral e de suas obras filosóficas, científicas e artísticas, depois de um longo período (a Idade Média) dominado pela Igreja, em que o ser humano só era valorizado como obra-prima de Deus, em meio a todas as outras obras que Deus teria realizado ao criar a natureza. Era como se os seres humanos estivessem “renascendo”, voltando à luz, voltando a “mostrar a sua verdadeira face” sem medo ou vergonha de serem o que são, voltando a agir sobre o mundo e mostrar suas potencialidades, reprimidas por tanto tempo.

Para entendermos esse período, o que significa entendermos uma parte importante do contexto de Maquiavel, precisamos saber de algumas coisas a respeito da Idade Média (ou seja, do que estava ficando para trás) e a respeito da Idade Moderna (ou seja, daquilo que estava surgindo de novo na história da Humanidade). Isto exigirá um pouco de paciência: como estamos explorando o contexto ao redor daquelas idéias que queremos entender ao invés de falarmos delas diretamente, poderá parecer que estamos nos desviando do assunto, mas não estamos.

Além de servir para entendermos Maquiavel, esse breve “passeio” pela História do fim da Idade Média nos ajudará a entender também os outros três filósofos de que vamos falar nesta apostila, porque as diferenças das datas em que os quatro viveram não é tão grande, e podemos dizer que são todos do mesmo período renascentista.

3. Uma breve História do fim da Idade Média e da passagem para o Renascimento.

Na Idade Média as pessoas se distribuíam em três grandes grupos sociais que chamamos de “castas”, o que significa que eram grupos fechados e ninguém podia “passar” de um grupo para outro: havia os trabalhadores (camponeses), os guerreiros (que eram os nobres) e os sacerdotes (o clero, ou seja, o pessoal da Igreja, em todos os níveis de sua hierarquia, do coroinha até o papa). Acreditava-se que Deus havia decidido quais famílias e pessoas estavam destinadas a serem de qual casta, e desde cedo, isso já estava fixado na vida de cada pessoa para sempre, até a morte. Descendentes de camponeses seriam sempre camponeses. Descendentes de nobres, sempre nobres. Quanto aos membros da Igreja, era preciso “descobrir” desde bem cedo quem tinha como destino entrar para a Igreja, mas costumava ser sempre gente da nobreza.

não existiam países, a Europa estava toda dividida em grandes fazendas que eram propriedade dos nobres ou da Igreja: os “feudos”. O nobre que era dono de um “feudo” era o que chamamos de um “senhor feudal”. Os camponeses faziam parte da terra. Um feudo podia mudar de dono muitas vezes, mas os camponeses íam junto, tinham direito sagrado de estar naquela terra onde viviam havia muitas gerações, em suas

pequenas vilas, e não podiam ser tirados de lá. Alguns nobres, no entanto, podiam infernizar a vida dos camponeses que viviam em seu feudo, cobrando impostos pesadíssimos e obrigando-os a seguirem leis terríveis, desde que esses nobres não tirassem os camponeses de suas terras e não os impedissem de tirar dessa terra pelo menos o mínimo necessário para o seu sustento — porque isso era considerado um direito sagrado, dado aos camponeses por Deus.

Nesses feudos, todo mundo se conhecia, e este é um dado importante. Os nobres eram em toda a Europa uma minoria, sustentada pelo trabalho da maioria que eram os camponeses, e os donos dos feudos de uma mesma regino muitas vezes eram parentes. Mas os camponeses de um feudo também se conheciam, e tinham uma vida comunitária muito ativa, todos os problemas mais gerais, que afetavam toda a comunidade, eram resolvidos por todos em conjunto; eles formavam grandes conselhos camponeses em que decidiam o que devia ser feito, então pediam permissão ao senhor feudal (que normalmente cobrava algum imposto por essa permissão) e organizavam o trabalho em forma de mutirão para resolver o problema, fosse uma praga nos campos, uma fera atacando os rebanhos e que precisava ser caçada, uma ponte quebrada, o mato invadindo uma estrada que precisava ser limpa, ou fosse o que fosse. Só as questões de guerra eram resolvidas pela nobreza.

Aliás é importante entendermos também este ponto se quisermos compreender bem Maquiavel, que se preocupava muito com a questão da guerra: pouco antes da época de Maquiavel, na Idade Média, a guerra era coisa de nobres, era uma arte reservada só para a alta classe. Um nobre jamais admitiria um de seus camponeses lutando, isso seria vergonhoso, um vexame, uma “baixaria”, por assim dizer; um camponês que se metesse a guerrear poderia ser duramente punido pelo nobre (ou pela própria comunidade dos camponeses); um nobre que pusesse seus camponeses para guerrearem poderia causar nojo aos outros nobres, por “sujar” a nobre arte da guerra trazendo para ela a gentalha da ralé, e certamente perderia o respeito e a amizade de toda a casta da nobreza. No campo de batalha, um nobre não se disporia a enfrentar um camponês, viraria as costas e iria embora indignado.

Tudo isso está ligado ao fato de que os nobres consideravam o trabalho como coisa de gente “inferior”, então a guerra era uma das principais maneiras pelas quais um nobre podia enriquecer: enriqueciam conquistando mais terras (com mais camponeses para trabalharem para ele), pois os vencedores tomavam as terras (e os camponeses) dos vencidos. Isto era especialmente importante para os filhos mais novos das famílias nobres, os caçulas, porque na partilha da herança dos pais, os filhos mais velhos dividiam os feudos da família, com todo o poder e riqueza que isso significava; os do meio eram encaminhados para a Igreja, onde poderiam chegar a ter terras e poder, mas paralelamente, porque aquelas terras que ficavam para a Igreja não eram das pessoas do clero, mas da Igreja como instituição; e os mais novos, finalmente, ficavam sem nada, então freqüentemente saíam pelo mundo guerreando para conquistar algum espaço, e formavam exércitos mercenários, que lutavam para qualquer outro nobre em troca de alguma riqueza.

Toda essa maneira como as sociedades se organizavam era considerada a ordem que Deus colocou entre os homens. As coisas eram assim por vontade de Deus. E a Igreja, como porta voz de Deus, era o poder supremo em toda a Europa. Se alguma coisa em todo esse modo como as sociedades se organizavam parecia ruim, era porque nós,

pobres seres humanos limitados em nossa pequenez, não tínhamos como compreender a sabedoria infinita de Deus, e portanto não conseguíamos entender de que maneira aquilo tudo, no fundo, era bom — mas certamente devia ser, porque era a ordem de Deus na Terra, e Deus era bom. Só o próprio Deus teria uma inteligência tão profunda e infinita que seria capaz de compreender de que maneira, no conjunto de tudo o que existe no universo, essa ordem das coisas entre os homens era boa. Deus, em sua sabedoria, teria escolhido essa maneira de ordenar as nossas vidas justamente por ser muito boa.

Mas e os reis? Na Idade Média, ao contrário do que muita gente pensa por causa dos filmes e desenhos animados da televisão, que distorcem as coisas falando em reis e rainhas poderosos em seus castelos, e de lindas princesas, os reis não tinham nenhum poder especial, não passavam de figuras simbólicas. Eram coroados pelo papa e considerados pessoas sagradas, mas ao contrário do papa, que tinha muitas terras e dinheiro, e exércitos de nobres de toda a Europa sob seu comando, os reis não tinham poder para fazer muita coisa. Eram nobres como qualquer outro, com suas terras e seus camponeses, e além desse poder igual ao de qualquer nobre, apenas tinham apenas esse “luxuoso” título que fazia deles pessoas consideradas “sagradas”, e por isso às vezes podiam atuar como juízes supremos em algumas disputas entre nobres ou então entre os camponeses (que costumavam adorar a figura do rei vendo nele uma espécie de esperança de que Deus estivesse mais próximo e pudesse ouvir suas queixas através daquele homem sagrado). Com isso, às vezes alguns reis conquistavam o apoio de outros nobres, que queriam ser favorecidos nos tribunais. Mas era só isso.

Um último detalhe muito importante: na Idade Média, os camponeses de um feudo viviam isolados dos camponeses de outros feudos. não se viajava muito porque havia povos guerreiros muito violentos que vinham do norte da Europa e atacavam as pessoas que encontravam. Também atacavam as aldeias, destruindo tudo, roubando a produção, matando os homens e estuprando ou seqüestrando as mulheres. Era uma época de muito medo, por isso os camponeses necessitavam da proteção dos nobres, que sabiam guerrear. Quando havia um ataque desses povos do norte, que eram chamados de “bárbaros”, o povo corria para dentro das muralhas do castelo do senhor feudal, que saía para protegê-los e proteger suas terras, reunindo-se com os nobres vizinhos para guerrear contra os bárbaros (e é bom lembrarmos que a morte de muitos camponeses significava um prejuízo enorme para o senhor feudal, que dependia do trabalho deles).

Então, no período do Renascimento, em que Maquiavel vive, o que começa a acontecer? As coisas começam a mudar. Os povos “bárbaros” do norte começam a aparecer cada vez menos, e conforme os ataques diminuem, o medo de sair do feudo (e a dependência da proteção dos nobres) também diminui. Um número cada vez maior de camponeses, ao invés de produzir para a comunidade camponesa e para o senhor feudal, começa a levar sua produção para as estradas e armar barracas para vendL-la nas encruzilhadas, acumulando dinheiro só para si mesmo e para sua família. Nobres e camponeses começam a ir a essas feiras para comprar o que falta em seus feudos (e, naturalmente, começa a faltar cada vez mais, porque há cada vez menos camponeses que ficam nas aldeias para produzir). Muitas barracas começam a se acumular nessas encruzilhadas, formando feiras em que os camponeses de diferentes feudos começam a sentir a pressão da concorrência uns com os outros, e começa a se tornar importante ficar o maior tempo possível com a barraca armada e os produtos à venda ao invés de voltar para a aldeia (afinal, “tempo é dinheiro”). As barracas começam a se transformar em

casas, as feiras em cidades, que são chamadas de “burgos”. Esses ex-camponeses, agora comerciantes, que começam a enriquecer rapidamente, são os primeiros “burgueses”.

A partir disto, começam a ocorrer algumas transformações interessantes: com esse novo grupo dos comerciantes as pessoas começam a perceber que não estão predestinadas por Deus a serem pobres ou ricas por toda a vida: é possível mudar as próprias condições de vida através dessa nova forma de trabalho. As pessoas começam a acreditar menos naquilo que a Igreja ensinava sobre a ordem de Deus no mundo dos homens, e começam a valorizar cada vez mais o esforço e a capacidade humana de realizar as coisas. Naturalmente a Igreja não vê nada disso com bons olhos, e faz propaganda contra esse novo grupo social que começava a desacreditá-la e fazê-la perder o poder. Essa nova valorização das capacidades humanas vem junto com uma valorização da esperteza do comerciante, que já não lida mais com as pessoas amigas da aldeia, que ele conhece e que o conhecem bem desde a infância, mas sim com gente desconhecida de todo tipo que vem às encruzilhadas para comprar. O comerciante, que não se sente tão “amigo” dessa geste desconhecida, começa a aprender a ser dissimulado, a enganar, a ser frio e calculista e tirar vantagem dos compradores que não o conhecem, para conseguir lucrar mais. Muitas vezes as críticas da Igreja aos burgueses se dirigem contra essa esperteza “imoral” que visa o lucro, contra a nova maneira de ser dessa gente comerciante que vem tendo tanto sucesso.

Os que insistem em continuar camponeses também não gostam dessa mentalidade dos novos burgueses, principalmente porque começam a se tornar cada vez mais difíceis os trabalhos comunitários em mutirão para resolver os problemas que são do interesse de todos na aldeia. Quem vai ajudar a consertar a ponte quebrada? Limpar as estradas que vão sendo tomadas pelo mato? Caçar a fera que está atacando o gado? Há cada vez menos gente para isso. Os burgueses muitas vezes são vistos como uma espécie de “traidores”, gente mesquinha e avarenta que deixou de ajudar a comunidade para cuidar de seus próprios interesses. O que está entrando em cena e se tornando cada vez mais forte é o interesse privado, a valorização da vida privada, em detrimento da vida comunitária.

Os nobres, por sua vez, também começam a empobrecer, e cada vez mais deles começam a se comportar como aqueles filhos mais novos da família que se tornavam mercenários, ou seja, começam a vender seus serviços como guerreiros. Muitos exércitos mercenários formados por nobres empobrecidos começam a circular pela Europa, e freqüentemente se comportam como uma espécie de “gangsters nômades”: viajam pela Europa, atravessam cidades (“burgos”) destruindo tudo, depois oferecem “proteção” em troca de dinheiro, mulheres, comida, abrigo por algum tempo etc. Alguns, sem camponeses em número suficiente para sustentar seu estilo de vida, até mesmo acabam se rendendo a esse novo tipo de trabalho (em que pelo menos não se mete as mãos na terra como um camponês ), e se associam a comerciantes enriquecidos, oferecendo as estradas das poucas terras que lhe restam em troca de algo, ou seja, começam a comercializar suas terras.

Nessas condições, os pequenos conflitos que precisam de julgamento em um tribunal, conflitos entre camponeses e burgueses, nobres e burgueses, nobres e nobres, burgueses e burgueses, burgueses e compradores em geral, começam a aumentar em toda a Europa, e o julgamento dos reis começa a ser cada vez mais requisitado. Os reis (que cobram pelas decisões a favor de um lado ou de outro nas disputas) começam a ter não só

o seu prestígio aumentado, mas também mais dinheiro do que antes. Com os burgueses ocupados com seus negócios, a Igreja desacreditada, os nobres empobrecidos e as comunidades camponesas enfraquecidas (com menor mno de obra), quem iria cuidar dos interesses públicos, ou seja, daquilo que é do interesse de todos, como a manutenção das estradas em bom estado, por exemplo? As pessoas começam a se voltar para o rei, que começa a cobrar impostos em troca de investir na contratação de gente para fazer esses serviços em toda a regino daqueles que falam a mesma língua que ele. Começa a se formar algo como o que hoje chamamos de país, dirigido pelo rei como governante.

É importante notarmos, em todo esse processo, que começa a desaparecer a vida comunitária da Idade Média em que a maioria da população (os camponeses) se preocupava com o que era de interesse público, ou seja, do interesse de todos. No lugar disto começa a crescer rapidamente a valorização dos interesses privados de cada burguês e sua família, e juntamente com isso, começa a tomar forma e se fortalecer o Estado moderno, com o governo de um rei responsável pela solução desses problemas de interesse público em toda uma extensa regino de gente que fala a mesma língua, e essas regites começam a assumir a forma dos países que conhecemos hoje. O rei combra impostos em toda essa extensa regino, que já não é formada de terras da sua propriedade — portanto já não é um feudo e ele já não é um senhor feudal — e faz isso em troca da contratação de gente para cuidar do que é do interesse de todos nessa regino, já que as pessoas estão cada vez mais voltadas para seus interesses privados e não têm mais tempo para isso. E além disto, um país é muito maior do que um feudo, as pessoas agora convivem diariamente cada vez mais com gente desconhecida, e não só com gente conhecida desde a infância.

Naturalmente, a Igreja também não vê com bons olhos o crescimento dessas forças concorrentes que são os reis, considerados como figuras sagradas e uma espécie de representantes de Deus, e procura manter o seu poder forçando acordos com os futuros reis em troca de sua coroação (que é feita pelo papa). O que mais incomoda a Igreja é talvez o fato de que esses reis começam a formar exércitos, contratando batalhões de nobres mercenários para protegerem as terras onde cobram seus impostos, e isso significa que a Igreja, cujo poder se estendia livremente por toda a Europa, ensinando as idéias que bem entendesse, começa a ter seu território de dominação dividido por esses reis com os quais ela agora precisa negociar para saber o que pode e o que não pode ensinar às pessoas em cada regino do continente. O poder político, na Europa, está dividido entre o decadente poder espiritual da Igreja (que é um poder sobre a vida espiritual dos homens e sobre suas almas eternas, e que podemos dizer que é parecido com o poder que a mídia exerce sobre a mentalidade das pessoas nos dias de hoje, ditando modas, valores e maneiras de pensar e agir), e os crescentes poderes temporais ou seculares (o poder dos reis é chamado de “temporal” ou “secular”, porque se dizia era um poder sobre o mundo material e sobre as coisas que não são eternas, porque mudam com o tempo ou com o passar dos séculos).

4. Entendendo melhor Maquiavel a partir de seu contexto

Para entendermos Maquiavel, primeiro vamos procurar entender o que significa neste período a idéia de que as pessoas podem ser frias e calculistas, interesseiras e

cruéis na realização desses interesses, e de que maneira essas características acabaram tão associadas ao nome de Maquiavel, que com o passar dos séculos as pessoas se acostumaram a chamar de “maquiavélico” quem tem essas características.

Onde vive Maquiavel? Em Florença, na Itália. Mas a Itália ainda não existe, só existem as cidades de língua italiana (os “burgos” da regino), que são muitas e muito ativas comercialmente. Em toda essa regino que hoje é a Itália, ocorreu algo muito interessante e diferente do que ocorria no resto da Europa: eles saíram da Idade Média sem formarem um país. Ao invés disso, formaram cidades-Estado, cada uma com seus próprios governantes e completamente independente das outras. Ainda mais interessante do que isso, é o fato de que grande parte dessas cidades eram repúblicas, ou seja, os governantes eram eleitos pela população, e os povos de língua italiana valorizavam muito essa liberdade de escolher seus governantes. não vamos analisar aqui por que isso ocorreu, mas é provável que a proximidade de Roma e do papa tenha influenciado na dificuldade de aparecimento de um rei forte na regino. A Igreja faria de tudo para evitar a presença de um rei forte com seu exército tão perto do território do papa.

Na maioria dos países que se formam na Europa neste período, os nobres, mesmo enfraquecidos, ainda têm bastante influência sobre o rei, que afinal de contas é um nobre também, e tem muitos parentes na nobreza. Mas as cidades italianas do mesmo período são governadas principalmente pela burguesia, muito mais do que pelos nobres locais. A mentalidade burguesa é muito forte nessas cidades, quase todos são comerciantes e pensam como comerciantes, mas ao mesmo tempo, continuam sendo cidades pequenas, em que todos se conhecem, e o espírito de comunidade continua existindo, só que de uma maneira bem diferente daquela das antigas aldeias camponesas: a população de cada cidade italiana participa ativamente da discussão a respeito das decisões políticas importantes e pressiona em praça pública os seus governantes eleitos em defesa dos interesses da cidade. Naturalmente há muita malícia das pessoas em geral nisso tudo, pois nem todos têm exatamente os mesmos interesses, e cada grupo na cidade tenta “puxar a sardinha” a seu favor.

Toda essa agitação política da população, em Florença — justamente a cidade de Maquiavel — é muito mais forte do que na maioria das outras cidades. Há em Florença debates sobre que deve ser feito, há manifestações públicas, a multidão sempre se aglomera na rua discutindo sobre o que fazer ou protestando contra algo que os governantes não deviam ter feito, e os governantes às vezes são expulsos de seus cargos por uma multidão enfurecida. Pode-se dizer que quase toda a cidade de Florença valoriza aquela esperteza fria e calculista típica do comerciante que defende seus interesses e consegue um bom lucro acima de qualquer preocupação moral com o comprador. Mas os cidadãos de Florença valorizam a esperteza e a frieza calculista não só porque pensam como comerciantes; também valorizam isso porque pensam um pouco como políticos (que tendem a ter naturalmente esse tipo de mentalidade maliciosa), e essa maneira de pensar e agir para eles é muito natural nessa época.

Por outro lado, a cidade-Estado italiana tende atuar toda unida nesse sentido em relação aos compradores estrangeiros, que no caso de Florença vêm de toda a Europa, e o mesmo ocorre em relação às forças políticas estrangeiras, de outras cidades ou países. Maquiavel não é exceção, valoriza o que todos os seus conterrâneos tendem a valorizar: a defesa dos interesses públicos comuns a todos os cidadãos de Florença, e ao mesmo tempo a fria e calculista esperteza do comerciante e do político. Florença é uma cidade

especialmente forte na produção e comercialização de tecidos, exportados para todos os países, por isso é uma cidade muito rica nessa época, e muito conhecida e visitada por estrangeiros, que chegam atraídos além disso, pelo desenvolvimento artístico e intelectual do lugar, onde as capacidades humanas são supervalorizadas e há, entre os habitantes, muitos filósofos, cientistas e artistas famosos, como Leonardo Da Vinci, por exemplo.

Por que essa valorização da malícia e da frieza calculista em defesa dos próprios interesses que é tão comum na Florença desse período acabou sendo tão mal vista no caso de Maquiavel? Porque ele ultrapassa nisso certos limites que os outros não ousam ultrapassar, especialmente em seus ensinamentos a respeito do modo de agir dos reis. Ao contrário do que costumamos imaginar, Maquiavel não defende a monarquia e menos ainda a tirania, e ele próprio fez parte do governo republicano de Florença nesta época. Seu cargo é de Secretário do Governo, e não lhe dá muito poder, mas é um cargo razoavelmente importante: ele é uma espécie de diplomata, ou mais precisamente um “relações-públicas” do governo, enviado para conversar com outros governos em situações de conflito, mas sem quase nenhum poder de negociação. Maquiavel é portanto uma espécie de super-mensageiro de Florença, um porta-voz das propostas e decisões do governo republicano, com a função de tentar convencer os governos que visita em favor dessas propostas e decisões, mas sem poder alterá-las em nada para facilitar as negociações.

Mais do que funcionário de alto cargo do governo republicano, Maquiavel é considerado pelos florentinos um esquerdista radical. não é todo o povo que tem direito de voto na cidade nessa época, só os mais ricos votam nos governantes, e Maquiavel, na contra-corrente, defende que esse direito seja estendido a uma parcela bem maior da população, ou seja, é um republicano mais radical do que a maioria dos seus colegas, e de maneira nenhuma um monarquista.

Mas Maquiavel não ficou famoso justamente por escrever um livro de conselhos para os reis, chamado O príncipe, onde os ensina a agirem como tiranos? É o que costumamos ouvir a respeito de Maquiavel, e ele realmente escreveu isso, mas as coisas, nesse livro famoso, não são exatamente como parecem.

Os filósofos da época, quando falam a respeito dos reis, costumam sempre considerar que há dois tipos de monarquia:

a) aquela em que se tem um bom rei, que governa segundo as leis da

Bíblia e em defesa dos interesses do povo, como se fosse um grande “pai” substituto tomando conta de todos em nome de Deus-pai (e neste caso, castigos e punições severas contra alguns cidadãos são aceitáveis, desde que a justificativa seja o bem de todo o resto do povo); e

b) aquela em que se tem um mau rei, um “tirano” que se esquece das leis

da Bíblia e de sua função sagrada como representante de Deus-pai, e governa segundo seus próprios interesses, como um animal selvagem e poderoso que só se preocupa com dinheiro e poder.

E não são só os filósofos que pensam assim: são idéias bastante difundidas na época, e as pessoas em geral costumam pensar nos “bons” e nos “maus” reis mais ou

menos dessa maneira. O livro de Maquiavel choca a todos principalmente porque ali ele trata todos os reis, indiferentemente, como “tiranos”, deixando muito claro que no fundo é isso o que todos os reis são, e que apenas alguns são mais “assumidos” na sua tirania (e mais competentes como tiranos, conseguindo o que querem) do que outros, que ingenuamente procuram ser “bons reis” e acabam sendo manipulados pelos seus conselheiros, agindo na prática como tiranos sem se darem conta, castigando o povo com a justificativa de que o fazem para o bem do povo, e ainda por cima sem tirarem vantagem disso, porque neste caso quem tira vantagem são os seus conselheiros, mais espertos do que os reis aconselhados por eles. No livro de Maquiavel, as análises políticas deixam completamente de lado as questões religiosas. Entre os exemplos de “tiranos” mais competentes ou menos apontados por Maquiavel em O príncipe, encontramos até mesmo papas.

Mas o mais interessante é que Maquiavel não diz em nenhum momento que o tirano mais competente é necessariamente o mais terrível: não é a crueldade o que torna os tiranos mais competentes, mas sim a frieza calculista, a malícia e a capacidade de dissimular, de fingir como um ator e agir com falsidade, mudando o modo de agir de acordo com a situação para fazer sempre o que cada situação exige. O máximo que Maquiavel chega a dizer a respeito da crueldade, é que, para o governante, geralmente é melhor ser amado do que odiado, mas também é melhor se temido do que amado. A crueldade pode ser um bom recurso para fazer com que as pessoas tenham medo do governante. Mas precisa ser súbita e surpreendente e nunca algo previsível, para que as pessoas nunca saibam se e quando um gesto cruel e terrível como aquele vai se repetir. Isso porque se as pessoas se acostumarem à crueldade do tirano, vão acabar aprendendo a odiá-lo, o que é perigoso para ele.

Assim, para Maquiavel, o melhor governante não é o mais cruel, e sim o mais imprevisível e auto-controlado, aquele que sabe a todo momento exatamente o que está fazendo e que usa sua malícia e seu fingimento para manipular os outros, e que ao mesmo tempo não pode ser manipulado pelos outros porque nunca sabem o que ele realmente está pensando e quais as suas verdadeiras intenções. O sinceramente bonzinho e o sinceramente cruel são maus tiranos, porque suas ações são previsíveis, seus pensamentos e sentimentos também, e por isso podem ser facilmente manipulados para agirem em favor dos interesses de outros, e não dos seus próprios (e como todo rei é um tirano, todo rei deveria assumir o fato de que no fundo age de acordo com seus próprios interesses pessoais, a menos que seja um grande tolo e acabe agindo de acordo com os interesses privados dos seus conselheiros e das pessoas com quem convive em geral, manipulado por essa gente). O bom tirano é capaz de parecer “bondoso” no momento em que isto for necessário, e parecer “cruel” quando for preciso, mas deixando claro que pode agir livre e imprevisivelmente de um modo ou do outro.

O “bem do povo”, neste sentido, não passa de uma desculpa esfarrapada, que pode ser bem utilizada por um bom fingidor, ou mal utilizada por um ingênuo que acredite realmente que isso seja mais do que uma “desculpa” de rei (ou de qualquer governante) para agir como bem entende. É importante notarmos que Maquiavel está falando de pessoas que são consideradas “sagradas” em sua época, pois os reis são tidos como representantes de Deus-pai. Este é o suposto “monarquismo” que encontramos no livro O príncipe, de Maquiavel. E se examinarmos seus outros escritos, veremos que para ele mesmo os governantes eleitos de uma república, como a florentina, tendem a agir

como tiranos, e isso, segundo Maquiavel, é muito natural. Mas ao contrário da monarquia, quando são eleitos o povo pode ameaçar tirá-los do poder, e portanto pode pressioná-los constantemente para que ajam “na marra” pelo menos um pouco no interesse de todos, e não apenas no seu próprio.

Podemos ir um pouco mais longe: em que situação Maquiavel escreve O príncipe? Na mesma época, ele está escrevendo um grande livro — chamado Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio — sobre o modo como o historiador romano Tito Lívio, antes da Idade Média, descreve o nascimento, o desenvolvimento e o declínio de uma república que existiu em Roma na antiguidade. Neste livro, que ele considera sua obra mais importante, Maquiavel compara várias outras repúblicas com a romana, e levanta leis gerais de funcionamento das repúblicas, para sugerir indiretamente uma porção de conselhos aos republicanos de sua época. Está mais ou menos na metade da obra quando uma família de nobres italianos (a família Médici) dá um golpe de Estado em Florença e toma o poder, derrubando a república da cidade.

Maquiavel, sendo um famoso republicano radical, é preso pelos Médici e cruelmente torturado por uma noite inteira, mais tarde, depois de livre, sofre perseguições políticas até o fim da vida e não encontra mais emprego. Então escreve um livro de conselhos dedicado aos Médici, tentando mostrar que pode ser útil trabalhando no governo, apesar de ser um republicano: O príncipe — mas naturalmente o livro é republicano demais para que o aceitem. De qualquer modo, depois de escrever este seu “livrinho”, como Maquiavel chama O príncipe, ele volta a escrever sua grande obra republicana, e a termina. Nunca poderia imaginar que sua principal obra seria quase esquecida e ficaria famoso por esse “livrinho”.

Mas o que aconteceu, então, para acabarmos distorcendo tanto a imagem de Maquiavel nos dias de hoje?

Na verdade o público da época de Maquiavel não gosta nem um pouco de vê-lo tratar figuras “sagradas”, reis e papas, representantes de Deus, como se fossem meros “tiranos”, ignorando as leis da Bíblia. É bastante claro que para Maquiavel as leis da Bíblia, que são a base de toda a moral da época, simplesmente não servem para a arte de governar, e um governante que as seguisse de fato acabaria se tornando absolutamente manipulável e incompetente. Governar não parece ter nada a ver com moral, mas acima de tudo com uma questão de eficácia quando se trata de atingir certos fins. Pode-se imaginar, diante disto, a reação da Igreja (poder espiritual que apesar de decadente ainda atravessa toda a Europa, atuando como a grande “mídia” do período e ditando, justamente, qual são os valores morais que devem ser seguidos e como as leis da Bíblia devem ser interpretadas).

O “livrinho” de Maquiavel torna-se rapidamente famoso em toda a Europa, e apesar de rivais, a Igreja e os reis se unem para fazer propaganda contra essa obra. O rei da Inglaterra, Jaime I, escreve um livro anti-Maquiavel, em que brinca de chamar o filósofo florentino de “Mc Evil” (que traduzido para o português seria talvez algo como “Mau Quiavel”). Em pouco tempo, começa a circular um novo apelido para o “demônio”: Old Nic (“Velho Nic”, trocadilho referindo-se ao primeiro nome de Maquiavel: Nicolau). Assim, foi circulando cada vez mais a má-fama de Nicolau Maquiavel, até que começou a surgir a idéia de que algumas pessoas poderiam ser terrivelmente “maquiavélicas”, no sentido em que ainda usamos esse termo até os dias de hoje.

Assim, já somos capazes de perceber um pouco mais claramente, agora, o

verdadeiro sentido de duas daquelas idéias abstratas que costumamos ter acerca de Maquiavel: a de uma maneira “maquiavélica” de agir, que seria fria e calculista, interesseira e cruel; e a de que Maquiavel seria um defensor da tirania dos reis contra a liberdade. Podemos notar que nenhuma das duas idéias é verdadeira. Estão distorcidas pelo excesso de abstração, ou seja, pela falta do contexto.

5. Os principais conceitos da filosofia política de Maquiavel

Para entendermos melhor o ensinamento de Maquiavel segundo o qual “os fins justificam os meios”, três conceitos desse filósofo são fundamentais e precisam ser entendidos primeiro: os conceitos de Fortuna e virtú, que ele desenvolve em O príncipe, e o conceito de corrupção, que ele desenvolve nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio.

Para Maquiavel, a Fortuna (que é como ele e muitas outras pessoas na época costumavam chamar a “sorte” ou o “azar”) pode ser favorável ao político ou desfavorável a ele. Maquiavel brinca de dizer que a sorte (a Fortuna) é como se fosse uma deusa volúvel que se sente seduzida a cada momento por alguém diferente, e que portanto muda sempre de idéia, às vezes gosta de uns e não gosta de outros, outras vezes muda de direção e passa a gostar desses outros, abandonando os primeiros.

Se o político for firme e decidido, e se tiver virtú (que é justamente aquela esperteza dissimulada, fria e calculista, combinada com um bom senso de oportunidade), conseguirá atrair e seduzir a “deusa” da sorte a seu favor por mais tempo. Ou seja, se tiver senso de oportunidade para perceber o momento certo de agir, e souber como agir da maneira correta, poderá escapar dos azares ou sobreviver a eles quando necessário, e tirar o melhor proveito possível dos momentos de sorte. No livro O príncipe, Maquiavel elogia muito a maneira de agir de um nobre espanhol de sua época (que era um general mercenário), sobrinho do papa, chamado César Bórgia, mais conhecido como Duque Valentino, com quem ele teve de negociar em uma de suas missões para o governo republicano de Florença. O Duque Valentino, para ele, é um modelo de virtú que deveria ser imitado por todos os governantes, inclusive por seus próprios patrões, pois os governantes florentinos nessa época não mostram nenhuma virtú. Suas ordens para Maquiavel, nas negociações com outros governos ou com generais mercenários como o Duque Valentino, que de tempos em tempos ameaçam a cidade, são sempre para “ganhar tempo” e não decidir nada — em linguagem popular atual, a ordem era para “enrolar”. Assim, deixam passar as melhores oportunidades, e nunca tomam uma iniciativa firme, mostrando-se sempre um governo fraco.

A partir de comparações desta situação com as que encontrou na antiguidade, em seus estudos da História da república romana, Maquiavel conclue que o problema é estrutural e atinge todas as pequenas cidades republicanas de língua italiana. Todas elas estão dando claros sinais de decadência. são repúblicas cada vez mais fracas e mais vulneráveis às situações de azar que podem ocorrer a qualquer momento. E essas situações de azar já estão dando sinais de que podem ocorrer em breve: Florença, assim como as demais cidadezinhas republicanas de língua italiana, é rica, atraente e fraca, ou seja, não tem como se defender de ataques de exércitos muito poderosos se algum governo muito mais forte, como a França, por exemplo, resolver atacar e tomar essas riquezas. Com sua riqueza, a cidade poderia contratar um grande exército de nobres

mercenários para defender-se, assim como a França e os outros grandes países fazem. Mas por que um exército mercenário quereria defender esta cidadezinha em troca de um pouco dessa riqueza, se poderia facilmente atacar a cidade ele próprio e ficar com tudo? Afinal, uma cidade tão pequena e tão fácil de cercar e destruir... era mais seguro, então, ficar apenas com exércitos bem pequenos, suficientes para uma pequena guerra com outra cidadezinha italiana, por exemplo.

Haveria alguma escapatória contra o possível ataque de um grande país, como a França, se as cidadezinhas de língua italiana se unissem em uma grande coligação e contratassem todas juntas esse grande exército de proteção, mas não há nesse momento força política nelas para essa decisão, continuam sempre divididas em coligações pequenas voltadas umas contra as outras, em pequenas guerras e conflitos, e os negociadores dessas diferentes cidades, assim como Maquiavel, jamais têm algum real poder de negociação para ajudar a articular as cidades umas com as outras.

Os líderes de Florença não vêem muito interesse pessoal nesse tipo de coligação tão ampla, preferem defender apenas o que de algum modo os favorece pessoalmente e de maneira mais imediata, nesses conflitos intermináveis entre as pequenas cidades, nas trocas e barganhas entre aliados e nas partilha dos bens dos vencidos. E o povo das diversas cidadezinhas não está suficientemente esclarecido dessa necessidade (não procura se esclarecer) nem se mostra suficientemente inflamado politicamente para pressionar os seus governos nesse sentido, porque é — segundo Maquiavel — um povo já um pouco corrompido, o suficiente para não lutar por sua própria liberdade. E é precisamente isso o que está em jogo: a liberdade das cidades republicanas, que podem eleger seus governantes, porque se forem dominadas pelo rei de um país, terno de obedecer a esse rei, e será o fim da república. Precisamos então compreender o que é que Maquiavel está querendo dizer quando sugere que o povo de Florença já está um pouco corrompido.

Um povo corrompido, para ele, é um povo que perdeu muito do seu entusiasmo pela cidade, e já não participa das questões políticas como deveria. Quando a corrupção de um povo aumenta, isso é muito perigoso para a liberdade, porque a partir de um certo ponto, se a corrupção é muito grande, já não há mais retorno, e esse povo nunca mais será livre, cairá sempre nas mãos de tiranos que vão governá-lo como bem entenderem. Por isso é importante que o povo se mantenha “inflamado” e entusiasmado em defesa de sua pátria, e esse entusiasmo só se mantém se existe entre o povo uma constante discussão dos problemas políticos da pátria e se existe realmente a participação de todos apoiando ou criticando o governo (e de preferência com muitos conflitos e posições opostas, parra manter o calor dos debates e o “sangue quente” da multidão). A filosofia política que Maquiavel é a primeira — e talvez uma das raras — a defender o tumulto político da população nas ruas como algo muito bom, como um sinal da participação ativa do povo e de que esse povo ainda não foi muito atingido pela corrupção, e pode conseguir manter a sua liberdade.

Se as cidadezinhas republicanas italianas não conseguem se coligar para defenderem-se da ameaça crescente dos grandes países com exércitos poderosos que estão se formando ao redor em todas as partes da Europa, e são ricas o suficiente para atraírem a atenção desses inimigos, não há saída: a liberdade das repúblicas está condenada. Em algum momento, alguma dessas monarquias (provavelmente a França, que já vem mostrando interesse), irá invadir a regino da Itália e dominar todas essas

cidades colocando seus povos sob o domínio do rei estrangeiro. Diante disto, segundo o raciocínio pessimista, mas realista, de Maquiavel, como o povo, nas suas atuais condições de corrupção, não está em condições de reagir, a única solução é conseguir um líder poderoso com força militar e virtú suficiente para manipular e dominar todas as forças políticas de todas as cidades italianas, unindo-as e formando um país. Naturalmente, um tal líder estaria agindo como um tirano, e só poderia estar interessado em riqueza e poder. O estímulo que poderia levar alguém como, por exemplo, o Duque Valentino, a fazer isso, seria a ambição de tornar-se rei de um novo país, a Itália. Isso significaria perder a liberdade das repúblicas (que já está decadente), mas evitando o domínio de um tirano estrangeiro que só se interessaria em arrancar o que pudesse para os cofres de seu país de origem, e em corromper o povo para mantê-lo bem obediente.

Um nobre mercenário, um nômade sem país como o Duque Valentino ou algum outro do gênero, poderia tornar-se um tirano local, menos penoso para o povo do que um tirano estrangeiro — e note-se, isto significaria um tirano que já não seria considerado sagrado, que já não seria rei por vontade de Deus, mas por sua própria capacidade humana como líder, por sua própria virtú.

Agora vejamos como a noção do grau de corrupção de um povo se ajusta aos conselhos de Maquiavel para os reis, no sentido de que tenham virtú para enfrentar os reveses da Fortuna: em O príncipe, Maquiavel ensina que o tirano deve saber adaptar sua aparência, oscilando entre bondade e crueldade de acordo conforme o necessário para lidar com as forças políticas sob seu domínio. Um tirano que pretendesse dominar povos acostumados à liberdade (e ainda não completamente corrompidos) como os das cidades italianas, teria que adaptar-se a isso. Cobrar pesados impostos para manter o exército mercenário maior que um país italiano exigiria, causaria um perigoso espírito de revolta contra o próprio tirano, em povos desse tipo. Além disso, durante o processo de unificação da Itália esse tirano precisaria atrair e seduzir a seu favor os diferentes governos republicanos, fazendo com que os eleitores se interessassem em apoiá-lo.

Isso significa que teria de fazer muitas alianças com os poderosos, que sempre podem traí-lo em favor de seus interesses privados se as forças estrangeiras oferecerem algo melhor. Para não ficar nas mãos deles, o tirano teria que romper no final essas alianças e colocar-se ao lado do povo. Por outro lado, corromper todo o povo não é algo que um homem sozinho no governo possa fazer fácil e rapidamente, então como dominar uma porção de pequenos povos acostumados à liberdade sem revoltá-los contra si? Diante das ameaças crescentes de ataque estrangeiro, a melhor saída para esse novo rei italiano seria direcionar esse espírito de liberdade e de participação nos assuntos da pátria, que é típico dos povos italianos, para a guerra contra os inimigos externos, a fim de evitar que o povo se dirigisse contra o inimigo “interno” natural de toda a sua liberdade — que é o próprio tirano.

A proposta de Maquiavel, revolucionária para a época, é que se forme um exército popular, que o tirano prepare soldados do povo armando-os e ensinando-os a lutar. Esse exército seria bem mais barato que um exército de nobres mercenários e bem mais seguro (pois mercenários podem mudar de lado a qualquer momento se o inimigo oferecer um pagamento maior), e além disso poderia compensar a pouca experiência militar com muito treinamento e com muito entusiasmo patriótico. Um soldado mercenário talvez não se disponha a enfrentar certos perigos diante do risco de morrer e não poder mais aproveitar o pagamento pelo qual está lutando. Um soldado do povo

movido pelo espírito patriótico, muito mais do que pelo salário como soldado, se tivesse o sangue devidamente fervendo em defesa de sua pátria, enfrenta qualquer coisa.

Mas para isso, o tirano precisa manter esse espírito patriótico do povo aceso, através da liberdade para o tumulto e para a agitação na rua em defesa de pontos de vista políticos diferentes, como os cidadãos de Florença ainda estão acostumados a fazer (pois sua corrupção ainda não chegou tão longe), o que significa manter acesa uma semente de liberdade republicana no fundo da tirania. Seria uma liberdade certamente manipulada e controlada pelo tirano, que se colocaria ele próprio como o principal promotor de toda essa mobilização política, e precisaria sempre de muita virtú para não permitir que essa agitação do povo se voltasse contra ele.

Para antecipar as coisas, e pensando em tornar a situação mais propícia para que um futuro tirano da Itália aceitasse sua proposta ao invés de tentar corromper a liberdade do povo, Maquiavel propôs ao próprio governo republicano, antes do golpe dos Médici (e naturalmente sem esclarecer que sua preocupação era preparar o terreno para quando a república caísse), a formação de um exército popular. Se um tirano, tentando unificar a Itália para tornar-se rei, encontrasse um exército como este já funcionando em uma das cidades, estaria a um passo de entender a idéia e implantá-la em toda a regino italiana. Mas para o governo republicano, a justificativa de Maquiavel era a possibilidade de se livrarem da dependência de mercenários, que muitas vezes já aviam se voltado contra os florentinos e saqueado a cidade, por acharem isso mais vantajoso do que o pagamento oferecido.

A proposta foi aceita e o próprio Maquiavel, em pessoa, se encarregou de formar e treinar esse exército em Florença, liderando-o em algumas pequenas batalhas. Infelizmente, Maquiavel não teve muitos bons resultados militares, então a proposta acabou sendo abandonada, e o exército popular de Florença sendo desfeito.

Perceba-se então que, por detrás da defesa de uma unino das cidades italianas sob a direção de um tirano, Maquiavel está querendo salvar uma semente da liberdade republicana que será abafada se essas cidades forem dominadas por um rei estrangeiro. Sob um tirano que mantivesse essa semente acesa, mais tarde, quando esse tirano caísse, haveria a possibilidade de um retorno da república. Perceba-se, finalmente, que existem certos valores éticos orientando Maquiavel, apesar da imagem anti-ética que costumamos ter dele: Maquiavel é acima de tudo um patriota que ama a Itália, defendendo uma pátria muito maior do que a pequena cidade de Florença e que ainda nem mesmo existe, mas que ele quer ajudar a nascer, e que essa pátria, para Maquiavel, deveria ser livre, republicana — mas como isto seria impraticável diante das circunstâncias que ele observa em toda a Europa ao redor da Itália, procura meios para conseguir manter a semente da liberdade republicana (que está no sentimento patriótico da população) ainda viva sob a tirania que ele prevê que virá a qualquer momento.

Estamos agora aptos a compreender melhor o ensinamento de Maquiavel segundo o qual “os fins justificam os meios”: não é qualquer finalidade ou objetivo político que se queira atingir que justifica os meios utilizados; o que Maquiavel está nos dizendo é que se os fins forem realmente bons e válidos (inclusive eticamente falando), então vale tudo para atingi-los. E o melhor de todos os fins, para ele, é a defesa da pátria livre, a unino dos povos italianos nas condições de maior liberdade que forem possíveis diante das circunstâncias — que devem ser encaradas com muito realismo, e que infelizmente não são muito propícias, mas que não deixam de apresentar algum espaço

para que os italianos tenham esperanças e lutem por isso, como o próprio Maquiavel procura lutar.

6. O ceticismo de Montaigne e a questão da sinceridade, em oposição aos jogos de cena valorizados por Maquiavel.

Montaigne era francês, ou seja, era daquele mesmo grande país que na geração anterior Maquiavel temia que invadisse a Itália. Ao contrário de Maquiavel, que como vimos deu a Bacon as bases para o empirismo científico, era um filósofo cético, e estava longe de buscar bases sólidas para afirmar qualquer certeza a respeito das coisas. Pelo contrário, como cético, acabava sempre caindo em contradições — e nem por isso era menos filósofo ou um filósofo menos profundo do que Maquiavel. É que os céticos têm uma forma especial de trabalhar com a contradição, que precisamos compreender.

Os céticos em geral costumam se descrever contando a história de como se tornaram céticos, e essa história é sempre mais ou menos a mesma. A história dos céticos é aproximadamente a seguinte: nem sempre o cético foi cético. Inicialmente, era apenas um jovem muito bom que se sentia muito angustiado com as contradições do mundo, que o deixavam perturbado. Esse jovem imaginou que se encontrasse a verdade de todas as coisas, uma verdade absoluta, eterna, imutável, que explicasse tudo coerentemente, conseguiria se livrar de todas as contradições e viver com mais tranqüilidade; então começou a estudar Filosofia em busca dessa verdade. Mas assim que começou seus estudos, percebeu que em Filosofia as contradições são ainda maiores e mais radicais, cada filósofo tem a sua linha de pensamento e essas linhas de pensamento não concordam uma com a outra. Os filósofos vivem num eterno debate e as contradições vão se tornando cada vez mais profundas e angustiantes, todas as linhas de pensamento filosófico parecem muito inteligentes e bem-fundamentadas.

Assim, quanto mais o nosso jovem filósofo estudava cuidadosamente as diferentes filosofias, mais elas pareciam todas igualmente verdadeiras, ou seja, cada vez lhe parecia mais difícil decidir qual delas era “mais verdadeira” que as outras. Sempre que estava para se decidir, surgia uma boa razno para mudar de idéia, então ele temia que qualquer decisão fosse precipitada, e se espantava que os filósofos já tivessem todos se decidido com tanta firmeza, cada um por uma linha de pensamento em especial, contra todas as outras que pareciam tão boas.

A certa altura, algumas teorias pareceram especialmente sedutoras para o nosso jovem, mas como sempre, eram contraditórias uma com a outra, e ele lutou muito para descobrir qual delas era a melhor, argumentando ora a favor de uma, ora a favor de outra, até que chegou a um impasse: não conseguia julgar qual era a melhor, não conseguia decidir. Elas pareciam ter a mesma força, pareciam teorias igualmente boas nos mínimos detalhes. Então o jovem decidiu suspender o julgamento, ou seja, decidiu não decidir. Parou de tentar julgar qual era a melhor. De repente começou a sentir-se mais tranqüilo, toda a sua angústia desapareceu, não estava mais perturbado. Ao invés de encontrar a tranqüilidade na descoberta da verdade, só a encontrou quando desistiu de procurar a verdade.

Mas em seguida, outras teorias começaram a parecer sedutoras para ele, ou então uma das teorias que ele já havia examinado apresentou novos argumentos, mais

interessantes, e o impasse se desfez, porque aquela começou a parecer uma teoria melhor, mais verdadeira. Logo nosso jovem estava novamente em busca da verdade, tentando verificar se aquela teoria era realmente melhor. E mais uma vez, acabou chegando a um impasse, suspendendo o seu julgamento e, novamente, sentindo aquela tranqüilidade. A mesma experiência repetiu-se inúmeras vezes, o nosso jovem amadureceu, e começou a imaginar que a cada novo impasse entre as teorias poderia talvez encontrar novamente aquela tranqüilidade que queria tanto. Passou a considerar-se um cético C palavra que em grego significa investigador C, mas parou de buscar a verdade, e passou a investigar as teorias em busca do impasse, procurando mostrar que nenhuma é mais verdadeira do que outra.

Alguns céticos passaram também a se preocupar com a precipitação dos filósofos, que aceitam rapidamente uma teoria como melhor que a outra sem investigarem o suficiente. E começaram a tentar “curar” os filósofos da sua “mania de verdade”, encarando o ceticismo como uma espécie de “terapia” capaz de eliminar as certezas absolutas que certos filósofos defendiam como fanáticos. Isso não significa que o cético se julgue superior aos filósofos, porque ele sabe que pode estar errado, que talvez alguma dessas teorias no fundo seja a verdadeira. O legítimo cético sempre corre o risco de acabar acreditando em uma teoria, e deixando de ser cético. Por outro lado, nada impede que acabe desiludido com a sua suposta verdade e se torne cético novamente, afinal, está habituado a nunca parar de investigar.

Podemos notar em tudo isso, que os céticos iniciam o seu caminho rejeitando radicalmente as contradições, mas acabam valorizando-as muito na medida em que amadurecem como céticos, e como a razno tem sido usada tradicionalmente pelos filósofos na busca da verdade, o cético parece usar a razno de outro modo, parece usar a razno contra a própria razno, mostrando que podemos provar racionalmente, com os melhores argumentos, duas teorias completamente contraditórias, e que portanto a razno não serve para encontrar uma verdade absoluta, que seja coerente e sem contradições.

Além disso, o modo como os céticos se descrevem, fazendo uma pequena autobiografia que trata de sentimentos e experiências de vida, parece bem afastado do pensamento formal, que procura raciocinar em termos quase matemáticos, evitando tudo o que seja impreciso e contraditório. Muitos céticos usam a lógica e o pensamento formal, mas apenas como uma arma contra outras linhas de pensamento formal, para no fundo valorizar o modo como pensamos e vivemos no mundo concreto. No caso de Montaigne, a valorização do que é informal, natural e espontâneo nas pessoas, é ainda mais radical. Defende que as pessoas se esforcem para serem sinceras na expressão de seus sentimentos, sem gestos artificiais e sem uma linguagem controlada por regras, dizendo as coisas mais livremente. Compreende que em muitas situações da vida isto não é possível, e que acabamos sendo formais e artificiais por uma questão de sensatez ou até mesmo sem querer, por força do hábito, mas valoriza o esforço para sermos o mais sinceros que for possível sempre que for possível, ainda que isso nos cause algumas dores de cabeça. É interessante notar uma certa oposição entre as posturas de Maquiavel e de Montaigne em relação a essa questão da sinceridade.

Maquiavel vivia em uma cidade pequena, onde todos se conheciam, como nos antigos tempos das aldeias medievais, e chegou a escrever sobre o seu assombro quando visitou a França em missão diplomática representando o governo republicano de

Florença. Diz que sentiu-se um “provinciano”, um simplório ingênuo de uma cidadezica do interior, querendo conversar com o poderoso rei de um imenso país que poderia ser a capital do mundo (puseram-no, aliás, para conversar com um funcionário sem nenhuma importância e ele nem chegou a se encontrar com o rei). A cidadezinha de Florença, onde ele vivia, por ser uma famosa cidade comercial, tinha o hábito de conviver com estrangeiros, e portanto com desconhecidos cujos pensamentos, sentimentos e intenções nem sempre se podia adivinhar. Mas os florentinos se protegiam mutuamente diante das possíveis más intenções dessa gente estrangeira e desconhecida que sempre os visitava.

Depois de conhecer a França, uma pátria imensa em que os próprios cidadãos não se conheciam uns aos outros, e perceber que esse era o destino das cidades italianas (tornarem-se um país, com seu próprio rei ou sob o domínio de um rei estrangeiro como o francês), Maquiavel passou a valorizar os jogos de cena que as pessoas de grandes cortes como a de Paris, na França, faziam diante dos desconhecidos para passar a eles a impressão desejada e conseguir o produzir efeito necessário — como se fossem atores sempre representando algum papel, e não pessoas expondo-se sinceramente umas às outras.

Esses jogos de cena, que já eram conhecidos por ele porque estavam presentes na mentalidade burguesa e comerciante e também na atividade política intensa dos cidadãos florentinos, passaram a ser vistos por Maquiavel como aquilo que poderia garantir a um líder político a liberdade para agir, por um lado evitando ser manipulado por seus conselheiros e pelas pessoas próximas a ele, que já não poderiam prever as reações desse líder dissimulado, por outro sendo mais capaz de manipular as pessoas através do bom uso desses jogos de cena, como um bom ator, produzindo nessas pessoas a impressão que desejasse a seu respeito.

Não encontramos em Maquiavel nenhuma passagem em que ele defenda que cada cidadão deva agir assim, como um ator, e a idéia de liberdade com a qual ele trabalha não é a de liberdade individual de cada cidadão, mas a de uma liberdade do conjunto dos cidadãos na medida em que têm o direito e o entusiasmo de participar coletivamente nas decisões políticas dos governantes, pressionando-os ou apoiando-os publicamente. Encontramos esses jogos de cena sendo aconselhados aos tiranos, como uma idéia central entre todos os conselhos que Maquiavel apresenta em O príncipe. Parece bem menos preocupado com os indivíduos do que com o conjunto dos italianos, que poderiam vir a formar uma grande nação.

Montaigne, ao contrário, vive em um país já formado, a França, uma grande e poderosa nação dirigida por um rei e sua corte. Em um território com as dimensões de um país, o convívio com pessoas desconhecidas e das quais não se sabe nada, nem os costumes, nem os sentimentos, nem os pensamentos, nem as intenções, é cotidiano. Isso leva as pessoas a adotarem muitas regras de comportamento para se prevenirem contra a possibilidade de, por exemplo, ofender alguém sem querer, dizendo ou fazendo algo que não se sabe que reação provocaria nessa pessoa. Surgem muitas formalidades e muitas regras de etiqueta, e nesse tipo de ambiente se desenvolve muito facilmente o hábito de deixar a espontaneidade de lado e agir calculadamente como um ator, fazendo jogos de cena diante dos desconhecidos para não causar uma má impressão. Trata-se, em primeiro lugar, de uma questão de boa educação, como se diz hoje, ou seja, de procurar ser uma pessoa educada com os desconhecidos.

Os jogos de cena, para um francês, especialmente um que conhece a corte do

rei, tendem a parecer algo muito natural e corriqueiro, porque ali, na corte, próximo ao centro do poder no país, esses jogos de cena se tornam muito mais do que uma simples questão de boa educação ou de evitar atritos e reações inesperadas de um desconhecido: agradar o rei é uma questão de poder. Aqueles que mais agradam ao rei serão mais ouvidos por ele. E para isso, todos procuram evitar os incômodos que a sinceridade muitas vezes provoca, e cada um faz o seu jogo de cena tentando influenciar o rei de algum modo a seu favor. Ainda na corte, abaixo desses que estão mais próximos ao rei e tentam influenciá-lo diretamente, outros procuram agradá-los, para conquistar a ajuda deles, e assim por diante, cada um tentando manter constantemente toda uma encenação armada para agradar e atrair a atenção dos que estão um nível acima da hierarquia do poder. As festas da corte francesa eram uma grande exibiçno dessas pessoas umas para as outras, cada uma tentando mostrar-se superior, uns tentando atrair a atenção dos outros.

Michel de Montaigne é um francês de origem burguesa que, apesar de freqüentar as grandes festas da corte, detesta tudo isso, e faz abertamente suas críticas a toda essa falsidade. Felizmente é uma pessoa tão simpática que seu espírito crítico nunca chega a lhe causar nenhum problema muito grave. Um dia, “fugindo” de uma dessas festas para um terraço isolado do palácio, encontra um outro sujeito igualmente revoltado com isso: o filósofo La Boétie, que se torna seu melhor amigo. Montaigne nessa época ainda não é filósofo, mas já é o boêmio que nunca deixou de ser, e suas conversas com o amigo giram em torno de outros assuntos: a vida e suas três coisas preferidas na vida — as viagens a cavalo, as mulheres e o vinho.

Em sua revolta contra toda essa falsidade, Montaigne e La Boétie passam a valorizar a sinceridade, a simplicidade, a espontaneidade e a intimidade sem delicadezas nem formalidades que existe entre bons e verdadeiros amigos, que mantêm uma relação de equilíbrio de forças em que nenhum deles tenta “dominar” ou “influenciar” o outro, ou tirar alguma vantagem fazendo para o outro alguma espécie de “jogo de cena” cheio de falsidade apenas para agradá-lo. Os dois começam a defender a idéia de que todas as relações sociais deveriam ser assim — e nisto, curiosamente, encontramos talvez um traço saudosista, algo que estava presente nas antigas aldeias medievais, em que os camponeses trabalhavam juntos ombro a ombro como iguais resolvendo dificuldades que eram de todos. Montaigne e La Boétie parecem revalorizar algo que está se perdendo em países grandes como a França, e que nesta época ainda existe apenas cidades pequenas do interior ou em aldeias camponesas, entre as pessoas mais simples.

Segundo La Boétie — e Montaigne concordaria plenamente com ele nisto — existe em toda essa hierarquia de poderes, começando pelo rei, um grande mecanismo doentio em que, dos mais poderosos aos menos, cada um tenta manter sua encenação de modo a agradar quem está na posição superior e conseguir favores, e com isso todos acabam escravos das aparências, presos a essas encenações e a toda essa falsidade sem poderem viver e manifestar com liberdade aquilo que realmente pensam, sentem e querem.

Curiosamente, a noção de liberdade que encontramos aqui parece oposta Bquela que víamos em Maquiavel quando falava da liberdade de ação do líder político: aqui, são justamente os jogos de cena que escravizam as pessoas, especialmente as mais próximas ao poder do rei, a começar pelo próprio rei, que tem os olhos de todos pousados sobre ele examinando cada mínimo gesto que ele faça. As pessoas passam a depender cada vez

mais da encenação que sempre fizeram, e a certa altura não podem mais agir espontaneamente, porque isso destruiria (às vezes perigosamente) toda a imagem que construíram de si mesmas para agradarem aos mais poderosos — ou para não se misturarem aos menos poderosos, deixando bem claro seu status e sua posição e diferenciando-se deles.

7. Montaigne e as contradições

Sabemos que Montaigne é um cético e que para os céticos as contradições são muito importantes. Mas isso não quer dizer que os céticos podem ser confundidos com os dialéticos, que colocam as contradições no centro de seu pensamento. não existe no ceticismo de Montaigne nada que se aproxime muito da dialética, como a conhecemos hoje. Mas já existe, por outro lado, um modo racional de lidar com as contradições. A dialética procura compreender racionalmente as contradições sem excluí-las. Montaigne, como os céticos em geral, não encontra uma maneira de compreender racionalmente as contradições do mundo, mas adota uma certa lógica das contradições: ele passa a valorizar as contradições em si mesmas, por mais incompreensíveis que sejam, procurando aumentá-las até chegar a um impasse, porque acabam lhe trazendo uma tranqüilidade que parece substituir os efeitos emocionais que ele esperava conseguir com a posse da verdade. Nesse movimento, ele usa racionalmente as contradições para derrubar as teorias filosóficas, que tentam compreender as coisas superando as contradições e encontrando verdades “absolutas”. Procura encontrar contradições nas teorias filosóficas, ou usar as contradições que encontra no mundo concreto para derrubar racionalmente essas teorias ou relativizar suas verdades, fazendo com que os teóricos se sintam menos “donos da verdade”.

Mas há um ponto em que Montaigne, e os céticos em geral, se aproximam muito do espírito da dialética: na medida em que amadurece, o ceticismo valoriza cada vez mais o mundo concreto em que vivemos, com todas as suas contradições, sem evitá-las ou excluí-las C pelo contrário, chega a trabalhar racionalmente com elas, ainda que apenas para derrubar as verdades “absolutas”. E com isso abre terreno para um pensamento concreto de tipo dialético.

Maquiavel trabalhava com uma espécie de pensamento concreto, mas ainda abria um bom espaço para o pensamento formal, na medida em que valorizava os posicionamentos artificiais das pessoas diante dos fatos. A partir da observação dos fatos concretos, levantava artificialmente formas de se agir que deveriam ser as mais eficazes. Montaigne, ao contrário, acreditava que a maior parte das pessoas já agia exageradamente desse modo artificial, geralmente em função de interesses pessoais, às vezes conseguindo realizar tais interesses com maior eficácia, às vezes nem tanto, mas sempre agindo artificialmente em função disso.

Para Montaigne, as pessoas assumiam certas formas de comportamento que eram as mais úteis em determinadas situações, e ficavam escravas desse comportamento formal, sem reconhecerem todo o resto do que poderiam viver, sentir e fazer se procurassem agir mais espontaneamente. Então procurava reconhecer e aceitar que a maneira natural de agir abriria para as pessoas muito mais possibilidades novas e inesperadas do que se elas continuassem agindo sempre segundo certos moldes de comportamento predeterminados, calculados para se conseguir este ou aquele efeito sobre os outros, por exemplo para ser considerado pelos outros como uma pessoa superior em alguma coisa.

8. Como Montaigne tornou-se filósofoEm dois momentos de sua vida, duas mortes abalam muito Montaigne,

chegando a deixá-lo deprimido. A morte de seu pai, e a de seu melhor amigo, o filósofo La Boétie. Para o pai, havia feito uma promessa que precisava cumprir, e para o amigo, precisava realizar-lhe o último desejo.

O pai de Montaigne admirava muito um filósofo religioso que vinha tentando provar a existência de Deus, e havia pedido que o filho, que era inteligente e escrevia bem, escrevesse e publicasse um texto defendendo esse religioso. Em memória de seu pai, Montaigne tenta fazer isso, mas acaba dominado por sua própria sinceridade e não consegue deixar de considerar a tentativa do tal religioso completamente absurda, chegando à conclusão de que não é possível, ou até o momento não parece possível, provar que Deus existe; mas também não parece possível provar que Deus não existe, e assim, Montaigne, sentindo-se encurralado nessa dúvida, acaba suspendendo o seu julgamento a esse respeito, ou seja, desistindo de decidir, pelo meno por enquanto.

La Boétie, talvez numa última brincadeira com o amigo, que não era lá um grande estudioso, preferindo os bares e as mulheres do que os livros, deixou como herança para Montaigne todos os seus livros e rascunhos de filosofia — uma enorme biblioteca — e o pedido de que o amigo organizasse seus rascunhos para uma publicação e escrevesse uma introdução. Montaigne, deprimido, levou a tarefa a sério, isolou-se por anos em uma torre com todos esses livros, lendo-os e aprendendo filosofia até se sentir à altura de realizar o pedido do amigo sem considerar-se “inferior” a ele nesse assunto. Em outras palavras, tornou-se filósofo. E publicou afinal o livro do amigo morto, um rascunho que La Boétie havia escrito aos 17 anos de idade e que se chamava Discurso da servidão voluntária. Este livro tornou-se uma das obras mais importantes da história da filosofia política.

Depois o próprio Montaigne publicou seu próprio livro, com o nome de Ensaios, a partir de tudo o que aprendera nas suas viagens, nos livros e nas conversas com La Boétie, e tornou-se tão famoso quanto o amigo.

No livro de Montaigne há não só o texto sobre suas dúvidas a respeito da existência ou não de Deus, mas uma questão chocante para a época: Montaigne coloca em dúvida a existência de algo que possamos chamar de “Eu”! Na convivência com La Boétie, o amigo havia se tornado para ele uma espécie de “espelho” no qual conseguia enxergar-se e compreender-se. Em outras palavras, conversava muito com La boetie a respeito de si mesmo: “Quem sou eu?”, perguntava-se ele. Como sou afinal de contas? Como as pessoas me vêem? Elas me vêem do mesmo modo como me vejo? E se me

vêem de um modo diferente, quem está certo? Quem me conhece melhor, eu mesmo ou as outras pessoas que são capazes de perceber em mim coisas que nem eu mesmo percebo?

Com a morte do amigo, Montaigne sentiu uma enorme dificuldade em relação a essas questões, e passou a aprofundar-se cada vez mais no assunto.

Sentia-se feito de muitos fatores diferentes e às vezes contraditórios uns com os outros (sentimentos, razno, comportamentos etc.), alguns desaparecendo, depois reaparecendo de modo diferente com o passar do tempo... e no final das contas não encontrava nenhuma razno para considerar isso que chamamos de “Eu” como uma coisa só e que seria sempre a mesma, porque as únicas coisas constantes nisso que chamamos de “Eu” parecem ser as mais superficiais, na verdade uma porção de “máscaras” sociais que nos acostumamos a usar na nossa convivência social, como o nosso nome, por exemplo, ou um título de nobreza, ou certas roupas que usamos... Mas o que é um mero nome ou um título de nobreza? O que são as roupas? O que essas “máscaras” sociais dizem realmente a respeito de nós que seja tão importante para nos definir até o fundo? Mas além dessas “máscaras” superficiais, Montaigne não consegue encontrar nada.

Esses dois questionamentos de Montaigne afetaram fortemente todos os leitores da época. Apesar do processo de decadência do poder da Igreja, a idéia de Deus ainda era um dos centros da vida social e política. Toda moral e todo poder político pareciam estar ligados a essa idéia. Os próprios reis eram considerados reis por direito divino, ou seja, porque Deus lhes havia dado esse direito. O questionamento acerca do “Eu” atingia em cheio outra das bases da mentalidade da época. Tendo saído da Idade Média, e entrado em uma era cada vez mais dominada pela mentalidade da nova burguesia, as pessoas apoiavam cada vez mais (e mais orgulhosamente) as suas ações na noção de que cada indivíduo tinha poder de alterar sua vida e agir sobre o mundo para mudá-lo, a noção de “Eu”, portanto, era uma base firme e muito importante em que as pessoas se apoiavam, desde que a idéia de Deus começou perder todo aquele poder que tinha e que passava à Igreja como seus principais representantes na Idade Média, e passou a se tornar um pouco menos presente no modo de viver e de se organizar das pessoas em seu dia-a-dia.

Agora esse simpático, mulherengo e beberrão filósofo cético francês, de uma hora para outra, fazia as pessoas começarem a pensar um pouco melhor até que ponto podiam se firmar em seu próprio poder de ação sobre o mundo ao redor... “seu” poder? De quem? Quem é este que você está chamando de “eu”? Tudo o que temos de mais sólido e certo a respeito desse “eu” é o fato de apresentar uma porção de máscaras sociais mais ou menos fixadas, através das quais — como La Boétie demonstrou em seu livro — as pessoas se tornam mais escravas umas das outras do que dominadoras umas das outras!

E Montaigne, como vimos, não deixa a seus leitores o recurso de voltar atrás para uma mentalidade mais medieval, fugindo para a religiosidade e buscando algum apoio e segurança, alguma certeza, na idéia de “Deus” — pois essa idéia, a partir da leitura dos Ensaios de Montaigne, começa a parecer afinal tão incerta quanto a idéia de “Eu”.