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AS LINGUAGENS DA DEMOCRACIA* Rubem Barboza Filho Ao reconhecer o impacto de processos de- flagrados nos séculos passados, e acelerados nos últimos cinqüenta anos, as ciências sociais têm apon- tado a fragmentação como a característica central das sociedades atuais. Fragmentação estrutural, ma- terializada na constituição de subsistemas autopoié- ticos e no descentramento das sociedades, e cultural, derivada da pluralidade competitiva de concepções morais ou de horizontes de vida. Esta nova paisa- gem social, constituída por galáxias independentes, não mais se submeteria aos modelos democráticos e utópicos erguidos ao longo da modernidade, todos envolvidos pela expectativa de uma unidade social e cultural tecida ao longo da história. Admi- tida a obsolescência dos antigos modelos, a teoria social elege como sua tarefa a reflexão sistemática sobre formas de vida democráticas e solidárias em circunstâncias novíssimas e desafiadoras. Este esforço de reinvenção democrática cons- titui o eixo do debate, ainda inconcluso, entre pro- cedimentalistas e comunitaristas, referências pola- res da teoria social contemporânea. Em princípio, as teorias procedimentalistas e comunitaristas di- ferenciam-se pelo peso determinante que conferem ou aos valores partilhados ou aos procedimentos de liberdade na imaginação de formas democráti- cas de vida. Aceitando o diagnóstico da fragmenta- ção social, autores como Habermas (2000, 2001) e Rawls (1981, 2000) insistem na democracia como o uso público da razão, garantido por procedimentos igualitários e de liberdade. O procedimentalismo não recusa a presença de culturas políticas ou perspectivas RBCS Vol. 23 n. o 67 junho/2008 * Agradeço o estímulo e os comentários de Álvaro de Vita, Bernardo Pereira, Marcelo Jasmin, Cícero Araújo, José Eisenberg, Maria Emília Prado, Diogo Tourinho e de António Pedro Pita, Fernando Catroga e Luis Reis Torgal, da Universidade de Coimbra. Artigo recebido em outubro/2007 Aprovado em maio/2008

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AS LINGUAGENS DA DEMOCRACIA*

Rubem Barboza Filho

Ao reconhecer o impacto de processos de-flagrados nos séculos passados, e acelerados nosúltimos cinqüenta anos, as ciências sociais têm apon-tado a fragmentação como a característica centraldas sociedades atuais. Fragmentação estrutural, ma-terializada na constituição de subsistemas autopoié-ticos e no descentramento das sociedades, e cultural,derivada da pluralidade competitiva de concepçõesmorais ou de horizontes de vida. Esta nova paisa-gem social, constituída por galáxias independentes,não mais se submeteria aos modelos democráticose utópicos erguidos ao longo da modernidade,

todos envolvidos pela expectativa de uma unidadesocial e cultural tecida ao longo da história. Admi-tida a obsolescência dos antigos modelos, a teoriasocial elege como sua tarefa a reflexão sistemáticasobre formas de vida democráticas e solidárias emcircunstâncias novíssimas e desafiadoras.

Este esforço de reinvenção democrática cons-titui o eixo do debate, ainda inconcluso, entre pro-cedimentalistas e comunitaristas, referências pola-res da teoria social contemporânea. Em princípio,as teorias procedimentalistas e comunitaristas di-ferenciam-se pelo peso determinante que conferemou aos valores partilhados ou aos procedimentosde liberdade na imaginação de formas democráti-cas de vida. Aceitando o diagnóstico da fragmenta-ção social, autores como Habermas (2000, 2001) eRawls (1981, 2000) insistem na democracia como ouso público da razão, garantido por procedimentosigualitários e de liberdade. O procedimentalismo nãorecusa a presença de culturas políticas ou perspectivas

RBCS Vol. 23 n.o 67 junho/2008

* Agradeço o estímulo e os comentários de Álvaro de Vita,Bernardo Pereira, Marcelo Jasmin, Cícero Araújo, JoséEisenberg, Maria Emília Prado, Diogo Tourinho e de AntónioPedro Pita, Fernando Catroga e Luis Reis Torgal, daUniversidade de Coimbra.

Artigo recebido em outubro/2007Aprovado em maio/2008

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morais abrangentes, incorporando-as, no entanto,como elementos subsidiários e sustentadores dosprocedimentos, a exemplo da idéia do “consensopor justaposição” de Rawls. O comunitarismo, porsua vez, acentua a necessidade de configuraçõesmorais partilhadas por uma comunidade para aexistência de uma democracia (Taylor, 1997). Semestas configurações morais abrangentes, fundadasna premissa da dignidade, igualdade e liberdade doshomens, as formas democráticas de vida não sesustentariam ao longo do tempo. Pela sua próprianatureza, a perspectiva comunitarista tende a res-saltar a importância de culturas políticas, ou tradi-ções morais e éticas, na reorganização democráticadas sociedades contemporâneas, sem desconhecero papel dos procedimentos.

O que até agora foi dito não tem a ambição defazer justiça à amplitude e profundidade deste debate,consistindo apenas na tentativa de construir umhorizonte para uma pergunta aparentemente esdrú-xula e sem sentido: teria a nossa tradição ou culturapolítica brasileira a capacidade de enriquecer a dis-cussão travada pelos procedimentalistas e comu-nitaristas? Esdrúxula porque nos acostumamos adar como certa a natureza antidemocrática de nos-sa tradição. E sem sentido porque joga no interiorde um debate teórico, autoconsciente e sofisticado,a presença bruta de uma tradição, procedimentocuja logicidade parece imediatamente questionável.É possível, entretanto, oferecer uma resposta po-sitiva à questão formulada, se descobrirmos oselementos democráticos de nossa tradição e se re-conhecermos os autores-chave do debate contem-porâneo como intérpretes e componentes de tra-dições políticas específicas, às quais a nossa pode sejuntar de forma legítima. É este o percurso destetexto, divido em três movimentos e uma conclu-são provisória.

Três movimentos arriscados e expostos, noâmbito restrito de um artigo, de forma breve. Oprimeiro consiste na construção de um panoramaa respeito dos campos morais ou ético-políticos damodernidade. O segundo diz respeito à experiênciaparticular da Ibéria no início da modernidade, loca-lizando-a neste panorama e no momento em que aAmérica Ibérica começa a ser construída. O terceirorefere-se à nossa possível tradição, ou seja, à expe-riência brasileira e ibero-americana em seus aspectosmais gerais. As conclusões, obviamente, tentarãorecolher os elementos centrais desses movimentos

para que a indagação sobre a nossa possível contri-buição possa merecer uma resposta substantiva.

Iniciemos o primeiro movimento, tomandocomo ponto de partida a seguinte hipótese: as socie-dades pós-tradicionais encontram, no momento emque despedem a tradição como fundamento do agirsocial, várias linguagens para a construção de umanova normatividade social.1 O que chamamos demodernidade ocidental, deflagrada nos séculos XVIe XVII, pode ser entendido como um vasto pro-cesso de subjetivização da vida (Ferry, 1990), umavez corroído o princípio teológico, que a tudo davasentido, e destruídos os pressupostos objetivistas etradicionalistas do mundo medieval (Habermas,2000). A sociedade moderna e ocidental desenvol-ve-se ao buscar na subjetividade humana os funda-mentos normativos para a organização de sua vidae de suas expectativas utópicas, livrando-se pro-gressivamente dos modelos do passado.

A invenção da subjetividade, no entanto, nãose desdobra de forma idêntica e homogênea noOcidente, produzindo tradições distintas de subje-tivização da vida e de modernização da sociedade,e modos diferentes de organização dos novos cam-pos morais ou éticos. Essa pluralidade inventiva podeser capturada pela noção de linguagem e pelo des-velamento das linguagens seminais da modernida-de. Com o olhar atento ao período de corrosão dasociedade medieval e aos séculos iniciais do mundomoderno, Padgen (2002) encontra quatro grandeslinguagens a comandar este decisivo processo demudança: a do aristotelismo político, a do republi-canismo clássico, a da economia política e a lingua-gem da ciência da política. Como observa Eisen-berg (2003), a última poderia ser considerada maisuma metalinguagem – pois presente em todas asoutras – do que uma linguagem particular, emboraganhe particularidade na reflexão de Hamilton, de-bruçado sobre a experiência norte-americana. Oelenco de linguagens apontado por Pagden podeser alterado polemicamente para os nossos propó-sitos, ao se transferir o foco da distinção do cam-po da história das idéias para o da teoria social.

Essa operação não traz consigo nenhum des-prezo pela história ou abriga a afirmação de seucaráter subalterno diante da sociologia. Quer ape-nas trazer para um determinado campo reflexivouma possibilidade alternativa de diferenciação daslinguagens da modernidade, que só poderá ser va-lidada pela produtividade de seu exercício, sem

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negar valor à classificação de Pagden. Assim, aproposição deste texto é de que a pluralidade damodernidade ocidental estaria ancorada em trêsgrandes linguagens de subjetivização, a saber, a lin-guagem do interesse, a linguagem da razão e alinguagem do sentimento – ou do afeto –, e nosmodos de articulação e hierarquização dessas lin-guagens na reconstrução de novas formas de vidasocial. As diversas tradições e culturas políticas doOcidente podem ser entendidas por meio dessaslinguagens e de suas articulações, que tendem a as-sumir uma feição “transcendental”2 ou normativaem experiências históricas concretas.

Tentemos entender a estrutura dessas lingua-gens sob a forma de tipos ideais. Esta remissão aWeber abriga dois propósitos. Em primeiro lugar,expressa o objetivo de estabelecer com mais niti-dez um campo de reflexão próprio da sociologiaou da teoria social. Trata-se, portanto, de uma abor-dagem que se estrutura buscando encontrar os ele-mentos básicos – por uma redução reflexiva – daslinguagens sociais, à maneira weberiana. Em segun-do lugar, esta tentativa não obedece inteiramente àperspectiva de Weber, que também encontra trêsmóveis fundamentais da ação humana subjetivamen-te orientada: a tradição, o afeto (carisma) e a razão.3A larga investigação de Weber, contudo, tem comoobjeto uma comparação entre o Oriente e o Oci-dente, motivo pelo qual não pode dispensar a açãobaseada na tradição, atribuída ao passado e carac-terística do Oriente. Em nosso caso, estamos tra-tando de sociedades pós-tradicionais, ou seja, desociedades que não mais se encontram determina-das por crenças e costumes imemoriais, o que nosautoriza abandonar uma possível linguagem da tra-dição, nos termos estritos de Weber. Por outro lado,na perspectiva weberiana, as sociedades ocidentaismodernas são fundamentalmente compreendidaspela utilização do par conceitual razão/carisma (afe-to), e pela fecunda hipótese da associação entreOcidente e racionalização. Ora, um dos objetivosda presente reflexão é o de relativizar esta hipótesetotalizadora de Weber, acentuando a permanênciae a eficácia das linguagens da razão, do afeto – queele de algum modo reconhece – e a elas associan-do a linguagem do interesse, que ele não aceitacomo móvel da ação subjetivamente orientada (Ben-dix, 1986). Desse modo, saímos do campo da histó-ria – dele se aproveitando ao máximo – para o dasociologia, sob a inspiração de Weber, mas sem

aceitar a sua hipótese da racionalização da socieda-de como fatalidade do Ocidente e trocando o eixode análise da ação subjetivamente orientada para odas linguagens.

Isto posto, é preciso ainda ressaltar um dadopreliminar ao desenho típico-ideal dessas três lin-guagens. Todas elas nascem de uma percepção co-mum aos séculos XVI, XVII e XVIII: a do desejohumano – da cupiditas – como potência básica efundante da subjetividade, como força que age cria-tiva e construtivamente no mundo (Ansaldi, 2001).Ao esquecer-se como princípio doador de sentidopara a vida, o transcendente abre espaço para aprogressiva percepção da imanência humana. É noconfronto com essa imanência, no escrutínio da vidainterna do homem, que o desejo humano adquireum protagonismo desconhecido nas formas ante-riores de vida e consciência. Ele transforma-se noelemento radical, original e propulsor da subjetivi-dade, e todas as linguagens desenvolvem-se com aambição de oferecer um sentido a esta potênciaimanente do desejo, agora senhor de uma infindá-vel produtividade ontológica. É o desejo que faz omundo e o homem, ou melhor, o mundo do ho-mem – como mundo desejado e apropriado – e éessa força que impulsiona o florescimento das di-versas linguagens, todas interessadas em enlaçar eorientar a potência do desejo para a recriação denovas formas de vida. Esse reconhecimento da au-tonomia e da produtividade do desejo humanomarca o início da modernidade, na Renascença deMaquiavel, na Reforma de Lutero, no fundo bar-roco de Shakespeare, Quevedo, Gracián, Cervan-tes, Hobbes, Descartes, Spinoza, no mito de DonJuan, na astuciosa reflexão de Locke e na inflacio-nada produção de catálogos das paixões e dosmodos de dominá-las. Diante da inquieta infinitudedo desejo, as linguagens de subjetivização domundo ensaiam e firmam suas diferenças e possi-bilidades, tentando dominá-la ou preservá-la. Enesse enfrentamento, nasce o homem moderno(Chauí, 1990), ou melhor, os vários tipos e modosda subjetividade humana.

Como no caso da linguagem dos interesses,que se ergue associada à idéia do indivíduo como aagency fundamental da sociedade. A noção de indiví-duo é uma forma específica de apropriação da sub-jetividade humana e de fundamentação antropoló-gica de um determinado tipo de sociedade (Arendt,1972). Ela emerge quando, além da consideração

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de cada um como um exemplar singular da espé-cie, passamos a conferir a cada homem a condiçãode um ser moral autônomo e independente dosoutros (Dumont, 1985). No “indivíduo” coexisti-riam um “dentro” – que o faz subsistir por si mes-mo – e um “fora”, os outros indivíduos e a socie-dade, nascida das relações externas entre todos,ponto também presente em Elias (1994). Esse ho-mem-indivíduo é transcendental e formalmentedefinido pela posse de direitos negativos, que lheasseguram a igualdade em relação aos outros e omaior grau de liberdade possível para a persegui-ção dos seus interesses, ou seja, seus fins particula-res. Os direitos protegem este “dentro” da invasãoda sociedade e dos outros, transformando o indi-víduo no elemento original da sociedade.

Essa visão já se encontra em Hobbes (1974),com seu modo especial de caracterizar o “dentro”que faz do homem um indivíduo. O elemento in-terno e primeiro do homem é o desejo, a cupiditas,que preserva o seu movimento e a sua vida. Desejode apropriação do mundo e do que nele existe –poder, riqueza, saber e honra –, materializado soba forma de interesse. A potência de cada indivíduocorresponde à capacidade de realização dos seusdesejos ao longo da vida, e o sucesso contínuo naobtenção do que os homens desejam constitui afelicidade humana. No entanto, se a perpétua intran-qüilidade de espírito provocada pelo desejo podenos trazer a felicidade, pode também ameaçar aprópria vida, individual ou social, ao criar o estadode guerra de todos contra todos. Nessas circuns-tâncias, a vida do homem é solitária, pobre, sórdi-da, embrutecida e curta, para usar os termos deHobbes. O risco da dissolução social e da misériapode, contudo, ser cancelado por um contrato, ra-cionalmente construído, que institua um agente ex-terno de controle sobre a órbita dos indivíduos esobre o movimento do desejo. O medo – umaforma de sentimento – é o grande móvel do con-trato racional que cria o Leviatã e o sustenta. E éesse Estado que, pela espada, garante a existênciada própria sociedade, do que é justo e injusto, doque é bom e mau para a conservação dos homens,e obriga a todos ao cumprimento dos contratos epactos estabelecidos. Há, neste passo, uma inflexãoteórica decisiva que não pode ser perdida em Hob-bes: a transformação da filosofia moral em ciênciado que é bom e mau, e não mais do bem e do mal.Conseqüentemente, ele abandona a exigência de

perfeição, na perspectiva de um modelo moral tra-dicional, exigindo de cada homem apenas o res-peito ao bom e mau para a conservação de todos.Conservação que, por outro lado, implica em pre-servar o movimento da cupiditas da multidão e decada um, consignada na afirmação de “o que nãoestá proibido é permitido”. O Leviatã não cancelao desejo nem o indivíduo apetitivo e competitivo(Macpherson, 1979). Ao contrário, ele é a sua ma-téria. O objetivo hobbesiano é o de evitar as con-seqüências catastróficas do desejo irrefreado, semerigir nenhum outro valor para a vida em comuma não ser a realização máxima do interesse de cadaum e de todos. Hobbes é, no entanto, para os nos-sos propósitos, a apresentação das armas da lin-guagem do interesse, que se torna mais complexapela colaboração da perspectiva do protestantismoe de Locke.

Ao reclamar a necessidade de um controleexterno, o desejo travestido de interesse ainda nãodetém a capacidade de organizar uma linguagemplena de subjetivização da vida. Este passo só serádado quando o interesse se transformar na fonteautônoma de uma moral que controle o desejo e ovincule a um modelo de vida boa. Ou seja, quandoo controle externo se tornar habitus internamenteestabelecido e fundar a possibilidade de uma áskesisinterior e atada à própria noção de indivíduo ape-titivo. Essa operação é feita por Locke, de acordocom Taylor (1997). A perspectiva lockeana incor-pora ao indivíduo competitivo, portador irracionaldo desejo, os motivos de autoreforma e autocon-trole do protestantismo, lançando as bases para umadeterminada economia do corpo e dos sentimentos,para a construção do indivíduo como “ser moral”,lembrando Dumont. Séculos mais tarde, Weber iráressaltar os frutos deste processo de laicização dopuritanismo movido pela idéia do exercício de umavocação no mundo (Weber, 1974). A autodisciplinaprotestante instala-se na própria subjetividade,movimento característico deste mundo imanente aser explorado, e, afastada progressivamente de suaorigem religiosa, autoriza a definição do indivíduocomo sede tanto do desejo como da capacidadede sua domesticação e controle. O interesse afir-ma-se como elemento constitutivo do indivíduo eda sociedade dos indivíduos, agora dotado dopoder de se controlar e de conviver com outrosinteresses. Hirschman (2002) salienta que a idéia deinteresse substituiu a velha contraposição medieval

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e cristã entre as paixões e a razão, sempre a exigiruma concepção heróica de virtude para o domíniodas paixões, oferecendo ao homem comum a possi-bilidade de domesticá-las mais do que de eliminá-las, num ambiente social pacífico. Embora a afirma-ção de Hirschman não esteja inteiramente correta,4ela também reconhece a natureza do interesse comofonte moral e normativa, tocada por uma concep-ção modal e distanciada do velho embate entre obem e o mal.

Ainda em Locke podemos encontrar o mé-dium da linguagem dos interesses, ou seja, a media-ção que permite ao interesse plasmar e justificarmoralmente o mundo social e o destino individual:o trabalho. O tema do trabalho é crucial em Locke,tal como no protestantismo. Ele é o modo de jus-tificação do desejo de apropriação do mundo e desuas possibilidades. É por intermédio dele que ointeresse se materializa em propriedade e bens legí-timos, assim como a humanidade aumenta seusmeios de vida e de progresso material (Macpher-son, 1979). O exercício puritano de uma vocaçãono mundo, como acentua Weber, dá origem a umaética do trabalho, entendido como atividade regu-lar, sistemática, e modo legítimo de consecução dosinteresses por parte dos indivíduos (Weber, 1974).A forma tradicional de obtenção de riquezas – osaque, a guerra, a especulação, as modalidades com-pulsórias de trabalho, fundadas no domínio dosmeios de violência – dá lugar à atividade perma-nente, calculada, baseada numa disciplina interna ecorporal dos indivíduos. A linguagem do interessecomeça a adquirir plenitude ao associar interesse,indivíduo e uma exigente moral subjetiva fundadano trabalho.

Para Locke, os indivíduos apetitivos dotadosde uma disciplina interna são capazes de estabele-cer as bases de uma ordem social e do mercado,pela criação do dinheiro (Locke, 1978). Mais doque isto, o dinheiro, ou a moeda, amplia a capacidadeprodutiva do trabalho, e o representa em processosde troca cada vez mais generalizados. Locke nãofaz do estado de guerra hobbesiano a hipótese bá-sica de uma vida pré-estatal. Essa já conteria, em sie autonomamente, as condições de uma sociedadede indivíduos livres. O contrato que institui o Esta-do não cria simultaneamente a sociedade, comoem Hobbes, inventando apenas meios especiais paraa garantia da propriedade e da vida. O Estado não éapresentado como um pacto originário, mas na for-

ma de um contrato de segunda ordem, feito para aproteção de algo preexistente a ele: o indivíduo,seus interesses, suas propriedades e uma sociedadede indivíduos.

Lugar do desejo e de autodisciplina, este in-divíduo já não reclama controles externos, buscan-do tão-somente instrumentos que permitam a rea-lização de seus desejos redefinidos como interesses.De forma conseqüente, o Estado e o Direito rece-bem apenas uma natureza formal e instrumental,vedada a sua evolução numa direção material. Otema da justiça migra do âmbito do Estado – dasantigas Coroas – para o território do mercado, ouseja, da trama resultante da ação simultânea dos in-divíduos em busca de seus interesses. Não por aca-so Locke vê a sociedade civil resultante do pactocomo uma comunidade legal desprovida de po-der, na acepção de um poder capaz de orientarmaterial e substantivamente os homens. O mundolegal é apenas a forma externa e positiva de expres-são dos direitos e dos controles que pertencem aosindivíduos em movimento permanente. Sem dúvi-da, o direito e as instituições assim concebidos pas-sam a exercer um papel pedagógico de extremaeficácia, consolidando e reproduzindo a concepçãode indivíduo e de sociedade como fruto das rela-ções individuais.

A percepção do mercado como distribuidorda justiça, já presente em Locke, dará origem a umdos principais pressupostos da economia política,qual seja, o da moralidade do mercado, que deveser protegido integralmente de qualquer outra fon-te moral. De acordo com Mandeville (Goldsmith,2002) e Bentham, a velha idéia de justiça, ou dobem comum, dispensaria qualquer forma de regu-lação ou intromissão estatal no mercado, nascendoda ação de cada indivíduo em busca do seu inte-resse. Em outros termos, o bem comum seria obem convergente produzido pelos interesses emmovimento, mas incapaz de propiciar o fundamen-to ou a legitimidade da sociedade, que repousa sem-pre na materialidade do interesse individual e nosinstrumentos legais e formais de controle social doapetite humano. Esta hipótese a respeito das con-seqüências não intencionais das ações humanas fun-dadas no interesse dispensa a vinculação de um bemcomum materialmente definido ao Estado, que sevê reduzido à condição de aparato externo à socie-dade e destinado a garantir a livre movimentaçãodos interesses e dos indivíduos, pressuposto mantido

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mesmo na versão da liberal democracia, como anotaHabermas (1995). Nesse sentido, a utopia da lin-guagem dos interesses prevê a perfeição de umasociedade, na medida em que esta reconheça a po-tência do desejo, travestido de interesse, que preser-ve a sua liberdade e estimule o seu exercício, base dajustiça e do progresso material, que a todos atingiria.

Nem os sentimentos nem a razão estão dis-pensados nesta linguagem, mas subordinados aointeresse. A linguagem da razão é convocada deforma tríplice. Em primeiro lugar, toda a justifica-ção do mundo fundada no interesse deve se darracionalmente, sem o apelo a nenhum fundamentotranscendente e sustentada numa visão imanente dohomem. Esta justificação racional do interesse en-volve uma contradição que mais tarde Kant perce-berá com toda clareza, tentando solucioná-la: se ointeresse se justifica racionalmente, deveria ser a ra-zão o elemento fundamental da nova normativi-dade. Em segundo lugar, a razão é convocada paraencarnar-se em razão formal e legal, presente nasinstituições. E, finalmente, é reduzida a razão utili-tária, território do cálculo individual que submeteinstrumentalmente o mundo e os sentimentos aosinteresses. A transferência da razão para fora do ter-ritório galileano, inspiração clara de Hobbes, se dápela sua fragmentação e instrumentalização, operaçãoque não parece capaz de completa legitimação ouconsolidação da linguagem do interesse. Em outrostermos, a associação interesse/razão não se mostrasuficiente para legitimar e manter a sociedade.

Embora o ponto tenha sido insinuado emHobbes, a necessidade de mobilização conscientee instrumental dos sentimentos está claramente postaem Locke, quando trata da religião. Nos primórdiosda modernidade, esta identificação dos sentimen-tos – e da sua eficácia – com a religião será bastan-te comum, e na perspectiva lockeana ganha umaespecial visibilidade, ao assinalar a necessidade deum Cristianismo com alguns simples artigos de féadequados às capacidades do vulgo. De acordo comMacpherson, “o ponto de vista de Locke é de que,sem sanções sobrenaturais, a classe operária é inca-paz de seguir uma ética racionalista” (1979, p. 237).A linguagem dos interesses admite a fratura da so-ciedade, entre os que são premiados pelo mercadoe os perdedores, e a religião é convocada para ocontrole “interno” destes últimos. Por outro lado,toda a operação de incorporação da autodisciplinaprotestante tem como objetivo o controle dos afe-

tos e sentimentos, ou das paixões, na terminologianegativa da época. Mandeville desvela, na sua famosae polêmica Fábula das abelhas, a contradição desseprograma de autocontrole e domesticação do de-sejo e dos sentimentos. São os nossos vícios e pai-xões desregradas – a avareza, a cobiça, a luxúria, agula, a libertinagem etc. – que fazem a riqueza e aforça da sociedade, versão especial das conseqüên-cias não intencionais da ação humana. O controle,a autodisciplina, a honestidade, diz ele, provocaminevitavelmente a miséria, o desemprego e o malcomum. A moralidade do mercado parece dispen-sar, em Mandeville, o componente moral da idéiade indivíduo, possibilidade que incomoda AdamSmith. Releituras recentes de Smith encontram umaarticulação mais complexa da linguagem dos senti-mentos com a defesa do interesse e o reconheci-mento dos resultados não intencionais da ação hu-mana (Cerqueira, 2006). Abandonando a formacanônica de interpretação do pensamento de Smith,fundamentalmente identificado com A riqueza dasnações, vários autores têm insistido na vinculação entrea sua obra mais famosa e o livro A teoria dos sentimen-tos morais, comprometido com o desenvolvimentode uma ética dos sentimentos, fundada na simpa-tia.5 Se corretas, essas releituras atestam o pontoque estamos desenvolvendo: mesmo para o pensa-dor considerado expoente da economia política, aexplicação da sociedade de mercado não poderiadesprezar a sua justificação e correção em termoséticos ou morais, baseados no sentimento, numachave diferente do egoísmo cínico de Mandeville.

Na sua forma mais desenvolvida e generosa,o que orienta essa linguagem é a idéia de um interes-se bem compreendido, capaz de assegurar a liber-dade de movimento dos indivíduos e a possibilidadede cooperação entre eles. É o que Tocqueville julgaencontrar nos Estados Unidos, ou seja, a correção dapredominância do puro interesse pela presença da co-operação social, ainda que a idéia de bem públiconão ganhe substância especial. Mas é ainda de Toc-queville a aguda observação de que a legitimi-dade desta sociedade do interesse bem compreen-dido encontra-se profundamente enraizada numa“religião civil”, ou seja, na dimensão dos sentimen-tos. Ele consegue surpreender e revelar a autore-presentação mítica dos Estados Unidos, que se vêcomo sociedade perfeitamente de acordo com avontade de Deus, e a permanente disposição dosnorte-americanos para mobilizar o paradigma bíbli-

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co como inspiração de suas festas, liturgias e repre-sentações, destinadas a estimular o desenvolvimen-to de uma virtude republicana capaz de corrigir ocaráter puramente competitivo do interesse (Bellahet al., 1985; Catroga, 2005). Desse modo, não é maiso sentimento do medo, como em Hobbes, quepode sedimentar a sociedade, mas o compartilha-mento afetivo de valores e finalidades que confe-rem sentido ao viver social. É este poder da lingua-gem do sentimento – não previsto por Locke –que compensa o “déficit” próprio da linguagemdo interesse, cuja dinâmica, contraditoriamente, tendea corroer e a banalizar aquilo que lhe dá sustenta-ção. O movimento do interesse requer e repele aomesmo tempo o poder integrativo da linguagemdos sentimentos e da razão, colocando sempre emrisco as formas de solidariedade social.

A linguagem da razão altera esta hierarquiafundada no interesse, assumindo ainda a condiçãode linguagem dominante em relação à linguagemdos sentimentos. Mas a mera alteração na hierarquianão explica como a razão pode se arrogar à condi-ção de fundamento da vida. Por comparação coma sua posição no campo articulado pelo interesse,ela deve assumir a posição de razão normativa etotalizante, criando seus próprios princípios e proce-dimentos e recusando sua fragmentação. Podemosacompanhar o nascimento desta razão moderna emFoucault (1967), ao flagrar com minúcia a separa-ção entre as palavras e as coisas e a invenção de umterritório autônomo das palavras, e em Koyré (2005,1991), que mostra a crescente destruição do kósmose a geometrização do espaço, base de uma nova“ciência” postulada – nem sempre de forma coe-rente (Feyrabend, 1989) – por Galileu. A destrui-ção do kósmos não significava negar a existência deuma ordem no universo, mas a afirmação de umaordem que podia ser conhecida dedutivamente pelanossa razão matemática. O realismo matemáticosubstitui a velha física hilemórfica, atrelada à per-cepção de um universo finito composto por luga-res hierarquicamente dispostos, e lança os funda-mentos para uma nova concepção de razão e ciência.

Hobbes já havia incorporado a contribuiçãode Galileu, mas é Descartes quem amplia decisiva-mente o campo dessa nova razão para além doslimites da ciência. Por meio da dúvida metódica,instala o eu pensante como o núcleo irredutível dasubjetividade humana. Ou melhor, a subjetividadehumana é redefinida como um eu que pensa (Des-

cartes, 2005a) e que, pelo pensamento, pode che-gar a idéias claras e distintas, reconstruindo deduti-va e verdadeiramente a ordem do mundo. Estapotência da razão não se aplica apenas ao mundofísico e externo, mas à própria subjetividade e aocorpo, alimentando uma moral racional destinadaà nossa perfeição e ao controle de nossas paixões ede nosso corpo. O exercício da dúvida metódicaem busca de algo irredutivelmente certo atinge nãoapenas as “verdades” da filosofia, mas desautorizaainda as sensações e os desejos do corpo comofontes de verdade e liberdade. Taylor (1997) temrazão ao assinalar que, em Descartes, é como se arazão se desprendesse de nós mesmos, e se pusesseacima de nós, para comandar inteiramente a nossavida, nossas paixões e o nosso corpo.6 Ainda queem um livro estranhamente incoerente (2005b),Descartes não tem dúvidas em submeter as nossaspaixões e sentimentos à nossa razão, presenteando-a com a universalidade normativa, fonte de umamoral baseada no “certo”, em detrimento do “bom”ou do “bem”, finalisticamente concebido. A dúvi-da cartesiana suspende o caráter descritivo e realis-ta da perspectiva hobbesiana, fundada no reconhe-cimento do desejo, responsabilizando o eu pensantepela reconstituição racional do mundo e da reali-dade. A razão torna-se fundamento da reinvençãosubjetiva da vida, já investida do poder de contro-lar os interesses e as paixões do corpo, de onde seoriginam os nossos erros. Por outro lado, emboraessa concepção moral seja tão exigente quanto apuritana, ela não estará diretamente associada aointeresse, cujo movimento deve também estar sub-metido aos ditames de uma razão moral. A opera-ção cartesiana dribla o desejo e o enquadra naquiloque alternativamente é posto como a natureza denossa subjetividade: a razão, dominadora e imperia-lista. O enfrentamento do desejo não segue a estra-tégia do interesse, mas se organiza pela postulaçãode um “outro”, da razão como o núcleo de nossasubjetividade, deslocando e ocultando o desejo.

A razão torna-se progressivamente omnicom-preensiva (Cassirer, 1992), assegurando a nossa iden-tidade individual e a correção de nossas ações, ga-nhando contornos cada vez mais exigentes em PortRoyal – Pascal – no Iluminismo, em Rousseau, emvários pensadores da Revolução Francesa e, sobre-tudo, em Kant.7 Abandonando qualquer intençãode traçar uma “história” da razão e da ciência mo-dernas, é possível recuperar a hipótese de Padgen

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sobre a linguagem da ciência, com algumas qualifi-cações. Pela sua ambição universalista, a linguagemda razão estará sempre recolhendo os frutos dasduas outras linguagens, reorganizando-os para rea-firmar a sua universalidade. Ela não quer ser umametalinguagem, mas a linguagem bem compreen-dida por excelência, cuja potência seria capaz dereordenar as premissas e as expectativas das duasoutras linguagens numa síntese superior.

Para os nossos propósitos, tomemos Rous-seau e Kant como referências exemplares destaambição totalizante da razão, preservando a distin-ção entre eles. Num movimento inverso àquele rea-lizado por Hobbes e pelos contratualistas liberais,ao estilo lockeano, Rousseau não vê no indivíduo asede da sociabilidade ou o alfa e o ômega do viverem sociedade. A idéia de um indivíduo cuja naturezase materializa em diretos negativos, na propriedadeou nos interesses, lhe é inteiramente estranha, comomostra Starobinsky (1991). Na verdade, Rousseaunão parece associar a natureza humana a nenhumtraço ou característica específica, a não ser sua plas-ticidade. O homem natural, tal como aparece noDiscurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdadeentre os homens, nem é apetitivo nem gregário, osten-tando uma única e original virtude ou paixão: a pie-dade. Ao modo de Spinoza, este homem natural épura potência, e suas virtudes e faculdades surgiramapenas “pelo concurso fortuito de várias causas quelhe eram alheias, que poderiam jamais haver surgi-do e sem as quais ele permaneceria eternamenteem sua condição primitiva [. . .]” (Rousseau, 1989,p. 82). Mas Rousseau não enxerga, na história huma-na, uma trajetória de progresso moral. Bem ao con-trário, vê precisamente este homem afetado, aolongo dos séculos, por acontecimentos que ele nãocontrola, por normas nascidas do interesse ou daspaixões que o transformam de um ser livre emprisioneiro dessas convenções e acasos congeladosem civilização. História como involução ou purairracionalidade. É nestas circunstâncias de degene-ração que o contrato social ganha toda sua lumino-sidade revolucionária. Ele é concebido como a in-terrupção deste movimento de decadência ou decaos permanente. É um ato racional, de recomeçode nossa história, livrando-a da condição de merasucessão de desastres – percepção também de Vol-taire – para erguer-se como o resultado de nossasdeliberações racionais, autônomas e livres. O contra-to social não redime apenas a história, mas transubs-

tancia este homem posto a ferros em um ser livre,ou seja, no cidadão livre e racional. O ato de fun-dação da república desnaturaliza o homem (Catro-ga, 2005), recriando-o na qualidade de homem ver-dadeiramente social, ou melhor, como homemmarcado pela verdadeira sociabilidade inventadapela razão.8 O cidadão que, simultaneamente pro-duz e é produzido pelo contrato social, nada tem aver com o indivíduo hobbesiano ou liberal, e nemencontra nos sentimentos a sua redenção. Nada doque é visto como prévio – seja no sentido históricoseja no sentido moral – ao contrato pode subsistircom o poder de determinar a dinâmica de umasociedade lastreada no consenso racional.

Os termos do contrato social são racionais, paraRousseau, embora possam ter a aparência de pa-radoxo. Por comparação com Hobbes e Locke, ocontrato rousseauniano demanda a alienação totaldo poder de cada um à comunidade, que ganhaassim vida própria e vontade geral, ou seja, a neces-sidade de sua preservação como comunidade. Semela, o homem não poderia subsistir em liberdade.É essa comunidade racionalmente autoconscienteque devolve a cada um a condição de cidadão, ha-bilitando-o a participar da vida social e públicamediante direitos positivos. Analogamente ao dog-ma cristão da ressurreição, o cidadão é o homemnatural ressurreto e num patamar de perfeição su-perior, e como ele só existe pela comunidade e nacomunidade politicamente instituída, os seus direi-tos fundamentais pertencem à órbita pública, e nãoprivada. Apenas por meio dos direitos positivos éque o cidadão, esta nova figura do homem, podealcançar sua plenitude e perfeição, tornando cadavez mais transparentes e racionais as suas formasde sociabilidade. Ou melhor, é somente pelos di-reitos públicos que a própria comunidade podepermanecer e evoluir como obra permanente doconsenso racional entre seus componentes.

Habermas (1995) aponta o médium fundamentaldesta linguagem da razão: a comunicação entre oscidadãos autônomos da comunidade política. A co-municação constante, e racionalmente desdobrada,ofereceria vida à comunidade e à república. Em tor-no deste médium deve florescer o conjunto de virtudesnecessárias à vida política, num sentido mais heróicodo que aquele previsto na linguagem do interesse, eque será objeto de crítica de Benjamin Constant. Adisciplina exigida nesta linguagem não coincide comuma áskesis puramente individual e necessária à reali-

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zação dos interesses, mas desdobra-se como entre-ga à comunidade e à sua perfeição. Nesse sentido,o contrato social não é algo dado no passado ouencarado como ficção, mas objeto de uma perma-nente reiteração pela participação dos cidadãos, quealcançam plenitude nessa reinvenção permanenteda república.

Coerentemente, o direito perde a sua nature-za puramente instrumental para tornar-se exercícioracional de auto-imposição de normas e leis, en-tendidas como resultados do exercício livre da ra-zão humana, por parte dos cidadãos, e forma derefundação permanente da comunidade. O direitoé, na sua produção e na sua validade, a garantiadessa nova sociabilidade e de um mundo novo.De modo mais incisivo: a produção de leis racionaispor cidadãos racionais e livres, destinadas a preser-var, reproduzir e aperfeiçoar a comunidade políti-ca, atualiza e expressa a nova sociabilidade cidadã esustenta a própria comunidade. Hegel já perceberaa novidade desta reinvenção da cidadania, identifi-cando nela a superação da religião como forma deautomanifestação do Espírito no seu romance his-tórico (Hegel, 1985). Os homens descobrem quepodem se dar sua própria lei, e a norma transcen-dente e religiosa esquece-se como figura da odis-séia do Espírito. A natureza, ao mesmo tempo pe-dagógica e fática do direito, replica-se no próprioEstado, na medida em que é dele a tarefa de execu-tar as leis que preservam a sociedade e sua vontadegeral. A relevância atribuída à lei permite relativizara afirmação de Habermas quanto ao médium efeti-vo da linguagem da razão. Do mesmo modo queo trabalho exige antes a concepção do produto – edo próprio processo de trabalho –, para se porcomo médium da linguagem do interesse, o direitonão pode prescindir da discussão anterior à sua for-mulação, mas de fato é ele que sustenta, produz ereproduz esse novo mundo da república. A lingua-gem da razão não se esgota na discussão – no usopúblico da razão, como quer Habermas para onosso presente –, mas se completa, nas circunstân-cias da moderna linguagem da razão, em um direi-to material que tudo pode regular. A ambição darazão não é a discussão, mas a norma que molda omundo, em nome de uma comunidade entendidacomo sujeito.9

A indissociabilidade entre cidadão e comuni-dade livres repercute na posição do interesse. Semdúvida ele não é dispensado ou eliminado, mas não

mais pode se apresentar como o eixo de liberda-des de sujeitos ou agentes solipsistas. Para a lingua-gem plena da razão, ele adquire apenas a naturezade instrumento para a realização dos fins da comu-nidade, invertendo a sua precedência na linguagemdos interesses. O interesse geral – a vontade geral,o interesse comum – regula o interesse individual eprescreve, inclusive, as condições e a legitimidadeda propriedade. Os direitos negativos, se existem,permanecem subsumidos aos direitos positivos,diretamente vinculados a esta nova natureza huma-na criada pela razão, hierarquia estabelecida por umacomunidade eticamente autoconsciente e sabedorados riscos do interesse. A ética do trabalho ganhaoutro conteúdo em Rousseau, pouco disposto aaceitar o conflito – individual e social – da socie-dade burguesa nascente e a disciplina nele envolvida.Merquior (1980) salienta este moderno amor pelaliberdade de Rousseau e o seu desprezo por qual-quer coisa próxima da economia de mercado, ra-zão de sua utopia agrária do cidadão que trabalhacom as próprias mãos e de seu programa de retor-no à natureza e ao seu elã, como assinala Taylor(1997). O cidadão não cancela ou elimina o interes-se próprio, mas este não pode adquirir a virulênciadaquele do indivíduo da linguagem dos interesses.Do mesmo modo, o cidadão não elimina o indiví-duo, ou seja, o homem singular da república. Opressuposto é que cada homem desfrute de auto-nomia diante dos outros e do Estado, ou, do con-trário, a república não se mantém e as virtudes nãoflorescem.

Na versão rousseaniana e da Revolução Fran-cesa, no entanto, a linguagem da razão não parecese bastar. A questão pode ser posta da seguintemaneira: por que entrar continuamente em um con-trato social e por que obedecer à lei e às suas fina-lidades? Sem dúvida, a resposta imediata da lingua-gem da razão seria a de que o contrato e a obediênciasão racionais – porque estaríamos obedecendo anós mesmos –, e condição de nossa liberdade co-mum. Mas isso não parece suficiente. Tanto Rous-seau como a Revolução Francesa – a revolução darazão, a revolução solar – não se mostram dispos-tos a abrir mão da linguagem dos sentimentos, re-correndo à idéia de uma “religião civil” semelhanteàquela dos Estados Unidos, para santificar os ter-mos do contrato social. Além de racional, este de-veria ser também um “contrato sentimental”, umavez que somente as nossas paixões e sentimentos

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poderiam consolidar a verdadeira virtude republi-cana (Catroga, 2006). A linguagem dos sentimen-tos, sob a forma de uma religião civil, seria ne-cessária para socializar e internalizar a disciplinarepublicana, para a criação do patriotismo e atémesmo para justificar a morte do cidadão pelacomunidade política.

Essa nova religião civil deveria ser diferentede todas as outras existentes, e por isso mesmocriada conscientemente para este objetivo político.Ela não teria como objeto a verdade, existindo pelasua eficácia socializadora. Pelo novo calendário re-ligioso, a república seria o palco – não do teatro,gênero adequado às monarquias – de uma suces-são de festas destinadas a aprofundar “sentimen-talmente” a natureza da democracia republicana.O cidadão seria também responsabilidade dessareligião artificial, e ainda da escola, imaginada porRousseau e pelos pensadores franceses ligados àrevolução, como um meio de criação permanentedesse novo tipo de homem, o cidadão republicano.Observe-se que essa educação, tanto pela escolacomo pela religião civil, destina-se, não a liberar ojogo desregrado de nossas paixões, mas à autocon-tenção e ao autocontrole de nossos sentimentos, nadireção que Norbert Elias aponta em O processo civi-lizador (Elias, 1994).

A esta sublinguagem da razão, fortementerepublicana, se junta uma outra, formulada porKant em reação à própria Revolução Francesa.Leitor confesso de Rousseau, Kant tenta resolveros vários paradoxos rousseaunianos – e vários ou-tros desafios herdados do passado – pelo explíci-to desenvolvimento de “uma razão bem compre-endida”. Kant retoma Descartes recusando o seurealismo matemático e a equivalência entre o “eupensante” e a natureza do homem, ao promoveruma “revolução copernicana” no plano da razão eda ciência. A velha concepção da ciência, como ade-quação da minha razão às coisas tais como são, éinvertida: as coisas devem se submeter à minha ra-zão, derivando dessa revolução a necessidade deinvestigar o que pode a nossa subjetividade legiti-mamente afirmar a respeito das coisas. A Crítica darazão pura (Kant, 1989) é este monumental esforçopara a determinação de nossa estrutura subjetivatranscendental – constituída pela sensibilidade, peloentendimento e pela razão pura –, que antecede edetermina a nossa experiência com o mundo. Kantnão apenas despacha a metafísica tradicional – sem-

pre em busca do noúmeno das coisas –, como tam-bém o realismo matemático, afirmando a ciênciacomo o conjunto de afirmações produzidas pelorigoroso exercício de nossas faculdades internas esubjetivas, cuja validade depende inteiramente daspossibilidades e dos limites próprios de nossa es-trutura subjetiva transcendental. Precisamente por-que esta estrutura subjetiva seria comum ao gênerohumano – ou seja, a base de nossa unidade antro-pológica –, a ciência se redefine como este com-plexo de afirmações rigorosas e compartilháveis,esquecida a antiga ambição de homologia entre anossa razão e o mundo, que habita ainda o pensa-mento de Descartes e o leva a encontrar em Deusa garantia dessa unidade entre razão e mundo. ParaKant, alma, mundo e Deus são apenas idéias regula-doras e unificadoras do conhecimento produzidopela nossa sensibilidade e entendimento, sem quepossamos afirmar suas existências objetivas.

A conclusão da Crítica da razão prática é inicia-da por uma das frases mais belas e conhecidas dafilosofia: “Duas coisas enchem o ânimo de admi-ração e veneração sempre nova e crescente, quantomais freqüente e persistentemente a reflexão delasse ocupa: o céu estrelado acima de mim e a lei moralem mim” (2002, p. 255). O céu estrelado, o mundofora de mim, é o receptáculo plástico ao exercícioda minha razão transcendental. Mas além dessemundo externo, existe o mundo interno do homem,e é ele que abriga a possibilidade da liberdade e dalei moral, matéria a ser examinada depois da razãopura. Além desta, nossa subjetividade seria aindaconstituída por uma vontade pura, ou seja, pela ca-pacidade de autodeterminação de nossas ações. Di-ferentemente do mundo fora de mim, do qual nãosou sujeito por não tê-lo criado, o meu mundo in-terno é o território das minhas ações autônomas eda minha perfeição como sujeito moral. Para isso,no entanto, a produção autônoma das minhas açõessó pode estar determinada por um princípio des-contaminado de qualquer contingência, por umprincípio universal, racional e adequado à máximaautonomia e espontaneidade da minha vontadepura. Este princípio é o célebre imperativo categó-rico kantiano: “Age de tal modo que a máxima detua vontade possa sempre valer ao mesmo tempocomo princípio de uma legislação universal” (Idem,p. 51), seguido do imperativo prático, que reclamanosso respeito à humanidade que reside em nós enos outros. Esses imperativos materializam a vincu-

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lação da razão teórica e da razão moral, de tal manei-ra que esta se torna autoconsciente de sua vincula-ção exclusiva a si mesma, fazendo com que a von-tade se dê sua própria norma universal, comoobserva Cassirer (1992). O indivíduo se redefineagora pela sua autonomia moral e racional, e nãopelos seus desejos e interesses.

É nesses imperativos morais e racionais quese inicia uma cadeia dedutiva capaz de estabeleceros princípios da vida em comum e da vida indivi-dual. O sujeito livre é o que se dá esta norma univer-sal como referência absoluta, destinada a presidir oaprendizado eterno do indivíduo – presenteado naCrítica da razão prática com uma alma imortal e,portanto, capaz de aprender infinitamente – e dahumanidade. Por outro lado, é o imperativo cate-górico que determina o Princípio do Direito, ouseja, as nossas relações externas com os outros ho-mens. Por esse princípio estamos compelidos a en-trar num contrato social e a elaborar uma constitui-ção que, na sua estrutura, deve tão-somente conternormas universais deduzidas do imperativo categó-rico e do princípio do direito. Neste ponto a obser-vação é inevitável: para Kant, a enigmática vontadegeral de Rousseau deve ser traduzida como o frutodesse exercício permanente do imperativo e doprincípio do direito, ambos ancorados na subjeti-vidade transcendental e universal dos homens. Emoutros termos, a vontade geral kantiana coincidecom a atualização do imperativo categórico e doprincípio do direito, racionalmente determinados.A constituição não deve expressar um consenso doshomens – dos poucos que podem participar desua elaboração, pelas restrições kantianas –, mas ex-pressar uma seqüência dedutiva e racional a partirdos imperativos e do princípio do direito. A na-tureza transcendental de nossa subjetividade, sejano plano teórico seja na dimensão moral, seria ofundamento da vontade geral, necessariamente ra-cional e universal.

Essa nova versão da vontade geral afasta Kantde Rousseau. Se na versão republicana a lingua-gem da razão associa-se estreitamente à linguagemdos sentimentos, em Kant a razão aproxima-se maisimediatamente da linguagem dos interesses. NoQuarto Princípio de sua Idea de una Historia universalen sentido cosmopolita (1985), Kant reconhece o anta-gonismo como a estratégia escolhida pela naturezapara o desenvolvimento de todas as nossas disposi-ções naturais e potenciais. Ao contrário de Rousseau,

a “insociável sociabilidade” humana seria a respon-sável pelo progresso material da humanidade, semo qual estaríamos imersos numa vida arcádica epobre. Conseqüentemente, a mais difícil tarefa dahumanidade seria a constituição de uma sociedadecivil que pudesse articular e harmonizar o antago-nismo, a autonomia e vida em comum dos ho-mens, por intermédio do direito, ou seja, da razãomaterializada em direito. Nesse passo, Kant perfilaa tradição mais generosa do Liberalismo, levando-o à sua plenitude filosófica, buscando associar alinguagem da razão e a dos interesses.

Esta sociedade civil, no entanto, deveria terum caráter cosmopolita, afirmação coerente como lugar que Kant atribui aos sentimentos, ou seja,nenhum. A versão kantiana encontra-se pouco inte-ressada em garantir uma comunidade política local,organizada por fins particulares ou históricos, e queenvolveria sempre a mobilização dos sentimentosde seus componentes para a sua reprodução. Delaé a preocupação com o desenvolvimento do gêne-ro, unificado pelo compartilhamento de uma subje-tividade transcendental e racional, que deveria pro-gressivamente eliminar da vida os efeitos particularesdos nossos sentimentos. A moralidade e a políticakantiana encontram-se determinadas, como emDescartes, pela idéia do “certo”, soterrando o va-lor do bom e do bem, no dizer de Taylor (1997).Mas de um “certo” ao mesmo tempo retirado dahistória – e posto na subjetividade transcendentaldo homem – e nela jogado, como matéria de infi-nito aprendizado, tema caro ao Iluminismo. O tam-bém célebre sapere aude kantiano joga luz no médiumdesta versão da linguagem da razão: é a própriarazão bifurcada em lei moral, interna, e lei positiva,derivada da primeira e por ela determinada, paraas nossas relações externas. O progresso material,provocado pelo interesse, encontra-se subordina-do ao programa moral e racional kantiano, justifi-cando-se apenas como componente da liberdadehumana. A razão é a sua própria mediação prática.

Seja na construção rousseauniana ou na kan-tiana, a razão arroga sua precedência normativa so-bre as outras linguagens, do interesse e do sentimento,embora criando sublinguagens racionais distintas.Os sentimentos e os interesses são sempre entendi-dos como incapazes de produzir um modelo exigen-te de vida boa. A razão é que os redime da particu-laridade e da acidentalidade, envolvendo-os naambição da universalidade e da liberdade. Redenção

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que se dá fundamentalmente por normas – interio-res ou exteriores –, que traduzem essa dominânciada razão e a afirmação de sua universalidade.

A linguagem dos sentimentos não se confun-de com o emotivismo denunciado por MacIntyre(2001). Sua primeira característica é um pressupostoaristotélico claro, e atualizado para as novas cir-cunstâncias: a natureza social dos homens (Aristó-teles, 2002, 1973). Pressuposto que recusa as ima-gens antropológicas das outras duas linguagens,redefinindo o homem como um ser do desejo queexiste apenas nas suas relações e mediações sociais(Chauí, 1990), e radicalizado modernamente pelohumanismo cívico, por Maquiavel, pelo neoto-mismo e pelo barroco ibérico, por Spinoza e, maisà frente, por Marx, entre outros. Cada homem écupiditas em exercício, é pura potência e o nó anelantede uma complexa e mutante trama de relações comos outros homens e a natureza. O desejo é postocomo a nossa potência, que recusa e dobra a eficá-cia dos modelos de pura disciplina e repressão, eque só pode ser exercido nas nossas relações so-ciais. Ele é uma força que subverte o mundo, eintroduz a mutação como a marca da históriahumana, como em Maquiavel e Spinoza (Negri,2002) ou ainda em Quevedo e no barroco (Ansal-di, 2001). Antropologia e ontologia atravessadas peloreconhecimento da dinamicidade do mundo, en-tendido como labirinto, como território da fortunae do exercício da virtú, radicada nas paixões e nosentimento.

Contudo, o pressuposto da natural sociabilida-de humana não é o ponto inicial de uma cadeia deraciocínios a indicar como o homem é ou deve ser.O homem é puro desejo, e sua verdade encontra-se na peregrinação, na ação sobre o mundo e osoutros.10 Ele se move para conservar sua vida eaumentar sua potência, segundo Spinoza (2006,Traité de l’autorité politique, p. 924). Ou seja, para serlivre. Do que resulta a grande questão: quais as con-dições para a expressão perfeita desta potência? Naresposta, uma nova região de aproximação entreAristóteles, Maquiavel, Spinoza e Marx: em nenhumdeles encontramos a postulação de um conjuntode normas com a ambição de uma moral universal,como nas outras linguagens. Para todos eles, dou-trinas morais abrangentes e universais, justificadaspor definições particulares da natureza humana,corresponderão sempre a formas de violência sobreo homem e de diminuição de sua potência. Como,

aliás, tudo o que se petrifica e erige em poder estra-nho ao livre curso da potência humana.

Maquiavel celebra nos Discorsi (1979) a po-tência da multidão que, revolucionariamente, tudosacode de tempos em tempos, reinaugurando a suaforça e a abertura da vida. É isto que lhe importa,contra abstrações morais. Potência contra poder,diz Negri, tanto no caso de Maquiavel como no deSpinoza (Negri, 1993). A possibilidade de horizon-tes morais universais, erguidos por derivação deuma determinada concepção de natureza humana,é negada por Spinoza com o argumento de quenão conhecemos perfeitamente nem nosso corponem a nossa consciência, não só porque existe um“inconsciente” no corpo e na alma, mas porque hásempre um excesso além do nosso conhecimento(Deleuze, 2002). Se compartilhamos uma subjeti-vidade transcendental, ela não residiria na estruturada razão pura, como em Kant, mas na infinitude donosso desejo, e se podemos aceder ao conhecimentodo segundo e terceiro gêneros, isto não significaque o plano prático da vida não seja comandadopela imaginação e pelas paixões, fórmula spinozianapara a linguagem dos sentimentos e fundamentalpara a compreensão de seu projeto democrático(Aurélio, 1998). Em Marx (1974, 1985, 1987), a prosairidescente investe tanto contra as ficções do indiví-duo como do cidadão, e contra todas as doutrinasmorais secretadas a partir delas, denunciando-ascomo formas de sacralização ou petrificação derelações de poder e exploração. A linguagem bemcompreendida dos sentimentos, ao assumir radi-calmente a imanência humana, recusa e explode o“certo” e as doutrinas morais que aspiram à trans-cendência, como em Kant e a moral religiosa tra-dicional, ou resultantes de uma antropologia pura-mente estática, como no caso da linguagem dosinteresses e sua concepção do indivíduo apetitivo.

Isto não quer dizer que a linguagem dos sen-timentos nada tenha a dizer a respeito do sentidode nossas ações. A suposição do homem comopotência traz consigo a certeza de sua perfectibili-dade, movimento que consiste, não na realizaçãode determinado modelo moral de homem, masna preservação de sua produtividade ontológica,na abertura permanente de sua potência. Nesse sen-tido, a moral dissolve-se em ética, orientada peloque é “bom” ou “mau”, como em Hobbes, impug-nando o “certo” da linguagem da razão e o indivi-dualismo ou o utilitarismo do horizonte moral dos

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interesses. Mas “bom” e “mau” em relação a quê?Em relação às possibilidades de atualização da nossapotência humana. Como assinala Deleuze a respei-to de Spinoza, “bom” tem um duplo sentido: o deadequado ou conveniente à nossa natureza e a acep-ção modal e subjetiva, que faz um homem “bom”,ou seja, “aquele que se esforça para organizar osseus encontros, por se unir ao que convém à suanatureza, por compor a sua relação com relaçõescombináveis e, por esse meio, aumentar a sua po-tência” (Deleuze, 2002, p. 29). A Ética de Spinozaé, nesta perspectiva, uma tipologia dos modos deexistência imanentes, fundados no bom ou no mau,que substitui a tradicional concepção de Moral, edissolve a “geometria” cartesiana derivada da ra-zão. Como em Maquiavel, mais interessado nosmodos de organização da cidade e de exercício dopoder, do que na vinculação da vida política a umhorizonte moral e transcendental. Em Marx, pelomenos no jovem Marx, a crítica ao pensamento deHegel incide sobre o mesmo ponto: se o direito eo estado hegelianos materializam a razão universal,em Marx o sujeito crescentemente livre da históriadeve se livrar de toda a canga de instituições e pres-crições morais e legais (Moore, 1980), atualizandocontinuamente sua potência. A sucessão de modosde produção, no materialismo histórico marxiano,dissolve o bem, o mal e o certo em favor do “bom”e do “mau”, aprofundando a acepção spinoziana ea ela agregando elementos históricos e empíricos.

Mas há mais. Se a potência humana só se rea-liza nas relações entre os homens, concebidas sob aforma de modos “bons” ou “maus”, isto significaque a máxima realização da potência humana só sedá pela associação livre entre eles. Porque essa asso-ciação aumenta a potência, e portanto a liberdade,de todos. O vivere civile recebe aqui um significadotodo especial, e radicalmente democrático, no hu-manismo cívico, em Maquiavel, em Spinoza e emMarx. Esta associação entre os homens, a comuni-dade, não pode ser instrumentalizada para a ob-tenção de fins particulares, como na linguagem dointeresse. Ela é a condição da realização da potên-cia de todos, e sua forma própria só pode ser ademocrática.

Contudo, democracia não é mais uma “for-ma” racional de governo, com a capacidade desuperar o tempo e comprar sua estabilidade, per-manente tentação reflexiva inspirada pelo platonis-mo. Pocock (1975) e Negri (2002) percebem com

clareza a corrosiva análise maquiaveliana sobre apessimista teoria dos ciclos de Políbio, que sempresupõe a decadência de uma forma boa de gover-no em outra má. A filosofia política, mesmo hu-manista, irá se enredar na tentativa de imaginar oumaterializar a democracia por fora deste ciclo e dotempo, como nas utopias do início do mundomoderno. Pois Maquiavel liquida esta percepçãocíclica do tempo político, com seu programa eva-sivo e utópico, concebendo a democracia comoprocesso de crescente afirmação da potência damultidão. O tempo é a ocasião de realização destapotência, em luta contra as cristalizações do poder.A democracia é a mutação, uma narrativa de liber-dade que recusa qualquer petrificação e vive de seumovimento. Ela não é a vitória sobre o tempo e amutação, mas a mudança permanente derivada dodesejo humano em exercício, do desejo da multidão.O desejo como programa, acentua Negri, o mesmode Spinoza e de Marx. Em Spinoza, a democracianão é apenas a forma de governo que o Tratadopolítico deixa inacabada, mas o coração mesmo desua Ética (2006), de sua ontologia. Novamente, é apotência da multidão, de seres que, pela associação,ultrapassam a potência e o direito de cada um toma-dos isoladamente, e fazem do mundo o produtodesta força. A democracia é o conatus feliz da mul-tidão com o mundo, agora não mais puramentenatural e objetivo, mas marcado e produzido poresta potência e para ela. Como segunda naturezaque se transforma no livro aberto da natureza huma-na e de sua força, de acordo Marx nos Manuscritos(1974). Depois de se desencantar com as revoluçõespolíticas, com o Estado e com Hegel, Marx desco-bre a democracia como o movimento permanentedo demos total, no dizer de Abensour (1998), embusca de si mesmo e de sua realização. Prefigura-ção da revolução permanente que não se satisfazcom a idéia de cidadão, encontrando na experiên-cia concreta das revoltas de 1848 um modo de-mocrático de ação da multidão, já entendida na óticado proletariado (Marx, 1977).

Mas o foco nesse movimento da multidão, adefesa de um sujeito coletivo, de uma totalidade,não sacrificaria a autonomia de cada homem e asua individualidade? Se o tema do homem conside-rado isoladamente não é saliente em Maquiavel, elese encontra claramente proposto em Spinoza: a mul-tidão na democracia não é a massa informe, mas oconjunto de homens que podem desenvolver em

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liberdade e concórdia a sua potência, e que se va-lem da razão para executar – por uma vontadeconstante – a legislação “razoável” da comunidade(Spinoza, 2006 – Tratado político). Mas no próprioTratado político parece existir uma dificuldade emconciliar os dois pontos: o da autonomia do indiví-duo e a potência da multidão. Embora tenha já selivrado do tópos do contrato social para a fundaçãoda sociedade, ele parece insistir na comunidade –na nação, no sentido próprio do século XVII – comouma “personalidade moral”, à semelhança de Suá-rez (1861), contra a qual inexistiria a possibilidadede independência individual. A expressão pareceantiindividualista, e curiosa por insistir no termo“moral”, que também deveria ter sido varrido desua reflexão. Mas o parágrafo seguinte, explosivo,cuida de estabelecer com mais precisão o desdobrardo argumento, ao considerar a hipótese da revoltaou da oposição de um grande número de cida-dãos a um ato da legislação geral. Nesse caso, dizele, o direito da nação não pode se sobrepor àpotência geral da multidão. Não existe uma vonta-de geral que se desprega da multidão e se autonomi-za enigmaticamente, sob pena de enfraquecimentoda própria potência da comunidade, de seu desa-parecimento ou substituição. Nesse sentido, a “per-sonalidade moral” é a multidão, ou seja, é o con-junto dos homens nas suas relações mútuas e nassuas diferenças (Aurélio, 1998), o que equivale adeslizar o velho conceito de moral para o mundodos modos.

Há um andamento “sociológico” antecipadoem Spinoza, recolhido e ampliado por Marx. Apotência crescente da multidão não pode ser ga-rantida como resultado não intencional da movi-mentação dos indivíduos, do mesmo modo quesua produtividade não pode ser aprisionada no ter-ritório de uma misteriosa vontade geral. Em outraspalavras, a reflexão modal da democracia não maisadmite o campo conceitual estruturado pela con-traposição moral entre indivíduo e comunidade,construída pelas duas outras linguagens. Se Spinozadeixava para trás as marcas do barroco e desco-bria o capitalismo holandês como modo de apro-priação produtiva do mundo, Marx reconhece pro-gressivamente o espírito fáustico do capitalismoindustrial e a nova abertura da potência humanaprovocada por ele em relação ao passado. A pers-pectiva materialista, ensaiada por Maquiavel e Spi-noza, ganha todo o seu rendimento em Marx: a

reflexão sobre os modos deve incidir no desven-damento das relações que os homens estabelecementre si para a produção da vida e do mundo. Aapropriação crítica, corrosiva, de como o capitalis-mo constrói seu fetichismo e produz seus persona-gens, deve anteceder a liberação da ação efetiva damultidão para se reapropriar de sua potência. E domundo. Antes disso, não há como falar em indiví-duo ou comunidade. Ou melhor, o modo capita-lista de produção impede, tanto a universalizaçãoreal do indivíduo como a constituição democráticada comunidade. A fratura e a exploração são cons-titutivas deste modo de produção, da mesma for-ma que sua produtividade e eficácia.

Na perspectiva sociológica de Spinoza eMarx – como na de Tocqueville, embora em outrachave (Werneck Vianna, 1997) – este contínuo avan-ço da democracia não pode mais ser capturado doponto de vista tradicional, ou seja, do indivíduo eda comunidade como realidades morais. Ele sópode ser entendido e impulsionado por um pensa-mento que visualize a nossa trajetória pela sucessãode “modos” de organização social que ampliem aspossibilidades do bom, e reduzam a existência doque é mau. Modos que não mais correspondem a“totalidades objetivas” hegelianas, incrustadas numaauto-revelação do Espírito, mas formas históricasde relação entre os homens e que, portanto, po-dem receber o impacto de nossa consciência, dapotência da própria multidão. Pela sua dinâmicainterna, a linguagem bem compreendida dos senti-mentos desfruta de uma enorme capacidade de fla-grar as operações de cristalização e de empodera-mento das modalidades históricas de vida emcomum, tais como as idéias de indivíduo, comuni-dade, constituição, comunidade jurídica. Ao mes-mo tempo, é capaz de reconhecer uma históriadestes modos, e da superioridade histórica de unssobre outros. A chave crítica aqui não se prende amodelos do passado, e nem tampouco a horizon-tes utópicos predeterminados. O segredo de suapotência, da linguagem dos sentimentos, é este com-promisso com a permanente abertura da potênciade todos os homens em associação.

Por isso mesmo o andamento da história de-sejado pela linguagem dos sentimentos não signifi-ca cancelar o homem singular e seus desejos. So-ciologicamente, ela não se enreda na consideraçãode uma natureza que garanta a cada homem umarealidade anterior às suas relações, mas desdobra-

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se pela análise destas relações. São elas que podemenriquecer ou empobrecer a potência de cada um,entendido como parte de uma rede objetiva de vin-culações e relações com os outros e com o mundo.Como conseqüência, a natureza real do homem,aquela que ele constrói para si ao longo da história,permanece sempre como obra aberta, e o máximoque se pode esperar é que, em algum momento,cada homem possa desenvolver integralmente suapersonalidade, de forma livre e por fora de qual-quer concepção disciplinadora. A conhecida frasede Marx, do homem simultaneamente caçador,pescador e crítico de arte, expressa palidamente estedesiderato de personalidade livre para cada homem,sem a necessidade de se submeter a um modelofixo e congelado. De certo modo, se o indivíduoresume a perspectiva antropológica da linguagemdos interesses, se o cidadão ou o indivíduo autodeter-minado explicitam os modelos de perfeição huma-na da linguagem da razão, na linguagem dos senti-mentos os termos são outros. A multidão, com suapotência e energia, e as “pessoas” – como modosdesta potência da multidão – constituem os perso-nagens centrais da narrativa de liberdade humana.

Tal como as outras, a linguagem dos senti-mentos não expele do seu campo o interesse ou arazão. O desejo humano, longe de reprimido, éposto como elemento essencial e passível de culti-vo, tal como em Aristóteles (MacIntyre, 2001). Avontade de apropriação do mundo é a chave dalinguagem dos sentimentos, interessada em liberarpara todos o exercício desta potência que produz ese apropria materialmente do mundo. A multidãotem o seu interesse, material, concreto. Do mesmomodo, não esquece a razão, entendendo-a maiscomo aliada do desejo do que como dele repressorae diretora, e por isso mesmo redefinida como crí-tica dos modos de organização da vida e comoparte da potência humana. Se ela desconfia das gran-des epifanias da razão, seu médium é a ação humana,a ação política, capaz de sintetizar tanto as virtudesda ciência e da técnica, para a produção do mundo,como aquelas incorporadoras da arte, que fazemdo mundo um mundo desejado.

Essas linguagens “bem compreendidas” nãoconstituem campos incomensuráveis. Ao contrário.As zonas de intersecção são amplas, e variadas astentativas de síntese, ao estilo hegeliano. Em Hegel,a plena autoconsciência do Espírito desdobra-sepela hierarquização e articulação do sentimento –

que sustenta a família, por meio do amor –, dointeresse, que comanda a sociedade civil, e da ra-zão, materializada no Estado e que organiza asociedade como um todo ético – e não moral –,fechamento de um círculo que recupera novamen-te os sentimentos (Hegel, 1985). Honneth entendeessa síntese hegeliana como articulação das váriasformas de reconhecimento necessárias à existênciadas sociedades modernas e livres (Honneth, 2007).É impossível no espaço restrito de um artigo de-talhar e ampliar ainda mais este panorama, que dei-xou de lado pensadores como Montaigne, Har-rigton, Hume, Montesquieu, Saint-Simon, para citaralguns deles, e a polêmica e corrosiva figura deNietzsche. Do mesmo modo, não há como trazereste quadro até o presente, embora seja oportunolembrar que a imaginação habermasiana, de algummodo, contempla essas três linguagens, localizandoo sentimento no mundo da vida, o interesse no sis-tema empobrecido pela linguagem do dinheiro e arazão também pauperizada no sistema de poder.Para os propósitos deste artigo, no entanto, é pos-sível passar aos dois movimentos finais.

O elemento inicial deste segundo movimen-to é uma hipótese instigante de Tocqueville, ao anali-sar a origem dos Estados Unidos em A democraciana América (1998). Segundo ele, todas as grandes tra-dições européias transplantadas para a América con-tinham em si germens democráticos, cujo desenvol-vimento dependeria do futuro. Esta hipótese, decerto modo surpreende aos que trabalham com avelha idéia do excepcionalismo dos Estados Unidos.E abre o espaço para que a indagação sobre oselementos democráticos da tradição ibérica, trans-plantada para o Novo Mundo, possa ser respondi-da de modo menos preconceituoso do que o usual.

A Ibéria dos séculos XVI e XVII pertence àjurisdição da linguagem dos sentimentos. No longoprocesso da Reconquista, ela erguera sua particula-ridade em relação ao restante da Europa: o territo-rialismo – uma crescente capacidade de controlesobre espaços cada vez mais amplos –; uma reli-giosidade simples e de fronteira, que fazia de seumovimento territorial uma cruzada contra os in-fiéis; a fixidez de sua estrutura social, preservadapela capacidade de drenar os conflitos internos paraas zonas de expansão, conquistando-as para a re-petição da mesma morfologia social; a centralida-de política da Coroa, responsável pela aventura dareconquista e pela estabilidade interna da ordem

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social jurisdicionalista e corporativa (Barboza Filho,2000). Protagonista central da expansão da Euro-pa e do orbis terrarum ao tropeçar com a América, aÁfrica e o Oriente, a Ibéria sente-se particularmen-te desafiada pela magnitude de seu próprio movi-mento e por todos os processos que condenavama velha estrutura social do mundo medieval. Arrighi(1996) assinala a participação dos ibéricos no pri-meiro grande ciclo de acumulação do capitalismoocidental como uma aristocracia guerreira, em alian-ça com os banqueiros genoveses integralmente vol-tados para o lucro das operações comerciais. Oque ele não percebe é que, nestes dois séculos – osséculos de ouro –, a Ibéria se transforma na princi-pal potência européia, tanto por se apresentar comouma poderosa máquina de guerra como por serportadora de um programa de enfrentamento deuma mutação social de proporções assustadoras.

Esse programa é dado pelo neotomismo, quese torna hegemônico na Ibéria contra o escatolo-gismo franciscano e a relativamente pobre reflexãohumanista na Espanha e em Portugal (Barboza Fi-lho, 2000; Skinner, 1993; Pagden, 2002; Domin-gues, 1996). O neotomismo é mais do que purapreservação da perspectiva de Aristóteles, batizadapor Santo Tomás de Aquino. É uma sistemáticaatualização dos pressupostos tomistas para enfren-tar um pesado conjunto de desafios: a expansãodo orbis; a infinitude do universo e uma ciência quese desprendia da teologia; a ruptura da cristandadepelo aparecimento do protestantismo; a Américarecenter inventis, com uma população marcada pelaabsoluta ignorância das verdades da fé cristã; astransformações sociais e políticas enfrentadas pelaEuropa, incluindo-se aí a questão dos judeus, a pre-sença ameaçadora do Oriente muçulmano e o papela ser desempenhado no mundo pela própria Ibéria.Atualização que vai além do imitatio, buscando acondição de renovatio, como nos casos de Vitória eSuárez, maiores representantes desta tentativa desustentar uma visão integrada, harmônica e objetivado universo e da vida, contra as tendências de frag-mentação em curso na sociedade européia. A reati-vação da lei natural – e da hierarquia de leis do kós-mos – permite ao neotomismo a afirmação de umaracionalidade objetiva do universo, que se desdo-bra sobre o próprio mundo do homem.

A universalidade e a necessidade da lei naturalgarantem o kósmos como um organismo vivo e sistê-mico, criado por Deus como um todo objetivo,

arquitetônico e coerente (Vitória, De potestate Eccle-sia, 1934). Esta concepção é o fundamento para arecusa da nova ciência matemática de Galileu, abran-dada pela admissão do probabilismo (Morse, 1988).É ainda lei natural, entendida como selo impressono interior de cada homem por Deus, que reavivao otimismo antropológico e metafísico dos neoto-mistas, em oposição às premissas da indignidadehumana e da sociedade política como instituiçãoderivada de nossos pecados e imperfeições, carac-terísticas do protestantismo. Os homens não seriamapenas receptáculos passivos da graça divina –como queria Agostinho já no século IV e comorepetiam os protestantes –, mas co-partícipes daobra divina, razão pela qual podem se salvar pelassuas próprias obras. Vitória antecipa e nega umadas percepções presentes no século seguinte: Nonenim homini homo lupus est, ut ait Ovidius, sed homo (Vitó-ria, De Indis recenter inventis, 1934). As sociedades po-líticas constituem “comunidades perfeitas”, porquesão auto-suficientes para a consecução dos seus finspróprios, ou seja, a atualização da velha premissaaristotélica a respeito da natureza social dos homense o desenvolvimento comum de suas virtudes eperfeições. Esses pressupostos otimistas reorientamas políticas ibéricas na América, abastecem o deba-te contra os protestantes, legitimam a sociedade po-lítica e as leis civis, admitindo uma cautelosa “sub-jetivização” do direito em Suárez (1861), e recriamo direito internacional, o ius gentium, adequado a umaEuropa crescentemente dividida em unidades polí-ticas de porte médio. Mesmo afirmando a autono-mia das comunidades políticas, cuidam de preservara sacralidade da Igreja como mediadora entre acidade dos homens e a cidade de Deus.

No plano interno, o neotomismo orienta omovimento ibérico para a constituição de umaortodoxia que busca se tornar imune ao diferente,ou seja, às “heresias” protestantes, ao judaísmo eao criptojudaísmo, e a tudo que pudesse ameaçar asua identidade e estabilidade, como anota Braudel(1984). Este otimismo inicial do neotomismo, maistarde reduzido em Suárez, não resiste, no entanto,ao vendaval trazido por todas as mudanças e crisesem curso na Europa. Se ele é um programa claroda Ibéria no século XVI, o século posterior já sedesenrola sob o signo do Barroco. Fenômeno eu-ropeu (Wolfflin, 2000; Hatzfeld, 1988), o Barrocotem um sentido particular na Ibéria, objeto da in-vestigação de Maravall (1986).

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Em outros trabalhos, tenho sustentado o Bar-roco como uma forma de modernização, de subje-tivização da vida, própria da tradição ibero-ameri-cana (Barboza Filho, 2000, 2003). Ele é a últimagrande tentativa realizada pela Ibéria para preservara ordem espacial, arquitetônica e hierárquica que aorientou deste o início da Reconquista. As coroassão as grandes artífices deste esforço, desenvolvidopela gnose e não mais pela exegese neotomista eescolástica. O preço desta fidelidade a uma deter-minada concepção de ordem social como comu-nidade hierárquica e corporativa é a artificializaçãoda tradição, o desenraizamento da hierarquia de seusolo natural e a translação de seus fundamentos parauma ordem política sustentada pela vontade abso-luta do soberano, com sua capacidade de inventar edirigir subjetividades. Operação que faz da Ibériaum experimento plenamente moderno, emboradistinto daqueles desenvolvidos em outras áreas daEuropa.

É esse movimento torturado e trágico da Ibé-ria que se encontra magnificamente gravado porCervantes no D. Quixote. O Cavaleiro de Triste Fi-gura é a representação perfeita desta Ibéria entre-gue a uma sublime loucura: a ressurreição veristado passado como forma de vida expressiva e re-dentora do presente. A figura do Quixote oferecea oportunidade para explorar o modo como a Ibé-ria mobilizou, para a sua entrada na modernidade,as linguagens disponíveis para a organização dasociedade e para dar sentido à vida, construindo asua especificidade e a sua profundidade. Ela selançou no mundo moderno pela utilização da lin-guagem do afeto e do sentimento, recusando comdecisão as duas outras linguagens já estudadas. Elarenova a sua tradição, mobilizando o afeto – o sen-timento – como modo de revitalizar o seu passa-do no presente. Resulta dessa complexa operaçãoa importância do médium que permite ao sentimen-to criar a sua própria profundidade: a religião e,em especial, a arte. Na verdade, a arte é a grandematerialização da linguagem dos sentimentos daaventura moderna da Ibéria. É o seu poder de co-moção e de comunicação, a sua capacidade de pro-duzir e aprofundar sentimentos, de criar os sentimen-tos como modos de compartilhamento de sentido,que lhe conferem um papel especial na Ibéria. É amorfologia da arte e as suas possibilidades – e nãoapenas a arte como tal – que fazem nascer umaexperiência moderna estranha aos códigos das lin-

guagens do interesse e da razão, que aparecem su-bordinadas no barroquismo ibérico.

A artificialização da tradição pela linguagemdo sentimento, ou seja, a forma de modernizaçãoseguida pela Ibéria nos séculos XVI e XVII, envol-verá um preço. Ela estará permanentemente atra-vessada por aquilo que Unamuno (1992) chamaráde sentimento trágico da vida, ou seja, a terrívelimpossibilidade de resolver o conflito entre valo-res antitéticos, impossibilidade transformada emenergia assimiladora e manancial de vida. O queimporta, no entanto, é assinalar este peso que a lin-guagem do sentimento é obrigada a suportar naexperiência ibérica: o de fazer o velho – a tradição– caber no novo, e de fazer este novo vestir-se coma morfologia da tradição. Por isso mesmo seu bar-roquismo consistirá numa grande operação de asso-ciação de opostos – o do velho e o do novo, o doaparente e o do real, o do eterno e do efêmero – oque acentua a percepção da vida como engaño e de-sengano, como um xadrez indecifrável. Esse bar-roquismo admite o homem como cupiditas, o uni-verso como uma trama infinita constituída pelo jogodas potências, a mutação como condição da vida eo mundo como teatro, como artifício que cancelaa naturalidade do viver e exige a teatralização doque se quer viver.

No entanto, o télos do barroco ibérico – a pre-servação da morfologia tradicional da Ibéria – ma-terializa-se em fechamento às possibilidades demo-cráticas e fáusticas da linguagem dos sentimentos.O sentimento trágico da vida, no Barroco, nascedesta clausura ao movimento que as linguagens bemcompreendidas da modernidade procuravam exe-cutar: a liberação da potência do desejo como de-sejo de produção e apropriação do mundo. Nãopor acaso o estoicismo se torna uma referência fun-damental. A operação de modernização efetuadapela Ibéria consistiu num violento movimento desubjetivização das premissas que informavam asconcepções estóica e tomista do mundo, fechan-do-se para os desenvolvimentos possíveis da lin-guagem dos sentimentos. Spinoza percebe comacuidade os limites da experiência barroca ibéricae, embora alimentado pelos clássicos espanhóis dosséculos de ouro, dispõe-se a este salto para o futuroque a Ibéria não realiza (Ansaldi, 2001).

É este barroco, versão especial da linguagemdos sentimentos, que atravessa o oceano e chega àAmérica, tornando-se o elemento cultural dominante,

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a arché da nova sociedade, de tal modo que Octá-vio Paz poderá dizer que aqui vivemos três séculosde Barroco sem a ameaça do Iluminismo. Trans-plantado para a América, o barroco ganha, contu-do, um conteúdo próprio, e não pode ser vistocomo mera continuidade em relação àquele ibéri-co ou europeu, como parece entender Claudio Véliz(1994). Este é, na verdade, um ponto chave. Nema tradição nem a religião típicas da Ibéria puderamser reeditadas com a mesma força configurativa naAmérica. Longe de forças hegemônicas, assumiama condição de horizontes plásticos ao saque, à ne-gociação, à produção de acordos imprevistos nasmatrizes originais. Contra este passado esfumado,tampouco um futuro comandado por uma exi-gente imaginação utópica conseguia se afirmarcomo horizonte de sentido para a vida social. Ne-nhuma utopia moderna arrebata o coração dosibero-americanos, como nos casos do igualitaris-mo e do individualismo típicos da experiência nor-te-americana. Some-se a isto a brutalidade e a vio-lência constitutivas dos nossos séculos iniciais: osaque dos homens, mediante a escravidão e a ser-vidão, o saque da natureza e a drenagem de suasriquezas para o mundo europeu. Nesse cenário, otrabalho não se firma como médium de apropria-ção do mundo, do mesmo modo que o direito, nalinguagem da razão. Desse chão “estrutural”, mar-cado pela violência e pela subordinação, nascemapenas os obstáculos à organização social da Amé-rica, os limites à constituição de uma sociedade mi-nimamente ordenada e solidária.

Apesar disto e de tudo, a América foi se fa-zendo. Não pela tradição, pela religião, pela utopiaou pela economia. Mas foi se erguendo, e este é seumistério, a sua particularidade. Se não podemosencontrar um momento fundador, capaz de bri-lhar e persistir como um sol e uma fonte de senti-do e de ordem, certamente temos uma origem:um barroco destituído de metafísica, mistura deindeterminação ética, fragmentação real e fome desentido. O que herdamos do barroco ibérico nãoforam as formas de vida e as crenças peninsulares,mas a linguagem do sentimento, com sua naturezaestética, com sua capacidade de integrar antagonis-mos e diferenças, com sua veemência teatral e seuvoluntarismo. Ou seja, a nossa arché é a linguagemdos sentimentos e o médium verista da arte, sem apercepção trágica da vida, característica do espíri-to peninsular. Nascemos livres desse confronto

insolúvel de valores, e sequer nos sabíamos medie-vais ou modernos, obrigados pela vida e pelanecessidade a construir uma sociedade. Por issomesmo a força do barroquismo tropical alimenta-se de um poderoso pathos construtivista, associadoà potência integradora da linguagem dos sentimen-tos. A capacidade gnóstica e verista do Barroco sereorienta decididamente para imaginar e certificaras possibilidades de construção de uma sociedadeespecífica e nova em relação às originais. E que porisso mói e tritura as identidades prévias de todosos que aqui se encontram, vindos da África, daEuropa, e dos primeiros habitantes desta parte docontinente americano.

O barroquismo ibero-americano foi obriga-do a levar ao limite o verismo próprio do seu con-gênere peninsular: a vida social e política existe e sereproduz tão-somente pela gestualidade volunta-rista e exagerada das cerimônias teatrais, que reú-nem e interpelam periodicamente os homens. Énessa teatralização que os ibero-americanos reco-lhem os arruinados pressupostos comunitaristas dasantigas tradições – dos indígenas, dos africanos edos europeus –, reinventam instituições já desfigu-radas e fazem aparecer os precários fundamentosda ordem social, ultrapassando os limites “estrutu-rais” de sua organização. A sociedade adquire reali-dade por meio desta movimentação verista de subje-tividades, dispensado o trabalho sistemático do lógos em favorda força aglutinadora e oscilante do eros, do senti-mento e de suas linguagens. Razão da importância,entre nós, do extenso e intenso calendário de litur-gias religiosas, políticas e civis, substitutivas do corpodo rei e destinadas a certificar algo que não existianatural ou espontaneamente – a própria socieda-de –, artifício que reclamava esta constante e vo-luntariosa reiteração. Teatralização e “estetização”que não se prestam à reafirmação do passado, masà abertura de galáxias e tradições distintas, à cons-trução e ao exercício de sinais contundentes – igre-jas, palácios, cadeias, conventos, procissões, festas,cidades – de uma ordem fugidia e de uma novahierarquia.

Teatralização, portanto, que não atesta umaverdade dada como preexistente, mas que produza sua própria verdade, como na reflexão de Spino-za. É a movimentação constante e voluntarista quecria e mantém a sociedade, num registro especial: éo próprio movimento, tocado pela linguagem daarte e do sentimento, que cria a sua eficácia e a sua

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profundidade. O Barroco abre a todos esta possibi-lidade, por cima das desigualdades econômicas esociais, oferecendo-se a todos os grupos e raçaspara exercícios de identidade e negociação, especial-mente no Brasil: na guerra contra os holandeses,nas irmandades baianas e mineiras, no folclore, nasfestas e nas variadas liturgias de certificação social.É a linguagem dos sentimentos, com suas premissasantropológicas, com seus poderes construtivos,com a potência da arte, que supera a crueldade e aviolência para fundar os alicerces de uma socieda-de em formação.

Em As palavras e as coisas, Foucault persegue aseparação entre as coisas e as palavras, inexistentena epistéme do século XVI. Neste momento, as pala-vras correspondem ao murmúrio das coisas, e osaber consiste em fazer o mundo falar, em tentarfazer transparentes os seus segredos, presentes nasmarcas que o habitam. A esta epistéme sucede outra,que separa relativamente as coisas e as palavras –origem dos sistemas racionais e ordenadores doséculo XVII –, mas que ainda guarda a possibi-lidade da palavra equivaler a este murmúrio domundo, através da arte. Sobretudo da arte da ale-goria. Don Quixote, para Foucault, seria o perso-nagem deste mundo onde as palavras e as coisasnão se equivalem, em que os signos já não são se-melhantes aos seres, cabendo ao hidalgo a necessi-dade de encontrar as provas desta vinculação, odever de conferir realidade aos signos desprovidosdo conteúdo da narrativa. O que ele quer encon-trar, na sua figura medularmente barroca e ibérica,é o passado, as coisas que escapam das palavras,escancarando a contradição do barroco peninsular.Na América, o Barroco quer outra coisa: encontraras marcas de uma realidade que só se desdobrapelo movimento, pelo verismo. A estetização davida é o segredo de sua constituição na América.

O desejo de produzir e se apropriar do mun-do, esterilizado na escravidão, na servidão, no lati-fúndio, na subalternidade política diante da Ibéria eda Europa, escapa para o território da arte e o insti-tui como mundo apropriado pela multidão, apesarde tudo. A potência da multidão dribla os entravesestruturais e instala-se como arte que abandona apura mímesis para a invenção de um solo especial,onde todos podem se encontrar. Do mesmo modoque o atraso econômico e social fazia a Alemanhaevadir-se para a pura teoria, realizando no pensa-mento a sua revolução burguesa, de acordo com

Marx, na América a sociedade se organiza primei-ro pelo médium da arte, que cria seu espaço comoespaço de uma potência que teima no seu exercí-cio. É na linguagem dos sentimentos que a arquite-tura, a escultura, a pintura, a música, a festa, os ri-tos, os cultos religiosos adquirem esta capacidadede fabricar uma sociedade. Por isso mesmo esteti-zação não significará a pura evasão ou a edulcoraçãoda miséria e da violência. Ela é o ato de construçãosocial, o plano material em que se anuncia o pro-grama total da multidão, próprio da linguagem dossentimentos: a apropriação do mundo que lhe estávedado pelo poder e pela exploração. E que orien-ta e preside, mais do que mero processo de coloni-zação, um real processo de autocolonização, no casodo Brasil, como observa agudamente EduardoLourenço (2001).

Não por acaso, quando escrutinado pelaslentes das linguagens do interesse e da razão, o po-vo – a multidão – não aparece em nossa história,seja na colônia, no império ou na república, inau-gurada diante de um povo que aparece apenas parase mostrar “bestializado”. Quando se observa, noentanto, a nossa história pelas lentes da linguagemdos sentimentos, o que emerge é o vulto cada vezmais nítido desta multidão, que fez e faz do impro-vável a marca da sua presença e o programa de suapotência. Longe de se consagrar à preservação deuma tradição, constelada em torno de valores cla-ros e objetivos comuns, o nosso barroco é puralinguagem em movimento, é exercício infindávelem busca de sentido, um eterno presente em buscade significado, a perseguição criativa de um télos quesó se descortina na própria caminhada, parafrasean-do Guimarães Rosa. A América vai se construindono movimento, mas sem a idéia clara de futuro esem uma origem que lhe permita a cissiparidade,possuidora apenas das linguagens do verismo e dosentimento. Por isso, é desejo permanente e anseioprofundo de ordem e significação, motivos que seencontram ao fundo dos movimentos de autono-mia política no século XIX e que se mantêm noséculo XX.

Não se trata, aqui, de desenhar um panoramaidílico de nossa trajetória ibero-americana ou bra-sileira, mas de destacar a linguagem que presidiu asua criação. E que, de um modo ou de outro, per-manece como sua linguagem predominante, razãopela qual Sérgio Buarque ressaltará a nossa cordia-lidade, ou seja, a linguagem teatral dos afetos, como

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uma de nossas características sociais (Holanda, 1988).Mais especificamente no caso do Brasil, é esta lin-guagem que se preserva pelo concurso do romantis-mo, do positivismo e do modernismo, cujas marcascontinuaram fazendo da linguagem dos sentimentoso fundo de uma cultura política e de filtragem narecepção dos ganhos reflexivos e práticos das ou-tras linguagens (Barboza Filho, 2003). A estetizaçãoda vida, numa acepção ampla, é sempre a estraté-gia de drible na “estrutura” e reiteração do programade apropriação do mundo pela multidão. A impor-tância da cultura popular, nas suas variadas expres-sões em nossa vida nacional, não registra apenas a“criatividade” do povo: ela é o médium privilegiadode reprodução e reinvenção da linguagem dos sen-timentos, com sua ambição de reabrir o mundo àpotência da multidão.

Resta assinalar um ponto a ser desenvolvido:a América ibérica nasce fragmentada e permanecefragmentada socialmente, desde o seu início. Elanunca foi comandada por uma linguagem cujosprincípios pudessem ser organizados com clareza,transparência e eficácia imediata. Nem a linguagemda razão, nem a dos interesses, a unificou, reprodu-zindo formas homogêneas de indivíduos e de rela-ções sociais. Mas talvez seja este o modo de mate-rializar a linguagem dos sentimentos, sem nenhumagramática impositiva, sem nenhuma metafísica es-pecial: mantendo-a como linguagem que faz damutação e da história o exercício livre, criativo ecrescente da potência da multidão. Entre nós, elafoi sempre isto: o combustível de um processo dedemocratização, mesmo numa chave passiva (Wer-neck Vianna, 1997), que tende a se acelerar.

Sem dúvida, essa tradição fundada na lingua-gem dos sentimentos encontra-se ameaçada, sejapela sua exacerbação autoritária, seja pela eficáciadas linguagens empobrecidas do dinheiro e dopoder. Nosso desafio é o de reencontrar e revitali-zar os pressupostos mais democráticos dessa tra-dição, a sua capacidade de incorporação, a sua to-lerância e a sua maneira de tratar as diferenças, asua vontade de produção e apropriação materialdo mundo, para que ela possa participar mais efe-tivamente – relativizando a simples dicotomia entreprocedimentalismo e comunitarismo – do debatefundamental de nossos dias: o da reconstrução deformas democráticas de vida e de solidariedadesocial.

Notas

Valho-me aqui, de modo bastante livre, do conceito delinguagem política formulado por Pocock (2002), am-pliando deliberadamente seu campo de aplicação.“Transcendental” no sentido em que Wittgenstein serefere à linguagem, como observa Taylor (1997). Semdúvida, a discussão sobre o estatuto da linguagem écomplexa, mas fundamentalmente entendo aqui a lin-guagem como simultaneamente “transcendental” edeterminada pelo uso público, como no Tractatus, deWittgenstein.Para nossos propósitos, não é necessária a distinçãoweberiana entre ações racionais com respeito aos fins eaos meios, pelo menos neste momento.A rigidez da contraposição entre paixões e razão de-pende da vertente medieval e cristã. A perspectiva agos-tiniana é, nesse sentido, distinta daquela do tomismo,para dar um exemplo. Por outro lado, não foi apenas ointeresse que redefiniu as virtudes, como veremos.A título de curiosidade, também Adam Smith (1999)encontra três famílias morais importantes em operaçãoao seu tempo: aquela cuja aprovação depende do inte-resse, outra da razão e a última do sentimento. Suateoria tenta sintetizar esses três elementos básicos, atri-buindo a preeminência aos sentimentos.Em várias passagens das Meditações metafísicas, Descar-tes afirma esta capacidade de nos olharmos de fora paraa certeza de nossa natureza: “porque de um lado tenhouma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medidaque sou apenas uma coisa que pensa e não extensa[. . .]” (p. 118).No que tange à evolução da ciência, no entanto, é pre-ciso assinalar a substituição do dedutivismo galileano ecartesiano pela relevância oferecida à “experiência”como base das afirmações científicas, e o aparecimentodo sistema newtoniano que, tal como Galileu, acabarápor se transformar em referência para o pensamentofilosófico e moral.Essa reinvenção não dispensa a valorização do mo-mento original, como salienta Starobinski, nem signifi-ca desprezo pela natureza, como anota Taylor, que vêRousseau como um dos inspiradores da concepção ro-mântica da natureza.Na verdade, todo o objetivo de Habermas é superaresta razão subjetiva e monológica da modernidade, pelaidéia de uma razão intersubjetiva, que supõe sempre ouso público da razão. Até mesmo por isso o direitoparece mais apto a ocupar o posto de médium da lingua-gem moderna da razão.Séculos mais tarde, o barroco Guimarães Rosa dirápela boca de Riobaldo: “Digo: o real não está nem nasaída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é nomeio da travessia” (2001, p. 80).

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AS LINGUAGENSDA DEMOCRACIA

Rubem Barboza Filho

Palavras-chave: Democracia; Lingua-gens; Iberismo; Teoria social; Cultura po-lítica.

A reflexão contemporânea sobre a re-invenção da democracia e de formas so-lidárias de vida encontra-se, fundamen-talmente, associada ao debate entre“procedimentalistas” e “comunitaristas”.Este artigo pretende relativizar a hege-monia desta polaridade, sustentando aconstrução do mundo moderno ociden-tal como o resultado de três grandes lin-guagens de subjetivização do mundo: aslinguagens do interesse, da razão e dosafetos, ou dos sentimentos. O autor argu-menta, ainda, que só a plena compreen-são da linguagem dos afetos, obliteradana reflexão contemporânea, pode levarao pleno entendimento da experiênciamoderna da Ibero-América, em especialo processo de constituição da sociedadebrasileira e de suas potencialidades de-mocráticas.

THE LANGUAGESOF DEMOCRACY

Rubem Barboza Filho

Keywords: Democracy; Languages;Iberism; Social theory; Political culture.

Contemporary reflection on the rein-vention of democracy and compatiblelifestyles is found to be fundamentallylinked to the debate between “procedu-rists” and “communitarians.” This articleaims to analyze (relatively) the hegemonyof this polarity, arguing for the develop-ment of the modern western world as aresult of the world’s three great subject-ivizing languages: the language of inter-est, of reason, and of affection or feel-ings. Furthermore, it argues that only fullunderstanding of the language of af-fection, can lead to real (or total) com-prehension of the modern experience ofIberia-America, especially the process bywhich Brazilian society and its demo-cratic potential have been constituted.

LES LANGAGES DE LADÉMOCRATIE

Rubem Barboza Filho

Mots-clés: Démocratie; Langages; Mon-de ibérique; Théorie sociale; Culture po-litique.

La réflexion contemporaine sur la réin-vention de la démocratie et sur les façonssolidaires de vie est associée, fondamen-talement, au débat entre les “procédimen-talistes” et les “communautairistes”. Cetarticle propose de relativiser l’hégémoniedes ces deux pôles, en défendant que laconstruction du monde moderne occiden-tal est le résultat de trois grands langagesde subjectivité du monde: les langages del’intérêt, de la raison et des affections oudes sentiments. L’auteur soutient, égale-ment, que seule la compréhension totaledu langage des sentiments, oublié dans laréflexion contemporaine, peut mener àune pleine compréhension de l’expériencemoderne de l’Amérique Ibérique, en par-ticulier du processus de constitution dela société brésilienne et de ses potentialitésdémocratiques.